CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE: A ALEMANHA NOS BOLETINS SEMANAIS DE JÚLIO MESQUITA (1914 … Seminarios...

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358 CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE: A ALEMANHA NOS BOLETINS SEMANAIS DE JÚLIO MESQUITA (1914-1915) Carlos Roberto de Melo Almeida (UNESP/FCL-Assis), [email protected] Resumo: O jornal O Estado de S. Paulo, importante lugar de sociabilidade entre intelectuais durante as décadas de 1910-1920, acompanhou a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) por meio dos artigos semanais do seu diretor. Os Boletins Semanais construíram uma dada imagem da guerra e dos países envolvidos compartilhadas por leitores e assinantes. Objetiva- se, em pesquisa de mestrado financiada pela FAPESP e sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Tania Regina de Luca, efetuar a análise sistemática do conjunto dos artigos publicados pelo diretor d’O Estado. Os resultados parciais da pesquisa indicam que a transição dos anos 1914-1915 marcou a sedimentação das imagens relativas às duas principais potências envolvidas no conflito: França e Alemanha. O presente texto, síntese do primeiro capítulo da dissertação, visa apresentar os elementos utilizados para a constituição da identidade conferida à Alemanha e aos alemães ao identificá-los com a barbárie, bem como as conseqüências sociais e econômicas decorrentes desta posição editorial do matutino paulista frente à pátria de Goethe. Palavras-chave: Imprensa, Júlio Mesquita, Alemanha.

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CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE: A ALEMANHA NOS BOLETINS

SEMANAIS DE JÚLIO MESQUITA (1914-1915)

Carlos Roberto de Melo Almeida (UNESP/FCL-Assis), [email protected]

Resumo: O jornal O Estado de S. Paulo, importante lugar de sociabilidade entre intelectuais

durante as décadas de 1910-1920, acompanhou a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) por

meio dos artigos semanais do seu diretor. Os Boletins Semanais construíram uma dada

imagem da guerra e dos países envolvidos compartilhadas por leitores e assinantes. Objetiva-

se, em pesquisa de mestrado financiada pela FAPESP e sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Tania

Regina de Luca, efetuar a análise sistemática do conjunto dos artigos publicados pelo diretor

d’O Estado. Os resultados parciais da pesquisa indicam que a transição dos anos 1914-1915

marcou a sedimentação das imagens relativas às duas principais potências envolvidas no

conflito: França e Alemanha. O presente texto, síntese do primeiro capítulo da dissertação,

visa apresentar os elementos utilizados para a constituição da identidade conferida à

Alemanha e aos alemães ao identificá-los com a barbárie, bem como as conseqüências sociais

e econômicas decorrentes desta posição editorial do matutino paulista frente à pátria de

Goethe.

Palavras-chave: Imprensa, Júlio Mesquita, Alemanha.

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Introdução: de Sarajevo à Guerra de 1914

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918), cujo centenário tem sido celebrado entre as

diversas nações que nela se envolveram, foi causada, entre outros motivos, pelo acirramento

das disputas entre as principais potências europeias do período: a questão marroquina, o

revanchismo francês em torno da Alsácia-Lorena, as disputas colônias e as então recentes

guerras balcânicas subiram cada vez mais o tom dos discursos diplomáticos e provocaram

atritos para os quais a imprensa da época permaneceu atenta.

Contudo, foi somente a partir do assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro, em

28 de junho de 1914 em Sarajevo, que as potências da Europa efetivamente ativaram suas

alianças para evitar a explosão de um novo conflito. Em razão delas, todavia, a Europa

marchou para a catástrofe (HASTINGS, 2014): no final de julho o Império Austro-Húngaro

declarou guerra contra a Sérvia, a qual recebeu o apoio russo. Na Europa ocidental, aliança

entre os impérios Austro-Húngaro e Alemão trouxeram à cena a República francesa, contra a

qual Guilherme II aplicou o plano Schlieffen, que propunha a invasão da Bélgica, cuja

neutralidade estava garantida por tratados estabelecidos entre as principais nações do

continente, como estratégia para alcançar Paris (TUCHMAN, 1994).

