Chicos 27

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e-zine literária de Cataguases - MG - Brasil

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Chicos N. 27 - Julho 2010

e-zine de literatura e idéias

de Cataguases – MG

Capa

Desenho de Altamir Soares

Editores Emerson Teixeira Cardoso

José Antonio Pereira

Colaboradores permanentes: Zeca Junqueira

Vanderlei Teixeira Cardoso

Altamir Soares

Vicente Costa

Colaboradores desta edição: Antônio Jaime Soares

Fernando Abritta

Francisco Marcelo Cabral

Luiz Lopez

José Vecchi

Ronaldo Brito Roque

Ronaldo Cagiano

Rubens Shirassu Jr

Dedim de prosa

Começamos a trabalhar esta edição depois da copa do mundo. A cabeça ainda zune de tanto ouvir as famigeradas vuvuzelas. Enfim acabou, mas nós ainda estamos meio ressaqueados. Pedimos desculpas pelo aumento de nossos erros. Na edição passada vocês conheceram as gravuras do artista plástico Luiz Lopez. Luiz é um dos artistas plásticos mais atuantes na atual quadra do tempo aqui em Cataguases. Possui um currículo extenso de exposições Brasil afora, obras em muitos acervos, ilustrou obras de vários autores. Hoje vocês conhecerão o escritor Luiz Lopez, autor de vários livros, alguns ainda inéditos. Nesta edição apresentamos alguns trabalhos do artista plástico Altamir Soares, quem nos acompanha há tempos já viu por aqui vários trabalhos dele. Para nossa tristeza perdemos mais um amigo, desta vez quem nos abandonou foi o Fabio Leite, para os amigos simplesmente Fabinho, fã ardoroso do Caetano Veloso, conhecia tudo da obra do bom baiano dedicamos a ele esta edição.

2010 Ano do Centenário de Rosário

Fusco

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José Vechi

Nos domínios da Princesa

Embora eu não tenha me distanciado muito e definitivamente, minha doce princesa, confesso que mesmo a pouca distância propiciou que eu pegasse gosto por outras. Mas nosso amor não se desfez, não raleou, nem se desgastou.Também sois amada por muitos e eu nada posso fazer. O que importa? Gosto mesmo. Gosto quando vos fazem bem, quando ficais mais bonita. Gosto que outros gostem como eu gosto. É a resignação de quem ama. Sabeis, princesa, quando estou distante, sempre falo de vossa alteza, quereis saber? não falo dos rios agonizantes, vitimados por uma visão imediatista e tacanha, ao contrário, falo dos peixes que já pesquei, às vezes, até exagero, falo de peixes que nunca vi, de bichos, do caboclo-d’água, imagina. Falo das vezes que mergulhei da ponte-velha, dos passeios de barco pelo rio pomba, principalmente, para ver as moças vindas das fábricas passarem sobre a ponte com suas saias plissadas, falo das frutas que peguei em suas generosas margens, das caçadas de rãs no meia-pataca; não falo das vilas pobres e mal assentadas, ao contrário, falo da alegria das pessoas simples, da hospitalidade, das boas vizinhanças; não falo dos operários com seus bolsos repletos de algodão e vazios de dinheiro, nem pensar, falo do brilho na pele e nos olhos, das amizades sinceras; o que mais? Não falo dos homens no alto dos

postes, debaixo dos fios de alta tensão, não, falo da energia das pessoas, da luz que irradia de cada sorriso e de cada olhar. Do troar da violência? Não, não falo. Falo dos doces badalos vindos da pedreira nos avisando a hora. Falo até, saudosa e romanticamente, do antigo apito da fábrica chamando seus fainadores; não falo das pessoas que vossa alteza confia para as mais nobres decisões, não, me recuso, falo dos gestos dos Robin Wood, dos Dom Quixote, falo da resistência bem-humorada de seu povo que vai vivendo com arte, com graxa e com graça. Não falo de desastres ecológicos, pobre princesa. Não falo com ninguém das mazelas, podeis estar certa, falo da plasticidade das suas ruas e avenidas e praças. Falo do cinema e da música. Se eu falar dos becos, falo apenas do aspecto aconchegante, envolvente, quase íntimo. O amor é assim mesmo, tem ou é a própria magia. O amor maduro e saboroso. Convivemos com os defeitos, discutimos, brigamos, conciliamos e aprimoramos nossas relações. Então, princesa, pego a estrada e espero poder vos ver em breve, ainda mais linda, mais ditosa, com sua gente com muito mais razões para ser cada vez mais gente boa.

José Vecchi de Carvalho nascido em Cataguases reside em Viçosa (MG)

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Ronaldo Cagiano

Paralelo15: homem diante do mar

Para Eltânia André Do alto do edifício de forma cilíndrica que desponta imponente do Setor de Autarquias, um homem contempla a cidade. A capital do país construída no cerrado ainda desperta-lhe admiração, depois de cinco décadas – apesar do esbulho de seus políticos detratores, da mutilação dos administradores inescrupulosos e o adultério do projeto original, escultores criminosos das rugas urbanas, das estrias sociais, das celulites imorais, que o povo em si, guardião de sua alma, sabe exorcizar ou vencer. Vejo-o, entre absorto e macambúzio, com os olhos fixos num ponto. O que vêem seus olhos tão pressurosos quanto enigmáticos? Talvez, admire que às margens da usina de esgotos da Asa Sul, apesar do mau cheiro e do circunlóquio de urubus, ainda vicejam plantas ribeirinhas e as garças fazem pouso e se alimentam de detritos. Ou será que o absolutismo de seu silêncio e a paralisia dos olhos vêm da sinuosidade de seus pensamentos quando contempla a Esplanada dos Ministérios? Aquela enorme via, corredor de invisíveis mistérios, onde papéis e decisões tomam rumos muitas vezes inesperados. De onde estou, numa mesa (melhor dizendo, estação de trabalho, para não perder o bonde da história e estar em

