Ciência e pós graduação na universidade brasileira - nildo ouriques

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Editora Insular C rítica à R azão A cadêmica Reflexão sobre a universidade contemporAnea © Waldir José Rampinelli e Nildo Ouriques - 2011 Editor Nelson Rolim de Moura Planejamento gráfico Carlos Serrao Revisão Raquel Moysés Capa Tadeu M. Martins Fotos da capa (www.sxc.hu) Maurício Reyes (capa) e Petr Kovar (contracapa) Crítica à Razão Acadêmica - Reflexão sobre a universidade contemporânea / Waldir José Rampinelli e Nildo Ouriques. Florianópolis : Insular, 2011. 224 p. ISBN 978-85-7474-576-3 1. Educação Superior - Instituições de educação superior. I. Título CDD 378 Editora Insular Ltda. Rodovia João Paulo, 226 — Bairro João Paulo CEP 88030la 300 — Florianópolis — Santa Catarina Brasil Fone/fax: 0**48 3232 9591 e 3334-2729 [email protected] www.insular.com.br http:// twitter.com/EditoraInsular A todos que deram o melhor de suas vidas em defesa de uma universidade pública, gratuita, popular, descolonizada e de qualidade, pensando sempre na emancipação de seu povo.

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Editora Insular C r ít ic a à R a z ã o A c a d ê m ic aR e f l e x ã o s o b r e a u n i v e r s i d a d e c o n te m p o r A n e a

© W aldir José Ram pinelli e N ildo Ouriques - 2011

Editor Nelson Rolim de MouraP lan ejam en to gráfico

Carlos SerraoRevisão

Raquel MoysésCapa

Tadeu M. MartinsFotos da capa (www.sxc.hu)

Maurício Reyes (capa) e Petr Kovar (contracapa)

Crítica à Razão Acadêmica - Reflexão sobre a universidade contem porânea / W aldir José Rampinelli e N ildo Ouriques. Florianópolis : Insular, 2011.

224 p.

ISBN 978-85-7474-576-31. Educação S uperior - In s titu içõ es de educação superior.I. T ítu lo

CDD 378

E ditora Insular Ltda.Rodovia João Paulo, 226 — Bairro João Paulo

CEP 88030la300 — Florianópolis — Santa Catarina Brasil Fone/fax: 0**48 3232 9591 e 3334-2729

editora@ insular.com.br www.insular.com.br http:// twitter.com/EditoraInsular

A todos que deram o melhor de suas vidas em defesa de uma universidade pública, gratuita,

popular, descolonizada e de qualidade, pensando sempre na

emancipação de seu povo.

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C i ê n c i a e p ó s - g r a d u a ç ã o n a u n i v e r s i d a d e b r a s i l e i r a

Nildo Ouriques'

O estado brasileiro consolidou um sistem a universitário com orte identidade entre desenvolvim ento científico e pós-graduação-

em consequência, quando um a autoridade universitária fala em de­senvolvim ento científico, o sen so comum considera que está falando

e pos-graduaçâo e, com gran d e frequência, quando alguém m encio­na que pertence a um program a de pós-graduação, em geral tenta exibir-se como membro de um seleto clube de cientistas. Por isso, o sistem a de pós-graduação tornou-se um espaço privilegiado nas uni­versidades. A o contrário da graduação, nesses program as não faltam pro essores, não existem “professores substitutos”, há certo número de alunos com dedicação exclusiva, bolsas de estudo, program as para atendim ento de demandas específicas (bibliotecas, laboratórios, edi­tais especiais, etc.). N o senso comum dom inante no campus, o sistema de pos-graduação representa o futuro da universidade, o ambiente no qual efetivamente o professor toma contato com as exigências do m undo da ciência. É preciso duvidar do senso comum, pois ele tem sido especialm ente nocivo para a pesquisa e o desenvolvim ento da ciência nos países periféricos do sistema capitalista. É precisamente esse senso comum que produziu uma universidade cativa, impedida de cumprir sua função criadora em países periféricos.

O capitalismo converteu a ciência em sua principal força produ­tiva e, por esta razão, a d isputa pela propriedade intelectual trans­form ou-se no principal derivativo da revolução científico-técnica. A reflexão acerca deste decisivo tema “a revolução científico-técnica" não tem sido prioridade no B rasil como de resto tampouco nos paí­ses dependentes. Nesses, o que prevalece é um confuso e conveniente

* Professor do departamento de Economia e membro do IELA-UFSC.

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debate sobre a importância da -inovação" que, na verdade, nao passa de uma c ô m o d a justificativa ideológica de nosso raqu.t.smo c.entífi- co e um álibi para a incapacidade da burguesia bras.le.ra em dispu­ta r no difícil terreno d , ciênca, com as naçóes dos palses Neste contexto, a disputa pelo controle da tecnologra e merente aodesenvolvimento capitalista da mesma forma que esta nao o pleno desenvolvimento da ciência. O lucro extraord.n no, sivo para a concorrência intercapitalista "entre empresas e países , além de assinalar a intensificação do conflito entre as classes soc.a.s, porque requer aumento do grau de exploração da força de trabalh, implica também uo crescente investimento em c e n c a e apbcaçao tecnológica da mesma. É por esta razâo, e pela crescente .mportancia dos monopólios na economia capitalista, que o tema das patentes e controle da aplicação produtiva dos resultados do desenvolv,mentocientífico ganhou relevância.

Em 2009 os Estados Unidos registraram 45.790 Paten es ' O Brasil, apenas 212. Segundo o Informe da O r g a n i z a ç ã o d e Patentes [Indicadores mundiais de propriedade intelectual/2010)2008 os Estados Unidos solicitaram ,56.321 patentes e o Brasil ape­n a s 21 825. Os números revelam o abismo existente entre a principal potência capitalista e um país dependente da America Latina no e-risivo terreno da produção cientifica.. _

A despeito da enorm e diferença entre Estados Unidos e B ras i, em nosso país os otim istas de sempre, acostumados ao estranho ha­bito de ver o lado bom em tudo, não desprezam a cifra brasileira, m deveriam considerar que o número bastante modesto torna-se ainda mais elucidativo de nossa precária condição porque inclui tombem as solicitações dos “não residentes”, fato que diminuiu ainda mais o “desempenho” nacional, pois no capitalismo dependente a trans- nacionalização do sistema produtivo é uma característica essencial Por isso, as autoridades seguem exibindo otimismo e insistem que se trata de um indicador relevante para um pais periférico. Mas, Brasil, o número de solicitações de “não residentes in íca or qu para uma economia dependente é absolutamente mais importante do que nos Estados Unidos ou China - representa a maior parte dassolicitações.

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Segundo a mesma fonte, o número de patentes concedidas se­guiu crescendo ano após ano na última década. Estados Unidos, Ja­pão, Coreia do Sul, Alemanha, China, França, Federação Russa, Itália e Reino Unido concentram a maior parte delas. O Brasil não figura nem mesmo entre os 20 maiores países responsáveis tanto pelo pedi­do de registro quanto pelas concessões de patentes.

Entre os 50 mais importantes solicitantes universitários de pa­tentes não figura sequer uma universidade brasileira. Os números sobre a insignificância brasileira e dos demais países dependentes na área de ciência e tecnologia são abundantes e ainda mais graves se a análise se estende para marcas e desenhos, dois filões suculentos da acumulação de capital no terreno da ciência e da tecnologia. A UFSC, que completou meio século de existência, possui apenas ( l) uma patente.

Segundo dados do INPI (Instituto Nacional de Propriedade In­telectual), en tre 2004 e 2008 cresceram as solicitações de patentes por parte das universidades brasileiras, mas elas ainda estão longe da capacidade de empresas estatais como a Petrobras, que segue lideran­do com folga a lista no Brasil. Ademais, é preciso considerar que uma parte dos pedidos de patentes realizados pelas universidades brasi­leiras ocorre na condição de “cotitular”, ou seja, projetos associados com empresas ou fundações de amparo à pesquisa, cujo resultado em termos financeiros não necessariamente re torna para as instituições de ensino. A média para o período estudado não foi muito superior a seis mil pedidos anuais, cifra bastante modesta quando comparada com os parâm etros mundiais.

Num país dependente ocorre um gritante contraste entre o in­gênuo otimismo de nossa suposta entrada no campo da ciência e da tecnologia e o ridículo desempenho dos índices sobre patentes que despertou a atenção de muitos de nossos mais importantes intelec­tuais no passado recente. Na periferia capitalista as universidades deveriam cumprir um papel importante, mas permanecem como apêndices de terceira categoria na “estratégia nacional de desen­volvimento”. Mais significativo ainda é perceber que a consciência universitária sobre a dependência científica e tecnológica quase não existe, de tal forma que o otimismo ingênuo das autoridades, que

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orienta a política nacional, pode ser constatado com muita claridade também no campus universitário. Enfim, não devemos orientar nos­sas críticas somente na direção das autoridades, na distante Brasília, mas também - e talvez com maior insistência - na direção de nosso vizinho de sala ou companheiro de laboratório.

Há, inclusive, certo clima de exaltação no campus universitário com o avanço da “produção científica”, tal como a definem as autori­dades estatais, e o resultado objetivo no terreno da ciência e da tecno­logia, que encontra nas patentes o melhor indicador de desempenho.É forçoso adm itir que a falta de correlação entre o vertiginoso avan­ço das publicações que tantas alegrias trazem para nossas autorida­des _ e não menores para os seus autores - não se reflete nem mesmo no número de pedidos de patentes e, no limite, muito menos ainda no número de patentes conquistadas. Neste contexto, sequer é possível qualificar o estado da arte como expressão da “consciência ingênua , espécie de antessala da consciência crítica, mas simplesmente de alie­nação no sentido clássico do conceito.