A violação do território belga, por sua vez, foi a justificativa da entrada da Inglaterra

ao lado da Rússia e da França no dia 2 de agosto, conduzindo o conflito à proporções

continentais. Decorre dessa dimensão o epíteto utilizado pelas gerações que vivenciaram o

evento: a Grande Guerra.

A guerra e a imprensa brasileira: Júlio Mesquita e os Boletins Semanais

A crescente tensão nas relações internacionais a partir do atentado de Sarajevo e as

posteriores declarações de guerra foram acompanhadas pela imprensa da época. No Brasil, o

jornal O Estado de S. Paulo, que nas décadas anteriores empreendeu um esforço

modernizador (LUCA, 1999, p. 37-38), passou a cobrir as notícias sobre o conflito europeu

sob o título “A situação na Europa: o conflito austro-sérvio”,1 que se alterou para “A

conflagração”.

Ao lado das reportagens de capa e da publicação dos telegramas das agências de

notícias europeias, foram publicados comentários do diretor e

1 In: O Estado de S. Paulo, 27 jul. 1914, capa.

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proprietário do jornal, Júlio Mesquita, acerca da guerra em curso na Europa. Em 6 de agosto

de 1914, durante a primeira semana da guerra, o texto apareceu pela primeira vez nas páginas

do jornal: sem assinatura e sob um título comum – “A Guerra” –, objetivava comentar as

notícias mais importantes da semana. A primeira crônica foi publicada diretamente, sem os

telegramas que passaram a precedê-la nas semanas seguintes. A partir da segunda publicação,

em 10 de agosto daquele ano, os comentários passaram a sair sob o título “Boletim Semanal

da Guerra (de acordo com os nossos telegramas)”.

A partir desta data a crônica da guerra passou a ser semanal, saindo às segundas-

feiras na terceira página do jornal e precedida pela apresentação cronológica dos telegramas

publicados na última semana. Assim, as notícias consideradas relevantes eram descritas, de

maneira pretensamente neutra, na lista dos telegramas; o texto do diretor do Estado, por sua

vez, procurava explicar as notícias selecionadas, como afirmou no dia 31 de agosto de 1914

ao escrever que seus Boletins “não dão soluções, nem se ditam sentenças, mas somente se

procuram explicações plausíveis”.2

A iniciativa das crônicas se deu quer em razão da relevância do momento

internacional, quer pela oportunidade de empreender, via comentários acerca da guerra na

Europa, as batalhas políticas e intelectuais nas quais estava envolvido o diretor d’O Estado de

S. Paulo: ao assumir em seus Boletins a postura por ele chamada antimilitarista por meio da

qual, como afirmou em 21 de dezembro de daquele ano, se colocava contra qualquer forma de

militarismo – no Brasil ou na Europa – colocou em evidencia que, além da percepção acerca

da relevância do guerra europeia, os comentários permitiriam formar uma nova frente na

batalha contra a política do Presidente Hermes, no bojo das eleições presidenciais de

novembro daquele ano (DUARTE, 1964, p. 139-320).

Sem descuidar, contudo, dos limites intrínsecos a essa escritura que se efetivava no

calor dos acontecimentos. Nesse sentido, Mesquita admitia os limites da sua redação: além da

dependência das notícias via telégrafo ou imprensa internacional, não ocultava a seleção

operada sobre os mesmos, ao mesmo tempo em que declarava suas preferências e

desconfianças.3

2 Idem. In: O Estado de S. Paulo, 31 ago. 1914, p. 3.

3 Assim, procurou justificar aos leitores a preferência pelos telegramas de Paris e Londres lançando mão de dois argumentos: o primeiro se referia à maior freqüência com que eram recebidos, ao passo

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O seu trabalho, portanto, e a especificidade do seu texto, estão no caráter

interpretativo diante do farto material que circulava na imprensa da época. Sua interpretação,

contudo, deitava raízes em sua postura diante do conflito e nos objetivos do jornal.