sintonia com a noção terminológica dos novos tempos e a semântica do mundo globalizado e competitivo), sim, nesse lugar em que me encontro compulsoriamente, como numa relação bovina com a realidade funcional, com computador, telefone e outros implementos, vejo-o, entre silêncios e fugas interiores, observando a marcha da vida e do tempo. Onde estarão seus olhos, seus pensamentos, sua vida, sua esperança – nesse espaço quase sem movimento que ele abriu no galope das horas? Que cidade aquele homem vê? A cidade oficial, da mordomia e das aparências, burocrática, marmórea e sem alma – de políticos behavioristas, justiça enclausurada e sentimentos esquivos? Ou aquela em que as cigarras de agosto e os ipês em flor, conspurcando com suas belezas a palidez decretada pela estação seca, fazem um concerto simbiótico, plástico e melódico, anunciando a primavera? Ou a dos homens e mulheres que circulam pela W-3 Sul, entre passos apressados e o fluxo vertiginoso de animais metálicos, como na solene marcha das formigas em sua meticulosa faina? Um homem qualquer? Não, um homem que vê e se vê diante da urbe que existe além do círculo do poder. Mas noto em sua quase intangibilidade, em seu estado de pessoalíssima solidão, a pressa em descobrir para que lado vão as coisas na polis enclausurada, para onde seu

coração caminha, e por onde voam seus pensamentos (quais falenas em jardins suspensos). Um ser que, sem sair do lugar, nada de braçadas no horizonte onde desponta um sol incendiário para fazer a mais luminosa das manhãs do mundo na metrópole balzaquiana. Diante da imensidão do altiplano tenta entender o deserto psicológico das vidas que passam, entrar no seu ritmo, carregar-se na sua energia, numa espécie de solidariedade anônima mas consciente. O céu é azul e enorme. Maior é o seu comedimento diante da grande arquitetura que o rodeia. E seus olhos passeiam, porque parece que ele compreende bem dentro de si o que Niemeyer um dia reconheceu: “Passear em Brasília é como passear num jardim. O céu é o mar de Brasília”. Por isso eu vejo aquele homem como qualquer homem diante do mar. Deslumbramento e reverência ante a natureza indissolúvel, com seu poder de afeto e sedução. Sim, ele vê um mar. Mas nesse trânsito onírico, ele não divisa navios ancorados nem cais ou despedidas, pois essa é a “única cidade onde não haverá saudade”, como disse um poeta. Mas vê os palácios da Praça dos Três Poderes que parece flutuar na planura sem fim do Planalto Central, território de babilônicos contrastes. E esse encantamento nasce da descoberta que se faz a cada dia, novos ângulos de visão

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que fluem dos ângulos retos da cidade que é arte em permanente estado de construção e beatificação. Não, esse homem não quer ir embora pra Pasárgada, ele quer ficar em Brasília, a Capital da Esperança batizada por André Malraux. Eu não perguntei, mas sei que ele quer ficar aqui. É o que traduz seu jeito de observar o Plano Piloto que se abre em asas, de norte a sul, nos 180 graus em que se lança a vislumbrá-lo. É o que dizem os olhos desse homem (Severino? Antônio? Tomé? Nonato? José Raimundo? ou simplesmente João?)? Ele parado no décimo quinto andar do prédio público, de onde descortina tudo com discreta serenidade, sem perceber que o estamos vendo, admirando seus olhos que jamais se fatigam de deambular pelos espaços federais, ora compungido como a arquitetura da Catedral moderna, ora contornando as “tesourinhas” que bifurcam o Eixo Rodoviário e vão levá-lo às superquadras, com seus blocos sobre pilotis e seu comércio localizado, em que a vida também pulsa, apesar da falta de esquinas. A cidade para ele é um mistério? Onde estão as pessoas, Brasília? Estão nas escolas, e daqui a pouco sairão como os pássaros, em revoada. Estão nos gabinetes, ó homem em transe. Estão por aí, nas Satélites, nas autarquias, na feira do Guará, no Parque da Cidade, no Conjunto Nacional. Por aí, ó homem, onde a vida se desvia em mil trajetos arteriais e pulsa e as pessoas vão de um lado ao outro, pelo grande Circular ou

de Metrô, num permanente movimento em que não há lugar para a melancolia ou o retrocesso. Taciturno, o homem sobre o qual nada sei, vai se fazendo perguntas entre uma e outra baforada de fumaça de um cigarro que custa a desaparecer entre seus dedos. Assim como quero entendê-lo, ele quer compreender o jeito próprio dos candangos, essa gente vinda de todos os lados, atraída pelo eldorado juscelinista, confiantes que um valor novo se alevantava na doida marcha para despertar o gigante: a esperança. Aquela mesma que Cassiano Ricardo cantou num madrigal “Vou-me embora pra Brasília, /Sol nascido em chão agreste. /Como quem vai para uma ilha. /A esperança mora a oeste.” E que Drummond anteviu como alternativa ao marasmo e descontentamento do ser com velhos e vãos territórios: “Vou no rumo de Brasília,/não é aqui o meu lugar.” Não, não é o Lago Paranoá que o faz navegar. É o céu de Brasília: mar absoluto. Esse céu-mar, essa cidade que nos espanta, porque uma das características essenciais de uma obra de arte é sua capacidade de provocar surpresa e espanto, como reconhece Baudelaire. Por isso, deter-me naquele homem ensimesmado, diante do desafio de entender a obsessiva saga de fazer surgir do nada, do agreste e da poeira uma cidade de corpo e alma, completa minha sensação sobre viver num lugar que representa a unidade na diversidade, o encontro de todos

os brasis, a heterogeneidade consolidando o humanismo a que almejaram os idealizadores e os que amalgamaram cada tijolo na busca da concretude e do sonho. A mesma e profunda lição de se perder nos sete mares que os antigos galeões provocavam nos desbravadores, é semelhante ao ensinamento de que, para viver em Brasília, que se abre todos os dias como uma alvorada, não é preciso ter somente cabeça, tronco e rodas. É preciso, antes de tudo, uma eternidade permanente no olhar. Muito mais que isso, a humanidade e qualidade de vida de que tanto se ressentem os habitantes de outras metrópoles, é vivida e sentida aqui, cidade antevista no sonho de Dom Bosco, para quem, entre os paralelos 15 e 20 surgiria uma nova civilização, onde verteria leite e mel. Mas sobre ela não preciso que me falem pitonisas ou adivinhos, pois fico com a singela e poética constatação do saudoso escritor Esmerino Magalhães Júnior: “uma cidade é uma porção de coisas de onde emana o humano, e não os monumentos apenas”. Por isso, aquele homem está ali, diante do mar, diante de nós, arquipélago invisível de ternuras e segredos, e como uma câmara sem pressa registrando o mundo sob este céu: imensidão oceânica que tanto nos devora quanto nos alimenta. E isso me diz tudo. E é o que não nos faz sentir (n)uma ilha.

