Humanismo ou barbárie? Indivíduo e civilização nas teorias ......Humanismo ou barbárie?...

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Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com] 1 Humanismo ou barbárie? Indivíduo e civilização nas teorias de Norbert Elias e Max Horkheimer “La civilisation terrassant la barbarie” — Gustave Doré — 1855 Por Marília Bueno (PPGSA-UFRGS) Norbert Elias e Max Horkheimer provavelmente nunca se conheceram. Elias teria dito que, quando professor em Frankfurt, trabalhou no mesmo prédio onde funcionava o famoso Institut für Sozialforschung, mas que embora tivesse cruzado algumas vezes com membros do instituto, a interação nunca teria passado de um polido guten Morgen (Heerikhuizen, 2015). Pelo seu lado, Horkheimer chefiava um grupo de intelectuais de diversas áreas do conhecimento – filósofos, sociólogos, historiadores, psicólogos e antropólogos, entre outros – em uma empreitada que buscava reunir dialogicamente as contribuições de cada uma dessas áreas em uma

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Humanismooubarbárie?IndivíduoecivilizaçãonasteoriasdeNorbertEliaseMaxHorkheimer

“La civilisation terrassant la barbarie” — Gustave Doré — 1855

PorMaríliaBueno(PPGSA-UFRGS)

NorbertEliaseMaxHorkheimerprovavelmentenuncaseconheceram.Eliasteriadito que, quando professor em Frankfurt, trabalhou no mesmo prédio ondefuncionavaofamosoInstitutfürSozialforschung,masqueemborativessecruzadoalgumasvezescommembrosdoinstituto,ainteraçãonuncateriapassadodeumpolidogutenMorgen(Heerikhuizen,2015).Peloseulado,Horkheimerchefiavaumgrupo de intelectuais de diversas áreas do conhecimento – filósofos, sociólogos,historiadores,psicólogoseantropólogos,entreoutros–emumaempreitadaquebuscavareunirdialogicamenteascontribuiçõesdecadaumadessasáreasemuma

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teoriaquedessecontadealgunsproblemasconsideradoscentrais,dandoorigemaoqueficouconhecidoporteoriacrítica.Elias,poroutrolado,desenvolviaumateoriaque, sem que tivesse qualquer influência direta dos estudos produzidos peloinstituto,acabouporsintetizarconhecimentosdasmesmasáreas,dialogandocomasmesmasinfluências.

Naquelecontexto,cadapensadortiravaproveitodoprofícuoambienteintelectualdaRepúblicadeWeimar,queerapermeadoportodotipodediálogoemumalivrecirculaçãodeideias.Entretanto,doladodeforadoprédio,contrastandocomesseambiente,asociedadeviacresceraviolênciaeaintolerânciaantissemitapormeiodeumaproliferaçãodemilíciasenquantoopartidonazistaascendiaaopoder.TantoEliasquantoamaioriadosmembrosdaEscoladeFrankfurteramjudeus,eapesardeviveremoclimadeotimismoemrelaçãoàsrealizaçõesculturaiseintelectuaisqueestariamporvir (Elias,2001;VosseStolk,2001), logoperceberamqueessecontextonacionalofereciaumaameaçaconcretaasuasvidas.Diantedisso,seviramobrigados a deixar a Alemanha rumo a países do eixo aliado, onde suas vidasestariampreservadas.

Atentemos, no entanto, para o que ocorreu dentro dos círculos intelectuais deFrankfurtantesdessadiáspora.Umaleituracuidadosadesuasobrasdenossosdoisautores pode nos auxiliar no mapeamento das influências e mostrar que ascontribuiçõesdessasduaslinhasdeabordagempossuememcomumnãoapenasofatodeteremfrequentadoosmesmoscírculosintelectuaiseamesmauniversidade,ouentãoofatodedialogaremetrazeremparasuasobras,muitasvezes,elementosdosmesmosautores,mastambémofatomaisgeraldequepodemserconsideradosherdeirosdeumamesmatradiçãodepensamento–atradiçãoalemã,queremeteaKant,Diltheyetantosoutros,evaialémdageraçãoaquiabordada.PodemosdizerqueemambosateoriapsicanalíticadeFreudveiosejuntaràsteoriassociológicasdeMarx(muitomenospresentenateoriadeEliasdoquenadeHorkheimer,éclaro)eWeber, dialogando com elementos principalmente das filosofias de Descartes,Kant,HegeleNietzsche,apenasparacitarasinfluênciasmaismarcantes.

