CONTOS E ENSAIOS - UENP-CCP

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RAMES KALLUF CONTOS E ENSAIOS UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ

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“Rames Kalluf, não só nos
contos, mas nos ensaios, torna-
se um viajante do tempo e do
espaço, transitando pelas mais
homem da Renascença, um
extremamente agradável, pois
sua escritura é assim.”
more.
pecialista em cenas marítimas e navios.
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PORTO DO DESTINO Contos e Ensaios
UENP – UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ Campus de Cornélio Procópio
2015
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Edição autorizada para a Universidade Estadual do Norte do
Paraná - UENP
ção poderá ser reproduzida por qualquer meio, guardada pelo
sistema retrieval ou transmitida, sem prévia autorização do
autor, por escrito.
que detém todos os direitos autorais. Imagem usada por cor-
tesia do autor.
K14p Kalluf, Rames
Porto do Destino / Rames Kalluf. – Cornélio Procópio: UENP, 2015.
137 p.; 22cm 1. Literatura brasileira 2. Contos brasileiros. 3. Ensaios. 4.
Crônicas. I. Kalluf, Rames. II. Título.
CDD B869.93 CDU 821.134.3(81)
Índices para catálogo sistemático:
I. Literatura Brasileira: Contos
II. Literatura Brasileira: Ensaios
III. Literatura Brasileira: Crônicas
UENP – UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ Av. Getúlio Vargas, 850
86400-000 Jacarezinho, PR
UENP – CAMPUS DE CORNÉLIO PROCÓPIO Unidade Campus: Rodovia PR 160, Km 0 – Unidade Centro: Av. Portugal, 340
Fone (43) 3904-1922 – Fax (43) 3523-8424
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CEP 86300-000
Governador CARLOS ALBERTO RICHA
Secretário da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior JOÃO CARLOS GOMES
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ
Reitora FÁTIMA APARECIDA DA CRUZ PADOAN
Vice-Reitor FABIANO GONÇALVES COSTA
Vice-diretor SÉRGIO ROBERTO FERREIRA
Diretor THIAGO ALVES VALENTE
Dedico este trabalho às memórias de Gebran e Faide Kalluf,
meus pais, por me legarem suas noções de caráter, de coragem
e de honestidade, que procurei dignificar sempre.
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AGRADECIMENTOS
Penso que cheguei, também, ao porto do destino, como
meus pais e avós. Não exatamente como eles, para iniciar uma nova
vida, mas para celebrar a conclusão de um sonho alentado desde há
muito e somente agora concretizado. Mas não fiz sozinho esta via-
gem. Estive acompanhado por pessoas maravilhosas, que fizeram de
tudo para que mantivesse o rumo, o equilíbrio e a determinação de
vencer, por mim e por eles. É a hora de lhes agradecer e de parti-
lharmos os resultados.
desde 1970;
mantiveram seu estímulo desde os primeiros textos;
A Adélia, irmã fiel, que confiou no meu trabalho e que me
deu lições de perseverança;
braço direito e orientador incansável;
A professora Dra. Marilu Martens de Oliveira, pela linda e
generosa apresentação do livro;
Ao jornalista Nicolau Vilas Boas (in memoriam), que me
franqueou sua prensa e sua amizade há exatos 49 anos; além de ao
advogado, jornalista, escritor e professor João Gonçalves de Olivei-
ra e ao jornalista e empresário Wagner Gonçalves de Oliveira, que
deram continuidade à gentileza do sogro e avô, o fundador do jornal
A Voz do Povo;
Ao artista plástico Tony Westmore, pela cessão do uso de
seu trabalho Cap Arcona, que embeleza e dá colorido à capa deste
livro.
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APRESENTAÇÃO
“PODE SER, MAS PODE NÃO SER”: TUDO DEPENDE DO OLHAR!
Porto do destino: contos e ensaios, livro escrito por Ra-
mes Kalluf, leva-nos a cantarolar com o grupo Engenheiros do Ha-
waii: “Há um porto escondido no coração do viajante”. Assim é que
o autor nos incita a viajar, apaixonadamente, por 27 textos que, sur-
preendentes e ricos, nos encantam a cada linha, a cada parágrafo,
buscando avidamente o porto/texto seguinte. Meu coração navegou
aceleradamente por mares já navegados, reconhecendo amigos, ma-
tando saudade, mas alguns, agora vistos com outros olhos – “o olhar
do estrangeiro”, de que fala Nelson Brissac Peixoto – porém tam-
bém naveguei por terras insuspeitadas, descobertas pelas mãos de
Kalluf, escritor de primeira linhagem. É esse olhar que, num mundo
de simulacros como o nosso, desvenda realidades, mostra-se per-
plexo, realiza digressões espirituosas, profundas, sentimentais, me-
lancólicas, filosóficas, ensinando-nos não só a VER, mas a OLHAR
“aquilo que os que lá estão não podem perceber”, pois nosso olhar
acostuma-se à paisagem, tudo se banaliza. Até os sentimentos! Ain-
da é Brissac que aponta a direção: assim atravessaremos “o deserto
da solidão e do sofrimento”.
E este é o gancho para a narrativa “Ben Mioh de Copro-
pioh”, na qual a condição feminina é posta em xeque, assim como
os valores da sociedade patriarcal árabe e a difícil arte de se criar
filhos (de caráter universal), colocados com fino humor – “A vida te
ensinará tudo mais tarde. Enquanto isso, não te fies nas mulheres e
nos loucos. E agora anda, filho” (p. 30) –, aliados aos chistes, à ha-
bilidade estilística e às digressões existenciais. Tudo nos leva a pa-
rar e pensar, inclusive na verdadeira importância do tempo – tempus
fugit – e nas coisas essenciais: “Era uma fresta do tempo e uma por-
ção do espaço, ambos preenchidos de uma doce paz 'Se a vida do
planeta não pudesse ter prosseguimento, inx’alá fosse assim que se
finasse', pensou o jovem, por si, pelo pai e pelo mundo” (p. 34).
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Em contraponto a tanta paz e meditação, explode o thriller
“A boa e segura vida na cidade grande”, cujo fulcro é os cortiços
que medram nos casarões antigos, tombados pelo patrimônio histó-
rico – e que vão tombar (trocadilho infame!), por falta de verbas
para reparos – no qual a história de amor, bem construída e de des-
fecho inesperado (como deve ser toda boa short story, segundo os
preceitos do mestre no gênero, Edgar Allan Poe) é o triângulo mari-
do, mulher e amante gay. Melhor cenário, não poderia! “É o quarto
de despejo em que somem as culpas, as vergonhas e a incompetên-
cia de cada um.” (p. 53) Temos aqui uma simbiose de Plínio Marcos
(personagens do bas-fond), Lygia Fagundes Telles (universo urbano
e estilo elegante e “classudo”, como convém a pessoas como Lygia
e Kalluf) e Caio Fernando Abreu (percepção aguçada da condição
humana). A ironia do título não vai decepcionar o leitor que buscar
descobrir o que acontece sob o céu da tal cidade grande e quem são
as pessoas que nela vivem sordidamente, em um “ambiente insalu-
bre e medonho”, em um clima claustrofóbico, bem diferente daque-
le vivido sob o céu da Berlim de Wim Wenders, no fabuloso filme
Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987).
Outro texto surpreendente é “Macho em extinção”. A par-
tir desse título brincalhão, com extrema erudição, nosso autor vai de
Engels às gregas amazonas guerreiras; de Heródoto, o pai da Histó-
ria, ao “forçudo” semideus Hércules que realizou, sem dificuldades,
os doze trabalhos que todos julgavam impossíveis; de Barbarella,
iconizada na telona pela sempre linda Jane Fonda, ao desbravador
Orellana que dizia ter chegado ao nosso mais caudaloso rio, quando
a selva era ainda mais densa e intransponível.
E Rames Kalluf, não só nos contos, mas nos ensaios (e al-
gumas crônicas… talvez – difícil a classificação desse gênero híbri-
do entre o jornalismo e a literatura, chamado por alguns de “farra-
pos do cotidiano”, que também se confunde com o conto e o en-
saio), torna-se, assim, um viajante do tempo e do espaço, transitan-
do pelas mais variadas áreas: Filosofia, Literatura, Música, Pintura,
Escultura, História, Psicologia, Sociologia, línguas estrangeiras (La-
tim, Inglês, Francês, Árabe), Ciências, Religião, Economia, Mitolo-
gia, Geografia... Ufa!!! Talvez tenha me esquecido de algo, portanto
eximo-me colocando as reticências.
um homem da Renascença, um erudito. Entretanto, não quero assus-
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tar o leitor. Suas páginas são de leitura extremamente agradável,
pois ele é culto sem preciosismos. Como no seu cotidiano, sempre
simples, cortês e afável, também sua escritura é assim. Ao terminar
a leitura de seu livro, pensei: meu Deus! O que escrever? Mas de-
pois me lembrei de Ariano Suassuna, e que, a exemplo de Rames,
também um letrado, especialista em Estética e Filosofia, o qual rea-
lizou uma teoria do cômico, extremamente sofisticada e erudita –
Auto da Compadecida – acessível ao grande público, parecendo
simples e popular. Essa é a verdadeira sabedoria.
E o professor Rames usa dessa sabedoria em seus textos,
ainda que não de forma óbvia. Não foi aleatória a opção por escre-
ver sobre “A palavra e seu significado”, onde coloca: “A palavra é
um instrumento contundente, mas também cortante e perfurante,
capaz de dar certa expressão a um pensamento, enquanto a verda-
deira intenção dissimula” (p. 84). E como bom professor de Arte,
que sempre foi, nosso autor conceitua, interrogando: […] “o que é a
escrita senão uma espécie de desenho que comunica?” (“Desenho
instrumental”, p. 128).
cimento, por diferentes culturas – lembrando aqui os antepassados
árabes do professor Rames Kalluf – até seu porto do destino, tenho
certeza que nesta travessia seu canto de sereia foram as palavras de
Santo Agostinho:
E tu me perguntas:
Experimenta isto em ti
Para que sejas um dia aquilo que ainda não és.
