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COISA JULGADA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA: REFLEXÕES SOBRE A SÚMULA 239 DO STF Cassio Scarpinella Bueno Mestre, Doutor e Livre-docente em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da PUCSP. Professor de Direito Processual Civil nos cursos de Graduação, Especialização, Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito da PUCSP. Membro e Diretor de Relações Institucionais do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro do Instituto Iberoamericano de Direito Processual e da Associação Internacional de Direito Processual. Integrou a Comissão Técnica de Apoio à elaboração do relatório-geral na revisão do projeto do novo Código de Processo Civil no âmbito do Senado Federal e participou dos Encontros de Trabalho de Juristas sobre o mesmo Projeto no âmbito da Câmara dos Deputados. Advogado. Áreas do Direito: Direito Tributário e Direito Processual Civil *Resumo: O artigo discute as influências do direito material tributário no direito processual civil na perspectiva da coisa julgada e da análise crítica da Sumula 239 do STF. *Palavras-chave: Coisa julgada. Influência do direito material sobre o processual. Súmula 239 do STF. *Abstract: This article discusses the influences of Tax Law on Civil Procedure Law in the perspective of res judicata and analyses the Precedent 239 of the Brazilian Supreme Court. *Keywords: Res Judicata. Relations between Tax Law and Civil Procedure Law. Precedent 239 of Brazilian Supreme Court. Sumário: 1. Considerações introdutórias: direito processual tributário e coisa julgada - 2. Coisa julgada no atual CPC - 3. Limites temporais da coisa julgada - 4. Coisa julgada em matéria tributária: a Súmula 239 do STF - 5. Ainda a Súmula 239 do STF - 6. Coisa julgada em “ações declaratórias” - 7. Reflexão final - 8. Referências bibliográficas

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COISA JULGADA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA:

REFLEXÕES SOBRE A SÚMULA 239 DO STF

Cassio Scarpinella Bueno

Mestre, Doutor e Livre-docente em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da PUCSP.

Professor de Direito Processual Civil nos cursos de Graduação, Especialização, Mestrado e

Doutorado da Faculdade de Direito da PUCSP. Membro e Diretor de Relações Institucionais do

Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro do Instituto Iberoamericano de Direito

Processual e da Associação Internacional de Direito Processual. Integrou a Comissão Técnica de

Apoio à elaboração do relatório-geral na revisão do projeto do novo Código de Processo Civil no

âmbito do Senado Federal e participou dos Encontros de Trabalho de Juristas sobre o mesmo

Projeto no âmbito da Câmara dos Deputados. Advogado.

Áreas do Direito: Direito Tributário e Direito Processual Civil

*Resumo: O artigo discute as influências do direito material tributário no direito processual civil

na perspectiva da coisa julgada e da análise crítica da Sumula 239 do STF.

*Palavras-chave: Coisa julgada. Influência do direito material sobre o processual. Súmula 239 do

STF.

*Abstract: This article discusses the influences of Tax Law on Civil Procedure Law in the

perspective of res judicata and analyses the Precedent 239 of the Brazilian Supreme Court.

*Keywords: Res Judicata. Relations between Tax Law and Civil Procedure Law. Precedent 239

of Brazilian Supreme Court.

Sumário:

1. Considerações introdutórias: direito processual tributário e coisa julgada - 2. Coisa julgada no

atual CPC - 3. Limites temporais da coisa julgada - 4. Coisa julgada em matéria tributária: a

Súmula 239 do STF - 5. Ainda a Súmula 239 do STF - 6. Coisa julgada em “ações declaratórias” -

7. Reflexão final - 8. Referências bibliográficas

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1. Considerações introdutórias: direito processual tributário e coisa julgada

Na exata medida em que não há maiores dúvidas sobre a indispensabilidade de o direito

processual civil ser lido, interpretado, aplicado e sistematizado levando em conta o direito

material controvertido que, pelo processo, justifica a atuação do Estado-juiz, as peculiaridades dos

diversos ramos do direito material têm convidado os seus estudiosos e os do direito processual

civil a se voltarem a pesquisar os resultados de sua inevitável confluência e intersecção1.

Nesse contexto, o chamado “processo tributário” — ou o que parece ser mais correto,

“direito processual tributário” — nada mais é do que o direito processual civil estudado levando

em conta as peculiaridades do direito material tributário2.

São diversos os institutos do direito processual civil que encontram, no direito tributário,

algumas peculiaridades. É o que se dá, para o que interessa ao presente artigo, com relação à coisa

julgada.

2. Coisa julgada no atual CPC

O Código de Processo Civil de 1973 procurou ser rigoroso na relação entre mérito e coisa

julgada material. Só faz coisa julgada material a decisão de mérito, que, para o sistema do Código

em vigor, é sinônimo de lide. É o que dispõe, com clareza, o art. 468: “A sentença, que julgar total

ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas”.

Assim sendo, somente as decisões que apreciam o mérito — a “lide”, de acordo com a

nomenclatura do atual Código de Processo Civil — fazem coisa julgada material. Não as demais3.

Por coisa julgada material deve ser entendida a qualidade de imutabilidade que se agrega ao

comandado da decisão. Isto é: a impossibilidade de rediscussão daquela mesma matéria em nova

demanda perante qualquer juízo (art. 467 do CPC). É o que considerável parcela da doutrina 1. Bem ilustram a pertinência da afirmação os seguintes autores: Paulo Cesar Conrado, Processo tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 23/32 e 173/191; Cleide Previtalli Cais, O processo tributário. 7ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 177/188 e James Marins, Direito processual tributário brasileiro (administrativo e

judicial). 7ª edição. São Paulo: Dialética, 2014, p. 9/23. Do autor deste artigo, v. seu Curso sistematizado de direito

processual civil, vol. 1. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 81/83. 2. São diversos os estudos que adotam essa premissa. Apenas para fins ilustrativos, cabe destacar os de Cleide Previtalli Cais, O processo tributário, atualmente na 7ª edição pela Editora Revista dos Tribunais, e o de James Marins, Direito processual tributário brasileiro (administrativo e judicial), atualmente na 7ª edição pela Editora Dialética. Do autor deste artigo, Curso sistematizado de direito processual civil, vol. 1. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 70. 3. O regime da coisa julgada no Projeto de novo Código de Processo Civil, no que interessa ao desenvolvimento deste artigo, não traz nenhuma novidade. Para essa demonstração, v., do autor, Projetos de novo Código de Processo Civil:

comparados e anotados. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 258/260.

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chama de “efeito negativo da coisa julgada”, verdadeiro pressuposto processual que impede nova

discussão do que já foi soberanamente julgado pelo Estado-juiz.

Sentenças que julgam o mérito são aquelas arroladas no art. 269 do Código de Processo

Civil. De maior interesse para o estudo presente é a do inciso I: “quando o juiz acolher ou rejeitar

o pedido do autor”. Diferentemente, todas as sentenças que tenham como conteúdo uma das

matérias do art. 267 extinguem o processo sem resolução de mérito, vale dizer, sem apreciação da

lide. Não fazem, destarte, coisa julgada material.

Uma vez decidido o mérito de dada demanda e havendo trânsito em julgado — e é

indiferente, no particular, se o pedido foi acolhido ou rejeitado, no todo ou em parte — não há

mais possibilidade de a mesma questão vir a ser reapreciada perante o Estado-juiz. Ultrapassado o

prazo de dois anos para a propositura de eventual ação rescisória (o que é condicionado, de

qualquer sorte, à ocorrência de uma ou mais de uma das hipóteses do art. 485 do CPC), fecha-se,

por completo, a possibilidade de rediscussão daquela pretensão. Essa impossibilidade de

rediscussão da matéria perante qualquer juízo por intermédio de qualquer ação é o que caracteriza

a coisa julgada material, nítida decisão política de não permitir a indefinição da solução dos

litígios4.

Para saber o que transitou em julgado, importa pesquisar, com precisão, qual o tema

controvertido no processo. A coisa julgada opera, justamente, a partir do pedido, tal qual

formulado pelo autor na petição inicial. A decisão jurisdicional que julga o mérito é,

tecnicamente, a resposta do Poder Judiciário ao pedido formulado pelo autor. É sobre isto que

recai a coisa julgada e o seu regime jurídico característico de imutabilidade5.

O que prevalece para o sistema processual civil hoje vigente, em função, até mesmo, do

princípio da segurança jurídica, é a coisa julgada, garantia constitucional (art. 5º, XXXVI, da

Constituição Federal), que se forma sobre a parte dispositiva do quanto julgado6-7.

4. A lição, dentre tantos outras, é uma das consagradoras de Enrico Tullio Liebman nas letras do direito processual civil mundial: “... a eficácia de uma sentença não pode por si só impedir o juiz posterior, investido também ele da plenitude dos poderes exercidos pelo juiz que prolatou a sentença, de reexaminar o caso decidido e julgá-lo de modo diferente. Somente uma razão de utilidade política e social — o que já foi lembrado — intervém para evitar esta possibilidade, tornando o comando imutável quando o processo tenha chegado à sua conclusão, com a preclusão dos recursos contra a sentença nele pronunciada.” (Eficácia e autoridade da sentença. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 53/54, sem os destaques). A lição é acolhida expressamente pelo autor deste artigo como se pode ver de seu Mandado de segurança. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009 p. 185/186 e de seu Curso sistematizado

de direito processual civil, vol. 2, tomo I. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 377/382. 5. Assim, v.g., Egas Moniz de Aragão, Sentença e coisa julgada. Rio de Janeiro: AIDE, 1992, p. 244. 6. “Destina-se a realizar a segurança extrínseca das relações jurídicas, e subordina-se ao princípio da congruência entre a pretensão e a jurisdição exercidas” (Celso Neves, Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 504).