Acerca do relevo conferido pelos leitores e assinantes aos comentários do diretor do

matutino, afirma Caldeira (2015, p. 209):

Em poucas semanas, a coluna editada pelo proprietário do jornal tornou-se uma mania entre

os leitores: muitos recortavam e colecionavam os artigos, que os ajudavam a entender o

andamento de uma guerra cada vez mais complexa. E a boa cobertura ajudou a aumentar as

vendas, que se aproximaram dos 40 mil exemplares diários.

Agosto de 1914: “inocência” da Alemanha

O primeiro texto parece responder ao espanto provocado pela invasão da Bélgica. O

Boletim seguinte, apesar de já apresentar os telegramas e o título com o qual seria publicado

até o final da guerra, ainda não articulava longos comentários acerca do conflito, figurando à

primeira vista como um mero resumo dos acontecimentos da semana. No entanto, apesar do

caráter resumido dos dois primeiros textos, ambos já revelam algumas das escolhas de Júlio

Mesquita e a estrutura dos artigos seguintes. Assim, o primeiro texto, “A Guerra”, está

dividido em três momentos:

Primeiramente, Júlio Mesquita tratou das mais recentes notícias, com destaque para a

invasão da Bélgica e da França por parte dos alemães e para as quais procurou fornecer uma

explicação sob o critério geográfico. Em um segundo momento, o texto abordou o caráter

imprevisível da guerra: sob a sua perspectiva as nações esperavam uma guerra, todavia, não

naquele momento.

Em sua primeira crônica, portanto, Mesquita destacou duas características sob as

quais interpretou o primeiro conflito mundial: a violência e a imprevisibilidade.

que os telegramas de Berlim apareceriam “de quando em quando”, tornando inviável a sua utilização por parte

de uma seção do jornal que objetivava acompanhar o desenvolvimento da guerra semanalmente. Outro motivo, afirmou, referia-se à natureza dos telegramas alemães: para Júlio Mesquita se tratavam apenas de propaganda de

guerra, ao passo que os telegramas da França e da Inglaterra, embora ressentissem da necessária propaganda dos Aliados, não haviam perdido “o seu caráter de informação”, motivo pelo qual o jornal lhes dava maior crédito: “Apareçam outros ainda mais insuspeitos na

intenção e mais rigorosamente verdadeiros, e serão esses os que adotaremos”,

MESQUITA, Júlio. Boletim Semanal da Guerra. In: O Estado de S. Paulo, 21 dez. 1914, p. 3.

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Após estabelecer estes dois pontos, o diretor do Estado voltou-se para os responsáveis pela

tragédia: sobre quais nações pesaria o ônus da culpa por um conflito de violência inaudita e de

desenvolvimento imprevisível?

A França, a Rússia e a Bélgica teriam sido empurradas para a guerra.4 A Inglaterra,

por sua vez, teria entrado na peleja em defesa da Bélgica. Quanto ao Império Austro-Húngaro,

tratar-se-ia do protagonista da “primeira cena” da guerra, destacando, contudo, a ausência de

desejo bélico por parte do seu povo e do seu imperador:

A própria Áustria, a quem cabe a responsabilidade de protagonista na primeira cena deste

assombroso drama de sangue, a própria Áustria teria previsto uma mínima parcela sequer

das imensas conseqüências do seu “ultimatum” à Sérvia? (...) O velho imperador e

Berchtold mantiveram-se até ao fim no terreno da calma e da prudência.5

Os ultimatos da Alemanha, por sua vez, responsáveis pelo conflito segundo alguns,

teriam sido o meio pelo qual Guilherme II conseguiu manter a paz: “falhou-lhe desta vez,

infelizmente para todos nós, a arma que com tanta felicidade manejou”, segundo Mesquita. A

responsabilidade pelo início da guerra, portanto, não foi atribuída à nenhuma nação em

particular, mas à uma política. Júlio Mesquita imputa ao “militarismo”, presente “como um

capricho da corte e das regiões oficiais” do Império de Francisco José a causa principal da

conflagração de 1914.

