Cult 44, Heidegger, Mar de 2001

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44 REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA E v e n t o 42 Semana da Francofonia reúne vozes de três continentes C U L T M o v i e s 22 Relíquia macabra é transposição para as telas do clássico noir O falcão maltês A poeta norte-americana Laura Riding e suas investidas antipoéticas 10 B i o g r a f i a C U L T Um poema do norte-americano Michael Palmer sobre São Paulo R a d a r C U L T 25 Villa Kyrial: tradição e renovação na belle époque de São Paulo H i s t ó r i a 14 04 Carta inédita de Oswaldo Aranha ao General Góes Monteiro M e m ó r i a e m R e v i s t a 18 O filósofo Martin Heidegger A poeta norte- americana Laura Riding A partícula “se” no poema “Catar feijão”, de João Cabral de Melo Neto N a P o n t a d a L í n g u a 44 D o s s i Œ 45 Heidegger, o filósofo que resumiu os dilaceramentos do século XX Arquivo da Universidade de Cornell D o L e i t o r 64 Cartas, fax e e-mails dos leitores de CULT E n t r e v i s t a O filósofo italiano Gianni Vattimo fala de seu “pensamento fraco” Reprodução

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44REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

E v e n t o 42Semana da Francofonia

reúne vozes de três continentes

C U L T M o v i e s 22Relíquia macabra é transposição para

as telas do clássico noir O falcão maltês

A poeta norte-americana Laura Ridinge suas investidas antipoéticas

10B i o g r a f i a C U L T

Um poema do norte-americanoMichael Palmer sobre São Paulo

R a d a r C U L T 25

Villa Kyrial: tradição e renovaçãona belle époque de São Paulo

H i s t ó r i a 14

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Carta inédita de Oswaldo Aranhaao General Góes Monteiro

M e m ó r i a e m R e v i s t a 18

O filósofoMartinHeidegger

A poeta norte-americanaLaura Riding

A partícula “se” no poema“Catar feijão”, de João Cabral de Melo Neto

N a P o n t a d a L í n g u a 44

D o s s i ê 45Heidegger, o filósofo que resumiu

os dilaceramentos do século XX

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Manuel da Costa Pinto

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Editor e jornalista responsávelManuel da Costa Pinto � MTB 27445

RedatoraMaria Cristina Antiqueira Elias

ArteTatiana Paula P. Barboza (editora)Carlo De Francesco

DiagramaçãoRogério Richard

Digitalização de imagensAdriano Montanholi

RevisãoClaudia Padovani

ColunistasCláudio GiordanoJoão Alexandre BarbosaPasquale Cipro Neto

ColaboradoresAldo Villani, André Duarte, Carlos Adriano, Jair Alves Corgozinho Filho, João daPenha, Juliano Garcia Pessanha, Manoel Ricardo de Lima, Marcelo Mirisola, MarcelloRollemberg, Maria Andrea Muncini, Michael Palmer, Régis Bonvicino, Renzo Mora,Rodrigo Garcia Lopes, Zeljko Loparic

CapaHeidegger em 1949 (foto de Felix H.Man); nos destaques, a cabana do pensador alemãoem Todtnauberg, o filósofo italiano Gianni Vattimo (Agência O Globo) e o senadorFreitas Valle na Villa Kyrial em 1956 (Divulgação).

Produção gráficaAltamir França

FotolitosUnigraph

Departamento comercialMilla de Souza � Triunvirato ComunicaçãoRua México, 31-D, Gr. 1.404 A � Rio de Janeiro � RJCEP 20031-144 � tel. 21/533-3121/533-1601e-mail: [email protected]

Distribuição e assinaturasLeonardo Lopes e José Cardeal do CarmoRua Treze de Maio, 743 � São Paulo � SPCEP 01327-020 � tel. 11-3262-1322, fax 11/289-8421e-mail: [email protected]

Distribuição em bancasFERNANDO CHINAGLIA Distrib. S/ARua Teodoro da Silva, 907Rio de Janeiro � RJ � CEP 20563-900Tel./fax 21/575-7766/6363e-mail: [email protected] exclusivo para todo o Brasil.

Assinaturas e números atrasados: 0800-177899

RepresentantesAlagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte: 81/3231-5600Amapá, Pará e Tocantins: Cidade Nova V WE, 31, n. 362, Ananindeua, PAAmazonas e Rondônia: [email protected]írito Santo e Rio de Janeiro: 21/9801-7136Paraná: 42/222-0527Rio Grande do Sul: 51/395-3436São Paulo: 11/3120-5042

Departamento jurídicoDr. Valdir de Freitas

Departamento financeiroRegiane Mandarino

ISSN 1414-7076

Diretor-presidentePaulo Lemos

Diretora executivaSilvana De Angelo

Diretor superintendenteJosé Vicente De Angelo

Vice-presidente de negóciosIdelcio Donizete Patricio

CULT � Revista Brasileira de Literaturaé uma publicação mensal da Lemos Editorial & Gráficos Ltda.Rua Rui Barbosa, 70, Bela Vista � São Paulo, SPCEP 01326-010 � Tel./fax: 11/251-4300e-mail: [email protected]

REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

Tiragem desta Edição: 25.000 exemplares – Auditada por

Essa edição da CULT se abre com a entrevista de umfilósofo heideggeriano e se encerra com um dossiê sobreHeidegger. Além do acaso editorial que possibilitou termosacesso a Gianni Vatt imo no mesmo período em quepreparávamos esse número sobre o autor de Ser e Tempo,tal coincidência aponta para a equação de um problemaque vem naturalmente à tona quando se discute a obra deHeidegger: como ler hoje essa filosofia tão poderosa – querepousa sobre a diferença ontológica entre ser e ente eque desvela uma existência para além das apropriações doser pela ciência, pela técnica ou pela metafísica – evitandoo risco, a ela inerente, de se deixar levar por uma rupturacom o tempo que, libertando-nos das determinações e doscálculos que nos transformam em objetos, em coisas entrecoisas, nos lance numa noite do ser cuja contrapartida sejao pesadelo da história? Não foi isso que aconteceu comHeidegger durante o nazismo, ao qual ele aderiu nosprimeiros anos da década de 30, quando era reitor daUniversidade de Freiburg? A irrupção para fora damodernidade, que o filósofo viu no júbilo coletivo do povoalemão, não era afinal um desdobramento, no coraçãoensandecido das massas, da fúria disciplinadora que eleidentificava tanto na burocracia comunista quanto naindústria capitalista? Bem entendido, o próprio Heideggerfez a crítica de suas ilusões filosóficas e buscou outrasformas de materialização do enigma ôntico para o qual seupensar aponta – como se pode ver, por exemplo, no ensaiode Zeljko Loparic publicado no “Dossiê”, em que os hinosde Hölderlin aparecem como modelos de superação doesquecimento metafísico do ser. Entretanto, é inegável que,assim como ocorre com Nietzsche, o pensamento deHeidegger se presta a leituras que o vinculam ao pathosnazista. Como então formular o contra-veneno para essaultrametafísica inoculada na antimetafísica mais radical? Énesse sentido que nos importa ler a entrevista de GianniVattimo, cujo pensiero debole sugere, justamente, a idéiade se elaborar, a part i r da diferença ontológica deHeidegger, uma espécie de ontologia da diferença queenfrente o desafio de pensar filosoficamente (e não apenasem te rmos de conv ív io é t i co ) a d i ve rs idade depresentificações de cada ser e a ausência de um fundamentoúnico da realidade.

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Friedrich Nietzsche

ReproduçãoB a t e - p a p o s o b r e N i e t z s c h e

A Fnac e a CULT promovem no dia 15 de março, às 19h, um encontro com o filósofoOswaldo Giacoia Junior, professor da Unicamp e autor de Folha explica Nietzsche (Publifolha)e Labirintos da alma: Nietzsche e a auto-supressão da moral (Edunicamp). O evento fazparte da série “Bate-papo com o autor”, que promove encontros do público com escritoresbrasileiros, como o que ocorreu com o escritor Milton Hatoum em setembro de 2000. O“Bate-papo com o autor” acontece na Fnac (av. Pedroso de Morais, 858, São Paulo, tel. 11/3097-0022).

V i a A t l â n t i c a IAcaba de ser lançado o quarto número da revista Via Atlântica, do Departamento de LetrasClássicas e Vernáculas da USP, cujo tema é a produção literária dos países de línguaportuguesa. A publicação traz um “Dossiê” com textos dedicados especificamente à críticaliterária, como Moniz Barreto crítico de Eça, de Carlos Reis, Críticos e historiadores daliteratura: Pesquisando a identidade nacional, de Regina Zilberman e Síntese genética, deE.M. de Melo e Castro, que trata da crítica genética e do processo fluido e dinâmico deprodução de textos característico da era da informática.

V i a A t l â n t i c a I IA seção “Outros ensaios” de Via Atlântica contém textos como Pessoa e doença do ocidente,de Leyla-Perrone Moisés, Sobre os enigmas de Soror Juana Inês de la Cruz, de HorácioCosta, e Para uma aproximação língua-literatura em português de Angola e Moçambique,de Perpétua Gonçalves. A revista traz ainda resenhas de Nas tuas mãos, novo romance dajovem escritora portuguesa Inês Pedrosa, e de A geração da utopia, novo título do romancistaangolano Pepetela, além de dois textos inéditos: O judeu errante, peça inacabada de JoséRégio, e Cartas, roteiros e viagens de Vitorino Nemésio, que reúne a correspondência entreo poeta português e Hélio Simões entre 1952 e 1977. Via Atlântica tem 318 páginas, custaR$ 12,00, e pode ser comprada no Centro de Estudos Portugueses da USP (av. ProfessorGualberto, 403, sala 100, Cidade Universitária, tel. 11/ 3819-9400).

B o r i s V i a nO livro Boris Vian: Poemas & Canções (Nankin Editorial, com tradução de Ruy Proença) e oCD Letícia Coura canta Boris Vian (Dabliú Discos) serão lançados no dia 14 de março, apartir da 19h, no SESC Pompéia (R. Clélia, 93, São Paulo, tel. 11/ 3871-7700). Na ocasião,os músicos Beba Zanettini e Vitor da Trindade e a cantora Letícia Coura apresentarão músicasdo CD e o poeta Ruy Proença e o ator Ivan Cabral (da companhia Os Satyros) recitarãopoemas do livro. Após o lançamento, o espetáculo Boris Vian: Poemas & Cançõespermanecerá em cartaz, de 15 de março a 26 de abril, às 4as e 5as feiras, às 21h30, no CaféTeatro dos Satyros (Praça Roosevelt, 214, São Paulo, tel. 11/258-6345).

A r t e s P l á s t i c a sO catálogo da exposição Brasil1920-1950: da Antropofagia a Brasília, realizada em Valênciae encerrada em janeiro passado, está à venda em São Paulo. Tema do texto de Ana MaeBarbosa publicado na CULT 43, o catálogo contém, em suas 630 páginas, ensaios e obrasfundamentais para a compreensão da modernidade brasileira e pode ser comprado pelopreço de R$ 220,00 na Livraria Memorial (Rua José Maria Lisboa, 463, apto. 84, 8o andar,tel. 11/3889-7388).

E d u a r d o S u b i r a t sO filósofo espanhol Eduardo Subirats, professor da Universidade de Nova York, estará noBrasil para três noites de autógrafos de seu novo livro, A penúltima visão do paraíso –Ensaios sobre memória e globalização (168 págs. – preço não definido). Os eventos, du-rante os quais será proferida a palestra “A penúltima visão do paraíso: Da utopia ao desastre”,acontecem no dia 9 de março, às 19h, em Recife (salão de recepção do Museu de ArteModerna Aloísio Magalhães, r. da Aurora, 265, tel. 81/3423-3007), no dia 13, às 18h, noRio de Janeiro (Universidade do Estado do Rio de Janeiro, r. São Francisco Xavier, 524, 11o

andar, tel. 21/587-7701) e no dia 15, às 19h em São Paulo (Livraria Cultura do ShoppingVilla-Lobos, av. das Nações Unidas, 4.777, tel. 11/3024-3599).

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Gianni Vattimo � filósofo italiano nascido emTurim em 1936 � é um estudioso do pensamentode Nietzsche, Heidegger e Gadamer e elaborouum pensamento filosófico atualíssimo que chamoude �pensamento fraco� (pensiero debole), emoposição ao �pensamento forte� da metafísicaclássica, com as suas peremptórias certezas arespeito do fundamento único da realidade. Hoje,diz ele, são necessárias maiores aberturas, mar-gens mais largas de interpretação (daí os estudossobre a hermenêutica de Gadamer), para umamaior liberdade de reflexão sobre a realidade e oser, encarando o problema em toda sua concre-tude, rejeitando os parênteses da fenomenologiahusserliana. Autor de O fim da modernidade(Martins Fontes) e organizador, com Derrida, dacoletânea A religião (Estação Liberdade), Vattimoretornou a Nietzsche para desfazer os equívocosnascidos da teoria do super-homem e para pôrem evidência reflexões em torno da independênciaentre a filosofia e a ciência; em Heidegger, procurouas reflexões existencialistas voltadas para oconhecimento (a consciência) da liberdade dohomem em poder fazer escolhas para as quais olimite será a morte vivida a cada dia comopressentimento (angústia) � conforme afirma ofilósofo em entrevista concedida por telefone de

Bruxelas, onde é deputado no Parlamento Europeu.

Aldo VillaniMaria Andrea Muncini

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Cult Os seus escritos afirmam que no debate filosófico atual não émais aceitável a idéia de que o papel do pensamento seja o da procurade uma �fundação única�, última, normativa da realidade. Poderianos falar um pouco dessa tese, situando sua reflexão no conjunto dafilosofia européia elaborada dos anos 60 em diante?Gianni Vattimo A negação de um fundamento único está ligada àdescoberta do caráter ideológico do pensamento. Porém, Marx pen-sava que fosse possível desmascarar a ideologia e, portanto, ele tambémpermanecia com as idéia de um fundamento único sob os muitosvéus ideológicos. A dúvida formulada por Marx contra a ideologiapode ser completada com a posições de Nietzsche, segundo as quaistodo conhecimento está condicionado pelo uso de uma certa linguagem,que é uma faculdade natural do homem. As línguas que de fato sãofaladas são culturalmente diferentes e permitem, condicionam e dealguma maneira determinam uma visão específica da realidade, a talponto que as culturas são modos de dar-se de uma realidade que édifícil considerar como única. Se nós dizemos que interpretamos arealidade, essa frase já é uma interpretação, ou a descrição da realidadecomo é, por isso torna-se dificílimo pensar, ou melhor, não se podemais pensar, depois da suspeita levantada por Nietzsche, que hajaum fundamento último da realidade que possamos conhecer. Fatoesse que nos expõe a diversas contradições e graves dificuldades. Jáem Kant estava claro que toda experiência se dá no espaço-tempo, naestrutura categorial das relações entre causa e efeito etc.: é possívelque o fundamento último da realidade nos seja dado desse modo?Isto é: quando dizemos que Deus existe, isso quer realmente dizerque o encontramos em algum lugar? Isso hoje não tem mais muitosentido, mesmo se tal concepção remonta a Aristóteles. Não afirmamosque não haja um fundamento último, porque essa afirmação seria elamesma um fundamento último: nas filosofias contemporâneas, o queé realmente importante é a relação entre o ser e a linguagem, comodizia Heidegger quando afirmava que a linguagem é a casa do ser,porquanto o ser se dá como evento acima de tudo lingüístico. Talevento é visto como um conjunto de critérios para a verificação ou afalsificação de proposições postas dentro de um horizonte histórico ecultural não de todo arbitrário, na medida em que está ligado à herançacultural e às tradições, à mistura de culturas diversas. Se o ser não éum objeto real diante de nós, o pensamento deve considerar essatransformação que não é só do pensamento. Nós não pensamos que

haja o ser, imaginado de formas diversas: se o fato de imaginarmos oser em formas diversas faz parte da história do ser, então se trata decompreender, propondo interpretações dessa história de nossosmodos de interpretar através das linguagens etc. Propor essas inter-pretações quer dizer dialogar com os outros indivíduos, com as outrasculturas enfim, chegar a um acordo. Muito importante para toda afilosofia do século XX é a tese de Heidegger segundo a qual o sernão é, mas acontece, dá-se, é evento. E o evento é exatamente o definir-se dos quadros de experiência que vêm de uma tradição, postos emdiscussão e interpretados por cada um de nós, pelos grupos sociais epela sociedade, pelas culturas. O ser é o que se consolida nessesrelacionamentos entre sociedade, linguagens e cultura, e não qualquercoisa em torno da qual nós nos movimentamos como formigas sobrea pele de um elefante.Cult Quais as implicações política, estética e cultural do �pensamentofraco�? Como o define em relação ao �pensamento forte�?G.V. É uma filosofia da história fundada sobre a idéia do enfraque-cimento das estruturas do ser como sentido de emancipação da históriahumana; emancipação que vai exatamente na direção de um enfraque-cimento das estruturas objetivas, ou seja, daquilo que a metafísicachamava o ser. Explico-me melhor: se nós entendemos que não é pos-sível imaginar um fundamento último da realidade como dado objetivoexistente, estamos na posição de quem recebe mensagens e as interpretaenviando outras mensagens, concordando em chamar o ser realidade,não arbitrariamente, mas com base em outras mensagens de seresprovidos de cultura, de civilidade etc. Se é assim, então devemos acharos fios condutores para as nossas interpretações, que não pretendemfundar-se na exibição do objeto último: se devo demonstrar que tudoé interpretação, não posso considerar um objeto que é dado fora dainterpretação, mas devo interpretar e argumentar com razões veros-símeis, persuasivas, não mostrando o objeto assim como é, porque issoseria contraditório em relação à minha tese. As razões que posso adiantarpara justificar o bom senso das minhas teses filosóficas são, como dizia,do tipo histórico-cultural: perguntarei ao meu interlocutor se leu Marx,Freud, Nietzsche, ou seja, aquilo que pertence à tradição da qualdescendo, a única coisa da qual disponho para argumentar, uma vezque, não possuindo o fundamento último da realidade, sei que nãoposso falar dele. O que proponho como argumento é uma interpretaçãoda história, do ser, da linguagem das culturas às quais me refiro; dados