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Não obstante, embora o sistema brasileiro não admita, como regra, o trânsito em julgado

dos motivos da sentença (art. 469, I, do CPC), não é menos verdade que, após o trânsito em

julgado, é vedado às partes valerem-se de qualquer alegação ou fato que poderiam ter se valido

anteriormente mas que não o fizeram (art. 474 do CPC) 8. Não é dado para o direito brasileiro que

se pretenda rediscutir os fundamentos jurídicos da decisão acobertada pela coisa julgada visando à

sua modificação9.

3. Limites temporais da coisa julgada

Tema menos discutido em doutrina, embora de inegável importância para todos os fins,

inclusive para o desenvolvimento do presente artigo, é o relativo aos limites temporais da coisa

julgada, isto é: como a qualidade de imutabilidade que se agrega àquilo que foi decidido pelo

Estado-juiz em determinadas hipóteses (limites objetivos da coisa julgada) comporta-se ao longo

do tempo.

Eduardo Talamini é um dos monografistas que se dedicou especificamente ao tema. De

suas lições, cabe transcrever o seguinte trecho:

“Alude-se a ‘limites temporais’ da coisa julgada para designar a delimitação

do momento em que ela opera. Trata-se de definir quais fatos, no curso do tempo,

estão abrangidos pela causa de pedir e o pedido postos em juízo e, consequentemente, 7. “Limita-se, objetiva e subjetivamente, à relação jurídica deduzida em juízo e objeto do decisum, sem cobrir o esquema lógico da sentença, nem a verdade aí atribuída aos fatos” (Celso Neves, Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 505). 8. “Por essa razão, ao invés de estabelecer os limites da coisa julgada com fundamento nas questões discutidas, convém lembrar que o que a coisa julgada deve assegurar, é o resultado prático e concreto do processo (ou, em outras palavras, o seu efeito), e nada mais que isso; e é, pelo contrário, irrelevante a amplitude da matéria lógica discutida e examinada. Pode esta ter ultrapassado os limites da questão que foi deduzida no processo como seu objeto, ou pode também ter-se restringido mais do que ela poderia ter comportado, sem que por isso se altere o âmbito em que se opera a coisa julgada. E para identificar o objeto (sentido técnico) do processo e, em conseqüência, da coisa julgada, é necessário considerar que a sentença representa a resposta do juiz aos pedidos das partes e que por isso (prescindindo da hipótese excepcional de decisão extra petita) tem ela os mesmos limites desses pedidos, que ministram, assim, o mais seguro critério para estabelecer os limites da coisa julgada. Em conclusão, é exato dizer que a coisa julgada se restringe à parte dispositiva da sentença; a essa expressão, todavia, deve dar-se um sentido substancial e não formalístico, de modo a que não abranja só a fase final da sentença, mas também qualquer outro ponto em que tenha eventualmente provido sobre os pedidos das partes. Excluem-se, por isso, da coisa julgada, os motivos, mas são eles mesmos um elemento indispensável para determinar com exatidão a significação e o alcance do dispositivo” (Ada Pellegrini Grinover, nota em Enrico Tullio Liebman, Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 57/58, sem os destaques). 9. “A eficácia preclusiva da coisa julgada não interfere na extensão da matéria imunizada pela coisa julgada. A imutabilidade não se estenderá aos argumentos dedutivos ou dedutíveis. A eficácia preclusiva em realidade impede a propositura de demandas incompatíveis com a situação jurídica definida na sentença transitada em julgado, na exata medida da incompatibilidade e sem haver a extensão dos limites objetivos da coisa julgada à situação jurídica incompatível.”. (Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes, Limites objetivos e eficácia preclusiva da coisa julgada. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 135, sem os destaques).

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pela coisa julgada que se formar. A rigor, tal investigação concerne aos próprios limites

objetivos da coisa julgada, razão por que a expressão ‘limite temporal’ é por muitos

considerada inadequada. O tema comporta dois enfoques.”10.

O art. 471 do Código de Processo Civil aplica a regra dos limites objetivos da coisa julgada

ao longo do tempo, apresentando os contornos do tema: não se rediscutem mais as “questões já

decididas relativas à mesma lide”, isto é, as questões sobre as quais operou-se a coisa julgada

(material) em outros processos. Trata-se, nesta perspectiva, da chamada “função negativa da coisa

julgada”, isto é, sua concepção como verdadeiro pressuposto processual negativo. A coisa

julgada, pela sua própria razão de ser, tende a projetar o caráter de imutabilidade do que foi

decidido ao longo do tempo impedindo que outro processo entre as mesmas partes, com o mesmo

pedido e a mesma causa de pedir seja instaurado11.

O autor deste artigo teve a oportunidade de enfrentar a questão em sede doutrinária,

quando escreveu o seguinte:

“Pode ocorrer, contudo, que haja motivos para decidir novamente o que já foi

objeto de decisão, mesmo quando ela esteja acobertada pela coisa julgada. Aqui, uma

vez mais, é verificar se e em que situações há razões de política legislativa que

mitiguem o instituto, prevalecendo sobre a ‘segurança jurídica’ por força de outros

valores, igualmente tutelados pela Constituição Federal.

Os incisos do art. 471 ocupam-se de casos em que o legislador expressamente

fez esta eleição.

No inciso I, é possível ao juiz voltar a decidir, a despeito da coisa julgada

anterior, quando houver modificações no estado de fato ou de direito das chamadas

‘relações jurídicas continuativas’. O que caracteriza tais relações jurídicas é a sua

duração ao longo do tempo. O exemplo clássico é o da prestação alimentícia. A obrigação

de prestar alimentos desenvolve-se ao longo do tempo e as mais diversas ocorrências

podem interferir na continuidade daquela prestação. É supor que o devedor de alimentos

seja despedido e não tenha mais condições de manter os padrões da prestação à qual estava

obrigado ou, inversamente, de ele passar a ter um salário melhor. Estes fatos, que ocorrem,

10. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 87, sem os destaques. 11. É o que decorre de maneira muito clara dos §§ 1º a 3º do art. 301 do Código de Processo Civil, que têm, respectivamente, a seguinte redação: “§ 1º. Verifica-se a litispendência ou a coisa julgada, quando se reproduz ação anteriormente ajuizada. § 2º. Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. § 3º. Há litispendência, quando se repete ação, que está em curso; há coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso.”.

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todos, no plano material, interferem, necessariamente, no que já foi julgado (no plano do

processo) e, por força do dispositivo em análise, é permitida uma nova decisão.

É bastante comum a afirmação da doutrina de que na hipótese ventilada, de ‘ação

de alimentos’, não há coisa julgada. Pelas razões até aqui desenvolvidas, não há como

concordar com a afirmação. Coisa julgada há. O que existe, contudo, é expressa previsão

legislativa para que o que foi decidido anteriormente à luz de uma específica situação de

fato ou de direito seja reexaminado por força da alteração destes fatos ou do direito. A

coisa julgada opera nestes casos rebus sic stantibus, isto é, ela prevalece enquanto a

situação a ela subjacente permanecer igual.

À mesma conclusão é possível chegar tendo presente que a alteração dos fatos ou

do direito é, por si só, suficiente para alterar a causa de pedir e, neste sentido, viabilizar o

início de um novo processo, porque qualitativamente diverso do anterior, em cuja decisão

recaiu a coisa julgada. O mesmo raciocínio deve ser empregado para os casos em que

houver alteração do pedido ou das partes sobre as quais operou-se a coisa julgada anterior.

Em todas estas situações, porque de nova ‘demanda’ se trata, não há como entender que a

coisa julgada anterior seja óbice a uma nova e diversa manifestação do Estado-juiz12.

De uma forma ou de outra, contudo, o que releva é destacar a existência de uma

prévia coisa julgada que, pelas necessárias comunicações dos planos material e processual,

mesmo ao longo do tempo, pode vir a ser mitigada.

(...)

O art. 471, II, refere-se a ‘outros casos previstos em lei’ para admitir que em

quaisquer situações em que as características daquilo que for julgado forem mutáveis

haja novo julgamento sem que isto acarrete qualquer ofensa à coisa julgada. É o que

se dá, por exemplo, com determinadas relações jurídicas regidas pelo direito

tributário, que se renovam a cada exercício fiscal, na linha do que dispõe a Súmula

239 do STF: ‘Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado

exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores’”13.

12. “Na situação descrita no art. 471, I, a peculiaridade não reside na coisa julgada, mas na natureza da relação jurídica ‘continuativa’, que, em vista de seu caráter dinâmico e sua duração continuada no tempo, dá ensejo à constituição de novas causas de pedir no seu próprio curso.” (Eduardo Talamini, Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 90). 13. Curso sistematizado de direito processual civil, vol. 2, tomo I. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 385/387, sem os destaques.

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A menção à Súmula 239 do Supremo Tribunal Federal naquela sede é pertinentíssima para

o desenvolvimento do presente artigo. É que ela permite a conjugação dos dois temas aqui

apresentados, tendo em vista a circunstância de a espécie merecer ser examinada na perspectiva

do “direito processual tributário”.

Por isto, cabe abrir um item especialmente dedicado a ela.

4. Coisa julgada em matéria tributária: a Súmula 239 do STF.

Como quer destacar o n. 1, supra, as vicissitudes do direito material trazem peculiaridades

dignas de destaque ao direito processual civil. É o que ocorre com relação à Súmula 239 do

Supremo Tribunal Federal, enunciada da seguinte maneira:

“Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício

não faz coisa julgada em relação aos posteriores”.