A partir do segundo artigo o texto passou a ser precedido pelo resumo dos telegramas

publicados pelo jornal ao longo da semana. Os telegramas publicados nessa segunda

publicação do Boletim tiveram início nas notícias da morte do Arquiduque Francisco

Ferdinando, encerrando-se no dia anterior ao da publicação do Boletim. No texto publicado

Júlio Mesquita se concentrou na frente ocidental, na batalha entre a França e a Alemanha, e

destacou que a resistência francesa se mostrava com maior eficácia se comparada com a

guerra de 1870, indicando mais uma das referências utilizadas pelo diretor do jornal para ler e

interpretar o conflito.

4 Para provar isso, Júlio Mesquita destacou a sessão ocorrida no Senado francês do dia 13 de Julho de 1914 – portanto, a três semanas do início do conflito –, a qual chamou a atenção para o despreparo do exército francês frente aos soldados alemães.

5 MESQUITA, Júlio. Boletim Semanal da Guerra. In: O Estado de S. Paulo, 06 ago. 1914, p. 3.

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Durante os Boletins do mês de agosto verifica-se que a atenção de Júlio Mesquita se

concentrou quase exclusivamente na frente ocidental, parecendo tratar-se de uma nova guerra

franco-alemã.6 Até o final desse mês, igualmente, os textos não aplicaram à Alemanha

adjetivos que a identificariam com a responsabilidade pelo conflito. Os três primeiros Boletins

de agosto afirmavam, ao contrário, que o atraso da Alemanha lhe garantia a inocência, longe

de lhe imputar culpa.

O mês de setembro e a alteração nas representações da Alemanha

A interpretação da guerra oferecida durante os Boletins de agosto sofreu alterações a

partir do último Boletim daquele mês, quando Júlio Mesquita estabeleceu as bases para

atribuir à Alemanha a pecha de barbárie:

(...), a incrível selvageria de Louvain. Incrível, dizemos bem: a cidade indefesa, desarmada;

as mulheres e as crianças removidas para destino ignorado; os homens fuzilados; as casas

destruídas a bombas; incendiada a biblioteca; reduzida a ruínas uma igreja, que era um

primor de arte. (...) Não há nada mais solene, não há nada que com tanta força se possa

impor a mais robusta incredulidade. (...) Aquilo não é da Alemanha, da culta Alemanha, da

terra de Kant e de Goethe. Aquilo não é da raça de Beethoven, Bach e Wagner. (...). Não se

aceita que tenha caído em delírio de tão baixa e grosseira animalidade gente que se criou e

se desenvolveu, através de todas as rudes vicissitudes da existência, com os olhos sempre

fixos em nuvem tão alta e tão rósea de tão puro e tão doce idealismo.7

A partir de então o adjetivo utilizado por Júlio Mesquita para caracterizar a política e

a atuação dos alemães na guerra – “barbárie” – corresponde ao conceito que expressa o

maniqueísmo entre ocidente e oriente: segundo o diretor do Estado à civilização, encarnada na

Inglaterra e na França, se opõe a barbárie presente entre os alemães. A estratégia de Mesquita

para provar esse caráter anticivilizacional dos alemães é a descrição dos os propagandeados

massacres

6 É digno de nota que a primeira iconografia dessa seção do jornal foi publicada no dia 17 de agosto de 1914 e ilustrava a frente ocidental, com destaque para a França, a Bélgica e a Alemanha.

7 Idem. In: O Estado de S. Paulo, 31 ago. 1914, p. 3.

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ocorridos na Bélgica e o atentado contra a biblioteca – pretenso símbolo do ocidente

– de Louvain.

Contudo, a Alemanha do início do século XX não se identificaria facilmente com os

povos germânicos da Antiguidade: a imagem de uma culta Alemanha, pátria de renomados

filósofos, destoava de uma terra onde grassaria a “barbárie”. Tal impasse foi resolvido por

Júlio Mesquita ao afirmar a existência de duas Alemanhas: uma militarista e outra civilizada.