Ronaldo Cagiano nascido em

Cataguases reside em São Paulo SP

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Luiz Lopez

Cemitério “com qualidade de vida”

Fui a um cemitério vertical, um prédio com uns seis andares, no Rio. Parecia um hotel cinco estrelas. Na entrada, balcão de informações, seguranças, ar condicionado, jardim de inferno, digo, inverno, decoração divina. Visitei a Galeria Artistas do Céu. Tomei café na Cafeteria Sabor Eterno, pois ia varar a madrugada. Revi amigos que havia perdido no tempo. Conversamos sobre a vida. Lá pelas tantas, na Churrascaria São Francisco de Assis, matamos a fome. Falamos sobre futebol, praia e mulheres. O Jésus mal comeu, foi pegar os filhos no Parque dos Anjos, no térreo. Prometera levá-los à Pizzaria Nova Vida na Praça de Alimentação no terceiro andar. O Tadeu estava inquieto. Tinha de se encontrar com a esposa no Shopping de Deus, no quinto andar, e ainda dar um jeitinho de levar a mulata que tinha conhecido à Sessão Coruja, no Cine Paraíso, e ao Motel do Além, local disputadíssimo pelos falecidos. O filho do Mateus chegou com a namorada, ambos de preto, com brinquinhos, correntes e tatuagens. Iam balançar o esqueleto na Boate Satã, no terraço. Mais tarde, só, sentado numa das salas de visita, folheei um impresso sobre a mesa de centro: “Velório com ou sem carpideiras; com almoço, jantar, ou banquete; com super-heróis, bolas de gás, tortas; enterro com banda pop, grupo de pagode, bateria de escola de samba, tango, chorinho, etc.”. Dirigi-me ao Inferninho Santo. Pedi um chope e sentei-me ao balcão. Fiquei vendo pela vidraça o ir e vir das pessoas nos corredores largos e nas salas do

prédio. Algumas carregando coroas de flores artificiais e velas com raios laser; outras com caixinhas de metal: cinzas de algum morto. Na Suíça, dizem, elas são transformadas em diamantes: é a oportunidade que faltava ao patife para finalmente virar joia de família. A mulher, enfim, tinha seu homem agarrado ao peito: um brilhante pendurado no pescoço por uma corrente de ouro. Vi que a amiga não tirava o olho do marido da viúva. No fundo do bar, vários finados jogavam baralho e dois cadáveres a meu lado tomavam uísque e fumavam sem parar. Um deles paquerava uma múmia. (Não, leitor, eu não estava bêbado, ainda!). Concluí que eles não tinham medo de morrer de câncer de pulmão. Uns mortos fanáticos e endiabrados passaram com bandeiras do Flamengo, seguidos por outros, pó de arroz na cara, vestidos com o uniforme do Fluminense. Faziam um barulho infernal. Iam ao estádio ver um clássico do outro mundo! Depois fiquei pensando na qualidade de vida dos mortos daquele Memorial: academias, quadras, piscinas, museu, livraria, pistas de dança e patinação... Um conforto que mataria de inveja qualquer faraó do Egito. Foi aí que olhei assustado o relógio. Tinha perdido a noção do tempo. O que estava fazendo naquele...?! Ah, sim! O velório! De quem mesmo?! Meu Deus! A essa hora o defunto já devia ter sido cremado e nem cheguei a me despedir dele! Ou será que ele tinha ido a um baile funk?!

Luiz Lopes (Cataguases -MG)

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Ronaldo Brito Roque

Moldura

De dentro da moldura, ele me olhava. Seriedade, autoridade, prepotência eram palavras que eu desconhecia. Enxergava apenas os olhos claros e imóveis do retrato, aos quais minha mãe ia atribuindo temor ou ternura, conforme seu interesse. Se eu arriscasse um mergulho no rio, “o que seu pai pensaria de uma loucura como essa?!”; se eu fechasse uma prova de matemática, “como seu pai ficaria feliz!” Aos poucos fui aprendendo a medir minhas ações pelos olhos de uma fotografia. Conheci garotos que odiavam o próprio pai e ansiavam pelo dia em que arranjariam emprego e comprariam um passaporte para fora de casa. Eu não podia odiá-lo nem amá-lo – no alto da parede, ele era distante, plano, inacessível a meus sentimentos. Mas não digo que nos estranhássemos. Acabei descobrindo que mamãe não era a única a adivinhar emoções por trás do seu rosto plácido. Quando tomei certa liberdade com nossa empregada, me pareceu que ele aprovava silenciosamente. Acreditei captar-lhe uma euforia contida, quando um amigo mais velho começou a me ensinar a dirigir. Um dia mamãe me mandou usar calças compridas e camisa de gola para jantar. Apareceu um senhor meio curvado, apresentado com adjetivos favoráveis, junto à estranha previsão de que nos daríamos bem. Naquela noite entornei comida, falei alto, relembrei constantemente a figura altiva de meu pai; citei sua honradez, sua austeridade

moral, como se eu não as conhecesse apenas pelas palavras de minha mãe. Eu mesmo não compreendia a razão da minha insólita fúria, mas quando o sujeito se despediu, um tanto encabulado, ainda mais curvado que na entrada, senti pela primeira vez que o retrato me transmitia um olhar envolvente e triunfal; era o início de uma cumplicidade secreta, já não acessível a mamãe e suas frases tortuosas. Nos anos seguintes, papai passou a aprovar minha juventude tranqüila, meus passeios de carro, minha lenta aprendizagem com a bebida, o bilhar e as garotas. Achei que nossa relação manteria a sintonia, até o dia ingrato que olhei para o retrato e não compreendi o olhar que ele me devolvia: era aprovação desdenhosa, reprovação sumária ou simplesmente indiferença? Chegava a época do vestibular e eu tinha escolhido Artes Plásticas. Mamãe protestava incessantemente, pois acreditava que uma facilidade para desenho seria mais bem explorada em arquitetura - ou mesmo em moda, desde que observadas certas reservas. Mas a carreira incerta das artes era algo que meu pai seguramente desaprovaria. Pela primeira vez, ao perscrutar o retrato, eu não sabia dizer se ela tinha razão. Depois veio a questão com Lucélia. Mamãe não aprovava nosso casamento, dizia que o temperamento instável da