O enunciado da Súmula, tal qual redigido, sugere uma interpretação restritiva de seu

alcance. Não obstante, é pertinente extrair do devido exame dos julgados que deram origem a ela,

isto é de seus precedentes, tanto quanto de sua aplicação ao longo do tempo pelo Supremo

Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, uma interpretação ampliativa que, em rigor,

afasta a sua incidência literal a diversos casos que não podem e não devem ser alcançadas por ela

porque estranhos à sua hipótese de incidência.

Em um sistema de direito processual civil em que é relevantíssimo, fundamental mesmo,

verificar quando se está diante de um entendimento sumulado dos mais variados Tribunais, em

que a existência de uma súmula tem aptidão de levar o magistrado, mesmo o do primeiro grau de

jurisdição, a adotar modificações procedimentais — julgando monocraticamente recursos,

deixando de recebê-los, julgando improcedente uma demanda antes independentemente da citação

do réu, etc. —, tudo isto conduz a uma sempre (e injustificável) adiada compreensão adequada de

como se deve operar a interpretação e aplicação da jurisprudência como um todo e, em especial,

das Súmulas dos Tribunais, tenham, ou não, força vinculante.

O que releva para cá é que os precedentes da Súmula 239 do Supremo Tribunal Federal,

diferentemente do que sugere seu enunciado, não autorizam sua aplicação indistinta a qualquer

caso de coisa julgada em matéria tributária. É o que demostram, com clareza, o exame de seus

precedentes a começar pelo primeiro deles, os Embargos no Agravo de Petição n. 11.227,

julgados em 1944 com acórdão publicado no Diário da Justiça de 10 de fevereiro de 1945.

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O que se decidiu para “sumular” e que consta do enunciado 239 — e isso só ocorreu

praticamente vinte anos mais tarde daquele leading case, em sessão Plenária do STF realizada em

13 de dezembro de 1963 —, é que naqueles casos em que um específico ato de lançamento

tributário é questionado e é ele, aquele específico ato, anulado ou declarado nulo em juízo, o que

foi decidido com relação àquele específico ato não tem o condão de vincular o que será decidido

com relação a atos futuros, mesmo que similares. Não há coisa julgada para atos diversos, mesmo

que eles possam ser assimiláveis, verdadeiramente idênticos, ao já julgado e repelido pelo Estado-

juiz. É para tais situações (e só para elas) que a Súmula 239 deve incidir. Trata-se, nessa

perspectiva, de uma interpretação restritiva da Súmula, presa à letra de seu enunciado.

Para confirmar o acerto das afirmações feitas pelos parágrafos anteriores, cabe dar voz ao

Relator do citado precedente que, de acordo com a jurisprudência do próprio Supremo Tribunal

Federal, é o seu leading case:

“(...) Mas o que é anual é o lançamento, não o imposto em si mesmo. É o

lançamento (em se tratando de impostos diretos) que se renova anualmente: de modo que

uma questão sobre irregularidades verificadas num dado lançamento é restrita ao

exercício, não alcançando a sentença nela proferida aos exercícios posteriores em que o

lançamento poderá não ter os mesmos vícios.

O lançamento em si mesmo é uma questão de fato, uma operação ou complexo de

operações destinadas a fixar a dívida individual do imposto em função de elementos

variáveis de caso para caso.

Mas pode ocorrer que a impugnação de dado lançamento envolva matéria de

direito, como no caso em que se conteste um dado critério que tenha sido adotado em

contrario à lei.

É então, nesses casos, que o problema se complica e divide as opiniões,

entendendo alguns que, não obstante o problema jurídico ou a solução dada à questão de

direito, deve subsistir a autonomia do lançamento com a sua renovação anual ou periódica,

envolvendo a questão de direito com ele relacionada.

Assim é que o próprio Pugliese, acima citado, é dessa opinião, entendendo que as

questões de direito vinculadas ao lançamento seguem a sorte deste, podendo ser renovados

relativamente aos exercícios seguintes; embora acrescento que, se é essa teoricamente a

solução, na Itália a administração considera, em regra, o caso encerrado, não insistindo no

critério adotado (obr.cit., pag. 237).

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(...)

O que é possível dizer, sem sair aliás dos princípios que governam a coisa

julgada, é que esta se terá de limitar aos termos da controvérsia. Se o objeto da

questão é um dado lançamento que se houve por nulo em certo exercício, claro que

na renovação do lançamento no exercício seguinte não estará obstada pelo julgado. É

a lição dos expositores acima citados.

Do mesmo modo, para exemplificar com outra hipótese que não precludirá nova

controvérsia: a prescrição do imposto referente a um dado exercício, que estará prescrito, e

assim terá sido julgado, sem que, todavia, a administração fiscal fique impedida de lançar

o mesmo contribuinte em períodos subsequentes, que não estarão prescritos nem terão sido

objeto do litígio anterior.

Mas se os tribunais estatuiram sobre o imposto em si mesmo, se o declararam

indevido, se isentaram o contribuinte por interpretação, da lei ou de cláusula

contratual, se houveram o tributo por ilegítimo, porque não assente em lei a sua

criação ou por inconstitucional a lei que o criou em qualquer desses casos o

pronunciamento judicial poderá ser rescindindo pelo meio próprio, mas enquanto

subsistir será um obstáculo à cobrança, que, admitida sob a razão especiona (sic) de

que a soma exigida é diversa, importaria particularmente em suprimir a garantia

jurisdicional do contribuinte que teria tido, ganhando a demanda a que o arrastara o

Fisco, uma verdadeira vitória de Pyrrho.

Ora, no caso dos autos, o mesmo contribuinte novamente lançado para pagar

imposto de renda sobre juros de apólices já obtivera o reconhecimento judicial do seu

direito de não pagar o imposto sobre tal renda.

Não importa que haja julgados posteriores em outras espécies sufragando

entendimento diverso, aliás com o meu voto. Nem impressiona o argumento de que, o caso

julgado fere a regra da igualdade tributária, por isso que, em qualquer matéria, essa

desigualdade de tratamento, fiscal ou não, é uma consequência necessária da intervenção

do judiciário, que só age por provocação da parte e não decide senão em espécie.

Pelo exposto, rejeito os embargos.”14.

14. A ementa daquele acórdão é a seguinte: “Executivo fiscal – Impôsto de renda sobre juros de apólices – Coisa julgada em matéria fiscal. É admissível em executivo fiscal a defesa fundada em ‘coisa julgada’ para ser apreciada pela sentença final. Não alcança os efeitos da coisa julgada em matéria fiscal, o pronunciamento judicial sobre nulidade do lançamento do impôsto ou da sua prescrição referente a um determinado exercício, que não obsta o

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Em outra oportunidade, já sob a égide da Súmula 239, a 1ª Turma do Supremo Tribunal

Federal, retomando o debate, também entendeu ser fundamental distinguir duas diferentes

hipóteses: a de haver decisão transitada em julgado que diz respeito a um específico ato tributário

praticado em dado exercício ou de a decisão favorável ao contribuinte não conter nenhuma

limitação temporal, tal qual se dá em casos de reconhecimento judicial de imunidade tributária ou,

mais amplamente, em casos em que o contribuinte busca, do Estado-juiz, provimento que o afaste

da matriz de incidência tributária.

A ementa então lavrada tem o seguinte teor:

“Imunidade tributária. Instituição de assistência social. Art. 31, V, b, da CF/1946.

Imposto de renda. Coisa Julgada.

1 – O melhor entendimento é o de que a imunidade tributária conferida pelo art.

31, V, b da Constituição de 1946 às instituições de educação e assistência social, era

compreensiva do imposto de renda e estava condicionada tão somente à aplicação de seus

rendimentos, no País, e para os fins institucionais.

2 – A coisa julgada declaratória da imunidade não tem eficácia restrita ao

exercício financeiro, nos termos da Súmula 239, não sendo afetada por fato posterior

impertinente aos pressupostos do instituto.

3 – Recurso extraordinário conhecido e provido.”15.

Do voto então proferido pelo Relator, Ministro Rafael Mayer, colhem-se os seguintes

trechos extremamente elucidativos das peculiaridades que devem ser levadas em conta para

identificar o alcance da coisa julgada favorável ao contribuinte, para o que não é óbice o

enunciado da Súmula 239 do STF:

“Entretanto, o melhor exame dos autos do recurso extraordinário levou-me ao

convencimento, quanto à questão pertinente à coisa julgada, da inaplicabilidade da Súmula

239, ao contrário do que me parecera quando da apreciação do agravo de instrumento.

procedimento fiscal nos exercícios subseqüentes.” (STF, Pleno, AI 11.227/Embargos, rel. Min. Castro Nunes, j.m.v. 5.6.1944, DJ 10.2.1945, p. 816). 15. STF, 1ª Turma, RE 100.437/SP, rel. Min. Rafael Mayer, j.un. 15.6.1984, DJ 29.6.1984, p. 753. Os destaques são da transcrição. Anteriormente, aquela Turma já havia chegado a idêntica conclusão em acórdão assim ementado: “Taxa de licença para localização e funcionamento. Imposto sobre serviços. Lei municipal n 989/66-SP. – Ilegitimidade da taxa de licença para localização e funcionamento em face do disposto nos artigos 77 e 78 do CTN. Precedentes do STF. – Não incidência. Coisa julgada. Súmula 239 (interpretação restritiva). Inaplicação da Súmula 239 à hipótese, dado que o reconhecimento da inexistência do débito tributário, ajuizado pelas mesmas partes, e declarado inconstitucional, faz coisa julgada material. Recurso Extraordinário provido” (STF, 1ª Turma, RE 93.048/SP, rel. Min. Rafael Mayer, j.un. 16.6.1981, DJ 14.8.1981, p. 17.716).

