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Biodiversidade, sustento e culturas é uma revista trimestral (quatro números por ano). As organizações populares, as ONGs e as instituições da América Latina podem recebê-la gratuitamente. Por favor, enviem seus dados com a maior precisão possível para simplifi car a tarefa de distribuição da revista.

Os dados necessários são:País, organização, nome e endereço completos: código de endereçamento postal (CEP), cidade e estado.(Correio eletrônico, telefone e/ou fax, se houver.)

Enviem, por favor, sua solicitação a BIODIVERSIDAD, REDES-AT, San José 1423, 11200 - Montevidéu, Uruguai. Telefones: (598 2) 902 23 55/908 [email protected]/[email protected]

ConteúdoEDITORIAL 1

Ajuda em sementes, agroempresas e crise alimentar 3

Fome e transgênicos 8

Fluxo de alimentos e Tratados de Livre Comércio 9

UMA PANORÂMICA E MUITAS VISTAS 10 No futuro será imprescindível produzir alimentos próprios

O Brasil e seus bois multinacionais 18

Meatrix: o negócio da carne 23

ATAQUES, POLÍTICAS, RESISTÊNCIA, RELATOS 24não querem transgênicos na África, não?/ Brasil: fi nanciando a contamina-ção/ os jeitinhos da Monsanto no México/ Equador: O governo, a constituição, os indígenas e as mineradoras/ as paralisações antimineradoras prossegui-rão/ carta aberta sobre a nova constituição/ assassinam defensor de direitos humanos na Colômbia/ dendê em Chiapas: paramilitar?/ Estados Unidos se posicionam na Guatemala/ Argentina: perseguição aos camponeses/ Hondu-ras: mais um assassinato em nome da suposta proteção das áreas protegidas

Ecos da Quinta Conferência da Via CampesinaCrise ou soberania alimentar? 32

Declaração do Encontro Nacional:

Crise Alimentar na Colômbia - Ações Sociais

para a Defesa da Soberania e da Autonomia Alimentar 36

Solidariedade e denúncia 40

A série de fotos deste número é de Jerónimo Palomares e foi tirada no estado de Puebla, México. As ilustrações que acompanham a revista e o caderno de biodi-versidade número 25 provêm do livro El diseño indígena argentino, de Alejandro Eduardo Fiadone, La Marca Editora, 2006, e são desenhos pré-hispânicos de di-versas culturas indígenas assentadas no que hoje é a Argentina. Agradecemos a sensibilidade do autor em permitir a utilização das imagens sempre e quando seja com fi ns artísticos e sem lucro. Nesse caso, nossa publicação sem fi nalidade de lucro, além de ter fi ns artísticos, visa documentar, divulgar e conservar a tradição de desenho indígena do continente (e do mundo) e servir de fonte secundária para que as pessoas tenham acesso a obras de sistematização como a de Alejandro Eduardo Fiadone.As organizações populares e as ongs da América Latina podem receber gratuitamente a revista. Con-tatar REDES-AT Uruguai: [email protected]/[email protected] Convidamos a que se comuniquem conosco e nos enviem suas experiências, sugestões e comentários. Dirigir-se a Ingrid Kossman: [email protected]. Os artigos assinados são de responsa-bilidade de seus autores. O material aqui reunido pode ser divulgado livremente, mas agradecemos se a fonte for citada. Por favor nos enviem uma cópia para nosso conhecimento.

Agradecemos o apoio da SwedBio e da Cooperación al Desarrollo de la Consejería de la Vivienda y Asuntos Sociales del Gobierno Vasco. Agradecemos o apoio da Heifer

Internacional Programa Brasil e Argentina para a publicação da edição em português.

BIODIVERSIDADESUSTENTO E CULTURAS

Número 58, outubro de 2008

Biodiversidade, sustento e culturas é uma pu-blicação trimestral de informação e debate sobre a diversidade biológica e cultural para apoio às comunidades e culturas locais. O uso e conservação dos recursos genéticos, o impacto das novas biotecnologias, patentes e políticas públicas são parte de nossa cobertu-ra. Inclui experiências e propostas na Améri-ca Latina, e busca ser um vínculo entre aque-les que trabalham pela gestão popular dos recursos genéticos, especialmente as comuni-dades locais: mulheres e homens indígenas e afroamericanos, camponeses, pescadores e pequenos produtores.

Organizações coeditorasAcción Ecoló[email protected]ón por la [email protected] de Sementes da Vía Campesina – [email protected] Ecoló[email protected]@grain.orgGrupo etcveró[email protected] [email protected] de Coordinación en [email protected] Uruguai [email protected]

Comitê EditorialMa. Eugenia Jeria, ArgentinaCarlos Vicente, ArgentinaCiro Correa, BrasilMaria José Guazzelli, BrasilGermán Vélez, ColombiaAlejandra Porras (Coeco-at), Costa RicaSilvia Rodríguez Cervantes, Costa RicaCamila Montecinos, ChileFrancisca Rodríguez, ChileElizabeth Bravo, EquadorMa. Fernanda Vallejo, EquadorSilvia Ribeiro, MéxicoMagda Lanuza, NicaráguaJuan Martin Drago, UruguaiCarlos Santos, Uruguai

AdministraçãoIngrid [email protected]

EdiçãoRamón Vera [email protected]

Design e diagramaçãoDaniel Ortega, Claudio [email protected] Borghetti (Brasil)[email protected]

Edição em portuguêsCentro Ecoló[email protected]

issn: 07977-888X

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Otrabalho no campo, a colheita e a coleta. Plantadores de batatas: velhos chapeludos bem camponeses, homens de idade madura um pouco mais urbanos, jovens e gurizada com pinta de que estiveram “no Norte”, nas

cidades norte-americanas: todos prontos para carregar. As fotos que acompa-nham este número vêm do estado de Puebla, no México, e nos conduzem a um campo que não deixa suas antigos maneiras e que já é, há anos, obrigado a plan-tar ao modo industrial. É o contraste entre as tradições antigas - que soluciona-vam a vida com o cuidado daqueles que sabiam que cultivar é vida plena, e não só trabalho rentável - e as formas novas, “empresariais”, que exigem mais agro-tóxicos, mais créditos, mais pacotes tecnológicos, e nem com isso o solo rende, desgastado depois de tantos anos de traição e droga aplicada a cada safra. Um debate entre os que vão à cidade ou aos Estados Unidos e os que ficam para ver o que mais pode ser feito com a terra. No México, o plantio da batata representa tudo isso. Rapidamente se tornou um cultivo para vender, para ter dinheiro vivo, e começou a fluir pelos circuitos que intermediam a comida do campo para a ci-dade do México. Nesses circuitos, há sujeitos chamados por todo mundo de “coiotes” (por que será?). Nas fronteiras de Puebla, já perto da cidade, eles “ata-cam” os caminhões carregados para comprar suas cargas por preços muito abai-xo dos designados, com ameaças e maus modos.

E, ainda que sejam apenas um dos muitíssimos fatores que criam uma situação de fome tão devastadora, esses coiotes contribuem para a especulação, o mono-pólio e a má distribuição de alimentos. Este número de Biodiversidade, sustento e culturas trata dos fatores que formam uma crise alimentar, mas também de que esta é somente parte de um ataque mais geral que o capitalismo renova, cada vez que se mete em encrencas, para se readaptar e lucrar de novo. E, nesse meio tem-po, leva de arrasto povos e comunidades rurais, bairros urbanos repletos dos excluídos de sempre.

É a eles, os dos bairros urbanos, que a crise alimentar, e agora essa recessão econômica mais generalizada, mais total, atingirá com toda a sua violência, por-que são os mais desprotegidos de todos os mortais.

É sintomático que aqueles que têm seus próprios alimentos defendam-se mais, porque além de comida têm uma dignidade da qual não precisam vangloriar-se porque vem ao natural de uma vida desde sempre, de uma vida à margem, mas com horizonte histórico, coisas a respeitar e um senso do sagrado no mundo.

Editorial

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Enquanto elaborávamos este número, recebemos, com profunda preocupação, notícias que nos confirmam que as elites pretendem erradicar os povos indí-

genas, as formas de vida camponesas, suas estratégias que propiciam liberdade e consciência de horizonte. Esse é o drama boliviano que hoje espalha a inquietude e a esperança por toda a América Latina. Hoje, os povos marcham para defender o projeto de sua nova Constituição, e para defender a possibilidade de ter um país onde as rançosas aristocracias – nesse caso, proprietários de terras, fascistas e plantadores de soja – não mandem, não decidam, ao menos mais que os demais, que são maioria e que estão desde sempre nessas terras. É uma demonstração importante. Em setembro, as juventudes fascistas e bandalheiros, ajuntados em pelotões de choque, atacaram os indígenas da chamada Media Luna, em Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija, tentanto fazer o conflito evoluir para uma guerra civil, a partir de emboscadas e metralhamentos por parte de mercenários armados. Sabe-se de pelo menos 30 indígenas assassinados nesses dias cruentos.

O momento é difícil para a América Latina. Esta atravessa inquietudes de toda sorte. As alianças de proprietários de terras de uma direita continental alçam vôo com os aristocratas de Santa Cruz, Guayaquil, Paraguai, mais os fazendeiros ar-gentinos e brasileiros com pretensões de estabelecer uma “república unida da soja” onde o modelo agroindustrial seja mais importante do que as vidas e os territórios, onde o trabalho escravo seja a norma, onde não importe a contamina-ção transgênica, e nem a devastação de grandes extensões de floresta.

O sinal de alerta mais recente vem da Colômbia, onde, após anos de guerra suja, os povos indígenas, as comunidades camponesas de todo país, decidiram se ma-nifestar em oposição às tentativas de fazê-los desaparecer. As Forças Armadas e a polícia reprimiram a sangue e fogo os civis desarmados. Os meios de comunica-ção justificam o massacre acusando falsamente os indígenas de estarem sendo controlados e infiltrados pela guerrilha.

Na mobilização, as representações indígenas de Cauca, molestadas, expressam uma verdade que está no coração do que este número de Biodiversidade quer trasmitir: “As demandas legítimas são ignoradas. O exercício de direitos e liber-dades é negado, o território é entregue a transnacionais, a guerra suja assassina membros da comunidade e líderes, os meios de comunicação enganam e promo-vem o terror e a manipulação, as leis despojam, o Plano Colômbia converte terri-tórios em palco de operações ; o governo, respaldado pelos Estados Unidos, fecha o espaço para o conflito político civilista e promove a guerra para, a seguir, tachar de terroristas os que protestam. O governo promove a insurgência, fabrica-a, instiga-a. O resultado disso é que o movimento indígena e popular, cansado, en-curralado, digno, se mobiliza em uma ação de fato para dar a conhecer sua agen-da e exigir que ela seja respeitada. A resposta é marcar-nos como terroristas, atacar-nos como se atacaria um exército, e, enquanto fazem isso, apresentam um discurso democrático e civilista como se não tivessem obrigado os povos ao de-sespero. O que quer o governo? Que voltemos silenciosamente a ser vítimas da guerra suja a nos deixar despojar e assassinar, sem protestar, a deixar nos mete-rem em uma guerra contra nós mesmos?”

Em Biodiversidade estamos com os povos indígenas e daqui seguimos atentos para que possam fazer ouvir sua voz e sua versão dos fatos.

biodiversidade

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Ajuda em sementes, agroempresas e crise alimentar

No início do ano, os dirigentes políticos e econômicos, induzi-dos pelos meios de comunicação empresariais, apressaram-se em explicar a atual crise alimentar mundial como uma “perfeita tempestade” de vários fatores: problemas meteorológicos, o desvio de cultivos para os bio-combustíveis, aumentos do pre-ço do petróleo e alguns pobres que se tornam menos pobres e consomem mais produtos ani-mais. Querem nos fazer acredi-tar que a crise alimentar origi-nou-se em um problema de produção. Muitas vozes rebate-ram esse argumento e demons-traram que as atuais políticas econômicas, focadas no comér-cio mundial, e a desregulamen-tação são as responsáveis. Sem dúvida, empresas, governos e organismos internacionais pro-moveram a falsa solução de au-mentar a produção, principal-mente conseguindo sementes “de maior rendimento” para os agricultores.

Quais sementes? De onde? Que impacto terão sobre as comuni-

dades vulneráveis e sobre a biodi-versidade local? É difícil encon-trar dados confiáveis, mas existe o grave risco de que essa resposta simplista à crise mundial – e que evita formular as perguntas que na verdade lançam desconfiança sobre as políticas – provoque uma nova onda de erosão genética e insegurança nos meios de vida e de sustento, pois subjuga os siste-mas locais de sementes das comu-nidades. As conseqüências para a sobrevivência das famílias rurais de todo o mundo, e para a produ-ção de alimentos, poderiam ser extremamente desastrosas.

O “coro perfeito”. Grandes so-mas de dinheiro são prometidas para enviar, com urgência, semen-tes e fertilizantes aos países do Sul afetados pela crise alimentar. Em maio, o Banco Mundial (bm) co-locou em operação um fundo de financiamento de 1,2 bilhões de dólares, destinado a mobilizar apoio financeiro “para o rápido fornecimento de sementes e ferti-lizantes aos pequenos agriculto-res”. Durante a reunião de cúpula

do Grupo dos Oito países mais ricos do mundo, realizada no Ja-pão, no início de julho, o presi-dente do bm, Robert Zoellick, disse a essas pessoas poderosas que uma das principais priorida-des da luta contra a crise alimen-tar mundial é “dar aos pequenos agricultores, especialmente na África, acesso a sementes, fertili-zantes e outros insumos básicos”. Nas instâncias prévias da reunião, o presidente da Comissão Euro-péia, José Manuel Barroso, ofere-ceu 1 bilhão de euros em “fertili-zantes e sementes para ajudar os agricultores pobres dos países em desenvolvimento”. O presidente dos Estados Unidos, George Bush, anunciou 1 bilhão de dólares em dinheiro para a crise alimentar e

grain

A crise alimentar mundial, que os que estãono poder apressaram-se a definir como

um problema de insuficiência na questão da produção, converteu-se em um Cavalo

de Tróia para introduzir sementes, fertilizantese, sub-repticiamente, sistemas de mercado

nos países pobres. O que parece uma “ajudaem sementes” pode, no curto prazo, mascararo que na realidade é a “ajuda ao agronegócio”

em longo prazo. Trazemos uma panorâmica sobre o que está ocorrendo.

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declarou que convenceria outros dirigentes do mundo a tomarem medidas para aliviar a fome “au-mentando os embarques de ali-mentos, de fertilizantes e de se-mentes aos países necessitados”. Duas semanas antes, o secretário geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, levou esta mensagem à Assembléia Geral, em Nova Ior-que: “Devemos agir imediata-mente para estimular a produção agrícola. A forma de fazê-lo é for-necendo, urgentemente, as se-mentes e fertilizantes necessários para as próximas safras, especial-mente para os 450 milhões de agricultores em pequena escala de todo o mundo”. Imaginem! Bi-lhões de dólares desembolsados repentinamente para distribuir sementes aos agricultores mais pobres do planeta – um grupo cujas necessidades nunca antes fi-guraram entre as preocupações prioritárias desses dirigentes.

Previamente, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (fao) havia lançado sua própria iniciativa dirigida a “demonstrar que incrementando o fornecimento de insumos agrí-colas chave, sementes e fertilizan-tes, os pequenos agricultores serão capazes de aumentar rapidamente a produção alimentar”. A iniciati-va da fao já inclui 35 países, na ordem de 21 milhões de dólares, enquanto outros 54 países são apoiados de forma semelhante no âmbito do Programa de Coopera-ção Técnica, ao custo de 24 mi-lhões de dólares. A iniciativa tam-bém se propõe a “encorajar os doadores, instituições financeiras e governos nacionais a apoiar a dotação de insumos em maior es-cala”. Organizações, que vão da Fundação Bill & Melinda Gates à Cruz Vermelha, sobrepõem-se para formular programas destina-dos a fornecer sementes e fertili-zantes em resposta à crise alimen-tar atual.

Lições da “ajuda” em sementes. O impacto da ajuda em sementes – que significa fornecer sementes a zonas em crise – é um assunto de árduo debate há vários anos. Freqüentemente, os programas de desenvolvimento têm-se focado em substituir o que consideravam “variedades locais de baixo ren-dimento” por algumas sementes chamadas de alto rendimento, obtidas em laboratório. Os orga-nismos de auxílio, que em situa-ções de emergência distribuíam ajuda em sementes, em geral se-guiram pelo mesmo modelo. Não se fez quase nenhum esforço para compreender as variedades locais: por que os agricultores as selecio-naram e por que continuam utili-zando-as. Hoje, as vantagens das variedades locais são mais evi-dentes. Reconhece-se que, entre outras coisas, tendem a dar me-lhores respostas em condições de baixo uso de insumos, a resistir às pressões locais, a oferecer outros produtos além do grão (como pa-lha para forragem), a ter rendi-mentos estáveis, com baixo risco ao longo do tempo, e a ter melhor sabor ou melhores condições de cozimento. Em outras palavras, são apropriadas cultural e agro-nomicamente.

Também cresce o consenso so-bre as desvantagens de introduzir sementes de fontes estranhas. Há alguns meses, Louise Sperling, David Cooper e Tom Remington apresentaram um relatório que ressalta o que os críticos vêm di-zendo há anos*: “Com freqüên-cia, não é necessário introduzir sementes de fontes externas, já que, em geral, os sistemas locais de sementes dispõem de sementes, mesmo em períodos de crise. A distribuição direta de sementes não é muito eficaz, já que os agri-

*�(ver�http://www.ciat.cgiar.org/newsroom/pdf/moving_towards_more_effective_seed_aid_april_2008.pdf)

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cultores tendem a preferir suas próprias fontes de sementes. Caso se repita, a ajuda em sementes pode provocar dependência, fazer ruir os sistemas locais de sementes e erodir as sementes locais.”

Essa mudança de pensamento provocou uma mudança de políti-ca no Afeganistão, onde as mais destacadas organizações de ajuda adotaram um código de conduta para a distribuição de sementes em casos de emergência, que esta-belece que elas devem ser produzi-das localmente, que todo o forne-cimento de emergência não deve distorcer os sistemas locais de se-mentes, e que estas devem se adaptar ao ambiente local. Não há razão para duvidar que as ongs pequenas ou independentes atualmente envolvidas em proje-tos de ajuda em sementes como resposta à crise alimentar estejam adotando esse critério. Mas a his-tória pode ser diferente com aque-les organismos de ajuda maiores, pagos para assumir o encargo de fornecer sementes aos governos.

Funcionários da fao assegura-ram ao grain que os projetos de ajuda em sementes que elabora-ram em resposta à crise mundial atual orientam a fornecer semen-tes locais de mercados e comer-ciantes locais, e que evitam híbri-dos e variedades transgênicas. Mas os comunicados da própria fao enviam uma mensagem dife-rente e mais arrepiante. Falam de “uma caravana de caminhões car-regados com mais de 500 tonela-das de sementes” que partiu da capital da Mauritânia para o inte-rior e que “distribuíram entre os agricultores empobrecidos de Burkina umas 600 toneladas de variedades de sementes melhora-das”. Há, portanto, uma discre-pância entre a retórica oficial e o que ocorre de fato em algumas zo-nas. No longo prazo, a situação é ainda mais preocupante. Com os bilhões de dólares lançados a or-

E o setor privado? Há vinte anos atrás, a ajuda em sementes teria se apoiado, em grande parte, no setor público: as sementes se-riam oriundas dos sistemas públi-cos de fitomelhoramento, de pro-dução e de distribuição, talvez a troco de nada, e os camponeses que as recebessem teriam podido guardar sementes de seus cultivos e compartilhá-las com seus vizi-nhos. Agora o setor público está dividido, cercado, privatizado. Um punhado de empresas multi-nacionais de agrotóxicos controla mais da metade do mercado mun-dial de sementes e seu controle estende-se através de uma cres-cente rede de intermediários pri-

e adotam mais e mais elementos de modelos comerciais. Hoje, quando se fala de sementes e não se especifica que são sementes lo-cais ou de camponeses, está im-plícito que se trata de sementes privadas (que os camponeses têm que comprar, e que chegam com estritas restrições quanto ao seu uso).

Em nível nacional, onde a ajuda em sementes traduz-se em novos programas de governo, é óbvio o vínculo entre as respostas oficiais à crise alimentar e a agenda das agroempresas. As iniciativas para impulsionar a produção de ali-mentos em Benin e nas Filipinas ante a crise são pouco mais do

ganismos humanitários para dis-tribuir com urgência sementes e fertilizantes aos agricultores em nome da crise alimentar, com a fao, que faz um chamado ao “for-necimento de insumos em uma es-cala muito maior”, e com as men-sagens, oriundas de dirigentes e instituições financeiras do mundo, de que é tempo de levar as novas tecnologias aos pequenos agricul-tores para aumentar sua produ-ção, os sistemas locais de sementes dos agricultores podem se ver ameaçados em várias partes do mundo.

vados e de companhias nacionais de sementes com conexões políti-cas. As sementes são agora um grande negócio.

Os organismos internacionais que ainda alegam ter um manda-to “público”, como a Aliança por uma Revolução Verde na África (agra, por sua sigla em inglês) e o Grupo Consultivo de Pesquisa Agropecuária (cgiar), cada vez mais são coalizões público-priva-das com vínculos diretos com as multinacionais. Seus programas de pesquisa são parte das estraté-gias de crescimento das empresas

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que programas de subvenções para as empresas de sementes e de fertilizantes. A Indonésia aposta que as sementes híbridas do setor privado resolverão suas necessi-dades de arroz no longo prazo. Apesar de anos de fracasso com o arroz híbrido no país e sem estu-dos válidos que respaldem os ar-gumentos que alegam rendimen-tos maiores, o governo subvenciona a importação e a venda de sementes híbridas de ar-roz e utiliza seus programas poli-técnicos agrícolas para promovê-las. Os poucos magnatas locais e empresas estrangeiras que con-trolam o mercado de sementes híbridas de arroz no país são os únicos cujos lucros estão garanti-dos.