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garota me traria problemas no futuro. Reclamava do cigarro, acusava-a de não saber cozinhar — no que tinha plena razão — e nesse debate também não consegui intuir de que lado papai estaria. Um dia estaquei na sala e fiquei a encará-lo, mudo, como se esperasse uma resposta definitiva. Não uma palavra mas um sinal nítido, o princípio de um código que me permitiria deduzir suas intenções para o resto da vida. O silencio me surpreendeu com uma clareza inacreditável. Na sua indiferença pálida, o retrato me transmitiu que não era mais hora de lhe consultar. Eu tinha meu próprio coração a ouvir. Me pareceu que a foto queria abdicar da função de oráculo e se contentar com o cargo modesto de lembrança. Mas a súbita transformação me perturbou. Não consegui conter a revolta; um silêncio morto queria se instalar onde antes havia um diálogo fértil e profundo. Senti-me traído, abandonado, praticamente insultado. Tomei o retrato nas mãos, vociferei impropérios, acusei a imagem de ser apenas o espelho da minha loucura, uma ilusão que eu herdara de minha mãe, e minha mãe herdara de uma ausência. Revoltado contra sua passividade orgulhosa, espanquei o retrato, bati-o contra as costas de uma cadeira, depois o rasguei, cortei minhas mãos no vidro estilhaçado, talvez acreditando, por desespero, que se pode destruir um passado anulando um de seus símbolos. Quando mamãe entrou na sala, consegui conter o choro, não as lágrimas. Ela apenas se abaixou e começou a catar os cacos. Surpreso, percebi que não estava contrariada.

Também estava farta de ver o presente governado pelo fantasma que ela mesma havia projetado atrás daquela imagem oca. Recolhemos juntos os cacos, varremos o chão, colocamos o vidro para fora. A grande moldura, que me disseram ser de jacarandá, eu ia vender numa feira de antigüidades. Mas algo me deteve no momento de fechar o negócio. Não foi o preço baixo — não era o dinheiro que me interessava, eu queria apenas me livrar do que restava de uma revolta estéril e obscura — foi antes o insólito pressentimento de que um dia eu também seria retrato. A emoção que pulsava no meu peito, a força misteriosa que enchia e esvaziava meus pulmões também se tornaria rigidez, frieza, ausência. Segurei a moldura diante de mim, tentei imaginar meu rosto imobilizado dentro dos seus limites. Especulei que um dia talvez um filho precisasse do meu rosto ali dentro, dos meus olhos vazios de sentimento para que ele pudesse projetar e compreender os seus. Livrar-me da moldura não me livraria das inquietantes reflexões que ela me suscitava. Minha decisão súbita decepcionou o comprador. Coloquei a moldura no ombro. Resignado, com passos lentos e firmes, voltei para casa. O peso do limite eu aprenderia a suportar paulatinamente, até que eu fosse também um limite, uma imagem contida num retângulo de madeira. Hoje a moldura me aguarda num quartinho dos fundos, e eu aguardo o dia em que me tornarei o homem que quero emoldurar.

Ronaldo Brito Roque nascido em Cataguases reside no Rio de Janeiro RJ)

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Miguel Esteves Cardoso

Diz-me onde moras...

Um dos grandes problemas da nossa sociedade é o trauma da morada. Por exemplo, há uns anos, um grande amigo meu, que morava em Sete Rios, comprou um andar em Carnaxide. Fica pertíssimo de Lisboa, é agradável, tem árvores e cafés. Só tinha um problema. Era em Carnaxide. Nunca mais ninguém o viu. Para quem vive em Lisboa, tinha emigrado para a Mauritânia! Acontece o mesmo com todos os sítios acabados em - ide, como Carnide e Moscavide. Rimam com Tide e com Pide e as pessoas não lhes ligam pevide. Um palácio com sessenta quartos em Carnide é sempre mais traumático do que umas águas-furtadas em Cascais. É a injustiça do endereço. Está-se numa festa e as pessoas perguntam, por boa educação ou por curiosidade, onde é que vivemos. O tamanho e a arquitectura da casa não interessam. Mas morre imediatamente quem disser que mora em Massamá, Brandoa, Cumeada, Agualva-Cacém, Abuxarda, Alformelos, Murtosa, Angeja, ou em qualquer outro sítio que soe à toponímia de Angola. Para não falar na Cova da Piedade, na Coina, no Fogueteiro e na Cruz de Pau. (...) Ao ler os nomes de alguns sítios - Penedo, Magoito, Porrais, Venda das Raparigas, compreende-se porque é que Portugal não está preparado para entrar na Europa. De facto, com sítios chamados Finca Joelhos (concelho de Avis) e Deixa o Resto (Santiago do Cacém), como é que a Europa nos vai querer integrar? Compreende-se logo que o trauma de viver na Damaia ou na Reboleira não é nada comparado com certos nomes portugueses. Imagine-se o impacte de dizer "Eu sou da Margalha" (Gavião) no meio de um jantar. Veja-se a cena num chá dançante em que um rapaz pergunta delicadamente "E a menina de onde é?", e a menina diz: "Eu sou da Fonte da Rata" (Espinho). E suponhamos que, para aliviar, o senhor prossiga, perguntando "E onde mora, presentemente?", Só para ouvir dizer que a senhora habita na Herdade da Chouriça (Estremoz). É terrível. O que não será o choque psicológico da criança que acorda, logo depois do parto, para verificar que acaba de nascer na localidade de Vergão Fundeiro?

