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ISSN 1516-9162 REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE n. 36, jan./jun. 2009 CLÍNICA DA ANGÚSTIA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE Porto Alegre

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ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREn. 36, jan./jun. 2009

CLÍNICA DA ANGÚSTIA

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREPorto Alegre

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Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / AssociaçãoPsicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, -

Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU 159.964.2(05)CDD 616.891.7

Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área dePsicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.brImpressa em outubro 2009. Tiragem 500 exemplares.

REVISTA DA ASSOCIAÇÃOPSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

EXPEDIENTEPublicação Internan. 36, jan./jun. 2009

Título deste número:CLÍNICA DA ANGÚSTIA

Editores:Otávio Augusto W. Nunes e Beatriz Kauri dos Reis

Comissão Editorial:Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Maria Ângela Bulhões, Otávio Augusto W. Nunes,

Sandra Djambolakdjan Torossian, Valéria Machado Rilho, Roséli Maria Olabarriaga Cabistani,Simone Kasper, Aidê Ferreira Deconte, Clara Maria Von Hohendorff, Gardênia Medeiros, Larissa

Costa Scherer, Maria De Lourdes Duque-Estrada Scarparo e Ricardo Vianna Martins.

Colaboradores deste número:Marta Pedó, Paulo Gleich e Maria Lúcia Stein

Editoração:Jaqueline M. Nascente

Consultoria lingüística:Dino del Pino

Capa:Clóvis Borba

Sobre Pesadelo, de Fuselli

Linha Editorial:A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA quetem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contémestudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em ediçõestemáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além davenda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/oudoação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICADE PORTO ALEGRERua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS

Fone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922E-mail: [email protected] - Home-page: www.appoa.com.br

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SUMÁRIO

EDITORIAL............................ 07

TEXTOSActualidade da angústia:considerações sobre transferência edesejo do analista .............................. 09Actuality of anguish notes on transfer and thedesire of the analistRobson de Freitas Pereira

Uma carta perdida ............................. 20A lost letterMaria Cristina Poli

Angústias contemporâneas ............... 28Contemporary anxietiesRosane Monteiro Ramalho

Do resto ao lixo: a corrosãodo desejo na era dareprodutibilidade técnica .................. 38From the residue to trash: the corrosion ofdesire in the era of technical reproducibilityJaime Betts

Angústia e a orientação do sujeito .. 60Anxiety and the orientation of the subjectIsidoro Vegh

A angústia no princípioda clínica psicanalítica ...................... 75Anguish as a principle in psychoanalytical clinicLucy Linhares da Fontoura

A economia da angústiana adolescência .................................. 85The economy of anguish in adolescenceRoséli M. Olabarriaga Cabistani

A potência iconoclasta do objeto a:psicanálise e utopia ........................... 93The iconoclastic power of the object a: psychoanalysis and utopiaEdson Luiz André de Sousa

RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

Na transferênciae contratransferência ........................ 120Alice Bálint e Michael Bálint

ENTREVISTAMundo cão? Para uma teoriada clínica das depressões ............... 128Maria Rita Kehl

VARIAÇÕESNotas sobre a inibição... ................... 139Ricardo Goldenberg

O homem semqualidades, mesmo ........................... 142Elida Tessler

Esta velha angústia ........................... 102This old anguishMaria Ida Fontenelle

Vertigo A cartomante: vertigemmachadiana ....................................... 111Vertigo A cartomante: machadian vertigoLucia Serrano Pereira

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EDITORIAL

Durante dois anos, entre 2007 e 2008, a temática da angústia foi o eixo emtorno do qual se organizaram as atividades da Associação Psicanalítica de

Porto Alegre. Duas jornadas e um congresso, sustentados por intenso trabalhode cartéis preparatórios, foram realizados. A leitura e discussão do Seminário10 – A angústia –, de Jacques Lacan, foi desenvolvida no que convencionamoschamar na APPOA de Cartelão, sem esquecer dos textos freudianos fundamen-tais sobre a angústia.

Esta Revista é o terceiro número sobre o tema e resulta da reunião dostrabalhos apresentados no Congresso que a APPOA organizou, em novembrode 2008, e elaborados no âmbito desse vivo espaço de produção.

A angústia é um afeto, não qualquer afeto, mas o único que interessa àclínica psicanalítica. Afirmação curiosa; ainda mais quando vinda de alguémque, como Lacan, dizia não se ocupar dos afetos. Índice da responsabilidade doanalista, a angústia o incita a questionar como está conduzindo seu trabalho esua posição na transferência. Nesse sentido, não cessamos nunca de interro-gar e pensar seu manejo no campo da palavra.

Na letra de Lacan, a angústia revela-se fecunda. A propósito do tema,desenvolve o conceito de objeto a, ponto nodal em torno do qual se articulam ateoria e a clínica psicanalíticas.

A psicanálise kleiniana também tem a angústia como conceito central,porém a aborda a partir da teoria das relações de objeto. A formulação lacanianasobre o objeto a se distingue de tais elaborações, que situam a dualidade darelação analista/analisante.

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EDITORIAL

Em Freud encontramos a concepção de objeto como objeto perdido; emLacan, como objeto faltante. Pensar que ele esteja à frente do desejo, como umobjeto desejado, é apoiar-se numa miragem de gozo; cena da fantasia de ser-mos o que faltaria para realizar a demanda do Outro. Cena fantasmática queorganiza o cenário de nossa realidade e de nosso mundo. No entanto, o objetoque anima nosso desejo está atrás, ele é causa; sua função, pois, é furtar-se àcaptação.

Quando algo de nossa realidade muda, a cena também muda, e nãoconseguimos mais definir a demanda do Outro. Ocasião de emergência da an-gústia: no lugar da miragem de gozo, ao invés do objeto desejável, surge odesejante, perante o qual o sujeito se pergunta “que objeto a eu sou para odesejo do Outro?”. O sujeito não é senão signo do desejo do Outro, em posiçãode objeto a para tal desejo. Na falta de significante que represente o sujeito parao Outro, o Eu se desvanece. No lugar da unidade narcísica, há somente umcorpo tomado de sensações, reduto último de uma subjetividade em risco.

Ante a angústia, qual a direção da cura numa análise?Se a angústia é sinal, isso significa que ela remete a algo que não é ela

mesma, ela não representa a si mesma, mas ela pode dar pistas à intervençãoanalítica.

No que diz respeito à transferência, não cabe ao analista domesticar aangústia, nem tampouco induzi-la, ensina Lacan no Seminário dos Quatro con-ceitos fundamentais. O desejo do analista o colocará na via de suportar o lugarde semblante de a, fazendo aparência do objeto que causa o desejo, para man-ter a abertura à posição desejante do sujeito. Afinal, se a angústia surge noponto situado a meio caminho entre o desejo e o gozo, não seria o desejo o seumelhor “remédio”?

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TEXTOS

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 9-19, jan./jun. 2009

Resumo: O artigo contextualiza historicamente o Seminário da angústia, profe-rido por Lacan nos anos 1962-63, desdobrando seus efeitos político-institucionaise teórico-clínicos com relação à história da psicanálise, em especial os relacio-nados à abordagem da transferência e ao conceito de desejo do analista. Aofinal, introduz um comentário sobre a própria produção em ato do texto, a partirdos efeitos das outras falas proferidas durante o Congresso.Palavras-chave : Lacan, seminário da angústia, transferência, desejo do ana-lista.

ACTUALITY OF ANGUISHNOTES ON TRANSFER AND THE DESIRE OF THE ANALIST

Abstract: This paper contextualizes the Seminaire of Anguish, of Jacques Lacan,pronounced in the years 1962-63. This contextualization was done in terms oftheir political, institutional, theoretical and clinical aspects, all of them vital to thefuture of psychoanalisis. These subjects have influenced the work on transferand also the concept of desire of the analist. A comment on the conditions ofproduction in act, during a Congress with others psychoanalysts, is posted atthe end of the article.Keywords: Lacan, the seminaire of anguish, transfer, desire of the analist.

ACTUALIDADE DA ANGÚSTIAConsiderações sobretransferência e desejo do analista1

Robson de Freitas Pereira2

1 Trabalho apresentado no Congresso da APPOA: Angústia, realizado em Porto Alegre, emnovembro de 2008.2 Psicanalista; Membro da APPOA; Organizador do livro Sargento Pimenta Forever (PortoAlegre: Libretos, 2007); Coorganizador do livro Seminários espetaculares (Porto Alegre:Corag, 2002). E-mail: [email protected]

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Robson de Freitas Pereira

Texto e contexto

A fim de situar o leitor e contextualizar o escrito que vem a seguir, optamospor advertir que a parte inicial aponta três aspectos importantes para a

psicanálise, que podem ser lidos a partir dos efeitos do Seminário proferido porLacan ([1962-63] 2005) nos anos 1962-1963. Anos em que, acompanhados pelotema da angústia, evidenciam-se as mudanças clínico-conceituais e odirecionamento político institucional que viria marcar definitivamente os rumosda psicanálise contemporânea. Para os analistas que acompanharam essesacontecimentos direta ou indiretamente, isso talvez não seja novidade; mas,passados quase cinquenta anos, achamos importante situá-los para as novasgerações de psicanalistas, que se responsabilizam pelos efeitos dessas profun-das modificações em sua formação. Na parte seguinte do texto, tecemos consi-derações clínicas sobre a transferência e o desejo do analista. Trata-se de con-ceito cuja determinação mais precisa Lacan inicia neste seminário da angústia,e que segue sendo um legado a ser trabalhado por todo psicanalista que seaproprie da experiência de análise.

O seminário A angústia, 1962-1963 – ObservaçõesPolítico-institucionais – 1963 encerra “nossos mais belos anos”, no

dizer de Elisabeth Roudinesco (1988) em sua História da psicanálise na França,vol. II. Depois de dez anos de seminários na SFP (Sociedade Francesa dePsicanálise3 ) e negociações para o reconhecimento do novo grupo, termina olongo processo de avaliações. As críticas à análise didática (e consequentelugar dos didatas), às sessões de tempo variável e às mudanças conceituaissão inaceitáveis. A tentativa de impedir que Lacan continue com sua transmis-são e “análises didáticas” provoca sua definitiva saída da IPA (InternationalPsycoanalytical Association) e subsequente fundação da EFP (Escola Freudianade Paris) em 1964.

Questões clínicas – Uma clínica propriamente lacaniana tem sua confir-mação nesse momento. Analista não é sujeito (no senso comum) no decursodo tratamento; ele está no lugar do objeto, faz aparência desse objeto que écausa de desejo e resto simultaneamente. Por isso, interessa o corte que sus-tenta a abertura do inconsciente. Há a colocação em causa da concepção decontratransferência enquanto sustentação da identificação ao analista como ideal

3 A SFP consistia num grupo, liderado por Lacan, Dolto e Lagache, que rompeu com a Socie-dade Psicanalítica de Paris, fundada por Marie Bonaparte.

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de cura. A transferência implica uma imparidade4 suportada pelo analista e suaescuta do significante. Essa escuta, essencial na condução do tratamento, recu-sa a dualidade e reconhece a primazia do significante enquanto elemento funda-mental no trato com a linguagem, em sua enunciação através das formações doinconsciente. A ultrapassagem da angústia implica o desejo do analista.

Questões conceituais – O desejo do analista é o fio condutor do Semi-nário desde as primeiras aulas. Como é de seu estilo, Lacan ([1962-63] 2005)vai fazendo aproximações diversas para evidenciar esse conceito novo. Entre asmais importantes, o questionamento da noção corrente (naquela época) decontratransferência. Não para descartar os efeitos e vicissitudes do cotidiano daclínica; mas justamente para reconhecer nela os efeitos da divisão subjetiva,apontando assim outro eixo de abordagem aos trabalhos da época, que seocupavam do tema da contratransferência. Além disso, Lacan inova ao afirmarque a angústia tem objeto (ela não é sem objeto); ele é o mesmo da estrutura dofantasma e do desejo. Esse objeto não especularizável se mostra na operaçãode corte, numa topologia que evidencia a divisão do sujeito e responde ao sinalda angústia. Índice da responsabilidade do analista, que se vê questionado eincitado a dizer como está conduzindo seu trabalho. Abertura de espaço paraque cada um possa dizer como está respondendo ao Che vuoi?5 desencadeadopor seu desejo.

Os três tópicos, citados resumidamente acima, articulam-se borromea-namente no percurso do analista, seja nos espaços de formação, seja na clínicacotidiana, ou mesmo nos debates públicos com outros discursos6. Pois, quan-do falamos, descrevemos7 um Outro que se encarna: a) num discurso; b) num

4 No sentido de que não se trata de uma relação dual. É uma situação ímpar, não há paridade.Ela é, no mínimo, ternária.5 Referência à novela de Cazotte (1992), O diabo enamorado, e ao grafo do desejo, ainda emconstrução, mostrado na primeira aula do Seminário.6 A partir do final do Seminário de 1962-63, no qual Lacan fala da transferência e do desvane-cimento da angústia, quando o Outro foi nomeado – pois só existe amor por um nome –,podemos pensar a necessidade de articular o discurso psicanalítico com outros discursosque se ocupam da angústia e de suas representações/manifestações. Com a literatura e suasficções, que têm valor de verdade. Com as artes plásticas, e sua função de apontar o furo eo mal-estar em que ancoramos nossa angústia. Com a economia e suas respostas para ouniverso das mercadorias. Com a música, produzindo esse efeito a partir do intervalo entre osom e o silêncio. Com a medicina, principalmente a ciência psiquiátrica, que tenta organizar oreal nomeando as manifestações sintomáticas.7 Esta é uma descrição muito particular; pois ela depende das condições enunciativas, ou seja,inconscientes. Como afirmamos logo adiante, nomear também é uma maneira de performatizar o Outro.

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semelhante. O que nos leva a cogitar que as diferentes formas de diálogo sãotambém formas diferentes de nomear o Outro, que, com sua demanda difusa,não enquadrada, desencadeia o sinal de angústia. O sinal do Real. Real queirrompe no campo do imaginário, provocando uma série de efeitos.

Isso difere a cada encontro, entrevista, a cada situação dada. E acres-cente-se que, quando queremos transmitir algo, falamos como analisantes. Daíque, apesar de nosso arsenal conceitual (nossas ferramentas, como considera-va Freud, citado por Lacan no início do seminário da angústia), nosso linguajarpeculiar, nossos conceitos, não são suficientes para dar conta do que tentamosabordar. Assim, tentamos construir, performatizar um assunto, um tema – aangústia, em suas diversas abordagens.

A partir daqui, podemos perguntar: essas “diversas abordagens” não se-rão, elas mesmas, maneiras diversas de dar conta do sinal do Real, que é aangústia? Por que, ao reconhecer que a conceitualização psicanalítica não é aúnica, temos que admitir que há outras formas de dar conta desse afeto primor-dial, outras formas de nomear8 o Outro, o outro lugar onde se situa o objeto daangústia, que é o mesmo objeto do desejo e que estrutura o fantasma (fantasia)primordial. Nomear o Outro implica outra questão: quem é o Outro a quem nosdirigimos?

Quando se trata da psicanálise, da condução de uma análise, estamosreferidos a um trabalho que responsabiliza cada analista e se realiza a cadavez que o psicanalista contribui com algo de seu estilo, dizendo como estáfazendo, como está lidando com essa dimensão que irrompe no campo doimaginário (parafraseando uma das conceituações da angústia: o real queirrompe no campo do imaginário). Daqui podemos passar a algumas considera-ções sobre a clínica.