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esses fatos, esses eventos, esses livros que li, essas transformações sociais,parece-me mais razoável falar de uma coisa do que de outra. A históriada cultura não é apenas minha, mas é a história do Ocidente tornadarelativamente universal. Nela encontro a Bíblia, o pensamento grego,a herança cristã, a história da política dos estados modernos e maisainda, mas tudo reagrupável sob a categoria do enfraquecimento. Porexemplo: com relação às religiões assim chamadas �primitivas�, as reli-giões naturais que pensam em um Deus como em um ente misterioso,supremo, do qual não se entende bem o que quer e o que não quer, arevelação bíblica do Antigo Testamento e a do cristianismo já são umenfraquecimento, isso é, Deus não é mais tão misterioso porque nosfalou, nos disse etc. Com o cristianismo Deus não é nem mesmo to-talmente transcendente, porque se fez homem, se abaixou deixando-sepor fim crucificar-se. Na tradição cristã, muitas leituras dos preceitosdo Antigo e do Novo Testamento tornaram-se leituras alegóricas espi-rituais porque aprendemos a ler o Evangelho sob orientação da Igreja.�Se o teu olho te escandaliza, arranca-o e joga-o longe de ti�, diz oEvangelho, mas nenhum de nós faz isso. Max Weber dizia que amodernidade capitalista é o produto de uma interpretação secularizada,mas nem por isso menos sacra, da ética cristã: aprende-se a economizar,a mortificar os desejos imediatos, a utilizar os bens da terra para pro-duzir outros bens porque isso parece um sinal da predileção divina,mas tudo isso é cristianismo enfraquecido, secularizado. Se olhamos ahistória dos Estados modernos, aquilo que se pode chamar progressoé a passagem dos regimes autoritários aos regimes democráticos; tudoisso é um enfraquecimento na medida em que antigamente havia umque decidia por todos e praticava a pena de morte. Hoje, os países civisnão têm mais a pena de morte e têm a democracia, que é um regimemais fraco sendo menos �decisionista�, menos definitivo, podendo-serecorrer seja contra uma decisão do Parlamento, seja contra a decisãodos juízes: isto é, trata-se de um regime ideológico. Até na física, euacredito que as entidades das quais os físicos falam são sempre menoscomparáveis e comunicantes com os objetos que conhecemos; os últimoscomponentes da matéria parecem alguma coisa de extremamente volátile com os quais sobretudo nunca fazemos uma experiência sensívelimediata, como quando damos um soco em um muro. Essa também éuma forma de leveza e enfraquecimento. Perdido o fundamento úniconão posso senão refletir em termos de argumentação histórico-culturale me parece que a interpretação mais razoável da história da qual

descendo seja essa do enfraquecimento, que naturalmente se refere à idéiado niilismo em Nietzsche e da diferença ontológica em Heidegger, quesão temas mais tecnicamente ligados a isso porque me parecem justificaruma filosofia fraca da história.Cult O homem moderno está só diante da morte mesmo com todaa sua liberdade. Quais podem ser as conseqüências dessa solidão?G.V. Precisaríamos verificar até que ponto o homem antigo tambémnão se sentia só diante da morte. Não é só o homem moderno quemorre pessoalmente; todos os homens sempre morrem individual-mente. A pergunta provavelmente significa que hoje temos laçoscomunitários menos fortes, enraizamentos menos profundos na famí-lia e com a comunidade do território, não acreditamos mais na raça.Felizmente não dispomos mais de uma comunidade natural; temosnecessidade de recompor continuamente as formas de comunidade,possivelmente não as fundando sobre algum fundamento últimonatural do tipo �nós somos brancos� ou �nós somos melhores porquesomos heterossexuais�, mas cada vez mais fundando essas comuni-dades com base no reconhecimento explícito de afinidades, de partilhade projetos. Nesse caso, se eu reconheço que há a necessidade dedependência, de construir grupos, de ter amigos, isso não pode serfeito sobre a base de dependências naturais que me obrigam e medeterminam, mas sobre a base de projetos, de eventos. Sou amigo detodos aqueles que, como eu, tendem para a direção de um certoobjetivo político e religioso; afinal, se � como dizia Ernest Bloch �contra a morte ainda não foi inventada a erva que a cure, eu tambémestou só diante dela, mas estarei menos se pensar na minha fé cristã.Uma fé não muito pessoal, não muito ortodoxa, cristianismo como areligião do enfraquecimento, um sentir-me cristão de tal forma quemesmo a minha morte seja de alguma maneira um evento emancipativo,que me liberta, isso é, dá alguns limites. Mesmo se não sei em queestado me colocará, estou convencido de que não será a anulação total.Cult O conceito de pietas (piedade, caridade, compaixão), segundoa sua definição, seria um �filtro teórico� das mensagens a nósenviadas do passado. A visão sintética totalizante do �pensamentoforte�, ou seja, a metafísica ocidental, parece querer excluir algumasdessas mensagens, sobretudo as vozes dos vencidos. Essa �degus-tação do passado�, implícita na idéia de pietas, inclui também men-sagens extra-ocidentais, como por exemplo os mitos dos indígenasamericanos?

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G.V. Quando falo de uma fundação não metafísica, mas histórico-cultural dos meus argumentos, incluo todas as vozes, sejam aquelasque vêm do meu passado, a tradição ocidental-européia, sejam aquelasque na modernidade vêm de outros mundos. Hoje escutamos commais atenção, mesmo em nome do desenvolvimento da antropologiacultural nos séculos XIX e XX, e escutamos também as culturas demundos diferentes daquele europeu-ocidental. Por isso a pietas estáligada exatamente a isso que pode ser considerado o sentido cristãoda história, porque, paradoxalmente, existem cristãos que interpretamo cristianismo como a religião que desmente as outras religiões. Porexemplo, estou convencido de que o fato de Deus se ter feito homemnão exclui, mas abre a possibilidade de que se tenha tornado outro; osegípcios cultuavam o boi Api, os indianos, as vacas sagradas, e portantonão é blasfêmia pensar que se Deus se fez homem poderia também seter feito gato ou vaca. De modo mais profundo, há o conceito decaridade que faz do cristianismo uma religião não-excludente juntodo fato de que primeiro se funda sobre a encarnação de Deus e,portanto, sobre a perda da sua transcendência absoluta e, segundo,sobre o amor pelo outro. Não obstante isso, o cristianismo não é areligião do pluralismo religioso no sentido de que eu, por exemplo,sinto-me cristão e portanto não creio ou creio menos em Buda doque os budistas; mas também é verdade que enquanto cristão devoestar disposto a pensar que Deus falou também através de Buda edas outras religiões ou das tradições culturais dos índios da América.Trata-se de um paradoxo que constitui a religião cristã, uma religiãorevelada que se sente verdadeira, mas cuja verdade compreende aidéia de que os outros também podem ser verdadeiros, porque Deusé misericordioso, é caridoso, se fez homem etc. Esse é um comporta-mento típico da cultura ocidental, como se pode ver na atenção com aqual estuda as outras culturas ou na insistência com a qual fala detolerância, de pluralismo, de multiculturalismo, todas coisas herdadasdo cristianismo e que são a base do principal caráter do Ocidente.Dizia bem Heidegger: o Ocidente é a terra em que o pôr-do-sol doser deixa aparecer muitos outros horizontes culturais, o que equivalea dizer que a vocação do Ocidente é deixar as outras culturas falarem.Cult Qual seria, na sua opinião, a função do mito na sociedademoderna?G.V. É necessário distinguir. Alguns acham que já que desmi-tologizamos também a idéia da desmitologização, isto é, que per-

cebemos que falar em acabar com o mito é, por sua vez, uma mito-logia da nossa parte, então todos os mitos entram na jogada outravez. Acredito que isso seja um perigo porque seria como se o pós-moderno fosse apenas pré-moderno, ou seja, a liqüidação da moder-nidade, pela qual voltamos para trás, para os nossos mitos. Eu, aocontrário, acredito que a relação com o mito pode ser acolhida denovo. Assim como os mitos na sociedade mítica, dita primitiva ouanterior à modernidade, pretendem atingir a verdade, nós temosuma reação mais estética diante do mito, na medida em que sabemosque não temos uma verdade última, que temos muitas interpretaçõesda verdade e que devemos continuamente repensar nessa multipli-cidade tentando encontrar um caminho no meio de tal multiplicidade,fazendo interpretações. Tomemos a imagem de um freqüentador demuseus. Para sermos pós-modernos, é preciso começar a pensar asculturas como �objetos� que possam conviver entre si como em umagrande galeria de fotografias (ainda que se possa contestar essa idéiade que as verdades dos mitos sejam como os diversos estilos artísticos).É possível pensar uma relação com a verdade que seja semelhante àrelação entre estilos artísticos diferentes? Esse é o desafio da pós-modernidade: a única via para evitar que se identifique com a pré-modernidade e com o primitivo puro e simples é considerar não só osmitos dos povos antigos, mas todas as verdades, como estilos artísticos,para que possamos operar escolhas em relação a eles, sem nos sentirmosautorizados a jogar fora os outros como se fossem ervas daninhas.Cult Seria possível pensar na possibilidade da construção de umaética diferente, não mais sob o signo da realização dos valores, massob o signo da pietas pelo homem e a sua história?G.V. Sim. Esse é o desafio no qual acredito. É o desafio que hoje se põeà nossa frente: o renascer dos fundamentalismos de diversos tipos ésempre a pretensão, por parte de qualquer autoridade moral do pensa-mento religioso, de emanar mandamentos baseados na natureza dascoisas, na essência do homem, da família. Ora, isso tudo é outra vezuma forma de metafísica dos princípios últimos que, em resumo, nãotêm outra razão de ser senão o fato de existirem autoridades que sesentem suas portadoras. Quando a metafísica diz que há um princípioúltimo que devemos reverenciar e além do qual não podemos ir, faz umdiscurso autoritário. Não diria que a metafísica tenha sempre produzidoas guerras religiosas, mas é certo que as violências históricas são jus-tificadas com razões subjetivas, naturais. Hitler afirmava que os judeus

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eram uma raça inferior que prejudicava a humanidade e, portanto, eranecessário exterminá-los. E isso, mesmo que seja menos violento, éigual a dizer que a família é apenas monogâmica e heterossexual e quetodas as outras formas não servem. A idéia de que tudo o que é tra-dicional é bom por natureza é a idéia de uma certa cultura, e quem querdefender essa cultura deseja impô-la também como natural. Por isso énecessário uma nova ética que não esteja mais baseada nos princípiosnaturalistas metafísicos e nos valores últimos, mas que assuma a idéiade valor, de telos, ou seja, de fim que pessoas, sociedades e grupos seproponham razoavelmente e compartilhem. Nietzsche dizia que adesvalorização diz respeito aos valores supremos, mas não a todos osvalores, porque ele queria que se criassem sempre novos valores ounascessem sempre novos deuses. Esse é o ponto: nós devemos construiruma ética do projeto, e não uma ética do reflexo da natureza, da ordem,do necessário etc.Cult Qual a sua avaliação do livro A religião (editado no Brasil pelaEstação Liberdade), resultado do encontro, realizado em Capri,entre o senhor e filósofos como Jacques Derrida e Hans-GeorgGadamer?G.V. Parece-me um livro muito bem-sucedido no qual cada um expôssuas idéias, ainda que não tenha uma conclusão única. O que acheiimportante é que um grupo de pessoas que eu considero mestres,como Gadamer, ou, de qualquer outra forma, irmãos mais velhos,muito mais autorizados do que eu, como Derrida, tenha concordadoneste primeiro de uma série de encontros filosóficos não-públicos e,por isso, mais verdadeiros, em escolher o tema da religião. Um temaque eu mesmo propus, porque naquele momento estava escrevendoum livro intitulado Credere di credere (�Crer em crer�) que tinha ne-cessidade de entender se estava errando ou não. Se a filosofia não dia-loga com as grandes fés religiosas, ela se esgota, se perde, se esteriliza.A filosofia, isolando-se dessas grandes mitologias coletivas expressaspela arte e pela religião, torna-se pura metodologia científica e despertasempre menos interesse. Para ocupar-se dos grandes temas que lheforam tradicionais na história do passado, a filosofia, repito, deve retomarativamente um diálogo com as concretas religiões históricas e, no queme diz respeito, com a tradição ocidental hebraico-cristã.Cult O enunciado de Nietzsche � �Deus está morto� � não significa,para o senhor, que Deus não existe. Ainda é possível ou necessáriodiscutir a existência de Deus?

G.V. Diria que não tem sentido discutir a existência de Deus sechamamos existência esse dar-se como objeto em qualquer lugar...Ora, quando Nietzsche justamente diz que Deus está morto, masnão que Deus não existe, nos vacina exatamente contra a possi-bilidade de pensarmos se Deus existe ou não expressando-nos emtermos objetivos. O sentido da linguagem religiosa da Bíblia oudas nossas orações não pode senão ser denotativo, pois se limita aindicar objetos ou fatos precisos. Finalmente, a ressurreição deCristo está declarada no �Credo� porque foi dita no Evangelho, enão vice-versa, porque sabemos que o Evangelho conta um fatoefetivamente acontecido. Mas essa é uma outra história, porquenem o Evangelho nem a Bíblia são livros estritamente de históriase acontecimentos � estou dando uma opinião pessoal, que a Igrejaoficialmente jamais compartilharia, mesmo que pareça muitoconvincente para a minha existência aquilo que está escrito nasSagradas Escrituras e mais ainda no Novo Testamento. Devo mesmoacreditar que em termos espaço-temporais aconteceram de verdadecoisas daquele gênero? Sobre tudo isso ainda posso nutrir dúvidas,posso apenas pensar que o sentido de um acontecimento para mimé um sentido real para a minha existência e nada mais. Logo, nãoque Deus não exista, mas que está morto. O que quer dizer? Temo mesmo significado da história da crucificação, ou seja, que Deusse abaixou a tal ponto ao nosso nível que de fato se tornou objeto desuplício na cruz. Nesse sentido Deus morreu, mas o Deus dasreligiões naturais, o Deus arquipotente, transcendente, misterioso,que ressuscitou como história da Igreja, como história de umahumanidade transformada por essa mensagem. NaturalmenteNietzsche não entendia exatamente isso, mas o que me interessa émostrar o significado fundamental do seu pensamento sobre essetema, isto é, que desapareceram os fundamentos últimos, não hámais sentido em falar de uma realidade última. Pelas razões queexpus anteriormente, o sentido é o mesmo que o Evangelho atribuià crucificação: Deus morre enquanto liqüida definitivamente umacerta forma de divindade, uma certa forma de relação do homemcom Deus e se dá de uma outra forma que não é mais assimtranscendente e misteriosa, mas que se realiza na caridade recíprocaentre as pessoas.

TTTTTradução de Maria do Rosario da Costa Aguiar Tradução de Maria do Rosario da Costa Aguiar Tradução de Maria do Rosario da Costa Aguiar Tradução de Maria do Rosario da Costa Aguiar Tradução de Maria do Rosario da Costa Aguiar Toschioschioschioschioschi

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Após um longo período de esquecimento, a poeta, ensaísta eprosadora Laura Riding, um dos nomes mais enigmáticos e polêmicos

da história da poesia contemporânea, é celebrada no ano de seucentenário com a reedição de sua obra, com a publicação de uma

biografia e de livros inéditos nos Estados Unidos e na Inglaterra e comlançamentos de traduções de seus poemas na Itália e no Brasil

B i o g r a f i a C U L T

pensagensantipoéticas

rodrigo garcia lopes

Laura Riding (de chapéu) e Robert Graves (à direita,também de chapéu) com amigos numa taberna da vilaDeya (ilha de Majorca), nos anos 30.