Avança sempre! Não fiques parado no caminho.
Portanto, vamos avançar, crescer, viajar na vida. E como?
Eu respondo: lendo! Viajando nestas páginas. Abraços, caros leito-
res. Marilu
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SUMÁRIO
Ben Mioh de Copropioh .............................................................. 29
O reencontro ................................................................................ 39
O pouco, o mais ou menos e o demasiado humano .................... 48
A boa e segura vida na cidade grande ......................................... 52
Meu velho e querido amigo......................................................... 62
Macho em extinção ..................................................................... 80
Duas belas Sofonisbas ................................................................. 87
É muita mídia .............................................................................. 94
Os conquistadores ....................................................................... 99
O riso e o siso .............................................................................. 103
Querer não é poder ...................................................................... 105
Uma nota explicativa, ma non troppo ......................................... 108
Dois pintores, personagens de Balzac ......................................... 111
Inútil escrever .............................................................................. 117
Respeito ....................................................................................... 121
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INTRODUÇÃO
crônicas e ensaios para publicação em periódicos locais, cujos titu-
lares tiveram a bondade de acolhê-los, não nos consideramos um
profissional das letras. Os papéis avulsos transformaram-se em es-
paços no computador, foram-se acumulando e passaram a exercer
uma pressão incômoda e crescente, difícil de suportar.
É o momento em que se sai em busca de opiniões sobre o
produto, recorrendo a parentes e amigos. E aí reside o perigo. O que
se pode esperar destes, senão elogios, estímulos e cumprimentos?
Não há como acreditar (eis o grande paradoxo) naqueles que nos
amam muito. Então, voltamos à estaca zero. Relaxamos, esquece-
mos as palavras, os kilobytes e passamos a potencializar as peque-
nas dúvidas e a duvidar das grandes possibilidades. Aceitamos o
óbvio, até que um pouco de coragem e de exibicionismo nos impul-
sione mais tarde.
Das três coisas que, dizem, todo homem deve fazer na vi-
da, já fizemos duas e – podemos afirmar – com sucesso. Restava-
nos escrever um livro... e nem foi necessário fazê-lo. Bastou apenas
recolher as letrinhas, esparsas pelas centenas de folhas amareladas e
bytes perdidos nos meandros do mundo digital, complementando as
recordações do passado com algumas ideias atuais, desenvolvidas
ao longo de uma aposentadoria que pedia – e ganhava – aquela for-
ça suplementar para substituir um ócio triste por uma oportunidade
feliz.
O resultado foi uma boa chance de vida útil. Está claro – e
nem poderia ser diferente – que muito de quanto dispúnhamos teve
de ser descartado, ou porque já não apresentasse razões para reapa-
recer, ou porque nos soava estranho que o tivéssemos escrito um
dia. O fato foi que, num certo momento, desafiamos a sorte, salta-
mos nosso Rubicão e fomos em frente.
Estes trabalhos não têm ligação entre si, nem seu conjunto
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segue uma sistemática definida. Na medida em que fatos sugeridos
pelos acontecimentos nos motivavam, surgiam ideias para conto,
crônica ou poesia. Os contos são criação da mente e pouco, ou qua-
se nada, guardam de semelhança com a realidade. Apenas alguns
raros episódios da vida pessoal emergem das lembranças quase apa-
gadas para as linhas do texto ficcional, aumentando sua verossimi-
lhança. E, quando isso acontece, o leitor tem a oportunidade de nos
conhecer melhor, pois há, então, a denúncia de veladas imagens de
alegrias, de paixões, de segredos e de sofrimentos, que deixamos
escapar pela fissura de algum escaninho da memória.
Nossas crônicas são interpretações de fatos corriqueiros,
algumas vezes salpicados de humor; outras, de ironia; outras, ainda,
com ira e inconformismo, que temperam a narrativa com a interven-
ção de opiniões pessoais, estranhas convicções, radicais contesta-
ções, esdrúxulas teses e saborosos deboches sobre tudo quanto ve-
mos ou ouvimos e tudo que adoramos ou detestamos. Mas sempre
acreditando que uma parte dos leitores gostará; outra, odiará; en-
quanto uma terceira ficará indiferente.
As poesias – que não estão contempladas nesta edição –
resultam frequentemente de um surto provocado por ocorrências
que nos impressionam mais fortemente, vertendo como um impulso
não racional. O resultado disto é sempre uma surpresa, porque não
premeditada, não elaborada, mas imposta por uma determinação
tenaz, incontinente, ou quando constituída pela soma de ironia, de
contraste entre a beleza sensual e o horror ao feio, o desejo de amar,
o temor da velhice, a tragédia da vida e a infalibilidade da morte.
Todavia, ainda que assim rebeldes, conseguem criar alguma coisa,
como:
Farão vibrar os corações da gente
Como gotas de orvalho, lágrimas
Mais que simbólicas, presenças
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Quando a dor for tanta, que sufoque
Todas as dúvidas e todas as certezas,
Olhe para o céu e, esquadrinhando
O profundo e escuro firmamento;
Verá duas estrelas novas e brilhantes
Cintilando no espaço, alegremente. 2
Ou ainda:
É a própria Natureza que, à mancheia,
Entre as mulheres, a uma faz tão linda
E a outra, um desastre de tão feia.
Àquela, um forte aplauso acolhe a vinda
E a esta, até o fraco apupo já rareia;
Numa, o que lhe abunda mais ainda,
Sei-o bem, é o que à outra escasseia.
Uma teme o dia em que a beleza finda
E a outra, todo dia pelo amor anseia.
Alegre passa a vida para a moça linda,
Enquanto é um martírio a da que é feia.
É desta desigual batalha, crua e infinda,
Que a vitória, só uma terceira saboreia
(Aquela que toda nossa dúvida deslinda)
A morte, que a ambas sepulta sob a areia. 3
Está entregue nossa ousadia, representada por contos e
crônicas, para o julgamento do leitor. Rames Kalluf
2 Duas Novas Estrelas.
Dentre as primeiras lembranças que o menino guardava, a
que mais fortemente impressionara sua memória, se encontrava essa
estranha palavra caparcouna que, embora sem sentido para ele,
quando pronunciada pelo pai, sempre soava como algo bom, praze-
roso e pleno de reminiscências. Já crescidinho e sabendo que se
referia a um navio – “um daqueles muito grandes, que não tinha
medo do mar alto, de tempestades com ventos fortes e ondas enor-
mes, mas cortava os maiores oceanos do mundo, até que chegava
aonde escolhia chegar, embora cansado, soltando baforadas pelas
três ventas brancas e de colarinhos vermelhos que trazia presas às
costas. E como era lindo!” – pensava que podia imaginá-lo, quase
vê-lo, e supunha também “que, para não escapar e perder-se no
mar para sempre, esperto que era, amarrava-se no fundo do mar
com um enorme peso ligado à ponta de uma grossa corrente que
descia de um dos pequenos olhos que possuía na parte mais alta de
seu grande rosto afilado”.
Com o tempo, foi entendendo melhor de que se tratava
aquela coisa enorme, que era um navio com um nome estranho, e
que não parecia ser inglês ou francês, nem árabe ou latim, línguas
que a partir de certa idade, em casa ou na escola, já estavam a fun-
dir-lhe os miolos. Ainda que a palavra parecesse não ter significado,
os diretores da empresa de navegação alemã America Line Ham-
burg-Süd, que encomendou sua construção junto aos estaleiros
Blohm & Voss de Hamburgo, na Alemanha, com aquele nome, de-
sejavam homenagear um cabo da ilha de Rügen, localizada no esta-
do de Mecklemburgo.
As linhas de navegação marítima voltaram a ser intensifi-
cadas a partir do Tratado de Versalhes, em 20 de junho de 1919,
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vitoriosas, passaram a exigir da Alemanha, indenizações altíssimas
pela perda de suas belonaves no conflito de 1914-18. Assim, os der-
rotados passaram a pagar aos aliados com seus próprios navios, fi-
cando com pouquíssimas unidades, insuficientes para atender à
crescente demanda de migrantes europeus e asiáticos que procura-
vam a América do Sul, principalmente Argentina e sul do Brasil, já
desde o ano de 1871. Para recompor sua frota, a partir de 1920, a
Hamburg-Süd 4 passou a cumular os estaleiros com pedidos de no-
vos transatlânticos. Um deles, dos mais luxuosos e um dos quatro
maiores da frota mercante alemã, foi lançado ao mar em 14 de maio
de 1927, ostentando galhardamente no alto da proa o nome: Cap
Arcona 5 .
Fosse como tivesse desejado ou apenas sonhado, em 1930,
três anos após o navio ter sido batizado e seis anos antes de o meni-
no vir a nascer, o moço que seria seu pai, saiu por via terrestre de
Kafrun, pequena cidade da Síria, embarcou em Marselha e, após um
mês viajando à velocidade de vinte nós, o Cap Arcona fundeava no
Rio de Janeiro. O jovem de prenome Gabriel, alguns dias depois,
por linhas tortuosas em razão das diferenças abissais que separavam
o idioma português do árabe e as duas culturas uma da outra, che-
gava, enfim, a Curitiba, capital do Estado do Paraná, onde o espera-
va um irmão mais velho. Elias ou Miguel – ninguém soube qual
fosse, realmente, seu nome –, depois de haver errado pelo mundo
por muito tempo, ali se radicara há anos, e onde constituíra família.