No Senegal, o presidente Abdou-laye Wade lançou sua “Grande Ofensiva Agrícola para a Nutrição e a Abundância” (goana, por sua sigla em francês) em resposta à cri-se atual, visando a uma auto-sufi-ciência alimentar do país para 2015, incentivando principalmen-te a produção de alimentos bási-cos. Dos 792 milhões de dólares norte-americanos que o governo diz que investirá no projeto, 443 milhões serão para subsidiar a compra de fertilizantes, 120 mi-lhões para sementes, e 30 milhões para agrotóxicos. As companhias produtoras e distribuidoras desses insumos, muitas delas proprieda-de de capitais estrangeiros, serão as primeiras a se beneficiar, dado o investimento radical e as desregu-lamentações fiscais que acompa-nham o plano goana. A principal organização de agricultores do Se-negal, o Conselho Nacional de Acordo e Cooperação Rural (cncr), que não foi consultado a respeito da Ofensiva, disse que os agricultores correrão o risco de não poderem devolver o crédito assumido para comprar os insu-mos, mesmo com os subsídios, porque o projeto não reverte os

antigos problemas estruturais que impedem os agricultores de obter no mercado um preço justo por seus cultivos.

No Mali, a Coordenação Nacio-nal de Organizações Camponesas (cnop) foi excluída do processo com o qual o governo responde à crise alimentar mundial – a Inicia-tiva Arroz -, que objetiva duplicar a produção nacional de arroz em poucos anos. Como no Senegal, trata-se de subsidiar as sementes “de alto rendimento” e os fertili-zantes. A cnop lamenta que isso signifique que os benefícios irão parar nos bolsos dos comerciantes de insumos. Em numerosos países da África Ocidental, a ênfase está colocada na produção e na distri-buição rápida de sementes do ar-roz Nerica™, desenvolvido pelo cgiar, e não nas variedades nati-vas.

Na África, os programas nacio-nais de crise alimentar, orientados a fornecer rapidamente sementes novas e produtos químicos agríco-las para os agricultores, fundem-se perfeitamente com a estratégia da agra e do cgiar para o continen-te. Esses grupos têm se apresenta-do como salvadores, com a solu-ção ideal para aumentar a produção. À margem da conferên-cia de cúpula da fao sobre a crise alimentar, foi firmado um acordo entre a agra e todos os organis-mos com sede em Roma que tra-tam de alimentos, no qual a agra terá um papel crucial no desenvol-vimento e na promoção de novas sementes e em estabelecer um se-tor comercial de sementes na Áfri-ca. Uma semana após, a agra fir-mou outro acordo, desta vez com a Corporação do Desafio do Milê-nio, para “oferecer tecnologias, infra-estrutura e financiamento aos agricultores da África”. Na mesma linha, a farm, uma inicia-tiva multimilionária da presidên-cia da França e de algumas empre-sas francesas – entre elas a gigante

de sementes Vilmorin e o Grupo Casino, a potência em supermer-cados, com alcance mundial -, co-locou em marcha projetos, em Burkina Faso e Mali, que buscam fazer frente aos efeitos da crise au-xiliando as organizações de agri-cultores a financiar a compra de fertilizantes e de sementes. A farm tem o mandato específico de aju-dar os países pobres a obter acesso aos “benefícios” da tecnologia agrícola européia, como as semen-tes.

As agroempresas se beneficiam. Para compreender realmente como as atuais medidas de verti-calização destinadas a fornecer sementes aos agricultores esten-dem um tapete vermelho ao agro-negócio - para que ingresse nos países em desenvolvimento e ga-nhe muito dinheiro rapidamente - é necessário olhar o cenário de mudança da atividade empresa-rial no sistema alimentar. O au-mento dos preços dos produtos agrícolas básicos desencadeou uma febre no mundo dos grandes negócios para ter um maior con-trole de toda a cadeia alimentar. As companhias e as redes multi-nacionais de varejo do ramo ali-mentício têm aprofundado sua inserção na produção de alimen-tos, principalmente na agricultu-ra por contrato, para reduzir os custos de contratação e as garan-tias. Preocupados com o impacto de longo prazo dos altos preços dos alimentos na segurança ali-mentar nacional, os governos de países com forte liquidez, como a China e a Arábia Saudita, estão trabalhando lado a lado com os setores comerciais nacionais e com programas de investimento recém criados para terceirizar a produção de alimentos. E o capi-tal especulativo concentrado nos centros financeiros mundiais, cambaleando pelo impacto da contração de crédito, vê os pro-

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dutos básicos agrícolas e as terras de cultivo como âmbito para lu-cros rápidos. Isso significa que o controle sobre a agricultura está passando das mãos dos agriculto-res para as salas das diretorias. E os executivos das agroempresas têm prioridades muito diferentes: querem controlar um forneci-mento uniforme de sementes para produzir cultivos que sejam in-troduzidos nos mercados mun-diais de produtos agrícolas bási-cos; não estão interessados nas sementes locais e nem na preser-vação dos sistemas alimentares biodiversos.

Duas das maiores empresas asi-átias de alimentos – Sime Darby, da Malásia, e Charoen Pokphand, da Tailândia – agora se voltam para a produção de arroz, como parte das respostas que seus paí-ses de origem dão a essa crise mundial. Lançam a produção e a comercialização de suas próprias sementes híbridas de arroz, de-senvolvidas com o apoio do setor público. O investimento estran-geiro chinês na produção de ar-roz no Laos e em Camarões ba-seia-se, invariavelmente, em variedades chinesas híbridas de arroz, pouco testadas e introdu-zidas mediante acordos bilaterais de ajuda.

Repentinamente, a África Sub-saariana converteu-se em um imã para essa invasão agroindustrial. Entretanto, cerca de 90% das se-mentes usadas na África são va-riedades locais camponesas, que não são adequadas ao agronegó-cio. Assim, o investimento em-presarial depende da introdução e disseminação de variedades que sirvam às necessidades empresa-riais – o equivalente à soja Ron-dup Ready, que abriu o caminho para que o agronegócio coloni-zasse rapidamente o Cone Sul da América Latina. Os sistemas lo-cais de alimentos dependem do oposto: da diversidade. Por isso,

as sementes e os programas de ajuda em sementes que nascem da atual crise alimentar estão no centro de uma luta fundamental entre modelos opostos de produ-ção de alimentos: um sistema ali-mentar industrial globalizado e controlado pelas empresas versus uma diversidade de esforços para conservar, desenvolver e expan-dir a soberania alimentar.

A polarização das respostas. Dos ministros de agricultura ao Banco Mundial, essa luta funda-mental sobre quem controla os alimentos está camuflada por um discurso “ignorante” que diz que “os agricultores não têm semen-tes” [ou não têm sementes “boas”]; que para fornecer aos agricultores sementes “boas” é necessário que os governos ado-tem as estruturas comerciais cor-retas, em especial os sistemas de certificação de sementes, normas fracas em matéria de biossegu-rança e regimes de propriedade intelectual. A ênfase colocada sempre na superioridade das se-mentes “boas” tem um sentimen-to quase eugenicista: as sementes “boas” são variedades híbridas, transgênicas, certificadas ou me-lhoradas, e todas elas são as “úni-cas” seguras de dar altos rendi-mentos, a “única” maneira de resolver a crise alimentar atual; as

sementes “ruins” (ou sementes “imperfeitas”, como as chama-ram em Gana aspirantes a diri-gentes da indústria) são as semen-tes dos agricultores, sementes não certificadas, variedades campone-sas, tudo o que não passou pelo laboratório ou não obteve um selo governamental de aprova-ção. Dizer “precisamos aumentar a produção!” para enfrentar a crise alimentar mundial leva a desviar da profunda e imperativa discus-são política acerca do caos em que estamos e como chegamos a ele. Essa resposta só origina res-postas refletidas – que as maiores potências do mundo derramem bilhões de dólares na distribuição de sementes novas, “melhora-das”, a centenas de milhões de pequenos agricultores. Respostas que permitem que o capital priva-do, ainda que mediante o investi-mento puramente especulativo, aproprie-se do que se costumava chamar de desenvolvimento agrí-cola e o transforme em desenvol-vimento agroempresarial. A me-nos que se detenha essa invasão, os supostos beneficiários, os pe-quenos agricultores, acabarão sendo as vítimas. l

A�versão�completa,�com�a�indicação�das�fontes�pesquisadas,�pode�ser�

consultada�em�Seedling,�outubro�de�2008,�ou�em�www.grain.org

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As agroempresas transnacionais, as que mais lucraram com a crise alimentar e estão entre os principais causadores das mudanças climáticas, aproveitam a conjuntura

para promover agressivamente os cultivos e árvores transgênicos como solução para as crises. O espectro de argumentos, falsos, mas encampados por vários governos e institui-ções internacionais, inclui que os transgênicos aumentariam a produção; que os agrocom-bustíveis seriam mais eficientes; que farão cultivos resistentes aos efeitos das mudanças climáticas, e que as árvores transgênicas produzirão celulose (para agrocombustíveis ou papel) sem competir com alimentos. Mas esses argumentos são falsos e implicam novos perigos. O problema não é a produção de alimentos, mas sim o acesso injusto aos meios para produzi-los. Além disso, os transgênicos produzem menos do que as variedades con-vencionais. Vários estudos de organizações da sociedade civil e de pesquisadores indepen-dentes (Amigos da Terra, Charles Benbrook), ou de universidades e órgãos oficiais (Uni-versidade de Kansas, Universidade de Nebraska, Departamento de Agricultura dos Estados Unidos), mostram que a soja transgênica, principal cultivo transgênico plantado no mun-do, produz, em média, até 11% menos, e que o milho, o algodão e a canola – que junto com a soja representam 99% da produção mundial de transgênicos – produzem o mesmo ou menos. A semente transgênica é mais cara, e com a resistência que esses cultivos geram em ervas adventícias e insetos, requerem muito mais agrotóxicos.

A promoção de cultivos “resistentes ao clima”, segundo um informe do Grupo etc, es-conde que as empresas de transgênicos (Monsanto, Syngenta, DuPont, basf...) acumula-ram mais de 530 patentes, em trâmite ou aprovadas, sobre caracteres genéticos de cultivos, resistentes à seca, inundação, salinidade, etc., para produzir plantas transgênicas e mono-polizar o mercado. É um roubo da engenhosidade camponesa (esses caracteres dos cultivos foram desenvolvidos por camponeses e camponesas em todo o mundo) e procura impedir que, ante as mudanças climáticas, floresçam soluções locais, descentralizadas e não comer-ciais.

A promoção de novas gerações de agrocombustíveis (incluindo árvores) para produzir etanol celulósico continuará competindo por terra, água e nutrientes com os cultivos ali-mentares, porque é um negócio lucrativo e está sendo subsidiado – com dinheiro, no Norte, e área e mão de obra barata, no Sul. Mas será pior que a primeira geração: não é possível processar a celulose com certa eficiência energética sem usar microorganismos transgênicos ou, pior ainda, micróbios produzidos pela biologia sintética, construindo, artificialmente, do zero, parte ou todo o organismo, com riscos novos e imprevisíveis.

As árvores transgênicas virão aumentar os monocultivos devastadores, que criam deser-tos verdes, ressecam e esgotam os solos em poucos anos, deslocam agricultores, destroem fauna e flora locais. Além disso, provocariam a pior contaminação transgênica jamais vista, ao contaminar com pólen transgênico centenas de quilômetros, durante toda a vida da árvore.

As transnacionais “oferecem” que, para conter a contaminação e os novos riscos dessas árvores e cultivos manipulados, pode-se aplicar a tecnologia Terminator, que as torna estéreis. O Terminator nunca funcionará totalmente, como cientistas têm demonstrado. O problema da esterilidade se somará à contaminação e fará com que, todos os anos, seja necessário adquirir sementes novas das empresas.

O que realmente querem conseguir com os transgênicos é aprofundar a dependência com as transnacionais, invadindo espaços do mundo onde não conseguiram entrar (como a África e as áreas camponesas de todos os continentes) para destruir suas formas de vida e de sustento, passando assim a controlar as bases da alimentação mundial. l

*Pesquisadora�do�Grupo�etc

Fome e transgênicosSilvia�Ribeiro*

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Um dos inapeláveis dogmas dos tratados de livre comércio é que não se pode controlar e nem

condicionar o fluxo internacional de mercadorias. Assim, normalmente, não chama à atenção que os acordos firmados com os Estados Unidos e a União Européia incluam cláusulas como a seguinte:

Nenhuma das Partes poderá adotar ou manter qualquer proi-bição ou restrição à importação de qualquer mercadoria da outra Parte ou à exportação ou venda para exportação de qualquer mercadoria destinada ao território da outra Parte,” Tratado de Livre Comércio entre os Estados Unidos e a Amé-rica Central, Art. 3.8.

Os negociadores governamentais sempre souberam que a regra anterior inclui os alimentos. Ou seja, ao assinar os tratados de livre comércio, os governos sabem que renunciam à sua capacidade de controlar as exportações de alimentos. No caso dos tratados com os Estados Unidos, mantém-se uma pequena exceção no acordo da omc, aplicável somente em caso de “extrema escassez”, por um período limita-do e sujeito à aprovação dos Estados Unidos, que seguem pressionando para que a exceção seja cada vez mais restrita.

A União Européia (ue) vai mais além. Ainda que o acordo firmado com o Chile permita a este restringir as exportações em caso de escassez aguda de alimen-tos (sujeito à aprovação da ue), no acordo mais re-cente com os países do Caribe a exceção já não exis-te, como tampouco existe na proposta de acordo entre a União Européia e a Costa Rica.

Esse tipo de medidas foi proposto pela primeira vez pelos Estados Unidos ao iniciarem-se as negociações que levaram à formação da Organização Mundial do Comércio (omc). A proposta causou tal escânda-lo e indignação que os Estados Unidos, oficialmente, tiveram que retirá-la, mas não a esqueceram. A pro-posta foi retomada com força nas fracassadas nego-ciações da alca e durante as negociações de tratados bilaterais em todo o mundo.

Os governos latino-americanos submeteram-se ser-vilmente a essa exigência. Nenhum dos países signa-tários com a União Européia ou com os Estados Uni-dos exigiu uma exceção clara aos alimentos. O México, através do Grupo dos 20, tem inclusive pressionado para que a fraca e limitada exceção no acordo da omc torne-se ainda mais restringida.

Fluxo de alimentos e Tratados de Livre Comércio

Na primeira vez que os Estados Unidos apresenta-ram esse tipo de exigência, seus representantes fo-ram brutalmente francos: o texto que queriam ne-gociar dizia que não se podiam restringir as importações e as exportações de alimentos, nem se-quer em caso de guerra ou de fome. Quando as mo-bilizações sociais contra os tlc insistiram que esse tipo de cláusula pode ser utilizado como arma de guerra e/ou de extorsão, os governos acusaram os movimentos sociais de paranóia.

A crise alimentar atual mostra que não foi para-nóia, mas sim capacidade para ver que a avidez de lucro do capital não tem limites. O concreto é que os governos que restringirem a exportação de ali-mentos, para assegurar níveis mínimos à sua popu-lação, podem ser levados a litígio comercial, caso seus países tenham firmado acordos de livre comér-cio (como é o caso do Haiti e da Malásia), e é mui-to provável que sejamos testemunhas do absurdo de que um país que tente proteger o alimento de sua população seja submetido a sanções comerciais ou

obrigado a pagar multas multimilionárias.Um dos efeitos mais conhecidos dos tratados de

livre comércio é a ruína dos sistemas agrícolas e alimentares locais, que não podem competir com as importações de alimentos. A impossibilidade de controlar as exportações é apenas o outro lado da moeda, e seu efeito é que à ruína da agricultura lo-cal soma-se a impossibilidade de defender-se de seus efeitos.

Salta aos olhos, uma vez mais, que a crise alimen-tar não é um acidente de percurso do capitalismo globalizado, mas sim uma situação construída por ele, e que os tratados de livre comércio são um ins-trumento fundamental para isso. l

Outubro�de�2008

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Uma panorâmica e muitas vistas

No futuro será imprescindível

produzir alimentos próprios

Com a finalidade de entenderas alternativas reais que têm os povos ante a crise alimentar que se instalano mundo, reunimos experiências,

vozes, reflexões, técnicas e propostasde organizações, comunidades,

pesquisadores e pessoas que têm colocado sua atenção em novas formas

de entender soluções que funcionamhá séculos para núcleos camponeses (esses para os quais cultivar a terra

não é um trabalho, mas sim um modo pleno de vida e cuidado do mundo), soluções que talvez resultem comoas únicas capazes de nos garantir

um futuro como humanidade.

A produção camponesa é imprescindível para ali-mentar o mundo. A agricultura camponesa susten-tável com sua soberania alimentar consome até oi-tenta vezes menos energia do que a agricultura industrial.

A soberania alimentar implica dar primazia ao em-prego dos recursos locais para produzir alimentos, minimizando a quantidade e o transporte de maté-rias-primas importadas para a produção. A comida assim produzida se consome localmente. Não é lógi-co comer na Europa aspargos provenientes do Alti-plano, ou vagens frescas procedentes do Quênia.

Na história da agricultura, os camponeses e cam-ponesas e os povos que habitam os centros rurais obtiveram de suas terras agrícolas a energia para atender as suas necessidades cotidianas. As famílias camponesas estão usando óleo de coco ou de giras-sol, biogás, lenha, vento ou água para gerar eletrici-dade para seu uso local. Esses métodos são sustentá-

veis e integrados dentro do ciclo de produção de alimentos em suas terras.

É imperativo desenhar e adotar atitudes responsá-veis no consumo de alimentos e ajustar nosso modo de nos alimentar, sabendo que o modelo industrial de produção e consumo é destrutivo, enquanto o modelo baseado na produção camponesa utiliza práticas energéticas responsáveis.

O campesinato de todo o mundo tem experimenta-do os efeitos devastadores das políticas de livre co-mércio e da omc em suas vidas e na produção local de alimentos. Por isso, defendemos o direito de cada país de proteger seus mercados locais, de apoiar a agricultura familiar sustentável e de comercializar os alimentos no lugar onde são produzidos.

Não entendemos como o G8 pretende solucionar a crise alimentar com mais livre comércio, se a libera-lização da agricultura e dos mercados de alimentos é o que está nos levando à crise atual. Nossa luta é contra o poder das grandes empresas transnacionais e os sistemas políticos que as apóiam. A crise energé-tica não deveria ser vista como um problema isola-do, mas sim como parte de toda a crise do atual mo-delo de desenvolvimento, onde os benefícios têm prioridade sobre as pessoas.

Apoiamos uma agricultura de pequena escala, di-versificada, centrada nas pessoas, nos mercados lo-cais e modos de vida saudáveis, usando menos ener-gia e com menor dependência de recursos externos. As famílias camponesas sustentáveis cumprem a missão fundamental da agricultura: alimentar as pessoas. Para nos proteger da instabilidade dos mer-cados mundiais, a população deve consumir comida local, de mercados locais. Não necessitamos de mais comida importada. Os camponeses e pequenos pro-dutores de alimentos produzimos a maior parte dos alimentos do planeta. Via Campesina, “El campesi-nado produce alimentos, los agrocombustibles ge-neran hambre y pobreza” , julho de 2008.

Da milpa [a roça] se vê o mundo inteiro. A maior ameaça ao milho nativo é que já é pouco cultivado. Semear milho e outros cultivos soberanos nos per-mite uma brecha para não pedir permissão a nin-guém para SER, impulsionando então uma resistên-cia comunitária – real, política, social, econômica, de saberes, dignidade e justiça – contra o capitalis-mo e seus megaprojetos.

Alguém que perde a semente tem muito mais riscos de necessitar migrar do que quem ainda a tem. Há que se manter boa semente para si mesmo, para a comunidade, para a terra a que se tem acesso. Uma semente que responda às necessidades e gostos de cada povo. Se os gostos são uniformizados ou as ne-

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cessidades niveladas, se perde a qualidade das se-mentes: sua diversidade.

Um povo que não tem diversidade é um povo que se torna dependente. As novas leis querem obrigar os camponeses, os indígenas, a se tornarem dependen-tes. Mas temos que nos perguntar o que necessita-mos para cuidar, para conservar a vida, com permis-são ou sem permissão da lei.

A criação do milho ser coletiva é o que tem manti-do a sua riqueza. Não somente trocamos sementes, mas também saberes. Existem sementes diversas porque há saberes diversos. O conhecimento, o sabe-mos aos pedaços, e somente entre muitos ele se torna um grande saber. A riqueza de variedades não acaba nunca. Cada pessoa, família ou comunidade pela qual passa uma variedade lhe agrega ou altera algu-ma coisa. Não há que se esquecer, jamais, que TO-DOS sabemos. Quando aceitamos que alguém nos trate como ignorantes, que não sabemos, que não temos idéias, estamos aceitando que se percam sabe-res sobre as sementes.

É indispensável tentar, o mais possível, sair fora da economia do dinheiro, dos mercados. Produzir para vender e comprar para comer nos faz perder a sobe-rania alimentar, a soberania do trabalho dos povos do milho.

Um povo que compra semente e que compra comi-da é um povo que não pode mandar em si mesmo. Temos que nos orgulhar de semear milho para que

coma a família, a comunidade, fortalecendo os sa-beres dos mais velhos e as novas técnicas integrais que concordam com esses saberes e os complemen-tam. É importante que tudo o que as comunidades produzam seja consumido, para que a comunidade entenda que podemos produzir nosso próprio sus-tento. Casifop, El maíz y la vida en la siembra, tes-timonios indígenas del maíz y la autonomía, Méxi-co, 2005.

As guardiãs das sementes. Na distribuição de pa-péis nas famílias camponesas, a mulher é quem pre-serva a semente orgânica, originária, nativa, crioula, como a queiramos chamar. É ela que, todos os anos, na colheita, se encarrega de guardar, limpar e prote-ger para o próximo plantio. Então, de alguma ma-neira, sempre dizemos que a mulher é guardiã dessa semente originária, sã e orgânica. Com mais razão agora, nesta situação, da produção em nível mun-dial, a mulher tem que trabalhar fortemente essa função de guardiã, que cada vez se torna mais difícil, porque nossas sementes sãs estão sendo contamina-das pelas transgênicas, que se semeiam por toda par-te. É todo um processo de proteção e intercâmbio. Inclusive, nesses encontros, também ocorrem situa-ções de trocas de sementes, de intercâmbio de sabe-res, sobre a produção.