Considerações clínicas a respeito da transferência e do desejo doanalista

“Certamente convém que o analista seja aquele que, minimamente, nãoimporta por qual vertente, por qual borda, tenha feito seu desejo entrar suficien-

8 A psicanálise nos faz reconhecer esta especificidade no trato com o Nome. Lacan ([1961-62]2003) trabalhou bastante esse tema no Seminário 9, A identificação, imediatamente anteriorao da Angústia. Mas neste caso podemos nos referir também ao trabalho vindo de outroscampos, vide T. Todorov (1991), em seu livro A conquista da América – a questão do outro.Aqui nos interessa reafirmar a contribuição forte da psicanálise à cultura e, simultaneamente,a influência dessa cultura sobre o trabalho dos psicanalistas e sua elaboração.

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temente nesse a irredutível para oferecer à questão do conceito da angústiauma garantia real” (Lacan, [1962-63] 2005, p. 366)9.

Ao longo de seu percurso clínico, muitos analistas certamente já se sen-tiram “enganados” pelos ditos do analisante. Inúmeros são os exemplos quepoderiam ser trazidos, mas gostaríamos de preservar a singularidade de cadaum; por isso, vamos nos referir apenas a esse traço que remete ao momento emque se realiza um reconhecimento do equívoco. Quando as pessoas falam queestão em análise10 por algum motivo e quando esse motivo ameaça tornar-serealidade, que está acontecendo ou dá grande indícios de que pode acontecer,sobrevém uma intensa angústia, um desamparo que faz o analista pensar: “Maso que eu estava escutando até agora? Como pude deixar me enganar assim?”Momento de angústia em questões eminentemente transferenciais.

Quando escutamos, estamos imersos na transferência. Talvez por issoLacan alertasse que a escuta do significante não nos livra do imaginário, nãofornece garantias antecipadas. Mas essa é a condição de qualquer análise;deixar-se levar pelo equívoco. Deixar-se levar pelo engano amoroso que permiti-rá, no melhor dos casos/caos, produzir um saber que possibilita ao sujeito deci-frar-se. Lembremo-nos de que o inconsciente é nosso patrimônio de saber. Umsaber insabido, que não se confunde com o patrimônio em seu sentido de pro-dução de signos e ícones históricos. Mas que está referido ao patronímico e aosdetalhes que conformam a justa medida, a boa/plena palavra, ao bem dizer.

Ao longo do seminário de 62/63, o trato com o conceito de desejo doanalista está em pauta, às vezes explicitamente, outras vezes implícito na dis-cussão do que sustenta a análise – vide a discussão dos autores da época. Sãovários casos analisados e sua trajetória11.

Em determinado momento, Lacan situa a angústia como o termo médioentre o gozo e o desejo. Ultrapassar o momento de angústia é uma forma de irao encontro do exercício do desejo e não ficar preso ao gozo que precede a

9 “Assurément, Il convient que l’analyste soit celui qui ait pu, si peu que ce soit, par quelquebiais, par quelque bord, assez faire rentrer son désir dans ce a irréductible pour offrir à laquestion du concept de l’angoisse une garantie réelle” (Lacan, [1962-63], leçon du 03/07/63,p.385 ).10 As queixas e o sofrimento que determinam a procura da análise são os mais variados, todoseles da ordem do verdadeiro. Estamos nos referindo àqueles momentos em que o motivo daprocura – “quero me separar”, “não aguento mais a vida que estou levando”, “não suportomais este trabalho”, “não suporto a solidão” – encontra sua realização. O desejo manifesto serealiza e, imediatamente, tudo parece desmoronar.11 De um Outro ao outro, título de seminário de Lacan ([1968-69] 2004). Análise é fazer o trajetoda castração imaginária ao objeto causa do desejo.

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angústia12. Dessa forma, o momento de surpresa, de reconhecimento de queestávamos enganados, junto com o outro a quem escutamos, é fundamental.Tanto para ser ultrapassado (dando uma chance ao desejo), quanto para nãoficar preso na frustração, ou na crítica superegoica que atinge o narcisismo doanalista. Essa ultrapassagem da angústia dá-se pela realização de que nomearo Outro é também sustentar o desejo de que a análise esteja em pauta, sigaseu curso, uma vez que, no trabalho com a angústia, aprendemos que o Outrofunciona como espelho.

O Outro como espelho, nas palavras de Lacan:

Há, no estágio oral, uma certa relação da demanda com o desejovelado da mãe. No estágio anal, há para o desejo, a entrada emjogo da demanda da mãe. No estágio da castração fálica, há omenos-falo (menos fi), a entrada da negatividade quanto ao instru-mento do desejo, no momento do surgimento do desejo sexualcomo tal no campo do Outro. Mas, nessas três etapas, o proces-so não se detém, uma vez que, em seu limite,deveremos encon-trar a estrutura do a como separado.Não foi à toa que hoje lhes falei de um espelho, não o do estádiodo espelho, da experiência narcísica, da imagem do corpo emsua totalidade, mas o espelho como campo do Outro em que deveaparecer pela primeira vez, se não o a, pelo menos seu lugar – emsuma, a mola radical que faz passar do nível da castração para amiragem do objeto do desejo (Lacan, [1962-63] 2005, p. 251)13.

Assim, o objeto do desejo pode ser sustentado não somente como frutoda relação especular, como simples jogo de espelhos côncavos, convexos, ou

12 Vide textos do Correio da APPOA – O seminário da angústia, n. 173, Porto Alegre, out. 2008.13 “Il y a, au stade oral, um certain rapport de la demande au désir voilé de la mère; Il y a austade anal, l’entrée en jeu pour le désir de La demande de la mère; Il y a au stade de lacastration phallique, le moins-phallus –Φ, l’entrée de la négativité quant à l’instrument dudésir, au moment du surgissement du désir sexuel comme tel dans le champ de l’autre. Maislà, à ces trois étapes, ne s’arrête pas pour nous la limite ou nous devons retrouver lastructure du a comme separe. Mais ce n’est pás pour rien qu’aujourd’hui jê vous ai parléd’un miroir, non pas du miroir au stade du miroir, de l’expérience narcisique, de l’image ducorps dans son tout, mais du miroir, em tant qu’il est ce champ de l’Autre ou doit apparaîtrepour la première fois, sinon le α, δυ moins sa place, bref le ressort radical qui fait passer duniveau de la castration au mirage de l’object du desir” (Lacan, [1962-63], leçon du 8/05/63, p.264).

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planos, em que a experiência especular conforma o narcisismo, ao antecipar acompletude corporal; mas também com uma relação com o campo do Outro,com o campo das palavras, com o lugar das enunciações ainda por encontrar.

Isso pode relançar uma análise, além das expectativas de sucesso oufracasso pessoal do analista, ou mesmo ao atravessamento do malogro dastentativas de gozo do analisante. Sucesso e gozo sem pagar o preço, ou aqualquer preço, são esperanças maniqueístas, como se o mundo se resumisseao nosso “umbigo”14. Uma análise vai além do corpo do analista (e mesmo deseu espírito de corpo, ou ”espírito de porco”, na relação com seus pares). Seconfiamos no inconsciente e nos efeitos de nossa própria experiência comoanalisantes, temos a chance de não ficarmos presos no narcisismo especular.Superar a especularidade é reconhecer que há um outro lugar onde podemoslocalizar o objeto do desejo. Uma vez que o campo do Outro também é o lugar,por excelência, desse objeto não especularizável.

Pois como afirma Lacan na última aula do Seminário:

Só há superação da angústia quando o Outro é nomeado. Sóexiste amor por um nome, como todos sabem por experiênciaprópria. No momento em que é pronunciado o nome daquele oudaquela a quem se dirige nosso amor, sabemos muito bem queesse é um limiar da maior importância” (Lacan, [1962-63] 2005, p.366)15.

Um limiar que implica nossa relação com a castração, com seus desdo-bramentos imaginários e simbólicos, pois necessitamos de recursos e referên-cias simbólicas para lidar com essa diferença que faz limite a nossa imagem,ou a uma idealização dela.

Qual é a função da castração nesse objeto, nessa estátua, detipo tão comovente que é, ao mesmo tempo, nossa imagem e

14 Não vamos comentar aqui os desdobramentos sobre a transferência feitos no seminário 11,em que automaton e tiché e alienação e separação são elementos essenciais. Em outromomento, Lacan vai afirmar que análise é uma experiência em fracasso. Fracasso do impera-tivo do gozo. Fracasso da dualidade winner or loser. Fracasso em que a religião pode triunfar.15 “Il n’y a de surmontement de l’angoisse que quand l’Autre c’est nommé. Il n’y a d’amour qued’un nom, comme chacun le sait d’expérience et le moment ou le nom est prononcé de celui oude celle à qui s’adresse notre amour, nous savons très bien que c’est un seuil qui a la plusgrande importance” (Lacan, [1962-63], leçon du 03/07/63, p. 384).

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uma outra coisa, ao passo que, no contexto de uma certa cultura,parece não ter relação com o sexo? (Lacan, [1962-63], 2005, p.251)16.

Lacan aponta esse como um fato característico, de nossa cultura, diriaeu. Poderíamos recorrer a mais uma citação que encerra o seminário e preparaOs nomes do pai, interrompido após uma única aula17. “O que faz de uma aná-lise uma aventura singular é a busca do ágalma no campo do Outro” (Lacan,[1962-63] 2005, p. 366)18.

Para nomear, sempre parcialmente, o objeto que se situa no campo doOutro, é necessário o engano da transferência. Para ultrapassar o momento deangústia é necessário o desejo do analista. Complementando a primeira cita-ção: “Interroguei-os diversas vezes sobre o que convém que seja o desejo doanalista, a fim de que seja possível o trabalho ali onde tentamos levar as coisasalém do limite da angústia” (Ibid., p. 366)19.

No trabalho de elaboração das interrogações é que se articulam transfe-rência, nominação, corte, para levar a análise além do limite da angústia. Certa-mente que esse desejo do analista se articula com o ato. Um ato de palavra, decorte que atualiza20 a realidade do inconsciente – via transferência, como vimosno Seminário 11 (Lacan [1964] 1979) – que é sempre sexual, nesse sentido doque falha, da impossibilidade que faz interrogação na vida amorosa/sexual decada um, analista incluído. Daí termos que nos haver com o horror ao ato: peloque se diz e por suportar suas consequências, indo além do sofrimento narcísico.A superação do engano/equívoco amoroso da transferência pelo que se escuta eprovoca angústia e aturdição; pois que se diga fica esquecido atrás do que se diz,

16 “Quelle est la fonction de la castration dans ce fait étrange que l’object du type le plusémouvant, pour être à la fois notre image e autre chose, puisse apparaitre à ce niveau, dansum certain contexte, dans une certain culture comme sans rapport avec le sexe” (Lacan,[1962-63], leçon du 08/05/1963, p. 264).17A interrupção dos seminários acontece no contexto citado anteriormente. Lacan, e seugrupo da SFP, seria aceito na IPA se renunciasse à coordenação da transmissão e à conduçãode análises visando à formação de analistas.18 “Ce qui fait d’une psychanalyse une aventure unique est cette recherche de l’ágalma dan lechamp de l’Autre” (Lacan, [1962-63], leçon du 03/07/1963, p.384).19 “Je vous ai plusiers fois interrogé sur ce que convient que soit le désir de l’analyste pourque, là où nous essayons de pousser les choses au-delà de la limite de l’angoisse, le travailsoit possible” (Lacan, [1962-63], leçon du 03/07/63 , p. 384).20 Insistimos nesta condensação de ato, atualidade e atual, para demonstrar que os atosdeterminam a atualidade e estão articulados à realidade psíquica.

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Actualidade da angústia

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naquilo que se escuta. Vamos deixar para outro momento o trabalho de nos inter-rogarmos sobre outras referências que sustentam o desejo do analista, apenasapontando que os Nomes do Pai são uma delas e não de menor importância.

Pós-escrito ou texto e contexto IISeguem algumas observações posteriores ao texto, contextualizando sua

apresentação no congresso da APPOA, em novembro de 2008.Ao iniciar a conferência, última antes do encerramento, começamos por

reconhecer a persistência dos que ali ficaram. E muitos estavam presentes. Éum misto de surpresa e reconhecimento pelo interesse no tema.

A modo de introdução, constatamos o fato de nossa fala estar influencia-da por tudo o que havíamos escutado ao longo daqueles dias. As mesas quenos precederam e deram ensejo a que modificássemos ou acrescentássemospartes ao que iríamos desenvolver naquele momento.

Nesse sentido, a mesa anterior, em que Mário Corso e Lucia Pereirahaviam desdobrado situações, mostrando como a literatura influenciava nossotrabalho, era a mais recente, as palavras deles ainda ressoavam no ambiente.

Assim, nos servimos delas para antecipar, ou ajudar a encaminhar o quegostaríamos de dizer: “Cuidado com aquilo que desejas!”, pois pode acontecer.

A cena de Franskenstein,21 vendo o nascimento da criatura, é exemplar.Depois de todo seu esforço, o doutor está diante de sua criatura e, para seuespanto, ela abre os olhos! Está viva! Frankenstein se vê no olhar do outro, desua criatura. Aquela que não terá nome ao longo da história, e só será nomeadacom o nome de seu criador. Terá, por fim, o nome do pai. Assim a advertência –“Cuidado com o que desejas!” – vinda dos artistas plásticos, do cinema, alémdos psicanalistas, poderá ser retomada mais tarde.

Mas outras associações acrescentam-se. Uma delas, O jovem Frankenstein,de Mel Brooks22. Paródia mordaz do clássico, desta vez reencenado com humore ironia. Uma dessas ironias: o encontro com o cego na cabana. Entenda-se: acriatura, depois de fugir do castelo, encontra uma cabana onde vive um ermitãocego. No filme, esse homem que não enxerga, mesmo contente com a inespe-rada visita, involuntariamente inflige sofrimentos ao monstro, que não fala, só

21 Aqui estamos nos referindo ao filme de 1931, dirigido por James Whale e estrelado por BorisKarloff, que deu imagem ao personagem literário. A figura com os pinos nas têmporas perma-nece até hoje como representação do monstro criado por Mary W. Shelley.22 O jovem Frankenstein, dirigido por Mel Brooks. Comédia em que o neto do Barão Franskensteinretorna ao castelo original, depois de tentar negar sua ascendência, modificando até a pro-núncia do nome próprio. Ou seja, não queria assumir a herança que lhe cabia.

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1818

Robson de Freitas Pereira

emite grunhidos. De dor, quando sua mão é colocada no fogo, ou quando oceguinho derrama água fervente no seu colo. Grunhidos e gemidos que ficammuito diferentes quando ele quer “fazer amor” com sua escolhida (que chega acantar árias ao ser penetrada). Temas esparsos, que não serão retomados: 1. Ocego, desde Tirésias, é uma representação do psicanalista, no teatro ou nocinema, geralmente para fazer piadas. Tomando a piada como formação doinconsciente, para que não esqueçamos o quanto temos que ter cuidado parareconhecer que muitas vezes tateamos no escuro; e que com um pouco de luz,um saber se constrói com o outro; 2. Os grunhidos começam a se transformarem linguagem, quando buscam nomear formas diferentes de se relacionar como objeto do desejo. Linguagem e sexualidade estão articuladas, para o bem epara o mal, ou parafraseando: para o desejo e para o gozo, angústia mediante(sem esquecer o sintoma).

Letra final, restos poéticosAo final, queria ler uma canção, com letra de Wally Salomão e Antonio

Cícero. Wally tinha sido citado, neste congresso, mais de uma vez, em traba-lhos anteriores (lembro Ana Costa, Edson Sousa e Maria Cristina Poli).Babilaques, sua exposição póstuma, condensação de Babilônia e badulaques,seus livros, sua prosa caudalosa, poderiam servir de veículo para tocar no temaBabilônia, Babel. Nossa Babel de falas e letras. Nossa Babel necessária, paraque possamos exercitar um convívio e compartilhar nossa experiência com apsicanálise.

Achava que a música se chamava Babilônia. Engano, equívoco meu.Título original: Holofotes (aqueles que iluminam coisas).