Podemos observar ainda que Elias e Horkheimer não apenas compartilharam ocontextohistóricoeintelectual,mastambémdebruçaram-se,muitasvezes,sobreosmesmostemas.Emsuastentativasdeformulardiagnósticosconsistentessobreamodernidade,ambosfundaramsuasobrassobreaanálisedosprincipaisaspectosdo Iluminismo (ou do Esclarecimento, a depender da tradução). No bojo dessa

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análise,abordaramodesenvolvimentodasubjetividademoderna,ocrescimentodeumaparelhode controle internalizadopelo indivíduo, o controle social exercidopelasinstituiçõeseadominaçãoprogressivadanaturezaformandoumatríadequecaracterizaadinâmicadoocidente,comespecialatençãoparaelementoscomooexercíciodopoder,ostraçosdeviolênciaebarbárieoudepazsocial.Noentanto,paracadaumdessestemas,elaboraramexplicaçõestãodistintasquantoépossíveldesefazerpartindodetantospontosemcomum.

A comparaçãoque façoaquientreessesdoisautores sedeveao tratamentoquederamaumatemáticaespecífica:adagênesedoindivíduoeseulugarnoprocessodedesenvolvimentodacivilizaçãoocidental.Sendoassim,oqueproponhoaquiéabordar o tratamento dado a esses conceitos porNorbert Elias e pela Escola deFrankfurt,deformageral,masqueaquiserárepresentadaporMaxHorkheimeremparticular.Taldesenhodepesquisa temcomopontodepartidaoobjetivode,aoexaminarespecificamenteasinterpretaçõeselaboradasporcadaumdessesautores,contribuir para o entendimento de como teria se desenvolvido, no interior doprocessohistóricodamodernidade,arealizaçãoconcretadeumidealdohomemcomo indivíduo construído ao longo dos séculos até chegar à definiçãocontemporânea, como a conhecemoshoje. Assim, a proposta é entender emquemedidacadaumdosautoresinterpretaaexperiênciahistóricadoOcidentecomoosucessoouafalênciadessemodelo.

Os atributos do indivíduo, que hoje nos parece ser um modelo atemporal, naverdade foram incorporados à autoimagem do homem ocidental ao longo dosúltimosséculos.Partimosdanoçãodequeesseconceitodeindivíduo,desenvolvidohistoricamente ao longo dos últimos séculos, é uma categoria basilar paracompreenderaDeclaraçãoUniversaldosDireitosHumanoseodecivilização,paraponderararespeitodesuaviabilidade.Paradarfundamentoatalnoção,podemostomar como referência uma afirmação de Michelle Perrot que nos servirá depremissa.AautorapropõequeaDeclaraçãoUniversaldosDireitosHumanospodeser entendida como otriunfo do indivíduo,uma vez que seria o marco de umprocesso em que “o cidadão conquista lentamente a plenitude de seus poderes”(Perrot,1992,p.415).

NaesteiradapremissacolocadaporPerrot,ressaltoqueoindivíduoaquemerefiroéaconcepçãoemquesefundamentaanoçãodedireitoshumanosuniversais–umaconcepção que se desenvolve, na modernidade, a partir do Renascimento (cuja

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antropologiaremeteàfilosofiahumanista),ganhandocontornosmaisdefinidosnaeradoIluminismo.HenriqueVaz(1991)atribuiàfilosofiahumanistaosurgimentodaconcepçãoantropológicadehomemuniversalmentefundamentadonanoçãodedignidade – observemos, por exemplo, que Pico della Mirandolla apresentou aomundo seuDiscurso sobre a dignidade do homemem1496. CitandoAgnesHeller,HenriqueVazafirmaque,segundoafilósofa,

(...) é na Renascença que se dão as condições para que surja uma Antropologiafilosófica no sentido moderno do termo. É então que aparece, com efeito,umaconsciênciadahumanidadeoudascaracterísticasessenciaisdohomem(homohumanus) em sua universalidade abstrata e não mais limitado pelasparticularidadessegundoasquaisohomemantigooumedievalseconsiderava(Vaz,2001,p.84).

AgnesHellertambémafirmaqueénomomentoemqueoconceitodehumanidadese torna generalizado e homogêneo, “que a ‘liberdade’ e a ‘fraternidade’ nascemcomocategoriasontológicasimanentes”(Heller,1982,p.9).Apartirdessemomentodescritopelaautora,teriamsurgido“novasmaneirasdeviver,entreelasocultodohomemquesefazasipróprio,[que]produziramumtipodeiniciativaindividualede independência de juízo e desejo que invalidaram qualquer tipo de dogma”(Heller,1982,p.17), abrindoentãooespaçoparaqueohomemexperimentassecerta autonomia para controlar seu próprio destino e, dessa forma, fazer-se a sipróprio(Heller,1982,p.22).DeacordocomMichellePerrot,ainsurgênciacontradisciplinaseservidõescoletivas,ocorridanessaépoca,teriaexpostoanecessidadede um tempo e um espaço para si, condições de possibilidade da busca por um“direitoàfelicidadequepressupõeaescolhadoprópriodestino”(Perrot,1992,p.416).