Este evento (”Mulheres do campo em luta pela so-berania alimentar. Construindo propostas frente às

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mudanças climáticas”) é parte de um processo de formação onde se busca particularmente a partici-pação e o protagonismo das companheiras campo-nesas, um envolvimento nas temáticas fortes que hoje estão afetando nossas famílias, como são as mudanças climáticas, as políticas dos Estados e re-forçar nossa luta pela soberania alimentar. María de los Ángeles, MoCaSe Vía Campesina, entrevista com a Agência de Notícias BiodiversidadLa.

Somos os primeiros povoadores filhos e cultiva-dores de água deste continente, e para os povos que o habitamos não há espécie silvestre, nem espa-ço baldio, porque milenarmente temos sido conhe-cedores e sabedores na convivência com a natureza, por isso somos autoridade ambiental... O saqueio e a apropriação da riqueza biológica de nossas mon-tanhas e florestas, das águas, dos minerais e dos sa-beres, orientam-se pelo controle sobre o território – o espaço e seus povoadores -, suplantando nossa autoridade, autonomia e autodeterminação e des-truindo nossas culturas milenares.

É dever do povo misak e de suas autoridades cui-

dar, proteger e conservar todo o nosso território, que é sagrado - incluindo as pradarias, as montanhas, as florestas e áreas úmidas grandes ou pequenas, lagos e nascentes, fontes e lençóis produtores de água, as bacias hidrográficas, as grandes e pequenas rochas onde estão nossos deuses e os espíritos que nos pro-tegem e nos dão vida, e as zonas onde habitamos e produzimos nosso sustento -, para que continue sen-do um patrimônio coletivo sob nossa responsabilida-de e cuidado.

Todas as terras do território misak serão destinadas prioritariamente a suprir as necessidades do ciclo de vida e identidade misak. Aquelas aptas para a produ-ção deverão ser destinadas, em primeiro lugar, a in-crementar e melhorar a produção de alimentos sau-dáveis para consumo, com a finalidade de melhorar a nutrição, a saúde e o bem estar geral dos misak. Os cultivos comerciais e industriais não poderão deslo-car a produção de nossos alimentos. Cabildo de Guambia e a Autoridade Ancestral do Povo Misak, Misak Lei pela Defesa do Direito Maior, Patrimônio do Povo Misak.

Cultivar, guardar, cuidar e trocar livremente se-mentes próprias, nativas, que não temos por que certificar nem registrar ante ninguém, porque as te-mos desde antes que existisse o Estado mexicano, é um direito inalienável que ninguém irá nos tirar e que seguiremos exercendo de maneira autônoma. Essas sementes são a esperança do futuro de todos.

Estamos contra os projetos biopiratas que a Mon-santo faz com organizações agrícolas e acadêmicas para roubar milhos nativos e saberes através do Projeto Mestre de Milhos Mexicanos...

Opomo-nos à certificação e ao registro de semen-tes e os denunciamos como mais uma forma de pri-vatizar as sementes para controlar os povos.

Rechaçamos a promoção, a difusão, a experimen-tação, o cultivo, a comercialização e o consumo das sementes transgênicas. Essas sementes atentam con-tra o ambiente e põem em perigo a saúde e a sobe-rania alimentar de milhões de mexicanos.

Exigimos o respeito ao direito à soberania alimen-tar que parte de nossa autonomia, costumes, cultu-ras, tradições e práticas agrícolas.

Exigimos que se detenha a criminalização da forma de vida camponesa que é levada a cabo através da legislação que protege os interesses empresariais.

Continuaremos defendendo a autonomia de nossos povos, a comunidade, as assembléias e o seu autogo-verno, cuja base fundamental é o território e o cultivo do milho nativo como parte de nossa vida. Rede em Defesa do Milho Nativo, México df, 10 de julho de 2008.

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O que estamos fazendo tem a ver com um grito, com um gesto festivo, de festa e dor, de luta. Nosso objetivo é lançar uma mensagem de alerta, de risco, de grave risco, que estamos tendo pelo monocultivo da soja e por um manejo pretensamente liberal, de mercado livre, em mãos de uns poucos, que depois não é “livre”. Não somos livres, porque não somos livres para manejar os alimentos dos argentinos, que são manejados por 8 grandes multinacionais e seus cúmplices, e seus subordinados que são os pe-quenos, médios e grandes empresários. De produto-res não têm nada, produtores são os que sobem no trator e trabalham com ele.

Sou dessa experiência, muito indígena, andina e amazônica, de que “o que se quer esconder, cedo ou tarde, aparece”. Então, o grito que essa gente deu sobre as retenções da soja, de que “não demonize-mos a soja”, tarde ou cedo vai decantar, vai acalmar o “polvorosal” que suas arrogantes e virulentas in-tervenções deixaram, e as pessoas vão refletir. E o fato de que eles se mostraram tais como são, assim, com essa arrogância de fechar estradas, de “serem ilegais”, de que “não lhes podem reprimir nem to-car”, vai se tornar um bumerangue. Não se deve subestimar o povo argentino, por nada. Não se deve subestimar nenhum povo da história humana.

Pouco a pouco, e tarde ou cedo se irá fazer apare-cer na mesa argentina o debate de fundo: “a soja e o monocultivo”, mais aprofundadamente “os agro-negócios e a agroexportação”. Queremos ser um país na divisão internacional do capitalismo? Um país meramente exportador de matéria-prima para o benefício das indústrias dos 8 países mais podero-sos da terra? Ou queremos ser um país soberano, independente. Ángel Strapazzón, MoCaSe, Via Cam-pesina, entrevistado pela Agência de Notícias Biodi-versidadLa

Cultivar na cidade mesmo que seja uma pequena parte de nossos próprios alimentos é, como pro-pôs Wendell Berry há trinta anos, uma dessas solu-ções que impulsionam de imediato mais soluções, ao invés de provocar mais problemas (como inevita-velmente provocam as “soluções” do etanol ou a energia nuclear). Não é somente seqüestro de carbo-no: cultivar, ainda que seja um tanto de nossa comi-da, impulsiona muitos e valiosos hábitos. Podemos deixar de depender dos especialistas no cuidado com nós mesmos. Podemos descobrir que nosso corpo continua sendo útil para algo, e que esse algo é nosso próprio sustento. Se os especialistas estão certos, se o petróleo e o tempo se esgotam, em breve essas habilidades e hábitos serão cruciais. E é muito provável que alimentos nos sejam muito necessá-

rios. As hortas podem proporcioná-los? Bem, du-rante a Segunda Guerra Mundial, as hortas familia-res (chamadas de a “vitória”, porque pareciam cruciais para obtê-la) proporcionaram 40% das hortaliças que os norte-americanos comiam.

Além do mais, começaríamos a estreitar a brecha entre o que pensamos e o que fazemos; tecer nova-mente em uma só identidade nossas facetas de con-sumidores, produtores e cidadãos. É provável que isso nos leve a empreender novas relações com os vizinhos, porque a idéia é produzir, presentear, tro-car, emprestar ferramentas e pedi-las empresta-das...

Grandes coisas ocorrem quando alguém cultiva a sua própria horta, algumas relacionadas com as mudanças climáticas, outras indiretas. Esquecemos que cultivar nossa comida obedece à tecnologia so-lar original: mediante a fotossíntese, produzem-se calorias. Há alguns anos, a mentalidade da “energia barata” descobriu que se podia produzir “mais co-mida com menos esforço” substituindo a luz do sol por fertilizantes e agrotóxicos baseados em combus-tíveis fósseis, e o resultado foi que a caloria típica de energia alimentícia requer umas 10 calorias de ener-gia fóssil. Do jeito que deixamos que outros nos ali-mentem, a conta soma pelo menos uma quinta par-te dos gases de efeito estufa. Michael Pollan, “Straight to the Source”, The New York Times, 20 de abril de 2008.

A terra sempre é jardim, farmácia, área de caça ou de pastoreio para alguém (ou todas essas coisas juntas). Se parece “subutilizada” é, talvez, devido à sua fragilidade ou ao papel que desempenha na pro-teção dos ecossistemas. Aqueles que propõem um uso mais intensivo ou diferente da terra em questão podem prejudicar os modos de vida e a sobrevivên-cia de outros.

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Há brasileiros que insistem em que se podem sele-cionar áreas marginais da Amazônia para transfor-má-las em áreas de produção de cana-de-açúcar para etanol (mas nada dizem da expansão da soja em áreas ecologicamente sensíveis como o cerrado e a caatinga). Sem dúvida, comunidades indígenas, como os ka’apor e os tembe, no Brasil, os chacoba, na Bolívia, e os panare, na Venezuela, usam de 20 a 50% das espécies de árvores para se alimentar, e outros 10 a 30% para medicamentos. Essa realida-de da Amazônia repete-se em florestas, savanas e planícies semiáridas em todo o mundo. Os migran-tes, do México à Indonésia, buscam estabelecer-se para plantar milho ou arroz, ou criar gado, mas também buscam calorias adicionais e nutrientes vi-tais nas florestas circundantes. É comum que essas famílias levem consigo espécies muito valorizadas para adaptá-las às novas terras, mas, de qualquer modo, a floresta é sua fonte direta de alimentos e medicamentos, é seu reservatório genético para me-lhorar os parentes domesticados de seus cultivos. Mesmo famílias camponesas bem estabelecidas em lugares como a Suazilândia e a Tailândia vêem as florestas que as rodeiam como importante fonte de alimentos depois de seu cultivo principal. Como exatamente as mulheres e as crianças consomem re-gularmente alimentos não cultivados, um estudo entre adultos da África Oriental e do Sul mostrou que a chamada “colheita oculta” de alimentos “sil-vestres” é vital à segurança alimentar familiar. As florestas e savanas produzem vitaminas e minerais essenciais que não se podem cultivar nem comprar. O uso dessa colheita oculta varia a cada estação. Há famílias que durante semanas dependem quase que totalmente dos alimentos silvestres que obtêm du-rante os meses ou semanas anteriores à colheita. Os alimentos coletados das “terras marginais” aportam de um terço à metade das necessidades nutricionais dos mais pobres da população rural. Em tempos de fome ou altos preços da comida, o acesso a essas terras marginais é a diferença entre a vida e a morte. Pat Mooney, Ciao fao, outra cúpula para revisar os erros de sempre, comunicado do Grupo etc, junho de 2008

Uma forma de romper a distância entre produtores e os chamados consumidores pode se achar nos ar-redores da cidade de Genebra, Suíça. Ali funcionam os Jardins de Cocagne, que são uma cooperativa ge-nebrina de produção e de consumo de hortaliças de cultivo orgânico. Cada um dos sócios paga uma es-pécie de contribuição, em dinheiro (de acordo com seu salário) ou em trabalho, para conseguir que, a cada semana, se produza e se distribua uma ampla

variedade de hortaliças. A diferença fundamental com quase todas as associações entre camponeses e consumidores é que, aqui, os “consumidores”, além de terem uma relação direta com os horticultores, não pagam um preço pelo que recebem, porque isso implicaria em deixar o risco aos camponeses. Ao contrário, o que fazem é contribuir com o fundo que permite a produção, assumindo conjuntamente com os camponeses os riscos e as bonanças de uma boa ou má temporada, através de decisões compartilha-

das e igualitárias. Pareceria pouca coisa, mas essa diferença, e a possibilidade de contribuir com traba-lho para a produção, são um dos experimentos mais interessantes em autogestão de plantio, que apaga a diferença entre “produtores e consumidores” e, me-lhor ainda, abre uma espécie de formação perma-nente de mais e mais pessoas nas atividades próprias do plantio e da colheita.

Por sua vez, as pessoas dos Jardins de Cocagne “defendem a idéia da soberania alimentar, de uma agricultura viável, sã, ecológica e de proximidade”. Evidentemente, os Jardins vinculam-se com o movi-mento camponês, na Suíça, na Europa e em nível mundial, e contam com projetos de extensão, em comunidades pobres da Europa e na África. A idéia central, além da visão libertária, é a análise profun-da de que a cidade e o campo “se retroalimentam”, se “reencontram”. Les Jardins de Cocagne, www.cocagne.ch

Amanhece em El Colorado, povoado de uns 13 mil habitantes, do interior de Formosa, província do in-

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terior argentino. É sábado, bem cedo, mas já se vê gente na praça; esperam a chegada dos quase cem “pequenos” produtores da “Associação de Feiran-tes de El Colorado” que trazem seus produtos para vender ou trocar: abóboras, feijões, milho, verduras em geral, frutas, mandioca, batata, leite, queijo, ri-cota, ovos, cabritos, porcos, perus, galinhas, etc. Antes do meio da manhã, nenhuma das quase 30 bancas da feira tem produtos, vendeu-se tudo. As-sim ocorreu todas as semanas enquanto durou o pico dos fechamentos das estradas e o resultante de-sabastecimento alimentar local, provocado pela “Paralização dos fazendeiros”.

Essa iniciativa havia surgido no calor da crise de 2001-2002. Nos primeiros anos, soube ser uma al-ternativa frente aos problemas da população urbana para ter acesso aos alimentos. Na feira, encontra-vam-se produtos que tinham como preço máximo uns 20% menos do que no comércio. Pouco a pou-co, o comércio do mercado formal se recompôs como a principal forma de gastos em alimentos na localidade, oferecendo produtos provenientes dos complexos agroalimentares controlados por grandes empresas agroindustriais. Isso fez com que a feira fosse perdendo seu ímpeto inicial e centralidade.

Tanto na sua origem como em seu atual e breve reverdecer, a feira dos pequenos produtores, dos camponeses, aparece como alternativa aos circuitos dominantes. Quando o “sistema” não responde, afloram, como “ruínas emergentes”, essas estraté-gias “de baixo”, forjadas pelos mesmos camponeses, baseadas no cara a cara com os consumidores e vizi-nhos, à margem das cadeias concentradas e centrali-zadas de produção, de processamento e de distribui-ção de alimentos.

Não é um caso isolado. No Chaco, Misiones, Cor-rientes e Santiago del Estero, existem experiências desse tipo, protagozinadas principalmente por ex-produtores de algodão ou fumo, reconvertidos. É provável que ali, da mesma forma que em El Colora-do, as crises ou momentos de suspensão da provisão alimentar via cadeias agroindustriais tenham sido oportunidades para a emergência e a expansão da-quelas cadeias agroalimentares “alternativas” ou “camponesas”. Diego Domínguez, “Ruínas emer-gentes”, Página 12, 19 de setembro de 2008

Localizada atualmente às margens da economia mundial, há no mundo gente que quando desafia, na teoria e na prática, os pressupostos econômicos, encontra apoio nas tradições de sociedades e de cul-turas antigas. Em todo o mundo há experiências de comunidades que não se encaixam nas classificações distorcidas pelos óculos dos economistas.

Essa gente vê sua resistência como um modo de reconstituir criativamente suas formas básicas de interação social, a fim de se libertar das correntes econômicas. Cria assim, em suas vizinhanças, povo-ados e bairros, novos âmbitos de comunidade, que lhe permitem viver em seus próprios termos.

São os herdeiros de comunidades e, inclusive, de culturas completas que foram destruídas pela forma econômica industrial de interação social. Depois da extinção de seus regimes de subsistência, trataram de adotar diversas formas de adaptação à forma in-dustrial. O não a terem conseguido, foi uma precon-dição para reinventar seus âmbitos, com o estímulo adicional da crise de desenvolvimento.

Depois de igualar sua comida com as atividades técnicas de produção e consumo, vinculadas à inter-mediação do mercado ou do Estado, careciam de ganhos suficientes e sofriam escassez de alimentos. Agora, estão regenerando e enriquecendo suas rela-ções entre si e com o meio, nutrindo novamente sua vida e suas terras. No geral, conseguem lidar bem com as carências que ainda lhes afetam, às vezes severamente – em conseqüência do tempo e esforço exigido para remediar os danos causados pelos mé-todos desenvolvimentistas. Não é fácil fugir das co-lheitas comerciais, ou livrar-se do vício do crédito,

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ou dos insumos industriais: mas o cultivo intercala-do, ao qual muitos começam a regressar, regenera a terra e a cultura e com o tempo melhora a nutrição.

Apesar da economia, as pessoas comuns, à margem, têm sido capazes de manter viva outra lógica, outro conjunto de regras. Em contraste com a economia, essa lógica se encontra inserida no tecido social. Re-sumo e fragmentos de “Mitos e realidades do desen-volvimento sustentável”, de Gustavo Esteva, junho de 1996.

Uma história recente da generosidade e visão in-dígenas na conservação e no fortalecimento das sementes ancestrais é a de Caracol Zapatista de Oventic, em Chiapas, que, como outros povos do México, revitaliza seu milho nativo ao trocar se-mentes, de maneira mais consciente, por seus canais de confiança. O novo é que agora os camponeses tsotsiles da zona, agrupados em seu projeto de au-tonomia, decidiram começar a enviar sementes za-patistas para onde quer que sejam solicitadas. Ago-ra, na África, enquanto as grandes fundações e os governos e organismos como a fao procuram esta-belecer mecanismos para introduzir pacotes tecno-lógicos e sementes de laboratório, híbridas e trans-gênicas, os zapatistas já estão enviando sementes ancestrais nativas, livres de contaminação transgê-nica, a populações no Mali e no Quênia. Para algu-mas das comunidades que as receberam no Mali, as sementes eram tão boas que, ao invés de consumir a primeira colheita depois de completar seu ciclo, separaram uma boa quantidade, que já começa a ser distribuída a outros locais na África. Mais infor-mações em [email protected]

Há uma relação inversa entre o tamanho de uma unidade de produção e a quantidade de cultivos produzidos por hectare. Quanto menores elas são, maior é o rendimento. Isso foi descoberto pelo eco-nomista Amartya Sen, em 1962, e dezenas de estu-dos posteriores o confirmam.

Em alguns casos, a diferença é enorme. Um estudo recente de agricultura na Turquia encontrou que as propriedades de menos de um hectare são vinte vezes mais produtivas que as de mais de 10 hectares*. As observações de Sen foram comprovadas na Índia, Paquistão, Nepal, Malásia, Tailândia, Java, Filipi-nas, Brasil, Colômbia e Paraguai. E parecem susten-tar-se em toda parte. A descoberta surpreenderá qualquer indústria, porque chegamos ao ponto de

associar eficiência com escala. Na agricultura, essa controvérsia faz saltar chispas, porque na visão da indústria ela parece muito estranha, já que o comum é que os pequenos produtores não contem com ma-quinaria própria, tenham menos capital ou acesso a créditos e não estejam por dentro das técnicas mais recentes.

Alguns pesquisadores argumentam que essa rela-ção inversa entre tamanho e rendimento é o resulta-do de um artifício estatístico: os solos férteis susten-tam maiores populações do que as terras desgastadas, pelo que os tamanhos aparentemente pequenos das unidades produtivas seriam resultantes da produti-vidade alta. Estudos posteriores mostraram que tal relação inversa mantém-se em diversas terras fér-teis. Ainda mais, funciona em países como o Brasil, onde as grandes propriedades agrícolas são as que se apoderaram das melhores terras.

A explicação mais plausível é que os pequenos agricultores investem mais trabalho por hectare do que os grandes agricultores. Essa força de trabalho consiste, em grande parte, de suas próprias famílias, o que significa que seus custos trabalhistas são me-nores que nas grandes propriedades, com melhor qualidade de trabalho. Com mais trabalho, os cam-poneses podem cultivar sua terra mais intensamen-te: passam mais tempo terraciando ou construindo sistemas de irrigação; plantam logo em seguida à colheita; plantam muitos cultivos diferentes no mes-mo campo.

A Revolução Verde propunha o contrário: quanto maiores as propriedades, mais acesso a crédito te-riam, e poderiam investir em novas variedades e ex-pandir seus rendimentos. Mas, conforme essas no-vas variedades se disseminaram entre os pequenos agricultores, viu-se que não era bem isso.

Se os governos fossem sérios quanto a alimentar o mundo, deveriam acabar com as grandes proprieda-des e redistribuí-las entre os pobres, através de uma reforma agrária séria, e concentrar seus investimen-tos e seus financiamentos no apoio às pequenas pro-priedades. Há muitas razões para defender os pe-quenos agricultores dos países pobres. Os milagres econômicos da Coréia do Sul, Taiwan e Japão surgi-ram de seus programas de reforma agrária. O mes-mo ocorre na China, apesar de o seu despontar ter-se atrasado 40 anos devido à coletivização.

O crescimento baseado nas pequenas unidades de produção tende a ser mais eqüitativo do que o cres-cimento que surge das indústrias alimentadas com muito capital. O impacto ecológico das pequenas propriedades é muito menor, apesar de a terra ser utilizada com mais intensidade. Onde as pequenas propriedades são absorvidas pelas grandes empresas,

*�Fatma�Gül�Ünal,�outubro�de�2006.�Small Is Beautiful: Evidence Of Inverse Size Yield Relationship In Rural Turkey.�Policy�Innovations.http://www.policyinnovations.org/ideas/policy_library/data/01382)

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os desalojados movem-se para outras terras e apenas conseguem sobreviver. Uma vez segui uns campone-ses expulsos do Maranhão, no Brasil, e fui testemu-nha de como despedaçaram a terra dos yanomami a mais de 3 mil quilômetros de distância.

Mas o preconceito contra pequenos agricultores é inexorável. Dá margem a um dos mais estranhos in-sultos em inglês: quando se chama alguém de campo-nês, se está acusando-o de autosuficiente e produtivo. Os camponeses são igualmente odiados pelos capita-listas e pelos comunistas. Ambos sempre tentaram se apoderar de suas terras e têm a idéia fixa de menos-prezá-los e demonizá-los. Em seu perfil da Turquia, o país onde os camponeses são 20 vezes mais produti-vos do que os grandes proprietários, a fao diz que “como resultado de ter muitas propriedades peque-nas, os rendimentos agrícolas... mantêm-se baixos”. A ocde afirma que “é indispensável frear a fragmen-tação da terra” na Turquia “e consolidar proprieda-des maiores para elevar a produtividade agrícola”*. Nem a fao e nem a ocde fornecem qualquer prova. George Monbiot, “Small is Bountiful”, The Guar-dian, 10 de junho de 2008, www.monbiot.com

A Rede Ecovida de Agroecologia, formada em 1998, compõe-se de aproximadamente 3.000 famí-lias de agricultores(as) familiares, reunidas em cerca de 200 grupos, além de 35 ongs e 10 cooperativas de consumidores, e tem por objetivo organizar, for-talecer e consolidar a agricultura familiar ecológica em 24 Núcleos Regionais, abrangendo em torno de 170 municípios, nos estados do Paraná, Santa Cata-rina e Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil. Os Nú-cleos Regionais promovem a capacitação de seus membros, a troca de informações e de alimentos, e asseguram a credibilidade do produto ecológico através do Sistema Participativo de Garantia (spg), que envolve ativamente agricultores(as) e consumi-dores.