Mas lembrava de parte da letra:

“dias sem carinho, mas eu não me desespero/rango alumínio, ar,pedra, carvão e ferro/Eu lhe ofereço, estas coisas que enumero/pois quando fantasio équando sou mais sincero/Eis a Babilônia amor, Eis Babel aqui/ algo da insônia/ do seusonho antigo em mim”(Holofotes, letra de Wally Salomão e Antonio Cícero, música deJoão Bosco).

Busquei, encontrei o LP de vinil original, em que João Bosco havia pro-posto aos dois poetas uma parceria inédita. Ele forneceria as músicas, elescolocariam letra. Título do álbum: Zona de fronteira.

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Actualidade da angústia

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Imprimi a letra para levar ao congresso. Ao chegar no final da conferência,quando fui buscá-la, não encontrei. Estava perdida, esquecida em casa, sótinha o recurso da memória, do corpo, da pele do texto. Tive que aceitar oequívoco; não precisava da letra impressa, interessava a parte que estava im-pressa em mim, em algum lugar do corpo, do esquecimento, da memóriarememorada.

“A letra voou”Nas discussões com o público, Élida Tessler lembrou um episódio curio-

so; há algum tempo, em 2007, Wally Salomão estava fazendo uma leitura deseus poemas na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre. Quando quis mostrarjustamente a letra de Holofotes; pois estava falando do trabalho de parceria comAntonio Cícero e João Bosco, a folha voou. Um vento forte a levou mundo afora.

Era isto. Tive que reconhecer que queria falar/mostrar isso mesmo queaconteceu, agregar o eusquecimento (o eu tem que ficar esquecido) para cons-truir algum saber, ou mesmo para constituir uma escuta analítica.

REFERÊNCIASAPPOA. Correio da Appoa – O seminário da angústia, n. 173, Porto Alegre, out. 2008.CAZOTTE, Jacques. O diabo enamorado. Rio de Janeiro: Imago, 1992.LACAN, Jacques. Le seminaire, Les non dupes errant. Paris: ALI, 1981. (Publicacionhors commerce)LACAN, Jacques. De um Outro ao outro – seminário [1968-69]. Recife: CEF, 2004.(Publicação não comercial)_____ . O seminário, livro XI – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979._____ . Le seminaire l’angoisse [1962-63]. Paris: ALI. (Publicacion hors commerce)_____ . O seminário, livro X – a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2005._____ . A identificação – seminário [1961-1962]. Recife: CEF, 2003. (Publicação nãocomercial)_____ . Television [1974]. In: LACAN, J. Autre écrits. Paris: Seuil, 2001. [Ed bras.:Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003]ROUDINESCO, Elisabeth. História da psicanálise na França. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 1988. v. II.TODOROV, Tzvetan. A conquista da América – a questão do outro. São Paulo: MartinsFontes, 1991.

Recebido em 15/05/2009

Aceito em 05/06/2009Revisado por Valéria Rilho

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TEXTOS

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Resumo: A relação entre a literatura e a psicobiografia do autor é interrogada apartir da análise da obra de Clarice Lispector. Em particular, a segunda fase desua produção, na qual se observa a inflexão no estilo de sua escrita, contempo-rânea às crises de angústia vivenciadas pela autora. Buscaremos demonstrar oefeito de “desamarração”, de “desenlace”, que uma produção literária pode ter.Trata-se, pois, de interrogar o quanto tal inflexão do estilo, tem relação com oobjeto da angústia, o que nos permite inferir os efeitos dessa questão para aclínica psicanalítica dos estados de angústia.Palavras-chave: psicobiografia, literatura, angústia, estilo, Clarice Lispector.

A LOST LETTER

Abstract: This article interrogates the relationship between literature and theauthor´s psychobiography from the analysis of Clarice Lispector´s work. Speciallythe second phase of her production, in which an inflection in the writing style isobserved, meanwhile anxiety crisis were experienced by the author. We aim todemonstrate the effect of an unleashment which a literary production might have.This means that we interrogate if the inflection is related to the object of anxiety,what allow us to infer its effects to the psychoanalytical clinic of anxiety states.Keywords: psychobiography, literature, anxiety, style, Clarice Lispector.

1 Trabalho apresentado no Congresso da APPOA: Angústia, realizado em Porto Alegre, emnovembro de 2008.2 Psicanalista; Membro da APPOA; Doutora em Psicologia pela Université Paris 13 e Pós-Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professora adjunta do Programa de Pós-Gradua-ção em Psicologia Social /UFRGS e do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA/RJ. Coordena, junto com Edson Luiz André de Sousa, o LAPPAP – Laboratório de Pesquisa emPsicanálise, Arte e Política. Pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected]

UMA CARTA PERDIDA1

Maria Cristina Poli2

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 20-27, jan./jun. 2009

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Uma carta perdida

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Este trabalho parte da indagação motivada pelos efeitos do encontro com aobra de uma das principais autoras da literatura brasileira: Clarice Lispector.

Formularíamos inicialmente a questão do seguinte modo: qual a relação entreangústia e produção literária? Não a angústia do leitor diante do texto literário.Essa também existe e interessaria à psicanálise pensar de que modo o escritorconsegue incluir na arte da escrita a presentificação do objeto da angústia como qual o leitor vai se confrontar; questão, aliás, da qual se ocupou Freud ([1919]1988) na abordagem do Unheimlich. Não é disso que trataremos, no entanto.Tampouco nossa questão se dirige à angústia que move o autor na produção desua obra. Questão igualmente pertinente e cuja relação com o que em literaturase denomina de “angústia da influência” – uma espécie de “temor do plágio” –caberia precisar. A questão na qual nos deteremos neste trabalho é antes a daangústia como aquilo que “escapa” ao processo de escrita literária, sendo aomesmo tempo produzido por ele. A angústia como efeito de uma letra-carta queextravasa o texto, atingindo seu autor. Ou, dito de outro modo, para não incorrerem falsas generalizações, a angústia que acometeu Clarice a partir de dadomomento de sua produção literária e que, segundo nossa leitura, coincide como exercício de certo estilo de escrita que se impôs a ela.

Dessa angústia, temos o testemunho daqueles que lhe foram próximos,transcritas nas biografias, e de algumas cartas trocadas com parentes e ami-gos, publicadas postumamente. A obra literária de Clarice Lispector foi escritaentre 1944 (ano do primeiro romance, Perto do coração selvagem) e 1977 (anode sua morte e da publicação de A hora da estrela). Alguns escritos foram aindapublicados postumamente, como Um sopro de vida, compilação de escritosrecolhidos e organizados por Olga Borelli, amiga inseparável de Clarice nosúltimos anos de vida.

É de Olga que provêm os principais testemunhos sobre a angústia queacometia Clarice:

Não é fácil ser amiga de pessoas muito centradas em si mesmas.Clarice era deste tipo e portanto exigia e absorvia bastante todasas pessoas de quem gostava. Tinha grande dificuldade para dor-mir e inúmeras madrugadas telefonava-me para se dizer angustia-da e tensa. Acho que jamais esquecerei uma época em que fuipara Salvador dar um curso. Uma noite, ao chegar no hotel, recebirecado para lhe telefonar com a maior urgência. Sua voz ao telefo-ne estava estranha: ‘Olga, estou tão aflita. Numa angústia enor-me. Não sei o que pode acontecer comigo. Volte o mais breve quevocê puder.’ Cancelei tudo e vim encontrá-la no dia seguinte na

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Maria Cristina Poli

hora do almoço rindo, bem disposta. Sabe o que me disse? Queeu a levava muito a sério e que tinha apenas me precipitado aovoltar. É claro, fiquei chateadíssima, mas aprendi muito com ahistória (Borelli apud Gotlib, 1995, p. 399-400).

É preciso acrescentar que o que Olga aprendeu foi a dimensionar o tama-nho da angústia que acometia Clarice, sua necessidade efetiva em se fazeracompanhar. Em outro momento, é ainda ela que confere o seguinte testemu-nho sobre a escritora:

Ela sempre dizia: “E agora?”. Você imagina ser amiga de umapessoa que, a todo instante, pergunta: “E agora?”. Agora lanchar,tomar um chá num tal restaurante – nós íamos no Méridien. Termi-nava de tomar o chá, pagava a conta, ela perguntava: “E agora?” eagora nós vamos para casa ver televisão. “E agora? E agora? Edepois? E depois?” Era assim (Borelli apud Gotlib, 1995, p. 441).

Tomamos esses recortes sobre Clarice não para interrogar a angústiaque a acometia em sua relação exclusiva com sua biografia – o que não tería-mos condições de fazer: ler as biografias e conhecer a obra não autoriza atransformar sua autora em um caso clínico. Interessa-nos é o quanto podemosreconhecer nesses testemunhos a assunção de uma determinada posição suacomo autora e pensar a angústia como efeito de uma mudança operada em seuestilo de escrita.

Na obra de Clarice, podem-se reconhecer dois momentos bastante dis-tintos. Um, primeiro, composto basicamente de seus quatro primeiros livros –Perto do coração selvagem, O lustre, Cidade sitiada e A maçã no escuro – nosquais o enredo já é perpassado pelas marcas estilísticas que a caracterizam (oimpressionismo, as elucubrações existenciais, etc.), mas que se sustentamem dramas passionais, nos quais as condições das relações amorosas e osdesafios identitários (masculino-feminino) dão a tônica da história. Já na segun-da fase de sua obra, a partir de A paixão segundo G.H., incluindo Água-viva e Ahora da estrela, entre outros, temos o que alguns críticos denominaram dedesficcionalização da obra. São textos cujo cerne não está propriamente noenredo e na construção de personagens, mas no cair das máscaras, na busca(impossível) do ponto de encontro entre ser e linguagem. A posição do narradoraí, sobretudo, é indiscernível daquela do autor, misturando-se com ela.

Lucia Castello Branco (2000) denominou esse tipo de escrita – reconhe-cível em muitos autores, como Beckett, Joyce e Llansol – do trabalho com a

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Uma carta perdida

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letra na produção de uma textualidade que é diferente daquela que se dá nosescritos que se organizam pela narratividade. É a letra em sua dimensão delitoral, de lixo, fazendo lituraterra, como nomeia Lacan ([1971] 2003). Outra coi-sa é o trabalho com a letra como constituindo uma narrativa. Aí estamos naoperação literária propriamente dita. O que autores como Clarice, Beckett eJoyce produziram como estilo é da ordem da lituraterra, é da ordem de umaletra-carta que não chega ao seu destino, como indica Claudia Rego (2005) apropósito da poetiza Ana Cristina César. Nesses escritos, rompem-se as fron-teiras entre autor e personagem, entre ficção e realidade. Como escreve Rego,“o texto não é auto-biográfico. É ato biográfico” (Ibid., p. 105).

Nesse sentido, parece evidente que diferenciar a angústia da pessoa deClarice daquela da autora Clarice Lispector implica situar uma clivagem insus-tentável. Até porque é do segundo tempo de seu trabalho – tempo do trabalho delituraterra – que a angústia que relatamos emerge. A primeira parte da obra épraticamente toda produzida no exterior, onde acompanhava o marido em suasfunções diplomáticas. Desse período temos as cartas trocadas com amigos eparentes, e que expressam períodos de grande solidão e tristeza, porém nadasemelhante ao que será vivido como angústia posteriormente. Em 1959, separa-se e instala-se no Rio de Janeiro com os dois filhos. É nessa época que se dáa “virada” em sua produção.

O eu do autor e a angústia da obraAntes de seguirmos essa via de análise, cabe situar melhor aqui uma

questão de método. Pois é preciso que se diga que a pergunta sobre a angústiacomo efeito da produção literária coloca para a psicanálise um desafio de méto-do, na medida justamente em que é impossível elidir dessa questão a pessoado autor. Se é o “eu” a sede da angústia, como bem destacou Freud ([1926]1988), é o “eu” de Clarice que está aí implicado. “Eu”, esse, que ela busca emsua obra reduzir a uma pura condição de enunciação, um eu que ao longo danarrativa experiencia o despojamento de suas qualidades (A hora da estrela), oatravessamento de suas posições identificatórias (A paixão segundo G.H.), abusca última de uma forma de dizer o indizível (Água-viva).

Essa “paixão pelo real”, que conduz Clarice em sua última produção,cobra seus efeitos. Como ela mesma nos diz, em seu livro póstumo, Um soprode vida: “O objeto – a coisa – sempre me fascinou e de algum modo me des-truiu” (Lispector [1978]1999, p. 104).

Retomemos, então, por um instante a análise de Lacan ([1958] 1998) sobreA juventude de Gide ou a letra e o desejo, texto no qual tampouco Lacan se eximede incluir a psicobiografia do escritor (escrita por Delay) na leitura de sua obra.

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Maria Cristina Poli

A psicanálise só se aplica, em sentido próprio, como tratamento, eportanto, a um sujeito que fala e ouve. Fora desse caso, só podetratar-se de método psicanalítico, aquele que procede à decifraçãodos significantes, sem considerar nenhuma forma de existênciapressuposta do significado. O que o livro em exame [A psicobiografiade Gide] mostra brilhantemente é que uma investigação, na medidaem que observa esse princípio, pela simples honestidade de ade-quação ao modo como um material literário deve ser lido, encontrana ordenação de sua própria narrativa a própria estrutura do sujeitoque a psicanálise designa (Lacan, [1958] 1998, p. 758).

É possível, portanto, ler o texto literário em sua relação com a biografiado autor de modo a encontrar aí “a própria estrutura do sujeito que a psicanálisedesigna”. Em relação a Gide, o ponto salientado por Lacan é o episódio de suabiografia, retomado pelo próprio em um texto autobiográfico, no qual sua espo-sa, Madeleine, se sentindo traída, queima as cartas de amor que Gide lhe ende-reçara por muitos anos. A história é bastante conhecida: Gide era homossexuale tinha com Madeleine – que além de esposa era também sua prima – um“casamento casto” acordado entre ambos. O que não impediu Gide de ser efe-tivamente apaixonado por Madeleine e de lhe ter escrito uma longa correspon-dência amorosa, incinerada por ela.

Após a morte de Madeleine, Gide escreve o livro no qual narra de modoressentido o episódio da queima das cartas: “talvez não tenha havido jamaistão bela correspondência”. Lacan, no texto sobre Gide, analisa não apenas oato de Madeleine (um ato que, segundo ele, faz dela uma verdadeira mulher aodestruir aquilo que lhe tinha sido dado de mais precioso). Ele considera tam-bém a reação ressentida de Gide ao luto pela morte de Madeleine: reagindo àperda da mulher amada, ele a culpabiliza pela perda das cartas. Gide, escreveLacan, reage como uma fêmea ferida no ventre (como a mãe que perde umfilho), sentindo a perda como a “devastação de uma privação desumana”. Ointeressante é que Lacan acrescenta ter sido esse ato (a destruição das car-tas) que permitiu situar ali, em Gide, a “letra do desejo”. A ferida no ventre“preenche com exatidão o vazio que o ato da mulher quis abrir em seu ser”(Lacan, [1958] 1998, p.772). A perda das cartas (de seu objeto mais precioso)situa, portanto, a possibilidade de abertura para o desejo.

Qual o estatuto dessa carta perdida? Aqui Lacan fala em luto, em devas-tação e ressentimento. Porém, trata-se de uma perda que permite, em suaelaboração pela escrita, algo de um acesso ao desejo. Nem sempre, contudo –acrescentaríamos –, é assim que as coisas se passam.

