Coisa Julgada

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AULA 10. COISA JULGADA 1. Efeitos da sentença e autoridade da coisa julgada A coisa julgada é uma especial qualidade que imuniza os efeitos substanciais da sentença, a bem da estabilidade da tutela jurisdicional 1 . Embora Chiovenda tenha lançado originariamente esta base teórica sobre o assunto, ao considerar que a coisa julgada é obrigatória para os sujeitos da relação processual, enquanto a sentença existe e vale com respeito a todos, foi Liebman quem identificou com precisão a diferença entre a eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada 2 . Enquanto a coisa julgada corresponde à eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, em relação às partes que integram a relação jurídico-processual, sem prejudicar nem beneficiar terceiros, os efeitos da sentença (condenatórios, constitutivos ou meramente declaratórios) correspondem às alterações que esta decisão judicial produz na realidade jurídica, podendo ocorrer antes do trânsito em julgado, sem o manto da imutabilidade, e beneficiar ou prejudicar terceiros (daí porque se admite a assistência 1 DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In Nova era do Processo Civil, São Paulo: Malheiros editores, 2004, p. 217. 2 LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. Trad. Alfredo Buzaid e Benvindo Aires e Notas relativas ao direito brasileiro de Ada Pellegrini. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 113.

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AULA 10. COISA JULGADA

1. Efeitos da sentença e autoridade da coisa julgada

A coisa julgada é uma especial qualidade que imuniza os efeitos substanciais da

sentença, a bem da estabilidade da tutela jurisdicional1. Embora Chiovenda tenha

lançado originariamente esta base teórica sobre o assunto, ao considerar que a coisa

julgada é obrigatória para os sujeitos da relação processual, enquanto a sentença existe e

vale com respeito a todos, foi Liebman quem identificou com precisão a diferença entre

a eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada2.

Enquanto a coisa julgada corresponde à eficácia que torna imutável e

indiscutível a sentença, em relação às partes que integram a relação jurídico-processual,

sem prejudicar nem beneficiar terceiros, os efeitos da sentença (condenatórios,

constitutivos ou meramente declaratórios) correspondem às alterações que esta decisão

judicial produz na realidade jurídica, podendo ocorrer antes do trânsito em julgado, sem

o manto da imutabilidade, e beneficiar ou prejudicar terceiros (daí porque se admite a

assistência litisconsorcial, o recurso de terceiro e ação rescisória do terceiro

prejudicado).

Assim, todos são afetados pelos efeitos da sentença, até porque

as relações jurídicas não existem isoladamente no plano da realidade,

mas a própria ordem constitucional rejeita que aqueles que não

participaram do processo fiquem vinculados à imutabilidade da coisa

julgada lá produzida (princípios do devido processo legal, ampla

defesa e contraditório).

A coisa julgada pode ser material (quando se projeta para fora do processo) ou

formal (imutabilidade da sentença em si mesmo – efeito endoprocessual que põe fim à

relação processual)3. Representa uma opção política do legislador, que visa a conciliar

1 DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In Nova era do Processo Civil, São Paulo: Malheiros editores, 2004, p. 217.2 LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. Trad. Alfredo Buzaid e Benvindo Aires e Notas relativas ao direito brasileiro de Ada Pellegrini. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 113. 3 DINAMARCO, Relativizar cit., p. 221-222.

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os princípios da celeridade e segurança, certeza e justiça das decisões, buscando um

equilíbrio entre estes vetores muitas vezes contrapostos. Sua previsão constitucional

está no art. 5º, XXXVI e infraconstitucional no art. 467 e ss do CPC.

2. Eficácia preclusiva da coisa julgada:

Ao prever os efeitos preclusivos da coisa julgada, o art. 474 do CPC determina

que passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas

todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à

rejeição do pedido.

Para Rodolfo Mancuso, a técnica da eficácia preclusiva acolhida por este

dispositivo legal opera como uma válvula de segurança do sistema, de modo a imunizar

as questões deduzidas e deduzíveis, mas desde que atinentes ao núcleo do thema

decidendum, isto é, ao preciso objeto litigioso, técnica que lembra o collateral estoppel,

das class actions do direito norte-americano, pelo qual consideram-se incluídos no

julgado os necessary steps, ou seja, as premissas necessárias à conclusão4.

Barbosa Moreira entende que há uma relação de instrumentalidade entre os

limites objetivos da coisa julgada e a sua eficácia preclusiva, pois enquanto os limites

objetivos geram a imutabilidade do julgado, no que tange à parte dispositiva, a eficácia

preclusiva consiste no impedimento que surge à discussão e apreciação de questões

suscetíveis de influir neste julgado, cobrindo o deduzido e dedutível. Assim, pode

suceder que, de fato, não tenham sido exaustivamente consideradas, no processo, as

questões que poderiam influir na decisão, sendo vedado que depois de findo o processo

se viesse a pôr em dúvida o resultado atingido, acenando-se com tal ou qual questão que

haja ficado na sombra e que, porventura trazida à luz, teria sido capaz de levar o órgão

judicial à conclusão diferente da corporificada na sentença (ressalvados os casos

restritos de rescindibilidade do julgado) 5.