O irmão e sua esposa o acolheram. Pobres, mas generosos
e desprendidos, emprestaram a Gabriel, que chegara de bolsos va-
4 A Hamburg-Süd operava na atividade de transportes convencionais desde 1871 e,
atualmente, é uma das vinte maiores linhas de transporte de contêineres e de logísti-
ca do mundo. 5 O Cap Arcona possuía 206,5m de comprimento, 25,8m de largura, 12,8m de calado,
27.561 toneladas de capacidade bruta, acomodação para 1.315 passageiros e duas
turbinas de propulsão a vapor com 17.500 kW de potência, que acionavam duas hé-
lices e lhe imprimiam 20 nós de velocidade. Santos Dumont, em 1928, também se
utilizou dos serviços do navio: em 3 de dezembro, desembarcou do Cap Arcona no
porto do Rio de Janeiro, com duas recentes invenções, para demonstrá-las publica-
mente.
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zios, a quantia de setenta mil réis, suficiente para adquirir suas fer-
ramentas de trabalho: martelo de sapateiro, pé de ferro, torquês,
lâmina de corte, couro para sola, cola, tachinhas, fios de linha, cera
de abelha, sovela, agulha, além de latas de graxa, marrom e preta.
Desde o início, o negócio prosperou e sentiu que poderia
seguir sozinho e aliviar a carga que representava para o irmão e a
cunhada, que, ademais, possuíam um filho com cerca de dez anos.
Ao se sentir seguro, pagou o que lhes devia, agradeceu-lhes por
tudo e os deixou. Transferiu seu endereço para a Av. República Ar-
gentina, 3772, no bairro do Portão, pouco além da linha férrea, na
divisa com o Novo Mundo, onde trabalharia e economizaria cada
tostão que lhe caísse nas mãos.
Estava pronto para instalar sua banca e dar início ao traba-
lho. No dia 1º de agosto de 1931, foi autorizado a exercer a ativida-
de de sapateiro, após o recolhimento da taxa de 50$400 6 , conforme
o recibo de nº 12536, da 1ª Collectoria Estadoal da Capital, Divi-
são de Indústrias e Profissões e Líquidos Espirituosos. Tanto traba-
lhou e poupou que pôde adquirir não somente o necessário para
sobreviver e crescer, mas até o que não lhe faltasse e que ele cobi-
çasse. Entre outras coisas, ao saber que um carro com cavalo e
competente arreio estava à venda, comprou-o. Ao final de cada se-
mana de muita produção de chinelos, conserto de sapatos, de com-
pra e venda de manufaturados, deixava o bairro e, com seu carro e
baio arreado, descia para a cidade em direção ao Campo da Galícia,
onde trabalhavam e residiam muitos de seus patrícios e outros tan-
tos amigos que já granjeara.
A FUTURA MÃE
Ali, na esquina das ruas Martim Afonso e Visconde de
Nacar, também residia e trabalhava a família de um homem grande,
robusto, calvo e levemente pletórico, que ostentava um bigode cui-
dadosamente torcido nas distantes extremidades de sua envergadu-
ra. Ele e a esposa mantinham um estabelecimento de secos e mo-
lhados e duas filhas solteiras, ambas bonitas, embora diferentes no
físico e no temperamento, mas prontinhas para casar. Gabriel in-
gressava naquele agradável ambiente com algumas importantes cre-
6 Cincoenta mil e quatrocentos réis.
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denciais desde logo aparentes. Em primeiríssimo lugar, era uma
bela figura humana, forte e afeita ao trabalho, além de muito atenci-
oso e gentil; depois, as referências positivas e incontroversas sobre
sua idoneidade moral; por último, a estabilidade financeira de que
era prova o precioso instrumento de transporte pessoal e de carga,
representado pelo conjunto carro-cavalo-arreio, objeto de desejo de
qualquer jovem de futuro promissor na época.
Fosse porque a elegesse, desde logo, como preferida ou
fosse porque, como sobejamente demonstram os fatos e sugere a
boa literatura, àquela com mais idade coubesse a preferência, ao
final resultou que lhe foi entregue a já eleita, secretamente, por seu
coração. Faride seria, realmente, a pessoa com quem Gabriel deseja-
ria partilhar sua vida? Meiga, sem ser submissa; discreta, mas não
uma sombra; altiva e a um só tempo simples; avara nos momentos
de escassez e pródiga nos de fartura; compassiva, nunca omissa;
competente em seus misteres; devotada em suas crenças; desprendi-
da em sua generosidade e, sobretudo, excelente dona de casa. Não,
ele nem sonhara com tudo isto e sempre seria grato por seu fado
propício.
Em abril de 1934, os proclamas civis e religiosos foram
apregoados e, decorrido o tempo regulamentar, em maio, realizadas
ambas as cerimônias, com tudo que envolve este tipo de evento:
muita alegria, comida, bebida, música, dança e um pouco de lágri-
mas, inveja, ciúme e mágoa. Seguiu-se a viagem de núpcias ao
aprazível balneário de Matinhos, no litoral do Estado, e o regresso
breve à modesta casinha que os esperava no Portão. A vida decorreu
bem, embora com alguma dificuldade, sobretudo para Faride, que
deixara o conforto da casa paterna em que vivera os quatorze anos
decorridos desde que, em 1920, havia migrado com a mãe, Marta, e
os irmãos para se encontrarem com o pai, Isfer, que estava traba-
lhando no Brasil, então já com a guerra finda na Europa e a paz res-
tabelecida no mundo.
Em fevereiro de 1935, nasceria o primogênito, forte, exi-
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gente, disposto a tudo para satisfazer suas demandas, e que viria a
ser sócio e substituto eventual do pai em seus impedimentos, como
rezam alguns códigos. Em setembro de 1936, surgiria o seguinte;
fraquinho e cheio de dodói: pneumonia, raquitismo, paralisia infan-
til. E haja banho quente de eucalipto e Vinho Reconstituinte Silva
Araújo. Em seguida, em fevereiro de 1939, chegaria o terceiro, que
seria um Adônis, paixão das meninas e, inspirado pelo clima quente
de pré-guerra que já agitava os europeus rixentos, destinar-se-ia a
servir à Pátria, à ONU e, sobretudo, a si mesmo. Destemperado,
difícil de entender e de ser entendido, mas generoso, viveria uma
vida curta, contudo intensa. Em março de 1941, viria o quarto, que
também seria ligado aos prazeres da vida, mas lutaria muito e viria a
concorrer com a Casa Feres, vendendo pente na Praça Tiradentes;
faria das tripas coração e venceria as próprias limitações físicas re-
sultantes, também, da poliomielite, e construiria um império, com
seu próprio esforço e sua incrível inteligência. O quinto, de feverei-
ro de 1944, seria um dedicado filho, excelente irmão, esposo e pai,
além de amigo solidário; como os demais, teria suas falhas, mas
ninguém pensaria que devesse odiá-lo, exceto, talvez, aqueles irados
atleticanos mais radicais que lhe tirariam o sono. Enfim, para fechar
o grupo, a única menina, a princesinha, cuja chegada, em setembro
de 1946, já finda a Segunda Grande Guerra, exatamente dez anos
depois do menino que ouvia o caparcouna sem saber de que se tra-
tava, mas percebendo que a vida do pai ficava mais feliz após pro-
nunciá-lo.
Com 47 anos de vida e mais de doze anos de casado, o pai
amaria a todos os filhos igualmente, mas, apesar de não o expressar,
deixaria escapar gestos e palavras de alegria em função de que a
prole, grande como o casal certamente programara, se completava
com a garotinha linda que sucedia a cinco varões. E estes também
mostravam seu júbilo, embora pensando, ao mesmo tempo e secre-
tamente, sobre o que teria dado errado, nessa vez... A mãe era toda
uma alegria só. Habituada a lidar apenas com capetinhas durante
tantos anos, agora teria aquele anjo para estar toda a vida a seu lado,
para ser sua companheira, para cuidar dela e fazer-lhe companhia
nos momentos bons e nos muito difíceis, como o da morte do espo-
so em 68 e, alguns meses depois, a do único filho que ela perderia,
fatos que degradariam sua vida até o final. E nesses instantes de
suprema dor e dos sete anos difíceis que se seguiriam, até sua mor-
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A MUDANÇA PARA A CIDADE
Quando a situação do casal melhorou, eram apenas dois os
filhos e muito forte o desejo de dar um salto de qualidade e de nível.
Ela, porque desejasse estar mais próxima da família; ele porque
sonhasse com ampliar os negócios e trabalhar no centro da cidade,
onde a colônia já ocupava partes da Praça Tiradentes, da Rua do
Riachuelo, da Praça Generoso Marques e da Rua das Flores. Em
1938, enfim, localizaram um excelente ponto no nº 81 da antiga Rua
Fechada mas já então denominada José Bonifácio , sobrado em
que passaram a morar, enquanto o térreo foi ocupado pelo amplo
estabelecimento denominado, estrategicamente, de Casa Principal,
talvez porque, nas proximidades, já existissem outras duas lojas que
também exploravam o comércio de calçados, com nomes perigosa-
mente competitivos e desafiadores: a Casa Ideal e A Favorita.