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Uma carta perdida

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No seminário A angústia, no capítulo “De uma falta irredutível ao signifi-cante”, Lacan ([1962-63] 2005) retoma a diferença, antiga já nessa época, entrecastração e privação, tirando outras consequências. Ele propõe dois apólogos:um livro está fora de seu lugar na biblioteca. Tal ordem de falta é perfeitamentenomeável, na medida em que há uma ordem simbólica, uma série (a biblioteca),na qual uma falta é reconhecida. O que “falta em seu lugar”, dá as condiçõespara que um significante (simbolizado pelo livro) possa representá-lo. Essa é afunção do falo na castração. Mas Lacan continua: suponhamos que nesse livroesteja escrito: “faltam quatro gravuras” (p.147). Nesse caso, não adianta resti-tuir o livro ao seu lugar na prateleira, que as gravuras não retornam. Ou seja, háum outro tipo de falta – a privação – que situa um objeto insubstituível: o objetoa. É certo que ele pode ser cifrado, pode ser escrito, mas não é imaginarizável,nem apreensível. Conforme suas palavras:

A falta é radical, radical na própria constituição da subjetividade, talcomo esta nos aparece por via da experiência analítica. Eu gostariade enunciá-la com esta formulação: a partir do momento em queisso é sabido, em que algo chega ao saber [em que algo é escri-to?], há alguma coisa perdida, e a maneira mais segura de abordaresse algo perdido é concebê-lo como um pedaço do corpo (Lacan,[1962-63] 2005, p.148) (o acréscimo entre colchetes é nosso).

E, mais adiante:

Ele [o objeto a] é justamente o que resiste a qualquer assimilaçãoà função do significante, e é por isso mesmo que simboliza o que,na esfera do significante, sempre se apresenta como perdido, comoo que se perde para a ‘significantização’. Ora é justamente essedejeto, essa queda, o que resiste à ‘significantização’, que vem ase mostrar constitutivo do fundamento como tal do sujeitodesejante (Ibid., p. 193).

É esse tipo de falta, essa letra-dejeto, que se faz presente em determina-das experiências de angústia. Neste caso, a sua relação com a nomeação dodesejo não é tão direta como Lacan parece supor no texto sobre Gide. Não setrata de situar ali – na experiência da angústia que condiz com o encontro comesse ponto de privação – o lugar no qual se poderia aceder a uma representaçãopossível do desejo do Outro, à nomeação daquilo que lhe falta. A angústia, e éisso que o texto clariciano nos permite apreender, é a presentificação de um real

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Maria Cristina Poli

sem nome, mesmo que ele esteja, paradoxalmente, incluído e de certo modoescrito no texto (“faltam quatro gravuras”).

Um outro modo de pensar isso também é proposto por Lacan, ao se valer,em diferentes momentos, da metáfora do pote de mostarda. A brincadeira queele faz é com a metáfora do oleiro, introduzida por Heidegger, como paradigmada produção do objeto de arte. O vaso de argila produzido pelo oleiro recorta umespaço vazio, a partir de seu contorno. A condição da arte é a de bordear umvazio, de modo semelhante ao contorno do objeto operado pela pulsão, produ-zindo, no mesmo movimento, o orifício erógeno no corpo.

Imaginemos agora que esse vazio pudesse extravasar as bordas que o con-têm. Quando pensamos no pote de mostarda, é fácil, podemos facilmente imaginarcolocar mostarda demais e ela transpor as bordas de seu pote. No caso do vazio,é mais difícil imaginar, mas a experiência da angústia é o que nos demonstra asua possibilidade. Quase como se no jogo de figura-fundo, ao invés de vermos ovaso e o vazio dentro dele, víssemos o vazio dentro e fora, contendo o vaso.

Na literatura de Clarice, algo assim se produz. Para o leitor, a experiênciaé a do encontro com um texto-vaso que constrói um veio de leitura tracejadopelas letras. Para sua autora, no entanto, a radicalidade dessa escrita, a buscaque ela opera, se traduz (conforme Lacan ([1962-63] 2005): “a angústia é atradução subjetiva do objeto a”) na experiência de angústia que a acossa.

A poedeira e os efeitos da autoriaQuando trabalha a escrita de Joyce, no Seminário 23, Lacan ([1975-76]

2007) compara o trabalho do escritor ao de uma poedeira. Pôr um ovo é a figura-ção evocada para a produção de um novo pedaço de real. Segundo Lacan, foiessa produção feita por Joyce que lhe permitiu aceder a uma amarração subje-tiva, a construção de um quarto nó (o Sinthoma), que fez suplência ao Nome-do-pai. Tal foi o efeito de retorno que a produção da obra teve, no caso de Joyce,sobre seu autor. Será, no entanto, sempre assim? A pergunta se justifica porqueno caso de nossa autora, Clarice Lispector, a produção da obra parece que teveefeito contrário, teve um efeito de desamarração subjetiva. Escrevemos “pare-ce”, e sublinhamos a palavra, porque não temos elementos suficientes parasustentá-lo com certeza. É um tema de trabalho a desenvolver.

Em todo o caso, gostaríamos de destacar, através desse contra-exem-plo, que nem sempre a produção da obra e a nomeação subsequente (valedestacar que também Clarice foi muito reconhecida em vida e que sua obra seráigualmente estudada pelos universitários nos próximos 200 anos) têm tal efeitode amarração subjetiva. Pelo contrário, a desmontagem que impôs a seus es-critos parece ter incidido também sobre ela.

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Uma carta perdida

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Fiquemos, então, com suas próprias palavras – com a impactante luci-dez, na hora de estrela:

Com essa história eu vou me sensibilizar, e bem sei que cada diaé um dia roubado da morte. Eu não sou um intelectual, escrevocom o corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavrassão sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais,estalactites, renda música transfigurada de órgão. Mal ouso cla-mar palavras a essa rede vibrante e rica, mórbida e obscura tendocomo contratom o baixo grosso da dor. Alegro com brio. Tentareitirar ouro do carvão. Sei que estou adiando a história e que brincode bola sem a bola. O fato é um ato? Juro que esse livro é feitosem palavras. É uma fotografia muda. Esse livro é um silêncio.Esse livro é uma pergunta (Lispector, [1977] 1988, p.22-23).

REFERÊNCIASBRANCO, L. C. Os absolutamente sós. Belo Horizonte: FALE/Autêntica, 2000.BRANCO, L. C.; BRANDÃO, R. S. A mulher escrita . Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.FREUD, S. Inhibición, síntoma y angustia. In: FREUD. Obras completas. BuenosAires : Amorrortu, 1988. v. 20._____ . Lo ominoso [1919]. In: Ibid., v. 17.GOTLIB, N. Clarice, uma vida que se conta . São Paulo: Ática, 1995.LACAN, J. O seminário, livro 7 : A ética da psicanálise [1959-60]. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 1988._____ . A juventude de Gide ou a letra e o desejo [1958]. In:_____. Escritos. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 1998._____ . O seminário, livro 10: A angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2005._____ . O seminário, livro 23: O sinthoma [1975-76]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2007._____ . Lituraterra [1971]. In: LACAN. Outros escritos. Rio de Janeiro : J. Zahar, 2003.LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1988._____ . A paixão segundo G.H . Rio de Janeiro: Rocco, 1998._____ . Um sopro de vida [1978]. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.MANZO, L. Era uma vez: Eu – a não-ficção na obra de Clarice Lispector. Curitiba:Secretaria do Estado da Cultura/ UFJF, 1997.REGO, Claudia de Moraes. Ana Cristina Cesar: uma carta nem sempre chega a seudestino. Letra Freudiana – Do sintoma ao sinthoma. Rio de Janeiro, n. 17/18, p. 103-109, 2005.

Recebido em 17/04/2009Aceito em 08/05/2009

Revisado por Larissa Scherer e Simone Goulart Kasper

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TEXTOS

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Resumo: O artigo parte do romance Homem comum, de Philip Roth, para abor-dar as angústias contemporâneas, manifestas na solidão, no desamparo, nafalta de sentido na vida, na extrema preocupação com o corpo e no temor emrelação à morte – mais do que com a morte física, com a morte psíquica, amorte do desejo. Além da análise do texto literário, o artigo apresenta tambémum relato clínico para abordar a direção do tratamento psicanalítico nessescasos.Palavras-chave: angústia, contemporaneidade, solidão, desamparo, morte.

CONTEMPORARY ANXIETIES

Abstract: This article takes Philip Roth romance The common man to investigatecontemporary anxieties, shown in solitude, in helplessness , in the lack of meaningin life, in the extreme worry with the body and the fear of death – not a physicaldeath, but a psychic death, a death of the desire. Beyond literary analysis, thearticle also presents a clinical case to discuss the direction of psychoanalyticaltreatment in such cases.Keywords: anxiety, contemporary, solitude, helplessness, death.

ANGÚSTIASCONTEMPORÂNEAS1

Rosane Monteiro Ramalho2

1 Trabalho apresentado no Congresso da APPOA : Angústia, realizado em Porto Alegre, emnovembro de 2008.2 Psicanalista; Membro da APPOA; Mestre em Psicologia Clínica - PUC/SP; Professora daResidência Médica em Psiquiatria e da Residência Multiprofissional em Saúde Mental, do Insti-tuto Municipal Philippe Pinel, no Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 28-37, jan./jun. 2009

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Angústias contemporâneas

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Um dos maiores escritores americanos da atualidade, Philip Roth é autor demais de vinte romances, entre eles: Complexo de Portnoy, Pastoral ameri-

cana, Complô contra a América, A marca humana, O animal agonizante; a partirdeste último, recentemente foi realizado um filme cujo título em português é:Fatal3. Roth tem recebido vários prêmios literários, sendo candidato constanteao Prêmio Nobel. O sucesso de sua obra parece decorrer não apenas de seuestilo peculiar, direto e contundente, mas também do tema central que atraves-sa suas narrativas: a angústia do sujeito contemporâneo, manifesta na solidão,no desamparo, na depressão, na falta de sentido na vida, na extrema preocupa-ção com o corpo e com a limitação deste – a doença, a velhice e a morte.

Essa temática é retomada de maneira tocante num de seus últimos livrosHomem comum (Roth, 2007). O título original do romance, Everyman, vem deuma peça anônima do século XV, um clássico da dramaturgia inglesa, cujotema é a convocação dos vivos para o reencontro com os valores cristãos apartir de um confronto com a Morte, a figura trágica por excelência. Roth cons-trói uma história pungente do encontro de um homem comum com a morte, masesta se escreve com minúscula, sem o sentido religioso ou transcendente. Emsua narrativa, a morte é apenas o ponto final da existência. No entanto, a proxi-midade desse momento terminal acaba levando o homem comum a deparar-secom o vazio de sua vida. A crítica logo apontou a afinidade temática do livro coma obra prima de Leon Tolstói (1997), A morte de Ivan Ilich, de 1886, na qual umjuiz à beira da morte se dá conta de como sua vida havia sido convencional,supérflua, medíocre.

Diferentemente do que ocorre na peça do século XV e no romance do fimdo século XIX, na narrativa de Roth (2007) não há nenhuma promessa de reden-ção, ou de continuidade, de vida para além da morte. Seu personagem chega aofinal da existência para lá encontrar nada mais do que o inventário desolador desuas escolhas e a somatória pífia de seus atos. O homem comum de Roth, tãocomum que sequer recebe do autor um nome próprio, é uma metáfora quecondensa em grande medida a perplexidade e a solidão do sujeito contemporâ-neo. O fato de não ter nome sugere ainda que pode se tratar de qualquer um denós.

A história inicia-se após a morte do protagonista – no enterro –, partindodaí para a recapitulação de sua trajetória de vida. Estamos num cemitério deca-

3 Com direção de Isabel Coixet.

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dente, situado no que fora outrora um lugar aprazível e calmo, mas que havia setornado ao longo dos anos um desconfortável amontoado de túmulos à beira deuma movimentada estrada. Poucas pessoas estão presentes – apesar do cui-dado da filha em chamar alguns conhecidos, para que não estivessem na ceri-mônia somente ela, um tio e sua esposa. Por conta de seu empenho, acabamindo ao funeral também a sua mãe (uma das três ex-mulheres de seu pai), seusdois irmãos do primeiro casamento – que detestavam abertamente o pai –,alguns alunos das aulas de artes que ele havia passado a dar após a aposenta-doria, e alguns velhinhos do condomínio, uma espécie de asilo, em que elemorava no final de sua vida. Uma única pessoa presente não tinha sido convida-da – uma enfermeira amiga que havia cuidado dele numa cirurgia anterior.

Roth comenta:

E assim terminou. [...] Em todo o estado, naquele dia, tinha havi-do quinhentos funerais como este, rotineiros, normais. [...] É jus-tamente o que há de normal nos funerais que os torna mais dolo-rosos, mais um registro da realidade da morte que avassala tudo(Roth, 2007, p.17-18).

Toda a história do livro gira em torno da angústia, insistente e sem remé-dio, do homem comum em relação à realidade da morte. Esse sentimento inqui-etante e atormentador o persegue. Desdobrado em várias cenas: desde o seuprimeiro confronto chocante com a morte nas praias idílicas de sua infância, emque viu um cadáver inchado saindo do mar, passando pela cirurgia de hérnia aque se submeteu quando ainda era menino (e o fato de ter presenciado, naquelaocasião, a morte de outra criança, no leito ao lado do seu), a crise de peritoniteque, na sua infância, acometeu a seu pai e quase o matou, até, na velhice,deparar-se com a deterioração de seus contemporâneos, com seus própriosproblemas de saúde e a decadência inexorável de seu corpo. Durante toda avida, sua angústia e a sua única certeza se misturavam na ideia da inevitabilidadeda morte.

O homem comum trabalhara numa agência publicitária de Nova Iorque,tendo tido sucesso. Após a aposentadoria, dedicou-se à pintura de quadros –que era, na verdade, seu desejo sempre adiado –, passando a morar na praia, amesma à qual ia com a família, quando criança, passar parte dos verões. Tevetrês casamentos, com mulheres muito diferentes. Separou-se da primeira mu-lher para ficar com a amante, fato que causou grande abalo e revolta na ex-mulher, e produziu nos filhos um sentimento do qual jamais se livraram – o deque não tinham mais pai. Do segundo casamento ele teve uma filha, uma das

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únicas pessoas com quem conseguiu manter relação afetiva forte ao longo davida. Apesar do amor que reconhecia sentir pela esposa, e do valor que suafamília tinha para ele, no entanto, o homem comum se via sempre impulsionadoa buscar novas sensações eróticas. Assim, embora esse casamento tivessecorrespondido ao que ele sempre buscara para si em uma relação amorosa,acabou por ter desfecho semelhante ao anterior, atropelado pelo seu envolvimentocom outra mulher – uma jovem modelo cuja idade era a metade da sua. Esseterceiro casamento durou, no entanto, o pouco tempo compatível com a super-ficialidade da relação. Com o passar dos anos, já na velhice, reconheceu que asolidão que sentia era consequência de suas escolhas ao longo da vida. Suaúnica companhia constante terminou sendo praticamente a do seu próprio cor-po – agora, porém, frágil e hesitante – e as doenças que foram se sucedendoaté que a última o conduzisse ao inexorável ponto final de sua existência.

Como acreditava que nada havia além da morte, passou a vida inteiratentando driblá-la, fugir dela, embora o tempo todo pressentisse a sua insidiosapresença. Com o tempo, a decadência física e as inúmeras doenças e internaçõestornaram sua presença uma realidade anunciada incontornável. Invejava a saúdedo seu irmão mais velho, chegando a odiá-lo por isso, pois, ao vê-lo, saudável eforte, via a si mesmo como um corpo decadente. Passou a ter vergonha do serem que se transformara: “dava-se conta, humilhado, de que não era apenas noplano físico que se havia reduzido à condição de alguém que não desejava ser”(Roth, 2007, p. 105). “Havia se tornado algo que jamais sonhara ser” (Ibid., p.117). Percebia, de forma contundente, que havia construído para si seu destinosolitário e que já não havia mais como refazê-lo.

Deprimido, não conseguia nem mais pintar. Certa vez, falando com a filhaúnica pessoa com quem mantinha contato no final de sua vida – disse ter sofridouma “vasectomia estética irreversível”.