Na fase posterior da história, que ficou marcada pelo Iluminismo (ouEsclarecimento), de acordo comVaz, o homempassa a ocupar o centro do qualirradiamas linhasde inteligibilidade,dandoorigem,dessa forma, àdisciplinadaantropologiacomooestudodessehomem.Aconcepçãojátotalmentesecularizadadehumanidadese insere,nocontexto iluminista,numa ideiadeprogressoguiadopelaRazão(VAZ,2001.p.102).ÉnessafasetambémqueKantafirmou,nocélebre

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textode1793intituladoRespostaàperguntaoqueéesclarecimento?,queasaídadohomemdesuaminoridadeconsistiriaem tornar-secapazdese servirdopróprioentendimentosematuteladeoutro.

Estabelecidos,emlinhasgerais,osprincipaistraçoseodesenvolvimentohistóricodessa concepção de indivíduo, cabe então questionar, à luz das teorias dos doisautoresaquiabordados,seépossívelafirmarqueesseindivíduorealmentetriunfou.Essaéaquestãodefundoqueserviudebaseparaestainvestigação.Comoveremosnaexposiçãodasteoriasdosdoisautores,podemosdizerqueelesnãointerpretamesseprocessoemque“ocidadãoconquistalentamenteaplenitudedeseuspoderes”(Perrot, 1992, p. 415) como um processo efetivamente realizado. Em outraspalavras,EliaseHorkheimernãoentendemosujeitodosdireitoshumanoscomoumsujeitoque se realizoude formauniversal namodernidade.No entanto, elesdiferememcertamedidanoquedizrespeitoàspossibilidadesdessarealização.

Antesdeprosseguir,ressaltoqueaquestãoaquilevantadatevetambémcomofontede inspiração um breve levantamento a respeito da gênese e consolidação dosdireitos humanos. Grande parte da bibliografia a esse respeito (Joas, 2012,Comparato,2001eBobbio,2004,apenasparacitaralgunsexemplos)consideraqueonascimentoeafirmaçãodosvaloresengendradosnanoçãodedireitoshumanosse deupari passucom a formação do Estadomoderno. A formação desse Estadoteriasido,porsuavez,marcadapelainversãodarelaçãoentreEstadoecidadãos:

(...)passou-sedaprioridadedosdeveresdossúditosàprioridadedosdireitosdo

cidadão, emergindo um modo diferente de encarar a relação política, não mais

predominantemente do ‘ângulo do soberano, e sim daquele do cidadão, em

correspondência coma afirmaçãoda teoria individualistada sociedade’ (Bobbio,

2004,p.7).

FicaclaroentãoqueoprocessodeformaçãodoEstadonacional,quedeulugaràafirmaçãodosdireitosuniversais,estáintrinsecamenteligadoaodesurgimentodoindivíduomodernotalcomooabordoaqui.Entende-seportantoque“osdireitosdohomem,pormaisfundamentaisquesejam,sãodireitoshistóricos,ouseja,nascidosemcertascircunstâncias,caracterizadaspor lutasemdefesadenovas liberdadescontra os velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez”(Bobbio, 2004, p. 9). Porém, como se sabe, o surgimento dessa concepção dos

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direitos universais, muitas vezes pensado por filósofos, juristas, historiadores esociólogos,nãoseconverteautomaticamenteemsuarealização,nãoimportaquãodifundidossetornemosvaloresqueossustentamouquantaboavontadeparapô-los empráticapossam terosgovernantes.Énecessário tambémqueosarranjossociaistornemessarealizaçãopotencialmenteviável.

Sendoassim,éindispensávelqueseinvestiguemosfundamentos(antropológicos)dacategoriadosujeitodedireitosuniversais,masétambémtãooumaisimportantequesejafeito,juntocomessainvestigação,um“estudodascondições,dosmeiosedassituaçõesnasquaisesteouaqueledireitopodeserrealizado”(Bobbio,2004,p.16).Nocasodosdoisautoresaquiestudados,essestemasaparecemdeformatãoentrelaçadaquemuitasvezesseconfundem.Osconceitosqueoptamosporanalisar–ouseja,odeindivíduoeodecivilização,emcadaumadasteorias–sãonadamaisdoqueasintetizaçãoconceitualdessasduasfrentesdeabordagem.Estabelecidasessasbases,olhemosentãoparasuasteoriasafimdeidentificarconvergênciasedivergênciasnoquedizrespeitoàquestãoaquilevantada.