A GUERRA
A Alemanha, liderada por Adolf Hitler, descumprindo os
termos do Tratado de Versalhes, de 1919, inflava o país com o na-
cional-socialismo, produzia armamentos e poderosos veículos de
transporte terrestre, aéreo, marítimo e submarinho e obrigava a ju-
ventude, nazista ou não, a se alistar maciçamente nas forças arma-
das. Tudo isto ostensivamente, mas sem que os países constituintes
da coalizão vitoriosa da guerra anterior demonstrassem ter conhe-
cimento ou preocupação com a escalada alemã. Assim fortalecido e
tendo, em 1939, celebrado um pacto de não agressão com a Rússia
de Stalin, Hitler, que já se sentia seguro desde o ano anterior para
promover pequenas ações, como as anexações da Áustria e de parte
da Tchecoslováquia, ambas ações reconhecidas, inexplicavelmente,
pela França e pelo Reino Unido, sentiu-se também seguro para, em
1º de setembro, atacar e vencer de assalto o exército polonês, inva-
dindo e ocupando o oeste da Polônia, enquanto a União Soviética
ocupava o leste, e dando início à Segunda Guerra Mundial.
19
portando turistas, comerciantes e migrantes entre Hamburgo e a
Argentina. Porém o transatlântico que trouxe Gabriel ao Brasil foi,
em 1940, confiscado pela marinha alemã e programado para servir
de alojamento de tropas, ancorado no porto de Gotenhafen, durante
os seguintes cinco anos. Era muito tempo para um tão luxuoso na-
vio ficar praticamente ocioso, e esta parecia ser a opinião de Joseph
Paul Goebbels, Ministro da Propaganda e da Informação do Tercei-
ro Reich que, em 1943, o utilizou para produzir o filme Titanic 7 .
O argumento consistia em demonstrar que o povo alemão
se constituía de pessoas honestas e boas, enquanto os inimigos eram
maus e corruptos. Em síntese, que quase toda a tripulação do navio
sinistrado era composta por ingleses desonestos, sendo o oficial
alemão o único homem justo a bordo. Foi designado para dirigir o
filme o cineasta Herbert Selpin, embora não fosse simpatizante do
regime, mas porque estava familiarizado com temas marítimos.
Ocorreu que, durante as filmagens, alguns oficiais marinheiros pas-
saram a se envolver com atrizes extras, o que descontentou o dire-
tor, que acabou por fazer injuriosas considerações a respeito da ma-
rinha alemã. Goebbels soube do incidente e logo a seguir Selpin foi
preso. Consta, segundo a Gestapo, que o diretor se suicidou na cela.
O filme pretendia ser um instrumento de propaganda na-
zista e foi lançado em Paris, mas sua exibição foi suspensa, porque
o próprio Ministro concluiu que, como as cenas de pânico eram
extremamente realistas, os espectadores poderiam identificá-las com
o terror sofrido pela população alemã durante os bombardeios reali-
zados pelos aviões dos aliados.
A GUERRA RECRUDESCE E SE ENCAMINHA PARA O FIM
Após este curto período como ator, o Cap Arcona foi con-
vocado para outras missões de menos glamour e de maiores riscos.
A luta que, inicialmente, se mostrava caminhar para um desencade-
7 Titanic, filme produzido na Alemanha, em 1943, dirigido por Herbert Selpin, que
oferece uma versão política e caricata da tragédia do famoso transatlântico britânico
sinistrado em 1912. Atualmente pode ser encontrado na Web, com legenda em por-
tuguês.
20
amento favorável às forças do Eixo, sofrera um desvio de rumo,
principalmente a partir da posição assumida pela União Soviética
em relação às principais potências conflitantes: abandonou sua in-
constante e infiel parceira, a Alemanha, e cerrou fileiras com os
mais importantes aliados, a Grã Bretanha, a França e os Estados
Unidos da América.
O conflito prossegue em várias frentes e as tropas do Eixo,
que vinham experimentando expressivo sucesso até então, a partir
de 1943 passam a sofrer reveses diante da maciça contraofensiva
imposta pelos aliados em toda Europa; com a destituição de Musso-
lini na Itália e a adesão desta aos aliados, além de no norte da África
com a expulsão dos alemães e italianos da Tunísia. Mas o fato que
marcou o início do longo fim foi a derrota dos germânicos, sob o
comando do recém promovido a marechal-de-campo, Von Paulus,
pelos soviéticos comandados por Vatutin e Emerenko, os generais
vitoriosos na batalha de Stalingrado (hoje chamada Novokuznec).
Esta cidade foi palco de um dos mais dramáticos episódios da guer-
ra e que cobrou elevadíssimo preço em vidas humanas, de ambos os
lados contendores.
Com os combates havidos no ano de 1943 e no seguinte, a
guerra ia rapidamente se definindo. Entrementes, o Cap Arcona
continuava servindo como hotel de luxo para a tropa e, ao iniciar
1945, a Kriegsmarine 8 promoveu uma grande operação-resgate para
transportar refugiados e soldados feridos que abandonavam o leste
da Alemanha, buscando escapar da ameaça representada pelo avan-
ço soviético. O belo navio foi, então, retirado do comando naval e
transferido para o domínio da SS para se transformar em campo de
concentração flutuante. Em abril daquele ano, transportando mais
de 5.000 prisioneiros de várias nacionalidades, além da tripulação e
de membros da SS, rumou para as proximidades de Lübeck, cidade
do norte da Alemanha, onde ficou ancorado na baía, assim como os
navios Thielbek, Deutschland e Atenas, que ali estavam com o
mesmo padrão de passageiros, amontoados em seus porões.
O capitão do pequeno Atenas, ao perceber que algo não
estava bem e dispondo de algum combustível, dirigiu-se, em tempo,
para o cais de Neustadt e içou as bandeiras brancas, salvando seus
quase dois mil ocupantes. Nos três navios que permaneceram esta-
8 Marinha de Guerra.
21
cionados na baía de Lübeck com mais de sete mil prisioneiros de 28
nacionalidades, tripulação e tropas da SS, cada ser estava em condi-
ções de extremo desconforto, exausto, doente, faminto e sedento, é
verdade, mas esperançoso de estar em vias de ser salvo e de que
logo poderia voltar para seu país, sua cidade, rever amigos e paren-
tes, enfim, reencontrar a alegria de viver. No dia 2 de maio de 1945,
os ingleses ocuparam Lübeck e Wismar, sem reação, pois já se di-
fundia a notícia de que, três dias antes, Hitler se suicidara.
Dois dias depois, as tropas germânicas do noroeste da
Alemanha depuseram as armas, incondicionalmente, diante dos bri-
tânicos. A guerra estava, pois, próxima de seu final.
A TRAGÉDIA – UM PROPÓSITO OU UM EQUÍVOCO?
Consta que a Cruz Vermelha Internacional informou ao
comando inglês que os três navios ancorados na baía de Lübeck
abrigavam milhares de prisioneiros de múltiplas nacionalidades.
Contudo, na tarde do dia 3 de maio, todos os três foram atacados
por uma esquadrilha de caça-bombardeiros Typhoon da Royal Air
Force, com bombas, foguetes e metralhadoras. O primeiro a afundar
foi o Thielbeck, do qual cerca de 50 pessoas sobreviveram. O Deu-
tschland queimou e afundou e poucos de seus ocupantes consegui-
ram salvar-se. O Cap Arcona foi duramente batido pela ação, in-
cendiando-se. Os prisioneiros morriam queimados e os que tenta-
vam se salvar morriam afogados ou de frio no mar gelado (de 7°C)
ou, se não, eram abatidos por soldados da SS, que os alvejavam da
praia. No dia seguinte, milhares de cadáveres estavam espalhados
pela areia ou boiavam no entorno do navio, que emborcara e ainda
permanecia encalhado e fumegante.
A Inglaterra manteve rigoroso silêncio a respeito do pro-
cedimento estranho em que se consistiu o massacre, não apenas de
cidadãos de países amigos e aliados, mas, sobretudo, de conterrâ-
neos dos mesmos que o praticaram. Os pilotos dos Typhoon, poste-
riormente, alegaram ignorar que os navios que eles destruíram con-
tivessem prisioneiros de guerra de várias nações, enquanto o alto
comando da R.A.F. afirmava que o ataque foi ordenado porque as
embarcações, que eram de bandeira alemã não apresentavam sinais
aparentes disso, e porque se supunha que contivessem soldados e
membros da SS. Outra informação obtida, já durantes os Julgamen-
22
10 , antes de ser
demitido por Hitler, teria decidido pela destruição total dos três na-
vios, para não deixar provas da existência de campos de concentra-
ção, porém não teve tempo de fazê-la. Mas o inimigo a fez.
GABRIEL, SE SOUBE, CHOROU
quanto simultaneamente, no outono brasileiro, Gabriel lutava para
manter sua família sadia e segura, daí porque não se ocupara com o
que tivesse ocorrido com o querido Cap Arcona, depois dos quinze
anos passados. O esforço de sobreviver era tanto que, certas ma-
nhãs, sob intensa neblina e antes de o sol nascer, ele acordava os
dois filhos, o de 10 e o de 9 anos, para acompanhá-lo a um posto de
distribuição de alimentos, então racionados, no Pilarzinho. Ali rece-
biam as cotas per capita de farinha de trigo e de açúcar. Ao saírem,
para aliviar do peso os garotos, assumia os três fardos e todos, tiri-
tando, voltavam com as provisões necessárias e possíveis, no mo-
mento. Nem sequer poderia imaginar que aquela beleza de transa-
tlântico, que o trouxera para cá, se houvesse envolvido naquela
guerra estúpida e infernal nem, muito menos, que pudesse ter tido
um destino tão triste. Oxalá que nos vinte e três anos que ainda lhe
restavam de vida, ninguém o fizesse saber da verdade. Se por algum
infeliz acaso, ele tenha sido informado da tragédia e da destruição
do seu navio, será certo que terá chorado, em silêncio e solitaria-
mente. E nunca mais falou em visitar sua terra, pois, para ele, quem
conhecia o caminho de volta para lá era somente o Cap Arcona.