Divulgação

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Nas décadas de 20 e 30, LauraRiding (1901-1991) foi saudadapor W.H. Auden como �a única

poeta filósofa viva� e esteve na linha defrente da poesia contemporânea. Foileitora pioneira do modernismo einfluenciou a Nova Crítica � embora deforma não-reconhecida � com o estudoque escreveu em parceria com RobertGraves, A survey of modernist poetry (1927).Yeats elogiou a �intrincada intensidade�de sua poesia e William Carlos Williamsdestacou seu poder de estranhamento.Mais recentemente, Paul Auster a acla-mou como �a primeira poeta norte-ame-ricana a ter concedido ao poema o valor ea dignidade de uma luta�.

Cem anos após seu nascimento, Lau-ra Riding continua sendo um dos nomesmais enigmáticos e polêmicos da históriada poesia contemporânea. Sua obra(poemas, ensaios, crítica, histórias) aindaaguarda o reconhecimento que merece.Sua influência foi admitida por poetascomo Auden, Sylvia Plath, RobertDuncan, Ted Hughes e Charles Tomlin-son. Importante mencionar o impacto quesua poesia e poética tiveram sobre poetascomo John Ashbery, Charles Bernstein,bem como sobre a Language Poetry norte-americana.

O leitor poderá perguntar por queuma poeta tão importante ficou tantotempo esquecida. Pode-se mencionarvários motivos: pouco depois da pu-blicação de Collected poems (1938) � emque escreveu um prefácio defendendo apoesia como �a atividade mais ambiciosada mente� �, Riding renunciou à escritapoética por razões éticas e estéticas.Seguiu-se um silêncio de quase trinta anose uma retirada total da cena literária.Nesse período, Riding se casou e mudoupara uma pequena propriedade rural naFlórida, dedicando-se, com seu marido,Schuyler Jackson, à redação do volumosoRational meaning: A new foundation for thedefinition of words, publicado postu-

mamente 1997 (destaco também a prosade The telling, 1973). Uma guerra mun-dial, a hegemonia de Eliot e, ironi-camente, da Nova Crítica e seu cânone,a dificuldade de acesso a seus livros (quese esgotaram e deixaram de ser editados),sua atitude de proibir que seus poemasfossem publicados em antologias, tudoisso fez com que Laura Riding fosse pou-co a pouco esquecida. Nos anos 60, quan-do voltou à cena literária � agora assi-nando como Laura (Riding) Jackson �,chegou armada com uma críticacontrapoética de raízes fortementeplatônicas: a de que o discurso da poesia,por ser essencialmente linguagem emestado de artifício, não seria capaz detransmitir a verdade da linguagemhumana. �Só um problema artístico éresolvido na poesia�, escreveu.

Em 2001, vários livros de e sobreRiding estarão sendo publicados naInglaterra e nos Estados Unidos. Umabiografia autorizada, When love becomeswords (escrita por Elizabeth Friedmann),e uma coletânea de ensaios, A Laura(Riding) Jackson reader, além de doislivros inéditos, estão programados. Asimportantes revistas literárias P.N.Review e Chelsea publicaram númerosespeciais sobre a escritora. As cele-brações incluem ainda a publicação dacorrespondência de Riding (The breathof letters) e da reedição de livros seminaishá muito esgotados, como A survey ofmodernist poetry (1927), A pamphlet againstanthologies (1928) e, sobretudo, Collectedpoems. Na Itália, a tradutora Maria Giustianuncia para o primeiro semestre umacoleção de poemas de Riding para arevista milanesa La Mosca.

A poesia de Riding sempre recebeuos rótulos de �difícil�, �excêntrica� e�abstrata�. De fato, ela evita proce-dimentos que acostumamos a aceitarcomo sinônimos de poético. Emborareconhecesse que a metáfora está �em-bebida nas condições naturais da lin-

guagem�, Riding recusa a centralidade daimagem que a poesia moderna consagrouem suas várias versões (imagismo, sur-realismo, �objetivo correlativo� e mito-logia eliotiana etc.). O mais comum éRiding desenvolver uma idéia ou umargumento ao longo do poema, ao mododos poetas �metafísicos� ingleses. Apoesia de Riding vai gradualmente seafastando da imagem e da metáfora, daidéia do poema como um objeto bemfechado, sendo substituída por umapoética do processo, que questiona arepresentação. Em Riding, para usar a aptaformulação de Charles Bernstein, �amente pensando se torna a força ativa dopoema�. Seus poemas se apresentam comoprocessos de pensamento que investigamo mistério da consciência (o inexplicávelfenômeno que Antonio Damasio chamoude �a sensação do que acontece�). ComoWhitman (que chamou seu Leaves of grassde �um experimento-de-linguagem�), apoesia de Riding celebra o self � aconsciência de si e da linguagem �, masde uma maneira radicalmente anti-ro-mântica. Ao contrário, numa atitude atémesmo pós-moderna (por suspeitar dalinguagem e do discurso da poesia),Riding parece estar sempre forçando aspalavras a um limite. Não à toa muitos deseus poemas são áridos e as palavrasparecem reduzidas a seu osso, a seusentido literal. O leitor deve usar suainteligência e paciência para conseguirsaborear suas �pensagens�, cheias decurto-circuitos de som e sentido. É comose cada poema quisesse criar um espaçoverbal capaz de unir linguagem, corpo, epensamento: �Não tema tanto pela Terra:/Seu nome universal é �Lugarnenhum�./ Seé Terra para você, segredo seu./ Osregistros externos param ali,/ E você podedescrevê-la como parece,/ E como parece,sê-la,/ Pretensa pausa/ Em meio apretensa pressa� (�Terra�).

A poesia de Riding traz uma crítica àidéia de linguagem como descrição visual,

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ROUBLES OF A BOOK

OS ESFORÇOSDE UM LIVROO esforço de um livro é, primeiro, serNão-pensamentos para ninguémE ficar como se há tempos inescritoComo ficará não-lidoE construir um autor palavra por palavraE ocupar sua cabeçaAté que a cabeça se declare vagaPublicando o vazioQue dela vaza.

O segundo esforço de um livroÉ ficar desperto e prontoÀ escuta como um dono de pousadaQuerendo, não querendo hóspedes,Indeciso entre a fé em pausa nenhumaE alguma pausa.Vacilantes, as páginas cochilamE piscam para os dedos que passamCom sorriso proprietário, e fecham-se.

O terceiro esforço de um livro éDar seu sermão, virar as costas,Suscitando comoção nas margensOnde a língua cruza o olho,Sem declarar nenhuma experiência de pânicoSem cumplicidade neste tumulto.A prova de um livro é não dar pistasDe ser prova, é ser claro e leigoDo sentido estrito do impresso.

O esforço de um livro, enfim, é parecerApenas capa à primeira vista.Vestir capa como capa,Se enterrar em morte-livroMas se sentir apenas livro,Respirar palavras vivas, mas com o hálitoDas letras, endereçar vivacidadeAos olhos que lêem, ser respondidoCom letras e livricidade.

THE TROUBLESOF A BOOKThe trouble of a book is first to beNo thoughts to nobody,Then to lie as long unwrittenAs it will lie unread,Then to build word for word an authorAnd occupy his headUntil the head declares vacancyTo make full publicationOf running empty.

The trouble of a book is secondlyTo keep awake and readyAnd listening like an innkeeper,Wishing, not wishing for a guest,Torn between hope of no restAnd hope of rest.Uncertainly the pages dozeAnd blink open to passing fingersWith landlord smile, then close.

The trouble of a book is thirdlyTo speak its sermon, then look the other way,Arouse commotion in the margin,Where tongue meets the eye,But claim no experience of panic,No complicity in the outcry.The ordeal of a book is to give no hintOf ordeal, to be flat and witlessOf the upright sense of print.

The trouble of a book is chieflyTo be nothing but book outwardly;To wear binding like binding,Bury itself in book-death,Yet to feel all but book;To breathe live words, yet with the breathOf letters; to address livelinessIn reading eyes, be answered withLetters and bookishness.

Leia a seguir trêspoemas de LauraRiding traduzidospor RodrigoGarcia Lopes

OPENING

OPENING OF EYESThought looking out on thoughtMakes one an eye.One is the mind self-blind,The other is thought goneTo be seen from afar and not known.Thus is a universe very soon.

The immense surmise swins round andround,And heads grow wiseOf marking bigness,And idiot sizeSpaces out Nature,

And ears report echoes first,Then sounds, distinguish wordsOf which the sense comes last�From mouths spring forth vocabulariesAs if by charm.And thus do false horizons claim prideFor distance in the headThe head conceives outside.

Self-wonder, rushing from the eyes,Returns lesson by lesson.The all, secret at first,Now is the knowable,The view of flesh, mind�s muchness.

But what of secretness,Thought not divided, thinkingA single whole of seeing?That mind dies ever instantlyOf too plain sight foreseenWithin too suddenly,While mouthless lips break openMutely astonished to rehearseThe unutterable simple verse.

NEARLY

NEARLYNearly expressed obscurityThat never was yet but alwaysWas to be next and next whenThe lapse of to-morrow into yesterdayShould be repaired at least till now,At least till now, till yesterday�Nearly recaptured chaosThat truth, as for a second time,Has not yet fallen or risen to�What news? And which?You that never were yetOr I that never am until?

Laura Riding à época em que chegou naInglaterra, em 1926

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ou como algo transparente que nos con-duz às imagens de coisas e experiências,e não à experiência em si mesma. Essasituação é exposta em poemas como�Abrir de olhos�, traduzido aqui. Opoema argumenta que nos acostumamosa pensar sobre tudo, e sobre tudo o queestá �fora�, mas nossa mente é �cega-de-si�: quando decide fazer sentido de simesma, enfrenta um desafio � �o debateda consciência humana consigo mesmasobre o que é possível e o que é impos-sível� (Riding). Mais que �abstrata�,talvez seja correto dizer que sua poesiaalmeja, num aparente paradoxo, provarque um pensamento pode ser tão concretoquanto uma imagem. Mesmo porque,para Riding, é impossível pensar na mente(que pensa) separada do corpo (quesente). Um poema pode, de fato, e comosugeriu seu desafeto Eliot, unir pensa-mento e sensação. É o que ocorre empoemas como �Além�.

Como percebeu corretamente PaulAuster, �de início é difícil apreender todaa dimensão desses poemas, entender ostipos de problemas com que estãotentando lidar. Laura Riding não nos dáquase nada para ver, e essa ausência deimagens e de detalhes sensórios, dequalquer superfície real, é desconcertantea princípio. Sentimo-nos como se nostivessem cegado. Mas isso é intencionalde sua parte e desempenha um papelimportante nos temas que ela desenvolve.Seu desejo de ver é menor do que o deapreciar a noção de visível�. Isso édemonstrado, por exemplo, no longopoema em prosa �Poeta: Palavra men-

tirosa�. Se, por um lado, o poema temcomo tema a própria linguagem, elearticula uma crítica às expectativasconvencionais do leitor, bem como aosdiscursos do Romantismo, do Simbolis-mo e do Imagismo. Aqui o texto seapresenta, literalmente, como um muro depalavras a encarar e desafiar o leitor. Esteé apresentado não a belas paisagens,imagens, confissões transparentes doPoeta, máscaras, e sim confrontado coma própria experiência da linguagem, a este�agora� da consciência (tema retomadona prosa de The telling). Além de ser ummanifesto da �impossibilidade da poesia�e prenunciar sua atitude posterior emrelação à ela, Riding convida o leitor aassumir o papel de co-produtor do poemae a desautomatizar sua percepção, aler-tando para o risco que corremos quandoassumimos o papel de consumidorespassivos de discursos, absorvendo ima-gens e �imagens de experiências�:

Não é um muro, não é um poeta. Não éum muro de mentira, não é uma palavra dementira. É um limite escrito do tempo. Nãoultrapasse, ou em minha boca, meus olhos,você vai despencar. Chegue perto, encare eolhe bem através de mim, fale enquanto vocêvê. Mas, oh, rebanho de vidas totalmenteapaixonadas, não ultrapasse agora. Senão emminha boca, em meus olhos, vocês hão de cair,e não ser mais vocês.

Rodrigo Garcia LopesRodrigo Garcia LopesRodrigo Garcia LopesRodrigo Garcia LopesRodrigo Garcia Lopespoeta, tradutor, jornalista e doutor em Letras pela Universidade

Federal de Santa Catarina, com a tese Mindscapes: LauraRiding’s poetry and poetics; atualmente, prepara o livro

Mindscapes – Poemas de Laura Riding.

QUASEObscuridade quase expressaQue nunca foi ainda mas sempreEra pra ser a próxima e a próximaCaso o lapso do ontem no amanhãFosse reparado pelo menos até já,Pelo menos até já, até ontem �Caos quase reconquistadoSem que a verdade, dessa vez,Decaísse ou progredisse �O que há de novo? Qual é?Você que nunca foi aindaOu eu que nunca sou até?

Os poemas acima foram traduzidos a partir do livroThe Poems of Laura Riding: A New Edition of the1938 Collection (New York: Persea, 1980), compermissão do The Board of Literary Management ofthe Late Laura (Riding) Jackson.

Iluminuras lança coletânea de Laura RidingIluminuras lança coletânea de Laura RidingIluminuras lança coletânea de Laura RidingIluminuras lança coletânea de Laura RidingIluminuras lança coletânea de Laura RidingA editora Iluminuras (tel. 11/3068-9433) lança ainda no primeiro semestredeste ano o livro Mindscapes – Poemas de Laura Riding, primeira coletâneade sua poesia a ser publicada fora da Inglaterra e dos Estados Unidos.Organizado, apresentado e traduzido por Rodrigo Garcia Lopes, o volumereúne 45 poemas de Laura Riding, fotos da escritora e um apêndice comtextos críticos sobre sua obra escritos por Jerome Rothenberg & Pierre Joris,Charles Bernstein, Elizabeth Friedmann, Ben Friedlander & Carla Billitteri,Lisa Samuels, Mark Jacobs, Alan Clark e John Nolan.

OF EYES

ABRIR DE OLHOSPensamento avistando pensamentoFaz de alguém um olho.Alguém é a mente cega-de-si,O outro é pensamento idoPara ser visto de longe e não sabido.Assim é um universo muito cedo.

A suposição imensa nada ao redor,E cabeças ficam espertasPor notar a grandeza,E um tamanho idiotaEspaça a Natureza,

E ouvidos reportam primeiro os ecos,Depois sons, distinguem palavrasCujos sentidos chegam por últimoVocabulários jorram das bocasFeito mágica.E assim horizontes falsos se orgulhamDa distância na cabeça.Que a cabeça concebe lá fora.

A cada lição, lançando-se dos olhos,Regressa o espanto-de-si.O tudo, antes secreto,Agora é o conhecível,A vista da carne, similar mente.

Mas e do segredar,Pensamento individido, pensandoUm todo simples de ver?Que a mente morre sempre a cada instanteDe previsão de uma visão bem simples,De repente dentro demais,Enquanto lábios sem boca se abremMudamente atônitos para ensaiar .O verso simples e impronunciável.

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14 Cult - março/200114

MUNDANIDADE, ECLETISMO, TRADIÇÃO E

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Page 15: Cult 44, Heidegger, Mar de 2001

março/2001 - Cult 15

chegada da belle époque noBrasil, nas primeiras décadasdo século passado, marcou oinício de uma nova era e,

fundamentalmente, de uma nova maneirade encarar a vida em sociedade. Avançoscientíficos importados do continenteeuropeu, como o telégrafo, o telefone, aenergia elétrica e os modernos meios detransporte, somados a uma posturaparadoxal das elites nacionais � que aomesmo tempo em que desejavam o�novo� tinham um sentimento decontinuidade e tradição, procurandomanter hábitos aristocráticos segundo umpadrão de vida franco-britânico �geraram uma atmosfera de euforia,embora restrita a seletos gruposaristocráticos, detentores do monopólioda produção cultural e das decisõespolíticas da época. Assim, nesse universopropositadamente habitado pela joie devivre da Europa fin de siécle, surgiramsalões nos quais os chamados grupos destatus se reuniam para discutir temascomo arte, música, literatura e filosofia,realizando em seus bailes, saraus lite-rários, audições musicais, conferências ejantares o ideal decadentista de trans-formação da vida em obra de arte.

Em São Paulo (já nessa época, umimportante pólo econômico e político),um dos salões mais prestigiados era o daVilla Kyrial, propriedade do senador Joséde Freitas Valle, adquirida em 1904, quefuncionou como um verdadeiro centrocultural. Palco do ecletismo estéticocaracterístico da belle époque brasileira, a

Villa Kyrial � localizada na Rua Domin-gos de Morais, número 10, bairro de VilaMariana � reunia intelectuais, artistas,músicos e figuras públicas de renome,propiciando o ambiente adequado paraditar tendências e, paradoxalmente, paraa formação de dissidências dos cânonesacadêmicos e tradicionais então culti-vados pela elite, como a que deu ensejo àSemana de Arte Moderna de 1922.

Contudo, a história desse templocivilizatório, bem como a de seu dono �que teve atuação relevante nas artes, naliteratura, no ensino e na administraçãopública durante o período compreendidoentre 1900 e 1930 �, permaneceu perdidasob os escombros de sua demolição em1961, até ser resgatada pela pesquisadoraMarcia Camargos em seu valiosotrabalho Villa Kyrial � Crônica da belleépoque paulistana, livro que a editoraSenac lança este mês, com projetográfico da Companhia da Memória quetoma de empréstimo os padrões visuaisda art nouveau, característicos das publi-cações da época.