Peter Gay (1978, p. 15), ao tratar das leituras acerca da República de Weimar, afirmou que

essa perspectiva foi recorrente entre 1914-1918, o que insere Júlio Mesquita em um quadro de

referência europeu ante às representações mobilizadas acerca da guerra:

(...) Weimar passou também a simbolizar um prognóstico, ou, pelo menos, uma esperança,

para um novo começo; isso foi um reconhecimento tácito da acusação, amplamente

divulgada nos países Aliados durante a guerra e veementemente negada pela Alemanha, de

que na realidade existiam duas Alemanhas: a Alemanha orgulhosamente militar,

abjetamente submissa à autoridade, agressiva na aventura externa, obsessivamente

preocupada com a forma, e a Alemanha da poesia lírica, da filosofia Humanística e do

cosmopolitismo pacífico.

Ao longo dos meses de setembro e outubro, novos elementos foram mobilizados no

intuito de confirmar a leitura veiculada acerca da pátria de Kant. Assim, em novembro

Mesquita utilizou o bombardeamento da catedral católica de Reims no intuito de provar a

barbárie alemã.8 Considerando os elementos utilizados no mês de setembro, esses novos

argumentos se moldam em um mesmo quadro: a biblioteca e a igreja cristã: dois símbolos do

ocidente – da civilização, segundo Júlio Mesquita – contra os quais se movia a brutalidade

germânica.

O peso desses argumentos na tarefa de construir a imagem de uma Alemanha tomada

pela barbárie em razão do militarismo se evidencia na freqüência com a qual foram

mobilizados nos Boletins das semanas e dos meses que se seguiram. Assim, em de março de

1915, Mesquita escreveu com manifesta ironia:

8 MESQUITA, Júlio. Boletim Semanal da Guerra. In: O Estado de S. Paulo, 02 nov. 1914, p. 3.

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Não seria mau, entretanto, que Kant tornasse ao mundo. Seria imensamente curioso ver a

que torturas ele sujeitaria a rude independência da razão, para conciliar, por exigência do

patriotismo, a violação da neutralidade da Bélgica, a destruição de Louvain e a ruína da

catedral de Reims com o imperativo categórico e até com o hipotético.9

É interessante notar que os argumentos mobilizados pelo diretor d'O Estado não são

autônomos, inserindo-se na propaganda ocidental que na ocasião construiu a imagem dos

alemães como os “novos bárbaros”. Nesse sentido, afirmou Fabrice d’Almeida e Christian

Delporte (2010, p. 30):

(...) a França, encarnando o bem em marcha para um objetivo: a defesa dos direitos do

homem e da liberdade. Nessa progressão, ela enfrenta o império, o qual deseja apenas a

destruição em virtude de sua barbárie. A França vencerá graças ao socorro da humanidade e

de Deus, os dois auxiliares ou as duas armas. O narrador dessa história? Uma série de

instituições que se comprometeram pagar e difundir este ideal. São frequentemente os

administradores do Estado ou dos ministérios, ou dos órgãos da imprensa. Basicamente,

narra-se a guerra na França como o combate dos justos contra os inimigos diabólicos, cuja

ambição é destruir e matar uma beleza e uma inteligência que seriam incapazes de alcançar.

As civilizações se oporiam, violentamente, contra a “barbárie dos germânicos” ou “dos

godos”, nas palavras da época; velhos antagonismos raciais são, portanto, invocados para

sustentar a propaganda.10

O estudo dos Boletins publicados nos primeiros meses da guerra, portanto, evidencia

que a estratégia de Mesquita, ao resumir o conflito nos pares civilização versus militarismo, o

situa na esfera de um quadro de referência que não esconde a hegemonia da cultura francesa

de guerra.