O perigoso mundo das palavrasNão vamos concluir que em função do contraste assinalado o

esforço universitário tem sido inútil. Ao contrário, o que tem sido denominado como “pesquisa” ou “produção científica” pelos órgãos responsáveis pelo setor tanto no M inistério da Ciência e da Tecno­logia quanto no Ministério da Educação é, na verdade, um aumen­to vertiginoso da publicação dos docentes universitários brasileiros. Tampouco é válido concluir que, por esta razão, se trata de um es­forço inútil: na maioria das vezes, ainda que, quando exitoso, rende um artigo publicável em revistas especializadas, o sistema de pós- graduação brasileiro está, na prática, vendendo serviços à iniciativa privada e não necessariamente desenvolvendo ciência e tecnologia. A este respeito é significativo que tenham crescido nas estatísticas oficiais as solicitações de “modelo de utilidade” (MU), ou seja, um indicador mais afeito ao conceito de “inovação” que, como sabemos, representa a melhoria parcial de algum produto ou processo que já possui comercialização e, portanto, propriedade. Nesse caso, a rela­ção entre universidade e empresa cumpre perfeitamente sua função,

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na medida em que atende uma demanda da indústria e até contabiliza algum recurso para a universidade. Mas não rende patentes.

Esta gritante diferença entre a notável evolução das publicações e o resultado em term os de patentes parece não afetar o ânimo das autoridades que zelam pelo desenvolvimento científico do país. T a l­vez mais preocupante ainda seja constatar que o otimismo dos gabi­netes de Brasília existe com mais força no campus universitário. No caso específico de nossa universidade - a Universidade Federal de Santa Catarina - não deixa de ser uma ácida ironia o fato de o último reitor eleito ter tido como mote de campanha "a universidade do sé­culo XXI”, destinada a “internacionalizar a UFSC”, ao mesmo tempo em que se constata que em seus 50 anos de existência a instituição possui apenas... uma (1) patente!

Na verdade, o otimismo ingênuo que caracteriza nossa situação se expressa no fato de que o comportamento do professor universitá­rio esteja marcado, nos últimos anos, por uma imensa satisfação com o chamado “avanço vertical” da universidade, ou seja, o desenvolvi­mento da pós-graduação. E a tarefa de publicar artigos em revistas especializadas constitui um indicador precioso - na verdade o p rin ­cipal - para hierarquizar o sistema de pós-graduação no país. Ainda que implicitamente, o professor universitário julga que o desenvolvi­mento de programas de pós-graduação implica necessariamente em desenvolvimento científico, fato que lhe confere certa autoconfiança e, ainda que de maneira difusa, algo de legitimidade social. Em con­versas privadas, e mesmo em seminários públicos, ele reconhece — um pouco contrariado, é verdade - que o simples estabelecimento de mestrados e doutorados não é garantia alguma de que a ciência este ­ja avançando no Brasil, mas seu cotidiano está repleto de pequenos atos e declarações nos quais tudo caminha como se estivéssemos ati­vando um gatilho automático: o desenvolvimento da pós-graduação é mesmo sinônimo de desenvolvimento científico.

Por esta razão, o professor universitário circula nos corredores da universidade brasileira satisfeito com a expansão da pós-graduação e, em larga medida, é possível dizer que em seu universo intelectual o ensino de graduação foi quase que completamente subalternizado. Criou-se assim uma espécie de “andar superior”, um novo patam ar

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de prestígio ainda mais importante diante de certa “massificação da universidade brasileira que, nos marcos de certo exclusivismo esno­be, funciona como um novo instrumento de hierarquização, supos­tamente ordenado pela “meritocracia”. Na graduação todos somos obrigados a trabalhar, mas, nos programas de pós, somente aqueles que conseguem publicar nas revistas consideradas, pela cabeça alie­nada dos professores, como revistas “internacionais . Nesse contexto não é incomum que existam professores com manifesto sentimento de inferioridade porque simplesmente estão fora dos programas de pós e finalmente porque não entendem muito bem como o sistema realmente funciona. Não por acaso, precisamente quando o governo realizou um tímido movimento na direção de democratizar o ensino universitário — com a criação de novas universidades, ampliação das vagas nas instituições existentes e sistemas de ações afirmativas que permitem a setores das classes populares um acesso que de outra ma­neira seria impossível — fortaleceu-se em seu interior a necessidade de diferenciação entre aqueles que “ensinam” e aqueles que “pesqui­sam”. Também, neste contexto, explica-se porque os setores mais abertamente reacionários, ou simplesmente refratários à democrati­zação do ensino universitário, fortaleceram a defesa da meritocra­cia” como arma contra o ingresso das classes subalternas no ensino superior. É claro que existe resistência consciente ao processo domi­nante, mas é igualmente óbvio que, nas condições atuais, o exercício de uma estratégia de recusa, ou seja, a decisão de não participar dos programas de pós-graduação, é comodamente catalogada como ex­pressão de incompetência ou automarginalização irracional .

Em reunião recente, realizada na Unesp, o professor Jorge Gui­marães, presidente da Capes, indicou com grande otimismo que uma das metas do Plano Nacional de Pós-Graduação 2011 é o aumento da produção científica: “nossa intenção é posicionar o Brasil entre os dez países com maior produção científica. Atualmente, ocupamos a 13- posição, atrás da Austrália, Coreia do Sul e índia.”

Há poucos meses o professor Jorge Guimarães deu mais uma notável contribuição para o sistema colonial que a cada dia ganha em sofisticação no Brasil { As razões para o avanço da produção científica brasileira, 05.07.2011). Ele afirmou que, “para qualquer país, a sua

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produção científica torna-se visível pela publicação de artigos origi­nais nas melhores revistas internacionais”. Adiantou outra novida­de decisiva para nosso futuro: “não é sem razão que os países mais desenvolvidos possuam o maior número de revistas indexadas nas bases Scopus e ISI (Institute for Scientifíc Information), respectiva­mente: EUA, 5.152 e 3.915; Inglaterra, 3.491 e 2.011; Holanda 1.782 e 768; Alemanha, 1.148 e 724; Suíça, 234 e 192...”. Parece escapar completamente ao presidente da Capes que as duas bases de dados mencionadas (Base Scopus e ISI) foram criadas pelos Estados Uni­dos e não precisamente para a benevolência universal da ciência e dos povos; estes mecanismos de “indexação” foram criados em função do interesse nacional... estadunidense! No caso da Base Scopus, que criou o SciVerse Scopus, trata-se de um produto da Elsevier, que a maioria dos professores conhece como editora, mas é, de fato, uma empresa multinacional da educação. Por essa razão, o cândido projeto de in­dexação do professor Eugene Garfield foi igualmente utilizado pelo interesse nacional estadunidense tão rapidamente quando o “esforço de guerra” e os interesses expansionistas dos Estados Unidos exigi­ram. O ISI e agora, antes de tudo, um produto da Thomson Reuters Corporation, empresa encarregada de medir o “fator de impacto” de uma publicação por meio do Journal Citation Reports, um informe anual destinado a medir a quantidade de vezes em que os trabalhos são citados na chamada literatura científica!

De minha parte eu realmente confesso grande interesse em co­nhecer uma revista internacional”, pois seria um acontecimento fan- tastico, que deveria chamar a atenção de qualquer professor univer­sitário. Ainda mantenho imensa curiosidade de conhecer uma revista internacional e devo admitir que, apesar do esforço pessoal destina­do a imaginar seu perfil, não consigo um resultado convincente. No máximo, meu esforço de imaginação consegue visualizar uma revista francesa, uma inglesa, uma alemã ou, principalmente, uma estaduni­dense, que se considera “internacional” e - mais importante ainda - consegue adeptos colonizados nos países periféricos para validar este objetivo. Contudo, uma “revista internacional”, genuinamente inter­nacional, eu jamais tive a felicidade de encontrar. Há, de fato, uma boa razão para minha frustração: revistas internacionais não existem!

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É também necessário registrar o verdadeiro fetiche que a pala­vra “internacionalização” exerce na cabeça do professor alienado e nas mentalidades alienadas dos que dirigem nossas principais insti­tuições de ensino. Uma demonstração cabal do estado avan^ do ^e alienação pode ser observada quando a USP (Universidade de Sao Paulo), a maior universidade pública do país, criou por iniciativa de José Goldenberg, em 1990, um conselho consultivo, espécie de ms tância superior ao Conselho Universitário, cuja composição incluía um conjunto de figuras estrangeiras como, por exemplo, o sociolo- go francês Alain Tourraine. Mais importante ainda: constava, en­tre os membros deste conselho consultivo, a senhora Jemffer Sue Bradford, diretora executiva da Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos, órgão estratégico no desenvolvimento cientifico e tecnológico da potência imperialista. Para não deixar dúvidas sobre a função da SNF é preciso recordar o lema que a criou, nos anos 50: “promote the progress of science; to advance the national health, prosperity, and welfare; and to secure the national defense. Enfim um objetivo amparado no bem-estar, prosperidade e riqueza nacional dos Estados Unidos. Semelhante iniciativa seria impensável em qual­quer universidade pequena dos Estados Unidos ou da França, mas é indicada em nossa maior universidade como um símbolo de aber­tura e internacionalização do saber, espécie de precondição para que possamos desenvolver, nós também, ciência e tecnologia. E de fato, um atestado de colonialismo sem precedentes que, até onde regis­tra minha pesquisa, não foi criticado nem mesmo pelos sindicatos de professores ou técnicos-administrativos. As redes e os mecanismos que os países metropolitanos organizam para captar a inteligencia dos países periféricos são múltiplos e constantes, produto de uma política pensada e executada em seus mínimos detalhes.