9 Julgamentos de Nuremberg, como ficou conhecido o conjunto de processos do Tri-
bunal Internacional, realizado em Nuremberg, Alemanha, entre 1945 e 1946, para
julgar criminosos da Segunda Guerra Mundial. 10
Heinrich Himmler (1900-1945) foi membro e um dos mais importantes líderes do
partido nazista; criou e dirigiu a temida Schutzstaffel (SS), que chegou a ter 800 mil
adeptos e que cultivava a segregação racial e a crença na supremacia do arianismo;
estabeleceu o terror; foi criador e promotor dos campos de concentração e de ex-
termínio, em seu país e nos territórios ocupados; tentou negociar uma paz em sepa-
rado com os aliados. Descoberto, quis fugir disfarçado, mas foi preso pelos ingle-
ses; suicidou-se para escapar de ser interrogado.
23
É perigoso franquear ao público os bastidores. Os espectadores
se desiludem facilmente e depois ficam irritados conosco, pois
era a ilusão que eles amavam. Não compreendem que o que nos
interessa é o modo pelo qual criamos a ilusão.
W. Somerset Maughan
Não estaria sendo eu, certamente, o primeiro a esperar que
descrevesse algum episódio de sua vida, não apenas longa, mas rica
porque densamente povoada de aventuras, de estórias corriqueiras,
algumas sem maior importância, que ele apresentava, todas, sempre
belas e acabadas. Tinha a capacidade de donairear, transformando o
que, se partindo de outra pessoa, pareceria vulgar e chulo, em agra-
dável encontro com um cultor habilidoso da arte narrativa. Era co-
mo, para um bom chef, fazer do chuchu, uma iguaria, graças à des-
treza em realçar o resultado, pela escolha e dosagem dos condimen-
tos, dos elementos decorativos e da apropriada guarnição, além de
suas qualidades, de modo a satisfazer, pelo sabor, pelo aroma e pelo
aspecto, ao gastrônomo do mais refinado gosto. Mesmo quando
ninguém lhe pedisse, mas se, num destes raros momentos em que
nada houvesse para fazer (ou porque o sol estivesse escaldante, ou
porque chovesse, ou porque fosse noite quente e o sono tardasse, ou
por nenhuma razão), sentava-se para uma conversa informal, podia
ser então. Se o bate-papo se alongasse e, em determinado instante,
fossem ouvidas frases tais como, por exemplo, “foi por causa de um
esquecimento dele, que tudo começou...”, ou “essa outra é muito
melhor e mais interessante...”, ou “a vida dessa mulher era um so-
frimento só, desde que nasceu...”, que soavam como “Era uma
vez...”, indícios de que, espontaneamente, um novo enredo começa-
24
ria a ser desfiado. De então para frente, seria, ouvido atento, delici-
ar-se com o fluxo, o ritmo, as interrogações significativas e os si-
lêncios expressivos, além da convincente onomatopeia com que ele
reproduzia o som dos elementos e as vozes dos animais, a andadura
ou o bater de asas.
Tratava-se de um velho forte, ativo e surpreendentemente
dotado de inteligência em grau mais elevado do que seria de se es-
perar de um matuto heptagenário, que sequer andara na escola. Mas
como cultura e escolaridade são acessórios do espírito e não são o
espírito, tudo estava bem. Ninguém que colecione prestígio precisa
de mais que inteligência e curiosidade, que são qualidades inatas e,
quem as tem, usa e aprimora sempre, ou não usa e perde-as de vez;
os que não as possuem, ficam sem saber jamais de que se trata. Se
através da educação formal, que ele não recebeu, houvessem sido
mais elevados tanto o nível de cultura quanto o grau de escolarida-
de, estes não confeririam brilho e colorido maiores do que aqueles
com que a natureza o dotara.
Tinha a seu favor, também, uma fértil imaginação, através
da qual conseguia enriquecer sua prosa com detalhes de muita suti-
leza e precisão, assim como com palavras e expressões apropriadas,
mas tão originais, que dificilmente delas poder-se-ia lembrar mais
tarde. Em sua presença, convinha portar caderneta e lápis, para ano-
tações.
Habituado ao trabalho rude, desde o início do século vinte,
com o qual começara sua jornada, não tinha pretensão de cessar sua
luta antes que visse nascer o terceiro milênio. Não alquebrava nunca
e suas mãos eram tão duras quanto o cabo de sua enxada e seu raci-
ocínio tinha a agudez da chapa afiada. A cabeça, as mãos e a lâmi-
na, aliás, trabalhavam juntas, produziam juntas e criavam juntas.
“Quando eu não puder mais pensar direito, nem segurar firme o
cabo da enxada e ela perder deveras o fio, deitarei o corpo nessa
rede em que o senhor está sentado e ficarei chamando a morte, que
já estará tardando, talvez porque, distraída, terá se esquecido de
mim”, dizia ele com seriedade e convicção.
Arguto observador, embora não costumasse dirigir seus
olhos aos do interlocutor, era capaz de analisar seu caráter desde o
primeiro instante, apenas de ouvir-lhe a voz, sentir as emanações do
corpo e o ritmo respiratório, ou por meio de seus gestos e de sua
postura. Daí porque sabia o que dizer a cada um, sem decepcionar
25
ninguém nas respostas, e quando sentia necessidade de replicar,
fazia-o com habilidade e respeito, de modo a deixar a impressão de
que concordava com o outro e fazia apenas um reparo. Era de seu
passado intensamente vivido, pensei, que emanava toda aquela
enorme experiência que ele, generosamente, doava, a seu modo, a
quem pedisse e até a quem não quisesse, e sempre oralmente. Disse-
ra-me que nunca aprendera a ler nem escrever. Apenas assinava seu
nome toscamente. Pedi-lhe então.
“Uma vez”, falou ele, após refletir trinta segundos em
atenção a meu pedido, “quando trabalhava na fazenda do Dr. Cláu-
dio, ele me pediu pra contar uma boa estória. Aí, eu contei um caso
que aconteceu comigo no tempo em que eu era porcenteiro lá em
Minas, perto de Formiga. Depois de um mês, pouco mais ou menos,
ele apareceu com uma revista com o retrato de um homem barbudo
na frente, disse que ia ler pra mim o que tinha escrito, e que era o
caso que eu lhe contei. Olha, meu amigo, eu já vi muita gente torcer
as coisas que outros falam, mas o Dr. Cláudio que me perdoe, lá do
céu, porque já morreu e era um homem bom, mas nunca vi que eu
tinha falado aquela coisa que estava escrita ali. Eu juro que não.
Fiquei encabulado, mas ouvi tudo e não disse nada, por mor de que
ele era o patrão. Mas, vige santa, fiquei dum jeito o dia todo, que a
também finada Anésia, que era minha mulher, até ela reparou e fez
um chá de erva cidreira pra me acalmar. Depois disso eu vou deva-
garinho e mais manso na hora de contar casos pros da cidade.”
Algo me fez crer que, já no primeiro momento de nosso
encontro, ele intuíra sobre a que eu vinha. Após sua bela defesa
prévia, decidi deixá-lo livre para falar ou não.
“Seu doutor, me desculpe. Eu não estou preocupado com o
que fazem das minhas estórias, mas gosto delas só do jeito que con-
to. Se não puder ser assim, não me venham com a leitura da coisa
toda torcida. E agora, se me der licença, vou carpir uma ruínha de
feijão que ficou pra trás. Na hora do café, eu subo e, se resolver, nós
proseamos sobre o assunto. Se carecer de alguma coisa, o Zé está na
tulha e, se o senhor chamar, ele atende. Demoro não.”
E adiantou-se a passos firmes, socando a terra do carrea-
dor e levando na manopla seu instrumento amigo, cujo fio brilhava
ameaçando as plantas daninhas morro abaixo. Recolhi, para a rede,
as pernas que até então pendiam e, em seguida, acendi um cigarro
de fumo picado ainda há pouco e enrolado desajeitadamente, na
26
presença atenta e complacente do velho, minutos antes de a conver-
sa ter sido interrompida. Fechei os olhos para melhor desfrutar a
suave brisa que refrigerava a varanda e, depois de duas ou três tra-
gadas, suavemente, adormeci.
* * * Despertei da sesta tão suavemente como adormecera.
Emergi sem sobressalto, chamado à superfície por uma série de dis-
cretos e intermitentes pigarros, que, como o zunido de um pernilon-
go, eram bastantes para desfazer um sono leve, mas insuficientes
para acordar quem dormisse profundamente. Abri os olhos e o vi a
meu lado, falando:
O senhor vai ter um bom pra escrever.”
Saltei da rede, esmagando com o pé o palheiro mal desfru-
tado, que jazia frio e mal cheiroso no assoalho de angico, enfiei meu
borzeguim, atando-o sumária e malmente, e segui o velho, mas com
alguma dificuldade para manter o mesmo passo que lhe permitiam
as longas e ágeis pernas. Sem fôlego, alcancei-o junto a um arbusto.
A uma pedrada de nós, corria um riacho estreito e cristalino, divisa
natural com a propriedade contígua. O velho pediu-me silêncio e
apontou a entrada do bosque logo além da água. Assim, colocado
ligeiramente à cavaleira, vi um homem deslocando-se, com pressa,
para a mata e perguntei quem era.
“O marido.”
Não havia nenhuma ansiedade em seus olhos, mas a ele-
vação das comissuras labiais acentuou minha curiosidade. Ele, tal-
vez, presumisse o que ocorreria e fez o resumo da situação:
“Eu vi ela e o outro chegando juntos no bosque. Não
aprendem nunca. Vai ser sempre assim, até que um mate o outro...”
“Ou até que esse aí mate a mulher.” Interrompi de bobice,
como querendo oferecer uma contribuição possível para o desfecho.
Ele me ignorou, simulando não ouvir.
“O marido gosta dela, mas ela cansa de dizer que ele é
frouxo e não aguenta a caloria dela.”