Vergão Fundeiro, que fica no concelho de Proença-a-Nova, parece o nome de uma versão transmontana do Garganta Funda. Aliás, que se pode dizer de um país que conta não com uma Vergadela (em Braga), mas com duas, contando com a Vergadela de Santo Tirso ? Será ou não exagerado relatar a existência, no concelho de Arouca, de uma Vergadelas? É evidente, na nossa cultura, que existe o trauma da "terra". Ninguém é do Porto ou de Lisboa. Toda a gente é de outra terra qualquer. Geralmente, como veremos, a nossa terra tem um nome profundamente embaraçante, daqueles que fazem apetecer mentir. Qualquer bilhete de identidade fica comprometido pela indicação de naturalidade que reze Fonte do Bebe e Vai-te (Oliveira do Bairro). É absolutamente impossível explicar este acidente da natureza a amigos estrangeiros ("I am from the Fountain of Drink and Go Away..."). Apresente-se no aeroporto com o cartão de desembarque a denunciá-lo como sendo originário de Filha Boa. Verá que não é bem atendido. (...) Não há limites. Há até um lugar chamado Cabrão, no concelho de Ponte de Lima !!! Urge proceder à renomeação de todos estes apeadeiros. Há que dar-lhes nomes civilizados e europeus, ou então parecidos com os nomes dos restaurantes giraços, tipo: Não Sei, A Mousse é Caseira, Vai Mais um Rissol. (...) Também deve ser difícil arranjar outro país onde se possa fazer um percurso que vá da Fome Aguda à Carne Assada (Sintra) passando pelo Corte Pão e Água (Mértola), sem passar por Poriço (Vila Verde), e acabando a comprar rebuçados em Bombom do Bogadouro (Amarante), depois de ter parado para fazer um chichi em Alçaperna (Lousã). Miguel Vicente Esteves Cardoso nascido em Lisboa, no dia 25 de

Julho de 1955 é um crítico, escritor e jornalista português.

Cresceu no seio de uma família da classe média-alta lisboeta. O pai,

Joaquim Carlos Esteves Cardoso, oficial da Marinha, e a mãe,

Hazel Diana Smith, nascida em Inglaterra, deram-lhe uma infância

feliz e uma educação privilegiada que lhe proporcionou uma cultura

invulgar em relação à maioria dos jovens da sua geração. O facto

de ser bilingue deu-lhe uma espécie de visão distanciada de

Portugal e dos portugueses.

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José Antonio Pereira

A feijoada do Valdemar

Zé Pretim e João Charuto cresceram brincando de salve, pissipissi e se criaram de atiradeira no pescoço, rodando o dia todo pelas ruas de terra do morro. De vez em quando subiam para o topo do morro e infernizavam o sossego das vacas de dona Ana no campinho da caixa d’água. Tudo isto lá no alto do Bairro Haidée. Mal terminaram o primário, começaram a trabalhar na mesma fábrica. Viraram tecelões. Amigos desde a infância, foi ali, naquele ambiente quente, úmido, cheio de fiapos de algodão entupindo as narinas, que conheceram Valdemar. Tornaram-se inseparáveis. Os três eram esfolados juntos, sempre no mesmo turno. Um sistema em que numa semana trabalhavam à noite, noutra semana de dia, folgando uma vez por semana em um dia qualquer, mas quase nunca aos domingos. Essas rotinas os desencaixavam do dia a dia de todos os seus amigos e familiares. Sabiam que casamentos, batizados só podiam ser marcados com a anuência do contramestre lá da fábrica. Este, após confabular com as chefias peão acima dava o veredicto. Dada à última palavra o infeliz ia lá marcar o casamento, o batizado ou fosse lá o que fosse, sempre com aquela duvida se o contramestre, às vezes apenas por capricho, não mudaria de idéia. Esses novos feitores de escravos eram capazes de tudo. O tempo passando e cada um com seus sonhos sempre adiados. O do Zé era um

curso de eletrônica no ctu lá de Jizdefora, Charuto sonhava com o Harlem novaiorquino dos cinemas, tinha todo o esquema já armado para migrar para lá via México, só faltava juntar a grana. Sonhava em encher os bolsos de dólares e casar com uma daquelas cantoras negras americanas de cabelos espichados. Valdemar era casado. Com muita dificuldade concluíra um curso de formação profissional lá no Senai. O curso de história lá na Fafic, desejo desde os tempos de menino quando se empolgou com Cleópatra lá no cinema, era a cada dia uma impossibilidade. Casara-se com Maria Espuladeira, já nem sabiam mais o porquê de tal apelido, conheceram-se lá na fiação da fábrica. Viu a despesa da casa aumentar com a demissão da mulher, após resistir ao assédio do seu contramestre. Se com o salário dos dois já vinha sobrando conta pra pagar, imagine com um só. E para abandonar de vez o sonho, Maria por ciúmes dera um ultimato - ou a faculdade ou ela. O casamento também acabara com as farras em dia de folga com os dois amigos, noites na sinuca do João Tatu que terminavam nos bailes do Aexas ou lá no Peleeosso. Valdemar de vez em quando os convidava para queimar uma carninha em sua casa. Para não criar desavenças com a Maria, todos sabedores da paixão dela por um baralho, marcavam um buraco para casa do amigo já com tudo previamente acertado. Qualquer que fosse a parceria sempre a

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dupla ganhadora seria a de Maria. Folga sim, folga não, os amigos estavam na casa de Valdemar para o churrasquinho, a pinguinha, a cervejinha e o buraco. Toda a despesa era repartida entre eles. Cada um ficava com seu fiado. Começou com a patroa do Valdemar – A gente podia fazer uma feijoada qualquer dia destes. A cidade calorenta não animava muito a rapaziada a encarar uma feijoada completa, seria um suadouro só, regado a caipirinha. Bastou a temperatura cair para os trintas graus que toparam a feijoada proposta. Churrasquim assim, sem falhar uma vez sequer, ninguém aguenta mais – concordou Charuto. Tudo acertado, lá se foram numa segundona em que os três estavam de folga para uma partida de buraco. A primeira rodada até que foi rápido. Valdemar fazendo dupla com a patroa, liquidou o jogo numa seqüência de quatro batidas rápidas. A segunda demorou um pouco, Zé já com as pingas roendo o estomago vazio, para abreviar o jogo começou a descartar uma seqüência de copas, dando uma canastra inteira para Maria. Ela empolgada bateu o jogo e comemorou muito com sua primeira canastra limpa de ás a ás. Nunca fiz uma canastra real. Aquilo motivou tanto Maria que ela resolveu disputar outra rodada. Charuto, também já com fome, estranhava que pelo adiantado da hora, ninguém se mexia para cuidar da feijoada, pensava com suas cartas. Deve estar tudo pronto, é só dar uma requentada. Imaginando o prazer de morder uma orelha de porco, lambeu os beiços e virou uma talagada de cachaça. E o jogo continuou. A fome apertando, os dois parceiros foram entregando o jogo descaradamente. A patroa do Valdemar, cega pela vaidade de se achar a rainha do buraco, nem se deu conta da trapaça dos amigos. Bateu e ganhou mais uma. Com um sorriso de orelha a orelha