Tampouco chama a atenção do professor Jorge Guimarães que um país como os Estados Unidos não pode ser considerado “qualquer país”, mas o país que “organiza um sistema mundial” de servidão vo­luntária para os interesses nacionais da potência dominante. E por esta razão que os Estados Unidos não somente tornam suas revistas nacionais indexadas, mas também estabelecem a sua base de dados para tal O presidente da Capes nos oferece uma demonstraçao pu-

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blica de que é incapaz de compreender a natureza do sistema mundial de produção de conhecimento e a função que um país dependente como o Brasil cumpre em seu interior. Enfim, lhe escapa o fundamental.

As revistas indexadas nas bases de dados anteriormente men­cionadas são o meio pelo qual a inteligência dos países periféricos é exibida e gratuitam ente disponibilizada para as potências capitalis­tas para que elas, a partir da relação estado-empresa-universidade, desenvolvam o controle do conhecimento pelo sistema de patentes. Da mesma forma que tentam por todos os meios políticos e milita­res controlar o lítio na Bolívia e no Afeganistão, os Estados Unidos garimpam, no mundo inteiro, pequenas contribuições científicas por meio dos artigos que a inteligência da periferia, com orgulho colo­nial, cede gratuitam ente para as chamadas “revistas internacionais , a maioria delas estadunidenses. Desta forma, aos meios econômicos, políticos e militares mais visíveis, soma-se este poderoso mecanismo de hegemonia cultural que rende muitos frutos para o desenvolvi­mento da ciência e da tecnologia nos países centrais e é especialmen­te im portante para a potência capitalista dominante.

É preciso entender que os Estados Unidos não produzem a quan­tidade de engenheiros e técnicos de computação necessários para fa­zer funcionar aquela imensa máquina produtiva - razão pela qual im­portam um número crescente de cientistas e profissionais do mundo inteiro para trabalhar e viver em solo estadunidense — eles tambem necessitam da inteligência que permanece no “resto do mundo ga­rimpando moléculas de conhecimento que somente fazem sentido, que somente podem ser utilizados como mercadoria, quando encon­tram o ambiente necessário para tal. O sistema mundial de produção de conhecimento funciona assim com dupla motivação. O ponto de partida é, obviamente, a organização, pelo estado nacional do país m e­tropolitano, de um sistema articulado entre estado, universidade e monopólio, destinado a manter, sob seu controle, o desenvolvimento científico e a aplicação tecnológica da ciência. Os investimentos es­tatais comandam essa cadeia produtiva de acordo com as condições gerais da acumulação capitalista.

Não se trata de uma novidade dos “teóricos” da globalização que o sistema capitalista somente pode funcionar em escala global, razão

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pela qual o estado nacional metropolitano elabora uma política cien­tífica, cultural e educacional destinada a atrair as cabeças pensantes do mundo inteiro para lá desenvolverem projetos de pesquisa em distintas áreas. Este fenômeno aparece na periferia capitalista como fuga de cérebros (brain drain) e afeta grandes e pequenos países pe­riféricos. Mas é igualmente claro que, precisamente por sua vocação universal, o capital também precisa organizar na periferia capitalista um sistema que lhe favoreça e funcione segundo suas estratégias. É nesse contexto que a política nacional educacional e científica deve ser organizada pelo estado periférico de acordo com os interesses na­cionais do estado metropolitano. É por isso que a política nacional do estado periférico tem que ser colocada a serviço do sistema mundial de produção de conhecimento sob controle das empresas multinacio­nais e de seus respectivos estados metropolitanos. Contudo, é neces­sário, por razões políticas, que esse sistema não apareça como o que realmente é, mas como um sistema que propiciará aos cientistas dos países periféricos o acesso ao mundo moderno naquilo que ele tem de mais ideológico: o domínio da ciência e da tecnologia. Também como consequência ideológica necessária, todo o sistema do estado periférico deve aparecer como estímulo à meritocracia e jamais como submissão colonial. Combina-se assim a política nacional do estado metropolitano com a política nacional do estado periférico a serviço da acumulação de capital dos grandes monopólios e da disputa hege­mônica entre os estados centrais.

É fácil observar que, neste contexto, a antiga política cepalina sobre a “cooperação científica” simplesmente desapareceu de cena, e a razão é também simples: uma vez que a capacidade de pensar dos cientistas da periferia capitalista está “indexada” na rede de in­teresses e instituições dos países centrais, já não é mais necessário o velho discurso e alguns programas destinados a exibir a importância da “cooperação científica” que caracterizou a relação entre os países centrais e periféricos até a década de sessenta. De fato, na atual si­tuação da acumulação capitalista, ocorreu aquilo que Joachim Hirs- ch chamou, para outro propósito, de racionalização sistêmica, ou seja, configura-se uma situação em que as condições gerais do sistema capitalista operam em favor dos monopólios e dos estados metropoli­

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tanos. No livro Transformações: Matrizes do século XXI, René Dreyffus também tocou tangencialmente no tema ao observar as mudanças estruturais na estratégia das empresas transnacionais — para ele de­nominadas Corporações Estratégicas Transnacionais(CETs) - e seu estudo indica que elas mudaram radicalmente a orientação científica e tecnologica em relação a décadas anteriores. Nessas corporações, a partir das transformações operadas a partir da década de 1990, o “su­cesso de uma empresa será determinado não tanto pelo montante de gastos em P&D, mas pela acumulação de conhecimento e capacidade tecnológica resultante do esforço de P&D e de quanto esse esforço é traduzido em conhecimento mensurável, materializado em patentes, registros ou protótipos”.

A análise do sistema capitalista explicita de maneira clara que, da mesma forma que os Estados Unidos não produzem no país todos os cientistas de que necessitam nos distintos campos de conhecimen­to — razão pela qual destinam programas bastante ambiciosos para atrair professores e estudantes da periferia capitalista que queiram passar temporadas nas suas universidades, contribuindo com o po ­tencial de pesquisa alheio — tambem necessitam organizar o sistema em escala global destinado a garimpar toda e qualquer contribuição científica relevante para a concorrência intercapitalista global. O o r­çamento dos Estados Unidos segue sendo uma arma poderosa em todos os campos da vida social para a disputa da hegemonia mundial, especialmente na área de educação.

Em épocas passadas, segundo a Fundação Nacional de Ciências dos Estados Unidos, a potência imperialista disponibilizou mais re ­cursos para buscar talentos no mundo inteiro do que quase todo o o r­çamento brasileiro em educação: em 2002, por exemplo, precisamente 10 bilhões de dólares apenas com programas de bolsas de estudo des­tinadas à atração de estudantes estrangeiros. Na Europa a política é a mesma, ainda que apresente uma feição própria em função da baixa taxa demográfica; por isso, os europeus disponibilizam milhares de va­gas para estudantes da periferia capitalista, especialmente importantes no ensino universitário, com o claro objetivo de m anter funcionando sua máquina de produção de conhecimento necessária para rivalizar com os Estados Unidos e a China. Não somente destinam programas

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para atrair estudantes como, nos últimos tempos, fazem seleção nos países periféricos. Universidades como Harvard, por exemplo, já rea­liza, em São Paulo, processo de seleção para entrada nas mais diversas carreiras universitárias. Na Europa, a baixa taxa demográfica tornará as políticas destinadas a atrair bons candidatos oriundos da periferia capitalista uma prioridade de seu sistema educativo, uma necessidade iniludível de sua economia. Nos Estados Unidos, em 2001, o número de prêmios Nobel, por exemplo, já era maior para não residentes do que entre aqueles nascidos nos Estados Unidos.

A política “nacional” de publicação e hierarquização em curso nos países da periferia capitalista não pode ser compreendida fora do funcionamento do capitalismo em escala global. Mas é necessário indicar que nem todos os países atuam neste contexto de maneira idêntica. Um exemplo notável das possibilidades do estado nacional numa economia capitalista global é a China, país que foge comple­tamente do enquadramento na “teoria” implementada pela Capes e defendida candidamente pelo professor Guimarães. A China, que a imprensa todos os dias anuncia como um bicho-papão prestes a devo­rar o mundo com sua capacidade produtiva (científica e tecnológica também, obviamente) parece não se importar muito com a teoria do professor Jorge Guimarães. Neste “clube mundial do mais elevado mérito na ciência” - denominação de Guimarães para o sistema mun­dial de produção de conhecimento - os chineses, que na última década se notabilizaram aos olhos do senso comum como uma ameaça aos interesses das potências dominantes, parecem não estar muito inte­ressados em participar do seleto clube que possui e indexa “revistas internacionais”. Não é curioso que a China, sempre muito interessada em ser protagonista internacional, despreze completamente a política que praticamos no Brasil com especial zelo? Como explicar tamanha omissão? E a Rússia, por que tampouco aparece no ranking mundial que tanto as autoridades brasileiras adoram e os professores univer­sitários veneram?

Não pode escapar ao analista atento o fato de que a China, em hi­pótese alguma, hierarquiza o sistema científico nacional aos interes­ses nacionais dos Estados Unidos. Enfim, ela não orienta sua política no estado nacional em favor do estado nacional rival; ao contrário,

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ela protege seu sistema produtivo e as instituições científicas para fortalecer a rivalidade empresarial-estatal em favor de seu país. Esta é uma lição elem entar do funcionamento real do sistema capitalista que, curiosamente, não é percebida pelos homens que dirigem nosso sistema de ciência e tecnologia. Este comportamento político é, ob­viamente, um subproduto da dependência do país, de sua condição de país subdesenvolvido que, em consequência, torna-se vulnerável. Como advertiu Ruy M auro Marini há muitas décadas, “não é porque se cometeram abusos contra as nações não industriais que estas se tornaram economicamente débeis, é porque eram débeis que abusa­ram delas”. A orientação da política científica em curso é, sem som­bra de dúvida, um abuso. Contudo, é um abuso permitido pela debili­dade congênita dos países dependentes, que necessitam realizar sua revolução nacional-popular-socialista sem a qual continuarão como anões políticos, econômicos e científicos no mundo contemporâneo. Acaso a grandeza da China após 1980 seria possível sem a Revolução de 1949?