O homem desapareceu entre as árvores e o velho forçou
meu ombro para baixo, tanto para me proteger como para impor
27
novo silêncio. Quase no mesmo instante, vimos sair de uma brecha
do mato, como uma raposa acuada pela cainçalha, um rapaz ainda
mais apressado. Tronco nu, camisa esvoaçando na mão, olhos de
pavor numa cara afogueada, passou próximo de onde estávamos,
sem nos ver, chapinhando no córrego e turvando a água. Em segui-
da, vindos do bosque, gritos de mulher misturados com o som de
mãos contundindo carne. Ouvimos, também, uma sequência de pa-
lavras por cujo nível não me permito reproduzir, senão parcialmen-
te:
“Vagabunda!”
“Vadia!”
“Corno!”
“Ah, é? Então toma!”
As vozes e os ruídos alcançaram um nível elevado e man-
tiveram-se, por um tempo, neste volume. Depois, aos poucos, foram
baixando, rareando, sumindo, até cessarem de todo. Esperei atento,
apurando os ouvidos, pronto para realizar uma ação quixotesca. E
nada. Voltei-me para o velho e vi sua cara sorrindo toda, agora. Era
cada vez mais forte meu impulso de intervir e sugeri-lhe que o ho-
mem poderia estar esganando, degolando, estripando a infiel, mas
seu sorriso se abria mais, na medida em que aumentava minha afli-
ção.
Depois de algum tempo, que pareceu longo, a situação ti-
nha, para mim, assumido dimensão de tragédia. Senti um princípio
de náusea e a cabeça começou a pesar, quando fui, novamente,
compelido a dobrar o corpo e a manter-me calado. Vi, por entre as
folhas que nos serviam de camuflagem, saírem do bosque, juntos e
abraçados, a vítima e seu algoz, que se distanciavam do local, len-
tamente, em direção à colônia da fazenda vizinha, parando a espa-
ços para trocarem algumas palavras e beijarem-se. Pasmado, sem
nada entender, voltei-me para o velho, que sorria ainda mais e que
respondeu ao espanto e à incredulidade que eu demonstrava:
“Pode ser, mas pode não ser.”
* * * Decorreram mais de duas décadas desde aquele nosso con-
tato e não acredito que o velho ainda exista. Como gostaria de ter-
28
lhe pedido explicações...
Até hoje, nada, nem o tempo, nem a experiência que os
anos acrescentaram à que eu possuía na época em que os fatos ocor-
reram, nem a maneira mais realista de ver o mundo que a idade me
impõe agora, nada mesmo, desfaz esta suposição que me assola toda
vez que relembro o caso. Se o narrei tantas vezes de forma oral,
como costumava proceder em minhas apresentações, sem fazer
qualquer referência àquela desconfiança, agora que o coloco no
papel e estou distante de meu público, fico em situação mais confor-
tável para confessar qual ela seja. Aquilo que eu temia viesse a se
transformar em tragédia, talvez não houvesse passado de um drama
ou, mais precisamente, da dramatização de um curto enredo, da qual
eu fui o único espectador: os três, em nossa frente, atores; o velho, a
meu lado, diretor. Se ainda não morri de vergonha ante a possibili-
dade de, tão ingenuamente, ter sido iludido, foi porque nunca pude
confirmar que a suspeita tivesse fundamento. Somente esta incerte-
za é que me dá algum alento para continuar convivendo, após tantos
anos, com esta presumida desonra. As muitas vezes em que tenho
repassado para plateias de variados tipos aquele episódio intrigante,
repito a mim mesmo as palavras do velho, as quais, naquele primei-
ro momento, teriam explicado tudo, ou teriam explicado absoluta-
mente nada: “Pode ser, mas pode não ser.” Estaria certo mais uma
vez ele, que tão bem conhecia a natureza do ser humano, cujo cora-
ção acredita e cuja mente duvida? Se não, quando assistimos a um
bom e emocionante espetáculo, por que insondável engenho da al-
ma sentimos as lágrimas ameaçando brotar de nossos olhos? Certa-
mente é porque, de algum modo, cremos que tudo quanto vimos
pode ser, não apenas verossímil, mas de fato, verdadeiro. Porém se,
ao mesmo tempo, tentamos dissimular nossa emoção, é por nos en-
vergonharmos de ceder, tão facilmente, ao apelo de uma apresenta-
ção artística que, embora bem urdida e belamente interpretada a
ponto de nos comover, mui provavelmente, não tenha qualquer lia-
me com a realidade.
O bom e justo Mioh Ben Chabel caminhava, naquele iní-
cio de manhã, enquanto se dissipavam as últimas sombras da ma-
drugada e se prenunciava um dia quente e brilhante como a pequena
estrela que o estava a enviar, montado nos feixes de seus raios velo-
císsimos. Dava os primeiros passos no rumo do leste, para fazer,
segundo previa, sua derradeira peregrinação aos lugares considera-
dos santos, porque berço das mais belas e cultivadas tradições de
seus ancestrais. Acompanhava-o, desta vez, o jovem Chabel Ben
Mioh, cujo prenome fora-lhe dado em homenagem ao avô, a quem o
pai prometera que o faria se Ledice, sua fiel esposa, viesse a conce-
ber outro varão, após decorrido tanto tempo desde o nascimento do
atoleimado Chaim, quinze anos mais velho e trinta vezes menos
inteligente que seu irmão. Chabel Abu Mioh não chegou a ver seu
segundo neto, mas legou-lhe seu nome, sem o saber ao certo (já que
ninguém pode adivinhar se será menino ou menina o que há no ven-
tre da futura mãe) e porque morreu pouco antes que o menino visse
a luz do dia.
Ben Mioh e seu pai teriam diante de si muito frio, durante
as noites, e dias de intenso calor; algum vento e até mesmo chuva,
mas pouca, talvez nenhuma. Contudo, se antes de se decidirem pela
marcha, encheram-se de dúvidas, depois a hesitação transformou-se
em místico entusiasmo e o medo, em confiança.
Em lágrimas, abraçaram, com um misto de júbilo e de tris-
teza, os remanescentes Ledice e Chaim, acomodaram, cada qual,
seu fardo às costas e encetaram a viagem, misteriosa e desafiadora
para Chabel, redundante e ameaçadora para Mioh, a quem uma forte
distensão das fibras musculares e a osteoporose vinham intensifi-
cando o grau de indeterminação da vontade sobre os movimentos.
As lágrimas do casal eram a expressão do velado temor nutrido por
ambos sobre as incertezas que cercavam a jornada. E por que, pois,
30
pôr-se a caminho no último quartel de sua vida? Era o que lhe per-
guntara tantas vezes Ledice, antes de ele considerar-se definitiva-
mente capaz de fazê-lo.
“Que sabem, porém, as mulheres? Guardadas as vantagens
que elas possuem sobre nós, no que concerne às coisas da materni-
dade e do coração, somadas ao cumprimento dos deveres para com
a administração da casa e com tudo quanto garanta o bem-estar do
marido e dos filhos”– pensou. “O último que se exigirá delas é que
exercitem a razão e procedam de conformidade com ela. Está es-
crito nos livros, quer sagrados, quer profanos. As mulheres, como
os loucos, podem até aplicar-se a alguns misteres com perseverança
e eficiência, mas nunca farão uso da inteligência para mudar o
mundo, melhorar o mundo, salvar o mundo. A cauda nunca agitará
o cão.”
E porque murmurasse tudo quanto pensava, assustou Cha-
bel, que estacou: “O que disse, meu pai?” “Ora, não é nada. A vida
te ensinará tudo, mais tarde. Enquanto isso, não te fies nas mulheres
e nos loucos. E agora anda, filho.” O rapaz, que até então não pen-
sara em nada relevante, ocupando-se a olhar o pouco que merecesse
ser visto ao longo do caminho, daí para diante deu para formular
pensamentos, mas em silêncio, para não provocar a curiosidade do
pai, nem ter que dar-lhe explicações. Pensou na mãe, que era mu-
lher e a melhor que já conhecera. Lembrou-se do irmão, “um pouco
esquisito, mas eu gosto dele, apesar de tudo”.
* * * Chaim já fizera com seu pai aquela romaria, assim como
seu pai fizera com seu avô, seu avô com seu bisavô, e assim para
trás, até o início dos tempos. E seu pai fazia com ele, assim como
ele próprio faria com seu filho e este com seu neto, até o final dos
tempos. Todavia, quando fora a vez de seu irmão, seu pai era bem
mais jovem, mais forte, e seus passos obedeciam a tudo quanto a
cabeça ordenasse.
“Eu tinha três anos, na época, mas lembro-me de que to-
dos estavam alegres, exceto eu, que chorava e queria que me des-
sem um fardo como o de meu irmão e me levassem com eles. Meu
pai tentou convencer-me de que a mãe, como mulher, frágil e inde-
fesa, precisava de um homem, ainda que pequeno, para cuidar dela
e protegê-la dos perigos a que as mulheres sozinhas estão sujeitas.
31
Mas todas as vezes em que eu, envaidecido com a missão que me
cabia, parava de chorar, Chaim iniciava alguma provocação às es-
condidas de nossos pais, desencadeando nova série de ruidosos pro-
testos. Enfim, ao som de meus gritos, beijando-nos a mim e à ma-
mãe, meu pai ordenou a partida, catucando as costelas do primogê-
nito, como faz o pastor com os borregos teimosos de seu rebanho
com a ponta de seu cajado de madeira ainda verde, que andara bus-
cando durante a tarde anterior. Quando sumiram na curva, esqueci-
os. Minha mãe, a quem me cabia proteger, levou-me em seu macio
e tépido colo até a caminha ao lado da sua, deu-me para chuchar um
pano em que envolvera um pedaço de ráhat 11
, cobriu-me, entoou
uma suave canção e, certamente, beijou-me na testa, quando então
eu já iniciara o sono reparador de meu infinito cansaço e de minha
profunda frustração.”