Todavia, foi somente a partir do mês de setembro que o novo tratamento sobre a

Alemanha se efetivou. No primeiro Boletim desse mês, ao comentar sobre

9 Idem. In: O Estado de S. Paulo, 15 mar. 1915, p. 3.

10 Tradução nossa.

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dois telegramas ingleses recebidos pelo jornal, Mesquita afirmou que ambos provinham da

influência alemã sobre setores da imprensa britânica e que

Esta influência dos alemães em parte da imprensa da Tríplice ‘Entente’ é mais uma prova

da superioridade do esforço com que eles se preparavam para a luta, aproveitando, com

indiscutível habilidade, todos os elementos de êxito.11

Um mês após a afirmação segundo a qual os alemães não estavam preparados para a

guerra, portanto, Mesquita afirmava que a Alemanha não apenas se preparou, mas que essa

preparação foi realizada com “esforço” e “indiscutível habilidade”.

Quais teriam sido as causas para a mudança no discurso acerca da responsabilidade

sobre o conflito? Em primeiro lugar, os reveses da França. Entre o final de agosto e início de

setembro de 1914 efetuar-se-ia o fechamento da estratégia alemã de invadir a França e

derrubar Paris. No entanto, com a resistência belga e o auxílio inglês – ao lado da mobilização

do exército russo na frente oriental –, o plano Schlieffen parecia fadado ao insucesso, motivo

pelo qual recrudesceram os esforços alemães, resultando em evidente desvantagem para a

França. Júlio Mesquita, por sua vez, que ainda lia a guerra com base nas batalhas anteriores

(sobretudo com a guerra franco-prussiana de 1870) só pôde compreender o avanço alemão

atribuindo ao imperador todos os atributos do militarismo. Nesse mesmo sentido, e ao

paralelo ao avanço alemão, outro fator decisivo da viragem na leitura do conflito se encontra

na batalha do Marne, ocorrida durante a segunda semana de setembro de 1914.12

Para Júlio Mesquita, o que ocorreu no Marne foi o divisor de águas na dinâmica do

conflito. Em seus Boletins, ao longo dos quatro anos da conflagração, ele retornou à batalha

como ponto de inflexão a partir do qual a guerra ter-se-ia

11 MESQUITA, Júlio. Boletim Semanal da Guerra. In: O Estado de S. Paulo, 07 set. 1914, p. 3.

12 De acordo com SONDHAUS (2013, p. 95-96): “A primeira batalha do Marne (5 a 9 de setembro) começou no 36º dia depois que a mobilização geral colocou em marcha o plano alemão, ou M+36. Contanto que os exércitos de Moltke obtivessem uma vitória decisiva sobre os franceses em M+40, os alemães poderiam cumprir seu cronograma e despachar a maior parte de seu exército para leste, a fim de enfrentar os russos. (...). Em quatro dias de combates pesados, franceses e alemães sofreram em torno de 250 mil baixas, incluindo 80 mil mortos do lado francês, ao passo que a BEF sofreu 13 mil baixas, incluindo 1.700 mortos. Coincidentemente, os alemães perderam a primeira Batalha do Marne no dia conhecido como M+40, seu prazo final autoimposto para a vitória na frente ocidental.”

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alterado. No entanto, a partir dos Boletins de setembro já é possível perceber o quanto a

batalha do Marne causou impacto na produção dos seus textos: os Boletins seguintes

afirmaram que “o objetivo Paris desvaneceu-se à beira do Marne.”13

A Alemanha bárbara

Os meses seguintes caracterizam a sedimentação das imagens formadas a partir de

setembro, sem apresentar grandes alterações ao nível do discurso. No balanço dos três

primeiros meses da guerra efetuado no Boletim do dia 2 de novembro, Mesquita afirmou que

entre as surpresas da guerra, destacava-se o bombardeamento da catedral de Reims. O mesmo

Boletim apresentou críticas mais ácidas para com a Alemanha, consolidando a identificação

da política germânica com a barbárie:

Mas, de todas as nossas surpresas, a maior e a mais dolorosa foi a destruição de Louvaina,

de Malines e de Dinant e, sobretudo, o bombardeamento da catedral de Reims, aquela

maravilha da arte gótica, que lá estava, no alto da sua colina, irradiando para os quatro

horizontes a incomparável beleza da sua escultura e erguendo para o céu, como um cântico

perene, a recordação de toda a glória e de toda a poesia da religião que simbolizava. Hoje,

daquele esplêndido monumento, que as guerras de sete séculos respeitaram, só resta o perfil

esburacado, onde sobressaem, aqui e ali, os torsos mutilados das estátuas. Foi o que salvou,

na hedionda combustão, daquele primor, que ninguém jamais reconstruirá...