Restaria ainda saber por que os países com vocação imperialista que rivalizam com os Estados Unidos não participam do seleto clu­be mundial do mais elevado mérito na ciência”. Não é uma situação que deveria levantar suspeita entre nós? A pergunta é simples: será que Alemanha, França e Inglaterra hierarquizam suas revistas e seu sistema nacional de pontuação favorecendo as revistas nacionais de seus rivais? Como é possível que os homens de Estado que dirigem nosso sistema científico não se façam essas perguntas elementares que qualquer análise definiria como realista? Responder a essas per­guntas nos levaria a aprender algo mais sobre a natureza do sistema em que estamos vivendo.

Neste contexto é uma gritante contradição disponibilizar re­cursos para fomentar as revistas nacionais (impressas e eletrônicas) para “dar maior visibilidade à ciência brasileira” e m anter a hierar­quização colonial que se expressa no Qualis Capes. Nos marcos da política oficial, os incentivos estatais para o fomento de revistas na­cionais somente teria sentido se as revistas nacionais tivessem maior pontuação e a política estatal estivesse dirigida a fortalecer e to rn ar mais exigentes os critérios de aceitação de artigos, e não o contrario.

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“As palavras são frágeis”, recorda-nos George Orwell. No entan­to, as autoridades nacionais — e locais - indicam que estamos avan­çando na “produção científica”, pois, se no início dos anos 80 repre­sentávamos 0,4% da “produção científica mundial”, em 2010 o país alcançará 2,7%.

Afinal, o que é a “produção científica” que deixa tão felizes nossos principais dirigentes da área científica? Em que consiste a “produção científica” que deixa nossos reitores também muito felizes quando expõem os números que nutrem o cotidiano de nossas universida­des? Para as autoridades brasileiras, “produção científica” se mede pelo número de artigos publicados em revistas nacionais e “inter­nacionais”. Por isso, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) estabelece metas de publicação e organiza o sistema de pós-graduação a partir do número delas, hierarquizadas de acordo com critérios que julgam os melhores possíveis. Nessas condições, um programa é considerado de “excelência” se a maior parte do corpo de professores publica artigos em revistas que fazem parte de uma lista, denominada Qualis Capes. Nessa lista, as revistas são hierarquizadas de tal forma que algumas valem mais que outras e - muito elucidativo! - as revistas dos países centrais valem mais do que qualquer revista nacional ou latino-americana.

A decisão de outorgar maior pontuação para as revistas consi­deradas internacionais pela mentalidade colonizada de nossas auto­ridades, e de nossos mais premiados professores, não criará risco al­gum de extinção das revistas nacionais, mas produzirá algo pior: o de constituir-se poderoso instrumento de publicização de resultados de importantes pesquisas que deveriam render frutos em termos econô­micos para a nação e que são disponibilizados gratuitamente para o complexo estado-empresa-universidade dos países centrais. A criação de programas especiais destinados a fomentar a criação de publicações nacionais - digitais ou impressas - não tem maior sentido sem a inver­são radical e completa do sistema de pontuação em curso e a introdu­ção de critérios socialmente mais relevantes que a simples publicação.

É importante refletir sobre o fato considerado normal - e até meritório — nas ciências sociais, de as revistas “internacionais” pon­tuarem muito mais do que qualquer revista nacional. Tal fato seria

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inadmissível em países centrais (EUA, Alemanha, Japão ou mesmo em situação sui generis, como a China), mas é considerado absoluta­mente normal e, principalmente, necessário, num país dependente como o Brasil.

Analisando a classificação do Qualis Capes, chegamos à trágica conclusão de que, nas áreas estratégicas em ciência e tecnologia, as revistas nacionais não são consideradas as melhores (Al). Não exis­tem revistas de biologia nacional com conceito máximo; em química, tampouco alguma nacional é considerada suficientemente relevante para ganhar pontuação máxima. Na área de Astronom ia/Física eu não encontrei sequer uma considerada digna de receber o conceito máximo. Em Ciências e Matemática, outra área de conhecimento, somente uma revista mereceu classificação “A l”. Ademais, em todas as áreas, a maior parte das revistas indexadas é estrangeira, predo­minando em larga medida revistas dos Estados Unidos. Na literatura poderíamos denominar esta política como subproduto do “complexo de vira-latas”, expressão do conhecido dram aturgo e escritor brasi­leiro Nelson Rodrigues. Mas é mais apropriado chamar a coisa por seu nome: trata-se, exclusivamente, de uma dose consistente de colo­nialismo quimicamente puro, um subproduto necessário do sistema de dominação de um país dependente. Salvemos, porém, as nossas letras: na área Letras/Linguística, 22 são as revistas consideradas “A l”, um verdadeiro oásis de lucidez que não contagiou os demais comitês!

Aos analistas mais exigentes e sempre atentos aos acontecimen­tos mundiais, não lhes parece estranho o fato de que não existem revistas chinesas que, segundo analistas exibidos diariamente pela imprensa, é o país que ameaça seriamente a hegemonia estaduni­dense na economia, na geopolítica, nas ciências e... na área científica e tecnológica? A maior parte desses atentos analistas, e o espírito científico que dizem possuir, ignora que o produto chinês com o qual se alimenta, se transporta etc, não é um produto de quinta catego­ria como costumávamos dizer há duas décadas. A China, de fato, transformou-se na “fábrica do mundo”, país para onde as multinacio­nais dos Estados Unidos se dirigem gerando arranjos institucionais e produtivos que são desconsiderados pelas autoridades científicas

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brasileiras. A China, que nos tempos de Adam Smith — acreditava ele - estava “adormecida”, finalmente despertou e transformou-se numa espécie de dragão que tudo vai abocanhar, inclusive no terreno da ciência e da tecnologia. Mas a China não figura no Qualis Capes como um espaço de publicação e não é precisamente por falta de co­nhecimento do mandarim, pois lá o inglês é bastante comum no am­biente universitário. Não é curioso que a China não figure no Qualis Capes? Por que a China, que ameaça nosso sono sereno no terreno produtivo, não é motivo de preocupação para nossas autoridades no terreno científico?

Segundo a classificação da Qualis Capes, nenhuma revista nacio­nal de Economia possui conceito máximo (Al). Em oposição, a imen­sa maioria das revistas dos países centrais - especialmente aquelas dos Estados Unidos - é considerada como de excelência. Na Sociolo­gia, tampouco se pode encontrar na referida relação alguma revista nacional com conceito máximo; na verdade, apenas uma revista bra­sileira recebe o conceito A2, enquanto outras tantas seguem escala abaixo. Em História existem seis revistas nacionais com nota máxi­ma, mas elas também são minoria na longa relação do Qualis Capes. É realmente surpreendente verificar que nenhuma revista nacional de Geografia recebeu classificação ótima! Enfim, nas ciências huma­nas o grau de colonialismo intelectual chegou a níveis inimagináveis, a uma situação que seria impensável durante os anos da ditadura militar, nos quais a crítica historiográfica, sociológica e econômica era, pelo menos, intencionalmente crítica, e não mera reprodutora das ideologias nascidas nos países centrais.

Nos cursos de pós-graduação de economia a adoção desta orien­tação implicou um vertiginoso empobrecimento da profissão com a supervalorização das matemáticas em prejuízo do conhecimento so­bre as distintas teorias - neoclássica, keynesiana e marxista - que ainda não foi suficientemente questionada, razão pela qual os enge­nheiros - mais treinados e aptos na matemática elementar e avan­çada - terminam por conquistar com mais facilidade o mercado de trabalho que potencialmente seria do economista. A elaboração de um exame nacional para ingresso na maioria dos mestrados obedece a orientação quase que exclusivamente neoclássica e não são poucos

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os programas que incluem como disciplinas obrigatórias a macro e micro economia, ministradas com manuais em inglês, mesmo depois da crise teórica que se revelou a partir de setembro de 2007, reconhe­cida inclusive por alguns notórios cardeais da matéria, como Olivier Blanchard, por exemplo. Poderia existir grau maior de alienação em uma disciplina das ciências sociais?

O reconhecimento de “excelência” conferido às revistas dos paí­ses centrais, apresentadas aqui como revistas “internacionais”, cons­titui, pois, uma política oficial organizada pelo Estado brasileiro e instrumentalizada por parte do que se conhece como “comunidade acadêmica”. Cada área possui um comitê eleito pelos pares sem in­tromissão direta do ministro ou do presidente da Capes. Podemos afirmar, sem medo de errar, que se trata, portanto, de uma política que, nos termos da linguagem dominante no campus, é produto do "consenso” entre Estado e pesquisadores. Tal fato torna ainda mais estimulante a busca das causas de tam anha demonstração de colonia­lismo cultural e científico que, indiscutivelmente, possui raízes bem profundas na formação universitária. É possível que, no futuro, esta política seja objeto de merecida ridicularização, demonstração cabal do grau de colonialismo, da mentalidade bocó que organiza a cabeça de importante parcela dos professores universitários.