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Entendo que a Súmula, que é orientada no sentido de que não faz coisa julgada a

decisão que julga indevido tributo em exercícios ulteriores, inclusive pelo advento de nova

lei, não destoa desse outro entendimento de que fazem coisa julgada as decisões

relativas à isenção ou imunidade.

Assim mencionei, como relator do RE 97.603, a doutrina de Pontes de

Miranda, para quem a declaração de imunidade ‘faz coisa julgada e pode ser oposta

a objeção em qualquer ação que a Fazenda Pública intente, por impostos, contra a

entidade imune” (Comentários/1946/II/292). Igual é o entendimento subjacente no

julgado do Pleno, no ERE 83.225, de que Relator o eminente Ministro Xavier de

Albuquerque.

Ora, é indubitável que o Egrégio Tribunal Federal de Recursos, ao julgar em

25.11.1957, o AMS 4.954, anteriormente portanto aos exercícios fiscais em cobrança,

confirmado a concessão de segurança, reconheceu a imunidade da Recorrente ao

imposto de renda, com fulcro no questionado dispositivo da Constituição de 1946.

Não é, portanto, legitimo, que decisão posterior, à guisa de interpretação do

mesmo dispositivo legal, e com relação à mesma entidade imune, cuide menos

abrangente a norma imunizante, para dela excluir a contemplação do mesmo tributo.

É certo que o voto do Relator, no referido julgado, ressalvou ao fisco, ‘como é

óbvio, o direito de fiscalizar, a qualquer tempo, a existência dos pressupostos

constitucionais para a imunidade tributária de que se cogita’ (fls. 38). Mas em falando de

pressupostos constitucionais, daí não se há de dessumir a justificativa para a

superação da coisa julgada e a desconsideração de imunidade, por uma razão

extrínseca ao inequívoco e amplo conceito do art. 31, V, b, da Constituição de 1946, e

a pretexto de dar aplicação do Decreto-lei 5.844 e ao Decreto n. 24.239, um anterior,

outro posterior à Carta Magna, que não poderiam afetar uma norma tida, então, por

auto-aplicável.

Entendo, assim, que o acórdão recorrido ofendeu a coisa julgada.

(...)

Pelo exposto, conheço do recurso e dou provimento para julgar procedentes os

embargos do executado, condenada a União ao pagamento de honorários em 10% sobre

valor da execução fiscal.” (os destaques são da transcrição).

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Assim, importa discernir, em cada caso concreto, o que efetivamente transitou em julgado.

Se, por hipótese, reconhece-se, como no caso que se acabou de transcrever, determinada

imunidade tributária em favor do contribuinte, há coisa julgada sobre esta decisão. Se não há

alteração nos fatos e no direito subjacente àquela decisão, subsiste a imunidade. A hipótese, em

tais condições, não é regida pela Súmula 239 do Supremo Tribunal Federal, não é por ela

alcançada. E quem o diz é o histórico dos casos que a aplicam do próprio Supremo Tribunal

Federal.

As necessárias distinções entre as duas hipóteses feitas nos acórdão acima destacadas são

levadas em conta e valoradas também em sede doutrinária.

“O pensamento do STF, criador e inspirador da Súmula, a ela subjacente, é o

seguinte: ‘Segundo se lê dos precedentes de que se originou o verbete transcrito [refere-se

à Súmula-STF 239], a restrição da eficácia da coisa julgada a determinado exercício

decorre do caráter anual do lançamento dos impostos diretos, pois nestes a dívida

individual do contribuinte é fixada periódica ou anualmente. Assim, malgrado a nulidade

declarada por sentença relativamente ao exercício anterior, nada obsta a renovação do

lançamento quanto aos exercícios os seguintes’ (tirado de trecho do voto Min. Carlos

Madeira, na Ação Rescisória n. 1.239-9-MG, p. 2, fl. 31).

Talvez o único reparo que se possa fazer em relação ao trecho do voto citado de

que não se trata de ‘restrição da coisa julgada’, senão que, por ter sido o pedido

circunscrito a uma cobrança, situada num exercício, disto se segue que o juiz não julga —

e, não pode julgar — além desse pedido; nada mais. O Juiz julga sobre esse pedido e sobre

essa decisão pesará a autoridade de coisa julgada.

Por isso mesmo, o enunciado da Súmula 239 nunca poderia ser outro, pois se

os pedidos numa execução, ou seja, nas execuções fiscais, ao qual se contrapõem

embargos do devedor dizem respeito a essa cobrança, em determinado exercício, os

embargos são decididos com esse âmbito, porque essa é a execução e nos embargos há

oposição a esse pedido; a mesma coisa se passa com uma ação anulatória.

Ainda aduza-se o seguinte pensamento do STF, na esteira do que imediatamente se

acabou de afirmar: ‘O que é possível dizer, sem sair, aliás, dos princípios que governam a

coisa julgada, é que esta terá de limitar aos termos da controvérsia. Se o objeto da questão

é um dado lançamento que se houve por nulo em certo exercício, claro que a renovação do

lançamento no exercício seguinte não estará obstada pelo julgado. É a lição dos

Page 13: COISA JULGADA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA: REFLEXÕES SOBRE ...

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expositores acima citados’ (ainda do trecho do voto do Min. Carlos Madeira, em que

transcreve voto do Min. Castro Nunes, na Ação Rescisória n. 1.239-9-MG, p. 2, f. 31).

Deve-se sublinhar, em relação à opinião do Min. Castro Nunes, quando diz

que a solução dada ocorre ‘sem sair, aliás, dos princípios que governam a coisa

julgada, é que esta se terá de limitar aos termos da controvérsia’, que estes dizeres

são perfeitos, pois, efetivamente, isso é o que ocorre, havendo de anotar-se que a

chamada posição restritiva, apenas o é, em relação à outra, posição, que, por cuidar

de decisão sobre o imposto, em si mesmo considerado, é havida como não restritiva.

Diferentemente — para a hipótese mais ampla — é justamente o âmbito do pedido

que é maior, mais profundo e exauriente. Se o pedido feito não disse respeito a um

tributo situado num exercício, mas, com esse pedido se pretende, por exemplo, a

inconstitucionalidade do tributo, ou que aquele que pede está imune ou que é

beneficiário de isenção, é certo ser incogitável submeter os efeitos dessa decisão e

respectiva coisa julgada ao enunciado da Súmula-STF de n. 239, pois a tanto não

autorizariam os mesmos textos legais. O pedido aqui situa-se fora de qualquer

exercício e não diz respeito a cobrança alguma. O pedido pretende comprometer o

tributo, em si mesmo (inconstitucionalidade), ou que esse não pode atingir o

administrado (porque a Constituição lhe garante imunidade), ou, então, que atingiria

o que pede, mas há norma que o dispensa de pagamento (isenção). É certo que este

pedido é — tem que ser, necessariamente — mais amplo do que o âmbito da defesa

possível (=embargos do devedor) num executivo fiscal, ou é necessariamente mais

largo que se faz numa ação anulatória de débito fiscal (em relação a um determinado

e individualizado lançamento).”16.

“Em relação ao tema da coisa julgada envolvendo relações tributárias são

extremamente válidos e atuais os ensinamentos de Rubens Gomes de Sousa, que tentava

encontrar um meio termo entre aqueles que postulavam uma limitação claustrofóbica da

coisa julgada em matéria de tributos e aqueles que não queriam ver qualquer tipo de

balizamento nessa seara. A propósito disso, dizia o eminente professor que ‘a solução

exata estaria em distinguir, em cada caso julgado, entre as decisões que tenham

pronunciado sobre os elementos permanentes e imutáveis da relação jurídica, como a

constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do tributo, a sua incidência ou não-

16. Arruda Alvim, “Anotações sobre a chamada coisa julgada tributária”. Revista de Processo vol. 92. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 10/11. Os destaques são da transcrição.

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incidência na hipótese materialmente considerada, a existência ou inexistência de

isenção legal ou contratual e o seu alcance, a vigência da lei tributária substantiva ou

sua revogação, etc. — e as que tenham pronunciado sobre elementos temporários ou

mutáveis da relação jurídica, como a avaliação de bens, as condições personalíssimas do

contribuinte em seus reflexos tributários e outras da mesma natureza; à coisa julgada das

decisões do primeiro tipo há que atribuir uma eficácia permanente; à das segundas,

uma eficácia circunscrita ao caso específico em que foram proferidas’. Com base nisso,

Rubens Gomes de Sousa concluiu que ‘quando a sentença, cuja coisa julgada se

invoque tenha decidido quanto a elementos permanentes, constantes e imutáveis da

própria relação jurídica debatida, tais elementos não serão meras questões

prejudiciais, ou simples antecedentes lógicos da decisão, mas constituirão a própria

tese jurídica decidida, ou seja, representarão o próprio objeto da decisão’. A solução

preconizada pelo ilustra juristributarista parece ser efetivamente a mais correta e resume

bem as conclusões a que se quer chegar nesse texto.

(...)

“... a correta intelecção dessa Súmula [239 do STF] reforça os argumentos

acima utilizados e comprovam que os limites da coisa julgada deverão ser

compreendidos sempre em função do objeto do processo individualizado pela causa

de pedir e pelo pedido. Essa interpretação do enunciado decorre da pura e simples

análise dos seus precedentes, o que é essencial quando se pretende interpretar

corretamente uma súmula.

(...)

Como se depreende da análise da farta doutrina e jurisprudência acerca da

Súmula 239 do STF, continua em voga a distinção entre as discussões que versem

‘elementos permanentes e imutáveis da relação jurídica’ e as que tratam de

‘elementos temporários e mutáveis dessa mesma relação. Esse é, de fato, o grande

critério de delimitação temporal da coisa julgada tributária, sobretudo porque

encontra respaldo no Código de Processo Civil, na medida em que delimita a res

judicata a partir do objeto da ação.”17.