Sentia-se meio morto em vida, como se permanentemente esperassepela morte, ao mesmo tempo em que lutava contra ela. Mesmo nos momentosfelizes que havia tido ao longo da vida, por exemplo, ao estar na praia – que eraum dos seus lugares preferidos – ao lado da mulher a quem amava, ainda as-sim, uma angústia insistente o acompanhava.

Vejamos a seguinte passagem:

Os únicos momentos desconfortáveis eram, à noite, quando ca-minhavam juntos ao longo da praia. O mar escuro a rugir imponen-te e o céu a esbanjar estrelas lhe dizia de modo inequívoco queele estava fadado a morrer, e o trovão do mar a poucos metros dedistância – e o pesadelo daquele negrume mais negro sob o frene-

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si das águas – lhe davam vontade de sair correndo daquela ame-aça de aniquilamento para a casinha de praia acolhedora, ilumina-da e quase sem móveis (Roth, 2007, p.28).

E continua:

Não conseguia entender de onde vinha aquele medo, e precisavade todas as suas forças para ocultá-lo de Phoebe4. Por que esta-ria inseguro sobre sua vida, justamente agora que a dominavamais que em qualquer outro momento dos últimos anos? Por quese imaginava próximo da extinção quando um raciocínio tranquiloe objetivo lhe dizia que ainda tinha muita vida sólida pela frente?(Roth, 2007, p. 28).

A angústia diante da morte tingia seu cotidiano e se manifestava de vari-adas maneiras. Uma delas era a excessiva preocupação com o corpo, que seintensificou quando começou a envelhecer e as doenças passaram a se tornarmais presentes. O sucesso profissional alcançado fôra com certeza importantepara ele, por outorgar-lhe valor, não só aos seus olhos, mas também aos olhosdos outros. Apesar disso, o sentimento mais forte era de que sua potência paraa vida tinha relação muito mais direta com a vitalidade do corpo, com a tonicidadedos músculos. A imagem que tinha de si consistia na imagem que tinha de seucorpo. Desse modo, quando passou a ver o corpo em decadência, também aimagem de si tornou-se a de um ser decadente.

O homem comum sentia não ter com o que contar, algo que lhe dessesustentação, para além da precária ancoragem na imagem de um corpo saudá-vel e forte. Não é de espantar, uma vez que a falta ou precariedade dos referenciaissimbólicos, da função paterna em nossa cultura – no caso a ocidental – faz comque os sujeitos tomem as imagens oferecidas pelo social como balizas paradizer de si, utilizando a imagem do corpo como um referente privilegiado parasua construção identitária. Percebemos, ainda, que o que acaba fazendo limiteao sujeito, na falta de uma interdição simbólica, é justamente o real do corpo, ouseja, a doença, o envelhecimento e a morte.

Podemos dizer que a angústia e suas expressões: a sensação de de-samparo, de vazio, a constante suposição de uma ameaça velada de aniquila-

4 Sua mulher na época.

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mento, o vago sentimento de se achar próximo da extinção, que encontramosno homem comum de Roth, fazem parte do leque de afetos que rondam a expe-riência dos humanos. A inevitável dor de existir faz parte da condição humana eé também o que move o sujeito. A angústia, porém, se apresenta em modalida-des e intensidades diversas, variando não só na singularidade da existência decada sujeito, como também nos contextos sócio-históricos nos quais as coleti-vidades de sujeitos constroem suas formas de vida. Nos dias atuais, a angústiaemerge em variadas formas, seguindo roteiros de configuração e expressão dosofrimento predominantes em nossa cultura. Transtorno do pânico, depressão,adições em geral (de álcool, de drogas, de objetos de consumo, obesidade ououtros transtornos alimentares, tais como, anorexia, bulimia), são algumas dasformas com que a angústia se apresenta hoje.

Além disso, há, como já é conhecido, o significativo aumento dos casoslimítrofes, também chamados estados-limite (segundo a nomenclatura france-sa) ou borderline (conforme a nosografia americana) – casos que não consistemem quadros de neurose propriamente dita, tampouco de psicose, mas que apre-sentam em comum a problemática acerca dos limites, das bordas, enfim, dadiferença entre o eu e o outro.

Freud já dizia que, em matéria de experiência humana, os escritores epoetas dizem melhor e mais cedo o que os psicanalistas se esforçam por tentarentender a seu modo. A descrição que Roth faz das vicissitudes da vida dohomem comum vale como uma chave para compreender algumas das caracte-rísticas essenciais do modo de sofrer a que estão expostos os sujeitos atuais,membros de uma sociedade que, em nome da liberdade, livrou-se das amarrassimbólicas e que, em nome da autonomia e da autocriação, desfez os laços,referências e horizontes que balizavam sentidos transcendentes em relação àsexistências.

Num curioso efeito colateral, a sociedade que mais liberou os indivíduosdas proscrições do passado acabou por esvaziar também as prescrições emrelação ao futuro, tornando a experiência de existir um penoso desafio paramuitos. Donos do seu destino ou entregues à própria sorte? Livres para escolherou sem bússola com que se orientar? Autônomos em relação aos outros oudesgarrados? Nem sempre é fácil se situar nessa gangorra, e o preço a serpago pela oscilação é, frequentemente, o da angústia, seja na sua forma aguda,seja na sua forma mais difusa. É nessa inconsistência, nesse vazio de referenciais,que reside a fonte de boa parte da angústia inominada, insistente e difusa queacometia o homem comum. É ela também que se revela por trás da dinâmicapsíquica de muitos que compõem o panorama – recorrente na clínica atual – dossujeitos à deriva, em busca de si mesmos e de um lugar para si no mundo.

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Certa vez, procurou-me para análise um rapaz que não conseguia viver asua vida. Sentia-se, em suas palavras, “morto em vida”. Havia concluído a facul-dade a muito custo, mas não conseguia trabalhar. Seu mundo social era muitoestreito, limitando-se às idas à academia de ginástica três vezes por semana.Essa era praticamente a sua única ocupação. Tinha uma forte preocupaçãocom sua imagem, com as bordas do seu corpo – expressão de sua extremafragilidade psíquica. Mantinha uma vida reclusa, vivida entre as paredes de seujk (o chamado quitenete), onde escutava música, lia, ficava no computador.Costumava masturbar-se – o que passou a ser uma preocupação para ele, poisa julgava uma prática excessiva –, assim como comer compulsivamente. Nãoconseguia ter limite em relação a esses atos, através dos quais tentava deses-peradamente preencher seu vazio psíquico. Também achava preocupante o usocontumaz que fazia de álcool e de maconha, como certa anestesia para suaangústia. Quando esta se intensificava, tornando-se insuportável, sentia queseu corpo se dissolvia, perdia seu contorno, suas bordas, ocasiões em queficava um longo período olhando-se no espelho, na tentativa desesperada desustentar uma imagem de si que lhe parecia se desintegrar. Sentia um desam-paro, uma insuficiência, um vazio e uma solidão enormes, encontrando-se semcondições de entrar na vida e, por isso, permanecia à margem dela, não encon-trando lugar para si no mundo. Sua vida não tinha sentido algum para ele. Arelação com a família era bem difícil e mantinha sistemática distância em rela-ção a ela. Tinha uma irmã com graves problemas físicos congênitos e comcomplexas repercussões psíquicas – que ocupava praticamente toda a atençãode seus pais. Estes depositavam mensalmente uma quantia para o filho e eranisso que basicamente consistia o contato entre eles. Não encontrava um lugarpara si no desejo de seus pais. Mantinha, porém, relação bem estreita com umaamiga, por meio de quem estabelecia seu frágil contato com o mundo, alguémque tinha em relação a ele uma posição eminentemente materna – algo que elenão encontrava na sua própria mãe. Era com essa amiga, por exemplo, quefrequentava a academia.

Assim como ocorria com a experiência de si, sempre precária e vacilanteao sentir seu corpo sem bordas – também a fronteira entre ele e o outro erabastante tênue, e, por isso, facilmente, em suas poucas relações pessoais,alternavam-se os sentimentos de invasão e o de abandono – ocasiões em quese tornava muito agressivo. Essa agressividade, porém, consistia numa reaçãofrente à agressividade experienciada como vinda do outro, sob a forma de inva-são ou de abandono. Ele seguidamente incomodava-se com os barulhos dosvizinhos, barulhos que considerava como dirigidos propositalmente a ele, deforma a atormentá-lo. A força de sua convicção parecia fazer dela um delírio.

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Porém, não se tratava de uma formação delirante porque ele, às vezes, chegavaa duvidar de que fosse mesmo um ato intencional por parte do vizinho. Os ruídosvindos da parede ao lado o atormentavam principalmente por evocarem a vidasocial da qual ele se sentia excluído. Nessas ocasiões, ele fazia um barulhoainda maior, de forma a revidar a agressão sofrida, batendo com a vassoura nochão ou na parede divisória ao apartamento do vizinho, ou colocando uma músi-ca (um rock estridente) em volume ensurdecedor. Também nesse sentido, naanálise, muitas vezes ele era tomado pela fúria justamente nos momentos emque se sentia abandonado ou invadido, restando espaço muito reduzido paratransitarmos entre esse tudo ou nada. As bordas, os contornos entre ele e ooutro eram frágeis, pouco definidos. Por isso, o estabelecimento de algum limitepor mais que fosse ansiado por ele – era, também, por demais agressivo, quan-do não impossível, por muitas vezes implicar a sensação de destruição psíqui-ca. Como se, perdendo o outro (esse outro sendo vivido como literalmente umaparte dele), ele não mais pudesse existir. De modo semelhante, ao se sentirinvadido, sentia-se implodindo psiquicamente. Sua resposta a isso era aagressividade, ora voltada a si mesmo, ora ao outro, algumas vezes, passandoao ato, colocando, inclusive, a vida em risco.

Acredito que essa seja uma das situações mais difíceis com as quaistenho lidado na clínica, pois se trata de uma clínica de riscos. Nesses casos,muitas vezes, diante do excesso de real, há o risco de a angústia do analistatransformar-se em impotência, diante da dificuldade de lidar nesse limite, nessefio da navalha, em que um deslize pode ser fatal. Mais do que o levantamento dorecalque para uma abertura significante, uma vez que justamente se trata dafalta da falta – da falta simbólica, ou seja, da castração5 –, nesses casos, aclínica implica justamente o estabelecimento de um limite, de uma borda, en-fim, de uma alteridade. Trata-se de um trabalho cuidadoso e delicado de cons-trução dessa possibilidade, visto o limite ser vivido por esses sujeitos comoimpossível. E como o dentro e o fora se dão simultaneamente, num processodialético, ou seja, o dentro pressupõe um fora – e vice-versa –, a construção deum limite, de uma borda, de um litoral, implica também a construção de umaidentidade para si, ou seja, de certa consistência subjetiva. E isso só seráalcançado na medida em que o sujeito possa construir uma narrativa para o que,até então, era experienciado como pura angústia – sem palavras, portanto: na me-

5 Lacan, no Seminário 4 , fala de três faltas: falta simbólica (ou castração), falta imaginária (oufrustração) e falta real (ou privação). E, também, no Seminário 10, ele formula a ideia daangústia como sinal da falta da falta simbólica.

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dida em que possa dar um contorno a esse real, ou, em outras palavras, nominaresse indizível, transformando essa vivência numa narrativa compartilhada.

O fato de o paciente colocar em palavras o que até então era vivido comopura angústia consiste na tentativa de dar inscrição simbólica ao real, de darforma ao vazio. Porém, não se trata de preencher esse vazio, mas de dar-lheuma borda, um contorno. Como no ato de falar há endereçamento a um outro, oanalista, então, ao escutar, passa a ocupar o lugar desse outro a que as palavrassão endereçadas, ao mesmo tempo em que passa a exercer a função de teste-munho da narrativa que ali se produz. O reconhecimento, pelo analista, daquiloque é falado pelo paciente (dessa sua experiência narrativa) outorga também àqueleque fala o reconhecimento enquanto sujeito – na medida em que supõe que aliexista um –, possibilitando-lhe, assim, aceder à posição de sujeito.

O trabalho clínico, nesses casos, requer que o analista se mantenhanem excessivamente longe, nem excessivamente perto do seu paciente, masque consiga sustentar a presença fundamental que possibilite instaurar umaausência, constituindo, então, a possibilidade da presença de uma ausência,ou seja, de uma via simbólica. A partir de relação transferencial intensa, quasefusional, sem diferença entre ele e o outro, o analista tenta instaurar um interva-lo, tal qual o fort-da freudiano – o que muitas vezes é extremamente complica-do, porém essencial, para que seja possível a construção de uma narrativa doque, até então, era só vivido de forma emudecida ou atuada.

Podemos dizer que a angústia que atormentava o meu paciente era seme-lhante à do homem comum: expressa no desamparo, na solidão, no vazio, na faltade sentido na vida – porém numa intensidade significativamente maior, potencializada,transbordante, ameaçando inclusive sua frágil consistência psíquica.

Para concluir, volto novamente à literatura, desta vez a Fernando Pessoa,mais exatamente ao seu heterônimo, Álvaro de Campos, que conseguiu colocarem palavras, de forma muito bonita e tocante, o indizível da angústia. É a poesiachamada: Bicarbonato de soda.

Súbita, uma angústia...Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!Que amigos que tenho tido!Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!Que esterco metafísico os meus propósitos todos!Uma angústia,Uma desconsolação da epiderme da alma,Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...Renego.

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Renego tudo.Renego mais do que tudo.Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e nacirculação do sangue?Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?Não: vou existir. Arre! Vou existir.E-xis-tir...E—xis—tir ...Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!Renunciar de portas todas abertas,Perante a paisagem todas as paisagens,Sem esperança, em liberdade,Sem nexo,Acidente da inconsequência da superfície das coisas,Monótono mas dorminhoco,E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!Que verão agradável dos outros!Deem-me de beber, que não tenho sede! (Pessoa, 1980, p. 264-265).

Essa é a angústia, a dor que afligia o homem de Roth e que aflige oshomens sem contorno, que seguidamente encontramos na clínica. Podemosver também o quanto é comum essa angústia nos sujeitos, hoje, os quais, emsuas solidões, sentem não poder contar com mais ninguém, além de simesmos...uma angústia que, mais do que em relação à morte física, diz respei-to à terrível experiência de morte psíquica, de morte subjetiva, de morte dodesejo. O nosso desafio na clínica, hoje, consiste, então, em como, diantedesse deserto de ancoragens, fazer emergir sujeitos desejantes.

REFERÊNCIASLACAN, Jacques. O seminário, livro 4: as relações de objeto [1956-1957]. Rio deJaneiro: J. Zahar Ed., 1995.______. O seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2005.PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.ROTH, Philip. Homem comum. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.TOLSTOI, Leão. A morte de Ivan Ilitch. Rio de Janeiro: Lacerda, 1997.

Recebido em 20/03/09Aceito em 17/04/09

Revisado por Ieda Prates da Silva e Larissa Scherer

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TEXTOS

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Resumo: O autor aborda, neste artigo, as consequências subjetivas e sociaisdo discurso da ciência e da tecnologia, assim como dos desdobramentos daética protestante do trabalho no novo capitalismo, examinando como elas sãopercebidas inconscientemente pelo artista e pelo escritor, transmitidas no pro-cesso criativo e inscritas na obra, bem como as incidências subjetivas dessasconsequências podem ser lidas no caso clínico do “Homem dos lobos” de Freud.Palavras-chaves: incidência subjetiva, discurso da ciência e da tecnologia,criação artística, ética protestante do trabalho, novo capitalismo.