O tempo em que os dois permaneceram fora, pagando seu
tributo aos velhos cultos, não alterou a rotina da família reduzida.
Decorreu na maior paz, enquanto o pequeno Chabel exercia as fun-
ções de chefe daquela casa vazia e fácil de dirigir, já que a única
mulher que havia ali cumpria, dentro da mais absoluta disciplina e
do mais completo zelo servil, todos os deveres de esposa fiel do
companheiro ausente e, sobretudo, de mãe extremada do filhinho
temporão e, por ora, único.
Chabel não se lembrava bem sobre quanto tempo durara a
peregrinação do pai com seu irmão. Lembrava-se, apenas vagamen-
te, de que o ambiente de tranquilidade que prevalecera desde a par-
tida deles desapareceu com seu retorno. Não porque voltasse a ser
turbulento e alegre, como antes da partida deles, mas turbulento e
tenso. Os dois discutiam muito. O tratamento dispensado por Mioh
a Chaim era péssimo e sempre que a mãe tentava intervir em favor
do rapaz toda a ira do marido voltava-se contra ela. As noites, seus
pais passavam conversando a respeito do filho mais velho. Enquan-
to o tom da voz de Mioh era sempre elevado e agressivo, o de Ledi-
ce era calmo e conciliador. As referências de Mioh a Chaim vinham
sempre precedidas de qualificações depreciativas: imbecil, maluco,
majnún, hmár 12
. O pai, de quem nem a mulher nem os filhos conhe-
ceram qualquer parente próximo ou distante além de Chabel Abu
11
Majnún, hmár: louco, burro.
Mioh, cuja memória era considerada por todos intocável, era de
opinião que o primogênito herdara de um tio materno e solteirão,
Najid, aquele sangue ruim, defeituoso, que o fazia desobediente,
imprevisível e nada confiável. Chabel conviveu com este novo ce-
nário familiar, sem compreendê-lo, durante o tempo que restava de
sua infância e por toda a sua adolescência. Por fim, quando comple-
tou dezoito anos, foi convocado pelo pai para realizar, em compa-
nhia dele, sua própria peregrinação.
* * * Na manhã do quarto dia da marcha, quando não haviam
coberto a terça parte do percurso de ida, Chabel percebeu que algo
não estava bem com seu pai. Fez-lhe perguntas, a que o velho res-
pondeu com evasivas e de má vontade, ao mesmo tempo em que
tentava inutilmente se pôr em pé. Como houvesse muito chão pela
frente, o rapaz serviu, a si e ao velho, um pedaço do pão que Ledice
assara na véspera da partida, enriquecido com fatias de xanclich 13
que, dizia-se, era na verdade um poderoso fortificante. Fosse por
isto ou não, de fato Mioh saltou logo e, firme, apontou com o braço
a direção a ser tomada. Chabel, que decidira, pouco antes, falar com
o pai sobre a necessidade de voltarem dali mesmo para casa, adiou a
conversa, embora sabendo que, cada milha que avançassem, aumen-
tava significativamente o risco de o velho ficar pelo caminho.
Ao final do quinto dia, quando as pedras de maior porte
projetavam ilhas de sombra acolhedora, acomodaram-se nelas. Sa-
bia que a exaustão tomara conta de todos os tecidos do corpo frágil
e seco do pai, o que era, desta vez até para o próprio Mioh, indiscu-
tível. Chabel pensou em reiniciar a conversa que não tivera lugar no
dia anterior. Estava determinado a impor sua autoridade à do pai,
quaisquer que fossem os argumentos deste, ainda que a mudança de
comando pudesse parecer subversão da ordem. Todavia, nenhum
esforço que pudesse parecer afrontador foi preciso de se aplicar. O
velho conhecia, mais que o filho, a precariedade de sua saúde, de
modo que tornou as coisas tão fáceis, que Chabel entendeu desne-
cessário maior empenho no convencimento.
Porém, antes de capitular, pediu a atenção do filho e teceu
algumas considerações sobre o que aquela renúncia representava
para o equilíbrio familiar, sobre como ele via o futuro sem sua pre-
13
33
sença como chefe do grupo, sobre como cada um dos demais mem-
bros da casa de Mioh Ben Chabel deveria aceitar a reestruturação do
núcleo que, até então, ele conduzira. Fez referência a Ledice, que,
enquanto vivesse, deveria ser ouvida antes de qualquer tomada de
decisão. Com alguma dificuldade que a emoção provocava sempre
que se referia a Chaim, disse que lamentava a condição de seu pri-
mogênito, de seu caráter instável e, por consequência, de seu com-
portamento incerto, o qual ficara demonstrado quinze anos antes,
quando ambos saíram em peregrinação, tal como estavam tentando
fazer agora, ele e seu filho caçula e tardio. Com pesar e vergonha,
como quem pratica uma inconfidência, como quem revela um se-
gredo que jurara guardar ou como quem confessa um crime há mui-
to perpetrado e já prescrito, falou sobre as estripulias de Chaim du-
rante aquela frustrada marcha para o oriente, sobre os vexames pe-
los quais ele o fizera passar, diante da comunidade toda reunida nos
lugares sagrados, sobre o desrespeito demonstrado para com os líde-
res, para com os locais e com os cultos reverenciados pela multidão.
Por isso, deixara Ledice autorizada a não reconhecer o filho mais
velho como al rá'ç 14
, em seu lugar, mesmo sabendo quão alto seria
o preço a pagar, já que, apesar de teimoso como uma mula, Chaim
não era ignorante a ponto de desconhecer as normas que regem as
sucessões nas hierarquias familiares, nem de aceitar que elas fossem
desrespeitadas. Aconselhou Chabel a não se opor ao irmão, permi-
tindo que a mãe fosse a interlocutora nas mais que prováveis dis-
cussões que ocorreriam, mantendo-se apenas como filho obediente,
mas atento na proteção dela e de si próprio, se a situação se degra-
dasse e fugisse do controle materno.
O pai fez uma pausa para descansar, enquanto elevava os
olhos para o céu que, na medida em que escurecia, se enchia de
constelações, de nebulosas e de estrelas cadentes, envolvendo de
beleza e de apreensão aquele pedacinho de deserto em que cabiam
tantas emoções, tantas dúvidas e que os separava de um futuro ape-
nas provável, tanto para si quanto para Chabel. Este, em silêncio e,
enquanto também olhava o firmamento, lembrou-se de seu pequeno
professor de Geografia, que arrastava seu francês no meio da classe
turbulenta, suplicando, com voz aguda e saltitando histericamente:
14
34
“Atencion, s'il vous plaît, atencion! 15
“ Agora, sem ajuda do bom e
querido mestre, rastreava a imensa redoma negra que os cobria, em
busca dos vestígios ígneos de invasores cósmicos que, após percor-
rerem por milhões de anos o espaço sideral, desabavam, errantes,
neste orbe lindo, cheio de cores e de matizes, de aromas e de brisa,
de enorme variedade de manifestações vitais, mesmo ali, na vasti-
dão de areia e de rochas que os cercava. Voltava os olhos para o pai
a seu lado e percebia que ele se esforçava para recompor o fôlego,
assim como para retomar o assunto que desejava prosseguir tratando
depois da interrupção que, contudo, se alongava. Mas ambos respei-
tavam o silêncio um do outro e do mundo que, por sua vez, respei-
tava o deles. Era uma fresta do tempo e uma porção do espaço, am-
bos preenchidos de uma doce paz. “Se a vida do planeta não pudes-
se ter prosseguimento, inx'alá 16
fosse assim que se finasse”, pensou
o jovem, por si, pelo pai e pelo mundo. Como Mioh não decidisse
reatar o sermão e ressonasse, envolveu-o com o cobertor e deitou-se
a seu lado, atento a todas as reações de seu corpo, até que ele pró-
prio, por sua vez, adormecesse.
* * * Tudo se passou de forma rápida e sufocante demais para
um jovem de dezoito anos, que talvez nem sequer viesse a comple-
tar o ritual de sua iniciação, conforme estabelecem as leis e os cos-
tumes. Quando os primeiros raios de sol começaram a aquecer as
partes de seu corpo voltadas para o nascente, despertou e rapida-
mente tocou de leve o braço do pai, chamando-o. Diante da ausên-
cia de resposta, lhe apalpou o peito e sentiu um débil movimento
respiratório e um vestígio de palpitação cardíaca. Pôs-se a correr em
volta do local na busca de quem o pudesse ajudar. Depois de algum
tempo, divisou um homem que tangia dois cabritos malcomporta-
dos, presos à mesma corda, para vendê-los na feira de uma aldeia
próxima. Após verificar a situação do velho e ouvir as súplicas do
rapaz, pediu que este tomasse conta dos animais enquanto ia ao po-
voado em busca de ajuda e precipitou-se, por entre as pedras, como
jamais poderia fazer conduzindo os dois bichos que não se entendi-
am entre si, tanto que iniciaram um duelo de cabeçadas que produ-
ziam um som oco e seco e fizeram Chabel sorrir em meio à aflição.
15
Atencion, s’il vous plaît, atencion: Atenção, por favor, atenção! 16
Inx'alá: Queira Deus.