4 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição Coletiva e Coisa Julgada: teoria geral das ações coletivas. São Paulo: RT, 2006, pp. 29,236. Sobre a possibilidade de emprego do collateral estoppel por terceiro, que não foi parte no processo, mas detém relação jurídica conexa à que foi decidida, vide TUCCI, José Rogério Cruz e. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 141-151.5 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A eficácia preclusiva da coisa julgada material no sistema do processo civil brasileiro. Temas de Direito Processual. 1ª série, São Paulo: Saraiva, 1977, pp. 98-103.

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O expediente técnico a que se recorre é considerar implicitamente decididas pela

sentença que transitou em julgado todas as questões, ainda que não apreciadas, cuja

solução se devesse reputar idônea para influir no conteúdo do pronunciamento judicial.

Trata-se de uma ficção, que não pode estender às questões a autoridade da coisa julgada

(não estão imunes à rediscussão em outro processo), já que assim não ocorre nem

mesmo entre as questões efetivamente apreciadas (a motivação da decisão não faz coisa

julgada). Portanto, nem às questões deduzidas nem às dedutíveis se estende a auctoritas

rei iudicatae, mas todas se submetem à eficácia preclusiva da coisa julgada, para que

não venham ser utilizadas como instrumento de ataque ao julgado6.

3. Relativização da coisa julgada - coisa julgada rebus sic stantibus – teoria da

imprevisão

Por fim, uma questão interessante se coloca: a coisa julgada gera imutabilidade

absoluta ou relativa? Há possibilidades excepcionais de reabertura da discussão

(relativização da coisa julgada), quando estão em jogo outros princípios e garantias

constitucionais, dentre elas a garantia de acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV). “Não é

legítimo eternizar injustiças a pretexto de se evitar a eternização de incertezas7”.

Um dos casos mais comuns em que esta questão se coloca é o do advento de

coisa julgada sobre reconhecimento de filiação antes do surgimento do teste de DNA,

sendo posteriormente realizado o exame e descoberta a ausência de vínculo genético.

Caso tenha transcorrido o prazo da rescisória, é possível se anular a relação de

paternidade comprovadamente inexistente?

Há quem defenda a propositura de ação declaratória de inexistência de coisa

julgada, imprescritível, para promover a coincidência entre a verdade formal e a verdade

real. Barbosa Moreira, por sua vez, acredita que seria interessante uma alteração

legislativa neste caso para estabelecer como termo inicial do prazo da rescisória o dia

6 BARBOSA MOREIRA, 1977, A eficácia preclusiva cit., pp. 98-103.7 DINAMARCO, Relativizar a coisa julgada cit., p. 224.

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em que o interessado obtém o laudo de DNA, ao invés do trânsito em julgado da

sentença rescidenda8.

4. Exercício: Caso de impugnação contra deliberação de S.A (exercício)

Gustavo Sá Rodrigues, acionista minoritário de uma sociedade de capital aberto,

impugna decisão da assembléia e obtém judicialmente a anulação de uma deliberação de

aumento de capital.

- Neste caso, tendo sido movida a demanda por apenas um dos

acionistas, o resultado se aplica aos demais acionistas? O objeto da

demanda é indivisível?

- Como os efeitos da sentença e eventual coisa julgada produzida no

processo relacionam-se com aqueles que não integraram a relação

processual, mas são atingidos pela decisão?

- Nesse caso, deve haver a substituição processual, ou seja, aquele

que atua em juízo o faz em nome dos demais acionistas minoritários,

de modo que o resultado se estenda a estes sujeitos não-litigantes?

- Se procedente a demanda anulatória, haveria interesse de agir por parte dos outros

acionistas na propositura de mesma demanda? E se a demanda fosse julgada

improcedente?

- Incidentes como a intervenção de terceiros no processo e reunião de

demandas conexas, poderiam obstar preventivamente o

inconveniente de eventuais decisões contraditórias, reunindo as

partes interessadas e demandas relacionadas para julgamento

conjunto?

Bibliografia Obrigatória

DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In Nova era do

processo civil. 2ª ed. pp. 217-225; 257-270 (22p).

8 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada ‘relativização’ da coisa julgada material, IN Temas de Direito Processual. 9ª série.São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 264-265.

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Bibliografia Complementar

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada ‘relativização’

da coisa julgada material. IN Temas de Direito Processual. 9ª série.São Paulo:

Saraiva, 2007, pp. 235-265.

LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e

outros escritos sobre a coisa julgada. Trad. Alfredo Buzaid e

Benvindo Aires e Notas relativas ao direito brasileiro de Ada Pellegrini.

4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.