FROM THE RESIDUE TO TRASH: THE CORROSION OF DESIRE IN THEERA OF TECHNICAL REPRODUCIBILITY

Abstract: In the present article the author approaches the subjective and socialconsequences of the discourse of science and technology and unfolding ofprotestant ethic of work in the new capitalism, examining how theseconsequences are perceived unconsciously by the artist and writer, how theyare transmitted by the creative process and inscribed in the work, and alsoexamining the subjective incidence of these consequences as can be read in theFreudian case of the Wolf Man.Keywords: subjective incidences, science ant technology discourse, artisticcreation, protestant ethics of work, new capitalism.

DO RESTO AO LIXO:a Corrosão do Desejo na Erada Reprodutibilidade Técnica1

Jaime Betts2

1 Trabalho apresentado no Congresso da APPOA: Angústia, realizado em Porto Alegre, emnovembro de 2008.2 Psicanalista; Membro da APPOA; Co-autor dos livros Sob o véu transparente – recortes doprocesso criativo, com Claudia Stern. Porto Alegre: Território das Artes, 2005; e (Re)Velaçõesdo olhar – recortes do processo criativo, com Liana Timm. Porto Alegre: Território das Artes,2005.

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 38-59, jan./jun. 2009

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Do resto ao lixo...

Toda arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Os que vãoabaixo da superfície o fazem por sua própria conta e risco.

Oscar Wilde. O retrato de Dorian Gray.A ética do trabalho é a arena em que mais se contesta hoje a

profundidade da experiência. R. Sennett. A corrosão do caráter.Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó3 .

T. S. Eliot. Waste land.Depois de tudo, estarei sentada aqui, servindo chá aos amigos4.

T. S. Eliot. Portrait of a lady.

IntroduçãoO título deste trabalho se inspira livremente em três autores. Do resto ao

lixo, parte de Lacan ([1962-1963] 2005), em seu seminário da angústia. A corro-são do desejo se inspira em Sennett (1999), que aborda a corrosão do carátercomo consequência pessoal do trabalho no novo capitalismo. E a era dareprodutibilidade técnica vem do ensaio homônimo de Benjamin (1994) sobre aarte.

Três perguntas norteiam este escrito. Quais são as consequências sub-jetivas e sociais do discurso da ciência e da tecnologia, assim como dos desdo-bramentos da ética protestante do trabalho no novo capitalismo? Como essasconsequências são percebidas inconscientemente pelo artista, pelo escritor, etransmitidas no processo criativo e em maior ou menor medida inscritas naobra? Podemos ler as incidências subjetivas dessas consequências no casoclínico do Homem dos lobos de Freud ([1918] 1996)?

Consequências subjetivas e sociais dos desdobramentos da éticaprotestante do trabalho no novo capitalismo

Os trabalhadores, até meados do século passado, trabalhavam duro eesperavam que a satisfação adiada ao longo da vida útil de trabalhador fosserecompensada por ocasião de sua aposentadoria. Doce ilusão. Nem a aposen-tadoria é o paraíso, nem a renda é suficiente para levar a vida com o mesmopadrão que antes. No entanto, em que discurso civilizatório se sustentava essaforma de renúncia pulsional?

3 “I will show you fear in a handful of dust”.4 “After all, I shall sit here serving tea to friends”.

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Jaime Betts

“A ética do trabalho, como a entendemos comumente, afirma o usoautodisciplinado de nosso tempo e o valor da satisfação adiada” (Sennett, 1999,p.117). Trata-se da antiga ética do trabalho, a do ascetismo leigo, que, paraWeber, decorre da ética da ascese protestante, que ”faz do trabalho diário emetódico um dever religioso, a melhor forma de cumprir, no ‘meio do mundo’, avontade de Deus” (Weber, 2005, p. 280). O ascetismo cristão promete uma vidaplena no céu, após a existência de sacrifícios, de sofrimentos e renúncias àssatisfações pulsionais aqui na terra, em nome da devoção aos desígnios divinosatravés da vida dedicada ao trabalho.

A satisfação adiada, entretanto, como um mérito de caráter do trabalha-dor, perde seu valor e sustentação quando as instituições em que isso se base-ava passam a mudar rapidamente.

Segundo Sennett (1999), essa espera ilusória era sustentável por estarapoiada em narrativas que encontravam seu lastro em instituições suficiente-mente estáveis para que a prática do adiamento da satisfação fosse exequívelcomo um valor de caráter. As instituições modernas tinham a perspectiva delongevidade temporal que se tornou líquida e, juntamente com suas promessasde satisfação no final, escorreram pelo ralo, como águas usadas, descartadascomo lixo.

A renúncia à imediata satisfação das moções pulsionais perde completa-mente o sentido diante de uma realidade em que as instituições mudam de umahora para a outra e, na empresa para a qual as pessoas dedicaram longos anosde suas vidas, “o patrão só pensa em vender e subir” (Sennett, 1999, p. 118). Asaquisições, as fusões ou divisões empresariais e as mudanças no controleacionário estão na ordem do dia do novo capitalismo.

Até meados do século XX, o trabalhador tinha como valor e meta dedicarsua vida útil a uma mesma organização, sendo que a carteira de trabalho comregistro de muitos empregos em diferentes empresas era vista como algo nega-tivo, sugerindo que seu portador seria mau funcionário. O ganho dessa vidadedicada à mesma organização era de uma estabilidade nas relações dentro efora do trabalho, pois a confiança recíproca entre colegas de trabalho tinha tem-po para se desenvolver e ser aprofundada por se trabalhar sempre na mesmaempresa. Também assim se passava como com os vizinhos, pois não era preci-so ficar mudando de cidade a cada três ou quatro anos. Hoje, um coach reco-menda aos seus clientes que desenvolvam uma carreira em ziguezague, deempresa em empresa, para obterem sucesso em sua escalada profissional.Isso tem um custo. Quem já passou pela experiência de ser transferido decidade em cidade, com cônjuge e filhos, sabe dimensionar o preço pago pelosucesso, ou apenas pela manutenção do emprego.

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Do resto ao lixo...

Na cartilha do neoliberalismo de Milton Friedman (1984) – Estado míni-mo, desregulamentação e flexibilidade – o novo capitalismo é chamado de ‘ca-pitalismo flexível’. Trata-se de uma variação sobre o mesmo tema – o sistemacapitalista – só que hoje as relações de produção exigem flexibilidade máxima.A burocracia empresarial é desmantelada juntamente com as tradições, os la-ços sociais e os de trabalho mais estáveis, e demanda-se dos “colaboradores”agilidade, receptividade às mudanças em curto prazo, assunção de riscos otempo todo, e que dependam cada vez menos de regulamentação por leis eprocedimentos formais.

Segundo Sennett (1999, p. 118):

A moderna ética do trabalho concentra-se no trabalho de equipe.Celebra a sensibilidade aos outros; exige “aptidões delicadas”,como ser bom ouvinte e cooperativo; acima de tudo, o trabalho emequipe enfatiza a adaptabilidade às circunstâncias. O trabalho deequipe é a ética do trabalho que serve a uma economia políticaflexível. Apesar de todo o arquejar psicológico da administraçãomoderna sobre o trabalho de equipe no escritório e na fábrica, é oetos de trabalho que permanece na superfície da experiência. Otrabalho de equipe é a prática de grupo da superficialidade degra-dante (O grifo é nosso).

Na moderna ética do trabalho, a exigência de dedicação full time exclusi-va ao trabalho continua a mesma, mas a velocidade crescente das mudançasdos meios de produção em função dos progressos tecnológicos e científicosleva à liquefação das relações de produção. As equipes de trabalho são pontu-ais, são líquidas, voláteis, virtuais e se dissolvem tão rapidamente quanto surgi-ram, sem deixar saudades, pois o laço é superficial e objetivo demais paratanto. Tomo o termo “líquido” emprestado da obra de Z. Baumman (2001), quefala da modernidade líquida, do amor líquido, etc.

Uma vez que as equipes de trabalho se organizam por projetos, metas aserem atingidas e tarefas a realizar, assim que o projeto termina, frequentemen-te as equipes se volatilizam, passando diretamente do estado sólido de convíviona tarefa para o estado gasoso de não mais se verem nem se falarem, pois seusintegrantes são enviados para novos projetos, equipes, cidades ou países.

Trata-se da dança dos empregos, ameaça do desemprego e falta de tra-balho. Assim como no jogo infantil da dança das cadeiras, a apreensão de ficarsem lugar é crescente no novo capitalismo, conforme o número de cadeiras vaidiminuindo.

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Segundo Sennett (1999, p. 115), “a apreensão é uma ansiedade (angús-tia) sobre o que pode acontecer; é criada num clima que enfatiza o risco cons-tante, e aumenta quando as experiências passadas parecem não servir de guiapara o presente”. O autor considera que a apreensão, com o tempo, está grava-da profundamente em nós, pois a passagem dos anos parece nos esvaziar,desqualificando nossas experiências passadas, consideradas obsoletas na novaeconomia, o que coloca em xeque nosso senso de valor pessoal.

Freud ([1907] 1996), em seu artigo Atos obsessivos e práticas religiosas,fala que as moções pulsionais recalcadas são vividas como uma tentação, eque o processo de recalcamento é apenas parcialmente bem sucedido, gerandopor isso angústia. A angústia vivida em função da ameaça de retorno do recalcadoganha controle sobre o futuro na forma de uma expectativa ansiosa, ou seja, deuma apreensão em relação ao que aguarda o sujeito no futuro.

Sem o reforço da sensação de segurança depositada na crença (religiosaética protestante) de instituições estáveis que apoiavam e justificavam o adiamentodas moções pulsionais em nome do trabalho no presente e recompensa no futuro,o sujeito contemporâneo se vê mais exposto à angústia, mais à deriva, sem susten-tação simbólica diante de um imperativo de gozo imediato, seja pela via do consu-mo dos objetos, seja nas relações (de consumo descartável) com os outros.

Conforme diz Sennett acima, continua sendo o etos do trabalho que per-manece na superfície da experiência, e a experiência de trabalho de equipe hojeé a prática de grupo da superficialidade degradante. A moral parece ser a se-guinte: como não sabemos se iremos nos ver amanhã (e nem queremos mes-mo...) vamos aproveitar e satisfazer (superficialmente, é óbvio) todos os impul-sos que sejam possíveis. A renuncia pulsional apregoada na ascese leiga daantiga ética do trabalho deu lugar à impulsividade compulsiva da satisfação ime-diata e total, ou seu dinheiro de volta! (bela mentira, não é mesmo?). Em outraspalavras, tudo se flexibiliza, a ponto de usarmos as pessoas e nos relacionar-mos com os objetos em busca da satisfação imediata.

Nos termos de Sennett, trata-se de uma corrosão do caráter, que é ataca-da pelo novo capitalismo flexível. Para o autor, subscrevendo a tradição, caráter é:

[...] o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e àsnossas relações com os outros. Horácio escreve que o caráter dealguém depende de suas ligações com o mundo. Neste sentido,“caráter” é um termo mais abrangente que seu rebento moderno“personalidade”, pois este se refere a desejos e sentimentos quepodem apostemar (apodrecer, supurar, infectar) por dentro, semque ninguém veja. [....] Caráter são os traços pessoais a que

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damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que osoutros nos valorizem (Sennett, 1999, p.10).

Traços de caráter podem ser entendidos aqui em dois sentidos. Primeiro,como traços de caráter no sentido freudiano, como, por exemplo, no texto Cará-ter e erotismo anal (Freud, [1908] 1996), em que traços configuram os ideais doeu do sujeito. Como dar valor a traços pelos quais cada um se sente reconheci-do pelos outros se estes outros mudam a toda hora? A pós-modernidade volatilizaesses traços pessoais e os valores que representam, e elimina progressivamen-te as testemunhas oculares e auriculares de nossas histórias, em função daflexibilidade exigida de mudança a curto prazo da cidade, da língua e do país.Os amigos de anos ficam distantes e frequentemente se perdem no tempo. Osideais do eu ficam desencontrados com os ideais da cultura e ocorre uma ex-pansão do imaginário narcísico em socorro à identidade ameaçada deestilhaçamento.

Em segundo lugar, a corrosão dos traços do caráter pode ser entendidacomo o processo de forclusão dos significantes que representam o sujeito dian-te de outros significantes em decorrência do discurso da tecnociência, comoveremos adiante. A forclusão desses significantes leva à corrosão do desejo, àmortificação do sujeito, que fica alienado na demanda do grande Outro. Segun-do Roudinesco (2000), vivemos a era da morte do sujeito, fazendo com que osintoma social dominante passe a ser da ordem das depressões.

A alienação na demanda do grande Outro e a superficialidade da experi-ência subjetiva com os outros, seja no etos de trabalho, seja no etos familiar esocial, tendem à degradação da experiência humana.

A Experiência na Era da Reprodutibilidade TécnicaO que entendemos por experiência? Qual o valor ético do desejo?Aqui nos referimos, de um lado, ao conceito de experiência conforme

elaborado por Benjamim (1994), e, de outro, à experiência analítica da divisãosubjetiva.

Segundo Benjamin, leitor de Freud, uma das tarefas fundamentais dohistoriador é construir narrativas que escovem a história a contrapelo (Ibid., p.225), desmistificando a ilusão do progresso tecnológico e científico como evolu-ção das forças produtivas e dominação crescente sobre as forças da natureza.Progresso, enfatiza ele, que redundou na barbárie da primeira e segunda gran-des Guerras Mundiais.

Ele argumenta que, na era industrial, fomos sendo progressivamente trans-formados em autômatos coisificados, que repetem mecanicamente gestos e

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mensagens que liquidam e degradam as experiências do sujeito. Para ele, se-gundo Gagnebin, “o historiador materialista conta a história identificando no pas-sado os germes de uma outra história, capaz de levar em consideração ossofrimentos acumulados e de dar uma nova face às esperanças frustradas” (Ben-jamin, 1994, p. 8). Por outro lado, para Benjamin, as vivências precisam sernarradas e enraizadas no ouvinte, para que possam se transformar em experiên-cias propriamente ditas, articulando “passado e presente, indivíduo e tradição,passado individual e coletivo” (Kramer, 2008, p.17).

Sendo a “faculdade de intercambiar experiências”, a “arte de narrar estáem declínio”, afirma Benjamin. Comenta, nesse sentido, que os veteranos daPrimeira Guerra voltavam dos campos de batalha “mais pobres em experiênciascomunicáveis” (Benjamin, 1994, p. 197-198). A vivência do horror da barbárietende a ser inenarrável, impossível de ser falada para um ouvinte e humanizadanessa troca simbólica com o outro.

Como a arte procura expressar, mesmo diante do impossível, as expe-riências inenarráveis do horror?

Em seu artigo A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, Benja-min (1994) examina algumas teses sobre como o “progresso” da técnica dascondições produtivas influencia as tendências evolutivas da arte, levando emconta que as mudanças nas condições da produção consomem mais tempopara se refletirem nos diversos setores da cultura.

Benjamin argumenta que, embora a obra de arte sempre fosse reprodutível, aera da reprodutibilidade técnica representa um processo novo, no qual “mesmo nareprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte,sua existência única, no lugar em que ela se encontra. É nessa existência única, esomente nela, que se desdobra a história da obra” (Ibid., p. 167). Para o autor, “oaqui e agora do original constitui sua autenticidade” e que “a esfera da autenticida-de, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica” (Ibid., 1994, p. 166).

A autenticidade do original é da ordem do ato de criação. Um ato é sim-bólico, é sempre único; sua enunciação é singular, mesmo que repercuta eproduza efeitos, um a um, numa coletividade.

No ato analítico, a interpretação é o retorno autêntico no aqui e agora datransferência, na boca do analista, dos significantes recalcados na fala doanalisante. Nos termos de Benjamin, podemos dizer de que não há análise semaura, e que a aura encontra seu ponto de ancoragem na interpretação, na trans-ferência da instância da letra, que articula o singular ao universal. A aura, paraBenjamin, “é uma figura singular”, “a aparição única de uma coisa distante, pormais perto que ela esteja” (Ibid., p. 168).