Portanto, não se trata de um equívoco, mas de uma política tra ­çada pelo Estado e pela chamada “comunidade acadêmica”, pois foi através de ativa participação de seus notáveis que os comitês de área estabeleceram os critérios necessários para classificar as publicações. É preciso recordar que a pós-graduação brasileira teve grande ex­pansão na ditadura e que, a despeito da violência do regime, parte significativa da “comunidade acadêmica” contribuía de maneira ativa ou tácita com os critérios de seu desenvolvimento ainda durante o regime. Em perspectiva histórica é necessário observar que a tran­sição da ditadura para um regime civil (inaugurado em 1985) não tocou nos pontos chaves que fomentavam o sistema de pós-gradu­ação nacional. Muitos anos depois, quando Lula venceu as eleições e muitos esperavam uma ruptura — ainda que parcial — com o velho sistema, a verdade é que nada foi mudado. Ao contrário, o sistema recebeu um reforço financeiro significativo, especialmente no segun-

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do mandato presidencial e, somente agora, no governo da presidente Dilma, é que os recursos voltaram a tornar-se escassos e algum debate sobre a necessidade de mudança começa a surgir. Em suma, podemos afirmar que, a despeito da variação entre épocas de austeri­dade e períodos de relativa bonança, o sistema foi se “aperfeiçoando na direção atual, sob a mitologia de que, finalmente, a universidade pública brasileira estruturou um sistema meritocrático digno deste nome. Enfim, aqueles que publicam mais e, em consequência, são os mais aptos cientificamente, finalmente estão no comando das ações. De fato, nossa vida universitária está organizada nos seus mínimos detalhes, da política da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) até a elaboração do PAD em nossos departamentos, por uma concep­ção que se deu a conhecer como “acadêmica”. Este é o contexto em que podemos constatar a derrota acadêmica do intelectual no interior de nossas universidades, ou seja, a renúncia da ambição intelectual em nome de objetivos modestos orientados pela política oficial de publicação derivada do sistema de avaliação atualmente dominante. Não poderei tra tar desse tema nos limites deste ensaio, mas é pre­ciso dizer que essa derrota acadêmica do intelectual é momentânea e também um claro resultado da correlação de forças conservadoraque nos domina atualmente.

Quando observamos que a maioria das revistas consideradas por todos os campos de conhecimento reconhecem como melhores publi­cações as revistas dos países metropolitanos - consideradas pela alie­nação do professor universitário como “revistas internacionais - po­demos concluir que o colonialismo venceu no campus universitário. O colonialismo assume feições tão destrutivas quanto trágicas desde uma perspectiva intelectual. E o elogio ao “acadêmico no mundo universitário brasileiro tornou-se a melhor expressão do colonialis­mo e representa a derrota acadêmica de toda pretensão intelectual. É, nos term os de Florestan Fernandes, a simulação acadêmica sobroupagem decente.

Essa constatação nos recorda algo fundamental observado pre­cisamente por um dos maiores filósofos brasileiros: Álvaro Vieira Pinto. Esse pensador do ISEB deixou uma importante obra póstuma e, muito antes do sistema atual ganhar musculação, já tinha sido defi-

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nitivamente criticado por ele em seu livro O conceito de tecnologia. Não e ocioso recordar que nosso brilhante filósofo tenha terminado esta monumental obra em abril de 1973, momento em que o sistema de pós-graduação brasileiro começava a viver a grande expansão que, mais tarde, nas duas décadas seguintes, se consolidaria plenamente.

Refletindo sobre a função do filósofo nos países dependentes — na verdade, um raciocínio que devemos estender para todas as áreas das ciências sociais — Álvaro Vieira Pinto alertava sobre o risco de p ra ­ticar uma filosofia que não passava de uma “modalidade de alienação cultural em forma praticamente pura”. Nesse contexto, ele afirma categoricamente que o filósofo, não tendo nada de próprio a pensar, satisfaz-se em respirar os zéfiros divinos provenientes das regiões ocidentais cultas, ricas, pensantes po r direito natural. Algumas con­sequências bizarras, e até cômicas, derivam desta situação”. E prosse­gue. Nos países subdesenvolvidos, o filosofo, como só registra o que foi pensado e dito nos centros metropolitanos, pode ser chamado de tabelião de idéias. A cultura, em conjunto, constitui o cartório dos co­nhecimentos alheios. Obrigado a colecionar e registrar os produtos do pensamento de origem externa, o filósofo na verdade nunca chega ser escritor: não passa de escrevente... Não é preciso acrescentar que fazem desta prerrogativa um valioso título de destaque social. A alie­nação torna-se o melhor sinal da capacidade intelectual. Brilha com mais nitidez esse papel egrégio se o estudioso não se limitar à exclu­siva atividade manducadora, mas se revelar um legítimo expoente do meio desprovido de autoconsciência, engendrando livros, artigos de toda espécie de publicações destinadas a difundir o pensamento dos outros, o que é feito com grande satisfação pelos ressoadores indíge­nas, pois com estes documentos fica comprovado em registro com fé pública seu convívio com a ciência, as letras e as artes”.

Quando a alienação torna-se o melhor sinal da capacidade intelectual é possível afirmar que o colonialismo atingiu seu grau máximo de domínio, na forma de política estatal capaz de disciplinar a atividade do professor. Com muita frequência, o professor universitário afirma que é um ser totalmente livre, que determ ina seu próprio projeto de pesquisa sem interferências de qualquer tipo, e em consequência, tece louvores à “liberdade de cátedra”, enquanto se ajoelha todos os dias

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em sua atividade prática no altar da servidão voluntária. A busca de­senfreada de pontos para seu currículo e para seu program a de pos- graduação pode atingir patamares elevados na exata medida em que ele orienta seu esforço intelectual pelo calendário de publicação das revistas que de maneira alienante chama de “internacionais . Nesse contexto, a política oficial nos últimos anos produziu um resultado que não poderia ser pior: uma quantidade imensa de artigos publica­dos conforma aquilo que as autoridades chamam, sem ruborizar-se, de "aumento da produção científica”, mas que não torna as ciências sociais vitais em nossos países; ao contrário, é a razão de sua pro­funda debilidade. É comum, neste contexto, que uma significativa parcela dos professores não possua projetos consistentes de pesqui­sa, ainda que se abrigue de maneira conveniente em “linhas de pes­quisa” nos programas de pós-graduação como forma de ocultar esta debilidade. Essas linhas não possuem lideranças intelectuais sólidas e, na maioria das vezes, representam apenas um “guarda-chuva” pas­sageiro em que muitos encontram o meio de manter seu isolamento intelectual e falta de compromisso com as grandes questões nacio­nais e os grandes desafios científicos e intelectuais de nossa época. Além disso, outra característica necessária dos projetos de pesquisa e que não são duradouros e não é incomum perceber que, após alguns anos de esforço numa direção, o professor mude radicalmente seu objeto de pesquisa elegendo outra prioridade, originada, geralmen­te, num programa de um professor de uma universidade estrangei­ra. Esses condicionamentos produzem vidas acadêmicas orientadas difusamente, sem efeito acumulativo ao longo do tempo, sem cria­ção de sinergias com áreas afins, sem formação de alunos que sigam esse esforço no futuro e, sobretudo, cria um professor interessado em muitos temas sem aprofundar numa direção. Nas circunstâncias atuais, uma grande parte dos professores dedicados a captar a moda acadêmica originada nos países centrais, independentemente de sua importância ou validez, não percebe que, no máximo, consegue estarcolonialmente atualizada.

Ademais, precisamente ao contrário do que pretende, a conduta derivada da política oficial produz precisamente o professor “tabelião de ideias alheias”, que não passa de mera sucursal de algum projeto de

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pesquisa de um centro de estudos metropolitano, e condenará seu au­tor, quando exitoso, a mero papel coadjuvante. Ele gostaria de parti­cipar da festa e inclusive ser um convidado para jornadas intelectuais nos países centrais, mas o efeito produzido por sua conduta alienante é precisamente o oposto do pretendido: o acadêmico do país metro­politano se mostra formalmente interessado nas "pesquisas” produ­zidas nos países periféricos, mas possui, ao alcance de suas mãos, em seu próprio país, dezenas de quadros treinados na arte da repetição, razão pela qual dispensa o oferecimento voluntário do professor uni­versitário do país periférico. Nas ciências sociais é muito comum que nos congressos realizados nos países centrais não figurem professo­res que trabalham nos países periféricos e que adotam os programas de pesquisa alheios. Há uma razão forte para tal: é que, muitas vezes— como, aliás, nos ensina a História — os cientistas sociais metropoli­tanos estão interessados na originalidade e não na cópia.

A simulação intelectual de que nos falou Florestan Fernandes é precisamente isso: ao contrário do que inicialmente alguém poderia supor, a simulação intelectual não implica em falta de eficiência do professor universitário brasileiro que, nos term os definidos pela Ca­pes, é mesmo altamente produtivo. É até comovente observar como alguns colegas se entregam com grande paixão à tarefa de publicar, e como verdadeiramente desafiam a imaginação na arte de copiar, no esforço por citar exaustivamente os cânones de moda na academia, em seguir despudoradamente um program a de pesquisa de que m al sabem a origem e nem imaginam o fim para o qual foi originaria­mente concebido numa universidade do país central. Este professor, orgulhoso de exibir seu Currículo Lattes que lhe permite, por m eio de editais, conseguir alguns recursos para seguir “pesquisando”, é tudo, menos um sujeito preguiçoso. E é precisamente por isso mes­mo que o sistema mundial de produção de conhecimento necessita dele e até alimenta o mito de que “tudo” que ele conseguiu até o momento é produto do “mérito” que imagina possuir. Portanto, esse trabalho não é inútil, pois é peça indispensável no sistema mundial de produ­ção de conhecimento; tampouco a simulação intelectual é inútil, pois é, finalmente, responsável por manter a atenção e o esforço do p ro ­fessor meritocrático sob controle, impedindo-o de buscar as causas

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de sua alienação, de estabelecer vínculos com as grandes questões do mundo da cultura e da ciência, todas sempre mais dramáticas nos países da periferia capitalista.