Como a comercialização tem sido um gargalo para a expansão da proposta, pelas dificuldades de se manter o mercado local abastecido durante todo o ano, com diversidade, quantidade e qualidade de produtos, idealizou-se uma alternativa a partir do trabalho coletivo da Rede Ecovida. Desde 2006, funciona o Circuito Sul de Circulação de Alimen-tos.

O circuito funciona com base em sete Estações-núcleos e dez Subestações. Há reuniões bimestrais para discutir as regras, os planos operacionais e o monitoramento das atividades, se negociam os pre-ços e se revisam as contas das transações realizadas

entre as organizações no período anterior.Há características que diferenciam o Circuito em

relação aos mecanismos convencionais de acesso aos mercados. Para se integrar ao circuito, é necessário que os alimentos ofertados sejam ecológicos e que estejam certificados pelo Sistema Participativo da Ecovida. A economia dessa agricultura familiar é concebida como o somatório do abastecimento ali-mentar das próprias famílias mais os produtos troca-dos nos mercados, privilegiando a segurança alimen-tar de produtores e de consumidores, com critérios de justiça e de transparência.

As organizações da Rede que vendem também se comprometem a comprar produtos de outras organi-zações do circuito, permitindo a ampliação da oferta de alimentos nos diferentes mercados (feiras, entre-gas em domicílio, pontos de venda, auto-abasteci-mento das famílias e grupos da própria Ecovida, mercados institucionais e outros). Isso favorece a re-dução dos custos com frete, já que os caminhões sempre viajam carregados entre as Estações-núcleos. A circulação de dinheiro é menor, já que em muitos casos os produtos são simplesmente trocados. Natal João Magnanti, Centro Vianei de Educação Popular, Santa Catarina http://www.ecovida.org.br/ l

*��http://www.new-agri.co.uk/00-3/countryp.html,�e�oecd�Economic�Surveys:�Turkey,�volume�2006�número,�15,�p.�186

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Brasil: mais gado do que gente. Com uma população estimada oficialmente em 186 milhões de habitantes, o terri-tório brasileiro abriga um rebanho bo-vino ainda mais numeroso. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-tística – ibge, este rebanho totalizava 206 milhões de cabeças, ao final de 2007. O Brasil é o segundo do ranking mundial nesse tipo de rebanho, suplan-tado apenas pela Índia. Dado que a Ín-dia não se utiliza de seu gado bovino para fins comerciais, tendo em vista questões religiosas, o rebanho bovino brasileiro é considerado o maior reba-nho comercial do mundo. Atualmente, as regiões Norte e Centro-Oeste, onde

Produção mundial de carne bovina (em milhares de toneladas)

País 2004 2005 2006 2007(1)

Estados Unidos 11 261 11 317 11 897 12 168

Brasil 7 975 8 592 8 850 9 120

União Européia 8 007 7 770 7 880 7 880

China 6 759 7 115 7 500 7 910

Argentina 3 130 3 200 3 100 3 150

Índia(2) 2 130 2 250 2 375 2 500

México 2 099 2 125 2 175 2 200

Austrália 2 081 2 102 2 150 2 290

Rússia 1 590 1 525 1 460 1 380

Canadá 1 496 1 523 1 375 1 335

Nova Zelândia 720 705 650 690

Uruguai 544 600 635 650

Outros 3 535 3 550 3 464 3 444

Total 51 327 52 374 53 511 54 717

Fonte: usda(1) Estimativa(2) Inclui carne de búfalo

O Brasil e seus bois multinacionais

Sergio�Schlesinger

O mundo dos negócios, acostumado às aquisições de empresas da América

Latina por grandes multinacionais, foi

surpreendido pela recente investida do frigorífico

brasileiro jbs-Friboi, além de dois outros de menor porte (Marfrig e Bertin), sobre diversas empresas

desse segmento em países como Estados Unidos, Austrália, Argentina e

Uruguai. Quem éo grupo jbs? Quem sãoseus proprietários? Que estratégias e interesses

estão por trás desse comportamento? Essas são

algumas das perguntasque estão hoje no ar, e

sobre as quais buscamos aqui lançar alguma luz.

Mais da metade do mercado mundial de carne bovina, que movimenta 7 milhões de toneladas por ano entre exportações e

importações, está hoje nas mãos de empresas

brasileiras.

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se situam a Floresta Amazônica e o Cerrado, são as que apresentam as maiores taxas de expansão do rebanho bovino no Brasil.

Segundo Smeraldi e May (2008), a pecuária brasileira vem registrando um crescimento espetacular. De 1990 a 2007, a produção de carne bovina mais que dobrou, passando de 4,1 para mais de 9 milhões de toneladas, com ritmo de crescimento bem superior ao de sua população e de seu consumo. Essa combinação de fatores permitiu que o Brasil se tornasse o maior exportador mundial, ultrapassando a Austrália, a partir de 2004.

A investida dos frigoríficos brasilei-ros no exterior. Mais da metade do mercado mundial de carne bovina, que movimenta 7 milhões de toneladas por ano entre exportações e importações, está hoje nas mãos de empresas brasi-leiras. O que explica o fato é o movi-mento de internacionalização do setor, iniciado em 2005, que ganhou força em 2007, quando frigoríficos como jbs-Friboi, Bertin e Marfrig fizeram grandes aquisições no exterior, e pros-segue em 2008.

De acordo com Pratini de Moraes, presidente da Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carnes (abiec), as empresas brasileiras instala-das no território nacional e no exterior têm um potencial de exportação de 52% dessas 7 milhões de toneladas co-mercializadas anualmente nos merca-dos globais. Além disso, detêm 10% do mercado mundial de carne bovina, o que inclui o volume comercializado no âmbito doméstico dos diversos países. O Brasil já respondia, em 2007, por 33% das exportações mundiais de car-ne bovina, seguido de longe pela Aus-trália, que tinha 19% das vendas exter-nas.1

A jbs-Friboi. Maior produtora e expor-tadora mundial de carne bovina, a jbs-Friboi é uma empresa relativamente nova, que começou com apenas um açougue, em 1953. Entre 1970 e 2001, a jbs adquiriu plantas de abate e unida-

des produtoras de carne industrializa-da, assim como investiu no aumento da capacidade produtiva das plantas pree-xistentes.2 Em 1997, inicia as exporta-ções de carne bovina não processada. Em 2006, a capacidade de abate já era de 19,9 mil cabeças/dia, e a Compa-nhia passou a operar um total de 21 plantas no Brasil e 5 na Argentina.

Em janeiro de 2007, adquiriu 100% das ações da norte-americana sb Hol-dings, empresa do grupo Smithfield Beef, que controla as distribuidoras de carnes nos Estados Unidos, e suas sub-sidiárias, Tupman Thurlow, Astro Sales International e Austral Foods, uma das maiores distribuidoras de produtos in-dustrializados de carne bovina no mer-cado norte-americano e detentora das marcas “Hereford”, “Mancopride” e “Rip n’ Ready”. Essas empresas pro-porcionam à jbs acesso direto ao mer-cado norte-americano de carne indus-trializada. Também em janeiro de 2007, a jbs adquiriu uma planta de abate em Berazategui, através da Swift Armour, Buenos Aires, com capacidade de abate de aproximadamente 1.000 cabeças de gado por dia.

Em julho do mesmo ano, adquire 100% da companhia americana Swift Foods & Company, por US$ 1,4 bi-lhões, incluindo suas unidades nos Es-tados Unidos e na Austrália, tornando-se a maior empresa de carne bovina em capacidade de abate e a maior multina-cional brasileira do setor de alimentos.

Com a aquisição de 50% da Inalca,

Consumo mundial de carne bovina(em milhares de toneladas)

País 2004 2005 2006 2007(1)

Estados Unidos 12 667 12 662 12 800 13 024

União Européia 8 292 8 114 8 220 8 240

China 6 703 7 026 7 413 7 829

Brasil 6 400 6 774 6 935 7 180

Argentina 2 512 2 443 2 604 2 552

México 2 368 2 419 2 505 2 535

Rússia 2 308 2 503 2 285 2 270

Índia(2) 1 631 1 623 1 625 1 700

Japão 1 181 1 201 1 186 1 256

Canadá 1 057 1 106 1 067 1 059

Outros 2 921 3 006 3 019 3 027

Total 49 874 50 770 51 509 52 580

Fonte: usda(1) Estimativa(2) Inclui carne de búfalo

1��Alda�do�Amaral�Rocha,�“Frigoríficos�do�país�já�dominam�exportações”.�Valor Econômico, 14�de�março�de�2008.

2�www.investinfo.com.br.

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3��Bob�Burgdorfer,�Novo gigante da carne nos eua, jbs enfrentará crivo antitruste.�Reuters/Brasil�Online,�5�de�março�de�2008.

4��Gabriel�Giani�Vasconcellos,��Americanos e australianos temem presença do Friboi.�28�de�março�de�2008.��www.peabirus.com.br.

5��Produtores australianos temem avanços da Friboi no país.�Agência�Estado,�28�de�março�de�2008.

em dezembro de 2007, a jbs passou a ter mais 10 plantas na Itália. Com cen-tros de distribuição na África, a Inalca abre um novo mercado para a empresa. Em março de 2008, deu-se a compra das empresas norte-americanas Natio-nal Beef Packing, Smithfield Beef Group

e da australiana Tasman. A compra da Tasman já está concluída. As aquisições das norte-americanas aguardam ainda autorização do governo daquele país. Feito isso, a empresa passará a contro-lar 10% da oferta mundial de carne bovina e 32% da capacidade de abate da indústria dos eua.

Além dessas aquisições internacio-nais, a jbs comprou recentemente o fri-gorífico Garantia, no Paraná, aumen-tando para 23 o número de plantas de abate de sua propriedade no Brasil. Quando as aquisições estiverem con-cluídas, a jbs espera ter receitas globais de US$ 21,55 bilhões, contra os atuais 12,7 bilhões.3 A empresa transformou-se, assim, na terceira maior do Brasil em faturamento e a maior exportadora brasileira de carne bovina.

A investida da jbs preocupa america-nos e australianos. Segundo The Nor-th Platte Bulletin, uma coalizão de 72 grupos, incluindo produtores de bovi-nos, consumidores e líderes religiosos, está preocupada com os planos da jbs de se tornar o maior frigorífico dos Es-

tados Unidos, através dessas aquisi-ções. Essas organizações escreveram uma carta ao Departamento de Justiça dos eua, pedindo que seja considerada “fortemente a possibilidade de bloque-ar o negócio”.4 Afirmam que as com-pras prejudicariam os preços, as op-ções, a inovação e a competição na indústria de carne bovina. “Reduzir o número dos principais processadores de carne bovina de cinco para três pro-vavelmente terá efeitos adversos para os consumidores, bem como para os produtores”, diz a carta.

O setor agropecuário australiano também entrou em estado de alerta. Aos impactos das mudanças climáti-cas, sentidos pelos produtores nos últi-mos três anos de seca, e à ausência de novas fronteiras, soma-se um novo componente aterrador - as aquisições da jbs nos mercados dos Estados Uni-dos e da própria Austrália. “Estamos preocupados com essa movimenta-ção”, admitiu Glen Feist, da Meat and Livestock Austrália (mla).5 Livre da febre aftosa sem vacinação, o rebanho de corte da Austrália alcança 26 mi-lhões de cabeças, equivalentes a 13% do rebanho brasileiro.

A estratégia de diversificação de clientes. A diversificação geográfica de suas unidades de produção concede à jbs acesso privilegiado aos mercados consumidores dos cinco continentes, permitindo superar problemas como barreiras fitossanitárias ao gado brasi-leiro, flutuações nas taxas de câmbio em todo o mundo e barreiras comer-ciais à exportação de carne bovina do Brasil e da Argentina. Atualmente, exis-tem barreiras comerciais e sanitárias para exportação de carne bovina não processada produzida no Brasil e na Ar-gentina para os Estados Unidos, Cana-dá, México, Coréia do Sul e Japão. Es-ses países representam aproximadamente 50% da importação de carne bovina não processada do mundo.

As aquisições feitas pelos grandes fri-goríficos brasileiros não ocorrem só no mercado externo. A Abrafrigo - Asso-

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ciação Brasileira de Frigoríficos, que reúne pequenos e médios estabeleci-mentos, apresentou, em agosto de 2008, denúncia de que os grandes fri-goríficos estão praticando dumping, vendendo a carne a preço 10% inferior ao praticado no mercado interno, com o objetivo de provocar o fechamento e, portanto, o fim da concorrência dos pe-quenos e médios frigoríficos Há o agra-vante de que o dumping é realizado com dinheiro público, já que o bndes vem aportando recursos para estes grandes frigoríficos.

Os grandes frigoríficos preparam o caminho para dominar não só o merca-do consumidor, mas também o de pro-dutores. Os pequenos criadores, que possuem pouca estrutura de acesso ao mercado, tendem a tornar-se cativos dos grandes, que passarão a pagar um preço menor, apropriando-se de suas margens de lucro. “Quando os peque-nos e médios frigoríficos fecharem as portas, o produtor vai ficar à mercê de meia dúzia de empresas”, declarou o presidente da Abrafrigo.6 No setor de bovinos, a produção de carnes é a úni-ca onde não predomina a chamada produção integrada, em que os grandes frigoríficos dominam toda a cadeia de produção.

Os porquês das multinacionais brasi-leiras de alimentos. A internacionali-zação das agroindústrias brasileiras tem se intensificado nos últimos anos. A valorização do real frente a outras moedas, somada à desvalorização do dólar em todo o mundo, tem tornado mais acessíveis aos capitais brasileiros algumas grandes e tradicionais empre-sas norte-americanas.

Não é de hoje que empresas brasilei-ras do agronegócio mantêm um pé no Brasil e outro no exterior. Pioneiras, as processadoras de suco de laranja come-çaram a investir para além das frontei-ras nacionais em 1992, comprando plantas no estado da Flórida, nos Esta-dos Unidos. Evitam, assim, as barreiras comerciais norte-americanas às impor-tações do suco de laranja brasileiro. Mais de uma década depois, o exemplo

começou a ser seguido por grandes usi-nas de açúcar e álcool - desde 2004 já há conhecidos nomes nacionais do se-tor erguendo instalações no Caribe.7 No caso da cana-de-açúcar, a decisão é uma maneira de driblar os altos impos-tos incidentes sobre as exportações para os eua.

O setor de aves é outro em que o Bra-sil se destaca e também se internacio-naliza. Alguns anos atrás, dizia-se que a Tyson viria ao Brasil para comprar a Sadia ou a Perdigão, as duas maiores empresas brasileiras desse segmento. Atualmente, a Sadia está investindo US$ 100 milhões numa fábrica nos Emirados Árabes, e a Perdigão adqui-riu a Plusfood, da Holanda.

O apoio decisivo do governo brasilei-ro. A participação do bndes, institui-ção federal, nas aquisições da jbs deixa transparecer a contradição - econômi-ca, social e ambiental - entre as opções financeiras e o slogan que a instituição estatal ostenta: “o banco do desenvol-vimento de todos os brasileiros”.8 O presidente do bndes, Luciano Couti-nho, classifica a intervenção como um exemplo da nova política industrial que o governo federal pretende adotar neste segundo mandato do presidente Lula, fundada no incentivo à interna-cionalização de empresas de setores competitivos.

Diversas ongs brasileiras têm partici-pado de encontros com o bndes para tratar desses temas. Neles, os represen-tantes da sociedade civil insistem para que o banco dê maior transparência aos critérios sociais e ambientais que têm sido aplicados para a concessão de empréstimos e para que setores mais poluidores não sejam favorecidos. Essa política, contestam as ongs, ignora o poder de indução de iniciativas de grande porte que podem aumentar a pressão pelo desmatamento e pelo des-respeito aos direitos sociais nas frontei-ras agrícolas.

Saltando barreiras. O segmento de carnes é o mais afetado pela sobreposi-ção de tarifas, quotas e barreiras sani-

6��Andréa�Bertoldi,�“Grandes�frigoríficos�são�denunciados�por�dumping”.�Folha de Londrina,�15�de�agosto�de�2008.

7��Luciana�Franco,��“Conquista�de�territórios.��Empresas�nacionais�investem�em�unidades�fora�do�país�para�reforçar�suas�marcas�no�cenário�global”.�Revista Globo Rural,�abril�de�2008.

8��Maurício�Hashizume.�Investimento em frigorífico acende debate sobre atuação do bndes.�6�de�julho�de�2007.

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BibliografiaFood�&�Water�Watch�

Europe,�The Beef with Brazilian Beef: Cheap Imports threaten eu Farmers and Consumers, Berlim,�2007.

jbs�sa,�Ata de Reunião Extraordinária do Conselho de Administração realizada em 04 de março de 2008.�jbs,�2008.

Smeraldi,�r.�y�May�P.,�O reino do gado: uma nova fase na pecuarização da Amazônia Brasileira.Amigos�da�Terra-Amazônia�Brasileira,�São�Paulo,�2008.

União�Brasileira�de�Avicultura,�Relatório Anual 2007/2008,�Brasília,�2008.

Wilkinson,�J.�e�Rocha,�R.,�Uma análise dos setores de carne bovina, suína e de frango.�senai/ufrj,�2005.

Sergio�Schlesingeré�consultor�da�Federação�de�Órgãos�para�Assistência�Sociale�Educacional�(fase),�com�sede�no�Brasil,�e�da�organização�internacional�Food�and�Water�Watch,�trabalhando�temas�de�agricultura�e�comércio�internacional

9��Daniella�Camargos.�“A�saga�global�dos�caubóis�de�Anápolis”.�Portal Exame,�20�de�março�de�2008.

tárias no comércio internacional. Al-guns dos mais importantes mercados mundiais estão fechados para as expor-tações brasileiras, como é o caso dos eua para todos os segmentos de carnes (Wilkinson, 2005). A compra de frigo-ríficos internacionais promovida pela jbs é uma maneira de abrir as portas de mercados estratégicos que, em razão de recentes focos de febre aftosa no país, periodicamente impõem barreiras sani-tárias às exportações brasileiras. Para as grandes empresas frigoríficas brasi-leiras, esse é um grande entrave ao cres-cimento. Com unidades de negócios nos Estados Unidos e na Austrália, a jbs resolve esse problema, obtendo acesso a 50% do mercado mundial que permanece fechado para o Brasil. Ou seja: a partir dessas novas unidades, ela poderá alcançar compradores nos Es-tados Unidos, no Canadá, na Coréia do Sul e no Japão, entre outros.9

Em fevereiro de 2008, a União Euro-péia decidiu embargar as importações de carne vindas do Brasil, já que o go-verno brasileiro não cumpriu regras sa-nitárias acordadas desde 2007. Sem a garantia de rastreabilidade da origem do gado, não pode ser assegurado que a carne enviada à Europa não provém de áreas onde a venda para o bloco é proi-bida. Também em casos como esse, a aquisição por frigoríficos brasileiros de companhias situadas no exterior facilita muito o acesso ao mercado europeu.

A internacionalização das indústrias frigoríficas brasileiras tem o objetivo, também, de evitar as barreiras comer-ciais impostas pelos países desenvolvi-dos a seus produtos. Adquirindo plantas no interior desses países, essas empresas

passam a ter vantagens que vão além do acesso aos seus mercados consumidores. Passam a usufruir, também, das facilida-des de exportação criadas pelos diversos acordos de livre comércio que os Esta-dos Unidos e a União Européia vêm fir-mando pelos quatro cantos do mundo.

Comer para não ser comido. Peculiari-dades de cada segmento à parte, a es-tratégia comum a esses grupos passa pela ambição de fortalecer sua marca no mercado internacional. “Quem quer crescer tem que seguir esse caminho, uma vez que na economia atual ou se é presa ou predador”, avalia José Vicen-te Ferraz, analista da empresa de con-sultoria Agrafnp.

Em 2006, pela primeira vez no Brasil, uma empresa fez uma oferta pública para a compra de outra. Através dessa chamada “oferta agressiva”, a Sadia tentava adquirir a Perdigão. O objetivo era o de competir no exterior com gi-gantes do setor de aves e suínos indus-trializados, como a americana Tyson Foods, que até hoje ameaça chegar ao Brasil. Nas palavras do próprio presi-dente da Sadia, tratava-se de uma atitu-de de auto-defesa: a empresa vinha re-cebendo informações de que a Tyson, justamente, tentaria a aquisição da Sa-dia, então a maior processadora de frangos do Brasil.

Comer para não ser comido, eis a ló-gica atual das grandes empresas, em todos os setores da economia global. Ser o maior dos tubarões, para não ca-ber na boca dos demais. É esse o com-portamento predador das empresas que produzem, hoje, os alimentos que comemos. l

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1) Meatrixhttp://www.themeatrix.com/intl/brazil/dub/

2) Meatrix II Revoltinghttp://www.themeatrix2.com/spanish/dub/

3) Meatrix II½http://www.moremeatrix.com/spain/subtitled/

Existe uma grande lacuna entre as ilusões que nos querem vender a respeito de donde vem nossa comida e a contrastante e espan-tosa realidade da produção industrial de carnes, ovos e leite. Entre na Meatrix e des-cubra a verdade nua e crua sobre muitos alimentos de origem animal que ingerimos.