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Muito embora a reprodutibilidade técnica permita aproximar o indivíduo,em massa, da obra, algo da sua autenticidade como testemunho histórico seperde. Como este depende da materialidade da obra, “quando ela se esquiva dohomem através da reprodução, também o testemunho se perde. [...] O que desa-parece com ele é a autoridade da coisa, seu peso tradicional” (Ibid., p. 168).

A função social da arte se transforma quando o critério de autenticidadedeixa de se aplicar à produção artística, abdicando da função de ritual e passan-do a ter função política e, nesse sentido, passando do polo de um valor de cultoao de um valor de exponibilidade.

O advento da fotografia marca a transição do valor de culto ao de exposi-ção, sendo que a última trincheira do valor de culto se dá com a encomenda deretratos aos artistas, assim como “a aura acena pela última vez na expressãofugaz de um rosto nas antigas fotos.” (Ibid., p. 174).

Benjamin ressalta que, conforme o valor de exposição vai superando o deculto, o homem se retira da fotografia. E comenta a obra fotográfica de Atget, que fazum registro histórico do início do século passado, em que documenta as ruasdesertas de Paris, bem como suas vitrines, charmosas, com manequins e suasetiquetas – cabides de forma humana com seu preço de mercadoria (Imagens 1 e 2 ).

Ruas desertas e vitrines charmosas. Bela combinação. As ruas desertas,cidade sem vida, sujeitos sem representação para outros significantes. Vitrinescharmosas, ofuscando a corrosão do desejo através da sedução publicitária e suasubstituição pela mercadoria como sonho de consumo. Consumidores passivos,pacatos cidadãos, alienados na demanda do grande Outro do marketing.

Vera Chaves Barcellos, em sua obra fotográfica Manequins de Dusseldorf(imagem 3), capta algo semelhante a Atget com suas lentes, porém, com umséculo a mais de efeitos do “progresso” tecnológico. Ela consegue – na mesmasequência, feita no dia em que as vitrines estavam sendo reprogramadas – mos-trar o charme e a sofisticação das roupas da última moda, bem como sua con-tra-face, ou seja, sua face de horrores, com manequins despedaçados, contor-cidos, empilhados e empalados: o luxo e a barbárie desnudados lado a lado.

Uma fotografia tirada mais recentemente, por André Betts (imagem 4),mostra a absorção e a mercantilização de uma atitude de revolta contra a indús-tria de celebridades, em que o manequim, sexualmente ambíguo, tem em suacamiseta a inscrição retired sex simbol (símbolo sexual aposentado).

A condição humana requer sua aura de singularidade – singularidade edignidade. A aura, como condição humana, é mais ou menos retirada da arte, domodo de produção, das relações sociais, conforme o avanço da reprodutibilidadetécnica a massifica através da introdução da universalização pelo discurso daciência.

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O avanço da reprodutibilidade técnica tende a dissolver os laços de per-tença das pessoas, corrói sua capacidade de narrar as próprias experiênciaspara um ouvinte testemunha de sua história, e coisifica o resto pulsante causa dodesejo, transformando-o em lixo descartado pelo consumidor alienado à demandado Outro da publicidade e do consumo. Ou, pior, na barbárie explícita, em quetransformamos o ser humano em bucha de canhão, dano colateral no embate dosinteresses por ganhos econômicos desenfreados e por poder. O outro, sobretudoo estrangeiro, é objeto da barbárie humana em nome do progresso.

A era da reprodutibilidade técnica produz o estilhaçamento da aura, queperde seu registro simbólico, responsável por assegurar ao sujeito sua singulari-dade, e se multiplicam ao infinito suas identidades imaginárias (como se observanas fotografias dos manequins), os fenômenos do duplo e o ódio ao estrangeiro.

Consequências subjetivas e sociais do discurso da ciência e datecnologia transmitidas pelo escritor

Se perdemos a aura, se eliminamos a aura com a reprodutibilidade técni-ca, excluímos ao mesmo tempo o estranho, no sentido freudiano do termo. Seexcluímos do simbólico o estranho familiar, ele retorna como duplo ameaçador,como intolerância delirante ao estranho estrangeiro, com consequências mortífe-ras, como podemos constatar no conto William Wilson, de Edgar Allan Poe (1981).

Este autor é um dos expoentes literários do movimento gótico, assimcomo foram nas artes plásticas William Blake e Henri Fuselli, este último tendopintado, em 1781, o conhecido quadro intitulado O pesadelo (imagem 5).

No conto de Poe, o personagem e narrador William Wilson se vê progres-sivamente constrangido, desafiado, atormentado diante de seus colegas, perse-guido onde quer que vá, observado o tempo todo por seu duplo, de mesmo nomee data de nascimento, roupas sempre idênticas, etc. Há somente uma diferençaentre eles: “meu rival tinha no aparelho vocal uma fraqueza que o impedia dejamais erguer a voz acima de um sussurro muito baixo” (Poe, 1981, p. 92-3).

Essa voz sussurrada é ouvida somente por Wilson, embora ele não se dêbem conta disso, nem da invisibilidade de seu duplo aos olhos dos demais,estranhando em certos momentos a aparente indiferença de seus colegas dian-te dos comentários do duplo.

Após Wilson ter sido desmascarado por seu duplo, pela última vez, dian-te de seus colegas de universidade, trapaceando num jogo de cartas, em quelevava à ruína seu adversário, ele é obrigado a fugir novamente. O clímax, ouquem sabe, anticlímax, do conto se dá em seguida, na cena final: William Wil-son encontra seu duplo num baile à fantasia, vestindo uma máscara, capa eespada idênticas às suas, e disputando a mesma dama. Wilson, encolerizado,

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grita com a voz rouca pelo fogo de sua ira: “Miserável! Impostor! Vilão maldito!Não seguirás a minha pista… não me atormentarás até a morte! Segue-me, ouapunhalo-te aí onde estás!” (Ibid., p. 106).

Duelam num recinto fechado. Wilson domina seu duplo e mergulha suaespada várias vezes no seu peito. Volta-se para assegurar que a porta estivessetrancada.

Que ser humano poderá traduzir suficientemente o espanto, ohorror que se apoderaram de mim, ante o espetáculo que se apre-sentou aos meus olhos? O curto instante, durante o qual me des-viara, fora o suficiente para produzir, aparentemente, uma mudan-ça material nas disposições do outro extremo da sala. Um vastoespelho – em minha perturbação pareceu-me assim, a princípio –erguia-se no ponto onde antes nada vira; e, enquanto me dirigiatomado de horror, para esse espelho, minha própria imagem, mascom o rosto pálido e manchado de sangue, adiantou-se ao meuencontro, com um passo fraco e vacilante.Foi o que me pareceu, repito, mas não era. Era meu adversário,Wilson, que diante de mim se contorcia em agonia. Sua máscarae capa jaziam sobre o soalho, no ponto onde ele as lançara. Nãohavia um fio de sua roupa – sem uma linha em toda a sua figuratão característica e tão singular – que não fossem meus: era oabsoluto na identidade!Era Wilson, mas Wilson sem mais sussurrar agora as palavras,tanto que teria sido possível acreditar que eu próprio falava, quan-do disse:– Venceste e eu me rendo. Mas, de agora em diante, tambémestás morto… morto para o Mundo, para o Céu e para a esperan-ça! Em mim tu existias… e vê em minha morte, vê por esta ima-gem, que é a tua, como assassinaste absolutamente a ti mesmo(Poe, 1981, p. 107).

O conto inicia com o narrador pedindo, desesperançado, a simpatia e apiedade do leitor, que creia no relato da inacreditável e maldita experiência pela qualpassou. Ele narra sua história como um sujeito, borderline talvez, que teve umaexperiência de loucura, de alucinação e de passagem ao ato. Ou, ainda, como umpsicótico fora de crise falando de seus momentos de surto. Wilson se pergunta:“Na verdade não terei vivido num sonho? Não estarei morrendo vítima do horror edo mistério das mais estranhas de todas as visões sublunares?” Ibid., p. 88).

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No decorrer da narrativa, o duplo de William Wilson passa de duplo ima-ginário incômodo a duplo real, alucinado, com quem ele luta até a morte, matan-do a si mesmo por acreditar tratar-se de um outro. Somente então ele se dáconta do espelho que reflete sua própria imagem ensanguentada e a voz doduplo deixa de ser um sussurro e passa a ser a do próprio Wilson. O narradorpassa da enunciação de uma neurose incipiente ao da narrativa de um episódiopsicótico em que o personagem alucina ser outro, ou ainda da passagem ao atono delírio em que ele esfaqueia a si mesmo, crendo ser o outro persecutório aquem mata.

Poe consegue criar progressivamente um clima de horror e suspense, devertigem, em que se mesclam, conforme refere Pereira (2008), duas narrativassobrepostas: de um lado, conta a sua história, a suposta existência do duplo narealidade, que aparentemente é testemunhado por todos; e outra, em que onarrador vai enlouquecendo, ficando fora de si, até duelar com o duplo e matá-lo.

Somente no final é revelado ao narrador e ao leitor que esse duplo, esseoutro que o persegue, está na verdade nele mesmo. É seu Unheimlich, seuestranho, íntimo e familiar, que retorna. Poe mantém o leitor em suspenso, semdeixar claro se se tratou de um pesadelo (do qual Wilson acorda horrorizado,narrando seu sonho ao leitor, tentando entender e explicar o que se passou), ouda narrativa de um sujeito psicótico que entra em crise, tem um acesso deloucura com passagem ao ato suicida, do qual virá a morrer por consequênciados ferimentos, ou bem de uma alucinação, de um fenômeno de psicose(Lacan,[1953]1987), de uma “visão sublunar” do narrador Wilson, que vê durantealgum tempo, horrorizado, sua própria imagem ensanguentada, “morto para omundo” (Poe, 1981, p. 88).

O autor consegue deixar o leitor diante de um enigma que aponta a bordado real, mas faz isso através da vertigem que deixa o leitor em suspenso numafronteira movediça, numa zona sombria, cinzenta, nem clara, nem escura, semsaber se a borda é imaginária, simbólica ou queda no real.

O conto de Poe captura o fenômeno moderno da dissociação dos regis-tros do real, do simbólico e da multiplicação do imaginário como resultado dosefeitos sociais do discurso da ciência, como veremos adiante.

Consequências subjetivas e sociais do discurso da ciência e tecnologiapercebidas no Homem dos lobos

A mesma dissociação dos registros do real e do simbólico é descrita, emoutras palavras, por Freud, no texto História de uma neurose infantil, em queconta a história infantil do caso que ficou conhecido como o Homem dos lobos(Freud, [1918] 1996): Sergei Pankejeff alucina, quando criança, horrorizado, ter

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decepado seu dedo mínimo. Na história clínica do Homem dos lobos, de suaanálise com Freud a todas as análises subsequentes, é debatida a questão deseu diagnóstico, que vai da neurose obsessiva a uma psicose paranoica hipo-condríaca, passando por fenômenos de psicose ou de um caso borderline.

Sabemos que a era da reprodutibilidade técnica é decorrência do pro-gresso da ciência, do avanço do discurso tecnológico e científico na busca dasimbolização final do real. O ideal de uma simbolização final do real leva àspráticas de solução final, como no holocausto.

A “sociedade veiculada pela ciência”, diz Lacan, nos empurra celerementenessa direção:

O que vimos emergir deles (dos campos de concentração), paranosso horror, representou a reação de precursores em relação aoque se irá desenvolvendo como consequência do remanejamentodos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universaliza-ção que ela ali introduz (Lacan[1967] 2003, p. 263).

No artigo citado acima, Lacan diz que, se retiramos o mito edípico dosimbólico, somos jogados na alçada do delírio do presidente Schreber. Por queretirar o mito edípico do simbólico remete à paranoia?

O discurso da ciência se articula sobre a forclusão do sujeito dividido,fundando-se sobre o paradigma de uma linguagem sem fala, por um lado, e, poroutro, renegando a castração, tal qual na perversão, em que, embora se saibaque o real é impossível de simbolizar, mesmo assim, espelhando-se em seus“progressos”, o discurso da ciência promete que amanhã, sim, será possível oque é impossível hoje.

Nesse sentido, Lacan ([1962-1963] 2005, p. 193) afirma que sempre es-capa algo da “significantização” deixando um resto, sendo que o objeto a é “oresto da constituição do sujeito no lugar do Outro” (Ibid., p. 309). E que o objetoa, causa de desejo, é “um objeto externo a qualquer definição possível da obje-tividade” no campo da ciência (Ibid., p. 99).

Através da forclusão do significante do falo simbólico, que indica a bordado real, isto é, os limites da simbolização, o discurso científico promove, de umlado, a disjunção do simbólico e do real. Por outro, induz a uma autonomizaçãodo imaginário e provê os meios tecnológicos de uma multiplicação-reproduçãoinfinita das imagens especulares do eu.

Ou seja, a imagem fálica, ilusória, das flores dentro do vaso, se forma namente do consumidor passivo, alienado na demanda do outro da publicidade.Nesse sentido, a angústia do consumidor tem dois polos: um, quando mergulha

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no consumo, o vazio tende a ficar tomado pelos objetos adquiridos, “e a faltapode faltar” (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 51-2); um segundo polo se apresentaquando o sujeito não tem condições de atender à demanda do Outro da publici-dade, a falta se revela sem o anteparo do véu, o sujeito se vê confrontado demodo demasiado direto com o real da falta.

A autonomização do imaginário promovida pelo discurso da ciência e doadvento da era da reprodutibilidade que a promove, pode ser observada nasfotografias de Atget, que prioriza como temática as ruas desertas de Paris, e aredução do humano à condição de objeto, à de manequins coisificados, cabidesda indústria da moda, e as propostas de identificação imaginária se multiplicamnos espelhos das vitrines dos magazines, fornecendo as imagens do eu (moi)das quais cabe ao sujeito ficar alienado pelos enunciados da moda e perder-sedas referências simbólicas de sua posição de enunciação desejante.

As características do discurso da ciência mencionadas acima promovema disjunção dos registros do simbólico e do real, assim como a inflação doimaginário. Porque o mito edípico fora do simbólico nos lança na paranoia, con-forme a afirmação de Lacan referida acima?

O mito edípico se organiza em torno do complexo de castração. Lacan([1957-1958] 1999, p.178) define a castração como sendo a operação simbólicarealizada por um agente real em relação a um objeto imaginário chamado “falo”.Isso implica que “para operar a castração no sentido psicanalítico do termo”, épreciso delimitar a fronteira que separa e articula os registros do real e do sim-bólico em relação ao objeto imaginário falo, sendo falo o objeto que suposta-mente responderia à castração materna. Em outras palavras, no esquema óti-co, são as flores que imaginariamente aparecem no vaso [i’(a)].

Quando a operação de castração deixa de unir e separar a fronteira entreo real e o simbólico, e ocorre a dissociação entre dois registros, nos deparamoscom equivalentes variados da castração simbólica, sob a forma de realizaçõesmutilatórias imaginárias da castração ou de realizações alucinatórias da mesma.

Leclaire propõe “examinar aquilo de que se fala quando se menciona acastração, isto é, o pênis”, afirmando que “o sexo masculino nos indica o pró-prio lugar da articulação do real e do simbólico, pois efetivamente só o testemu-nho da fé ou da lei pode dar conta da paternidade” (Leclaire, 2001, p. 180).Atualmente, podemos acrescentar que a ciência tenta afirmar a paternidadesimbólica a partir de uma prova real de DNA, e que a lei sanciona e penalizacom multa e até prisão o não cumprimento da pensão alimentícia para a crian-ça, como se o exercício da paternidade se reduzisse a isso ou que possa serobrigado por força de lei. Ou seja, é o problema da paternidade que melhorilumina o caráter simbólico do pênis (Ibid., p. 181).