Alienação científica e meritocraciaCertamente os defensores deste sistema julgam que as revistas

dos países centrais são mais “competitivas” e com certa segurança concluem que, caso um professor brasileiro consiga emplacar um ar­tigo em qualquer delas, configurar-se-ia um reconhecimento inequí­voco de qualidade, orientado por um critério de “mérito” que todos nós, supostamente, devemos defender. Quanto mais alta a concorrên­cia, pensam eles, maior a qualidade dos artigos selecionados e maior o mérito científico.

Há que duvidar desta simpática “teoria”. E há também bons mo­tivos para tal. Um deles ganhou projeção mundial nos meios inte­lectuais, mas foi comodamente ignorado no mundo acadêmico. Alan Sokal, físico de formação, enviou para uma prestigiosa revista esta­dunidense, chamada Social Text, um artigo denominado Transgredir as fronteiras: para uma hermenêutica transformadora da gravidade quânti­ca que, na verdade, segundo o próprio autor, estava repleto de absur­dos e de absoluta falta de lógica. Contudo, para sua surpresa, o artigo teve plena aceitação e foi logo publicado em um número especial da até então conceituada revista. Este episódio é menos raro do que po­demos supor. Alguns artigos escritos com objetivo oposto, embora também repletos de inconsistências e falta de lógica, são aceitos e pu­blicados em prestigiosas revistas se os textos repetem ou participam da onda dominante. Este fato é bastante comum nas ciências sociais, ainda que possa receber filtros mais rigorosos nas ciências exatas, especialmente após a “brincadeira” de Sokal.

O propósito de Sokal, entre outros, era demonstrar que a serie­dade das publicações festejadas nem sempre coincide com o juízo que a maioria dos professores possui em relação ao conselho editorial e às práticas necessárias para selecionar um determinado artigo. De minha parte, mesmo não ignorando o episódio de Sokal, aceito pre­cisamente o suposto de que as revistas consideradas “internacionais” pela cabeça alienada dos professores universitários brasileiros são

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mesmo mais competitivas e, via de regra, selecionam os melhores artigos. Elas efetivamente recebem uma quantidade enorme de arti­gos de todas as partes do mundo e, portanto, publicam autores mais consistentes que aquelas revistas menos festejadas e reconhecidas. Em algumas universidades dos países periféricos, os professores en­contram apoios financeiros para as traduções em inglês e, em alguns programas, ministram menos aulas se publicam acima da média. En­fim, contam com instrumentos de que os comuns dos mortais não podem dispor. Por esta razão, é a construção da reputação das revis­tas “internacionais” que mais me interessa, e torna-se absolutamen­te necessário buscar os motivos pelos quais elas chegaram até esta condição. Ademais, não podemos desconhecer que em toda periferia capitalista se organizou o sistema de publicação em revistas "inter­nacionais”, de tal forma que, no limite, quem deve explicações sou eu: afinal, se no mundo inteiro as coisas funcionam assim, por que no Brasil atuaríamos de maneira diferente?

Minhas razões se limitam a duas. A prim eira é que o esforço intelectual, quando não é mera simulação, serve como importante insumo para a pesquisa dos países metropolitanos e, como conse- quencia, empobrece o país periferico. A segunda é que, ao proceder desta forma, os professores alienam seu program a de pesquisa. No limite, term inam por mutilá-lo em favor de program as alheios, sem vínculo com transformações vitais em seu próprio país, que deveria- como de fato ocorre com seus pares nos países centrais que ele não tenta seguir - estar orientado por motivações endógenas, critério sem dúvida alguma absolutamente vital nos países centrais. Por­tanto, o professor-pesquisador” do país periférico atua satelizado, orientado por programas que não compreende cabalmente e sobre os quais tampouco pode influenciar de maneira decisiva. Nem mes­mo a permanência por quatro anos num país central, quando realiza seus estudos de doutorado ou pos-doutoramento, o faz compreender como funciona seu sistema científico-produtivo; com muita frequên­cia ele vive numa universidade estrangeira sem entender o contex­to institucional ao qual esta submetido e, quando desprende algum esforço para compreender as instituições em que se encontra, não capta senão aspectos parciais e anedóticos em questão.

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A busca desenfreada por pontos nas revistas indexadas produziu outro fenômeno importante: não raro, os professores passaram a or­ganizar sua vida no terreno da pesquisa em função da publicação, com sérias implicações para o desenvolvimento intelectual e cientifico do país periférico. A primeira delas é que, dada a diversidade de revistas, a maior parte dos professores orienta sua vida na pesquisa em função do calendário de prazos elaborado pelas publicações e é obrigado a fazê-lo a partir de temas distintos, de acordo com a diversidade delas, e com a velocidade de quem troca de camisa. O resultado é claro: o acúmulo teórico é diminuto e os programas de pesquisa, especial­mente na área das ciências humanas, tornam-se precários, efêmeros. Vivemos, de fato, um domínio do efêmero que “evoluiu de acordo com as modas acadêmicas e as linhas de financiamento disponíveis. Grandes projetos de pesquisa, com horizontes temporais mais am­plos, com ambição intelectual e orientados por fins de crítica social, por exemplo, são assim descartados sem qualquer consideração. Não são poucos os professores que tiveram diante de si um projeto ambi­cioso de pesquisa quando desenvolviam seus respectivos doutorados e, depois disso, jamais voltaram a buscar um program a de pesquisarealmente consistente e de longo prazo.

O tema da validação social da produção científica está longe de ser levado em consideração. Por isso é realmente muito mais cômodo considerar que os mais aptos para julgar a qualidade do trabalho de pesquisa e pós-graduação são os próprios pares, todos engolfados na mesma lógica, longe de critérios sociais de validação do conhe­cimento e da pesquisa. Nesse sistema de pares, mais do que críticos atentos, o professor consegue cumplicidade para as suas deficiências e garante, em troca, o mesmo tratam ento quando ele submeter um artigo que pretende aprovação e posterior publicação. Ao contrário do que pode parecer, a utilização de palavras chaves, de seguimento colonial dos modismos acadêmicos dos países metropolitanos, é o ca­minho seguro para merecer aprovação do artigo. Eis aqui mais uma razão pela qual é necessário alimentar o mito meritocrático nas uni­versidades, pois com ele se garante que apenas podem julgar douto­res aqueles que também são doutores. A meritocracia funciona, neste contexto, como uma boa justificativa para m anter tudo como esta

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nos corredores das universidades, e aquele que ousar apresentar um critério social para a validação do conhecimento produzido nas insti­tuições terá que prestar contas diante deste argumento. As patentes, por exemplo, jamais são invocadas para comprovar eficiencia na pes­quisa científica e sim a publicação de artigos. Completa-se, portanto, um sistema terrível no qual o professor destina parte importante de seu esforço para aumentar a “produção científica” tal qual concebe a Capes. Outros dirigem seu esforço na mera prestação de serviços à indústria e somente subsidiariamente estão preocupados com publi­cações e, finalmente, também existem aqueles que mal conseguem simular na direção dominante. Em qualquer caso, inexiste o critério da soberania no terreno científico e tecnológico.

Publicar lá, pagar aquiÕ professor fissurado por publicar nas revistas que colonialmen-

te considera “internacionais” não tem a menor noção sobre as impli­cações deste procedimento em termos de riqueza social. Ele julga que seu comportamento e o apoio que dá a política oficial e essencial­mente correto e nem pode dar-se conta, dada sua imensa alienação, das graves consequências que está produzindo para o país. Na ver­dade, antes que desenvolver, ele ajuda a sangrar o país. A economia política tem seus caprichos, é preciso reconhecer. A universidade não é um centro de saber neutro, sem férreos vínculos sociais. Ao con­trário, mesmo aquele professor que se sente completamente alheio às questões sociais, culturais e econômicas, é prisioneiro destas cir­cunstâncias.

Uma das características dos países dependentes é que pagam royalties pelo uso de patentes. O Brasil, por exemplo, paga todos os anos bilhões de dólares pelo uso de licenças e patentes para as em­presas multinacionais. Segundo informação do Banco Central, o pa­gamento de royalties cresceu de maneira acentuada a partir de 1994, precisamente quando começou um novo pacto de classe que sustenta o chamado Plano Real. A informação a seguir demonstra a rápida ascensão da sangria financeira do país, precisamente quando também se aplicou no terreno da educação o sistema de avaliação e publica­ção, ainda quando era ministro Paulo Renato de Souza.

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Neste período - de 1994 a 2010 - o Brasil pagou quase 22 bi­lhões de dólares de royalties, cifra que não pode ser desprezada por ninguém. Os defensores do sistema atual se apressarão em afirmar que a abertura da economia é a causa fundamental do elevado e per­sistente gasto com licenças e patentes. Em parte é verdade, mas pre­cisamente é esta desnacionalização do setor produtivo que implica em maior importância para o desenvolvimento científico e tecnoló­gico; ou seja, posto que a educação é um subsistema da economia, a “abertura” do mercado nacional para as empresas multinacionais deixou ainda mais claro o raquitismo científico do país. A compara­ção entre a “preocupação” do empresário nacional diante da potência da multinacional contrasta com o orgulho universitário com seu sis­tema de pós-graduação e seus projetos científicos. A princípio tudo sugere que há um misterioso problema de se converter este saber universitário em patentes ou serviços para elevar a competitividade da indústria...