Logo na introdução, AntonioCandido afirma que a estetização da vidacotidiana empreendida por Freitas Vallepode ter raízes nas aspirações sinestésicasde Baudelaire, declaradas no poema�Correspondances�, e no romance Àrebours, de J.K. Huysmans. Segundo ele,uma das conseqüências dessa transfor-mação de ideais estéticos em experiênciaconcreta é o desdobramento de identi-dades. Assim, o crítico afirma que FreitasValle �adotou pseudônimos para carac-

terizar, nele próprio, o criador de receitasculinárias (Maître Jean-Jean), o ma-nipulador de perfumes (Freval) e o poeta,que só escrevia em francês (JacquesD�Avray)�. �É curioso�, continua AntonioCandido, �que nenhum deles parece terinterferido no Freitas Valle homempúblico, dotado de sólido bom senso egrande discernimento prático no terrenoda instrução e da cultura � patrocinadorde bolsas de estudo, autor de projetos afavor da educação popular e outrasiniciativas�.

Portanto, o ecletismo dos freqüenta-dores dos salões da Kyrial, dos assuntospor eles abordados e da própria decoraçãodo ambiente (composta por uma super-posição de estilos e objetos como gobelins,tapetes belgas, persas e arraiolos,mármores italianos, bronzes de AugusteMoureau e Barbedienne, vasos e jardi-neiras de Sèvres, porcelana Limoges eSaxônia, cristais Baccarat, Gallé, Lalique,Saint-Louis e Boêmia, chinoiseries, bibelôse esculturas art nouveau ou neo-rococó,espelhos bisotados ou jateados e paredesrevestidas de seda ou papel de parede commotivos florais) estava também presentena própria personalidade do político,poeta, mecenas, professor, gourmet,manipulador de perfumes, apreciador devinhos finos, colecionador de obras dearte...

Decifrando o nome do palacete,escolhido pelo poeta simbolista Alphon-sus Guimaraens � autor do livro Kiriale,que manteve relacionamento próximo eintenso com Freitas Valle �, a autora de

A

Nesta página, o Senhor da VillaKyrial, José de Freitas Valle, e

almoço de domingo no terraçodo palacete, em 1916. Na página

oposta, a galeria, ondeaconteciam palestras, serõesliterários e apresentações de

artistas e que abrigava cerca de113 quadros, que não cabiam

mais em outros recintos.

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Villa Kyrial � Crônica da belle époquepaulistana explica que a palavra descendedo vocábulo grego Kyrios, que significaDeus, e que, em latim, kirie, justaposto aeleison, adquire o sentido de �os eleitosdo Senhor�, invocativo muito repetido namissa católica. Esse significado do nomeKyrial (�os eleitos do Senhor�) revela umpouco do sistema hierárquico e patriar-calista contido nos rituais adotados noseventos da Villa Kyrial pelo �mestre-de-cerimônias� Freitas Valle, que delimitavaos temas a serem discutidos e estabeleciaregras rígidas para as atividades desem-penhadas em seu salão.

Estabelecido esse paralelo, MarciaCamargos passa para a descrição dasformalidades que antecedem os eventose das atividades que nele são desem-penhadas. Segundo ela, convites per-sonalizados, impressos para a ocasião econtendo um programa cultural e o trajeexigido, deveriam preceder os banquetes.Como para cada jantar eram convidadosapenas vinte e quatro comensais e onúmero de pessoas que freqüentava asreuniões da Villa Kyrial era elevado, haviaa segunda-feira dos pintores, a terça-feirados escultores, a quarta-feira dos músicos(Jantar da Lira), a quinta-feira dos poetas,a sexta-feira dos escritores e o sábado dospolíticos (com deputados e senadores doPartido Republicano Paulista � PRP).Aos domingos, havia almoços a quedeveriam comparecer todos os quehouvessem participado de algum dosjantares da semana. Essas refeiçõesdominicais eram servidas no terraço, por

criadas vestindo touca branca conformea tradição holandesa. Em caso de mautempo, os convidados deslocavam-se paraa adega, que além de vinhos finosguardava duas mesas de pingue-pongue.

A adega era também o local decongregação dos integrantes da Hordemdos Gourmets, que lá provavam receitasexóticas preparadas pelo Maître Jean-Jean, degustavam vinhos importados dediversas localidades, como Borganha,Bordeaux, Reno, Hungria, Espanha,Grécia, Bálcãs e Turquia, e disputavamcampeonatos de pingue-pongue, comu-nicando-se em qualquer dessas atividadessempre em espanhol. Da Hordem fi-zeram parte, como �comendadores�,Washington Luís, Carlos de Campos,Oscar Rodrigues Alves e Félix de Otero.Altino Arantes, presidente do Estadoentre 1916 e 1920, foi rebaixado a oficialpor não ter se mostrado devidamente aptopara a degustação de vinhos, e JúlioPrestes, presidente de São Paulo peloPRP de 1927 a 1930, permaneceu semprecomo cavaleiro em razão de exageros noconsumo de álcool.

As experiências de Jean-Jean, algumasdelas transcritas para um caderno deanotações de Freitas Valle em 1890, de-monstram claramente o seu zelo na eliti-zação das �delícias�. Mesmo que dos ingre-dientes constassem elementos tipicamentebrasileiros como mexerica, melado, abacaxie aguardente, o quitute seria batizado comum nome francês. O drink preparado comum litro de aguardente e vinte gotas deessência de água do reino, por exemplo, foi

batizado como Esprit Chrystal.A descontração nesses encontros de

domingo durava até as 17h, quando todosse dirigiam à galeria repleta de quadros� desde telas de Lasar Segall, AnitaMalfatti e Di Cavalcanti até obras de arteacadêmica (gênero por sua vez predomi-nante no conjunto da coleção de FreitasValle) de artistas como Oscar Pereira daSilva, Eliseu D�Angelo Visconti, AntônioParreiras e Belmiro de Almeida � ecantavam o Hino dos Cavalheiros da VillaKyrial, redigido por Valle e musicado, emtrês versões, pelos maestros João de SousaLima, Francisco Mignone e Félix deOtero.

Posteriormente, escritores e poetasapresentavam seus trabalhos à opiniãocrítica dos demais cavalheiros. De acordocom Marcia Camargos, o poeta moder-nista Guilherme de Almeida confessou aRené de Thiollier que o maior incentivode sua carreira poética lhe foi dado porFreitas Valle, que o ensinou a ler com-posições em público e a escutá-las reci-tadas por terceiros.

Diversos nomes do meio cultural, queposteriormente adquiriram projeçãonacional, também foram beneficiados pelosestímulos do senador-mecenas, que porlongo período encabeçou o PensionatoArtístico do Estado de São Paulo �instituição criada em 1912, que forneciapensão para que artistas talentososestudassem em Paris ou Roma durante cincoanos. Segundo a pesquisadora, Freitas Vallepraticou �um tipo de mecenato envolvendorecursos particulares e públicos, que

Freitas Valle,Washington Luís e

Júlio Prestes (em pé),membros da Hordem

dos Gourmets, e asala de visitas e de

música da Villa Kyrial

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permeou toda a belle époque�.Lasar Segall, por exemplo, deve sua

primeira exposição no Brasil aopatrocínio de Valle, que assim provou que,embora preferisse a arte nos moldesacadêmicos, sua �fina percepção artís-tica� estava aberta para o novo. Villa-Lobos, certa vez, recorreu ao prestígiode Valle para trazer ao Brasil o com-positor francês Albert Roussel. AnitaMalfatti conseguiu em 1923, por influên-cia do senador, uma bolsa para ir estudarna Académie Julian de Paris. A estadiana Europa para estudos dos maestrosFrancisco Mignone e João de Sousa Limase deve também a bolsas concedidas peloPensionato, presidido por Freitas Valle.O escultor Victor Brecheret somente via-jou ao continente europeu em função dainterferência de Valle, que contrariou opresidente do Estado, Washington Luís,que se opunha à concessão da bolsa aoartista, considerado �moderno demais�.

Além de vitrine para a exposição de no-vos talentos à elite, a Villa Kyrial constituíaparada obrigatória de artistas estrangeiros emvisita a São Paulo. Pelo palacete passaram otenor italiano Enrico Caruso, a atriz francesaSarah Bernhardt (que em sua segunda visitaa São Paulo, em 1893, percebendo a réplicado modo de vida francês aqui montada,afirmou: �São Paulo é a cabeça do Brasil; e oBrasil a França americana.�), os músicosDarius Milhaud e Marcel Journet, osmaestros Marinuzzi e Xavier Leroux e opoeta e escritor Blaise Cendrars (queparticipou do quinto ciclo de conferênciasda Villa Kyrial, em 1924, proferindo uma

palestra sobre literatura negra).No número 10 da Rua Domingos de

Morais não se promoviam apenas rituaismundanos, pois o incentivo às artes e areflexão cultural sempre estiveram pre-sentes. Além de jantares, almoços e reu-niões gastronômicas para degustação devinhos, eram organizados ciclos deconferências � atividade cultural caracte-rística da belle époque, que na joie de vivretupiniquim assumiu a função de preen-cher o tempo ocioso dos espectadores ede tornar menos vazios os bolsos dealguns escritores encarregados de minis-trar palestras. O primeiro ciclo de confe-rências da Villa Kyrial ocorreu em 1914.Essa iniciativa só foi retomada sete anosmais tarde (em 1921), quando durantequatro anos seguidos esses ciclos se repe-tiram. Temas políticos estavam terminan-temente proibidos. Os conferencistasdeviam seguir ideologias diferentes (mes-mo que não pudessem falar sobre elas) eo conteúdo das exposições se caracte-rizava pelo distanciamento do palestranteem relação ao contexto em que vivia.Dessa forma, no I Ciclo de Conferênciasda Villa Kyrial, em plena Primeira GuerraMundial, o socialista Picarollo falousobre A unidade da poesia no alvorecer dacivilização, enquanto o maestro Félix deOtero dissertou sobre A arte de comer bem.No III Ciclo de Conferências, realizadona explosão da Semana de Arte Modernade 1922, somente Mário de Andrade, umde seus expoentes, tocou de forma aindabranda nesse movimento, abordando apoesia modernista, enquanto os demais

palestrantes mantiveram a linha tradi-cional (Pitágoras, A trilogia épica do medi-terrâneo � Homero, Virgílio e Camões, Oamor nos poetas latinos, entre outros).

Freitas Valle, além de papel funda-mental no fomento à cultura, teve tam-bém atuação significativa como poetasimbolista. Ele escrevia tragipoèmes, quedeveriam ser analisados num contextode interdependência com a música, opapel, o grafismo e o jogo cênico. Naintrodução anteriormente citada, An-tonio Candido argumenta que �tomadaem si, a poesia de Jacques D�Avray sesitua num nível modesto do modestoSimbolismo brasileiro (do qual, como ésabido, emergem com real eminênciaCruz e Souza e Alphonsus de Guima-raens). Mas o fato é que talvez ela nãodeva ser tomada em si, pois na verdade épeça de um sistema esteticista do qualfaziam parte a etiqueta, a decoração, ovinho, o perfume, o requinte culinário �que constituem o complexo arte-vida daVilla Kyrial�.

Este salão, considerado por Máriode Andrade �o único salão organizado,único oásis a que a gente se recolhesemanalmente, livrando-se das fal-catruas da vida chã�, agora resgatado pe-lo esforço de pesquisa e pela criteriosaexposição de Marcia Camargos, atestaque a belle époque ultrapassou os limitesdo mundano, a que geralmente éreduzida, apresentando um traço derenovação e euforia cultural materiali-zado na �república das letras� da VillaKyrial e na personagem de seu ideali-zador e �estadista�.

A biblioteca da mansãoe os protagonistas da

Semana de ArteModerna de 1922

reunidos na Villa Kyrialalguns dias após

o evento

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A Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes recebeu em tutela dos netos de Francisco Solano Carneiro da Cunha parte doseu arquivo de documentos e cartas. Francisco Solano foi figura de projeção político-administrativa até meados do século findo;esteve à frente da Caixa Econômica Federal e chegou a Deputado Federal por Pernambuco.

O acervo ainda não foi inventariado, mas sondagem preliminar permitiu-nos selecionar itens de certa relevância; entre eles, porrazões a serem quiçá explicadas um dia, achava-se carta de Oswaldo Aranha, a seguir reproduzida e provavelmente escrita no primeirosemestre de 1945, em que o signatário detalha ao General Góes Monteiro as razões por que abdicara do ministério que ocupava.Publicamo-la em primeira mão, na expectativa de que acrescente elementos esclarecedores ao período de nossa história em que seinsere. Agradecemos ao editor da CULT a ampliação do espaço que nos concedeu para a realização deste propósito.

Meu caro Góes:

I) - Não me arrependo de te haver ocultadoos episódios da minha demissão.Verberaste em tua carta esta minha conduta.Ela foi, porém, proposital.Não te queria envolver, como não quero,agora, em fatos tão tristes para nós e parao país.Compreendo e agradeço as tuas generosaspalavras, quer de teu telegrama, quer datua carta, recebida aqui na “Vargem Grande”.A tua decisão de findar comigo a tuaatividade diplomática, e, mesmo, uma vidapública, que nos irmanou no serviço do Brasil,não tem razão de ser.Espero que tenhas atendido ao apelo doGetúlio ou ao emissário do Dutra, ou aambos.II) - Não desejava, agora, fazer declaraçõessobre as razões íntimas de minha decisão.Elas não são de natureza a poderem vir apúblico à luz artificial que o DIP projetasobre a opinião inteira do país.Preferi e prefiro calar, esperando pormelhores tempos, que acabarão por vir com,sem e até contra a vontade dos nossossenhores.III) - A tua atitude, porém, força-me aesboçar alguns aspectos desse quadrodesolador.Estava eu despachando com os em-baixadores Veloso e Negrão de Lima, logoapós vir da recepção de Ar tur Costa,

quando fui chamado, no telefone oficial, peloCapitão Dutra, que me perguntou se eu iriatomar posse, no dia seguinte, da vice-presidência dos “Amigos da América”.Respondi-lhe que iria, pois era essa a terceiravez que havia fixado a data para esse ato,ao que me retrucou ele que a sociedadenão existia mais. Tomei, então, do fone comume inqueri do Carneiro de Mendonça, que haviafixado a nova data da posse, e este mereafirmou não só a existência da sociedade,como estranhou a intrujice do DIP. Transmitia afirmação do Mendonça ao Capitão Dutra,que continuava no fone oficial e resolvi,mesmo assim, falar ao Coriolano de Góes,não apenas para mais me esclarecer, comotambém porque, quando da sua visita a mim,logo após a sua posse, me afirmara fechada,pois não vinha para o Governo com opropósito de praticar violências earbitrariedades. Atendeu-me o Coriolanopelo telefone oficial e confirmou que asociedade não estava fechada, embora fossede conveniência adiar a minha posse,noticiada pelo Correio da Manhã, motivopelo qual havia encarregado o Major Mindello,delegado da Ordem Social, de explicar-metudo, por intermédio do Carneiro deMendonça. Disse-me mais o chefe de políciaque o presidente do Automóvel Cluberesolvera não ceder mais a sala para acerimônia, e que a direção dos “Amigos daAmérica” já se havia conformado em nãorealizar o ato.