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Conforme já dito em outro artigo:

Proponho pensar o caso do Homem dos Lobos (Freud, [1918]1976) como um estado limite entre a neurose obsessiva e a psico-se propriamente dita. Entendo por estado limite a condição psíquicaque resulta das dificuldades de articulação do simbólico com o realque levam a uma predisposição à psicose ou a estados em que arealidade se apresenta como puro imaginário, podendo inclusive apre-sentar episódios alucinatórios, por falta da referência simbólica.O caso relatado por Freud nos coloca as dificuldades relativas àarticulação entre o real e o simbólico no complexo de castração: “osexo masculino nos indica o próprio lugar da articulação do real e dosimbólico, pois efetivamente só o testemunho da fé ou da lei podedar conta da paternidade... Nada ilustra melhor o caráter simbólicodo pênis do que o problema da paternidade”, diz Leclaire (2001, p.180).Na história do Homem dos Lobos, o pênis simbólico (o homem-pai em sua função simbólica) foi rejeitado, forcluído, levando à“transformação progressiva de uma pergunta formulada pela neu-rose numa resposta imaginária irrisoriamente exposta pela psico-se.” Qual pergunta? Aquela em torno da qual se articula o simbó-lico e o real. A pergunta em questão é: “O que é esse pai, de quemsou filho, e como posso eu, como filho de um tal pai, tornar-meverdadeiramente possuidor de um pênis?” (Leclaire, 2001, p.189).Lá onde essa articulação claudica, o imaginário toma conta e ocomplexo de castração oscila entre a multiplicação infinita naneurose obsessiva das equivalências imaginárias do falo (pênis =fezes = filhos = etc.) e a castração sendo imaginarizada no realsob a forma de alucinações ou construções imaginárias deliran-tes. Os estados limites contemporâneos centram-se em torno doenigma do falo e são abundantes em tudo aquilo que pode evocaro complexo de castração em sua vertente imaginária ou do ladodo retorno no R (alucinações, toxicomanias, depressões, etc.) doque foi rejeitado no simbólico (Betts, 2004, p. 23-4).

Uma mulher aparece grávida. Qual é a pergunta que surge? Temos basi-camente três possibilidades. Quem é o pai? – pergunta que aponta a bordasimbólica da questão, assim como indica o lado que a tradição ressaltava. Asegunda pergunta: Qual foi o pênis? – indica o lado real. A terceira perguntadecorre dos progressos da ciência e das tecnologias de fecundação artificial,

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em que a articulação entre o pênis real que fecunda e a paternidade simbólicase desfaz:

De quem é o espermatozoide, de quem é o DNA?O pênis e sua ereção fálica não são mais necessários para a fecunda-

ção, que pode ser feita higienicamente in vitro. O pai é dispensável nas produ-ções independentes, desconhecido nas inseminações feitas comespermatozoides retirados de bancos de sêmen, assim como é um ilustre des-conhecido em grande número de famílias, Brasil afora.

O discurso da ciência forclui o sujeito do suposto saber e em seu lugarcoloca o objeto do suposto saber. Somos todos reduzidos à condição de cobai-as e de nossa fala somente interessa a informação buscada no protocolo emquestão. Escutar a narrativa das experiências do sujeito é, no fim das contas,uma perda de tempo, pois a prescrição do psicofármaco sedará o sofrimento.

Quais são os efeitos dessa exclusão (forclusão) do sujeito nas relaçõesque estabelecemos com os outros? – pergunta-se Hassoun (1997). O autorafirma que, na paixão, o sujeito é capturado pelo outro a ponto de se deixardespossuir de sua subjetividade pela imagem apaixonante na qual ele é a presa.Na melancolia, o sujeito é tragado pelo terror e espanto diante de sua própriaindignidade, mergulhando num abismo de perplexidade, apatia e crueldade queo despossui de seu desejo, de sua fala e de sua voz, dando voltas infinitamenteem seu enigmático desastre interior.

No caso do ódio, o sujeito que é sua presa acaba devorado pelo horrorque o outro lhe suscita e passa obstinadamente a tentar destruir essa supostacausa de sua indignidade. Obsedado por essa ideia, o sujeito persegue portodos os lados o obscuro e estranho objeto de seu ódio, para melhor destruir ooutro. Primeiro, o outro estrangeiro, portador do significante da diferença, e,portanto, invasor em seu território narcísico. Progressivamente, o círculo de ódiovai se estreitando aos mais próximos, atingindo familiares, bem como a si mes-mo (Hassoun, 1997, p. 13-14). Tal como no conto de Poe mencionado acima.

No ódio ao estranho-estrangeiro, seja pela exacerbação do imaginárioespecular nas relações sociais, seja pelo surto alucinatório de retorno ao real daalteridade simbólica forcluída, as consequências são mortíferas.

Consequências subjetivas e sociais do discurso da ciência e tecnologiatransmitidas pelo artista

Talvez tenha sido um artista quem melhor captou a destituição do sujeitodo suposto saber e a promoção do objeto ao estatuto de suposto saber em seulugar, assim como a exclusão do sujeito das relações sociais e sua coisificação,juntamente com a promoção do objeto-mercadoria-fetiche ao lugar de primazia

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sobre as coisas humanas. A arte contemporânea, no espírito de seu tempo,procura ir abaixo das superfícies e eliminar o quanto possível qualquer forma derepresentação, visando a uma presentação do real.

Penso que esse artista foi Marcel Duchamp. Duchamp se colocou noolho do furacão da “refuncionalização da arte” decorrente da “emancipação datécnica dos seus fundamentos no culto” (Benjamin, 1994, p. 176), na era dareprodutibilidade técnica e seu reposicionamento como valor de exponibilidadee valor de mercado.

Quando ele inscreveu, sob o pseudônimo de R. Mutt, seu ready-madeintitulado Fonte (imagem 6), para a exposição des Indépendants, em 1917, elechutou o penico, desafiando as convenções e a pompa do mundo das artes.Causou escândalo, sua obra foi recusada e a polêmica desencadeada seguerepercutindo até hoje. Duchamp colocou o dedo na ferida da crise da arte, trans-mitindo em sua criação provocativa as consequências subjetivas e sociais dodiscurso da ciência e da tecnologia, abrindo a caixa de Pandora5. Na verdade,ao ser aberta, a caixa de Pandora revela o estilhaçamento da aura e das tradi-ções, que se pulverizam em todas as direções. Algumas se conservam dentrodo campo da função da arte, outras seguem rumos distintos. Algo se perde napassagem do resto ao lixo.

Com seus ready-made, Duchamp apontou que a última fronteira da cria-ção artística, da possibilidade de criação de alguma aura humana na era daprodução de objetos em série industrial, se resumia à autoria intelectual, à es-colha de objeto feita pelo artista, que é capaz de fazer de uma coisa outra coisa,ao retirar o objeto industrializado de seu contexto funcional ou convencionado,subvertendo seu conceito, e renomeando o mesmo com títulos indissociáveisda natureza plástico-linguística proposta por ele.

5 A caixa de Pandora é uma expressão muito utilizada quando se quer fazer referência a algoque gera curiosidade, mas que é melhor não ser revelado ou estudado, sob pena de se vir amostrar algo terrível, que possa fugir de controle. Essa expressão vem do mito grego, queconta sobre a caixa que foi enviada com Pandora a Epimeteu. Pandora foi enviada a Epimeteu,irmão de Prometeu, como um presente de Zeus. Prometeu, antes de ser condenado a ficar30.000 anos acorrentado no Monte Cáucaso, tendo seu fígado comido pelo abutre Éton todosos dias, alertou o irmão quanto ao perigo de aceitar presentes de Zeus. Epimeteu, no entanto,ignorou a advertência do irmão e aceitou o presente do rei dos deuses, tomando Pandoracomo esposa. Pandora trouxe uma caixa (uma jarra ou ânfora, de acordo com diferentestraduções), enviada por Zeus em sua bagagem. Epimeteu acabou abrindo a caixa, e liberandoos males que haveriam de afligir a humanidade dali em diante: a velhice, o trabalho, a doença,a loucura, a mentira e a paixão. No fundo da caixa, restou a Esperança (ou segundo algumasinterpretações, a Crença irracional ou Credulidade). Com os males liberados da caixa, teve fima idade de ouro da humanidade (Wikipédia).

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A obra mencionada acima, Fonte, carrega diferentes interpretações. Acomeçar pelo pseudônimo com que assina a obra, obviamente bem pensado ecarregado de ironia, como era seu estilo: em inglês, Mutt significa basicamenteum ser sem raça definida, resultado do cruzamento de raças indefinidas, semclasse ou tipo definido, de ascendentes desconhecidos; refere também a pes-soa comum ou burra (Webster, 1986). Ou seja, “R. Mutt” deve ser lido como ourmutt, isto é, metaforicamente, nossa burrice!

Além de um irônico xixi na comissão curadora da exposição, em 1917, otítulo Fonte inverte os vetores de movimento, bem como as relações de recipien-te e conteúdo, pois a fonte é, do ponto de vista de sua funcionalidade, o recep-táculo da emissão de urina oriunda da fonte masculina, e não o contrário. Oobjeto que é retirado de seu contexto e funcionalidade, que é renomeado einserido em outro contexto, torna-se enigmático e demanda ser decifrado. São ametáfora e a metonímia reduzidas ao seu ponto de contração máximo, apontan-do a um gozo da instância da letra.

Lenir de Miranda, artista de Pelotas (RS), criou em 2006 uma instalaçãoe um vídeo denominados Visão pós-traumática do Déjeuner sur l´herbe (imagem7), obra que foi aceita na Documenta de Kassel virtual, em 2007. A artista pelotenseparte da obra de Edouard Manet (Le déjeuner sur l´herbe, 1863) e faz uma“contextualização iconográfica” da mesma.

A obra de Manet foi inspirada em obra anterior de Ticiano (Concerto pasto-ral, 1508-1509), e foi objeto de inspiração de muitas versões realizadas por diver-sos artistas. O Déjeuner de Manet provocou escândalo na época, e foi expostoapenas no Salão dos Recusados. O motivo manifesto dessa reação parece tersido o fato de ele colocar uma mulher nua ao lado de homens vestidos, e outra,mais ao fundo, se banhando de camisa nas águas de um riacho. Se não bastasseisso para chocar a moral e os bons costumes de seus contemporâneos parisienses,Manet pinta essa mulher nua – em relação à qual os dois homens parecem indi-ferentes – em primeiro plano, olhando diretamente para o espectador! Seu olharinterpela quem contempla o quadro. Vemos na imagem o que nos olha, e o desejoque esse olhar objeto pequeno a causa fez retornar o recalcado que escandali-zou os parisienses do século XIX, para além das inovações de estilo, que ser-vem ao mesmo propósito de re-velar as formações do inconsciente.

Talvez algo mais sombrio ainda contido nessas inovações de estilo tenhachocado os parisienses de 1863, como o prenúncio dos horrores da sociedadeem vias de ser veiculada pela ciência (Lacan, [1967] 2003, p. 263).

Duzentos e vinte e cinco anos mais tarde, aprés coup, na Visão pós-traumática do Déjeuner sur l’herbe, ao som da Pastoral de Beethoven, Lenir deMiranda faz um narrador masculino recitar um trecho do poema Waste Land, de

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T. S. Eliot (1981, p. 90): “Eu lhes mostrarei medo num punhado de pó”. Surgeem seguida o quadro de Manet, que vai sofrendo transformações progressivascom uma sobreposição digital de imagens. Inicialmente, as quatro figuras doquadro de Manet são transfiguradas para nossa época.

As transformações da imagem nos dão a impressão, em câmara lenta,da devastação que uma explosão nuclear produz. As figuras humanas contem-porâneas têm seus esqueletos expostos, como numa imagem radiográfica, paraprogressivamente irem tomando as cores de um braseiro. Lentamente, assu-mem a aparência de restos de carne humana amorfa, e de sangue coagulado,com uma fita preta e amarela, indicando que tais imagens de horror devem serproibidas ao olhar. O lixo calcinado do que foi um dia a civilização, destroços doque foi um dia a experiência do convívio humano são vedados pela fita, tantoindicando a interdição de acesso a uma zona contaminada pela radioatividade,quanto remetendo-nos à ideia de proibição, enquanto é tempo, desse final me-lancólico a que leva o gozo do Outro obsceno, fora da castração simbólica.

O que sobra da bucólica e sensual cena de Manet? Apenas uma visãopós-traumática: sangue, lixo, vidas calcinadas, cinzas, objetos de uso cotidianoe de convívio queimados e quebrados, como xícaras, pires e bule de chá.

No final da obra, o narrador traz uma segunda citação de T. S. Eliot, naqual somos convidados, ironicamente, a tomar chá com os amigos!

Uma análise visa fazer de um destino um estilo. As duas citações de Eliot(1981, p. 64) – “I will show you fear in a handful of dust” e “after all, I shall sit here,serving tea to friends”6 – sugerem, por outro lado, dois finais possíveis para ahistória da humanidade. Qual destino escolheremos? Haverá um estilo possível?

REFERÊNCIASBAUMMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e histó-ria da cultura. In: Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1.BETTS, Jaime. Adeuspai à adeusarazão – O pai na arte e a psicopatologia contem-porânea. Revista Textura – Revista de Psicanálise, São Paulo, Publicação das Reu-niões Psicanalíticas, Ano 4, n. 4, 2004.DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTOCK, Gregory. A Nova arte . São Paulo: Ed.Perspectiva, 1986.FREUD, Sigmund. Atos obsessivos e práticas religiosas [1907]. In: FREUD. Ediçãostandard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio deJaneiro: Imago, 1996. v. 9.

6 “Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó” e “Depois de tudo, estarei sentado aqui,servindo chá aos amigos”.

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_____. Caráter e erotismo anal [1908]. In: Ibid. v. 9._____. História de uma neurose infantil [1918] . In: Ibid. v 17.FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. São Paulo: Abril Cultural, 1984.KRAMER, Sônia. Educação a contrapelo. Revista Educação – Benjamin pensa aeducação, São Paulo, Segmento, n. 7, mar. 2008.LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 – Os escritos técnicos de Freud [1953-54]. SãoPaulo: Ed. Zahar, 1987._____. O seminário, livro 5 – As formações do inconsciente [1957-1958]. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 1999._____. Proposição de 9 de outubro de 1967. In: LACAN, Jacques. Outros escritos.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003._____. O seminário, livro 10 – A angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.LECLAIRE, Serge. Sobre o episódio psicótico apresentado pelo Homem dos Lobos.In: LECLAIRE. Escritos clínicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.PEREIRA, Lucia S. O conto machadiano – uma experiência de vertigem . Rio deJaneiro: Companhia de Freud, 2008.POE, Edgar A. William Wilson. In: POE, E. Histórias extraordinárias. São Paulo: AbrilCultural, 1981.ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro : São Paulo, 1999.WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhiadas Letras, 2005.WEBSTER’S Third International Dictionary of the English Language. USA: Merriam-Webster Inc., 1986.WILDE, Oscar. The picture of Dorian Gray. Londres: Pinguin, 1984.WIKIPEDIA. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Pandora. Acessado em 10/04/2009.

ANEXO:

Imagem 1,2. Atget, 1913.

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Imagem 3. Vera Chaves Barcellos, Manequins de Dusseldorf, 1978.

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Imagem 4. André Betts, 2008.

Imagem 5. Henri Fuselli, O Pesadelo, 1781.

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Imagem 7. Lenir de Miranda, Visão Pós-Trau-mática do Déjeuner sur l´Herbe, 2006.

Imagem 6. Marcel Duchamp, A Fonte, 1917.

Recebido em 23/06/2009

Aceito em 15/07/2009Revisado por Clara Maria von Hohendorff

e Gardênia Medeiros