O mês de novembro, portanto, consolidou a imagem que foi construída desde a

batalha do Marne, a qual destoa dos Boletins de agosto. Dessa forma, já no início de

dezembro, a responsabilidade pela guerra foi atribuída claramente aos alemães:

“Esta guerra foi provocada pela Alemanha (...), a Alemanha tinha-a, há muito tempo,

minuciosamente preparado: desejava-a; aproveitou-se do incidente

13

Idem. In: O Estado de S. Paulo, 09 nov. 1914, p. 3.

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de Sarajevo para que ela rebentasse; lançou mão de todos os meios para torná-la inevitável”. 14

Nos meses finais de 1914, por conseguinte, já estavam sedimentadas as imagens

criadas sobre a Alemanha (e sobre a França, sua antítese). Porém, o processo de consolidação

das imagens produzidas por seus textos foi longo e impulsionado ainda mais pela estagnação

das trincheiras e pelo rigor do inverno entre 1914-1915. Assim, é interessante notar que ainda

em fevereiro de 1915 a identificação da Alemanha com a barbárie realizava-se com base nos

acontecimentos de 1914:

A Alemanha violou a neutralidade da Bélgica. A Alemanha incendiou Lovaina. A

Alemanha destruiu a catedral de Reims. A Alemanha fuzilou em massa belgas e franceses

desarmados. A Alemanha matou dezenas e dezenas de mulheres e crianças. A Alemanha

bombardeou, do mar e do ar, cidades da Inglaterra abertas e indefesas. A Alemanha,

finalmente, põe a pique, com as suas minas e seus submarinos, navios neutros.15

A intensificação dos ataques contra a Alemanha, contudo, se fizeram sentir nas

receitas do jornal, por meio da campanha dos anunciantes germânicos contra O Estado de S.

Paulo (DUARTE, Op. cit., p. 211). A resposta de Mesquita em 21 de dezembro de 1914

afirmava que as críticas limitavam-se tão somente ao militarismo. No entanto, em janeiro de

1915 , ao comentar os ataque contra os civis ingleses operado pelos alemães, escreveu

Mesquita: “É a doutrina dos seus filósofos, dos seus historiadores, dos seus sábios, dos seus

marechais, do seu governo, do seu povo enfim”.16

Nos Boletins do ano seguinte ainda foram destacadas as ações do exército teutônico

que poderiam provar a pretensa barbárie de sua campanha. Os soldados da França, por sua

vez, eram considerados defensores da liberdade e da democracia, ao passo que a Inglaterra

figurava como potência militar, defensora e amparo dos franceses. Assim, a guerra se

resumiria entre esses dois pares.

14 Idem. In: O Estado de S. Paulo, 02 nov. 1914, p. 3.

15 Idem, In: O Estado de S. Paulo, 22 de fevereiro de 1915, p. 3.

16 Idem. In: O Estado de S. Paulo, 25 jan. 1915, p. 3.

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Considerações finais

Os meses seguintes – o inverno europeu – constituíram como um momento de

articulação das imagens das nações envolvidas. A estrutura dos artigos, quer em caráter

material ou ao nível do conteúdo, não sofreu alterações: a crônica permaneceu semanal,

precedida pelos telegramas da semana e publicada sob o título “Boletim Semanal da Guerra”.

A posição do seu autor, igualmente, permaneceu aliada à França, apresentada como o baluarte

da democracia e da civilização. A antítese, identificada com a barbárie e o militarismo,

encarnar-se-ia na Alemanha e em suas ações políticas ou militares.