Ciente destas informações, conformei-me emaguardar a palavra do Mendonça com quem,acrescentou o Coriolano, já devia estarnaquele momento o Major Mindello.Pelas 6 horas da tarde, depois de despedidosos embaixadores, chamou-me o Mendonçaao telefone para narrar a conversa queestava tendo com o seu colega e amigo dapolícia.Tudo estaria encaminhado, resolvida atransferência da cerimônia sine die, coisa, aliás,que eu já havia feito duas vezes, por motivosparticulares. Enquanto o Mendonça me falavapelo telefone comum, o Major Mindello foichamado, no gabinete do Banco do Brasilao telefone oficial e, após a comunicação,voltou-se para o Mendonça, declarando-lhe:“Os fatos estão sendo precipitados. O Chefede Polícia acaba de me comunicar quemandou fechar a sede da sociedade semdilações. Fica, pois, o dito por não dito.”IV} - Procurei essa noite o Getúlio e fiz-lhever a brutalidade cometida comigo, pois, taiscomo se passaram os fatos, era fora dedúvida que, ciente da minha transigência, ochefe de polícia resolvera ou fora mandadoagravar a situação, a fim de torná-la irrepa-rável.V) - Confesso-te, e com que amarguraíntima, haver notado, então, que o Getúlioou era o autor ou queria assumir a respon-sabilidade pela autoria desse desacato aoseu amigo e ao seu ministro! Saí do seugabinete essa noite convencido disso e, em

M e m ó r i a e m r e v i s t A

Cláudio GiordanoCláudio GiordanoCláudio GiordanoCláudio GiordanoCláudio Giordanobibliófilo, editor e tradutor, concebeu e dirige

a Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes

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outras palestras íntimas que com eleentretive, só recebi indicações da suaconveniência com essa desnecessáriaestupidez, não tendo nunca sequer meapercebido, coisa que desejei de todocoração, do mais leve indício de suacondenação, ainda que pessoal, a atos tãoabusivos e brutais. E a minha impressãodessa noite foi tão exata que, no dia seguintede tal palestra e do fechamento da sedesocial, que funcionava numa sala do edifíciodo clube, enquanto eu almoçava com oBenjamim, que me havia ido procurar, o chefede polícia resolvia fechar as portas principaisdo Automóvel Clube , onde estavamcentenas de pessoas, que foram evacuadas,incluídos os rotarianos, em seu almoçosemanal!O fato da véspera era assim tornadopúblico e minha demissão considerada comolavrada em plena rua, por decreto policial epublicada como se publicavam outrora oseditos da excomunhão popular.VI) - As únicas alegações do Getúlio forama de que a sociedade estava fechada e deque eu decidira tomar posse sem lhe falarpreviamente.Ora, a sociedade estava aberta, tanto quefoi necessário fechar a sede e, ao outro dia,trancar as portas do edifício e do próprioAutomóvel Clube. É verdade que funcionavasem publicidade e sem atividades exteriores,segundo vim a saber, mas, ainda mais, existianão apenas no Rio, mas em todo o Brasil,

fazendo eleições, realizando cerimônias,conferências, cobrando recibos, trocandoampla correspondência telegráfica e postalcom as autoridades, tudo na forma de umalei Marcondes, e recebendo e excluindosócios com prévia consulta à Polícia. Aexigência de consulta ao Getúlio, ele aaventou na falta de outros argumentos, poiseu já era vice-presidente e, dois anos antes,tomara posse, tendo feito um discursopublicado em todo o país. Tratava-se, pois,de tomar posse por ter sido reeleito,cerimônia imposta por disposição legal,exigência expressa da lei que autorizava asociedade a funcionar. A alegação doGetúlio era assim infundada e absurda,mesmo porque, se para um ato desses, umMinistro de Estado, que resolve assuntosos mais transcendentais, necessitasseconsultar previamente o Presidente, oGoverno seria um ajuntamento de “sub-homens”, de lacaios ou de imbecis.A não publicidade e a não atividade exteriorda sociedade, por mais estranho que pareça,só provam a sua existência, ainda quereduzida, por concordata ou arbitrariedadedaqueles que a dirigem e dos que lhedeviam assegurar uma vida plena, dentrodas leis.Mas, Góes, por esse critério, o Brasil tambémestá fechado, porque não há publicidade,no interior, para e do exterior, senão a doDIP e, ainda porque funciona com as “leisdo Marcondes” e com o placet policial...

VII) - A verdade, meu caro, é que eu estavaem tudo isso de boa fé, bem como oMendonça, e que, quando a essa boa féprocurei juntar a boa vontade de evitar umincidente desagradável, tudo foi precipitado,porque a oportunidade era única e nãoconvinha perdê-la.VIII) - Não preciso juntar comentários: asconclusões são evidentes. A minha diminuiçãofoi considerada necessária, e, não a aceitandoeu, urgia a minha saída do Governo. Tratava-se de uma ação deliberada e premeditada,em todos os seus lances. Eu fui vítima de um“Pearl Harbour Policial”! Foi um golpe japonês,com todos os agravantes da surpresa e datraição dos métodos “nipônicos” sempre porti lembrados. Foi, meu caro, um truque dealto estilo no “jiu-jitsu” da política do ESTADONOVO.IX) - Mesmo assim, resolvi dar tempo aotempo. Repugnava-me ao espírito e até aocoração admitir a persistência na malvadeze na falta de senso. Os dias sucederam-se,uns em silêncio e outros entre demarchesridículas. A reparação não poderia deixarde ser imediata, sob pena de agravação aindamaior da ofensa ao amigo e de desacato aoministro. Foi o que, aliás, sucedeu, decorridosmais de dez dias.Escrevi então ao Getúlio o seguinte bilhete:“Há dez dias aguardo a minha demissão.Não mereci, nesses longos dias, qualquerdecisão tua ou do Governo. Essa demorasó a posso interpretar como mais uma falta

Oswaldo Aranha, ministro das relações exteriores de 1938 a 1944, em fevereiro de 1939

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de consideração ao amigo e ao Ministro.Nada mais me resta, pois, do que deixar oMinistério por ato próprio, do que te doucomunicação e darei às nossas missões. DoOswaldo”Só então pediu-me ele, por intermédio doCordeirinho, que o fosse ver, antes de suaresposta final. Conversamos longamente,enquanto o Cordeirinho esperava na ante-sala. A sua atitude foi a mesma da primeiraconversa e, quase direi, as mesmas as suaspalavras!Não foram as mesmas apenas as alegações,porque as duas se tinham desfeito com aapuração das ocorrências: a sociedade defato estava fechada e a minha posse nãoera uma impertinência, mas uma exigêncialegal para os próprios respeitos!X) - Eis aí, Góes, os fatos, numa fidelidadeque desafia contrastes, acrescidos apenasde alguns desabafos íntimos, que a nossaamizade não me permite sopitar.Naqueles longos dias, em que fui réu de mimmesmo, procurei encontrar motivos paraexplicar e até para justificar tudo que assistia,a brutalidade e a conivência, a pressa nodesacato e a dificuldade na reparação. Aminha culpa, pensava eu, era a minha própriapessoa, era a minha devoção ao país, era oacerto de minhas opiniões, a clareza da minhavisão, a correção de minhas atitudes, era aminha amizade ao Getúlio, era, enfim, alealdade, a independência de minha condutano Governo.A imperiosa necessidade de dar maisautoridade e prestígio aos ministros tomaraaspectos de perdição próxima ou deinsegurança nas punições para cer toscolaboradores do Governo. Eu tinha ciência

e consciência dessa situação deplorável. Elavinha de longe, mas o Getúlio sempresoubera manter aquilo que ele mesmochamava “o equilíbrio da sua balança”. Euera perigoso para alguns, mas necessário aoGoverno. A minha periculosidade aumentoupara aqueles com a próxima vitória dasarmas aliadas ao mesmo tempo que para oGoverno diminuía a necessidade dos meusserviços. Eis tudo, meu caro.A interferência na ação diplomática da minhapasta foi-se tornando cada vez mais agres-siva e menos aceitável. O Itamarati era porvezes excluído do Conselho em assuntosda sua peculiar competência. O exercício daminha função tornava-se, assim, cada vezmais difícil , justamente quando todaautoridade me devia ser dada e eu deviamerecer o crescente apoio de todos. Eupensei até ter feito jus à confiança e ao apoio,não apenas dos meus colegas, mas dosbrasileiros de um modo geral, pois a políticae a ação por mim desenvolvidas na pastado exterior me haviam recomendado já auma consideração especial e pessoal dosdemais governos e povos.Nunca me fiz ilusões comigo mesmo e nemacaricio vaidade e glória vãs. Estoufotografando fatos e realidades sem o menorpropósito de reivindicações pessoais.Sempre procurei atribuir o que fiz aoGoverno, ao seu chefe e à opinião do país.À proporção que se consolidava no conceitode nossos aliados a minha autoridade e eramconseqüentemente aber tas maiorespossibilidades ao nosso país, graças à suapolítica exterior, cresciam os óbices, asreservas e as dificuldades internas.Não querendo revolver misérias, bastar-me-

á documentar tudo isso com a seguintecarta:

17 de julho de 1944.Pessoal e confidencialCaro Sr. Ministro:Estive pensando ultimamente no conceitofundamental que o senhor estabeleceu tãoclara e vigorosamente em sua carta recentea mim, de que é da maior necessidade queo seu país e o meu continuem no após-guerra a cooperação extraordinariamenteestreita e produtiva que caracterizou asnossas relações durante a guerra. Talproposta é de conveniência evidente. OPresidente e eu aceitamo-la sem reservas.Com esta premissa básica para guiar nossasrelações, conjecturo se não chegou a ocasiãopara nos unirmos e examinarmos a fundo osvários fatores que tenham probabilidade degovernar, durante os próximos anos, o cursodas relações entre os nossos dois países.Antevejo numerosos problemas a tomarforma. Se nos prepararmos agora para ir-lhes ao encontro, será a solução mais fácildo que se esperarmos que surjam paraentão os resolvermos. Além de assuntosque dizem respeito particularmente ao Brasile aos Estados Unidos, há outros de finalidadehemisférica e ainda alguns de alcance mundial,que só podem ser discutidos na intimidadedas palestras privadas.Creio merecerem especial atenção as suassugestões relativamente à situação eparticipação de potências como o Brasil naorganização da segurança do novo mundo,bem como a respeito do sistema inte-ramericano em face da referida organização.Não conheço outro meio de examinar essas

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questões de que dependem nossa paz ebem-estar no futuro, a não ser as conversasdiretas e particulares.Dar-me-ia especial satisfação se conseguissedeixar os seus importantes afazeres no Brasilpor tempo suficiente para vir visitar-nos aquiem Washington.O Presidente, que muito estimaria ter umalonga palestra com o senhor, poderá vê-loem 17 de agosto. Se o senhor estiver emWashington nessa data. Espero que aceiteesta minha sugestão e que tenhamos oprazer de vê-lo aqui dentro em breve.Minha senhora e eu enviamos nossasafetuosas recomendações e melhores votosà senhora Aranha e ao senhor.Seu amigo sincero (a) Cordell Hull

Não me foi possível aceitar este convite doPresidente Roosevelt e de seu secretário, emtermos os mais auspiciosos para os interessesdo Brasil ao mesmo tempo que o Ministro daGuerra, de fardas feitas, devia partir para oscampos da Europa, sem ciência do Itamarati!E, coisa de notar, o golpe japonês policial foidesfechado justamente quando eu teria queaceitar ou fixar uma nova data, pois convitesdessa natureza não podem ser recusadosde todo, sem descortesia para o Chefe deEstado que os fez.Ante tal situação interna e a impossibilidadede ação exterior, que me restava fazer,quando era desacatado pela polícia a mandoou apoiada pelo Chefe do Governo?Transigir? Aceitar as explicações pessoais dochefe de polícia? Pedir demissão paraconformar-me com uma negativa? Pedir areabertura dos Amigos da América?Tua carta foi um confor to sem par. Nada

mais me restava que “deixar por atopróprio” o ministério. Foi o que fiz. Estousatisfeito e feliz comigo mesmo.Sou humano e, portanto, não sou indiferenteàs vaidades e aspiração da vida de todos oshomens. Entre essas a maior era a de chegarao termo de minha missão no Itamarati.Nada aspirei mais do que concorrer para oremate de minha obra, que era par te maiore melhor da minha vida de devoção ao Brasil.A tarefa que me esperava era, na realidade,o prêmio do meu labor e o seu fim o melhordos meus títulos, para mim e para o meupaís. Fui forçado a truncar minha obra e,talvez, a minha vida!Não guardo de todos esses episódiosamarguras pessoais. Conheço demasiada-mente os homens para queixar-me de seuscálculos, de suas ambições, de suas conve-niências e de suas manobras. O coroamentodestas últimas pela minha eliminação doGoverno talvez venha ser útil ao Brasil. Estaé a minha convicção e são os meus votos:se estivesse vencendo a Alemanha, eu já teriasido fusilado, mas pela frente; como estásendo derrotada, eu fui apunhalado, maspelas costas!XI) - Estou na “Vargem Grande” há algunsdias. A beleza e mansidão destas paragensme têm dado o conforto da saúde e dapaz. Refaço-me com rapidez e, espero, embreve, começar a trabalhar porque o “preçopelo qual vendi o Brasil” não me dá sequerpara viver.Não tenho ordenados nem aposentadoriase o pouco que possuo é aquilo que já possuíaquando vim para o Governo, aumentadoaparentemente pela inflação, mas ainda assiminsuficiente para manter-me e aos meus.

O trabalho me será fácil e agradável. Esperoabrir o meu escritório de advocacia.Minha decisão é esperar e saber esperar. Sótenho um desejo: poder com liberdade falarao meu país. Não sei quando isso será pos-sível, e nem sei sequer se meus dias, contadospela precariedade da minha saúde, serãobastantes para aguardar tal oportunidade,hoje ansiada por todos os Brasileiros.Seja como for, porei mãos à obra de legaraos meus amigos minha defesa escrita comreflexão e verdade.Estou profundamente convencido que énecessário arrancar aos Governos o arbítrio– que só regimes como o nosso comportam– de conservar à testa da administraçãodo país os conformados, os criados, oscorruptos e incapazes, expulsando de seusconselhos todos os demais cidadãos.Não assiste a nenhum poder esse direitode flagelar assim os povos.Não penso por mim, que já encerrei a minhavida política. Penso e sinto tudo issoimpessoalmente, pelo Brasil, que não podecontinuar a ser governado pela cegueira, pelasurdez e pela cupidez de poucos contratodos.Chegou, meu caro, até mesmo porque estavai demasiadamente longa e derramadademais para que a possas ler.Não peço o teu julgamento, porque sei queele, agora, viria do teu afeto e da tua gene-rosa amizade. Peço, sim, a ponderação datua inteligência, a consideração do teu pa-triotismo, a serenidade de tua experiência,bem como a tua confiança na inteireza daminha devoção ao Brasil.

Oswaldo Aranha

Oswaldo Aranha eGetúlio Vargas, em 1943

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C i n e m ARENZO MORA

A MATÉRIA DE QUE OSSONHOS SÃO FEITOS

A partir da esquerda, HumphreyBogart, Peter Lorre, Mary Astor eSydney Greenstreet, em cena do

filme Relíquia macabra (1941)

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C i n e m AEm Relíquia macabra, o diretor John Huston realizou amelhor adaptação para o cinema do romance policial O falcãomaltês e fez de Humphrey Bogart a encarnação ideal de Sam Spade,

o detetive solitário e durão criado pelo escritor Dashiell Hammett

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ara os fanáticos por datas redondas,2001 oferece a oportunidade de umadupla comemoração noir: quarenta

anos da morte de Dashiell Hammett esessenta anos do lançamento de Relíquiamacabra, a versão cinematográfica daobra-prima de Hammett, O falcão maltês.Hammett morreu em 10 de Janeiro de1961, aos 67 anos � uma marca nadadesprezível para quem enfrentou oalcoolismo, a tuberculose, a cadeia (paraonde foi mandado por desacatar o nefastoComitê de Atividades Antiamericanas)e, last but not least, a ruína financeiratrazida pelos anteriores.Relíquia macabra, lançado em 1941 econsiderado por muitos o melhor thrillerjá realizado, é a terceira versão da novelade Hammett para o cinema (as duas

anteriores � a de 1931, dirigida por Roydel Ruth, e a de 1936, de William Die-terle � foram esquecíveis o suficiente parajustificar esta refilmagem) e a estréia deJohn Huston como diretor.A personagem central do filme é SamSpade, interpretado por HumphreyBogart, um detetive solitário e durão comum código moral paradoxal, capaz detransar com a mulher do sócio e, ao mes-mo tempo, de ir até as últimas conse-qüências para desvendar seu assassinato.Nas palavras de Pauline Kael, a aclamadacrítica de cinema da New Yorker, Spade é�...um homem que vive se testando, quenão quer ser tocado, anti-homossexual demaneira obsessiva... a apenas algunspassos do psicopático...�.Huston foi uma espécie de Hemingway

do cinema (até fisicamente eles eramparecidos), entusiasta de caçadas, esportesviolentos e aventuras em geral (ele sedivertia contando que durante as filmagensde Uma aventura na África ele e toda a suaequipe foram alimentados � sem queninguém soubesse � com carne humana),que filmava como Hemingway escrevia:com um estilo seco e direto ao ponto �não se encontra um take supérfluo ou umângulo mais rebuscado em toda a sua obra.Quando foi trabalhar no roteiro do filme,Huston percebeu que o livro de Hammettera tão bom que o melhor que ele podiafazer era ficar fora do caminho e ser omais fiel possível ao que tinha sidoescrito. Dizem que ele se limitou a pedirque sua secretária datilografasse osdiálogos de Hammett e a filmar.A

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Da direita paraa esquerda, o escritorDashiell Hammett eo cineasta John Huston

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Huston convidou George Raft para ser aestrela do filme. Quando esse recusou pornão querer trabalhar com um diretorestreante, abriu caminho para a escalaçãode Bogart.Bogart, por sua vez, encontrou apersonagem de sua vida � a figura cínica,cética e individualista que iria repetir emCasablanca, À beira do abismo e O tesouro deSierra Madre (o princípio de Spade ��Não vou bancar o idiota por você� � serepete no �Eu não arrisco o pescoço porninguém�, de Rick Blaine em Casablanca,e no �Ninguém jamais me passou paratrás�, de Fred Dobbs em O tesouro...).Pode-se argumentar que Bogart era umator de um tipo só, mas, convenhamos, elearrumou um tremendo tipo para repetir.Hammett, ele próprio um ex-detetive,não tentou dourar a pílula. Spade não éflor que se cheire, ficando a quilômetros

de distância da outra grande criação daliteratura noir, o cavalheiro sentimentalPhilip Marlowe, de Raymond Chandler(também vivido por Bogart em À beira doabismo).A história de O falcão maltês começaquando Spade e seu sócio são procuradospor uma bela mulher para tentarencontrar sua irmã. Spade assume o casodepois do assassinato de seu parceiro epercebe que por trás de tudo está a estátuade um falcão supostamente recheada dejóias. Também atrás da �relíquia maca-bra�, estão os fantásticos vilões interpre-tados por Peter Lorre e Sydney Greens-treet. A estátua finalmente vai parar nasmãos de Spade, levando a jovem inter-pretada por Mary Astor a testar seu poderde sedução contra os princípios do dete-tive � e, previsivelmente, perdendo delavada.