beijou a nuca do marido e para alegria dos esfomeados saiu dizendo. Vou cuidar da feijoada. Lá da cozinha veio a ordem. Bem! Anda logo. Ajuda aqui! Vem logo. Valdemar se mandou para a cozinha ainda no ajuda aqui. Na pequena sala Charuto e Zé, já meio injuriados de fome, enganavam o estomago com mais uma cerveja, loucos por um tira-gosto qualquer. Charuto não se fez de rogado foi atrás do amigo. Valdemar não tem aí um tropicão pra salgar o bucho. Zé lá da sala ouviu a resposta da mulher. Mais dois minutos a feijoada tá pronta. Charuto voltou meio sem graça. Não escutavam chiado de panela nem o cheiro do alho frito. Nada que anunciasse a presença de um almocinho sequer. A única coisa que se escuta é aquele rec rec de abridor cortando tampa de lata. Enfim um chiado quebra a monotonia do rec rec e a conversa abafada do Valdemar com Maria, ecoa pela casa a água respingando na gordura quente, em seguida um cheiro de couve atravessou a sala, o estomago dos amigos lavados pela cachaça se desespera de fome. Num piscar de olhos, a então mesa de jogos virou mesa do almoço. Após algumas garfadas, começaram a estranhar a ausência de uma carne seca, nada de um gostinho de paio, revira pra cá revira pra lá nada de achar uma orelha, uma papada, um ossinho sequer do pé, enfim nada de achar um dos pertences tradicionais de uma feijoada. Zé, sapecando mais uma caipirinha, sentiu aquele calorzinho no peito que a bebida provoca se encheu de coragem e mandou ver O Valdemar que feijoada é esta? É feijoada enlatada. Charuto indignado - Pô Valdemar feijoada de lata é de lascar o cano.

José Antonio Pereira (Cataguases MG)

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Roberto Piva

O último beatnik brasileiro

*Rubens Shirassu Jr

Roberto Piva

No sábado passado (03.07) morreu em São Paulo o poeta Roberto Piva, aos 72 anos, considerado o último beatnik brasileiro. Sua obra se associa à vida agitada e está sendo estudada por algumas universidades americanas. Durante sua trajetória publicou também diversos manifestos e, na década de 90, assinava a coluna “Sindicato da Natureza” na extinta revista Chiclete com Banana, que contava na equipe com Toninho Mendes, Angeli, Glauco Mattoso, entre outros. Em sua homenagem, publicamos um comentário, de minha autoria e um estudo muito significativo de João Silvério Trevisan, amigo de Piva, respeitado escritor, tradutor e roteirista, que

ministrou diversas oficinas culturais e obteve vários prêmios. DESAFIO À ORDEM ESTABELECIDA Os hóspedes incômodos arrombam e devoram o interior da casa na ordem do dia Como um vento, arrastam retalhando a vida no verão dos dentes enfurecidos Maquinaria, animália face encarnada na transitória passagem da noite, impressa com sangue, dor, solidão e desemprego O poeta anda errante pela Avenida das Esfinges correndo da máquina devastadora II Chamar o animal tutelar. Conhecer a natureza paralela novas tribos. Seguir a viagem xamânica vida & poesia experimental À deriva no rio da existência, chinelo cósmico pé-na-estrada luminosa deixar de ser bibelô-eunuco deste teatro máquina registradora, paraísos artificiais voltar a ser bruxo nas matas e litorais. *(Grafitti para Roberto Piva, publicado no livro Cobra de Vidro, 1991, e-book independente, Presidente Prudente, São Paulo)

Rubens Shirassu Jr. (Presidente Prudente SP)

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Fábio Leite

Em memória de M. B.

Anna Akhmatova

Aqui trago-te minha oferta, não são rosas para teu túmulo nem mesmo lenha ou incenso ardente. Viveste tua vida à parte, mantendo até o fim teu magnífico desdém Bebeste vinho, e contastes as melhores piadas e dentro de paredes sufocantes te sufocastes Sozinho recebestes a estranha em casa e com ela estivestes só. Agora que partiste e ninguém diz sequer uma palavra de tua vida gloriosa e difícil. Só minha voz, como flauta de lamento estará contigo no teu mudo funeral festivo Oh, quem acreditava neste louco ser que sou Eu, tonto de dor pelo passado, agora, enterrado Eu, que ardo neste fogo lento, tendo tudo perdido e tudo esquecido tenho ainda o destino de comemorar um ser tão cheio de alento e de talento vivo que ontem mesmo, me parece, falou comigo disfarçando o tremor de imortal tormento.

Versão Emerson Teixeira Cardoso

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Fábio de Paula Leite Filho – O Fabinho

Ronaldo Brito Roque

Muitas pessoas, quando se vêm presas de alguma doença, transformam-na no centro de suas atenções. Falam incessantemente do problema, lamentam com os amigos, às vezes blasfemam e chegam a ficar de mal com Deus por causa de uma bobagem que exige apenas repouso e meia dúzia de comprimidos. Outros se acostumam ao fato de que não somos perfeitos, e simplesmente se habituam às pequenas privações da doença. Sabem que a natureza não tem um padrão rígido de qualidade, e que cada corpo vem com um ou outro defeitinho com o qual temos que aprender a conviver. Meu grande amigo Fábio de Paula – o Fabinho - que nos deixou na última quinta-feira, certamente pertencia a essa segunda categoria. Sofria de uma doença bastante incômoda que lhe tirava algumas noites de sono, e elevava suas despesas com a farmácia. Mas, quando estava entre os amigos, raramente tocava no assunto. Preferia falar de poesia, literatura, e principalmente música, sua grande paixão. Quando falava da vida pessoal, sempre contava pequenas anedotas que pudessem nos divertir. Jamais contaminava nossas conversas com o sofrimento que ele já tinha aprendido a superar com serenidade e bom humor. Não deixou que a doença se transformasse no seu universo pessoal. Pelo contrário: este era rico, colorido, divertido. Ele tinha uma memória prodigiosa, e nós o consultávamos freqüentemente quando queríamos saber o compositor ou letrista de alguma canção antiga. Também se lembrava com