Tal estrutura, todavia, não se formou ao longo dos meses da guerra, figurando já em

setembro de 1914 e consolidando-se na transição para 1915, isto é, quando as trincheiras se

estabeleceram como uma realidade. A guerra de desgaste fomentou novos argumentos e

mobilizou novas investidas contra a Alemanha, apresentada como “os novos hunos”. Essa

postura revela, por sua vez, que a propaganda francesa era a espinha dorsal dos comentários

de Júlio Mesquita, ao lhe proporcionar a moldura sobre a qual dispunha sua leitura sobre o

conflito, como destacou MALATIAN (2013, p. 212):

Coerente com suas ligações culturais com a França, [Júlio Mesquita] manteve-se na posição

de aliadófilo, partilhando com a cultura de guerra dos franceses os temas do militarismo

alemão, da derrota de 1870, e principalmente o recurso à História para comprovar suas teses

e prever o futuro do conflito que o surpreendia por jogar por terra, desde o início, a

convicção da capacidade de resistência dos franceses e dos ingleses, derrotados na guerra

de fronteiras. Este é o limite de sua análise sobre as causas da guerra, que seguiram desde o

início a versão corrente no campo político dos Aliados.

Portanto, o mês de setembro de 1914, em suas primeiras semanas, constitui um

momento de viragem nas representações veiculadas pelo matutino paulista acerca da Primeira

Guerra Mundial por meio dos Boletins do seu diretor. Tal viragem é perceptível na análise das

alterações que a imagem da Alemanha sofreu em relação aos Boletins do mês anterior.

Enquanto o mês de agosto apresentou o conflito sem polarizações acentuadas, aproximando-

se da visão de um novo conflito

Page 13: CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE: A ALEMANHA NOS BOLETINS SEMANAIS DE JÚLIO MESQUITA (1914 … Seminarios PPGSOC/g3... · durante as décadas de 1910-1920, acompanhou a Primeira Guerra

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franco-alemão – com referências freqüentes à guerra de 1870 –, juntamente com a atribuição

da responsabilidade ao militarismo da corte austro-húngara; todavia, a partir de setembro esse

sistema de representação foi colocado em questão: a Alemanha passou a ser apresentada sob

os caracteres da barbárie, o que a identificou progressivamente com o militarismo e elaborou

a visão maniqueísta da guerra e das relações internacionais: de um lado a civilização

ocidental, republicana e democrática; de outro a barbárie germânica, militar e imperialista.

Referências Bibliográficas

Livros:

CALDEIRA, Jorge. Júlio Mesquita e seu tempo: o jornal moderno, sertão e capitalismo

(1908-1927). São Paulo: Mameluco, 2015. D’ALMEIDA, Fabrice ; DELPORTE, Christian. Histoire des médias en France : de la

Grande Guerre à nos jours. Paris : Éditions Flammarion, coll. Champs Histoire, 2010. GAY,

Peter. A Cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. HASTINGS, Max. Catástrofe – 1914: a Europa vai à guerra. Rio de Janeiro: Intrinseca, 2014. LUCA, Tania Regina de. A revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação, São Paulo:

Fundação Editora da UNESP, 1999. SONDHAUS, Lawrence. A Primeira Guerra Mundial: história completa. São Paulo:

Contexto, 2013. TUCHMAN, Barbara W. Canhões de Agosto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1994.

Capítulos de livros:

DUARTE, Paulo. Júlio Mesquita e o “Estado”, In: Centenário de Júlio Mesquita, São Paulo:

Anhambi, 1964.

Artigos:

MALATIAN, Teresa. A construção do convencimento: Júlio Mesquita e os Boletins

Semanais da Guerra do jornal In: O Estado de S. Paulo (1914-1918). Patrimônio e Memória,

São Paulo, Unesp, v. 9, n. 2, p. 205-219, julho-dezembro, 2013, p. 205-219.