O diálogo final de Bogart e Mary Astor(um dos grandes da história do cinema) éinesquecível � uma reflexão sobre aefemeridade do amor e sobre as técnicasde marketing que mantêm um escritóriode detetives aberto.O toque mais pessoal de Huston está nafrase que encerra o filme � e que se tornouclássica. Em uma das poucas linhas nãoescritas originalmente por Hammett,Bogart, mostrando um insuspeito ladopoético, tenta definir para um policial oque era aquela falsificação em sua mesaque tinha provocado assassinatos, traiçõese pelo menos um coração partido: �É amatéria de que os sonhos são feitos.�

Renzo MoraRenzo MoraRenzo MoraRenzo MoraRenzo Morapublicitário, autor de Cinema falado: As melhores (e as

piores) frases do cinema de todos os tempos (LemosEditorial) e de Sinatra – O homem e a música (a ser lançado

neste semestre pela Lemos Editorial)

i n e m A

i n e m A

C i n e m

l a n ç a m e n t o s n o i rPor ocasião dos quarenta anos de morte de Dashiell Hammett,

um dos mais significativos representantes da ficção de mistério

desde Edgar Allan Poe, a editora Record acaba de lançar, o

volume Tiros na noite (546 págs. – R$ 50,00), que reúne vinte

histórias escritas por Hammett durante os doze anos de sua

breve carreira como escritor. Dentre essas, três (“Um homem

chamado Spade”, “Foram tantos a viver”, “Só podem enforcá-

lo uma vez”) têm como personagem central Sam Spade,

nascido como protagonista do romance O falcão maltês (cuja

edição pela Brasiliense está esgotada e que será relançado,

com nova tradução de Rubens Figueiredo, em abril deste ano

pela Companhia das Letras) e imortalizado por Humphrey

Bogart no filme Relíquia macabra, de John Huston. Essa

publicação integra a Coleção Negra, que se propõe a reeditar

clássicos da arte noir como Los Angeles – Cidade proibida e

Tablóide americano, de James Ellroy, Bandidos, de Elmore

Leonard, Perversão na cidade do jazz, de James Lee Burke, O

ladrão de merendas, de Andrea Camilleri, e Marcas de nascença,

de Sarah Dunant, entre outros.

Além disso, a editora Rocco acaba de lançar o livro O outro

lado da noite: Filme noir (256 págs. – R$ 26,00), em que Antonio

Carlos Gomes de Mattos (professor de história do cinema e

cinestética no curso de cinema em extensão universitária da

PUC–Rio), além de listar uma farta filmografia contendo

informações técnicas, sinopses e comentários sobre cenas e

diálogos dos filmes, traça uma definição de filme noir, determina

suas fontes e os elementos que o compõem e demonstra os

motivos de seu “eclipse” pós década de 50. Expondo a opinião

de diversos estudiosos do tema, A.C. Gomes de Mattos conclui

que o filme é “um desvio ou uma evolução dentro do vasto

campo do gênero drama criminal, que teve seu apogeu durante

os anos 40 até meados dos anos 50 e foi uma resposta às

condições sociais, históricas e culturais reinantes na América

durante a Segunda Guerra Mundial e no imediato pós-guerra”.

No que se refere às origens do filme noir, o autor entende que

esse evoluiu de duas fontes, uma literária (Raymond Chandler,

Dashiell Hammett, James M. Cain, Cornell Woolrich) e outra

cinematográfica (cuja influência mais importante é o cinema

expressionista alemão dos anos 20). Dentre seus componentes

estão personagens de moral ambígua cujas figuras básicas

são investigador e vítima, a atmosfera de niilismo claustrofóbico

realçada por enredos propositadamente confusos e por uma

iluminação em “chave baixa” (que se opõe à luminosidade dos

filmes da Hollywood dos anos 30) e uma estrutura narrativa

que enfatiza o ponto de vista subjetivo (por meio, por exemplo,

da voz over, em que o protagonista narra cenas em flashback).

24 Cult - março/200124

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março/2001 - Cult 25

Vera Jursys

Í N D I C E

Folhet im/F (oe i l ) le tonUM POEMA INÉDITO DE

MICHAEL PALMER (FOTO)

SOBRE SÃO PAULO

R A D A Rc u l t

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40

Vera Jursys

R a d a r d a P r o s aA NOVA NARRATIVA

EM IMAGENS DE

VALÊNCIO XAVIER

R a d a r d a P o e s i aCOROLA, O NOVO

LIVRO DE CLAUDIA

ROQUETTE-PINTO

N o v e l a C U L TA ÚLTIMA PARTE DA

NOVELA ACAJU, DE

MARCELO MIRISOLA

C r i a ç ã o C o n t oENTRE ESCOMBROS,

UMA NARRATIVA DE

JAIR CORGOZINHO

G a v e t a d e G u a r d a d o sPOEMAS INÉDITOS

DO JORNALISTA

MARCELLO ROLLEMBERG

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26 Cult - março/200126

O PAULO SUSPIROS DE SÃO PAULO SUSPIRMICHAEL PALMER

Fo lhe t im/ F ( o e i l ) l e ton

SÃO PAULO SIGHS

(AUTOBIOGRAPHY 14)

Lembras-te?Mário de Andrade

Our sighs in São Paulosounded something like this:

a kiss is just a kissbe it rain or simply mist

The animal alphabetpassed overhead

with its twenty-three wingsrhythm-a-ning a samba for the dead

We walked and walked and we saw:a rock star without his rock,

two pictures of a rose in the darkWe saw: the shorn locks of a nun

beside an abandoned welland we peered into our porous hearts

where militiamen secretly dwellWe walked and walked, we three

the Professor of Everything,the Professor of Nothing

and yours very trulyWe witnessed:

the theoretical arrivalof the workers' paradise

by means of its statuaryWe examined a woman's skeleton perfectly drawn

skeleton of everything,skeleton of nothing

on a blue-lit barroom walland we noted the sun's

utter failure to explainanything at all

regarding the mist and the rainThere's no cosmic close-out on raincoats

no discount on drizzlesso you must remember this

When São Paulo sighsa kiss is just a kiss

�Folhetim/F(oeil)leton� é uma seção idealizadapor Emmanuel Tugny � escritor francês residenteem São Paulo � para registrar aspectos dacidade percebidos pelo olhar de visitantesestrangeiros ou por habitantes da metrópole queexpressem seu estranhamento diante darealidade cotidiana. O termo f(oeil)leton é umtrocadilho com as palavras feuilleton, �folhetim�,e oeil, �olho�). A cada edição, a CULT alterna apublicação de textos de Tugny e de outrosescritores, oferecendo assim aos leitores aoportunidade de perceberem nossa identidadeurbana refletida no espelho da alteridade. A sérieé ilustrada pelo artista plástico francês LaurentCardon, que também mora em São Paulo.

Michael PalmerPoeta norte-americano, autor de

At passages (New Directions, 1995)

S É R I E T R A Z O L H A RE S T R A N G E I R O S O B R E

S Ã O P A U L O

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março/2001 - Cult 27

ação e perversão TransfiguraçãoOS DE SÃO PAULO SUSPIROS DE SÃO PAULSUSPIROS DE SÃO PAULO

(AUTOBIOGRAFIA 14)

Lembras-te?Mário de Andrade

Nossos supiros em São Paulosoaram mais ou menos assim:

a kiss is just a kissseja chuva ou só neblina

O animal alfabetopassou sobre a cabeça

com suas vinte-e-três asascadenciando-um-ning um samba para o morto

Andamos e andamos e vimos:um rock star sem seu rock,

dois desenhos de uma rosa no escuroNós vimos: os cabelos cortados da monja

ao lado de um poço vazioe indagamos de nossos corações porosos

onde milicianos se alojam em sigiloAndamos e andamos, nós três

o Professor de Tudoo Professor de Nada

e este que ora se subscreveNós testemunhamos

a chegada teóricado paraíso dos trabalhadores

através de sua estatuáriaexaminamos um esqueleto de mulher perfeitamente esboçado

esqueleto de tudo,esqueleto de nada

numa parede de bar, azule notamos o fracasso completo

do sol ao explicarqualquer coisa relativa à luz

quanto à chuva e à neblinanão há liquidação cósmica para impermeáveis

nem descontos para a garoaso you must remember this

Quando São Paulo suspiraa kiss is just a kiss

TRADUÇÃO DE RÉGIS BONVICINO

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28 Cult - março/200128R a d a r d a P r o s a

CARLOS ADRIANO

AS CRIAÇÕES ORIGINAIS DE VALÊNCIO XAVIERnos induzem a pensar nas origens da criação. Operando porpalavras e figuras, suas histórias (compósitos de raros refu-gos de alfarrábio) redefinem o conceito de rébus e a tradiçãodos livros de imagens. Seu novo livro enfeixa, como arte datransfiguração e da perversão, uma trilogia do M: “Menino(s)Mentido(s)” e “Minha Mãe Morrendo”.Na epígrafe que abre “Menino Mentido”, Valêncio inverteCamões e constata: “Vi que todo o bem passado/ Não émágoa, mas é gosto”. A leitura segue entre mentira e malo-gro, ficção da imaginação e infância gorada. O texto inter-cala história (quadrinhos) de Lampião, sonho (desenhos) domenino e desejos do cotidiano (anúncios). As páginas sãoautônomas mas interligadas (A filosofia na alcova éprenunciada pelo reclame do sabonete Araxá, p.ex.).

O autor-narrador compara omundo dos signos ao mundovivido. Lembrando a visada in-tersemiótica de Décio Pignatarisobre o V de Virgília no BrásCubas de Machado de Assis,lemos o V de Valêncio, V devulva, com um desenho que iguala rabisco e letra. Comonuma aritmética da memória, a “Conta de menos” é o calen-dário que contextualiza o tempo da história, a idadesubtraída aos anos.Uma das invenções magistrais do autor é o contraponto desentidos efetuado pela flicagem de um olho piscando(adaptado de manual de óptica anatômica), nas páginaspares. O texto inicia com o olho fechado e acaba com oolho aberto. Ao olhar a folha do lado, a figura funcionacomo câmera (num tripé) e projetor. Obturador, detonamovimento e dispara imagens. Na justaposição de páginas(montagem de planos), o livro de Valêncio faz cócegas nafricção (flicagem) entre imagem e texto. Algumas seqüências(página par/ página ímpar):1) olho fechado/ foto de filme e texto imaginando que, aoinvadir Capela (Sergipe), Lampião viu o Fausto de Murnauem 1929, acompanhou a fita cantando letra de improviso(pacto com o diabo) e tocando sanfona, aborreceu-se, man-dou parar e partiu/ olho aberto/ texto e desenho sobre seuolho cego.2) olho fechado/ texto e desenho abstrato: sonho/ olhoaberto/ desenho do jato ocular saindo do cérebro.3) olho fechado/ tela preta e texto (“tem uma coisa que eunão entendo”)/ olho aberto/ dois desenhos: olho cego de

Minha mãe morrendoValêncio XavierCompanhia das Letrastel. 11/3846-0801224 págs. – preçonão definido

Desenho deFlávio de Carvalhopertencente à série

“Minha mãe morrendo” Div

ulg

ação

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março/2001 - Cult 29

Transfiguração e perv

Lampião/ olho fechado/ figura: cérebro-labirinto/ olhoaberto/ anúncio: tônico poderoso/ olho fechado/ sala decinema e texto (“jogo de palavras”)/ olho aberto/ foto deLampião & Benjamin Abrahão e texto (“O cinema estavacheio. O filme mostrava o Lampião dançando com a MariaBonita, os cangaceiros apontando seus rifles para a câmera,coisas assim. Quem tirou foi um mascate árabe; antes defilmar teve que ser filmado apertando a mão do Lampiãopara mostrar que sua câmera não era arma.”).4) olho fechado/ foto: cabeças cortadas de cangaceiros (olhosfechados)/ olho aberto/ close: foto da cabeça de Lampião etexto (“corpo agora sem cabeça, medusa”)/ olho fechado/cordel “A Chegada de Lampião no Inferno”/ olho aberto/desenho: jato do olhar do cérebro/ olho fechado/ figura-preceito (“andar certo em criança é andar certo a vidainteira”)/ olho aberto /tela preta e frases em desordem (“e,na verdade, também tive um grande prazer”)/ olho fechado/A filosofia na alcova (Sade: “deixando errar essa imaginação”,“não é verdade que os desvarios da imaginação seriamprodigiosos?”).5) olho aberto/ foto: cabeças cortadas (olhos fechados) deLampião & Maria Bonita e texto (“ele olhando para ela deolhos fechados”, “duas escuras maçãs assadas com longoscabelos negros secos”, “nunca mais comi maçã assada”).Outro dado são os termos que retornam à infância, mundopré-lógico e pré-linguagem. São apalpadelas guturais,sondando origens narrativas. É no impulso que lê “jogo depalavras” (“achar nas palavras (...), palavras dos nomes deoutras coisas da vida”), que o lúdico vê o lavor literário (di-versão, divertido e diverso). No pé da página, o fecho:“Ganhei!!! Trata de me passar teu Gibi!!!”

O epílogo traz garatujas e garranchos num bloco de notas.É como se o texto desaprendesse a escrever, voltando aosrudimentos primordiais da escrita, até o traço despencarnum abismo de linhas. Antes desta página, o olho aberto, edepois, o olho fechado, seguido do letreiro “The End” e,por fim, o olho aberto.Menino mentido: Topologia da cidade por ele habitada faz censode afetos e itinerários, durante relato do crime na escola soba espreita do sexo em botão e aos borbotões, o imagináriopopular (o jornal, o tesão teen, a matinê após a missa). Namixórdia iconográfica que vai da pemba de macumba aofotograma do cinema, o texto interpola guias e mapas,catecismos, manuais, almanaques, quadrinhos, cine-seriados,anúncios, reportagens, letras de música popular.A primeira página indaga no branco o caos inaugural danarrativa: “onde está a palavra?”. Analogias lúdicas da criança,inconseqüentes e verossímeis, dão dicas do método polimorfodo autor (“O padre movia uma manivela e (...) a terra etodos os planetas giravam em torno do sol – uma vela acesa.Vendo essas miniaturas a girar feito um pião, a gente entendiaperfeitamente qual o nosso lugar no Universo.”). A página ready-

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ão

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30 Cult - março/200130

made esclarece: após a enumeração de anúncios (linhas comnome do estabelecimento e descrição sumária), o autorpergunta: “tivessem outros nomes/ teriam o mesmo encanto/da infância?”Coágulo de experiências, o cinema é modo de apreender omundo: “Sei lá se uma Manolita [1 cruzeiro = mil réis] davapra pagar a meia-entrada no cinema” (o valor do novo di-nheiro). À localização da escola segue o mapa dos locais decinema, e o verbete “123 – Que são mistérios?”; depois, acoda-guisado, o balão (dos quadrinhos): “Shazam!” É modode identificar: sob o mapa da Praça da Sé, lê-se: “Napoleãomorreu na ilha de Santa Helena, aprendi isso na aula de história.Eu estou no (cine) Santa Helena.” Lê-se o programa completode uma sessão na época: cinejornal, documentário, comédiacurta, desenho, episódio de seriado. Ou ainda quando lemossob o mapa “A cidade de São Paulo e seus subúrbios”: “Euandava por toda São Paulo, conhecia tudo que era cinema.”