Foram produzidos 3 desenhos animados de curta-metragem que são uma paródia aos filmes de Hollywood chamados Matrix.O primeiro desenho tem versões dublada ou legendada em português, o segundo pode ser visto dublado em espanhol e o ter-ceiro, com legendas em espanhol. Nos dese-nhos, os personagens são três super-heróis, animais de granja: Leo, um porquinho que se pergunta sobre seu lugar no mundo, Ti-quiti, uma jovem galinha defensora da agri-cultura camponesa e familiar, e Mufeus, o touro militante apaixonado por verdes pra-darias. Eles nos mostram que, sem que a maioria de nós se desse conta, a agricultura camponesa que defendemos foi deslocada pelo agronegócio e pela agricultura sem camponeses, controlada por investidores e grandes latifundiários usurpadores de terri-tórios.

Eles nos mostram como funciona uma “fá-brica” de produção intensiva de leite, nos revelam a industrialização da carne nos fri-goríficos e os riscos desse modelo para a saúde do planeta e para nossas sociedades.

Esses curtas-metragens - muito úteis para entender os problemas do capitalismo agrá-rio e da criação intensiva de animais para produzir grandes quantidades de carne, leite e ovos - foram traduzidos para mais de 30 idiomas e foram vistos por mais de 20 mi-lhões de pessoas.

Os problemas da criação intensiva torna-ram-se muito evidentes quando apareceu a doença da vaca louca, na Europa, nos anos 1980, em decorrência de alimentarem seu gado com rações à base de restos moídos de outros animais. Apesar de que ainda não existiam essas aberrações na América Lati-na e em outras regiões, começavam a se multiplicar as granjas de criação de aves que propiciaram a gripe aviária na Ásia.

A criação intensiva, que ou integra verti-calmente pequenos e médios produtores a um sistema capitalista de agricultura por

contrato, ou está nas mãos de grandes em-presas e investidores, começa a se instalar na criação para carne na América do Sul.

A criação extensiva de gado ocupa grande parte de nossos territórios e constitui a base do poder político das elites que se apossa-ram das terras de todos. Em decorrência do aparecimento da doença da vaca louca na Europa e nos Estados Unidos, ao proibir-se o uso de restos animais nas rações, e usar o farelo de soja como fonte de proteína subs-tituta para os animais na Europa e nos Es-tados Unidos, a situação piorou. A crescen-te demanda por soja, na Europa e Estados Unidos, e a expansão das exportações e dos monocultivos de soja, na Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Bolívia (cuja aristocra-cia de Santa Cruz, golpista, vive da soja), impactaram as principais zonas de produ-ção de grãos, deslocando pequenos produ-tores, populações e outras atividades, avan-çando sobre solos de menor rentabilidade (que por não serem muito adequados à agricultura, eram dedicados à criação ex-tensiva de gado).

Hoje, essa criação de gado é deslocada para outras terras (como a Amazônia brasi-leira e as ilhas do Delta do Paraná, na Ar-gentina) e gera pressão entre os criadores de gado que buscam capitalizar-se, investir e tirar mais carne em áreas cada vez menores. Surgem assim os sistemas de engorda de gado em confinamento (variante crioula dos feedlots mostrados no Meatrix). Na Argentina, mais da metade do gado que se destina a abastecer o mercado interno passa seus últimos meses em uma dessas fábricas, e já se registram conflitos devido à contami-nação gerada. No Brasil, começa a haver uma concentração notória na sua integra-ção vertical aos grandes frigoríficos brasi-leiros, que figuram entre os maiores do mundo (ver “O Brasil e seus bois multina-cionais”, p. 18 desta edição).

Se essas tendências seguirem a implacável lógica capitalista, o futuro será a criação de gado e a alimentação ficarem, cada vez mais, em menos mãos, em condições de muito maior contaminação.

*Pesquisador�do�Food�and�Water�Watch�América�Latina

Meatrix: o negócio da carneAlberto�Villareal*

Os problemas da criação intensiva tornaram-se

muito evidentes quando apareceu a doença da

vaca louca, na Europa, nos anos 1980,

em decorrência de alimentarem seu gado com rações à base de

restos moídos de outros animais. Apesar de que

ainda não existiam essas aberrações na América

Latina e em outras regiões, começavam a se multiplicar as granjas de

criação de aves que propiciaram a gripe

aviária na Ásia.

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Ataques, políticas, resistência, relatos

Não querem transgênicos na África, não?

Centro Africano para a Biossegurança/grain, Joanes-

burgo, África do Sul, 12 de setembro. Uma junta de ape-lações criada pelo ministério de assuntos agrários e agri-cultura derrubou uma decisão crucial do processo sulafri-cano relacionado aos ogms, de não aceitar experimentos com sorgo, um precioso e ancestral cultivo africano. O conselho de investigação científica industrial (Council for Scientific Industrial Research, o csir) já deu sinal verde para prosseguir no desenvolvimento de um Super Sorgo, em instalações de nível três de contenção. A pesquisa é fi-nanciada pelo projeto “sorgo africano biofortalecido” [African Biofortifed Sorghum, ou abs] da Fundação Bill e Melinda Gates. A Fundação Gates também financia am-plamente a Nova Revolução Verde na África, orientada para industrializar a agricultura do Continente.

O Centro Africano para a Biossegurança (cab), que contestou a solicitação inicial da csir, condenou a deci-são e reafirmou que os experimentos com sorgo transgê-nico inevitavelmente terão como resultado a contamina-ção do legado africano do precioso sorgo. Haidee Swanby, do cab, comenta: “O sorgo é um cultivo básico,

crucial para mais de 500 milhões de pessoas no continen-te. Os riscos que o sorgo gm apresenta para os parentes silvestres não podem ser tolerados. Conceder essa per-missão equivale a permitir que o legado da África se per-ca.”

O cab reitera que o projeto do sorgo biofortalecido está sendo desenvolvido para sua liberação comercial e que o csir buscará, em breve, autorização para experimentos de campo. A objeção original do órgão regulador de ogm, emitida em junho de 2006, baseava-se na preocu-pação de contaminação da biodiversidade africana. A contenção em uma instalação de nível três não evita os riscos dos experimentos de campo, mantendo-se, assim, os riscos às variedades do continente.

Elfrieda Pschorn-Strauss, responsável pelo programa grain-África, conclui: “Não cabe ao governo da África do Sul decidir, em nome do resto da África, a aprovação de um projeto industrial que causará a contaminação ine-vitável da surpreendente diversidade genética do sorgo no continente. Esse cultivo vem tendo o cuidado e o de-senvolvimento dos camponeses por mais de 5 mil anos”. l

BrasilFinanciando

a contaminação

Rádio Mundo Real, 5 de setembro de

2008. Durante a safra 2007/2008, no Brasil, o dinheiro público destinado aos agronegócios representou a quase totalidade dos investimentos realiza-dos no país para a produção agrícola, segundo dados oficiais divulgados pela Agência Pulsar.

De acordo com informação do Es-tado brasileiro, foram destinados ao agronegócio cerca de 40 bilhões de dólares, o que supera em quase dez vezes o que foi destinado à agricultu-ra familiar. O paradoxo é que a agri-cultura familiar proporciona os ali-mentos para o consumo interno. As pequenas empresas produzem 49% do milho, 79% do feijão, 54% do lei-te, e 40% dos produtos avícolas, en-quanto as agroindústrias basicamente produzem para exportação.

O enorme financiamento que as agroindústrias recebem do Estado veio à tona quando outra notícia alarmante foi revelada: as agroem-presas brasileiras vêm utilizando, em

seus agrotóxicos, componentes quí-micos proibidos nos países da União Européia, onde são produzidos, devi-do ao seu altíssimo nível de toxicida-de. Esses agrotóxicos são utilizados em mais de duas dezenas de cultivos de grãos, verduras e frutas. De acor-do com a Organização Mundial da Saúde (oms), esses agrotóxicos pode-riam causar problemas no sistema reprodutor, no sistema nervoso, e ser cancerígenos. Segundo a Radioagên-

cia Notícias do Planalto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil (anvisa) estava investigando os perigos dessas substâncias, mas suas investigações foram suspensas pela pressão exercida pelos fortes in-teresses econômicos.

Ante a denúncia e alerta da oms, a anvisa informou que reavaliará o re-gistro de nove substâncias que são utilizadas na elaboração de 99 agro-tóxicos. l

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Os jeitinhosda Monsanto no México

De acordo com a pesquisadora mexi-cana Ana de Ita, “Para a Monsanto, o levantamento da moratória estabele-cida há dez anos no México para o plantio de milho transgênico é uma prioridade” pois no momento atual, favorável às empresas, “conseguir o plantio de milho transgênico no Mé-xico, onde cerca da metade da super-fície agrícola é destinada ao milho, parece um negócio proveitoso”. Essa moratória terá seu fim “quando se li-berar a primeira permissão de plantio experimental. Em questão de meses, o plantio comercial seria legal”.

O mencionado momento favorável é visível no fato de que, mesmo com a moratória, “o México ocupa o quar-to lugar nas vendas da Monsanto, uma vez que as companhias nacionais de sementes sucumbiram ante a con-corrência feroz e a empresa estatal de sementes (a Pronase) foi extinta. Em escala mundial, a Monsanto triplicou seus lucros no primeiro trimestre de 2008, em decorrência de suas vendas de sementes de milho (transgênico e híbrido) e de herbicidas. O boom dos agrocombustíveis e o uso de milho para fabricação de etanol nos Estados Unidos aumentaram o valor de suas ações em 21%”.

Além disso, acrescenta a pesquisa-dora, “A Monsanto contou com o apoio dos legisladores que aprova-ram, a seu favor, a Lei de Biossegu-rança de Organismos Geneticamente Modificados (lbogm), e com o res-paldo de funcionários das Secretarias de Agricultura e do Meio Ambiente, que publicaram a regulamentação da lei e tentam, por vias burocráticas, en-cerrar o Regime de Proteção Especial ao Milho” (ver “Granjeros modernos o siervos de Monsanto”, La Jornada del campo, número 8).

Hoje, de acordo com informes de Lourdes Dias López (El Diario, 24 de setembro), “em Chihuahua, os chihuauenses são ‘cobaias’ com o plantio e o consumo de milho trans-gênico [pois] já se comprovou que

está sendo plantado, sem que nem o produtor e nem o vendedor de se-mentes se dêem conta de que se trata de um produto geneticamente modi-ficado”. Na mesma reportagem, Lourdes Dias recolhe o testemunho do deputado local Victor Quintana e do líder do movimento El Barzón, Gabino Gómez, no sentido de que “os resultados do levantamento de amostras de milho feito por um labo-ratório certificado a pedido do Gre-enpeace revelaram que não há so-mente 70 hectares plantados com esse tipo de semente, como divulgou o Serviço Nacional de Sanidade, Ino-cuidade e Qualidade Agroalimentar (Senasica), mas sim 25 mil hectares, em função do que se efetuou uma se-gunda amostragem da qual se espe-ram resultados em breve”. Victor Quintana, nessa ocasião, comentou: “Se fosse feita vigilância de acordo com o que determina a lei para a en-trada de sementes, a comercialização e a planta em desenvolvimento, a Se-

cretaria de Agricultura, Pecuária, Pesca, Desenvolvimento Rural e Ali-mentação (Segarpa) teria detectado, muito antes de nós, que em Chihuahua se está plantando milho transgênico. As autoridades da Segarpa querem se proteger dizendo que são 70 hectares e que estão dando atenção ao proble-ma”.

Apesar de que, enquanto a morató-ria ainda existir, “plantar milho trans-gênico pode dar de dois a dez anos de cadeia, além da multa de 15 mil a 150 mil pesos, de acordo com o estabeleci-do no artigo 420 do Código Penal Fe-deral, e de acordo com o artigo 120 da Lei de Biossegurança de Organismos Geneticamente Modificados”, o certo é que em Chihuahua já é oficial que esse plantio ocorreu. O delegado da Secretaria de Meio Ambiente e Recur-sos Naturais (Semarnat), Ignácio Le-garreta Castillo, aponta “que em Chihuahua detectou-se o primeiro caso, em nível nacional, de plantio de milho transgênico, que já é investiga-do pelo ministério público federal (mpf), depois dos estudos do labora-tório do Senasica, e será o mpf que determinará de quem é a responsabili-dade, se do produtor, do vendedor de semente ou da aduana no momento da importação”.

O estranho é que, em anos anterio-res, “as autorizações para plantio ex-perimental, canceladas por serem ile-gais, eram para Chihuahua, Sonora, Sinaloa e Tamaulipas, e mesmo que os funcionários se esforcem em negar, nesses estados existe uma ampla di-versidade de raças e variedades nati-vas de milho. Em Chihuahua, há 23 espécies catalogadas e teosinto, que também é registrado no Sinaloa”, in-siste Ana de Ita.

Tudo parece indicar que estamos diante de uma investida clandestina e ilegal para que o plantio de milho transgênico seja um fato consumado que permita avançar rapidamente para derrubar a moratória, a qual fra-gilmente continua impedindo uma avalanche irreparável de contamina-ção, com seus efeitos devastadores as-sociados. l

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EquadorO governo, a Constituição,

os indígenas e as mineradoras

Uns dias antes do referendo que aprovou a nova consti-tuição equatoriana, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) decidiu se adiantar ao re-ferendo e expressou um “sim crítico” que evitou possíveis manipulações, por parte da oligarquia e de setores da igreja, de seu posicionamento de oposição.

Essa constituição foi tecida em um árduo processo de diálogo entre a sociedade equatoriana, e o presidente Cor-rea efetivamente impulsionou tal processo, ainda que a seguir, nas regulamentações, tenham sido desativados muitos de seus parágrafos mais incisivos (assunto que tem provocado a mais áspera crítica dos setores progressistas afins ou em oposição ao governo da “Revolução Cida-dã”). Não obstante, era claro que praticamente durante todo o mês de setembro a população estivera consideran-do o sim ou o não e que a maior parte das pessoas propen-sas ao não eram ligadas aos grupos de direita, oligarcas e entreguistas, que não deixaram de provocar incidentes. Então, em que pese o movimento indígena independente continuar pressionando o governo de Correa a definir-se com maior clareza em favor da população, sabendo que o fator indígena seria chave, a Conaie expressou seu sim crí-tico. Foi uma decisão de serenidade e generosidade para com o Equador, apesar de suas grandes diferenças com Correa.

Em 4 de setembro, o Conselho de Governo da Conaie afirmou que a nova Constituição não acolhe adequada-mente suas propostas sobre “novos direitos das nacionali-

dades e povos indígenas do Equador” e que seguirá lutan-do “até que haja um verdadeiro reconhecimento de nossas demandas no marco do novo Estado plurinacional”. Afir-mou, também, que “em relação às propostas nacionais de ordem social, ambiental, econômica, cultural, participa-ção cidadã, soberania nacional e reconhecimento do Esta-do plurinacional, há um avanço importante em compara-ção com as 19 constituições anteriores e em relação ao contexto internacional”. Portanto, em “seu papel históri-co e luta permanente pela mudança real deste país, apóia com o sim crítico no referendo para aprovar o projeto da nova constituição e, dessa forma, enterrar de uma vez por todas a velha estrutura do Estado, a agonizante partido-cracia e oligarquia do país, o colonialismo, o neocolonia-lismo e o modelo neoliberal injusto e desumano que tanto dano provocou ao país”. Por último, a Conaie reinvindi-cou ser independente do governo nacional e de seu movi-mento político, e que seu apoio era ao projeto da nova constituição, e não um respaldo ao governo de Correa.

No final de setembro, e sendo coerentes com seus posi-cionamentos, a Conaie, a Ecuarunari e a Confenaie (Con-federação de Nacionalidades Amazônicas do Equador) reuniram-se para discutir o papel do governo no que diz respeito às concessões de mineração. Concluíram que o governo deixa de cumprir os mandatos constituintes e fa-vorece as empresas mineradoras que operam no país, ra-zão pela qual resolveram exigir do regime a aplicação dos ditos mandatos e o respeito a seus territórios e recursos naturais. “Está claro que Correa não mudará o modelo econômico neoliberal. Ao contrário, as multinacionais es-tão se fortalecendo para a exploração de nossos recursos em seu benefício, o que preocupa as organizações, povos e nacionalidades”, disse Miguel Guatemal, vice-presidente da Conaie.

Está se tornando claro que “a nova constituição não irá deter a ambição das empresas de petróleo, das minerado-ras e das hidroelétricas, pelo que se torna necessário im-pulsionar ações desde nossas comunidades, a fim de deter essa política neoliberal do atual regime”, disse Domingo Ankuash, presidente da Confenaie.

Poucos dias antes, foram assassinados dois membros da nacionalidade awa, da província de Esmeraldas, “pelos interesses econômicos e políticos das empresas minerado-ras e do atual governo”, em função do que o encontro exigiu as investigações e sanções aos responsáveis pelos crimes. “Esse é um problema que se reproduz por todo o país e o governo não faz absolutamente nada. Ao contrá-rio, juntamente com as empresas estrangeiras, faz parte dessa perseguição. Por isso, fazemos um apelo a todas as organizações sociais do país para avaliar e organizar as ações que sejam necessárias a fim de deter essa ambição externa e, sobretudo, obrigar o governo a suspender seu apoio às multinacionais e a garantir o respeito a todos os equatorianos”, disse Salvador Quishpe, dirigente de Za-mora Chinchipe. l

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EquadorCarta aberta sobre

a nova Constituição

Ontem, a grande maioria do povo equatoriano pronunciou-se pelo sim à nova Constituição, obedecendo a uma aspiração perseguida pelas organizações, que há mais de trinta anos temos desejado ver o surgimento de um novo país.

A maioria de nós tem contribuído com os princípios contidos na nova Cons-tituição mesmo antes que esta começasse a ser elaborada. Construímos posi-cionamentos, argumentos, propostas, que foram acolhidos no processo cons-tituinte. Por isso nos pronunciamos por um sim crítico.

sim, porque reconhecemos que são momentos de síntese das propostas dos movimentos sociais, crítico porque tememos que nosso respaldo à Constitui-ção seja visto como uma carta em branco para avalizar projetos neodesenvol-vimentistas que implicarão em uma grande dívida social no curto prazo.

O impulso ao iirsa e ao Eixo Manos-Manta (que se traduzirá na dragagem do rio Napo), a abertura petroleira, a insistência na mineração como nova atividade intensiva, as políticas agrárias que fomentam o consumo de agrotó-xicos e de sementes certificadas e o fomento aos agrocombustíveis são alguns dos projetos que estão na agenda dos governos neoliberais e que têm sido freados pelas lutas dos movimentos sociais.

Sem dúvida, esses mesmos projetos pairam como ameaças para nosso país. São projetos que têm um alto custo ambiental, e que, mesmo quando são jus-tificados com o argumento de pagar a dívida social, construirão novas dívidas ecológicas. E o principal quanto a isso é que a dívida ecológica é dívida social, pois se deterioram as bases de subsistência, principalmente dos mais pobres, e se impede um verdadeiro desenvolvimento sustentável.

Nenhum desses projetos poderia ser desenvolvido, ao menos na magnitude em que são propostos, se agimos de acordo com a nova Constituição, se utili-zamos a Constituição como uma caixa de ferramentas para defender nosso patrimônio e o de nossos filhos.

Cabe a nós estarmos atentos e articulados para defender o que é e tem sido uma proposta de mudança a partir das bases. Resgatar o momento político atual, evitar que a Constituição seja seqüestrada.

A proposta ecologista não é senão a defesa das riquezas naturais, o respeito à vida e à biodiversidade, o cuidado com nosso futuro.

A luta ecologista é uma luta por ideais e, principalmente, por conservar um espaço onde esses ideais se realizem.

Por isso devemos fazer a nossa Constituição. l

Ação Ecológica,Quito,�Equador,�30�de�setembro

As paralisações antiminera-doras prosseguirão

Em setembro, dirigentes da Zamora Chinchipe e o coordenador da Frente de Resistência Sul à Mineração em Larga Escala (Fresmige) responsabili-zaram o governo nacional e as empre-sas mineradoras canadenses pela onda de paralisações que diversas co-munidades e organizações do sul do país impulsionarão no futuro. “A As-sembléia Constituinte baixou o man-dato mineiro em 18 de abril passado, mas o governo tem se esquivado dele e não o tem aplicado. Ao contrário, iniciaram a elaboração de uma Lei de Mineração com a participação dos representantes das próprias empresas mineradoras multinacionais, dando as costas ao povo equatoriano, e, se-guramente, irão querer impor dita lei com o futuro congresso ilegal. Isso demonstra que o presidente Correa busca garantir o modelo econômico neoliberal e extrativista, contradizen-do seu discurso de terminar com a longa noite neoliberal. Essa é a razão das ações de protesto que os povos estão impulsionando, donde o res-ponsável por essa situação ser o pró-prio presidente Rafael Correa e seu governo”, afirmou Salvador Quishpe.

Apesar disso, de novo, em uma amostra de sensatez e generosidade, Quisphe esclareceu que não haveria ações de protesto antes de 28 de se-tembro, data em que foi realizado o referendo. “Não vamos permitir que nossa luta seja mal interpretada por aqueles que permanentemente procu-ram desqualificar nossa legítima in-conformidade com esse modelo ex-trativista que põe em risco a vida de nossos povos”. l

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Dendê em Chiapas: paramilitar?

Um sinal abominável de globalizar a guerra como pro-grama de desenvolvimento é o incentivo que se começa a dar ao plantio de dendê em Chiapas. Na Colômbia, o esquema sinistro, há alguns anos, é deslocar os campo-neses para promover amplamente o dendê (cinicamente chamado de palmeira sustentá-vel) como insumo de agrocom-bustíveis, permitindo que grupos paramilitares expulsem a sangue e fogo os habitantes de um terri-tório. Sempre a serviço das agroindústrias e do governo, os paramilitares o convertem em monocultivo de dendê e se assu-mem como agricultores “legali-zados” de “combustível” de den-dê. O esquema implica um campo armado, com mercenários a ser-viço das transnacionais.