O grau de desnacionalização da indústria em um país dependen­te é historicamente elevado e é evidente que, se por um lado faz a fes­ta dos comerciantes que seguem acumulando dinheiro com as impor­tações, por outro aprofunda a dependência tecnológica e científica do país. Outros indicadores mostram também, de maneira clara, que o Brasil exibe superávit comercial naqueles produtos de ‘baixa densi­dade tecnológica” e gritantes déficits para aqueles produtos de alta e média densidade tecnológica. Recentemente uma fonte insuspeita de “nacionalismo pessimista" divulgou os dados referentes ao comércio exterior brasileiro até 2010. Segundo o IEDI, o Brasil sofre com ele­vado déficit comercial para os produtos que, seguindo uma metodo­logia da OCDE, são considerados de “alta intensidade tecnológica”. Exceto para o setor de aeronaves, o país apresenta gritantes déficits (farmacêutica, informática e comunicações, eletrônica de consumo e componentes eletrônicos, equipamentos médicos e de precisão). No setor classificado como de “media-alta intensidade tecnologica , os números revelam também déficit estrutural no setor de bens de ca­pital e na indústria automobilística. Ganha destaque no relatorio o setor de química, com elevado déficit comercial. O único setor em que existe superávit comercial é precisamente o de baixa-densidade

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tecnológica (alimentos, celulose, etc.), que, finalmente, é responsável pelo superávit comercial brasileiro, cada ano mais modesto.

Enfim, precisamente quando as autoridades educacionais indi­cam que temos um “sólido sistema de pós-graduação” funcionando, a dependência tecnológica cresce; também cresce o gasto financeiro com patentes e marcas e aparece um terrível resultado no balanço de pagamentos quando analisamos as trocas internacionais do país. Os defensores do atual sistema de pós-graduação poderiam alegar que a situação seria ainda pior se não tivéssemos um sistema de douto­rados e mestrados como atualmente exibimos. Ocorre que para re­ferendar esta hipótese as universidades teriam que exibir o número de patentes e, no caso da UFSC, os números indicam que temos ape­nas... uma (l) patente. As fundações possuem outras, mas estas nada rendem para a instituição. A ironia da história fica por conta do fato de què a atual gestão na UFSC apresentou-se como expressão de uma “Universidade do Século XXI”, bordão que, nos marcos do am­biente provinciano e colonialista a que estamos submetidos, de fato não deixa de ser uma boa peça publicitária, mas obviamente em nada contribuiu com o desenvolvimento científico e cultural do país. Em poucas palavras: é expressão de uma orientação bocó!

O fetichismo aparece claramente quando observamos que, para enfrentar o desafio científico de um país dependente, o governo e a maioria dos professores aceitam a hipótese de que o país precisa investir em inovação. De fato, a maioria dos eventos oficiais promo­vidos pelo governo ou mesmo por centros tecnológicos das universi­dades públicas sublinham a necessidade de uma política de inovação. O recurso de caráter apologético à inovação não poderia ser mais expressivo da indigência teórica e do grau de alienação que prospera no campus universitário. Inicialmente esta ideologia tentava amparo nas formulações de J. A. Schumpeter — que estão obviamente longe de representar um sustento teórico necessário para rivalizar com o decisivo tema da revolução científico-técnica — mas em tempos re­centes nem mesmo o economista moraviano tem sido referência para amparar a errática e colonial política científica nacional. A referência à inovação é simplesmente um recurso ideológico destinado a ocultar o raquitismo científico e tecnológico dos países periféricos no mundo

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capitálista, fato que levou até mesmo ao empobrecimento do debate e teorização da política industrial, quase reduzida a subsídios estatais aos setores perdedores da concorrência internacional.

Há, também, um dado relevante: as empresas que deveriam ser o coração do processo de inovação realmente investem em ciência e tecnologia? Os dados da Pintec-2008 indicam os limites claros des­ta ideologia, pois apenas 14% das pessoas ocupadas em pesquisa e desenvolvimento nas empresas pesquisadas passaram por cursos de pós-graduação e os recursos investidos são bastante modestos. Na indústria, apenas 9,1% possuem cursos de pós-graduaçao.

Como foi possível criar um professor universitário que ignora questões elementares do mundo contemporâneo - como o crescente pagamento de royalties - especialista em ignorar o imenso desafio cien­tífico e tecnológico dos países dependentes, simulando produção de conhecimento e, mais triste ainda, limitando-se ao papel de um impro­dutivo pequeno-burguês que sai à procura de citações, sugerindo que para ele é mais importante figurar no pé de página de algum artigo eminglês do que produzir ciência para seu país?

É claro que tamanho problema não é ignorado por todas as au­toridades científicas do Brasil, fato que torna ainda mais ilustrati­vo nosso problema. Em audiência pública em 27 de abril de 2011, o ministro Aloísio Mercadante afirmou que “produção cientifica nao significa necessariamente inovação”. Na mesma oportunidade M er­cadante tocou no problema, ainda que tangencialmente: mencionou como exemplo a copaíba (um anti-inflamatório cicatrizante) cujos estudos sobre o óleo de copaíba (Copaifera sP) são majoritariamente de cientistas brasileiros (76% dos estudos) e no entanto, das 35 pa tentes nos últimos dez anos não há uma sequer com registro nacio­nal: EUA detêm 17, Japão 8, União Européia 3, China 2... O Brasil não tem uma patente sequer deste produto genuinamente naciona e que mereceu análise e pesquisa de nosso sistema de pós-graduaçao. Há outros exemplos nessa mesma direção, mas creio que o citado e contundente para elucidar o erro elementar da política científica emcurso no país.O ministro M ercadante mencionou um velho problema, que se arrasta sem solução há quase 20 anos, contando com o apoio do co-

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lonialismo científico e cultural de órgãos agora subordinados a sua autoridade política. É importante buscar antecedentes deste caso que chamou a atenção de um ministro de Estado.

Em 2003, o professor Paulo Imamura, do Instituto de Química da Unicamp, alertou para a questão decisiva. Conhecedor do caráter “empreendedor” do empresariado brasileiro, Inam ura afirmou que era “pessimista na possibilidade de a indústria nacional investir na pesquisa e na viabilização de medicamentos...” Ele estava testando a copaíba em nove tipos de câncer, mas não teve recursos para seguir na pesquisa, que era fruto de um doutoramento (aluna Ines Lunardi), e que foi patenteado por japoneses em 1992.

O professor Inam ura foi certeiro ao afirmar que, “no Brasil, cos­tumamos sintetizar substâncias academicamente e publicar nossos trabalhos quando há ocorrências de grandes indústrias do exterior que se apropriam dos estudos realizados no chamado terceiro mun­do, principalmente na área de fitoquímica. Pelo menos no Instituto de Química, já vejo a preocupação de resguardar as pesquisas não apenas como forma de publicação...”. O professor Inamura referia-se, obviamente, à necessidade de patentes, mas podemos concluir, após a informação do ministro, que nada prosperou e tudo permaneceu como “preocupação” isolada de um cientista brasileiro que desenvol­ve suas atividades em uma universidade pública, (h ttp :// www.uni- camp.br/unicamp/unicamp Jhoje/jornalPD F/213-pag05.pdf).

O ministro Mercadante solicitou uma “mudança de cultura” para enfrentar esta situação e apelou para o fato de que devemos buscar mais avidamente o registro de patentes, mas, curiosamente, não ou­sou tocar na necessidade de mudar radicalmente a política de publi­cações e de hierarquização que atualmente inibe o desenvolvimento científico nacional e favorece, colonialmente, o sistema dominado pe­las empresas multinacionais e os estados metropolitanos. O ministro mencionou apenas um caso, mas é fácil buscar inúmeros outros cujas consequências políticas, econômicas, sociais e culturais não somente nada rendem para o país como representam o caminho pelo qual o consórcio mundial entre empresa-universidade-estado captura o co­nhecimento nacional incentivando as publicações em “revistas inter­nacionais”.

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A despeito das numerosas evidências, não observamos qualquer movimento ou medida para mudar radical e rapidamente este estado de coisas. As regras dos programas de pós-graduação seguem sen­do orientadas pelo colonialismo cultural e científico com acentuado rigor. Uma mudança simples, que está ao alcance do ministro e que poderia ser sugerida por qualquer reitor, seria a valorização de revis­tas nacionais com pontuação superior às estrangeiras. Curiosamente não é assim, pois uma publicação em revista estrangeira vale mais do que uma publicação em revista nacional!!!!

Na área de química, o Qualis Capes não reconhece como Al nenhuma revista brasileira. Os resultados desta política parecem es­tar a vista e definem, mais do que em qualquer outro argumento, a importância do colonialismo para o sistema mundial de produção de conhecimento de que falaremos a seguir.

O sistema mundial de produção de conhecimentoOs ministros reclamam da situação e os professores universitá­

rios reforçam seu complexo de inferioridade, mas não estão dispos­tos a mudar radicalmente os critérios que orientam o seu cotidiano. A chamada “publicação internacional” funciona como um poderoso fetiche na vida do autoproclamado “professor-pesquisador e ele es­quece completa e convenientemente que o poder de um artigo em inglês, publicado em uma revista nacional dos Estados Unidos ou Alemanha, foi fabricado por suas próprias mãos. Esquece que o preço elevado que paga pelo medicamento numa farmácia contou também com seu esforço, foi também criado por suas próprias mãos (e cé­rebro) e que ganha em sua cabeça um poder descomunal, tal como He gel descreveu a relação entre o português colonizador e o africano colonizado.

Vamos supor que as revistas consideradas melhores pela cabeça colonizada do professor brasileiro sejam realmente as melhores. O critério estabelecido pelo estado-nacional reforça a tendência de que os professores guiem sua estratégia de publicação pelos tempos e te­mas dominantes nas revistas estadunidenses, inglesas ou germânicas. O professor do país dependente, nesse caso, o professor brasileiro, reforça a qualidade do país central e, no mesmo ato, debilita a revista

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de seu próprio país. Ele está orientado pelo m ito meritocrático que é turbinado pela dose de colonialismo cultural e científico, tal como formulou Orlando Fals Borda na década de setenta, e é compelido pelo órgão do ministério de ciência e tecnologia do Brasil a publicar “lá fora”, em inglês, como se tal procedimento fosse efetivamente o grau máximo da qualificação intelectual.