A topografia de “MM” revela: “Na ruaTimbiras (...) tinha uma livraria (...)expuseram lá os desenhos de Fláviode Carvalho da série ‘Minha MãeMorrendo’. Nunca uma coisa meimpressionou tanto. Minha mãe morreunaquele ano.”“Minha Mãe Morrendo” encena, napulsão do gerúndio e na angústia daindagação (“nunca mais vi minha mãeviva/ tive medo de ver ela morta”), oamor do filho rejeitado (“minha mãeviúva/ de meu pai vivo”; “eu/ menino/morava com minha mãe/ que não meamava/ não me dava atenção/ calor

amor/ carinho/ beijos/ só lia livros e livros”), enquantoagoniza (“minha mãe nua/ pela porta do banheiro/ tivemedo/ mas me fizeram entrar/ foi só por pouco tempo/muito para mim”).Valêncio cria outra modalidade de ponto de vista temporal,diverso de flash-back e montagem paralela: instantâneosquase simultâneos. Como recorrência e metacomentário, otexto começa com a pálpebra que se abre. Antes da anatomiado olhar, ocorre o parto do olhar. Visão parida (“o tempo deuma foto”), a busca no baú imaginário do diapositivo. Amemória passa a auscultar cheiros (madeiras do Oriente).Pela simples e eficaz alternância de página com texto e páginacom imagem (e entre: páginas em branco), o autor constróia narração em retábulos: páginas-lápides.A memória turva a identificação de palavras e imagens norelato fabular: nome da mãe e nome da cidade onde foisacada a foto (“Samara Samarkanda Samaría Maria”). Naestrutura não-estanque, as palavras (“pelas portas abertas/

Foto

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março/2001 - Cult 31

Carlos Adrianomestre em cinema pela USP e cineasta, autor dos filmes A voz eo vazio: A vez de Vassourinha, Remanescências e A luz daspalavras

de par a par”) abrem a imagem na página seguinte (foto deduas moças). Na página anterior, isolar um retângulo nafoto é flagrar um cão-borrão e reverter o anagrama doobturador – Cérbero vira cérebro.A alternância de texto e imagem é quebrada uma vez: otríptico feminino em três páginas, com duas fotos deanatomia transparente e a pintura de Vênus (saída dasvísceras). Valêncio conjuga em sua escritura o verbo dissecarcomo recortar (corpos e imagens, colagens e páginas).Enigma, a evidência das imagens engana (“não sei dizer oque senti/ mil e uma noites no deserto/ pensei e não sei oque pensar”): a ambigüidade (“o tempo passou/ semrespostas/ o tempo não passa”). Na ilusão, hesita o menino(“Aladim Sinbad Saladino/ Maktub” ou “Alephemet o Sábio/que tudo sabe e tudo vê/ que abre todas as portas/ que leumil livros/ livros de palavras/ e livros ilustrados”).No fazer da ficção, escorado em palavras e imagens masdesamparado pelo irreconciliável e o irredutível, desrealizao sonho (“Eu O Profeta Velado/ o que sabe as respostas/ etodas as perguntas/ o futuro e o passado/ de todos/ os séculose séculos/ não sei o que sinto/ quando abro a porta/ e viminha mãe/ fêmea nua bela/ não sei nunca saberei”).Ao fim, abrir a porta equivale a virar a página (a última, defato, que encerra o texto, é uma lápide lutuosa). E o cinemareaparece como catalização subliminar de emoções,memórias, morte, amor. Recorre à dialética da duração, àexperiência do tempo vivido, imaginado e lembrado. Aúltima página escrita remete ao filme sueco Minha vida decachorro (o mesmo caso do menino rejeitado pela mãe ávidaledora).Tão deslumbrante quão desconcertante, o epílogo é umaepifania irônica (um verdadeiro e literal achado): a foto deum cartaz de rua, tosco e manuscrito, que suplica a alforria:

“Senhor liberta-me das imagens”. O epitáfio vale por umacontundente revelação e um manifesto da maravilhosa artede Valêncio, bricolagem brutalista de um genial cole-cionador de estelas encantatórias e bricabraques esfíngicos.Do menino mentido que morreu à visão irremediável damãe e às meninas em ruas ou janelas – múltiplos –, podemosperceber o paraíso perdido de nossa iconografia ancestral eindustrial nos cripto-textos de Valêncio Xavier, quereinventou a narrativa por imagens no Brasil, um país nãosó de analfabetos funcionais mas também de iletradosvisuais.

Ao lado, reclame do saboneteAraxá e, na página oposta,o tríptico feminino finalizadocom a pintura de Vênussaída das vísceras

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32 Cult - março/200132

OUTRA PARTE DA FLOR OUTRA PARTE DA FLOR OMANOEL RICARDO DE LIMA

UMA PRIMEIRA OLHADA EM COROLA, NOVOlivro de poemas de Claudia Roquette-Pinto – autora de Osdias gagos (produção independente, 1991), Saxífraga(editora Salamandra, 1993), e Zona de sombra (editora SetteLetras, 1997) – pode causar, rapidamente, algumasprimeiras perguntas quase evasivas: o que pode significaruma flor quando é poema? Mais perto, o que pode significarcorola, parte que envolve a flor, quando está como títulode um livro de poemas? Assim, creio, nesta rapidez donome, corola pode ser mesmo uma delicadeza de gesto,apenas, botar beleza nele, o que já seria muito. Depois,mais adiante, o que se vê na poesia de Claudia é posiçãocerteira para criar contraponto sereno a algum possível eestranho vazio no atual quadro da poesia feita no Brasil.Destaco dois princípios que estão postos na poesia queClaudia vem construindo e que, a meu ver, são muitoimportantes para a leitura de Corola: um, pensar o poemacomo um dado da amalgamada cultura poética brasileirae sacolejá-la; dois, pensar o poema como uma variante desi mesmo, como linguagem e como projeto, e darreinvenção a ele, com alguma força. Algo como o queHeloísa Buarque de Hollanda, no prefácio, a partir daidéia da flor, denominou “uma poesia em que uma visãode uma flor é desorientante”.Corola pode ser lido como um longo poema em 48fragmentos anotados e retirados de um cotidiano desviadoem sabor e cheiros, sensações quase de alegria e mergulho,e mais precisamente ainda, ao mesmo tempo e paraconfronto, um outro cotidiano, desta vez desolador, queem nenhum momento é simples, e de onde Claudia retira

R a d a r d a P o e s i a

impressões para denotar suapoesia: “palavras,/ cepas resis-tentes à droga da vida.” Mas,creio, temos em Corola, mesmo ede fato, 48 poemas estanques,desenhados à mão, com feitura correta de quem precisaainda respirar poesia e dar a ela alguma atribuição de mundoque não a mera repetição do fazer.Em Zona de sombra, seu livro anterior, em um poemaintitulado “Cinco peças para silêncio”, dividido em cincofragmentos, que tem início, o primeiro fragmento, com overso “empresta o silêncio ao silêncio”, parece-me claro quea busca poética de Claudia é a constatação de que “o plenonão existe mais”. E está lá, afirmado por ela. O segundofragmento inicia com: “evita o que dá ao silêncio/ ausênciade sombra”, e conclui, nos quatro últimos versos: “quandocorpo, ora em pedra/ ora em água precipita e/ os gestos daágua imita:/ levita em convite à queda.” Essa queda indicao início desta construção do que chamo tentativa dereinventar o poema para inserir nele a perspectiva de umnovo sujeito, de um novo lugar, até para a própria poesia.O que também Claudia nos confirma ao final do terceirofragmento: “(por dentro do corpo (disfarce/ contra osilêncio) respira/ outro corpo a imantar-se)”.Em Corola, Claudia atinge um certo grau de maturação eestabelece uma relação definidora entre o que pode sertomado como impasse e o que ainda pode ser poesia. Comodesconfiasse seriamente da poesia. O menos poético torna-se, mais uma vez na poesia de Claudia, e aí muito a meuver, por causa da desconfiança, o mais interessante entre os

CorolaClaudia Roquette-PintoAteliê Editorialtel. 21/4612-9666112 págs. – R$ 15,00

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março/2001 - Cult 33

UTRA PARTE DA FLOR OUTRA PARTE DA FLOR O

materiais com os quais ela trabalha; e, se não me engano,esse material se engendra nesta relação que disse antes eaparece em versos como “o ar arrebente o dique/ do queinsiste em ser/ oco, ainda um pouco/ mais” ou “Para quetijolos, toda esta geometria,/ que faz da paisagem um desertode cintilações espontâneas?”. Uma relação que acontece numlance de jogar-se no espaço, do lugar onde se vive, como seuma espécie de cidade que é muito mais, subjetivamente, olugar do outro e não mais o lugar do eu. Apenas, agora, umlugar de onde se parte da coisa para a coisa, circulando,como uma idéia de tempo circular, real, para dentro. A poesiade Claudia faz frente a e, muito mais que isso, dialoga, comconvicção e firmeza, justeza até, com uma afirmação queestá, por exemplo, em Francis Ponge, sobre a palavra e ossentidos dela, o de que “tendo empreendido escrever umadescrição da pedra, ele se empedrou”, mas acrescentada dedesconfiança e delicadeza; e aqui, creio, está, por exemplo,alguma idéia sobre o caráter de reinvenção da poesia que elapratica.Muito por causa disso penso que Régis Bonvicino foiextremamente feliz ao escrever na orelha de Corola umaexpressão de Charles Bernstein para falar do trabalho deClaudia: “a consciência de que a poesia é respiração artifi-cial, sabendo-se que antes artificial do que nenhuma”. Oque Carlito Azevedo já havia chamado antes, Régis tambémlembra esta citação, de “transformações invulgares”. No queela mesmo afirma em um dos poemas de Corola: “Até ondea respiração me leve.” O que pode ser visto como umaretomada de sentidos para novamente desejar o mundo, ouainda como dar expressão e sentido de poesia a um impasse

Manoel Ricardo de Limaprofessor de literatura brasileira na UFC, um dos coordenadoresdo núcleo de literatura do ALPENDRE – Casa de Arte, Pesquisa eProdução (Fortaleza, Ceará) e autor de Embrulho (7 Letras) eFalas inacabadas, com a artista plástica Elida Tessler (TomoEditorial)

poético: dar novamente necessidade à palavra. Em tudo isso,penso, está a poesia de Claudia. Assim, acredito que Corolaé um livro que nos parece trazer registro de algum respiromais fecundo, e profundo, para a poesia brasileira. E ClaudiaRoquette-Pinto afirma-se cada vez mais como uma poetaextremamente importante e significativa para o que aindase pode apontar para frente.

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34 Cult - março/200134

UENTE) ACAJU (A GÊNESE DO FERRO QUENTE) ACMARCELO MIRISOLASEGUNDA PARTE

N o v e l a C U L T

A falência dos meus rins. Da bexiga, da uretra, da minhaconsciência, do meu ser social. O chão, porra!

Sentia a falta de Ana g. E entregava os pontos somentepelo prazer que eu cultivava em ser disparatado (troquei oblues e as privadas vomitadas, as maldições todas e a babaquiceredentora beat pelo “Show do Milhão”). Enfim, eu acrediteino gênio de Silvio Santos e dei por encerrado o tempo daspunhetas. As orquídeas definitivamente no lugar das azaléias.

Faltava apenas dar forma à explosão. De modo que meera agradável passar régua na idéia do assassinato, tal afacilidade – eu até me envergonho – em que se consumara a“circunstância da coisa”, digamos. Do projeto de confi-namento às cutiladas bem-humoradas, que eu, apro-priadamente, chamei de “gênese do ferro quente”.

– gênese do ferro quente, benhê.Uma identidade constrangedora de assassino. Eu me

apegava na doutrina espírita: “a gente renasce em vida...”– agora é a sua vez, baby – e, de certo modo, me

envergonhava dos meus “renascimentos”. Usava o métodoGasparetto de viadagem.*

Tava ficando maluco. Repetia defronte o espelho: “agoraé a sua vez, baby”. Não havia punheta que me segurasse.Meu último suspiro – incandescente, maldito – haveria deser o nome de Ana Gavrílovna, meu amorzinho-baby. Oh,Deus!

Uma mulher que eu não sabia quem era. Naquela noitedeixei de ser um simples punheteiro para me transformarnum assassino eloqüente e melancólico. Hoje sou umapaixonado. Às vezes mais melancólico do que um assassino.

Uma confissão. Eu comprava e recomendava os livros deZibia G., mãe dos bizorros Gasparetto.

– apesar de tudo, baby.

Leia a seguir o último capítulo da novelainédita Acaju (A gênese do ferro quente),de Marcelo Mirisola, que o “Radar CULT”publica desde a edição de outubro de 2000[CULT 39]. Um dos mais talentosos evirulentos escritores da nova literaturabrasileira, Mirisola é autor de Fátima fezos pés para mostrar na choperia (editoraEstação Liberdade) e do recém-lançado Oherói devolvido (Editora 34).

* Quero deixar registrado em cartório: “Está, desde já e para toda aeternidade, expressamente invalidada qualquer tentativa de psicografarminha suposta contrição depois de morto, registre-se”.Eu é que não vou trair a carne e o suor dos meus colhões em benefíciode um bostinha ou da mãe de um bostinha metidos a receber espíritos.

�A GÊNESE DO FERRO QUENTE

Um sol nublado. Quase que dando pra esquentar.Setembro, 1999. Um chão de azaléias... e a Santiago deCaio Fernando Abreu.

Vontade mesmo de alçar vôo. E as azaléias láembaixo. Alguém feliz neste instante, aquecido pelo Sol(pensando na era dos descobrimentos) – fímbrias, desvãos.Ou Ana g., hippie até o sovaco. Um travesseiro de marcelas.Um corpo de mulher jogado lá de cima e felicidade – de si,o corpo jogado –

para si mesmo. O Sol. asazaléias.

�As coisas estavam apodrecidas. Eu andava preocupado

com as úlceras debaixo da língua.– as úlceras.Gin e Miojo sabor “galinha caipira”. Um dia percebi que

meu gato era uma gata, contratei um advogado. Eu não mereconhecia no cheiro de minha própria merda. Tinha oproblema da urina. As prestações do armário de pia “Eliane”.

por causa das azaléiaspor causa das azaléias

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março/2001 - Cult 35

Aí estabelecemos um jogo.Eu não sabia o que fazer com as flores trazidas da rua

(misturava as coisas mesmo). Ela, durante o dia, trabalhavanum hotel especializado em velhinhas argentinas e cães depequeno porte. À noite bebia sangue.

Ana g. sabia como chupar uma pica. Eu “somatizava”,de modo que, em primeiro lugar, o que mais me doía eraminha solidão defronte o espelho: “baby, agora é sua vez”.Um cigarro que apaguei no clitóris dela.

– me chama de mouro, baby.As malditas flores trazidas da rua. A gente se arretava

feito dois chimpanzés. Tive os primeiros ímpetos deefetivamente assassiná-la. Vale que sempre fui travado. Ummelancólico.

Ouve isso:– o derramamento em si.Jamais alguém foi tão convincente?...O expurgo pelo mal. Eu acreditava nisso, fui educado

pela televisão.Ana g., clitóris incendiado, recuou diante dos ornamentos

das minhas taras. Em primeiro lugar, eu disse pra ela esqueceras flores; depois, expliquei que “ornamento das minhas taras”significava minha vontade de virá-la do avesso, umchamamento.

– meu destino é um jardim – eu idealizava cemitériosmarinhos.

Queria ver Ana g. botando um Ovo. Fui categórico.– demente – foi do que ela me acusou.Ana g. havia deixado crescer os pêlos do sovaco. O

problema é que ela, diferente de sua mãe e das outras vítimas,recusava-se a engolir meu esperma. A infeliz fazia mençãode espalhar minhas assombrações e inconfidências, tive dematá-la.

– lá do meu jeito. – ouvia “Champanha”, do Peppino diCapri.

Onde é que ela escondeu meus pocket-games? Umafelicidade idiota feita pros outros...

Sempre fui um apaixonado. Uma pena que ela não mequis. Ouvi-la? Agora, não. Eu sei que Ana g. está morta.Sofri demais, queria ficar longe disso. Às vezes cometo errosgrosseiros. Outras vezes faço de sacanagem mesmo.

Quando Ana g., assoprando a neblina na concha dasmãos, inventava uma brincadeira nova ou falava algumamerda em inglês-yazige: “my heart, little pangaré”.

Eu não gostava dos seus elogios de botequim. Ela meacusava de não levá-la a sério e simulava pequenos chiliquespor causa de quimeras, tocos microscópicos de fumo,mosaicos e gnomos de puta que pariu. Um fusca à clef. Ouum nome diferente para “orgasmo”.

– Que tal ranho? Ou cuspe?Eu mandava ela enfiar a buceta no cu. Ela ia embora e

depois voltava com a buceta e uma autoridade mequetrefedevidamente enfiadas no rabo, os peitinhos, no entanto,vindos de Ribeirão Preto ou de São Tomé das Letras,agüentavam firmes e sempre estavam por lá, alcoviteiros etrêmulos, ajambrando mais uma reconciliação. Eu viviafeliz.

Ou a sobreposição das palavras “contrato” e “contragosto”.Ela, antes de virar meu cadaverzinho-baby, foi minhadiarista. Eu exigia pêlos no sovaco e refogados feitos commeu esperma e espinafre, suflês de bosta e seus lábiosrachados, principalmente. Sei lá, ela conseguia – distraída,é claro – dar uma quebrada fabulosa no conjunto (meioheroína e meio débil mental pelo mesmo motivo).

Eu pelado na cama. Sua predileção por flores do campo.O queixinho duplo (que injetava gasolina...) estranhamentecompatível com a obliqüidade daquele treco que fedia e que

AJU (A GÊNESE DO FERRO QUENTE) ACAJU (A GÊ

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36 Cult - março/200136

ela chamava de “alma, eu tenho uma alma, sabia?”. Oque mais?

Eu também exigia a eliminação dos ícones bregas, viradoe couve-menina, a ocupação da casa sem ruídos, muitodiferente – é bom que se diga – do que aconteceu na partemais afastada que dava de frente para a calle Rodriguez Peña:

– sua morte, baby.Ou, “baby, agora é sua vez”. Talvez nosso casamento não

tenha sido irreparavelmente um prejuízo, bem como a mortede Ana g. não o foi... (me antecipo às condenações, todavia),assim era nossa rotina. Bizarrias, pipocas no microondas.Sexo. A gente ia jantar no bingo.