O que ocorrerá em Chiapas, onde a paramilitarização cresce promovida pelos governos fede-ral e estadual, apodera-se de mais e mais terras, desarticula os esfor-

ços de centenas de comunidades e semeia o terror em qualquer região ou localidade onde haja comunidades in-dependentes ou opositoras ao governo? Por enquanto, seu freio real são os autogovernos autônomos zapatistas, que defendem sua autonomia, seus territórios, seus culti-vos diversificados e suas sementes ancestrais, com grande equilíbrio, mas também com tática e organização de gran-

de força. Entretanto, os funcioná-rios começam a promover a ex-pansão do tal dendê através dos maiores viveiros da América Lati-na (1.691.000 plantas), em várias regiões de Chiapas - Acapetahua, Mapastepec, Marqués de Co-millas, Zamora Pico de Oro e Pa-lenque, algumas delas com forte presença paramilitar.

O coordenador geral do Institu-to de Fomento à Agricultura Tro-pical (ifat), que faz parte da Se-cretaria do Campo, Salim Rodrí-guez Salomón, disse que, para o próximo ano, “se contará com 15 mil novos hectares para plantar dendê, totalizando 44 mil hecta-res e cinco mil produtores”. l

Assassinam defensorde direitos humanos

na Colômbia

O defensor de direitos humanos Ever González foi assassinado no sábado, 20 de setembro, ao meio-dia, por dois assassinos contratados que es-tavam em uma moto. Ele estava tra-balhando na localidade de Guachi-cono, no município de Bolívar, e ponto de encontro entre os municí-pios de Sucre e Patía. Desde 1994, nosso líder camponês Ever González vinha apoiando a defesa integral dos direitos humanos dos habitantes do Maciço Colombiano, em especial dos do município de Sucre. Em 2000, foi vinculado ao sistema de proteção do Ministério do Interior, devido a múltiplas ameaças contra a organi-zação social Cima, seus líderes e suas comunidades, pela reivindicação constante por vida digna, integração regional e desenvolvimento próprio. Da mesma forma, desde 2003 foi amparado pelas medidas cautelares

que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos ordenou ao esta-do colombiano. Em maio de 2004, foi vítima da política de detenções e criminalizações massivas. Tal cir-cunstância aumentou seus riscos e sua vulnerabilidade, devido às estig-matizações originadas a partir da aplicação dessa política. Em seu caso, demonstrou-se sua inocência, a montagem que lhe foi feita e sua liderança social camponesa. Atual-mente, se encontrava apoiando o es-clarecimento de uns casos de execu-ções extrajudiciais ocorridos no mu-nicípio de Sucre, em 2007, com a participação dos familiares das víti-mas e da Defensoria da cidade de Cauca.

A organização social camponesa Comitê de Integração do Maciço Co-lombiano (Cima) exige do Estado co-lombiano, das autoridades civis e mi-litares, do Ministério Público, da Pro-motoria Geral da Nação e do Minis-tério do Interior, a investigação, o es-clarecimento e a condenação dos res-

ponsáveis por esse crime cometido contra esse líder camponês defensor de direitos humanos. Chamamos as organizações defensoras de direitos humanos, nacionais e internacionais, para que se solidarizem em defesa da vida digna, tanto de suas comunida-des como de seus líderes, e no direito de defender e fortalecer nossa organi-zação social camponesa. Solicitamos o envio de cartas aos órgãos estatais e governamentais correspondentes exi-gindo o esclarecimento das ocorrên-cias. Nossa gratidão, reconhecimento e memória eterna a Ever González e a nossos companheiros e companheiras camponeses assassinados em decor-rência de nossa luta constante por vida digna, integração regional e de-senvolvimento próprio do Maciço Colombiano. l

Comité de Integración del Macizo

Colombiano (Cima), Fundación Estrella

Orográfica del Macizo Colombiano

(Fundecima)

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ArgentinaPerseguição aos camponeses

Santiago del Estero. Às 8 horas da manhã do dia 6 de setembro, 33 poli-ciais invadiram, intempestiva e ilegal-mente, cinco residências da comuni-dade camponesa de uma paragem próxima à cidade de Pinto, e detive-ram Luis Aguirre, seqüestraram uma motocicleta da família e o translada-ram à Comissaria de Polícia de Pinto. Aguirre é filho de Cristina Loaiza e Pocholo Aguirre, os quais foram pre-sos em três oportunidades. Em uma das detenções, encarceraram Cristina com seu bebê de 11 meses.

O juizado de Añatuya, a cargo do juiz Mansilla, alegou que a detenção, com tão impressionante aparato, era pelo suposto roubo de um cavalo.

Invasão sem ordem escrita de juiz competente, detenção violenta e sem ordem escrita, e num sábado, por um suposto furto de um cavalo? No dia 7 de setembro, em Pinto, os sojicultores realizavam uma recepção ao senador nacional Emilio Rached.

No dia 19 de setembro, detiveram Sabino Chávez, em uma paragem vi-zinha a Pinto. Ele também é membro da Central Campesina de Pinto. Ain-da está detido pelo mesmo juiz Man-silla que, em agosto, em uma entrevis-ta com membros de uma comissão internacional de direitos humanos, disse que “em Santiago del Estero e na Argentina já não havia campone-ses e indígenas”. Uma frase que ex-pressa um plano sinistro de novo ex-termínio? Sabino estava realizando

um trabalho com sua camioneta quando foi brutalmente retirado da mesma, sem nenhum tipo de ordem escrita, no meio de seu trabalho pací-fico. Não andava atrás de ser detido, ninguém busca estar na cadeia.

No dia 22 de setembro, no meio da noite, mais de 40 pessoas, civis uni-formizados, alguns de polícia, poli-ciais comandados por uma vereadora da cidade de Monte Quemado, che-garam violentamente com cinco ca-mionetes e começaram a invadir, rou-bar, destruir bens das residências dos camponeses e camponesas da para-gem El Quebradito, os quais são membros da Central Campesina de Produtores do Norte.

Arrancaram da cama, no meio do pânico de crianças e idosos, Mercedes Farias, Matildo Ediverto Maldonado, Andrés Peralta e Ubaldo Peralta, rou-baram-lhes dinheiro que haviam rece-bido pela venda de seus cabritos e vacas e, literalmente, roubaram a ca-mionete e ferramentas de trabalho de Juan Orellana. Até a manhã do dia 24 de setembro, não se sabia o destino dos detidos quando, novamente, com a mesma metodologia, o mesmo gru-po de 40 pessoas arrancou violenta-mente de suas casas o casal Olga Pe-ralta e Juan Cisneros, deixando as crianças sem a presença de seus pais e no meio do pânico e terror.

Quem pode dizer que se trata de im-prudência de camponesas e campone-ses? Podemos dizer que o governo da província desconhece esses atos que sua polícia e alguns de seus agentes políticos realizam amparados em seus

cargos e foros?Onde está a capacidade de um go-

verno que alardeia ter conseguido a paz e estar seguindo o caminho da justiça através das Mesas de Diálo-gos?

Como Mocase-Via Campesina, te-mos recebido, como única resposta por parte do governo, que é necessá-rio participar das Mesas de Diálogos para ter soluções.

Trata-se de uma verdadeira perse-guição política aos membros do Mo-case-Via Campesina, que temos o di-reito, que nos outorga a Constituição, de participar ou não, se considerar-mos que não se perde a dignidade.” l

Estados Unidos se Posicionam na Guatemala

No final de setembro, o governo dos Estados Unidos, através do seu secretário de agricultura, Ed Schafer, ofere-ceu apoio à Guatemala para impulsionar seu desenvolvi-mento, informou o presidente guatemalteco, Rafael Espa-da. “Temos grandes planos para o futuro, na área do de-senvolvimento agrícola, rural, camponês e do trabalho na Guatemala, e na exportação e intercâmbio de produtos, conhecimento e tecnologia entre os Estados Unidos e a Guatemala”, afirmou.

Schafer encabeça uma comissão comercial e de investi-mento que busca mecanismos de participação mais ativa

do setor privado no Tratado de Livre Comércio (tlc) en-tre os Estados Unidos, o Istmo e a República Dominicana (dr-cafta, por sua sigla em inglês). Schafer reuniu-se com os ministros da agricultura da América Central para explorar mecanismos de cooperação que permitam que o setor privado tenha maior participação no tlc. Funcioná-rios de 17 empresas norte-americanas e 80 da Região reu-nir-se-ão para explorar e concretizar negócios, informou Schafer. São empresários norte-americanos interessados em promover o comércio e investimentos nos setores de produtos processados, bebidas, genética de gado, carne e frango, equipamentos agrícolas, produtos lácteos, fertili-zantes e produtos orgânicos. l

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HondurasMais um assassinato

em nome da suposta proteçãodas áreas protegidas

La Ceiba Atlántida, 25 de setembro de 2008. Ontem, a altas horas da noite (22h), oito pescadores da comunida-de garífuna de Triunfo de la Cruz foram chamados, por elementos das Forças Armadas que cuidam da vigilância do refúgio de vida silvestre Cuero y Salado, enquanto estavam pescando em frente à área protegida. Segundo o testemunho dos pescadores, logo que foram detidos pe-los militares, sem dizer palavra estes começaram a atirar, sendo assassinado o pescador Guillermo Norales Herre-ra, originário da comunidade de Triunfo de la Cruz, que recebeu impactos aparentemente causados por um fuzil M16, normalmente usado como arma de suprimento dos militares hondurenhos.

Ao receber as rajadas de balas, os pescadores gritaram que haviam matado um deles, e os militares simplesmen-te se retiraram deixando-os por sua própria conta. Car-los Colón, outro dos pescadores, encontra-se hospitali-zado, pois, ao atirar-se ao mar, foi ferido por uma arraia.

O assassinato do pescador Guillermo Morales soma-se à série de violações dos direitos humanos perpetradas pelas Forças Armadas acantonadas em áreas protegidas. A população garífuna estabelecida em Cayos Cochinos tem uma amarga experiência em relação à repressão sur-gida como conseqüência da aplicação dos planos de ma-nejo para essa zona. Por isso encaminhou uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pelas agressões com armas de fogo a que os pescadores garífu-nas têm sido submetidos.

A costa norte de Honduras tem sofrido um saque siste-mático dos recursos ictiológicos perpetrado pela frota pesqueira industrial da Isla de la Bahia, afetando o direi-to à alimentação dos pescadores artesanais – em sua maioria garífunas – os quais têm visto suas capturas ca-írem de forma vertiginosa, necessitando viajar a distân-cias maiores de suas comunidades para obter o sustento de suas famílias.

A criação de áreas protegidas, sem consulta, tem gera-do tensões sobre o manejo dos recursos, desdenhando o conhecimento tradicional garífuna, o qual tem permiti-do a conservação da maioria dos territórios que ocupa-mos, a ponto de 28 das 46 comunidades que habitamos no país, encontrarem-se dentro das áreas protegidas ou de suas zonas de amortecimento.

Cuero e Salado eram duas comunidades garífunas cuja população se viu forçada a emigrar no início dos anos 1990, como resultado da restrição do direito à alimenta-ção que foi imposta quando a zona se converteu em re-fúgio de vida silvestre, causando uma expulsão silencio-sa de 38 das 40 famílias que habitavam a área de terras úmidas. Cabe assinalar que a Fundação Cuero e Salgado foi a primeira entidade privada à qual se entregou o ma-nejo de uma área protegida, sendo seus funcionários em muitas ocasiões apontados por sua mancomunação com a Standard Fruit Company, que possui uma fábrica de extração de dendê (Caisesa) em uma das cabeceiras hí-dricas do refúgio, e que vem contaminando com dejetos da usina de óleo tais áreas úmidas.

As contradições que infestam o manejo das áreas pro-tegidas em Honduras têm servido aos interesses de uns poucos e à repressão dos povos indígenas e das comuni-dades locais. A expulsão técnica das comunidades de Cuero e Salado foi repetida em Cayos Cochinos, onde, em um dado momento, os pescadores foram perseguidos enquanto se permitia à frota pesqueira industrial a ex-tração irracional de crustáceos. Hoje em dia, os reality shows são uma amostra das inconsistências dos “am-bientalistas” que, enquanto proíbem aos garífunas che-gar perto de Cayo Paloma, convertem o local num cená-

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Ataques, políticas, resistência, relatos

rio periódico para seus shows.A Bahía de Tela, área contígua ao refúgio Cuero y Sa-

lado, nos últimos anos tem sido um centro de conflitos raciais instigados por empresários e políticos que há mais de duas décadas vêm pretendendo a implementa-ção de um megaprojeto turístico para a zona. Atualmen-te está sendo construído um grande empreendimento de turismo com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (bid). O projeto acarreta o aterro de 80 hectares de uma área úmida na qual, apesar de estar protegida pelo Convênio de Ramsar, pretendem cons-truir um campo de golfe. Esse é outro caso em que a população garífuna agüentou atitudes repressivas por parte da entidade a cargo do cuidado do parque, deno-

minada Fundação para a Proteção de Lancetilla, Punta Sal e Texiguat (Prolansate), com o pressuposto de que estavam conservando a área úmida, quando era voz po-pular as aspirações ecocidas da elite do poder sobre as lagunas de Micos e Quemada.

Por “casualidade” é que há dois anos foram assassina-dos os jovens garífunas Epson Andrés Castillo e Yino Eligio López, por mãos de membros das Forças Arma-das. No julgamento efetuado foram sentenciados os sol-dados implicados e, claro, se omitiu fazer qualquer men-ção sobre o oficial a cargo das execuções. Aparentemen-te, no informe do legista excluiu-se a menção ao tipo de arma utilizada. Esse não é o primeiro caso em Honduras onde as autoridades protegem os oficiais e elementos das

Forças Armadas. Basta recordar que os crimes cometi-dos pelos militares durante a década de 1980 permane-cem impunes, lançando, dessa forma, uma fatídica ad-vertência para o futuro.

Os fatos ocorridos na noite de ontem em Cuero y Sala-do são mais uma amostra da política que existe contra os direitos do povo garífuna. Por aí se vê como, a cada dia, mais nossos territórios são reduzidos ao serem ato-mizados em nome de um suposto desenvolvimento que serve mais aos investidores e empresários que a nosso povo. Por outro lado, alguns operadores da justiça dei-xam de ser imparciais, colocando-se a serviço daqueles que querem nos ver abandonar as praias em que vive-mos.

Fazemos um chamado às autoridades governamentais para efetuarem uma investigação exaustiva sobre os acontecimentos. E que caia o peso da lei sobre os milita-res assassinos. Além disso, que cesse a perseguição aos pescadores artesanais e sejam tomadas medidas necessá-rias para frear a destruição causada pela pesca de arraste da frota industrial, verdadeira causa do ecocídio que afeta a costa norte de Honduras. Também exigimos que se respeitem os direitos sobre os territórios ancestrais de nossas comunidades, incluindo o direito ao habitat fun-cional e o direito à alimentação do povo garífuna. l

Miriam MirandaOrganización�Fraternal�Negra�Hondureña

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Com o fantasma da nova Revolução Verde rondando sobre a África, a Via Campesina celebra sua Quinta Conferência Internacional em Maputo, capital de Moçambique, num momento em que, de todos os re-cantos do planeta, surgem vozes de alarme, mas também muitas propostas, diante da crise alimentar que o mundo atravessa, perante a qual os organismos internacionais, os governos e as fundações “humani-tárias” promovem, com exagerada publicidade para todo o mundo, uma remediação que lhes dá oportuni-dade de promover mais privatização de terras, paco-

tes tecnológicos com sementes de laboratório, mais agrotóxicos, maior subjugação da cadeia alimentar completa e novas estratégias para desmantelar a agricultura camponesa que continua independente de seu controle.

Diante disso, “a Via Campesina oferece uma visão real e soluções à atual crise da alimentação. As e os pequenos agricultores de todo o mundo estão lu-tando pela sobrevivência. A crise no setor agrário, a atual crise financeira, as crises climática e do meio ambiente, a crise energética e a profunda cri-se social global são sintomas do mesmo modelo, o modelo neoliberal, que faz com que o conjunto da sociedade esteja organizado em função da obten-ção do lucro”, diz um dos boletins para imprensa da Quinta Conferência.

Hoje, a Via Campesina, com quinze anos de exis-tência, mas com uma coleção de tradições alimen-tando seu que fazer atual, é a mais importante rede mundial de pessoas e coletivos dedicados à agri-cultura, sejam camponeses ou pequenos produto-res. Sua voz “está cada vez mais presente na opi-nião pública internacional e em foros internacionais”, e sua autoridade moral fez com que ganhasse um lugar entre aqueles que lutam

contra a globalização do capitalismo e da miséria. Essa Quinta Conferência é, na realidade, “a as-

sembléia principal da Via Campesina, que ocorre a cada quatro anos. É um espaço onde se adotam, de forma coletiva, as grandes decisões políticas e de organização”. Nessa assembléia, a organização an-fitriã foi a União Nacional de Camponeses de Mo-çambique.

Apresentamos, então, algumas das declarações importantes da Via Campesina nessa sua assem-bléia, que é o momento em que as delegações de

todos os continentes e muitos amigos desse tenaz movimento camponês reúnem-se para discutir o panorama geral que afeta a agricultura, mas tam-bém a justiça: um dos textos é seu boletim para imprensa no Dia da Alimentação, e o outro é a De-claração de sua Assembléia de Jovens.

Em um mundo no qual, em certos momentos, o panorama pode parecer sombrio, a Via Campesina reivindica a história de luta do campesinato e sua lúcida visão do horizonte atual e, por isso, afirma: “As e os pequenos produtores do Sul e do Norte vêm, há muitos anos, lutando por um modelo de produção agrícola baseado em unidades produtivas familiares e por uma agricultura sustentável, opon-do-se ao modelo agrícola orientado à indústria e à exportação, que conduziu à destruição dos meios de sustento das comunidades rurais, e do entorno na-tural. A atual crise deixa claro que um sistema ali-mentar baseado na importação e na chamada ‘Revo-lução Verde’ não é seguro, além de gerar fome e pobreza. Chegou o tempo da produção local de ali-mentos, de uma agricultura sustentável e de baixa intensidade na utilização de energias fósseis, e do empoderamento do campesinato e das e dos peque-nos agricultores.

Ecos�da�Quinta�Conferência�da�Via�Campesina

Crise ou soberania alimentar?

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��Boletim�para�imprensa�Podemos acabar

com a Crise Alimentar

Maputo, 16 de outubro de 2008. Somen-te é possível acabar com a crise alimen-tar através da soberania alimentar e da agroecologia. Assim enfatiza a Via Campesina, de Maputo, onde inicia seu Congresso com uma Assembléia de Jo-vens Rurais de todo o mundo.

Há muitos jovens que querem se insta-lar na agricultura com modelos agroe-cológicos: produção sustentável e autô-noma e venda em seu entorno. Entretanto, as políticas atuais os impe-dem e favorecem à agroindústria.

Hoje, 16 de outubro, Dia Mundial da Alimentação da fao, a Via Campesina lança uma mensagem de esperança diante da crise alimentar mundial, de-corrente de um modelo industrial agro-exportador, às custas de milhões de pes-soas camponesas e do conjunto da população em todas as partes do mun-do.

É possível acabar com dita crise, desde que se abandone esse modelo que elimi-na camponeses/as, destrói a biodiversi-

dade e o meio ambiente e gera fome e miséria no mundo. A crise alimentar é o elo mais dramático da cadeia de crises que o sistema econômico neoliberal está gerando – crise climática, energética, financeira, da biodiversidade. É o mo-mento de mudar de rumo, começando precisamente pela agricultura.

A alternativa é a soberania alimentar, que permite aos povos desenhar suas próprias políticas agroalimentares, que favoreçam a produção e a distribuição camponesa local e sustentável para abastecer sua população.

A Via Campesina lança essa mensa-gem em pleno processo de debate, por ocasião de sua V Conferência, em Ma-puto, que reúne mais de 600 represen-tantes camponeses e camponesas de todo o mundo. Precisamente, cerca de 60% da comida que se consome em Moçambique é importada, e o proble-ma da fome e desnutrição nesse país não cessa. Moçambique, como todos os países do mundo, precisa ser soberano em alimentação e impulsionar seu setor primário sustentável – com métodos respeitosos com a natureza para ali-mentar a sua população e acabar com a fome.

Hoje, em Maputo, na Assembléia de Jovens, enfatiza-se que é necessário fa-cilitar o acesso das novas gerações à agricultura e aos meios de produção. Nessa Assembléia, constata-se que há muitos jovens que querem instalar-se na agricultura com essa nova visão da agroecologia e ainda não podem. A Via Campesina solicita aos governos que facilitem a essas pessoas jovens o acesso à terra, ao crédito e aos auxílios para se instalarem, pois o futuro da agricultura e da alimentação dependem delas. Em outras palavras, não se poderá solucio-nar a crise alimentar enquanto não se tornar extensiva a instalação de jovens na agricultura com modelos agroecoló-gicos e soberanos.

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Lutaremos até a vitória, até que as jo-vens e os jovens de todo o planeta pos-sam viver no campo, como campone-ses, em paz e com prosperidade. Quando os Estados tentarem nos repri-mir, nos uniremos em solidariedade para continuar a luta. Quando uma companheira cair, a levantaremos. Quando fizer frio, nos abraçaremos até que o fogo de nossa luta nos aqueça o coração. E a cada dia comprometere-mos nossos corpos, nossas mentes e nosso coração na linha de frente para defender a vida e a luta pela Via Cam-pesina.

Durante os dias 16 e 17 de outubro de 2008, jovens de mais de quarenta países dos cinco continentes, campones@s de distintos povos e culturas pertencentes à Via Campesina, nos reunimos em Ma-puto, Moçambique, para celebrar nossa segunda Assembléia Mundial de jovens da Via Campesina. A juventude da Via Campesina aqui presente, diante das desigualdades e misérias que estão se

apropriando do mundo, somos e nos sentimos o presente e o futuro de uma nova sociedade que sustenta o mundo. Mas temos problemas comuns que difi-cultam isso. O maior de nossos proble-mas é o sistema capitalista/neoliberal que, com seus meios de repressão, ex-torção e propaganda, estendeu as desi-gualdades e injustiças pelo mundo todo. Esse sistema impôs uma agricultura produtivista que provoca o abandono do meio rural, migrações entre regiões, dificulta o acesso à terra e aos bens na-turais e fomenta os transgênicos, a per-da da soberania alimentar e novas for-mas de colonização como os agronegócios. Esses problemas afetam de forma especial aos jovens, mulheres e à classe trabalhadora.