facilidade de passagens de filmes, nomes de diretores e atores, e outras coisas que sempre esqueço, e por isso mesmo admiro quem as recorda tão prontamente. Ainda posso dizer, sem medo de exagerar, que ele tinha um inegável talento para a poesia, que precisava apenas de mais tempo para se aprimorar. Seus poemas estavam recheados de imagens surpreendentes e marcantes, como esta que me vem à memória: “As flores do seu apartamento sorriram, aquelas falsas.” Foi uma pena que mais desses versos não fossem publicados. Assim teríamos uma memória mais nítida da sensibilidade e do universo pessoal desse grande amigo. Ainda estou me recuperando do transtorno que a notícia me causou, e espero no futuro conseguir escrever ao menos um conto sobre o papel singular que ele representou na minha vida. Seu bom humor, sua sensibilidade e sua vasta cultura popular foram um grande estímulo para que eu me aproximasse e mais tarde me aventurasse no universo das letras. Fabinho vai deixar uma saudade perene, que seus amigos, todos também muito afeitos à poesia, certamente tentarão registrar, com a mesma originalidade e sensibilidade que ele dedicava a seus versos. Sei que, de alguma forma, ele estará conosco nessa empreitada. Será seu jeito de compensar um adeus tão doloroso e repentino. Descanse em paz, meu amigo, enquanto tentarei curar minha saudade com a resignação serena e bem humorada que você nos legou como exemplo.

Rio de Janeiro 18/06/2010

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Fabinho da Mindinha Antonio Jaime Soares

Conheci a família Leite naqueles até hoje festejados festivais de música no Cine Edgard (1969/70). Em ambos, Maria Alcina ganhou o prêmio de melhor cantora. Jamais me esquecerei de cinco senhoras mui distintas e faceiras, na plateia, torcendo o tempo todo, feito mocinhas em flor: Mindinha, Sinhazinha, Guidinha, Hilda e Grace. Dali, Alcina partiu para a guerra, ou seja, a carreira profissional, na batalha até hoje. De seus sucessos, muito já se falou, portanto, vou me deter um pouco mais naqueles começos, que a conduziram até lá.

Pouco antes, Maria foi a grande vencedora de “A grande chance”, em Além Paraíba: programa da TV Tupi, comandado por Flávio Cavalcanti, que dava Ibope a ponto de ser realizado mesmo fora do Rio. O prêmio era se apresentar ao vivo na Tupi, que Alcina fez tudo por merecer, mostrando toda sua malícia e sua garra, seu grito de guerra, ao interpretar Roda, de Gilberto Gil. Flávio estava adoentado e Bibi Ferreira fez as honras da casa, aquela noite. E ficou absolutamente encantada (que nem nós todos e o Brasil inteiro) com o canto daquela cataguasense, convidando-a para seu próprio programa, na noite seguinte. De novo, aquele bota-pra-quebrar, que Gil e a baianada toda aplaudiriam de pé.

Na época, também fui para o Rio e convivi muito com Alcina, que chegou a gravar músicas com letras minhas. Afora isso, a gente às vezes zoava pelas noites cariocas e, numa delas, acabamos no apartamento de Carlos Imperial, artista então no auge da fama, dando uma festa de arromba. E... quem encontramos, lá? Ronaldo Werneck, como se estivéssemos em plena Cataguases. Outro dia, fim de tarde, saí do trabalho, para um lanche e... quem encontro, segurando uma boneca de pano e correndo de três fanzocas! A própria. Havia cantado, fazia pouco, no auditório da Rádio Globo (ali perto) e até me agradeceu, porque aquelas deslumbradas já estavam passando do limite, em termos de tietagem. O preço da fama, pois é.

De forma que só vim conhecer Fábio Leite Filho, seu irmão caçula, quando voltei para cá, anos 90. Amizade à primeira vista. Uma das razões que me levaram a gostar dele era não acreditar em certas lorotas que, em boa hora, seu ídolo Caetano Veloso chamou de “podres

poderes”. Também, não ficar choramingando em relação às coisas que o tempo não devolve. Exemplo: certa noite, à mesa de um bar, quando outro amigo dele trouxe à baila, pela enésima vez (só pensa naquilo), a morte precoce de Ascânio Lopes, Fabinho foi categórico: “Por favor, sem meias-patacas!”. À maneira dos filósofos, aos quais gostaria de conhecer mais a fundo, duvidava de tudo, daí, sua originalidade, na mesmice provinciana.

Era, acima de tudo, músico. De berço, pois todos os homens da família, a começar pelo pai, tocaram na banda da Industrial. E continuam no ramo, até um maestro, sem falar da exuberante Alcina. Mantendo a tradição, Fábio tocou num conjunto, trabalhou na Rádio Cataguases e na Secretaria de Cultura, pensando em música e mulher o tempo todo. Não sei em qual das duas pensava mais - mulher, claro. Por uma dessas razões que a própria razão desconhece, passou a conviver com um problema de nervos, impedido de tocar instrumentos. E o problema foi se agravando, até tirá-lo de vez do nosso convívio. Conclusão: perdi um bom companheiro de papo, daqueles que suportam muitas coisas, menos papo furado.

Eu já esperava, levando em conta que, nos últimos meses, ele dizia que “o bicho” estava pegando, num tom de voz resignado, sentindo que não iria muito longe. Recebi a notícia ao meio-dia, na Prefeitura. Quinta-feira, dia de fechamento da edição deste jornal (O Cataguases), não deu para ir até onde ele jazia, de corpo presente; só à noite pude dar um abraço em Dona Mindinha, sua mãe. Na casa, vários membros da família, mas faltando uma pessoa. Ele, que foi “pra longe, livre”, como deixou manuscrito, em um de seus últimos poemas:

Quando eu me for só restará uma flor

no jardim.

Viu, menino, toque o sino.

As florestas continuarão, mas fui pra longe, livre.

Viu, menino, toque o sino:

o vapor me espera.