Assim, o que é correto é o entendimento de que, a depender do objeto da demanda — um

objeto amplo, que se volta a questionar toda a matriz tributária sem quaisquer limitações como se 17 . Gustavo Sampaio Valverde, Coisa julgada em matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 214, 222 e 228/229. Os destaques são da transcrição.

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dá, por exemplo, em hipóteses onde se pleiteia o reconhecimento judicial de imunidade tributária

— o trânsito em julgado da decisão favorável ao contribuinte obstará novos questionamentos do

tributo enquanto não houver alteração nas normas jurídicas definidoras da matriz tributária ou nos

fatos justificadores da incidência tributária. Tratando-se de relação tributária permanente, a coisa

julgada obsta os questionamentos ao longo na repetição dos eventos enquanto não houver

alteração do fato ou do direito levados em conta na decisão trânsita em julgado. São situações,

destarte, estranhas à Súmula 239 do STF e que, por isso, afastam a sua incidência.

Nesse preciso sentido, cabe dar destaque à lição de Eduardo Alvim:

“Assim, em linha de principio, é possível fixar, desde logo, a conclusão de que a

coisa julgada, em mandado de segurança ou não, não pode abranger relações futuras, ainda

não instauradas.

Vejamos como essa conclusão se projeta sobre a questão referente às relações

tributarias continuativas. O problema está em identificarmos o que consiste uma relação

tributária continuativa, para verificar quais as consequências que daí podem ser extraídas.

Pode-se entender por continuativa a relação tributária.

Essa, com efeito, a pedra de toque do problema. Deveras, em uma relação tributária

continuativa, como a que sucede entre o Fisco e o contribuinte de ICMS (existe até um

cadastro próprio dos contribuintes desse tributo, a confirmar o quanto dizemos), é possível

que o contribuinte, v.g., impetre mandado de segurança contra a autoridade fiscal estadual

objetivando que esta se abstenha de exigir-lhe agora e para adiante o tributo até que seja

editada lei que o permita, porque a exigência fiscal, tal como está sendo feita, não tem o

indispensável supedâneo legal (CF/88, art. 150, inc. I).

Transitada em julgado a sentença concessiva da ordem pleiteada, projetará a

coisa julgada, inegavelmente, efeitos para futuro. Toda vez que configura-se uma

situação de fato (fato imponível, na terminologia de Geraldo Ataliba) que devesse ensejar,

segundo o entendedor do Fisco, a incidência do ICMS, esta estará obstada pela sentença

concessiva da ordem até que seja sanada a ilegalidade.

É que, quando se está em face de uma relação tributária continuativa, não há falar-

se em relação futura, como bem pondera Hugo de Brito Machado: ‘O que não nos parece

correto, data máxima vênia, é considerar-se futura uma relação continuativa já instaurada.’

Da mesma opinião, Ruy Barbosa Nogueira, em parecer extremamente bem fundamentado.

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É que, conforme percucientemente distinguiu Hugo de Brito Machado, se, de um

lado, é correto afirma-se que a coisa julgada não se pode projetar indefinidamente

para situação futuras, deve-se ter presente, de outro, que uma relação tributária

continuativa já instaurada não pode ser confundida com uma situação futura. O

cadastro de contribuinte de ICMS, por exemplo, é um elemento a indicar claramente que,

na verdade, a relação tributária do contribuinte de ICMS para com o Fisco estadual é a

mesma, renovada a cada período de apuração.”18.

Para mostrar o grau de convicção do autor deste artigo acerca das afirmações até aqui

feitas, cabe transcrever breve trecho de trabalho doutrinário seu:

“O que transita em julgado é, sem dúvida alguma, aquilo que foi decidido e não as

razões pelas quais se decidiu. Mas, e é isto que deve ser enfatizado nesta sede, a

compreensão exata do que foi decidido depende do exame do que se pediu. E o que se

pediu, muitas vezes, depende das razões pelas quais se pediu. É esta a distinção que deve

ser feita para a interpretação e a aplicação correta da Súmula 239 do STF: o enunciado

não autoriza que ‘qualquer decisão jurisdicional relativa a tributos’ deixe de fazer

coisa julgada para exercícios fiscais futuros ou para casos futuros. O que o enunciado

quer significar é que naqueles casos, em que um específico ato tributário é decidido em

juízo, aquilo que foi decidido com relação àquele específico ato tributário (um específico

lançamento; uma certidão de dívida ativa, uma específica operação tributária, por

exemplo) não vincula o que se pode decidir a respeito de atos similares ou, até mesmo,

idênticos, mas, de qualquer sorte, outros atos, atos diversos, não albergados pela ação já

julgada.

Diferentemente, quando se questiona em juízo a própria ‘matriz de incidência

tributária’, não há como negar que aquilo que for decidido, seja para reconhecer sua

juridicidade, seja para negá-la, prevalecerá nos exercícios seguintes, enquanto

persistirem as mesmas razões de fato e de direito. É o que se dá com bastante

frequência nos casos que a doutrina do direito tributário chama, comumente, de

‘relações continuativas ou sucessivas ou repetidas’.

A coisa julgada adere, necessariamente, ao que foi pedido em juízo. Se se pede o

afastamento de determinada exação tributária para determinado período, não há como

recusar que eventual acolhimento de um tal pedido é também restritivo, limitado àquele

18. Eduardo Arruda Alvim, Mandado de segurança. 2ª edição. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p. 304/306. Os destaques são da transcrição.

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mesmo período. Caso contrário, na hipótese de não haver qualquer restrição no

pedido, limitando-se a pedir em juízo o afastamento de dada exação tributária em

função da inconstitucionalidade ou ilegalidade de sua regra matriz de incidência, é

correto o entendimento de que a concessão da segurança, tanto quanto aquilo que

transita em julgado, não fica sujeita a qualquer restrição. É este o melhor

entendimento para a Súmula 239 do Supremo Tribunal Federal.”19.

Assim, na hipótese de ser pleiteada em juízo — e concedida — imunidade tributária, a

decisão, uma vez transita em julgado, prevalece até que haja ulterior modificação fática ou

jurídica, afastando, por isso mesmo, o que a literalidade da referida Súmula 239 do STF poderia

sugerir20. É correto compreender que, em casos como tais, o que se questiona em juízo é a própria

matriz de incidência tributária. Fosse a hipótese de haver questionamento em juízo de um

específico ato tributário, de um específico lançamento ou de uma específica cobrança do Fisco, e

o entendimento seria diverso, harmonicamente, aliás, com a restrição do pedido formulado ao

Estado-juiz e, coerentemente, à própria causa de pedir que lhe quer dar fundamento.

Assim, supondo o trânsito em julgado de decisão judicial que reconhece a imunidade

tributária a um dado imóvel, a inalteração fática ou jurídica subjacente àquele fato é o bastante

para afastar a incidência da Súmula 239 do STF. Não é porque a cobrança do IPTU sobre aquele

imóvel renova-se ano a ano, isto é, o imposto é lançado anualmente que a decisão transitada em

julgado pode ser desconsiderada21. Isto porque a imunidade tributária tem contornos

exclusivamente constitucionais e, nessa medida, a ruptura do que transitou em julgado pressuporia

alteração constitucional. A imunidade, insista-se, tem berço constitucional e seu significado é,

justamente, o de inibir o exercício de qualquer competência tributária em desfavor do

contribuinte:

“A imunidade tributária, então, pode ser definida como a exoneração, fixada

constitucionalmente, traduzida em norma expressa impeditiva da atribuição de

competência tributária ou extraível, necessariamente, de um ou mais princípios

19. Mandado de segurança. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 186/188. Os destaques são da transcrição. 20. “A imunidade tributária é um fenômeno de natureza constitucional. As normas constitucionais que, direta ou indiretamente, tratam do assunto fixam, por assim dizer, a incompetência das entidades tributantes para onerar, com exações, certas pessoas, seja em função de sua natureza jurídica, seja porque coligadas a determinados fatos, bens ou situações.” (Roque Antonio Carrazza, Curso de direito constitucional tributário. 18ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 623, sem os destaques). 21. É o que a doutrina do direito tributário denomina de “fato gerador continuado”, por se reportarem a situações duradouras. Assim, v.g., a lição de Regina Helena Costa, Curso de direito tributário. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 205, nota 65, e 402 quando trata do aspecto temporal da hipótese de incidência do IPTU.

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constitucionais, que confere direito público subjetivo a certas pessoas, nos termos por

ela delimitados, de não se sujeitarem à tributação.”22.

É fundamental atentar devidamente ao que se acabou de destacar: mercê da compreensão

do instituto da imunidade tributária — e de sua matriz constitucional — é que a conclusão aqui

propugnada mereceria ser prestigiada ainda que se pretendesse entender que a relação tributária

relativa ao IPTU fosse renovada a cada novo ano. Ainda assim, o status de imunidade tributária

estaria mantido: é vedado ao Município instituir aquele tributo sobre imóvel que teve, em decisão

transita em julgado, reconhecida sua imunidade. Seja ele continuado, seja ele renovado a cada

ano. O IPTU incide sobre a propriedade imobiliária titularizada no dia 1º de janeiro de cada ano.

Enquanto for o proprietário do imóvel o beneficiário da decisão transita em julgado, a imunidade

constitucional a ele reconhecida está assegurada. É nisso que reside o que acima foi denominado

de “relação permanente” ou “relação continuativa”23.

A imunidade, insista-se, graças a seus contornos constitucionais, impede a atuação

municipal em uma e em outra hipótese24.