Diante dessa crua realidade, as e os jo-vens da Via Campesina, com força e sentimento, apostamos em um novo modelo social baseado na soberania ali-mentar dos povos através da reforma agrária integral. E para isso propomos:

O campo é nossa vidaA terra nos alimenta

Os rios correm em nosso sangueSomos a juventude da Via Campesina

Hoje declaramos o início de um novo mundoViemos dos quatro cantos da Terra

Para nos unir com espírito de resistênciaTrabalhar criando esperançaConversar sobre nossas lutas

Aprender com o trabalho que realizamosInspirar-nos com nossas canções e histórias

Construir a solidariedade entre nossos movimentosUnificar-nos como força para a mudança social.

Daqui voltaremos para todos os rincões do mundoLevando conosco um espírito de revolução

Com a convicção de que outro mundo é possívelE o compromisso de lutar a favor da nossa maneira de viver

A crise no setor agrário, a atual crise financeira,

as crises climática e do meio ambiente, a crise

energética e a profunda crise social global são

sintomas do mesmo modelo, o modelo

neoliberal, que faz com que o conjunto da

sociedade esteja organizado em funçãoda obtenção do lucro

��Declaração�Segunda Assembléia de Jovens da Via Campesina

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• Acesso à terra, com políticas de apoio ao retorno e à fixação da juventude no campo, para poder assegurar a ali-mentação e o futuro de nosso plane-ta.

• Luta e ação contra o modelo neolibe-ral, o imperialismo, as forças de ocu-pação, os tratados de livre comércio, as políticas agrícolas impostas pela omc, o fmi, o Banco Mundial, as multinacionais, o consumismo, os or-ganismos geneticamente modificados, a criminalização das organizações so-ciais e das migrações de trabalho.

• Solidariedade entre as regiões como movimentos sociais que estão levan-do a cabo modelos alternativos frente ao sistema neoliberal, mediante prin-cípios de integração com reciprocida-de, complementaridade e cooperação para superar desigualdades sociais.

• Formação política e ideológica inte-gral da juventude. Educação popular. Formação camponesa em técnicas agroecológicas.

• Melhora da comunicação entre as e os jovens de diferentes organizações e culturas e criação de redes de comu-nicação alternativas como instrumen-to político e social para transformar o modelo dominante.

• Aprofundamento e avanço no debate sobre as causas das migrações e da situação da classe trabalhadora.

• Articulação de relações e alianças po-líticas, sociais e culturais entre jovens do campo e da cidade, com vistas à unidade dos jovens do mundo para a mudança social e a conquista da sobe-rania alimentar.

Para materializar essas propostas, nosso plano de ação inclui: criar uma comissão provisória de jovens, durante a V Conferência, para dinamizar o tra-balho de coordenação; realizar pelo me-nos um encontro de jovens por regiões em 2009; realizar um acampamento in-ternacional na Espanha, no final de 2009. Outros aspectos que trabalhare-mos nos próximos quatro anos são os seguintes:

• Fomentar a formação político-ideo-lógica e técnica em cada região. Ela-borar e socializar materiais informa-tivos ideológicos ligados às reivindicações da Via Campesina. Elaboração de uma lista de escolas de formação política em nível interna-cional.

• Criar e melhorar a comunicação entre nossas organizações, criar alianças com outras organizações que lutem por objetivos similares aos da Via Campesina e abrir e socializar os con-teúdos desta assembléia a outras orga-nizações amigas e pessoas jovens. Nos comprometemos a construir, desen-volver e fortalecer nosso espaço como jovens nas organizações nacionais, re-gionais e internacionais da Via Cam-pesina, pelo que pedimos a incorpora-ção de dois jovens, um homem e uma mulher, na Comissão Coordenadora Internacional (cci).

A Via Campesina vem, há muitos anos, lutando por um modelo de produção agrícola baseado em unidades produtivas familiares e por uma agricultura sustentável, opondo-se ao modelo agrícola orientado à indústria e à exportação, que conduziu à destruição dos meios de sustento das comunidades rurais, e do entorno natural

Mais�informações�com�Isabelle�Delforge�[email protected] www.viacampesina.org

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Aflige-nos saber que, enquanto há cada vez mais alimento no mun-

do, seu preço sobe e cresce a fome, pois a crise alimentar – que se expressa, em primeiro lugar, como uma falta de acesso à comida por parte dos mais po-bres – se assenta sobre o controle oli-gopólico de 80% da produção de ali-mentos como o trigo e o milho por parte de empresas multinacionais como a Monsanto, a Cargill e a Bunge, que também controlam a produção de se-mentes, de fertilizantes e de agrotóxi-cos. A crise inicia-se pela entrada dos alimentos nos mercados agrícolas mundiais e nas bolsas financeiras inter-nacionais, que facilitam o enriqueci-mento especulativo de uns poucos, e se intensifica pela concorrência entre a produção de agrocombustíveis e a de alimentos, com base no controle priva-do de bens comuns da humanidade como a água, a terra e a biodiversida-de.

Na Colômbia, enormes iniqüidades históricas aprofundaram-se com a aber-tura econômica e a consolidação do modelo dominante, excludente e priva-tizador, que gera destruição e saqueio de nossos territórios, privatiza os bens de uso comum e coletivo, aprofunda as crises alimentares locais, regionais, na-cionais e globais, derivadas da espolia-ção e concentração da terra por parte de grandes proprietários de terra e de capitais internacionais. É a privatização do patrimônio natural e dos territórios coletivos, o extermínio das comunida-des indígenas ancestrais, afrodescen-dentes, urbanas e camponesas, e a des-truição de suas formas de organização. É o controle social, econômico, cultural e político de seus territórios por parte do Estado, suas forças armadas, e pelos grupos guerrilheiros e paramilitares. São as políticas contra a autonomia e o controle local dos povoados, buscando mercantilizar seu patrimônio natural e

Declaração�do�Encontro�Nacional

Crise Alimentar na Colômbia, Ações Sociais para a Defesa da Soberania e da Autonomia Alimentar

Procedentes de todos os recantos do país, membros de organizações camponesas, indígenas, afrocolombianas,

urbanas, de mulheres, ambientalistas e não governamentais, participamos com nossas sementes tradicionais, alimentos,

conhecimentos e sabedorias ancestrais – e a alegria de trabalhar pela vida, pela terra e pela soberania alimentar – deste Encontro Nacional em Bogotá, de 4 a 6 de setembro,

refletindo sobre a crise alimentar mundial que ameaça nossas regiões, territórios coletivos, identidade, cultura, usos e costumes, analisando como podemos assumir tarefas

conjuntas na defesa de nossos territórios coletivos, tradições culturais alimentares e de uma vida digna para nossas

famílias e grupos sociais.

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cultural em favor das instituições finan-ceiras e dos grandes capitais. É entregar a soberania alimentar e territorial de nossos povos através de tratados de li-vre comércio, da imposição de novos modelos tecnológicos e produtivos de monopolização, concentração e privati-zação dos sistemas de abastecimento alimentar – da produção das sementes ao consumo de alimentos.

Em nosso país [Colômbia], 57% dos proprietários, que possuem menos de 3 hectares cada, controlam somente 1,7% da área para uso agropecuário, enquan-to 0,4% dos proprietários, que possuem áreas maiores de 500 hectares, contro-lam 62,3% das terras cultiváveis. Ape-sar dessa iniqüidade, hoje em dia a pro-dução das famílias camponesas, indígenas e afrocolombianas contribui com mais de 55% dos alimentos consu-midos em nossas cidades, com uma im-portante e invisível participação das mulheres em todas as fases do sistema alimentar.

A concentração da terra, restabelecida historicamente pelo conflito armado, tornou-se mais aguda nos últimos anos, junto com o deslocamento forçado de mais de quatro milhões de pessoas dos povoados rurais, aprofundando a espo-liação dos territórios e destruindo a ca-pacidade que ditas comunidades e as populações urbanas historicamente as-sociadas a seus processos têm de decidir livremente sobre a produção e o consu-mo de alimentos.

Na Colômbia, a crise alimentar mani-festa-se com cifras alarmantes: quase a metade da população do país encontra-se em condições de pobreza que impe-dem o adequado acesso econômico aos alimentos e impõem uma situação críti-ca de fome a pelo menos 41% dos lares colombianos. Para vergonha de nossos governos, o ritmo de crescimento da fome em nosso país é mais elevado do que o da África Subsaariana; 45% das mulheres gestantes na Colômbia têm anemia, 58,2% das famílias rurais de-claram que uma criança vai dormir sem comer, e mais de 80% das crianças me-nores de cinco anos, em várias comuni-dades indígenas e afrodescendentes, so-

frem de desnutrição crônica. Nosso país passou da auto-suficiência

na produção de milho, em 1990, a im-portar mais de 2,5 milhões de tonela-das, ou seja, mais de 75% do consumo nacional. É um absurdo que um país como a Colômbia importe mais de oito milhões de toneladas de alimentos, sen-do que grande parte deles depende do mercado global não regulado ou subsi-diado nos países do norte, da especula-ção agrícola e dos preços fixados em bolsas estrangeiras. Apesar disso, as políticas e metas de produção agrícola do governo, orientadas por organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, concentram-se na produção de cultivos para exportação e no plantio de três milhões de hectares para agrocombus-tíveis.

Ante esse panorama, nos declaramos em resistência e oposição frente aos processos e políticas que tornam vulne-ráveis as formas tradicionais de produ-ção, comercialização e intercâmbio de sementes e de alimentos e, conseqüen-temente, a autonomia alimentar das comunidades e a soberania alimentar do país; que expropriam o patrimônio natural existente das comunidades ru-rais:

• Todas as formas de privatização da vida, do conhecimento e dos bens co-muns, públicos e coletivos (água, ar, solo, florestas, biodiversidade, entre outros).

• As políticas e leis ambientais, rurais e urbanas do governo nacional emoldu-radas pela estratégia “Colômbia 2019”, que, além do mais, propiciam a entrega da soberania dos povos e territórios das comunidades ao capital internacional e aos grupos de poder econômico locais, nacionais e globais, e promovem o controle, a monopoli-zação e a certificação obrigatória das sementes e das produções agroecoló-gicas e pecuárias.

• O Estatuto Rural, uma das normas mais agressivas na recente história do país, com o qual se pretende aprofun-dar o modelo monopolista das trans-

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nacionais, de produção agroindus-trial insustentável, e legalizar a expropriação histórica das terras, por parte de todos os atores da guerra e dos grandes capitais que os estimu-lam.

• Todas as formas de guerra que a po-pulação colombiana enfrenta, qual-quer que seja sua origem, e os proces-sos de militarização que o governo nacional promove.

• Os megaprojetos que, sem consulta, são instalados nos territórios, igno-ram o mandato do Direito Maior dos povos indígenas e a autodetermina-ção das comunidades camponesas, afrocolombianas e urbanas, violam direitos territoriais coletivos e geram impactos negativos ambientais, so-cioeconômicos e culturais. Particular-mente, a Iniciativa de Infra-estrutura Regional da América do Sul (iirsa), que estimula modelos de desenvolvi-mento não sustentáveis e favorece in-teresses multinacionais.

• A imposição, produção e controle de tecnologias baseadas no uso de agro-químicos, modelos agrícolas de mo-nocultivos de transgênicos, agrocom-bustíveis e plantações florestais; as explorações minerais, de petróleo e energéticas geradoras de violência, deslocamento de populações rurais e urbanas e impactos ambientais e so-cioeconômicos sobre os territórios e a qualidade de vida das comunidades, que competem por componentes es-senciais do nosso patrimônio natural como a terra, a água e a produção na-cional de alimentos.

• Os tratados de livre comércio da Co-lômbia com os Estados Unidos e a União Européia, com os quais se pre-tende entregar a soberania dos povos e a soberania alimentar às transna-cionais de produção agrícola e de ali-mentos.

• A promoção da mudança da produ-ção nacional de alimentos para agro-combustíveis, amparada em falsas promessas de rentabilidade para os pequenos produtores, suposta gera-ção de emprego e falsa solução da crise energética e das mudanças cli-

máticas mundiais.• A perversão do uso da coca, de seus

valores espirituais, medicinais e de uso alimentar, tanto por parte do go-verno colombiano, que a criminaliza, como por aqueles que a prostituem, cultivando e transformando com quí-micos nossa planta sagrada, para le-sar a saúde humana e alimentar a fome e a miséria de nossos povos.

• A erradicação química dos cultivos de uso ilícito, que colocam em risco a saúde e a segurança alimentar das co-munidades, obedecendo às diretrizes dos países que impõem as políticas de controle do narcotráfico.

• A criminalização da palavra, do pen-samento crítico e das ações de resis-tência das pessoas e organizações que sustentam posicionamentos alternati-vos frente às políticas e ao modelo de desenvolvimento econômico que o governo nacional promove.

• O posicionamento do governo nacio-nal sobre a suposta “blindagem” do país frente à crise alimentar, e sua promoção da “segurança” alimentar da população, importando alimentos ou estimulando programas assisten-cialistas que não detêm as causas es-truturais da fome.

Continuaremos defendendo a sobera-nia e a autonomia alimentar, com base em:

• Os processos e organizações sociais e o trabalho que, enquanto comunida-des, estamos desenvolvendo dentro e fora do país, na defesa da soberania e da autonomia alimentar e frente aos megaprojetos de desenvolvimento existentes.

• Ações para a defesa integral de nos-sos territórios, do patrimônio coleti-vo natural e cultural, de todas as for-mas de vida e de produção das comunidades indígenas, camponesas e afrodescendentes. Essas ações de-vem incluir o incentivo a processos de qualificação e de formação política e organizacional das comunidades ru-rais e urbanas para proteger os sabe-res tradicionais, os territórios, a so-

A crítica situação de fome atinge, na Colômbia,

pelo menos 41% dos lares. Para vergonha do

governo, o ritmo de crescimento da fome no

país é mais elevado do que o da África Subsaariana;

45% das mulheres gestantes na Colômbia

têm anemia, 58,2% das famílias rurais declaram

que uma criança vai dormir sem comer, e

mais de 80% das crianças menores de

cinco anos, em várias comunidades indígenas e afrodescendentes, sofrem

de desnutrição crônica.

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berania e autonomia alimentar, e o controle local que garanta a perma-nência desses conhecimentos para as gerações futuras; estabelecer alianças entre os diferentes setores sociais ur-banos e rurais, para a sensibilização, difusão e convergência de iniciativas e ações de construção de propostas alternativas frente aos modelos eco-nômicos capitalistas e não sustentá-veis.

• O apoio aos sistemas de produção tradicionais e com enfoques agroeco-lógicos, baseados na biodiversidade, sementes nativas e conhecimento tra-dicional.

• O incentivo a diálogos e alianças en-tre populações camponesas e urba-nas, com a finalidade de garantir uma alimentação sadia e sustentável, que elimine os monopólios na interme-diação e fortaleça os mercados locais e as diversas formas de intercâmbio, como estratégias para se contrapor aos modelos que destroem a econo-mia camponesa.

• A identidade e pertença a nossos ter-ritórios, nossa cultura, usos, costu-mes e formas de produção, a sabedo-ria, os saberes e as práticas ancestrais, como base essencial das estratégias de defesa da soberania e da autono-mia alimentar.

• A construção de conhecimento e de tecnologias produtivas de acordo com as necessidades, realidades e possibilidades das comunidades ru-rais, de tal forma que nos permitam romper as normas que impõem o controle monopólico dos recursos e as certificações que favorecem so-mente às grandes empresas.

• A reapropriação do público para ga-rantir que os bens e serviços comuns, coletivos e comunitários continuem cumprindo sua função social.

• O apoio ao referendo de reforma constitucional para consagrar o direi-to humano fundamental à água potá-vel, um mínimo gratuito para atender às necessidades vitais, a gestão públi-ca indelegável e diretamente estatal ou comunitária da água, e a proteção especial dos ecossistemas essenciais

do ciclo hídrico. • Planejamento de vida e de manejo co-

letivo de acordo com nossa cultura, usos, costumes e realidades locais, com equilíbrio ecossistêmico e espiri-tual da vida e com nossa visão do ter-ritório, frente aos planos governa-mentais de ordenamento territorial que buscam fragmentar a integralida-de de nossos territórios.

• Desaprender o aprendido reivindi-cando o próprio, o que nos obriga-ram a esquecer: a relação com a terra, com a água, com o ar, a aprender fa-zendo, percorrendo e vivendo os ter-ritórios para construir novas formas de vida. l

Bogotá,�6�de�setembro�de�2008Declaração�aprovada�por�157�organizações

de�base�e�ongs�de�todo�o�país

Apoiamos o referendo de Reforma Constitucional para consagrar o direito humano fundamental à

água potável, um mínimo gratuito para atender às

necessidades vitais, a gestão pública indelegável e diretamente estatal ou comunitária da água, e a

proteção especial dos ecossistemas essenciais do

ciclo hídrico.

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�0

Os participantes do evento nacional Crise ali-mentar na Colômbia, ações sociais para a de-

fesa da segurança, soberania e autonomia alimentar, realizado em Bogotá, entre 4 e 6 de setembro de 2008, no qual participamos mais de 150 organiza-ções indígenas, afrocolombianas, camponesas, or-ganizações não governamentais e representantes de dez organizações da América Latina, expressamos nossa solidariedade a todas as vozes alternativas que as estigmatizações criminalizadoras querem ca-lar e, em especial, nossa solidariedade a Héctor Mondragón, pesquisador e pacifista, defensor dos direitos humanos dos camponeses, indígenas, com um reconhecido respaldo nacional e internacional.

Igualmente nos solidarizamos contra as estigmati-zações e perseguições que buscam enlamear, através de artifícios, a organização de direitos humanos minga, e as organizações indígenas do Cauca (acin e cric), e a Associação de Camponeses do Vale do Cimitarra (acvc), entre outras. Ditas estigmatiza-ções conduzem à violação dos direitos fundamentais, à espoliação de terras, aos deslocamentos forçados, à criminalização da palavra e do pensamento crítico.

Essas pessoas e organizações são envolvidas em obscuras campanhas de estigmatização por parte do governo, e alguns meios de comunicação de massa apóiam sem qualquer argumento crítico, apontando supostos vínculos dessas pessoas, organizações e en-tidades com os atores armados do conflito nacional, que paradoxalmente o governo empenha-se em des-conhecer, mas que utiliza segundo suas necessidades políticas conjunturais de relegitimação, dentro da cada vez mais evidente crise do corrupto e obscuro regime político nacional.

As organizações sociais e organizações não gover-namentais participantes deste encontro nacional, ex-pressamos nosso repúdio à criminalização das rei-

vindicações e da construção de propostas alternativas, apresentadas pelas organizações sociais e comunitá-rias pelo direito fundamental à vida, ao território, aos recursos e bens públicos e coletivos e à soberania alimentar dos afrocolombianos, indígenas e campo-neses.

Não aceitamos que se criminalize a palavra, o direi-to à dissensão, a defesa dos direitos humanos, o di-reito de viver em paz e em harmonia com o meio ambiente. Chamamos a defender ativamente todas as vozes alternativas, a busca da paz, o direito à pa-lavra e ao pensamento crítico na Colômbia. Reivin-dicamos o direito que temos todos os cidadãos de nos defender das políticas e projetos governamentais e do grande capital internacional – que buscam pri-vatizar todos os recursos naturais e os territórios das comunidades rurais.

Repudiamos as estigmatizações que o governo na-cional e os meios de comunicação fazem a essas pes-soas, organizações e entidades, as quais têm se desta-cado por sua responsabilidade pública com as buscas nacionais de paz e de justiça social. Denunciamos essa forma perversa de pretender manipular a opi-nião nacional e internacional, com atitudes que colo-cam em risco a vida e o trabalho daqueles que contri-buem para o bem estar dos setores sociais na Colômbia, em franca oposição às políticas oficiais de exclusão social, de privatização e de mercantilização dos recursos naturais, bens públicos e patrimônios coletivos, como a água, a terra e a biodiversidade, que são indispensáveis para a soberania e autonomia alimentar.

Não criminalizem a palavra, não criminalizem a luta pela soberania alimentar! l

Bogotá, 4 de setembro de 2008

Solidariedade e denúncia

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Biodiversidade, sustento e culturas é uma revista trimestral (quatro números por ano). As organizações populares, as ONGs e as instituições da América Latina podem recebê-la gratuitamente. Por favor, enviem seus dados com a maior precisão possível para simplifi car a tarefa de distribuição da revista.

Os dados necessários são:País, organização, nome e endereço completos: código de endereçamento postal (CEP), cidade e estado.(Correio eletrônico, telefone e/ou fax, se houver.)

Enviem, por favor, sua solicitação a BIODIVERSIDAD, REDES-AT, San José 1423, 11200 - Montevidéu, Uruguai. Telefones: (598 2) 902 23 55/908 [email protected]/[email protected]

ConteúdoEDITORIAL 1

Ajuda em sementes, agroempresas e crise alimentar 3

Fome e transgênicos 8

Fluxo de alimentos e Tratados de Livre Comércio 9

UMA PANORÂMICA E MUITAS VISTAS 10 No futuro será imprescindível produzir alimentos próprios

O Brasil e seus bois multinacionais 18

Meatrix: o negócio da carne 23

ATAQUES, POLÍTICAS, RESISTÊNCIA, RELATOS 24não querem transgênicos na África, não?/ Brasil: fi nanciando a contamina-ção/ os jeitinhos da Monsanto no México/ Equador: O governo, a constituição, os indígenas e as mineradoras/ as paralisações antimineradoras prossegui-rão/ carta aberta sobre a nova constituição/ assassinam defensor de direitos humanos na Colômbia/ dendê em Chiapas: paramilitar?/ Estados Unidos se posicionam na Guatemala/ Argentina: perseguição aos camponeses/ Hondu-ras: mais um assassinato em nome da suposta proteção das áreas protegidas

Ecos da Quinta Conferência da Via CampesinaCrise ou soberania alimentar? 32

Declaração do Encontro Nacional:

Crise Alimentar na Colômbia - Ações Sociais

para a Defesa da Soberania e da Autonomia Alimentar 36

Solidariedade e denúncia 40

A série de fotos deste número é de Jerónimo Palomares e foi tirada no estado de Puebla, México. As ilustrações que acompanham a revista e o caderno de biodi-versidade número 25 provêm do livro El diseño indígena argentino, de Alejandro Eduardo Fiadone, La Marca Editora, 2006, e são desenhos pré-hispânicos de di-versas culturas indígenas assentadas no que hoje é a Argentina. Agradecemos a sensibilidade do autor em permitir a utilização das imagens sempre e quando seja com fi ns artísticos e sem lucro. Nesse caso, nossa publicação sem fi nalidade de lucro, além de ter fi ns artísticos, visa documentar, divulgar e conservar a tradição de desenho indígena do continente (e do mundo) e servir de fonte secundária para que as pessoas tenham acesso a obras de sistematização como a de Alejandro Eduardo Fiadone.As organizações populares e as ongs da América Latina podem receber gratuitamente a revista. Con-tatar REDES-AT Uruguai: [email protected]/[email protected] Convidamos a que se comuniquem conosco e nos enviem suas experiências, sugestões e comentários. Dirigir-se a Ingrid Kossman: [email protected]. Os artigos assinados são de responsa-bilidade de seus autores. O material aqui reunido pode ser divulgado livremente, mas agradecemos se a fonte for citada. Por favor nos enviem uma cópia para nosso conhecimento.