Emprimeirolugar,lembremosquetantoHorkheimerquantoEliasseapropriamdeumasériedeelementosdateoriadeWeber;portanto,antesdaexposiçãodecadaumdeles,cabetrazeràanálisealgumasdasproposiçõesfeitasporWeberafimdeentenderomodocomoaparecemnasteoriasdenossosdoisautores.ComoressaltouAntonio Pierucci,Weber descreveu o processo histórico de desenvolvimento dacivilizaçãocomoumprocessode“racionalizaçãodetodososramosdavidaculturale da estrutura social” (Pierucci, 2003, p. 28). Esse processo de eliminação dopensamento mágico, ou desencantamento, ocorre de forma concomitante erelacionadacomosurgimentodeumaciênciaqueterianegadoaproposiçãodasvisõesdemundofilosóficasereligiosasdequeavidateriaemsisentidoevaloreadotadoumametodologiaquepesquisaessemundonaturaldesencantadocomosefosseuma zonade caça liberada (Pierucci, 2003, p. 45).De acordo comStephenKalberg,odiagnósticodeWeberarespeitodamodernidadeeraambíguo,poisseporumladoeleeraimpressionadopelacapacidadedemanteraltosníveisdevidaquedecorriadodesenvolvimentodassociedadesindustriais,poroutro,temiaqueaquelaimpossibilidade,unidaaoutroselementosdessassociedades,sechocassemcomoqueelemesmoconsideravaserem

OsvaloreseideaismaiselevadosdoOcidentemoderno:aaçãoética,aautonomiaindividual,apersonalidadeunificadaporumaconstelaçãodevaloresnobreseuma

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éticaexpansivadefraternidadeecompaixãoquecontestaesuperaashostilidadesfundadasem lealdades tribais, étnicase religiosas.NoalvorecerdoséculoXX, seperguntava:paraondevamos?(Kalberg,2010,p.10).

Essamesma pergunta teria sido repetidamente feita por Elias e Horkheimer aolongo de suas obras. Os mesmos questionamentos a respeito do avanço daracionalização nomundomoderno, concatenado com o esvaziamento valorativodessa razão,dopapeldaciêncianesseprocessoea submissãodanaturezaaelarelacionada,bemcomooincrementonosníveisdevidatrazidoporesseprocesso,forampontosimportantesdasteoriasdeambos.

ComeçandoentãoporNorbertElias,podemosdizerqueoautorparecevernaquiloqueconvencionouchamarde“processocivilizador”oterrenododesenvolvimentoqueentrelaçasociogêneseepsicogênese,levando,tantonoplanohistóricoquantono plano psíquico, ao surgimento daquele indivíduo delineado mais acima(Elias,2011,p.15;Heinich,2001,p.12).Lembremosqueeledescreveuosurgimentodoindivíduocomoumamudançagradualnabalançaentreonóseoeu,nadireçãodo eu. Ele afirmava que o processo civilizador era homólogo ao processo deindividualização. Portanto, uma de suas principais proposições nesse sentidoconsiste em ressaltar o problemático hábito mental que nos leva a aceitar ascategoriasde“indivíduo”ede“sociedade”comose fossemdenaturezaantitética(Elias,1994).Portanto,paraelucidaraconcepçãodeEliasarespeitodoindivíduo,devemossempreteremmentequeessaconcepçãonãopodeserentendidasemque,juntocomela,elucidemossuanoçãodecivilização.Omesmofatordeveráserlevadoemcontaemseguida,naexposiçãodateoriadeHorkheimer.

Tomando emprestada uma interpretaçãoproposta porWeber, Elias descreveu oprocesso civilizador, em linhas bem gerais, como um processo que leva àconcentraçãodousolegitimodaforçafísicanasmãosdeumEstadonacional(Elias,1993,p.200).Aomesmotempo,essaconcentraçãoterialevadoaosurgimentodeespaçossociaispacificados(Elias,1993,p.202).Deacordocomesseraciocínio,atendênciaéqueessepoderseconcentreemníveiscadavezmaisaltosdeintegraçãonamesmamedidaemqueaviolênciasejacadavezmaisafastadadavidacotidiana.De forma entrelaçada com esse processo ocorre o de individualização, que Eliasdefine demuitas formas ao longo de sua carreira,mas que, de forma resumida,podemosdizerqueelecolocacomosendocaracterizadoporumdeslocamentodaidentidade,outroramajoritariamentedefinidaporumaidentidade-nós,parauma

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identidade crescentementemarcada pelo Eu (Elias, 1994, p. 107). Temos aqui oflorescerdoindivíduotalcomoficoudefinidoacima.

Éinteressantenotaresseprocessodeindividualizaçãoéeminentementesocial.Paraexistir, essa individualização depende de um solo específico de onde brotam ascaracterísticaspessoaismedianteasquaisumindivíduodiferedosoutrosmembrosde sua sociedade. Esse solo, de acordo com sua teoria, seria uma sociedadealicerçadasobreumarededefunçõesinterdependentesaltamentediferenciada–adiferenciaçãoeaindividualizaçãoaumentam,nessadinâmica,namesmaproporção.Portantooindivíduo,comooentendemos,nãopodeexistirforadasociedade.Eliasressaltadiversasvezesofatodeque,aocontráriodoquecostumamosacreditar,aseparação entre os eu e os outros não é umamaneira universal e a-histórica deautopercepção. O que um indivíduo entende hoje como sendo exclusivamentepessoal é socialmente determinado por um contexto que possibilite odesenvolvimentodessestraçosdepersonalidade(Elias,1994).