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Emerson Teixeira Cardoso

Pergunta oportuna aos que lêem o livro

Uns querem pão e água, amor e poesia. Outros justificam suas atitudes com palavras duras. Uns procuram poder e dinheiro e ostentar autoridade. Outros trabalham de sol a sol e agradecem pela vida. Uns dominam máquinas e moram em palácios. Outros têm o luar por travesseiro. Uns conquistam impérios e possuem latifúndios. Outros constroem um muro de fé sobre colunas de barro. Uns têm fábricas e seus rebanhos lotados em grandes linhas de montagem. Outros não têm onde descansar sua cabeça. Uns e outros são entes humanos e rumo ao ignorado, os muitos que foram chamados e os poucos escolhidos. Mas o que lhes restará quando a vida, frágil Brinquedo, se acabar?

Nunca confessar que era amor

(ou romance inglês)

Nunca confessar o meu amor – de viva voz Talvez fez ocultar em mim O louco apaixonado. Mas, se os olhos falam... Não ter merecido de você jamais Um olhar demorado, Fez com que eu me encolhesse friamente Em minha timidez, cada dia mais distante, como um caracol. Vai, você duvidou do meu sentimento, Como se fosse intencional minha crueldade. Não, não foi... Mas seus olhos seriam ainda mais irrestíveis Tivessem uma expressão mais agradável.

A mão que escreve o poema

Minha mão que escreve versos Sabe lá o que faz minha mão Vós que ainda sois capaz de condenar a poesia perdoai a mão A mão que escreve o poema obedecendo a razão.

Emerson Teixeira Cardoso (Cataguases MG)

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Francisco Marcelo Cabral

O risco da noite

Ante os meus olhos transidos dos cavalos da cinza como brasas sopradas saltam labaredas O hálito espesso de alcatrão e enxofre em suas narinas expele astros em extinção Impossível não ver em suas crinas lutuosas o aço da noite se oxidando em sangue como um sol coagulado Fosse um sonho e o brilho dos móveis espantaria os carvões como um relâmpago no escuro desperta foices e mãos. Nos armários fechados os pijamas de lã se debatem - inúteis - agora que o forno do vento açula as bestas noturnas e seca nosso suor gelado.

A que horas nasce o dia? pergunto a meu irmão. Na hora que a noite arrastada por esse cortejo de animais soturnos se afastar coroada pela negra lua nova. Vai,dorme. Sombras geram sombras E as janelas sem vidros, não protegem a cegueira do risco de ver esses corcéis desalados sujos de fuligem e medo.. Olhe agora: um fio dourado se desenha na soleira da porta do quarto.

de “Campo Marcado” pronto para o prelo.

Francisco Marcelo Cabral nascido em Cataguases reside no Rio de Janeiro RJ

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Fernando Abritta

Canto Final

Hoje eu sei meu coro é negro pele e pelos curtidos no sal e sol do atlântico marcados no açoite calejados no peso do trabalho. Sei que minha carne é branca adaptável se ajusta a toda latitude qualquer lonjura leva anticorpos coletados por todo lado memória do muito andado de tomar mandar predar num mundo navegado. Já, os ossos são da terra brasis pau-ferro duro de roer nativo índio impossível dobrar duro de queixo herança de minha avó (bisavó tetravô quem sabe?) do mato pega a laço coitada prenha viveu pra cuidar a cria Hoje sei Hoje

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Gary Snyder

Louro da Califórnia

O botânico nos disse: “Junto a serraria de Davis, escondido entre a lareira e o encanamento cresce um louro grego. Não é muito, mas é aquele que usavam os poetas. Agora, o louro da Califórnia não é um louro; pode espantar os insetos, dar sabor a um molho, e penetrar fundo ao nariz se o inalas com uma profunda respiração...”

folhas espremidas, o odor me recorda a Annie, junto ao rio Big Sur acampava debaixo dos louros, um verão inteiro comendo arroz integral, nua, fazendo yoga seu canto, sua profunda respiração.

Poema de “Danger on Peaks” Versão de José Antonio Pereira

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Poetas franceses

Muito pouco se fala da poesia francesa moderna e contemporânea no Brasil. O professor Mário Laranjeira fez uma seleção e tradução de poetas franceses, cuja produção situa-se entre 1945 a 1995.

Publicados no livro Poetas de França Hoje 1945-1995 (Editora: Edusp Fapesp) Publicamos dois poetas que se encontram no ótimo livro.

Edmond Jabès (1912 – 1991)

TERRAIN VAGUE...

Terrain vague, page obsédée.

Une demeure est une longue insomnie Sur le chemin encapuchonée des mines.

Mes jours sont jours de racines, Sont joug d'amour célébré.

Le ciel est toujours à traverser et La terrasse à nourrir de nuits nouvelles.

Le deuil de mes démarches forme Enclave dans la clarté opaque de murs.

La terre baigne dans de Vaines visions de voyages.

TERRENO VAGO...

Terreno vago, página obsedada.

Uma morada é uma longa insônia No caminho encapuzado das minas.

Os meus dias são dias de raízes, São jugo de amor celebrado.

O céu está sempre por atravessar e O terraço por nutrir de noites novas.

De meu vagar o luto forma Enclave no clarão opaco das paredes.

A terra embebe-se em Vãs visões de viagem.

Poema in: L'Absence de Lieu, 1955)

Henry Deluy

La chambre semblait sortir du corps. La chambre sembalit sortir des plis De la robe et des plis du corps. La chambre semblait recevoir Autre chose encore. - Tu disais: Lorsque je partirai, je partirai loin Et sans regrets. - La chambre était Toute entière dans cet amas confus De paroles, près de la robe, et Dans ce paysage, qui disparaît Vers le haut de tes cuisses.

O quarto parecia sair do corpo. O quarto parecia sair das pregas Do vestido e das pregas do corpo. O quarto parecia receber Outra coisa ainda. – Tu dizias: Quando eu partir, eu partirei bem longe E sem remorso. – O quarto estava Todo nesse confuso amontoado De palavras, junto ao vestido, e Nessa paisagem, que se ia sumindo Para o alto de tuas coxas.

(Poema in: L'Amour Charnel, 1994)

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Altamir Soares

“A arte é a representação do que não desejamos ver ou ser,

mas existe, é a representação do mundo do qual vivemos”

(Altamir Soares)

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Altamir Soares de Araújo

Endereço:

Rua Lacordaire Dutra, 133

Bairro Granjaria – Cataguases - MG

Tel. (032) 3422.4279 – 9951.4279

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