Agradecemos o apoio da SwedBio e da Cooperación al Desarrollo de la Consejería de la Vivienda y Asuntos Sociales del Gobierno Vasco. Agradecemos o apoio da Heifer

Internacional Programa Brasil e Argentina para a publicação da edição em português.

BIODIVERSIDADESUSTENTO E CULTURAS

Número 58, outubro de 2008

Biodiversidade, sustento e culturas é uma pu-blicação trimestral de informação e debate sobre a diversidade biológica e cultural para apoio às comunidades e culturas locais. O uso e conservação dos recursos genéticos, o impacto das novas biotecnologias, patentes e políticas públicas são parte de nossa cobertu-ra. Inclui experiências e propostas na Améri-ca Latina, e busca ser um vínculo entre aque-les que trabalham pela gestão popular dos recursos genéticos, especialmente as comuni-dades locais: mulheres e homens indígenas e afroamericanos, camponeses, pescadores e pequenos produtores.

Organizações coeditorasAcción Ecoló[email protected]ón por la [email protected] de Sementes da Vía Campesina – [email protected] Ecoló[email protected]@grain.orgGrupo etcveró[email protected] [email protected] de Coordinación en [email protected] Uruguai [email protected]

Comitê EditorialMa. Eugenia Jeria, ArgentinaCarlos Vicente, ArgentinaCiro Correa, BrasilMaria José Guazzelli, BrasilGermán Vélez, ColombiaAlejandra Porras (Coeco-at), Costa RicaSilvia Rodríguez Cervantes, Costa RicaCamila Montecinos, ChileFrancisca Rodríguez, ChileElizabeth Bravo, EquadorMa. Fernanda Vallejo, EquadorSilvia Ribeiro, MéxicoMagda Lanuza, NicaráguaJuan Martin Drago, UruguaiCarlos Santos, Uruguai

AdministraçãoIngrid [email protected]

EdiçãoRamón Vera [email protected]

Design e diagramaçãoDaniel Ortega, Claudio [email protected] Borghetti (Brasil)[email protected]

Edição em portuguêsCentro Ecoló[email protected]

issn: 07977-888X

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Crise Alimentar ou novos negócios

às custas de nossa fome?

biodiversidade

caderno 25

Biodiversidade 58• outuBro 2008

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caderno 25 • Biodiversidade

Para todos que dependemos de comprar nossos alimentos nos mercados convencionais de provisões, está claro que, durante

os últimos meses de 2007 e em todo 2008, desencadeou-se uma escalada nos preços dos alimentos, que nos obrigou a restringir a aquisição de alguns deles e a desembolsar mais dinheiro para levar os mesmos alimentos a nossas famílias.

Como esse fenômeno repetiu-se em todas as partes do mundo, foi batizado de Crise Alimentar Mundial, e

imediatamente os meios de comunicação e os governos começaram a se ocupar do tema.

A Organização Internacional para Agricultura e Alimentação (fao) acaba de informar que, a partir da atual Crise Alimentar

Mundial, o mundo tem 75 milhões de novos famintos, levando o número de pessoas em situação de fome a nada

menos que 923 milhões.Mas a crise alimentar mundial não é um fenômeno natural,

não é conseqüência de uma seca e nem de aumento da população. Tem sua origem em decisões humanas, algumas que são evidentes, e outras que se mantêm ocultas. Isso é o

que procuramos compartilhar e explicar neste caderno.

Cadernos de Biodiversidade é um folheto colecionável de Biodiversidade sustento e culturas, outubro de 2008Ilustrações: desenhos pré-hispânicos de culturas indígenas que hoje se situam na argentina, tiradas do

livro El diseño indígena argentino, alejandro eduardo Fiadone, La Marca editora, 2006.

Organizações coeditorasAcción Ecológica [email protected] / Acción por la Biodiversidad [email protected] /

Campanha de Sementes da Vía Campesina – Anamuri [email protected] / Centro Ecológico [email protected] / grAIn [email protected] / grupo etc veró[email protected] / grupo Semillas [email protected] /

red de Coordinación en Biodiversidad [email protected] / rEDES-AT Uruguai [email protected]

Comitê Editorial Ma. Eugenia Jeria, Argentina / Carlos Vicente, Argentina / Ciro Correa, Brasil / Maria José guazzelli, Brasil / germán Vélez, Colômbia / Alejandra Porras (Coeco-AT), Costa rica / Silvia rodríguez Cervantes, Costa rica /Camila Montecinos, Chile / Francisca

rodríguez, Chile / Elizabeth Bravo, Equador / Ma. Fernanda Vallejo, Equador / Silvia ribeiro, México / Magda Lanuza, nicarágua / Martin Drago, Uruguai / Carlos Santos, Uruguai / Administração Ingrid Kossmann [email protected] / Edição ramón Vera Herrera

[email protected] / Desenho e formatação Daniel Ortega, Claudio Araujo [email protected] / Amanda Borghetti (Brasil)

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Biodiversidade • caderno 25

crise aLiMentar ou novos negócios às custas de nossa FoMe?

• Dizem para nós que há crise porque…Aumenta o preço do petróleo? Isso em parte é verdade, pois o atual modelo de agricultura é ab-solutamente dependente do petróleo: tanto para trabalhar a terra como para o transporte dos alimentos, gastam-se enormes quantidades de combustíveis. A isso se deve somar o uso intensivo de agroquímicos, que são produzidos a partir da indústria petroquímica. Porém, podemos ob-servar claramente que, quando o pre-ço do barril de petróleo cai, não ocor-re uma redução equivalente no preço dos alimentos.

Terras são destinadas à produção de agro-combustíveis no lugar de alimentos? Isso também ocorre, em parte, já que a febre desenfreada para produzir agrocombustíveis durante os últimos anos está ocupando terras antes destinadas a produzir alimentos, para produzir agora combustíveis para os au-tomóveis. Contudo, as terras que se destinam atualmente para pro-duzir agrocombustíveis não justificam o incessante aumento dos pre-ços de todos os alimentos.

Os chineses comem mais carne? Essa é outra das razões que têm sido dadas para justificar o aumento dos preços dos últimos meses. Mas também representa uma falácia, já que, em boa medida, a China é auto-suficiente na produção de alimentos (salvo em relação à soja, que importa para alimentar seu gado) e, por-tanto, não pode causar esse impacto sobre os preços mundiais de alimentos.

Todos esses fatores obviamente contribuem, mas não são suficientes para expli-car o espetacular aumento dos preços dos alimentos.

Não devemos esquecer que hoje se produzem no mundo alimentos suficientes para alimentar todas as pessoas. Ou seja, o problema dos milhões de pessoas que padecem – e das que padecerão – de fome tem uma causa importante na má dis-tribuição de alimentos que as sociedades humanas promovem.

• Por isso é evidente que...A principal causa da existência de crises alimentares se deve a haver gente cuja prioridade principal é produzir ganhos econômicos (aumentar o capital), ao invés de atender às necessidades humanas (que todos tenham acesso aos alimentos).

• Porque...Hoje se produzem alimentos suficientes para alimentar toda a humanidade.

Os camponeses e os povos indígenas continuam produzindo a maior parte dos alimentos em todo o planeta.

• Mas...A Organização Mundial do Comércio (organismo internacional que se propõe a regular o comércio e a estabelecer as regras das transações) e o Fundo Monetário Internacional pressionaram os governos dos países em desenvolvimento a libera-lizar o comércio agrícola. Isso quer dizer que se abriu a importação de alimentos e se proibiram as medidas que protegiam – mediante subsídios ou tarifas aduanei-ras – a produção nacional de alimentos.

As empresas estão decididas a

controlar toda a cadeia de produção de alimentos, desde as sementes até a comercialização dos produtos elaborados. Um punhado de empresas agora controla a produção e venda de sementes, agroquímicos, e a comercialização de grãos. Começaram com a Revolução Verde, nos anos 1970 (sementes híbridas, fertilizantes e agroquímicos), e continuaram com a Revolução Biotecnológica dos anos 1990 (sementes transgênicas que devem pagar direitos de propriedade intelectual, com uso intensivo de agroquímicos).

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caderno 25 • Biodiversidade

crise aLiMentar ou novos negócios às custas de nossa FoMe?

O México nos fornece um bom exemplo. Durante centenas de anos foi auto-suficiente em milho, mas, ao assinar o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, teve que permitir o ingresso de milho dos Estados Unidos. Esse milho era barato – pois lá sim é subsidiado – e prejudicou os agricultores mexicanos, que em poucos anos reduziram sensivelmente sua produção. Mas, durante 2007, o milho que chegava dos Estados Unidos era muito caro, e isso aumentou de forma terrível o preço da tortilla, o que gerou uma “explosão” social.

A Argentina também nos apresenta um triste panorama. Esse país é reconhecido no mundo por suas excelentes carnes, e, até uma década atrás, era costume comer carne todos os dias, até nos lares mais pobres. Mas, claro, a expansão do agrone-gócio da soja ocupou as melhores terras do pampa para criar um deserto verde (17 milhões de hectares plantados com soja), e é difícil encontrar campos com vacas pastando. A carne que é produzida é exportada, e a que se vende no merca-do interno é muito cara. Os pobres só podem comer carne assada ocasionalmen-te.

A liberalização do comércio agrícola significa claramente estabelecer as regras que são convenientes às empresas para fazerem negócios.

A comercialização de alimentos con-verteu-se em um negócio muito rentá-vel. As empresas estão decididas a con-trolar toda a cadeia de produção de alimentos, desde as sementes até a co-mercialização dos produtos elaborados.

Nas últimas décadas, elas se dedica-ram a comprar empresas menores e a se associar entre as grandes, fazendo o controle da produção e venda de semen-tes, agroquímicos, e a comercialização de grãos ficar nas mãos de um punhado de empresas. Fizeram isso através da Revolução Verde, nos anos 1970 (se-mentes híbridas, fertilizantes e agroquí-micos), e da Revolução Biotecnológica, nos anos 1990 (sementes transgênicas que devem pagar direitos de proprieda-de intelectual, com uso intensivo de agroquímicos).

• E como os lucros nunca são suficientes...A comercialização de matérias-primas tem cotação em bolsas de valores, e se desenvolveu um mercado de vendas futuras. Realizam-se contratos nos quais se compram colheitas que recém estão sendo semeadas, e, com esses papéis de su-postos grãos, realizam-se quantidades de negócios especulativos (contratos que especificam o preço e estabelecem que o bem não será pago até a data da entre-ga).

As grandes empresas encontraram a maneira de ganhar sempre. Quando os preços estão altos, vendem colheitas que ainda não têm. Quando os preços estão baixos, guardam os grãos para oportunidades melhores. Quando os governos têm que conter as populações com fome e subsidiam os grãos, as empresas ga-nham ao vender a preços elevados. Quando as secas produzem más colheitas, as empresas não perdem nada, pois o contrato obriga o produtor a lhes entregar a produção. Se o produtor não entrega nada, lhe embargam a terra, e perde o pro-dutor, e a empresa ganha. As empresas necessitam estradas ou vias navegáveis

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Biodiversidade • caderno 25

crise aLiMentar ou novos negócios às custas de nossa FoMe?

para transladar suas mercadorias, os governos tomam créditos e criam a infraes-trutura necessária para que as empresas façam seus negócios e ganhem.

Vejamos alguns exemplos concretos do que ocorreu com as empresas do agro-negócio enquanto se desencadeava a crise alimentar.

Comercialização de grãos. Em abril de 2008, a Cargill anunciou que os lucros que havia obtido com o comércio de produtos básicos de exportação no primeiro trimestre de 2008 aumentaram 86% em relação ao mesmo período do ano ante-rior.

A Bunge, outra grande comerciante de alimentos, no último trimestre fiscal de 2007 teve um aumento em seus lucros de 245 milhões de dólares, ou 77%, em relação ao mesmo período do ano anterior.

A adm, a segunda maior comerciante de grãos do mundo, experimentou um aumento de 65% em seus lucros em 2007, chegando a um recorde de 2,2 bilhões de dólares.

Empresas de sementes. A Monsanto, a maior empresa de sementes do mundo, declarou que seus lucros gerais aumentaram 44% em 2007, em relação ao ano anterior.

A DuPont, a companhia de sementes número dois do mundo, disse que seus lucros com a venda de sementes, em 2007, aumentaram 19% em relação a 2006.

A Syngenta, a empresa número um de agrotóxicos e número três de sementes, obteve 28% a mais de lucros no primeiro trimestre de 2008.

• O que se passou nos últimos cinco anos?O mundo das finanças e das especulações, a bolsa de Wall Street, enfrentou e enfrenta uma profunda crise. A bolha criada com negócios imobiliários cresceu e chegou a seu ponto máximo, por isso explodindo, e muitos “capitais abutres” (grupos especulativos que põem seu dinheiro onde conseguem lucros bons e rápi-dos) abandonaram a área imobiliária e passaram à promissora área dos agrone-gócios. Esse deslocamento aumentou o nível de especulação e o jogo financeiro no mercado de alimentos.

Hoje, as grandes agrocorporações obtêm lucros espetaculares especulando com a crise alimentar, aumentando seus lucros de forma impressionante enquanto nos-sos povos passam fome.

• E o que nos propõem os governos e a onu para enfrentar a crise?A Cúpula Alimentar realizada em junho passado, em Roma, expôs que: “É urgen-te ajudar os países em desenvolvimento e os países em transição a aumentar sua

As grandes empresas encontraram a maneira de ganhar sempre. Quando os preços estão altos, vendem colheitas que ainda não têm. Quando os preços estão baixos, guardam os grãos para oportunidades melhores. Quando os governos têm que conter as populações com fome e subsidiam os grãos, as empresas ganham ao vender a preços elevados. Quando as secas produzem más colheitas, as empresas não perdem nada, pois o contrato obriga o produtor a lhes entregar a produção. Se o produtor não entrega nada, lhe embargam a terra, e perde o produtor, e a empresa ganha.

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caderno 25 • Biodiversidade

crise aLiMentar ou novos negócios às custas de nossa FoMe?

agricultura e a produção de alimentos, e a aumentar o investimento público e privado na agricultura, nas agroempresas e no desenvolvimento rural”. Também afirma que “Incentivamos a comunidade internacional a prosseguir em seus esfor-ços de liberalização do comércio agrícola internacional mediante a redução dos obstáculos e das políticas que distorcem o mercado”, e acrescenta que essas me-didas “darão aos agricultores, em particular nos países em desenvolvimento, no-vas oportunidades de vender seus produtos nos mercados mundiais e apoiarão seus esforços para aumentar a produtividade e a produção”.

• O que isso significa?:

* Mais Revolução Verde

* Mais “Livre Comércio”

* Mais poder ao Agronegócio

* Mais transgênicos

• É essa a solução para a crise?Definitivamente NÃO. Porque essas medidas somente aumentarão o controle das corporações sobre a agricultura, permitindo que elas continuem obtendo lucros espetaculares, enquanto cresce o número de famintos (que, para a onu, são cifras estatísticas, enquanto que, no dia a dia de cada um de nós, bem sabemos que se tratam de seres humanos – crianças, homens e mulheres – que sofrem, e aos quais está sendo negada qualquer possibilidade de uma vida digna).

• Então, o que podemos fazer?Nossos povos resistiram por séculos ao embate dos poderosos mantendo sua cultura, seus territórios, suas formas de vida, sua agricultura e seus alimentos.

As medidas propostas pela Cúpula de Roma somente aumentarão

o controle das corporações sobre a agricultura, permitindo que elas

continuem obtendo lucros espetaculares, enquanto

cresce o número de famintos (que, para a onu,

são cifras estatísticas, enquanto que,

no dia a dia de cada um de nós, bem sabemos

que se tratam de seres humanos

– crianças, homens e mulheres – que sofrem,

e aos quais está sendo negada

qualquer possibilidade de uma vida digna).

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Biodiversidade • caderno 25

crise aLiMentar ou novos negócios às custas de nossa FoMe?

Hoje continuam fazendo isso e demonstram que na vida e nas lutas camponesas é onde há um futuro para a humanidade.

Podemos cultivar e conservar nosso direito de imaginar o mundo que desejamos. Fazemos o possível com base naquilo em que acreditamos. O possível, segundo nossa visão, é ir construindo relações diferentes com aqueles que nos rodeiam no

aqui e agora. Construir e reconstruir o tecido social. Não esquecermos de nossa mútua interdependência e de que somos parte da natureza.

Deixar de julgar-nos com os critérios daqueles que nos opri-mem e estão destruindo o mundo. Reivindicar nossos

próprios critérios.

Lembrar que a economia é mais ampla que o dinheiro. É necessário come-çar a buscar como sair dos circuitos de mer-cado e começar a criar circuitos econômicos próprios. Aproximar e relocalizar processos e decisões.

• Como se pode fazer isso?* Tomando consciência da situação geral e não nos enganando com enfoques

parciais.* Construindo soberania alimentar na prática e nas comunidades locais.* Estabelecendo vínculos e alianças com os consumidores das cidades.* Defendendo nossas sementes e seu livre fluxo contra todas as tentativas de

privatização e apropriação, assim como as práticas agrícolas tradicionais.* Lutando pelo controle e pela recuperação de terras e territórios.* Insistindo com os governos para que promovam e defendam o direito sobera-

no de decidir quais alimentos cultivar, como e onde. Fazendo-os entender que a agricultura não pode estar sujeita às leis de mercado.

* Resistindo ao modelo agroindustrial, aos agrotóxicos e aos transgênicos.* Denunciando o poder corporativo e seus impactos.* Atuando contra suas práticas destrutivas.* Desmantelando o poder das corporações do agronegócio.* Informando-nos e compartilhando essa informação com outros.* Organizando-nos.* Resistindo enquanto vamos criando.

As mulheres da cloc-Via Campesina mais uma vez souberam indicar o rumo para encontrar uma saída:

A soberania alimentar é um princípio de caráter político, que questiona o siste-ma capitalista em todas as suas expressões, busca a transformação da sociedade, expõe a necessidade de reforçar a luta contra as políticas neoliberais e pela defesa da terra e dos territórios. Portanto, devemos continuar lutando contra as transna-cionais e os acordos de livre comércio, que têm destruído a agricultura campone-sa, os territórios e os sistemas alimentares locais. Nossa luta continuará para impedir que se assinem novos tratados, e para que se anulem os já assinados. É,

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caderno 25 • Biodiversidade

crise aLiMentar ou novos negócios às custas de nossa FoMe?

também, fundamental a luta contra a dívi-da externa, por ser mecanismo de opressão que atenta contra a sobera-nia de nossos povos.

Por isso nossos compromissos são para reforçar a luta pelos nossos direitos como mulheres e como povos, para continuar pro-duzindo alimentos e proteger nossas terras e a natureza. Não somente é necessário garantir os alimentos para todos, mas também os direitos à água, à terra, às sementes e à defesa de nossos territórios.

Nossos desafios são provocar mudanças pro-fundas nos sistemas de produção, de consumo, e pela construção de novas relações de pro-dução e de convivência. Somente mudan-ças radicais para colocar um fim ao capi-talismo poderão trazer uma solução verdadeira. Estamos lutando contra os monocultivos, os transgênicos, os agrone-gócios, o latifúndio, a estrangeirização da terra e dos territórios.

Estamos trabalhando pela articulação polí-tica em torno de um projeto de sociedade jus-ta. Reforçaremos a articulação das lutas das mulheres e das organizações nos distintos pa-íses e buscaremos o diálogo entre campo e cidade, com o fim de fortalecer e divulgar nossas lutas e ações.

Estamos convencidas de que devemos fortalecer as lutas por Reforma Agrá-ria e por defesa da terra. Que nessa luta devemos continuar batalhando para que os direitos das mulheres à terra sejam garantidos, assim como o da água e dos bens da natureza. O aces-so à terra e aos adequados meios de produção é fundamental, e seguiremos lutando até que seja realidade para ho-mens e mulheres, sem discriminação nem condicionamentos em função do gênero. O nosso objetivo é conseguir que nossas terras e territórios sejam inalienáveis, e a água seja um bem natural inapropriável que todos devemos cuidar.

Podemos cultivar e conservar nosso direito

de imaginar o mundo que desejamos. Fazemos o possível com base naquilo

em que acreditamos. O possível, segundo nossa

visão, é ir construindo relações diferentes com

aqueles que nos rodeiam no aqui e agora.

Construir e reconstruir o tecido social.

Não esquecermos de nossa mútua interdependência e

de que somos parte da natureza.

Deixar de julgar-nos com os critérios

daqueles que nos oprimem e estão destruindo

o mundo. Reivindicar nossos próprios

critérios. referências Bibliográficas

fao, El hambre aumenta http://www.fao.org/newsroom/es/news/2008/1000923/index.html

fao, Cumbre Alimentaria: prioridad máxima a la inversión agrícola http://www.fao.org/newsroom/es/news/2008/1000856/index.html

Mujeres del campo en lucha por la soberanía alimentaria, http://www.viacampesina.org/main_sp/index.php?option=com_content&task=view&id=554&Itemid=1