Eliastambémnãodeixadetrazerparasuaanálisedoprocessocivilizadorofatodequeeledependeeviabilizaadominaçãodanatureza,quepermitiuqueohomemestivessecadavezmenossujeitoasuasinconstânciasimponderáveis.Aosevercadavezmenossujeitoasuasameaças,ohomemsimultaneamentesetornoumaiscapazdetercontroleefazerumusometódicoeconscientedosprocessosnaturais,combasenoquechamamosdepesquisacientífica(Elias,1994,p.96).Essedomíniodanaturezatambémsevolta,nomesmoprocesso,paraodomíniodanaturezainterna.Me refiro aqui à internalização de mecanismos de controle que fez com que oindivíduo fosse capazdemoldar, a partir do refreamentodaspulsões, o própriocomportamento.Dessemodo,ohomemprogressivamentesetornoucapazdeagirconformeseusobjetivos,pormeiodeumaampliaçãodoespaçomentalparaalémdomomentopresente,levandoemcontaopassadoeofuturo,ligandoosfatosemcadeiasdecausaeefeitocadavezmaisextensas.Numapalavra,ohomempassouasercapazdeagirepensardemodoracional.

Oautorexplicatalraciocíniodeinterdependênciaentreostrêsníveisdedominaçãodoseguintemodo:sereferindoaodesenvolvimentodessedomíniodanatureza,eledizque

Essamudança caminhou demãos dadas comuma alteração correspondente nasrelaçõessociaisentreaspessoasedentrodecadapessoa.Ocrescentecontroledas

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forças naturais não humanas pelos seres humanos só era possível, só podia sersustentado por longo período, no contexto de uma estrutura social estável ealtamenteorganizada.Essaestabilidadeeessaorganização,porsuavez,dependiamlargamentedoextensocontroledasforçasnaturais.E,aomesmotempo,ocrescentecontrole das forças naturais só era possível em conjunto com um crescenteautocontroledossereshumanos.Sópodiasermantidocomoauxíliodeumcontrolebastante estável dos afetos e instintos de curto prazo, exercido em parte pelasinstituiçõessociaiseempartepelopróprioindivíduo.Esteúltimotipodecontrolesópodiadesenvolver-seesermantidonumnívelbastanteelevadoemconjuntocomumaadministraçãoordeiradoscontrolessociais.Ocontroledanatureza,ocontrolesocial e o autocontrole compõemuma espécie de anel concatenado: formamumtriângulo de funções interligadas que pode servir de padrão básico para aobservaçãodasquestõeshumanas.Umladonãopodedesenvolver-sesemosoutros;oalcanceeaformadeumdependemdosdosoutros;e,quandoumdelesfracassa,maiscedooumaistardeosoutrosoacompanham(Elias,1994,p.116).

Alguns críticosdisseramqueonazismo teria refutado a teoria deElias sobre osprocessos civilizadores na mesma época de sua concepção, atribuindo seusdiagnósticos a um otimismo despreocupado ou até ingênuo. No entanto, comoressaltaStephenMennell(2001,p.163),“quandosetrabalhacomasteoriasdeElias,devemospensaremtermosdeequilíbriodetensõesentrepressõesconflituais”.Issosignificaque,paraElias,oprocessocivilizadornãoécontínuoehomogêneoemuitomenos inevitável. Pelo contrário, ele depende de um equilíbrio que estáconstantementesobameaçadedesagregaçãoe,consequentemente,deretrocesso.Elias expressou em algumas ocasiões seu entendimento de que o autocontrole,desenvolvido em concomitância com a perda do uso legítimo da força peloindivíduo,eraumelementodaestruturadepersonalidadeadequadaaoprocessocivilizador(emoldadaporele).

O crescente domínio dos afetos, entre eles o do uso da violência, para ser geral,dependia de uma determinação social, o que gerava uma condição de maiorsegurança na vida cotidiana e também uma percepção igualmente maior dessasegurança.Essefatoréatribuídoaofatodeque,namedidaemqueopoderdeumaautoridadecentralcresce,osindivíduossãoobrigadosaviverempazunscomosoutros e desenvolvem desse modo uma estrutura psíquica que permite ofuncionamentocontroladodasinstituiçõese,consequentemente,acalculabilidade

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davidacotidiana(Mennell,2001,p.166).OsindivíduossãoobrigadosaviverempazunscomosoutrostambémdevidoaoqueoEliaschamadeníveisdeintegração,ouseja,ograudeabrangênciadeumaautoridadecentral.Quantomaisaltoforessenívelde integração,maior emais complexa será a sociedade reunida sobaquelaautoridade, e tão mais complexa e imbricada será a rede de interdependênciafuncionalemqueosindivíduosseveemenredados(Elias,1994).NaspalavrasdeStephenMennell(2001,p.168),“issoacarretapressõesnosentidodeumamaioratençãoàsconsequênciasdesuasprópriasaçõesparaosoutros,emrelaçãoàsquaiscadaumseachamaisoumenosdependente,etende,emconsequência,aproduzirumaintensificaçãoda‘identificaçãomútua’”.