Ao optar pela publicação nas revistas nacionais dos países cen­trais, o professor universitário brasileiro cava um abismo sob seus próprios pés. Ele raras vezes considera que sua opção pela publica­ção em revistas dos países centrais debilita o ambiente em que efe­tivamente trabalha, sabotando o diálogo com grupos nacionais de pesquisa, debilitando revistas nacionais que são indispensáveis em algumas áreas e, em alguns casos, fundamentais para potencializar a dinâmica do trabalho solitário e individual que, lamentavelmen­te, domina plenamente a vida do professor universitário brasileiro, pouco afeito ao trabalho coletivo e de longo prazo. Ele tampouco entende que, com esta política — que lhe aparece como atitude indivi­dual meritória - está, na prática, fortalecendo o ambiente dos países centrais que já contam com um volume de recursos, uma tradição e, além disso, com o esforço de além-mar para seguir avançando cada vez mais na fronteira do conhecimento. Ele raram ente percebe que esse artigo ou ensaio cumpre a função de “insumo” no país central, permitindo a um grupo de pesquisa ou a um intelectual metropoli­tano fortalecer seu trabalho que, em futuro breve, lhe aparecerá sob a forma de um novo livro ou campo de trabalho, uma “novidade” que captará toda sua atenção e energia, fortalecendo seu complexo de inferioridade, comprovado pelo fato de que ou tra novidade apareceu num país central.

Além de debilitar a revista nacional, ele esquece que aquela re ­vista estadunidense, que na sua cabeça aparece como “revista in ter­nacional”, faz parte de um sistema mundial de produção de conhecimento em que ele figura apenas como mais um operário na linha de p ro ­dução e, embora se julgue muito distante do mundo do fabril está, na verdade, muito próximo dele. Há, de fato, um grave retrocesso nesse aspecto, pois se é claro que as condições de vida e trabalho de um professor universitário do sistema público em nada se asseme-

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Iham à vida da classe operária, é im portante registrar que, no caso dos professores, nós temos que buscar as condições de trabalho por meio de editais, fato que transform a uma austeridade imposta aos docentes em meritocracia. Enfim, posto que o professor julga que estamos diante de uma política de austeridade, que um país subde­senvolvido não pode mesmo oferecer as condições mínimas para o desenvolvimento do trabalho intelectual, ele aceita com bom humor a política que o leva a disputar com os pares os minguados recursos em editais universais. Os vencedores julgam então ser melhores que os colegas porque conseguiram, por meio de editais, alguns reais para comprar computadores, pagar passagens e diárias em algumas viagens e im portar uma dezena de livros. Eis a base econômica domérito em nossas universidades.

Tampouco passa pela cabeça do professor que pretende publicar numa revista de ciências sociais de um país metropolitano que ele raramente será convidado para o seleto grupo de especialistas que controla a revista por ele considerada “internacional . No cotidiano, ele sonha com um convite para participar de um “seminário interna­cional” destinado a fortalecer precisamente o program a de pesquisa que se originou e se reproduz no país central.

Mais grave e nocivo ainda: ele esquece a própria experiência! Es­quece, especialmente no caso das ciências sociais, que os únicos mo­mentos de glória do pensamento nacional foram precisamente quan­do nossos professores se dedicaram aos temas da sociedade nacional sem qualquer preocupação com “aparecer” ou “vencer” lá fora. Dessa forma, ele julga que não temos tradição a defender e que raros foram os momentos de glória que, intimamente, aspira. Embora deseje ar­dentemente brilhar como alguns “mitos” que habitam sua cabeça, ele esquece que Gilberto Freire e sua experiência nos Estados Unidos na década de 30, que os teóricos da teoria do subdesenvolvimento, que a crítica marxista da teoria da dependência ao desenvolvimentismo, são todos exemplos de lucidez dos pensadores latino-americanos que refletiam sobre a sociedade nacional. Eles não eram e tampou­co se comportavam como verdadeiros tabeliães de ideias alheias , na certeira e terrível expressão de Álvaro Vieira Pinto, que orien­tam sua atividade de “pesquisa” apenas reproduzindo program as de

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pesquisa, sem dominá-las completamente, agindo como apêndices periféricos de program as que não podem influenciar e esquecendo que, uma vez descartados pelo professor m etropolitano, ficarão no completo abandono e com sentimento de ter “entrado numa furada”. Para manter-se em pé, não restará ao professor colonizado senão seguir na senda inaugurada pelo guru m etropolitano em sua nova perspectiva, como quem se aferra ao único sopro de vida, ou então afundar na frustração de ter dedicado muitos anos (pesquisa, ensino e extensão) ao trabalho alheio, na maioria das vezes sem ter tido a oportunidade de um contato mais estreito com aquele que figura como seu mestre. É o triste caso da “servidão voluntária” que ele aceita como um destino,

Ao esquecer a experiência exitosa que existe em seu próprio país, o professor universitário se julga ingenuam ente um “cidadão do mundo”, metáfora kantiana completamente descontextualizada e insistentemente utilizada como o melhor re tra to do colonizado, sempre preocupado em conquistar um momento estelar, papagaian­do, como dizia Darcy Ribeiro, "teorias” que não log ra dominar cabal­mente e, quando exitoso, poderá apenas figurar como um repetidor.

Ainda que aparentemente em minoria, não sou o primeiro em questionar uma verdade estabelecida por nossa mentalidade colo­nial, derivação necessária de nossa condição de país dependente. Mario Schemberg, um homem com muito mais autoridade que a imensa maioria de nós, já alertou para os problemas atuais deriva­dos da política oficial, quando eles apenas estavam surgindo, numa luminosa intervenção que acertadamente denominou A formação da mentalidade científica. Disse Schemberg: “H á uma diferença muito grande entre fazer uma tese e fazer Ciência. Nós fazíamos Ciên­cia. M uitas vezes os trabalhos nem eram publicados. Fermi não era muito favorável à publicação de trabalhos. Achava que a pessoa de­via publicar muito pouco. Devia, sim, ter muitas ideias e guardá-las, escritas, em sua gaveta, e não publicá-las à toa. Devia publicá-las apenas quando fossem ajudar o desenvolvimento da Ciência.”

Ademais, sem o espírito de Poliana que a maioria possui, sal­picou: “Tomemos a reforma universitária, por exemplo. Será que a nossa universidade, depois da reforma universitária, tornou-se efi­

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ciente para desenvolver um pensamento brasileiro? Creio que muitos setores pioraram, setores que antes eram até razoáveis. Confundiu- se, infelizmente, a pesquisa científica com a elaboração de teses. E, no entanto, não se exige de uma tese que ela realmente traga uma contribuição para a Ciência. A tese é um instrumento para se conse­guir um título, especialmente o doutoramento.”

Agora, a “confusão” consiste em supor que a publicação de arti­gos em revistas indexadas implica em inevitáveis sinergias em favor do desenvolvimento científico de um país dependente. A “confusão” também consiste em supor que estamos criando uma universidade de “excelência” porque alguns professores publicam muito e logram os pontos necessários para m anter seu program a de pós-graduação entre os melhores avaliados pelo sistema dominante.

Já indicamos o caráter nocivo do sistema atual de publicação e da política geral de avaliação da pós-graduação para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia em um país dependente como o Brasil. Nas ciências sociais, o estrago produzido não é menor do que aquele que podemos observar na área da química ou da biologia. Nas ciências sociais o colonialismo domina amplamente, a tal ponto que ninguém começa uma tese ou dissertação fora do tradicional ‘ Wallerstein dis­se”, “Derrida afirmou”, ou “segundo John Raws”... A realidade nacio­nal e os autores nacionais com profunda reflexão sobre os problemas de nossos países perderam espaço, e outra quantidade importante deles é simplesmente ignorada, como se jamais tivesse existido. Da mesma forma, intelectuais de grande expressão na América Latina são completamente ignorados no Brasil, como se simplesmente não existissem. Por que se produziu e se reproduz semelhante fenômeno? Ora, enquanto em Paris Derrida dirige seu olhar para o olho de seu gato e aqui a mentalidade bocó, alienada, funda imediatamente linhas de pesquisa subsidiárias sobre a “animalidade”, destinadas a reprodu­zir, na periferia, temáticas que surgiram como se realmente fossem expressão do melhor da cultura francesa ou europeia, autores decisi­vos são ignorados. O brilho de um representa o ostracismo de outro!

No contexto atual, teríamos que subordinar a política de publi­cação e de hierarquização colocando as revistas latino-americanas com grande pontuação, política destinada a aproveitar as sinergias

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derivadas do processo de integração em curso na região, que curio­samente ocupa muito mais a atenção dos homens da política e do mundo dos negócios do que a dos professores universitários emba­lados na alienação cultural e dominação científica a que estão subor­dinados.

Por que uma medida simples como a eliminação da hierarquiza­ção multinacional das revistas não é tomada? P or que uma medida que não receberia contestação da “comunidade internacional” não é rapidamente mudada? Porque destruiria o mito da meritocracia e a ideia segundo a qual temos que render contas apenas para a comu­nidade acadêmica, sem validação social. No entanto, não alimento ilusões a respeito. Essas mudanças exigem um projeto nacional-re- volucionáno que ainda não existe na sociedade brasileira. Por isso mesmo, a atual universidade é absolutamente funcional à ordem do­minante e jamais um anacronismo.

É por isso que medidas simples não podem ser tomadas. A resis­tência a mudanças, ainda que pequenas, revela que somente diante de grandes transformações sociais é que as instituições poderão mudar. E todos nós sabemos que embora exista um combate para fazer algo aqui e agora dentro dos estreitos muros universitários, será das ruas que efetivamente surgirão as energias capazes de mudar substancial­mente a vida universitária em favor de um clima intelectual digno deste nome e de revitalizar a função social da universidade a partir dos interesses das maiorias e de uma completa superação do subde­senvolvimento e da dependência.