Tomou a mão do pai e acariciou-a como para penitenciar-
se da alegria inoportuna que lhe perpassara o rosto. Pensou nos car-
neiros e nos cabritos de sua infância; não rebanhos, mas um, no
máximo dois de cada vez; nas montarias e quedas; nas “touradas” e
nas marradas de que resultavam pequenos hematomas, expostos
depois como troféus entre os amigos e primos; pensou na parte mais
triste deste convívio, que era a separação, quando alguma festa da
família se avizinhava; em que, se aquilo para ele parecia um brin-
quedo, na verdade era o alimento que estava sendo cevado para uma
ocasião especial; nos berros e balidos, nas lágrimas das crianças e
dos carneiros que, dizia-se, choram diante da morte iminente; no
sangue espesso, rubro e quente que vertia da garganta cortada, tin-
gindo o velo branco; na esfola cuidadosa para nem marcar as carnes
nem o couro; na disputa dos homens pelos testículos do animal imo-
lado, um dos quais era sempre requerido, utilizando chantagem,
pelo tio Najid.
Preocupado com a demora do homem, Chabel depôs a
mão do pai sobre a areia e levantou-se. Concentrou a visão no rumo
que aquele tomara ao afastar-se em busca de auxílio. Nada viu nem
ouviu. Colocou-se entre o sol e o pai, a fim de projetar sua sombra
sobre ele e evitar que desidratasse. Olhou para a extensão de areia e
pedras diante de si. De espaço em espaço, rochas escuras, como se
fossem feitas de magma que pingasse do céu, solidificando-se na
queda e que, junto ao solo, sob o sol forte, faziam o contraponto do
branco intenso refletido pelo mar de sílica. Lembrou-se novamente
de monsieur Guillaume, o geógrafo francês, a quem perguntara cer-
ta vez: “Se a Terra recebe tantos meteoritos todos os dias, desde que
o sistema solar foi formado, e sua massa aumenta a cada período,
por que ela não sofre um acréscimo de força centrífuga, escapa de
sua órbita e perde-se no espaço?” Nem ouviu exatamente a resposta
paciente e respeitosa que o mestre lhe dera, tamanhas haviam sido a
gargalhada e a gritaria dos colegas, que certamente nem entenderam
a questão. Talvez, pensava agora, tivesse sido algo como: “Se a
massa aumenta, também aumenta a força gravitacional em relação
ao sol, o que neutraliza a outra força, na mesma proporção”.
Imerso nestes pensamentos não pertinentes, mas que con-
tribuíam para aliviar sua angústia, ouviu os gritos alegres do homem
dos cabritos, que vinha seguido de várias pessoas, algumas para-
mentadas como as ligadas à área da saúde, que logo envolveram seu
36
pai de atenção e cuidados. Voltou-se para o homem que o ajudara,
abraçou-o em lágrimas, repetindo sem parar: “Mamnún! Âna bíxcor
q'tír! 17
“ O outro, também comovido, não conseguiu dizer nenhuma
palavra e, em respeito ao doente, afastou-se do local às arrecuas, até
alcançar a parelha caprina. Saudou Chabel agitando um braço acima
da cabeça, voltou-se e seguiu seu caminho, experimentando a sen-
sação estranha de estar, a um só tempo, triste e feliz.
* * * Algumas horas antes da prevista para a chegada de Mioh e
Chabel à casa, esta encheu-se de parentes, amigos da família e curi-
osos. Entre casos contados e algumas anedotas, umas muito api-
mentadas, outras sem graça, eventualmente se especulava sobre o
estado de saúde em que se encontrava o esposo de Ledice, a qual,
por sua vez, se dividia entre a ansiedade de rever seus queridos au-
sentes e a necessidade de prover-se de meios para alimentar aquela
multidão que assomava por todos os lados. Chaim, com quem ela
poderia contar naquela situação, esperava, como os demais, que lhe
servissem café e salgados, conversando com o tio Najid, que ali
estava pela mesma razão e ao sobrinho segredava o óbvio: “Âna
juhán 18
Houve um início de tumulto quando uma vizinha veio in-
formar a Ledice que pai e filho estavam a quatro milhas mais ou
menos e que chegariam em meia hora, além de que ficasse tranquila
para recebê-los, já que as mulheres, parentes ou não, estavam provi-
denciando alguma comida e bebida para as visitas. Quando foi pos-
sível avistar a condução aguardada, houve um fluxo de pessoas em
direção a ela, dificultando o deslocamento do doente, seu filho e
enfermeiros para o interior da casa.
Antes que estes ali chegassem, outro fluxo, agora em sen-
tido contrário e liderado por Chaim e Najid, levou o pessoal que
enxameava o carro, novamente para a casa. Foi que acabara de ser
trazido pelas boas senhoras o lanche que, soube-se, seria servido tão
logo Mioh fosse acomodado em sua cama, se esgotasse o tempo
necessário para se cumprimentarem, para louvar-se o retorno de
ambos a salvo, assim como para se lamentar todo aquele sofrimen-
to. Após os ritos essenciais da acolhida, atendendo recomendação
17
Mamnún. Âna bíxcor q’tir: Obrigado. Sou muito grato. 18
Âna juhán: Estou com fome.
37
do enfermeiro chefe, e para não agravar a situação do doente, pediu-
se que os visitantes desocupassem a casa, porquanto o lanche seria
servido no amplo quintal que a circundava. Em comissão, alguns
poucos parentes e amigos, que já haviam abraçado e beijado Mioh e
Chabel, conduziram este último até onde se encontravam os enfer-
meiros que, então, já haviam transferido ao pessoal do serviço de
saúde local a responsabilidade de continuar o atendimento. A co-
missão oferecera-se para pagar-lhes, em nome da família, pelos ser-
viços. Eles recusaram-se a receber. Alegaram sua condição de fun-
cionários de um órgão público e que eram pagos para fazer o que
fizeram. Já se despediam quando Ledice, com os olhos baixos, lá-
bios trêmulos e emudecidos pela emoção, entregou-lhes um bem
provido farnel. Ela fez um gesto que significava gratidão, voltou-
lhes as costas para ir ter com o marido, mas eles ouviram-na balbu-
ciar, com dificuldade: “Alá máhcum, xabáb cúrama! 19
“ Os mem-
bros da comissão apresentaram seus respeitos a Ledice e pediram
permissão para retirar-se e, antes de o lanche ser servido, também
deixaram a casa. Estas duas importantes defecções foram como a
senha para que se iniciasse a distribuição dos salgadinhos e dos re-
frescos, transformando o evento motivado pela solidariedade de
alguns poucos, em festa com direito a comida, bebida, além de mú-
sica e dança para a maioria.
* * * Mioh Ben Chabel recuperou-se parcialmente, mas teve de
aceitar a condição de heptagenário e doente. Curtido, desde menino,
no amanho de um solo estéril, em que cada semente germinada era
festejada como um milagre; torturado, na mocidade, pelo frio, pelo
calor, pela fome, pelo medo, pelas bombas e pelos estilhaços, pelos
hospitais de campanha e pelos campos de concentração, numa guer-
ra imbecil, como todas, e desproporcionada, como poucas. Era um
homem que nunca mais poderia caminhar sem ajuda e de quem Le-
dice, companheira há quase trinta e cinco anos e bem mais jovem
que ele, fez-se arrimo. Passava seus dias deitado na rede, ouvindo as
báladis 20
que saíam, com esforço, de um pequeno rádio de pilhas,
mas, sobretudo, conversando com os velhos amigos e ouvindo-os
ler estórias, ou contar as novidades de sua aldeia, de seu país e do
19
Alá máhcum, xabáb cúrama: Deus esteja convosco, moços generosos. 20
Báladi: música de raiz.
mundo. Entristecia-o saber do sofrimento de seu povo. Suportava
com estoicismo suas próprias limitações, suas dores físicas e até a
proximidade da morte. Todavia, custava-lhe entender o porquê de
seu povo estar perdendo a identidade nacional, além de a população
ter de assistir ao sacrifício de sua porção mais tenra e valiosa.
Um dia, quando Chabel veio pedir-lhe permissão para alis-
tar-se no exército regular, estremeceu e pediu tempo para pensar.
Procurou falar com Chaim sobre o assunto, mas este entendeu de
,
beijou a mãe de um modo não habitual e não mais foi visto. Meses
mais tarde, alguém informou Ledice que seu filho mais velho vivia
num país vizinho, onde casara com uma senhora viúva e abastada.
Chabel cansou de esperar o consentimento do pai, alistou-se e foi à
luta. Mioh e a esposa poucas notícias tiveram dele. Quando retor-
nou, o velho já não estava mais ali; a mãe perdera aquele seu viço
exuberante, que cedeu lugar a uma velhice precoce e triste. Passado
algum tempo, Ledice resolveu casar Chabel com a meiga Fátima,
filha de uma prima sua. De início, Chabel Ben Mioh franziu o ce-
nho, mas, por fim, entendeu também que aquele seria um bom ar-
ranjo. Assim, daria continuidade à linhagem de Chabel Abu Mioh.
Mais tarde, já casado e pai do pequenino Rafih Ben Chabel, fez,
solitariamente e com sucesso, sua peregrinação aos lugares santos,
tudo terminando da forma como Mioh Ben Chabel sonhara que de-
veria terminar.
quatorze minutos daquela fria manhã de agosto. Embora não cho-
vesse, o ar estava úmido e uma névoa fina estendia-se transparente
por cerca de trezentos metros e, a partir daí, adensava-se gradativa-
mente dificultando a visibilidade e formando um paredão branco,
permeado apenas por alguns focos de luz mais intensa. O aeroporto
operava, certamente, por instrumentos e o pouso que estivéramos
aguardando, talvez por isto, fora pontual.
Ainda que o tráfego aéreo, naquela sexta-feira, estivesse
relativamente tranquilo, nossos amigos demoraram aproximada-
mente quinze minutos para despontar no início do amplo corredor
que os traria até nós e, alguns segundos depois, já seguros de que
fossem eles, acenamos e os dois retribuíram com manifesta alegria.
Há muito não nos víamos e todos estávamos igualmente felizes por