Essadependênciatambéméoutrofatorquecondicionaosurgimentodeestruturaspsíquicascommaiorautocontrole.Aorefrear suaspulsõesviolentas,o indivíduoadotaoqueEliaschamoudecondutacivilizada,fundamental,nestadefinição,paraumavidaemsociedadequesejacivilizada,poisconsistenacapacidadedeidentificaraté o próprio inimigo “como sendo, em última instância, um outro ser humano,somada à compaixão por seu sofrimento” (Elias, 1997, p. 276). Aqui podemosobservaraqueletraçoqueremeteaohumanismorenascentistadequeocaráterdehumanidade progressivamente passa a ser atribuído ao outro de formageneralizada.Ou,emoutraspalavras,ooutropassaaserenxergadocomoumserplenodehumanidadeedignidade.

Como dissemos acima, para Elias a conduta civilizada depende da estabilidadedaqueletripécivilizacionaldostrêsníveisdecontrole.Emalgunscontextossócio-históricos esse tripé pode se desestabilizar de modo que outros fatores sesobreponhamàcamadadeindividualidade,levandoaumaregressãoaobarbarismo(Elias,1997,p.275)porumdeclínionessacapacidadedecondutacivilizada–esseteria sido, de acordo com ele, o caso do nazismo. Elias chama esses retrocessoscivilizacionaisdeprocessosdescivilizadores,eosentendenãocomoumarefutaçãodomovimentodahistórianadireçãodacivilização,mascomoummomentodeumcontínuohistóricodelonguíssimoprazoqueépermeadoporavançoseretrocessos.

O controle social dos perigos estabelecido pouco a pouco foi uma pré-condiçãofavorável ao desenvolvimento de modelos de conduta mais civilizados, mas, deacordo com Elias, esse controle social e a conduta civilizada poderiam derretermuito rapidamente se os perigos por eles afastados voltassem a ameaçar ahumanidade ou um grupo social (Elias, 2011 e 1997). Então os medos

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correspondentesfariamrecuaroslimitesquelhesãoatualmenteimputados.Seomedoproduzidopelaelevaçãononíveldeconflitolevaaumaquedanopadrãodeautodisciplina,desequilibrandooarranjodaqueletripécivilizacional,essastensõese conflitos tornam-se menos controláveis: aumenta o nível de afetividade dopensamentoeamplificaapercepçãodaameaça,produzindoumcicloviciosoquemuitoprovavelmenteirálevaraumaregressãonoprocessocivilizador(Elias,1994,p.173).

PartindoagoraparaHorkheimer,podemosdesaídaapontarqueseuentendimentoaesse respeito,queoautorexpressaao longodaobraEclipseda razão, defineadinâmicahistóricadacivilizaçãocomoaascensãoeposteriordeclíniodoindivíduo.Essedeclínio,queemcertamedidaocorrejuntocomaregressãoàbarbárie,sedánão por um retrocesso ou uma inflexão no modelo de desenvolvimento dacivilização,masporfatoresinextricavelmenteligadosaessemodelo,einerentesaeledesdeoseuinício.Noquefoiconsideradoporalgunsinterpretescomoafasetardia de sua obra (Jay, 2008, Brandão, 2017 e Chiarello, 2001, entre outros),Horkheimer teve como uma de suas principais orientações a noção de que odesdobramentonabarbárieeraalgoqueestavapresentenoprojetoiluminista,demodo latente,desdeasuaconcepção–queremontaaépocasmuitoanterioresàmodernidade.EsseentendimentoéexpressonoEclipsedarazãoetambémnaobraredigidaemconjuntocomAdorno,Dialéticadoesclarecimento.

Dessemodo,entendemosque,paraHorkheimer,arazãoteriasedesenvolvidorumoaumbeco semsaída,pois seporum ladoapareceucomopromessade livraroshomensdomedoedeinvesti-losnaposiçãodesenhores,comodizemeleeadornonacélebreaberturadoDialéticadoEsclarecimento,aterratotalmenteesclarecidaresplandecesobosignodeumacalamidadetriunfal(HorkheimereAdorno,1985,p.17). IssoporqueodesenvolvimentodoesclarecimentoteriadadolugaraoqueHorkheimerchamouderazãosubetiva,quevinhasubstituindoarazãoobjetiva.Arazãosubjetivaé,paraHorkheimer,umarazãototalitária.Elatrazemsuaprópriadefinição a estrutura da dominação, enquanto dá aos homens a ilusão de seremsenhores de si e da natureza. Nessa etapa, dizem os autores da dialética doesclarecimento,“passa-seentãocomsuasideiasacercadodireitohumanoomesmoquesepassoucomosuniversaismaisantigos”(HorkheimereAdorno,1985,p.19).Ouseja,oesclarecimentoporumladopermitearealizaçãodahumanidadeuniversalenquantoIdeia,mas,comodizemosautoresnotextoElementosdoantissemitismo,

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“aocolocaraunidadedoshomenscomojárealizadaporprincípio,essateseajudaafazeraapologiadoexistente”(HorkheimereAdorno,1986,p.140).