Na mais recente jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo há dois

acórdãos que bem aplicaram as considerações aqui desenvolvidas. Constatando que decisão

anterior, transitada em julgado, reconhecia a determinado Sindicato imunidade tributária, julgou

procedente mandado de segurança impetrado contra lançamento de IPTU.

São as seguintes as suas ementas:

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO Contradição Existência de ação declaratória

com trânsito em julgado em 1992 que estendeu para os exercícios futuros a imunidade

tributária em favor do embargante, a afastar o entendimento contido na Súmula 239 do

STF mencionado no acórdão embargado Contradição que leva a efeito modificativo do

22. Regina Helena Costa, Imunidades tributárias: teoria e análise da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 53/54, sem os destaques. 23. Não interfere na conclusão constante do texto, a importante discussão doutrinária sobre a abrangência do aspecto temporal da hipótese de incidência tributária. Mesmo na lição de Paulo de Barros Carvalho (assim, v.g. em seu Teoria

da norma tributária. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 133/142) seguida por Geraldo Ataliba (Hipótese de

incidência tributária. 5ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 90/91) a conclusão do texto conserva-se porque o aspecto material da hipótese de incidência tributária na decisão que favorece o contribuinte no exemplo fornecido mantém-se incólume. 24. “A relação entre a competência tributária e a norma imunizante é tanto mais destacada quando se observa que esta impede a existência daquela na situação que expressa ou implicitamente aponta. (...) Sendo a imunidade o reverso da atribuição de competência tributária, verificamos que ambos os institutos são paralelos, revestindo-se aquelas das mesmas qualidades que esta apresenta.” (Regina Helena Costa, Imunidades tributárias: teoria e análise da

jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 58).

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julgado com a concessão da segurança, sob tal fundamento Embargos conhecidos e

providos para esse fim.”25.

“APELAÇÃO Mandado de segurança IPTU Imunidade - Sindicato Imóvel onde

funciona a colônia de férias do apelante Reconhecimento, para o exercício de 1989, em

anterior apelação julgada por este Tribunal de Justiça Imóvel que mantém a mesma

finalidade Inaplicabilidade da Súmula 239 do S.T.F. Deram provimento ao recurso para

conceder a segurança na forma pleiteada.”26.

5. Ainda a Súmula 239 do STF

É importante, para corroborar o acerto das conclusões do item anterior, voltar, uma vez

mais, à Súmula 239 do STF e à necessária distinção de hipóteses decisivas para justificar a sua

aplicação ou não.

Alguns excertos doutrinários demonstram a pertinência desta afirmação:

“Deve-se interpretar com cuidado a Súm. 239 do Supremo Tribunal Federal:

‘Decisão que declara indevida a cobrança de imposto em determinado exercício não faz

coisa julgada em relação aos posteriores’. Esse enunciado não proíbe a formulação de

uma demanda e, conseqüentemente, a emissão de um julgado que vá além de um

exercício fiscal ou de uma operação, ou grupo de operações, já ocorridos. Nele,

apenas se reafirma a limitação da autoridade da coisa julgada ao decisum (art. 469):

se o dispositivo restringiu-se a um dado exercício, é irrelevante que os fundamentos

da sentença sejam aproveitáveis para os exercícios subseqüentes, pois os motivos, em

si mesmos, não fazem coisa julgada.”.27

“Como se depreende da análise da farta doutrina e jurisprudência acerca da Súmula

239 do STF, continua em voga a distinção entre as discussões sobre ‘elementos

permanentes e imutáveis da relação jurídica’ e as que tratam de ‘elementos

temporários e mutáveis’ dessa mesma relação. Esse é, de fato, o grande critério de

delimitação temporal da coisa julgada tributária, sobretudo porque encontra

25. TJSP, 15ª Câmara de Direito Público, Embargos de Declaração n. 0009665-50.2012.8.26.0477/50000, rel. Des. Rezende Silveira, j.un. 28.11.2013, DJe 10.12.2013. 26. TJSP, 18ª Câmara de Direito Público, Apelação Cível n. 0028447-08.2012.8.26.0477, rel. Des. Osvaldo Capraro, j.un. 13.2.2014, DJe 26.2.2014. 27. Eduardo Talamini, Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 92, sem os destaques.

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respaldo no Código de Processo Civil, na medida em que delimita a res judicata a

partir do objeto da ação.”.28

“Se, portanto, um determinado pedido concedido pelo Tribunal foi para que a

autoridade impetrada se abstivesse de exigir da impetrante o pagamento de

determinado tributo, por fundamento/motivo de sua inconstitucionalidade, o

acolhimento referido fará com que o contribuinte não mais fique obrigado ao

pagamento desse tributo, enquanto persistir a mesma situação de fato e de direito;

isto é, porque acolhida a lide levada ao Estado-juiz, sobre sua decisão recai a autoridade de

coisa julgada, esgotados ou não interpostos os recursos cabíveis.

No caso, numa tal decisão de mérito afirma-se inexistir relação tributária e, mais, é

por isso que essa relação não existe, para o que pediu, subsistentes os mesmos fatos e a

mesma normatividade de direito.

Se existisse essa relação seria ela uma relação jurídica tributária continuativa, mas

o que o Tribunal decidiu é que essa relação não existia. Se não existia — mantida a

situação de fato e de direito — não é possível pretender que o contribuinte, que obteve

uma tal decisão, possa ainda e sucessivamente dever o tributo mercê de fatos geradores

sucessivos, justamente porque a relação jurídico tributária continuativa foi havida como

inexistente e insuscetível de existir.”.29

“Podemos dizer, assim, que a incidência da Súmula 239 do Supremo Tribunal

Federal relaciona-se à verificação da conexão, de um lado, entre o pedido e os

fundamentos da demanda e, de outro, o exercício de cobrança do tributo. Quando essa

relação for positiva, ou seja, o pedido formulado estiver estribado em situação fática

peculiar a determinado exercício, a Súmula deve ser aplicada. Contudo, quando não

houver essa relação de causalidade, a Súmula deve ser afastada.”30.

Em todas estas lições verifica-se a preocupação dos autores quanto à existência da coisa

julgada na exata medida em que os fatos e o direito subjacentes ao processo permaneçam

idênticos. Trata-se, pois, do mesmo entendimento aqui sustentado: quando o pedido é amplo para

afastar a incidência tributária como um todo, a Súmula 239 do STF não pode ser aplicada.

28. Gustavo Sampaio Valverde, Coisa julgada em matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 228/229, sem os destaques. 29. Arruda Alvim, “Anotações sobre a coisa julgada tributária”. Revista de Processo vol. 92. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 13/14, sem os destaques. 30. Luiz Eduardo Ribeiro Mourão, Coisa julgada. Belo Horizonte; Fórum, 2008, p. 411, sem os destaques.

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Idêntica conclusão decorre da jurisprudência mais recente do Superior Tribunal de Justiça

sobre o alcance da Súmula 239 do Supremo Tribunal Federal31. Da jurisprudência daquela Corte,

vale trazer à colação os seguintes julgados que reservam a incidência daquela Súmula aos casos

em que houve pedido restrito a determinado exercício fiscal:

“Recurso especial. Tributário. Execução fiscal. Sentença transitada em julgado

proferida em mandado de segurança. Coisa julgada tributária. Não-ocorrência. Pedido

formulado na inicial limitado a determinado exercício. Parte dispositiva da decisão.

Limitação de exercício financeiro. Aplicação da Súmula 239/STF. Recurso provido.

1. A coisa julgada tributária deve ser determinada em função das partes, da

causa de pedir e do pedido formulado na inicial. Este último, por sua vez, pode estar

delimitado a uma cobrança, num dado exercício financeiro, ou estar relacionado ao

tributo, em si mesmo.

2. No primeiro caso, em que o pedido diz respeito a um débito situado em

exercício certo, deve ser aplicado o teor da Súmula 239/STF: ‘Decisão que declara

indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em

relação aos posteriores.’

3. No segundo caso, não se referindo o pedido a exercício financeiro específico,

mas ao reconhecimento da inconstitucionalidade ou ilegalidade da exação, ou de sua

imunidade ou isenção, por exemplo, deve ser afastada a restrição inserta na

mencionada súmula. Isso porque, nessa hipótese, há uma abrangência no pedido e,

portanto, sendo esse julgado procedente, a coisa julgada terá efeitos mais amplos, ou

seja, abarcará as situações jurídicas posteriores, não se restringindo a exercício

financeiro específico.

4. Assim, deve-se ter em conta que a coisa julgada somente protege o que foi

objeto do pedido e, por conseguinte, da decisão, de maneira que, se o pedido foi

abrangente, a decisão também o será, não se aplicando a Súmula 239/STF, na medida

em que a coisa julgada terá maior amplitude; se o pedido restringir-se a determinado

exercício, então a decisão estará limitada a esse, incidindo o enunciado da súmula em

apreço.

31. Para a análise da jurisprudência do STF pouco antes da Constituição de 1988 — em idêntico sentido ao quanto propugnado no texto —, v. Arruda Alvim, “Anotações sobre a chamada coisa julgada tributária”. Revista de Processo vol. 92. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 10/13.

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5. Essa mesma interpretação deve ser dada, em se tratando de ação mandamental.

Assim, se o ato ilegal ou abusivo é declarado indevido, de forma genérica, em relação às

situações jurídicas a ele ligadas como um todo, a coisa julgada projetar-se-á a exercícios

financeiros futuros, até que haja alguma alteração no estado de fato e/ou de direito da

decisão. No entanto, se o ato ilegal ou abusivo lastreia-se em exercício financeiro

específico, a decisão fará coisa julgada somente em relação a este.

6. No caso dos autos, o pedido constante do writ, assim como a parte dispositiva da

decisão transitada em julgado, têm natureza restrita, na medida em que estão vinculados a

exercício financeiro específico. Desse modo, não se operou a coisa julgada em relação aos

exercícios financeiros seguintes, sendo plenamente aplicável a Súmula 239/STF.