SeHorkheimerconhecearealizaçãodoindivíduonaIdeia,portanto,omesmonãosepodedizerdaexperiênciaexistente.Nessesentido,ahumanidadeuniversalseriafruto de doutrinas morais, que davam, nas palavras de Horkheimer e Adorno,“testemunhodatentativadesesperadadecolocarnolugardareligiãoenfraquecidaum modelo intelectual para perseverar na sociedade quando o interesse falha”(HorkheimereAdorno,1985,p.74).Nesseaspecto,oprincipalalvodacríticadosautoreséKant.Segundoeles,atentativadeKantdederivardeumaleidarazãoodever de respeito mútuo nada mais é do que a tentativa usual do pensamentoburguês de dar uma fundamentação diversa do interesse material e da força àconsideração, sem a qual a civilização não era possível. No entanto, dizem osautores,“araizdootimismokantiano,segundooqualoagirmoraléracionalmesmoquandoainfâmiatemboasperspectivas,éohorrorqueinspiraabarbárie”(1985,p. 74). Isso porque a razão, nos moldes do que Horkheimer chama de razãosubjetiva,trazemsimesmaoselementosdabarbárie:abstendo-sedelegislarsobreosfinsefornecendofundamentaçãoapenasparaosmeios,arazãoteriadeixadodeoferecer qualquer garantia contra a tirania (Horkheimer, 2015, p. 37). Essedesenvolvimentodarazão,então,teriaentregadooshomens“àsançãoúltimadosinteresses conflitantes, aos quais nosso mundo parece de fato abandonado”(Horkheimer,2015,p.17).

AindanoEclipsedaRazão,Horkheimer chamaaatençãoparao fatodequeessarazão,queteriaseapresentadocomoumaformaderealizarosanseiosdoshomensdedominaçãosobreanaturezae,consequentemente,derealizaçãodoEu,acabousetornandoumaformadedominaçãosobreoEuesobreasociedade.Arepressãoda natureza pela razão retornaria ao sujeito comorevoltada natureza interna eexterna, provocando nesse sujeito uma situação de sofrimento semelhante aoexpostoporFreudem1930,naconferênciaOmal-estarnacivilização.Oindivíduoquevivenacivilizaçãoseria,portanto,umindivíduocindidointernamente–ouseja,divididoentreanaturezaearepressãodanatureza,frutodeumacisãointernaqueevoluiumediante a opressão violenta da natureza emediante seu recalcamento,comoressaltaMaurícioChiarello(2001,p.16).

A experiência do indivíduo na civilização, portanto, seria a desse indivíduointernamente cindido, emquenatureza e espírito separam-seprogressivamente,

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comosegundooprimindocadavezmaisaprimeira.FazendoparalelocomacitadaobradeFreud–autorque,deacordocomMarcosNobre,teriasidoa“inspiraçãofundamental” para que Horkheimer elaborasse sua “nova antropologia” (Nobre,2013.p.48)–,podemosafirmarqueoindivíduoseriamarcadopelaformaçãodeumsuperegoquepodeserconsideradooagentedacivilizaçãodentrodesseindivíduoequeseriaresponsávelporreprimirseusimpulsoslibidinais.

Éaquiquepodemosobservarqueessediagnósticoéfrutodeumdeslocamentodofocodesua teoria,assimcomoemgeraldas teoriasproduzidaspelo InstitutodePesquisaSocial,aolongodadécadade1930–acredita-se,emgrandepartedevidoa uma desilusão com os rumos da União Soviética (Jay, 2008, p. 320). Essedeslocamentoteriasedadopeloabandonoquasequetotaldanoçãodeclasseedaperspectiva revolucionária do marxismo, recaindo o foco dos estudos sobre arelaçãoentrehomemenatureza,que,paraHorkheimer(assimcomoparaosoutrosmembrosdoInstituto),haviasidoarelaçãopredominanteduranteamaiorpartedahistóriaocidental(Jay,2008,p.318eBrandão,2017,p.42).Nessanovaperspectiva,ateoriapassouaserproduzidaapartirdapremissadequeanovaconcepçãodomundonaturalcomoumcampodemanipulaçãoecontrolehumanos,quehaviasedesenvolvidoapartirdoRenascimento,correspondiaaumaideiasimilardoprópriohomem como objeto de dominação (Horkheimer, 1984), uma vez que a divisãocartesianaentrehomemenaturezaseriaapenasaparente.Naperspectivadialéticada Escola de Frankfurt, a relação entre homem e natureza não poderia serhierarquizadapostoqueumdefiniaooutro,aomesmotempoquedependiadele,porissonãohaveriadominaçãodanaturezasemadominaçãodohomem(Jay,2008,p.322).

Sendoassim,retornandoagoraaoparalelocomEliasentendiaqueesseprocessosedesenvolvia,demodogeral,nadireçãododesaparecimentodetensõessociais.Nomomento em que tais tensões fossem, finalmente, dominadas, haveria então apossibilidadedequearegulaçãodaspaixõesecondutadohomememsuasrelaçõesservisse apenas para a produção de interdições necessárias paramanter “o altoníveldediferenciaçãoe interdependência funcional,semoqualmesmoosatuaisníveisdecondutacivilizadanacoexistênciahumananãopoderiamsermantidos,eaindamenos superados” (Elias, 1993, p. 273). Sendo assim, o processo social semoviaemdireçãoaumpontodoprocessohistóricoemqueoshomensatingiriam

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um patamar civilizatório em que as ideias de “liberdade” e “felicidade” seriampossíveis,comocolocaoautornoparágrafofinaldoProcessoCivilizador.

Porém, o mesmo mecanismo que Elias considerou que seria um dos principaiselementosquepoderiam levar a umarranjo social comaltos índicesde condutacivilizadaecomespaçossociaispacificados–asaber,odesenvolvimentoregulardoquechameiaquide“tripécivilizacional”–apareceparaHorkheimercomoaprópriafonte da barbárie. Elias assumia a possibilidade de esse arranjo resultar embarbárie, mas isso seria um retrocesso em uma tendência que, no geral, semovimentanadireçãocontrária,queéadasociedadecivilizada.Noentendimentode Horkheimer, por outro lado, no lugar de produzir uma fundamentação doindivíduo dotado de plena humanidade, o Esclarecimento teria gerado ummecanismodedominaçãodarazãosobreohomemesobreanatureza,gerandoumprocessoqueconduziriaàbarbárieeàdominaçãoque,longededeixaremdeexistir,apenasassumiriamformasmaisrefinadasdemanifestaçãonamodernidade.

Retrocessoounão,inerenteaodesenvolvimentodacivilizaçãoounão,ofatoéqueahumanidade,aomenosnostermoselencadosaqui,estáconstantementesujeitaaumaregressãoàbarbárie.Apósaincursãopelasinterpretaçõesdessesdoisautores,fica a noção de que, pormais consolidada que esteja a estrutura civilizacional –entendidaaquicomoumaestruturadegarantiadepazsocial–deumasociedade,elapodesempreviraruir.Sendoassim,asgarantiasbásicasdedignidadehumanaestãocontinuamentesobaameaça,mesmoquelatente,desupressão.Estudarmosessa discussão teórica, portanto, pode nos ajudar a desenvolver ummodelo quepermita analisar diversasmanifestações de regressão à barbárie. Uma investidacontra esse indivíduo – nunca é demais ressaltar: na específica definição queexpusemosaqui–seria,deacordocomesseraciocínio,umataqueàpróprianoçãodedireitoshumanos.Comoeudissenoiníciodestaexposição,aideiadequeestudaro estatuto desse indivíduo serve como parâmetro para observar os direitoshumanos não é fruto apenas dos estudos teóricos desses dois autores,mas simtambém de um levantamento de interpretações a respeito da própria gênese eafirmaçãodosdireitoshumanos.

Sendoassim,acreditamosqueestabeleceraantropologiadesseindivíduoeelucidaralgumas interpretações a respeito da viabilidade de sua realização pode ser umponto de partida para analisar processos históricos de negação doser genéricomoderno.Oaumentona intolerânciaemalgumcontextoespecífico,porexemplo,

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podeserobservadaàluzdessainterpretação.Odeclíniodacondutacivilizadapodeseexpressardessaforma,assimcomonoaumentodaviolência,decorrentedessaintolerância.

ComoressaltouElias,umcontextodemedogeneralizadopodelevaraumaquedanopadrãodeautodisciplina,desequilibrandooarranjodaqueletripécivilizacionale,consequentemente,as tensõeseconflitos tornam-seentãomenoscontroláveis.Nesse momento, aumenta o nível de afetividade do pensamento e amplifica apercepçãodaameaça,produzindoumaquedaemespiralnoequilíbriodoarranjocivilizatório,quepassaamover-seemdireçãoàbarbárie.Oindivíduosenteentãoquesuaautoimagemeseulugardesegurançaestãosobameaça,perdendoabasepara a conduta civilizada. Nesse momento provavelmente iremos notar que adignidade humana se encontra protegida por instituições sociais bastantefragilizadasequeacategoriadehumanidadeuniversalabstrataestáperdendolugarnaesferapública.Essetipodeprocessopodeocorrerecontinuaocorrendodemodoaparentementeinevitável.Portantocompreenderseusmecanismospodenosajudara identificar e interpretar suas ocorrências. Pode nos auxiliar, por exemplo, natentativadecompreenderaregressãoconservadoraquecaminhaapassoslargosnoBrasilnestemomento.

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