7. Recurso especial provido.”.32

“Tributário. Processual civil. Eficácia temporal da coisa julgada. Sentença que

declara a inexigibilidade da contribuição social sobre o lucro, com base no

reconhecimento, incidenter tantum, da inconstitucionalidade da Lei 7.689/88. Edição da

Lei 7.856/89. Alteração no estado de direito. Cessação da força vinculativa da coisa

julgada.

1. A sentença, ao examinar os fenômenos de incidência e pronunciar juízos de

certeza sobre as conseqüências jurídicas daí decorrentes, certificando, oficialmente, a

existência, ou a inexistência, ou o modo de ser da relação jurídica, o faz levando em

consideração as circunstâncias de fato e de direito (norma abstrata e suporte fático) que

então foram apresentadas pelas partes. Por qualificar norma concreta, fazendo juízo sobre

fatos já ocorridos, a sentença, em regra, opera sobre o passado, e não sobre o futuro.

2. Portanto, também quanto às relações jurídicas sucessivas, a regra é a de que as

sentenças só têm força vinculante sobre as relações já efetivamente concretizadas, não

atingindo as que poderão decorrer de fatos futuros, ainda que semelhantes. Elucidativa

dessa linha de pensar é a Súmula 239/STF.

3. Todavia, há certas relações jurídicas sucessivas que nascem de um suporte

fático complexo, formado por um fato gerador instantâneo, inserido numa relação

jurídica permanente. Ora, nesses casos, pode ocorrer que a controvérsia decidida

pela sentença tenha por origem não o fato gerador instantâneo, mas a situação

32. STJ, 1ª Turma, REsp 576.926/PE, rel. Min. Denise Arruda, j.un. 16.3.2006, DJ 30.6.2006, p. 166. Os destaques são da transcrição.

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jurídica de caráter permanente na qual ele se encontra inserido, e que também

compõe o suporte desencadeador do fenômeno de incidência. Tal situação, por seu

caráter duradouro, está apta a perdurar no tempo, podendo persistir quando, no

futuro, houver a repetição de outros fatos geradores instantâneos, semelhantes ao

examinado na sentença. Nestes casos, admite-se a eficácia vinculante da sentença

também em relação aos eventos recorrentes. Isso porque o juízo de certeza

desenvolvido pela sentença sobre determinada relação jurídica concreta decorreu, na

verdade, de juízo de certeza sobre a situação jurídica mais ampla, de caráter

duradouro, componente, ainda que mediata, do fenômeno de incidência. Essas

sentenças conservarão sua eficácia vinculante enquanto se mantiverem inalterados o

direito e o suporte fático sobre os quais estabeleceu o juízo de certeza.

4. No caso presente: houve sentença que, bem ou mal, fez juízo a respeito, não de

uma relação tributária isolada, nascida de um específico fato gerador, mas de uma situação

jurídica mais ampla, de trato sucessivo, desobrigando as impetrantes de se sujeitar ao

recolhimento da contribuição prevista na Lei 7.689/88, considerada inconstitucional.

Todavia, o quadro normativo foi alterado pelas Leis 7.856/89, 8.034/90 e 8.212/91, cujas

disposições não foram, nem poderiam ser, apreciadas pelo provimento anterior transitado

em julgado, caracterizando alteração no quadro normativo capaz de fazer cessar sua

eficácia vinculante.

5. Recurso especial provido.”.33

“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – EMBARGOS À EXECUÇÃO

FISCAL – CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – ALCANCE DA SÚMULA 239/STF – COISA

JULGADA: VIOLAÇÃO – ART. 471, I, DO CPC NÃO CONTRARIADO.

1. A Súmula 239/STF, segundo a qual ‘decisão que declara indevida a

cobrança do imposto em determinado exercício, não faz coisa julgada em relação aos

posteriores’, aplica-se tão-somente no plano do direito tributário formal porque são

independentes os lançamentos em cada exercício financeiro. Não se aplica,

entretanto, se a decisão tratou da relação de direito material, declarando a

inexistência de relação jurídico-tributária.

33. STJ, 1ª Turma, AgRg no REsp 703.526/MG, rel. p./acórdão Min. Teori Albino Zavascki, j.m.v. 2.8.2005, DJ 19.9.2005, p. 209. Os destaques são da transcrição. No mesmo sentido: STJ, 1ª Turma, REsp 638.377/MG, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j.un. 3.3.2005, DJ 21.3.2005, p. 260 e STJ, 1ª Turma, REsp 742.413/MG, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j.un. 18.11.2008, DJe 24.11.2008.

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2. A coisa julgada afastando a cobrança do tributo produz efeitos até que

sobrevenha legislação a estabelecer nova relação jurídico-tributária.

3. Hipótese dos autos em que a decisão transitada em julgado afastou a cobrança da

contribuição social das Leis 7.689/88 e 7.787/89 por inconstitucionalidade (ofensa aos

arts. 146, III, 154, I, 165, § 5º, III, 195, §§ 4º e 6º, todos da CF/88).

4. As Leis 7.856/89 e 8.034/90, a LC 70/91 e as Leis 8.383/91 e 8.541/92 apenas

modificaram a alíquota e a base de cálculo da contribuição instituída pela Lei 7.689/88, ou

dispuseram sobre a forma de pagamento, alterações que não criaram nova relação jurídico-

tributária. Por isso, está impedido o Fisco cobrar a exação relativamente aos exercícios de

1991 e 1992 em respeito à coisa julgada material.

5. Violação ao art. 471, I do CPC que se afasta.

6. Recurso especial improvido.”34

Os julgados acima colacionados dão a exata compreensão da tese sustentada neste artigo: a

coisa julgada adere, necessariamente, ao que foi pedido ao Estado-juiz. Se se pede o afastamento

de determinada exação tributária para um determinado período, não há como recusar que eventual

acolhimento seu seja, de igual, modo restritivo. Caso contrário, na hipótese de não haver qualquer

restrição no pedido, limitando-se a pedir em juízo o afastamento de dada exação tributária em

função da inconstitucionalidade ou ilegalidade de sua regra matriz de incidência, é correto o

entendimento de que o acolhimento do pedido, tanto quanto aquilo que transita em julgado, não

fica sujeita a qualquer restrição. A distinção entre essas duas hipóteses, repita-se, é absolutamente

indispensável para compreensão do alcance que pode querer ter a multicitada Súmula 239 do STF

e, consequentemente, para discernir os casos em que se justifica sua incidência e aqueles em que

isso não se dá.

6. Coisa julgada em “ações declaratórias”

É indiferente para os fins destacados acima que o pedido de afastamento da incidência

tributária seja formulado em sede de mandado de segurança ou em “ação declaratória”35. É que os

34. STJ, 2ª Turma, REsp 731.250/PE, rel. Min. Eliana Calmon, j.un. 17.4.2007, DJ 30.4.2007, p. 301. Os destaques são da transcrição. 35. As aspas justificam-se porque, em rigor, a “ação” não é declaratória ou constitutiva ou condenatória. A tutela jurisdicional requerida pelo autor ao Estado-juiz que o é. Para esta demonstração, v., do autor, Curso sistematizado de

direito processual civil, vol. 1. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 329/336. Também emprega a palavra “ação” entre aspas Paulo Cesar Conrado, Processo tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 35/39 e passim.

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limites objetivos e os temporais da coisa julgada obtida em “ação declaratória” não apresentam

nenhuma peculiaridade que se desvie do quanto exposto até aqui.

Na verdade, tanto em “ação declaratória” como em mandado de segurança, cujo

emprego para o reconhecimento da inconstitucionalidade ou ilegalidade da incidência tributária é

largamente aceito pela doutrina e pela jurisprudência, o que interessa é o elemento declaratório,

isto é, a certificação ou o reconhecimento do direito do contribuinte36.

Bastante para demonstrar o acerto da afirmação julgado assim ementado:

“Processual civil e tributário. Coisa julgada em relação à cobrança de imposto.

ICMS. Alimentação e bebidas. Lei Paulista 8.198/92.

1. A sentença proferida em Ação Declaratória, desonerando o contribuinte do

adimplemento de obrigação tributária prevista em lei, somente surte efeitos enquanto

perdurar o contexto jurídico em que ela foi proferida. Sobrevindo alteração legislativa, e

atendida a reserva legal tributária, sobressai óbvio que o preceito declaratório anterior

submete-se à regra de direito intertemporal de que lei posterior revoga lei anterior, posto

não ostentar feição normativa, incompatível com sua índole. Aplicação da Súmula

239/STF: ‘Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício

não faz coisa julgada em relação aos posteriores’.

2. Deveras, a declaração incidenter tantum de inconstitucionalidade da Lei que

institui a cobrança de tributo, proferida em sede de cognição, não integra o dispositivo da

sentença, não sendo alcançada pelo efeito preclusivo da coisa julgada.

3. Recurso desprovido.”.37

É este também o entendimento da doutrina:

“A nosso ver, em se tratando de ação declaratória, não há dúvida de que a

sentença que se reporte a relação jurídica continuativa produz efeitos para o futuro.

A declaração da existência, da inexistência, ou do modo de ser de uma relação

jurídica, neste caso, constitui o próprio dispositivo da sentença. E em se tratando de

relação jurídica continuativa, esse dispositivo há de permanecer inalterado enquanto

perdurar o estado de fato, e a norma que com ele compõe a relação.

(...) 36. Neste sentido, cabe colacionar o entendimento de Paulo Cesar Conrado (Processo tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 211), que chega a se referir ao mandado de segurança como “via preventiva especial” ao lado da “ação declaratória” como “via preventiva geral”. 37. STJ, 1ª Turma, REsp 605.953/DP, rel. Min. Luiz Fux, j.m.v. 26.4.2005, DJ 1.8.2005, p. 324.

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Se no pedido formulado pelo impetrante não se encarta esta declaração, incluí-la

no dispositivo da sentença respectiva é proferir sentença além do pedido. Na(sic) impede,

porém, que o impetrante peça ao juiz, além da ordem destinada a prevenir, ou a

restabelecer a integridade de seu direito, também a declaração de inexistência, ou do

modo de ser da relação tributária. Ter-se-á, então, verdadeira ação declaratória

embutida no âmbito do mandado de segurança, o que evidentemente não será possível

se os fatos em que se fundar o pedido de declaração estiverem a depender de provas a

serem ainda produzidas no curso do processo, porque neste caso evidentemente não se

estará diante de direito líquido e certo.”.38

Após colacionar precedente do Supremo Tribunal Federal em que o entendimento aqui

defendido foi acolhido, escreve, o tributarista, para arrematar a sua conclusão:

“A nosso ver, tanto é possível um pedido incidental, como um pedido

formulado na própria inicial da impetração, no sentido de que o juiz, além de emitir a

ordem requerida, também declare a existência, a inexistência ou o modo de ser da

relação jurídica tributária. Não nos parece correto, porém, fazer o juiz tal declaração, se

esta não foi pedida”.39

Do mesmo modo e, quiçá de maneira ainda mais incisiva, é a manifestação de Gustavo

Sampaio Valverde. Para o Especialista e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo:

“Não há que se cogitar de qualquer limitação a exercícios financeiros, atos

específicos ou duração da ação, pois, como visto e revisto, a extensão da coisa julgada se

determina com base na causa de pedir e no pedido que constituem o objeto da ação.

Daí porque o mandado de segurança preventivo realmente impede que o lançamento seja

efetuado enquanto não alterada a situação impeditiva acolhida pela decisão. Isso resulta do

conteúdo declaratório inerente às decisões em mandado de segurança, ao qual se

agrega o provimento mandamental, que tem a função de prescrever um esquema de

agir impedindo a efetivação do lançamento. Isto é, embora não seja meramente

declaratória a decisão em mandado de segurança, ela dispõe de uma força

declaratória inconteste, já que, para endereçar a ordem à autoridade impetrada, o

julgador tem antes que, nas palavras de José da Silva Pacheco, ‘declarar a existência

38. Hugo de Brito Machado, Mandado de segurança. 8ª edição. São Paulo: Dialética, 2009, p. 211. Os destaques são da transcrição. 39. Op. cit., p. 212, idem.

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ou não de relação jurídica’ ou a ‘existência ou não de um direito’. Por isso Humberto

Theodoro Júnior afirma: ‘quando, pois, o mandado de segurança é impetrado em caráter

preventivo contra exigência indevida de tributos ou contribuições, faz ele as vezes de uma

declaração negativa da sujeição de certos atos do impetrante à carga tributária que o Fisco

ameaça fazer incidir sobre eles”.40

“Falemos de ação geral ou especial, um ponto há de se reconhecer sempre nas

sentenças que julgam procedentes as demandas de natureza declaratória negativa (aí

incluídas as ‘ações declaratórias’ das quais ora nos ocupamos): antes de dizer o óbvio (i. é,

que a obrigação não existe), tais provimentos firmam no sistema norma individual e

concreta inibitória da produção, pelo Fisco, de outra norma individual e concreta, a

do lançamento (...).

Nesse sentido, teríamos, então, que as declaratórias negativas em geral (e assim as

ordinárias, fundadas, como salientado, na noção de jurisdição universal) veiculam

verdadeira norma de proibição, sendo essa, assim sua eficácia. Ou, noutro dizer: ao julgar

procedentes tais ações, o Estado-juiz afasta a presunção de legalidade que permearia, em

tese, todo e qualquer ato que viesse a ser praticado pelo Estado-fisco, proibindo-o de fazê-

lo.

É bem de ver, ressalte-se, que sobredita eficácia recobre a tutela declaratória se

entendida, esta, como norma individual e concreta material.

Quer isso significar, portanto, que diversamente do que apregoa a concepção usual,

o provimento declaratório irradia efeitos para o porvir, vale dizer, a partir do

momento em que revestido de potência normativa.”41.

“Expressivo exemplo da palpabilidade dos efeitos da ação declaratória em

matéria tributária é o da ação que se afora com o específico fim de ver reconhecida

(declarada) a imunidade tributária do contribuinte (hipótese bastante comum quando

se trata de entidades de educação e assistência social sem fins lucrativos). Por se tratar de

hipótese de imunidade em que se constata inexistência de relação jurídica tributária em

face de preceito constitucional, pode-se utilizar da ação declaratória com o fito de ver

declarada imunidade do autor da ação, obtendo-se como efeito concreto da

declaração judicial a certeza de que a Fazenda Pública não poderá cobrar tributos

40. Coisa julgada em matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 247/248. Os destaques são da transcrição. 41. Paulo Cesar Conrado, Processo tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 212. Os destaques são da transcrição.

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abrangidos pela regra imunizante em virtude da declaração de inexistência de

relação jurídica tributária que possa fundamentar pretensão fiscal.”42.

“No campo de aplicação da Súmula 239, que é o terreno palmilhado pelo

investigador, enquanto não germinam novas sementes, cabe explorar melhor a via da

própria ação declaratória (até mesmo em via incidental), porquanto nela,

efetivamente, a declaração judicial, entendida como juízo lógico proferido sobre as

questões suscitadas na ação, adquire a força da coisa julgada.

(...)

Em conclusão, obtido resultado em ação declaratória ‘que pode ter por objeto

qualquer relação jurídica de que a existência ou modalidades sejam incertas’ (Liebman), a

consequência é que o juiz do processo futuro estará vinculado à declaração

precedente, devendo tomá-la como premissa de sua decisão, a tanto servindo,

indiscutivelmente, a coisa julgada produzida em ação meramente declaratória.”43.

“Posta essa premissa, quando julgada procedente a demanda declaratória, a

declaração a respeito da situação jurídica que constitui objeto do processo ficará

imune a qualquer questionamento ulterior. Somente será possível questionar a

declaração se forem rompidos os limites temporais da coisa julgada, pois a dinâmica

dos direitos propicia a ocorrência de fatos supervenientes que podem interferir na situação

declarada.”44.

Em tais condições, é indiferente que o reconhecimento do direito do contribuinte decorra

de mandado de segurança ou de “ação declaratória”. Em um e em outro caso, o que é

indispensável e decisivo para compreender o que transitou e o que não transitou em julgado é a

abrangência, maior ou menor, do pedido.

7. Reflexão final

A interpretação e os usos da Súmula 239 do Supremo Tribunal Federal põem em evidência

uma das mais complexas e importantes questões da atualidade do direito processual civil, qual

42. James Marins, Direito processual tributário brasileiro (administrativo e judicial). 7ª edição. São Paulo: Dialética, 2014, p. 514. Os destaques são da transcrição. 43. Walter Piva Rodrigues, Coisa julgada tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 107/108. Os destaques são da transcrição. 44. Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes, Limites objetivos e eficácia preclusiva da coisa julgada. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 89.

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seja, a das condições de serem entendidas, interpretadas e aplicadas as súmulas dos Tribunais

assunto que, com a aproximação de um novo Código de Processo Civil, só ganha mais interesse.

Com efeito, o Projeto de novo Código de Processo Civil é expresso quanto à necessidade

de as Súmulas dos Tribunais Superiores serem importantes diretrizes para viabilizar a

previsibilidade e a isonomia, princípios fundantes das relações tributárias.

Tanto o Projeto aprovado no Senado Federal, em dezembro de 2010 como o “texto-base”

do Projeto aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados são expressos no sentido de que “Os

tribunais, em princípio, velarão pela uniformização e pela estabilidade da jurisprudência” (art.

882, 1ª parte, do Projeto do Senado) e que “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e

mantê-la estável, íntegra e coerente” (art. 520, caput, do Projeto da Câmara).

Mas não só: de acordo com o inciso IV do art. 882 do Projeto do Senado, “a jurisprudência

do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores deve nortear as decisões de todos os

tribunais e juízos singulares do país, de modo a concretizar plenamente os princípios da legalidade

e da isonomia;” e, em consonância com o inciso III do art. 521 do Projeto da Câmara, “os juízes e

tribunais seguirão os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria

constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;”45.

O necessário confronto das Súmulas dos Tribunais Superiores com o direito legislado —

inclusive das Súmulas do STF nos anos 1960, como é o caso da de número 239 — é inadiável,

como acabou de se verificar. Não há como querer aplicar as centenas de Súmulas que existem sem

levar em conta as peculiaridades de cada caso concreto e, como não poderia deixar de ser, das

próprias vicissitudes dos direitos, o material e o processual, a serem aplicados. Não há como,

mesmo diante dos Projetos de novo Código de Processo Civil, querer admitir, pura e

simplesmente, a aplicação daquelas orientações jurisprudenciais sem verificar, previamente, se

elas efetivamente compatibilizam-se com o ordenamento jurídico atual. Como querer continuar a

aplicar Súmulas se não compreendemos, antes de seus enunciados, seus precedentes?

Este breve artigo, construído a partir da Súmula 239 do STF, quer ilustrar a pertinência

desta última afirmação e a necessidade da construção de uma doutrina sólida e crítica acerca dos

precedentes judiciais.

8. Referências bibliográficas

45. Para o confronto entre os dois Projetos, v., do autor, Os projetos de novo Código Processo Civil: comparados e

anotados. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 441/443.

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