– lembra de fulana?, foi assassinada.(“the transport of fierce and monstrous gladness”,

Shelley). Isto é, eu armava “caveiradas” pra ela, disso é queeu me valia. Ser um amaldiçoado, enfim, era também crerna essência do sangue e descrer em si mesmo, ou melhor,descrer nos anjos (se é que um dia eles existiram!) em virtudeda tentação incondicional da felicidade – da mordida – oumais: tê-los mortos (os anjos?, seriam os anjos?) como eutive a mim mesmo como um assassino.

– agora é sua vez, baby.... me bastaria falar da nossa felicidade.Tudo isso, creio, tão sofrido para ela e tão perto dos meus

sonhos de homicida encantado e desentendido de si mesmo.Entretanto, os fatos e as provas materiais “juntados” ao longoda nossa convivência – as flores dela, minhas orquídeas –vieram, se não condenar, pelo menos cobrar os jurosreferentes ao grande e fatal engano a que nos submetemos,um assassino do outro.

Uma combinação infeliz. Que eu chamo de “O ÓleoCombustível e as Demais Providências”. Ou quase isso. Eusubmetia Ana g. à minha conjugação particular –imprudente, ampla e irresponsável – daí o erro de nosfodermos e de ela ter depositado grande parte de suasesperanças em mim!

– Tá prenha, é?

Ana g., emprenhada. À época eu – acaju, e com razãoaliás – só me permitia pensar no máximo benefício quetiraria da gravidez dela. Ana g, sempre acreditou naquiloque nunca existiu. A desgraçada, somente porque esperavaum filho meu, achou que poderia contar comigo (emverdade, nunca fiz nada pela criança, nem por mim, nempor ninguém), ela tinha a obrigação de saber quem eu era.Se fudeu, bem feito. E, não bastassem as orquídeas e asbarganhas todas, as pregas da alma e minha doçura-demência, ainda consegui corrompê-la; ou mais, pelocompromisso que havíamos assumido, eu teria de ir muitoalém da simples corrupção, em última análise, eu me viana imposição de frustrá-la e fazê-la descrente de suasambições maternas (ela se entregou antes, muito antes doque eu havia planejado), em suma, os efeitos destrutivosdeste “compromisso” somados à culpa inerente e tesudade praxe foram os responsáveis pelo aparecimento dasorquídeas, à guisa de maldição.

– eu devia esperar por isso?Eu prefiro chamar de “ocorrência das orquídeas”. Todavia,

os desdobramentos desta meleca não eram – digamos –previsíveis quando a tesão estava a meu lado e pediu osacrifício de Ana Gavrílovna: vale dizer, foi muito fácil acabarcom tudo e assassiná-la. Talvez, para ela, apesar dos vexamesque passou por minha causa, tenha sido ainda mais fácilacabar com tudo, e, em tese – pobre desembuchada – querer“tentar outra vez”.

Eu não fui, nem fudendo. Ana g., como boa e desatentavítima, não se deu conta de que ambos havíamos morrido,eu e ela. É importante, não obstante, ressaltar a doçura deAna g. em seu derradeiro fracasso, pelo qual ela – é bomrepetir – foi a única responsável.

– um prejuízo, baby – e as orquídeas, malditas orquídeas.A verdade é que eu estava mais perto de Ana g.. Não era

como o desejo, tudo bem. Ninguém me viu reclamando.Qual era meu lugar?

UENTE) ACAJU (A GÊNESE DO FERRO QUENTE) ACA

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março/2001 - Cult 37

Aí procurei um urologista. Depois, um psiquiatra. Quedia foi? Ana g. lançou-me três dardos flamejantes. Oprimeiro, eu tenho certeza, não pegou, o segundo, quandoabaixei, atravessou o muro e foi parar lá na casa do caralho.O terceiro fiz questão de contabilizar. Era o último dia deAna Gavrílovna.

O louco? Ou o noivo. O enforcado? Ou o mago. A torre?Ou o diabo. A sacerdotiza? Ou o mundo.

A morte. A noiva. Sobretudo quando eu dizia pra mimmesmo: “agora é sua vez, baby”. Tudo o que eu queria navida era uma boa desculpa e a morte de Ana g. O meuplano era o seguinte. Em primeiro lugar, o urologista:

– O problema é na glande, doutor. Sei lá, acho que é porcausa dessas manchas escuras... O que o senhor acha?

Aí eu iria ao psiquiatra e perguntaria a mesma coisa.Um pouco da ruína. Um pouco da invenção de Ana g.

Um Chinelão Rider Que Me Condenava. O assassinatoestava acertado para o último minuto do ano. Aí começou achover. A chover mais forte.

Ela me chamava de doutor sabugo. Falei que tinha umasurpresa.

– tenho uma surpresa, baby.... e para evitar calvários esdrúxulos (turistas argentinos

acima do peso e meu pobre e mal ajambrado inconsciente...)fiz meu desjejum, vesti um suéter – uma vez que o ventosoprava do norte – e fui para o “terrasse”. Um pouco parecidocom Fitzgerald, sem os chifres.

Bem, ela ficou desfigurada. Aí decidi dar um tempo nonegócio de ouvir Beethoven às seis horas da manhã. O ventoque soprava do norte se desfez em nuvens traiçoeiras, logoem seguida, vi uma mulher pelada se transformar numcogumelo atômico. Uma semana antes eu havia desejadovaginas, seios e cloacas pra comprar no supermercado. Umaseção de laticínios. Outra de restos humanos.

Mas faltava alguma coisa. Uma rede?– Não, uma rede não.

A rede, baby, é o “foda-se” sem ressentimento.O problema era outro. Então, acendi um cigarro e fiquei

esperando a porra do cogumelo trazer a radioatividade. Masainda faltava alguma coisa. O que faltava?

– a morte, sua morte.O choro não chorado, por alguns segundos, que ela

esboçou quando a estrangulei – isso foi antes de retalhá-lacom meu jogo de facas alemãs – aquele mesmo choro antesda chupeta e depois de eu ter elogiado os mamilos peludosdela, talvez tenha sido (nem uma porra de uma lágrima) “aquiloque faltou”, ou, talvez, o que eu efetivamente não conseguientender nessa história de amor, azaléias, maldição, orquídeas,bromélias e assassinato. Qual o cronograma das avencas dojardim gay de Caio F.? Também não sei, nunca entendi.

Outra coisa. Sempre ofereci o sexo que ela me pediu. Eume lembro de lhe ter assegurado – ao estrangulá-la, nomomento exato – que, dependendo do caso, chorar era maisuma questão voluptuosa do que sentimental. Que para fingir– no entanto – bastaria conciliar uns poucos segundos demau-caratismo com uma boa dose de sensualidade (um trecoque visivelmente – quer dizer, depois de retalhada – “faltava”nela). Aí viria o derramamento.

– na hora do derramamento, compreende?Eu ouvia “Champagne” e usava óculos Ray-Ban na

ocasião.O que me consola, no entretanto, é o fato de que sempre

– é bom enfatizar – fui um bunda-mole profundo, aplicadoe sentimental. Ana Gavrílovna jamais desconfiara datransigente porém insustentável culpa que eu tive (e tenho,porra!) em relação à criança que não nasceu. Ah, que tesão.

– a culpa que carrego junto com as malditas flores.Eu também nunca pedi um beijo pra ela. De modo que

hoje – deliberadamente, mas a contragosto –, eu corro atrásdo meu inferno particular (eu sem ninguém...) sem ter comogritá-lo. Às vezes sonho com orquídeas. Ou não tenho sonhonenhum, nada.

– Ou não tenho sonho nenhum, nada.

AJU (A GÊNESE DO FERRO QUENTE) ACAJU (A GÊ

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38 Cult - março/200138C r i a ç ã o Conto

SCOMBROS ENTRE ESCOMBROS ENTRE ESCOMBROS ENJAIR ALVES CORGOZINHO FILHO

A MÃE DIZIA: “NÃO VAI!” — A MENINA NÃO IA.— “Aqui é a ordem, o sistema é esse, não vamos nos desen-tender.”A menina não ia. Tímida, medrosa, não falava que sofria.Naquela casa era a ordem, a mesma baboseira clérica desempre. O pai cristão morreu. A mãe cristã vivia e tornavainsuportável a vida da menina. Mas, a menina toleravacom o mesmo silêncio de quem lambe os olhos de umcão, do pescador que é pobre, de quem cheira o manto deuma santa ou de uma bailarina, do vadio que se masturbana grama do parque. Tolerava em silêncio, apenas.Tanto dentro como fora naquela casa o que havia era a ordem,o desejo e o horário de uma só, que se julgava feliz e, portanto,a todos, felizes. Felicidade, arrumada e empacotada, que afinalnão servia para nada a não ser afastá-la dos homens e torná-lasolitária e a verdade é que ela e ninguém deseja deixar o convíviodos homens. Sua ordem pairava acima das realidades e dentrode sua casa o vento não soprava, estava sempre salva aarrumação dos móveis. Lá fora, depois das paredes e da porta,ainda havia o perigo, mas ela, que era a mãe, viva e feliz, e quetinha a ordem, já mandara construir o muro, com portão deferro e cerca eletrificada.Mas, dragões são pássaros que calculam. Enquanto esperavae calculava, a menina desenhava.Desenhou o pai morto. No papel branco a chuva molha oinvisível. Membros toscos e dedos cabeçudos. A cabeçaobedece a um registro policial, três figuras: uma de perfil,

outra de frente, e a terceira com o perfil do outro lado dorosto. As narinas dilatadas pelo exagero da morte nãosentem mais o odor da fé, que agora é só poeira, desenhode cheiro de poeira. As mãos, entre aspas, deitadas sobre opeito esticado. Nos lábios se projetam brilho e cor e amesma incompreensão: “eu não vou intervir”.Desenhou a mãe viva. No papel bolorento o sol iluminauma mente estreita. Um grande depósito, uma construção,com colunas e entablamento dispostos em partes salientes,formando coordenadas retilíneas. Uma cama muito bem-feita dentro de um quarto fechado. Uma televisão ligadaaté tarde e uma série fechada de objetos: dois pares desapatos, dois travesseiros, dois crucifixos, dois pares desapatos, dois travesseiros, dois crucifixos, dois pares desapatos, dois travesseiros, dois crucifixos. O corpo emposição de parto, uma cirurgia, uma cesariana. Os cabelospenteados, os olhos fixos contrapostos a um fundo bemsóbrio, enquanto a boca, muito bem cuidada, feita comum vermelho vaidoso, grita: “Aqui é a ordem! Você não vaimenina!”Desenhou o irmão nu. No papel vergê a escuridão tateia apele delgada de uma perna. Revelou primeiro as nádegas,e para frente, com traços rápidos, retorcendo-se o peito e oabdômen, revelou o arqueiro, obscenamente exposto. Aglande é um mundo em carne viva, dura e irritada, bela esolitária, carne, pau e ferro. O corpo de um macho empausa, repousando em cores enrubescidas, tamanho é o

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março/2001 - Cult 39

NTRE ESCOMBROS ENTRE ESCOMBROS ENTRE ESCOMBR

desejo que exprimem por um membro crescido. Não fez aboca, que ainda era virgem, mas fez os olhos, que apesarde tantos problemas, tantos medos, eram leves e negros,como insetos, insetos negros e leves.Desenhou a si mesma com cinco, com dez, com doze,com dezoito anos. Fez bricolagem. Não passou no vesti-bular. Não comemorou o Natal. Não bebeu refrigerante,não tomou cerveja. Não sofreu a morte do pai. Não ficougorda. Não disse não. Uma imagem pastel, diáfana,sombreava o papel-arroz que o frio umedecia. Com novepernas, quatro de ambivalências, quatro de dúvidas e umaque era ela mesma, uma aranha era o seu abrigo: “Aquimamãe não entra”. “Eu queria ser a filha do meio”. “Euquero uma oportunidade para crescer”. O seu desenho ébrutalmente cortado, não há organicidade e a temperaturaé fria, as inervações sugerem abandono e uma digestãocega, como um poema, uma gula. A aranha caminha, opapel fica para trás.Até que veio o inevitável. Ele veio e trouxe o câncer.Foi em um dia quente, o trânsito fluía mal, o vendedor deágua pipocava entre os carros, um cheira-cola dormia numacama miserável improvisada na calçada, forçando o desviode bons cristãos. Pode ser que tenha sido ali, ou não, nãoimporta, ali ou por ali, mas a imagem, a coisa aconteceu,suave e inquietante coisa, à deriva de Deus. Era a realidadefuncionando. Naquele minuto ela se apaixonou. Começoua caminhar entre escombros.

Naquela casa era ele, dentro e fora era ele. Derrubem omuro. Era ele quem tomava a ordem. Era ele a sua ordem,sua embocadura, sua histeria. Via-lhe a imagem atravésdas paredes, através do latido dos cães, de suas própriaslágrimas, através de caixas, de postes, e através de suamatéria abandonada. Ela passou a dormir no chão, nua esem cuidados. Sobre o seu corpo começou a surgir umacrosta que atraía moscas, porém não fedia, pois banhava-se muito e chorava, acostumava-se às moscas. A longapaciência das moscas é que evitava a sua morte. Comiam-lhe deliberadamente a crosta, que mesmo renovando-se,tornava-se sem crueldade. A pele, algumas vezes ferida,ficava mais clara, perdia o bolor, permitia ver as veias, osossos. E ele, que era só um homem belo e necessário, nãoviu nada daquilo, senão compreenderia.Com a passagem dos dias foi tendo idéias e dores, o problemadas moscas simplificava-se. Ia sofrendo, perdia peso, seu corponão apaziguava olhares, sua geometria havia sido ignorada.Ela era só a ausência do homem que desejava, e que desejavasexualmente. Não tê-lo era obrigar-se à fome, a si mesma.Lambia-se.A menina, esquecida, ficou livre.

Jair Corgozinho

professor de literatura e mestrando em literatura brasileira pelaFaculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG); foi secretário e presidente do conselho editorial darevista Orobó

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40 Cult - março/200140GavetadeGuardados

isão Precisa incisãoMARCELLO ROLLEMBERG

I

Estendo as mãos, gesto instável que procura captar o astroque se desloca em atividade. Como um cometa, passas emcurvatura, tangenciando meu corpo, brilhando edesaparecendo, deixando atrás de ti a poeira que guardocomo etéreo troféu. A janela, porém, se mantém aberta, àespera de uma nova revolução dos céus que te traga devolta e junte pó e alma em um mesmo ser.

II

As pernas prolongam-se em direção ao oceano, elementosgêmeos que viajam paralelos e que se fundem nomomento final. Abrem-se ângulos, redesenham-se catetos,torturam arestas. Na pele que se enruga esperando aságuas, há o eterno gesto de se doar e de receber o que oplaneta te oferece, vastos mundos em mutação.

III

As linhas traçadas não levam a nenhuma parte e a todas.Em teu labirinto, confundes e afagas aqueles que ousamcruzar teu umbral. Anjo tatuado, deixas de lado as asas ecrias escamas, subjetivo ser aquático, que se movimentaem espasmos rumo ao abissal esconderijo onde preservastua própria imagem.

IV

Alongada, a serpente distende suas vértebras em direção àmargem, esguia entidade que a tudo domina. Ser ances-tral, inspirador de pecados, não tem mais o Paraíso comomorada, nem as patas para a ação. Possui apenas asensualidade dos movimentos rasteiros e a eternidade parase fazer perdoar.

V

O pássaro abre suas asas na areia, ser (re)desenhado notraço sutil. Diagrama, criatura rupestre, linhasentorpecidas pelo calor. A criação está pronta, ser alado,mas se recusa a voar. Planar para quê? O céu não édistância intangível, e sim inspiração. Com os olhosprontos, criamos nosso próprio céu. Voar, então, é apenasdetalhe.

VI (São Tomé das Letras)

Tua cidade erguida em pedra guarda segredos que não sãoapenas teus. Duvidas de quê? Tens a totalidade do tempo,a rocha fria escalavrando caminhos, paisagens outras quete levam adiante. Duvidas de quê? Tuas palavras escritasem signos, mensagem eternamente encravada nasmontanhas do teu olhar.

VII

Parte de ti é memória. Outra, indecisão. Enquantoinsinuas tua revelação, contando a poucos tua história,guardas no olhar fragmentos de tudo o que presenciaste.Envelhecemos e aprendemos na lembrançacompartilhada, o medo inoculando pesadelos. O passadofustiga, lâmina a escorregar na pele. Precisa incisão.

Marcello Rollemberg

jornalista, crítico literário, tradutor e poeta, autor de Ao pé doouvido (edição independente), Coração guerrilheiro (Scortecci &Hayashi Editores) e Encontros necessários (Ateliê Editorial),atualmente é diretor de redação do Jornal da USP. Os poemasinéditos publicados nesta seção integrarão a antologia 36 Poetasbrasileiros, organizada por Álvaro Alves de Faria, que será lançadano final deste ano em Portugal.

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42 Cult - março/200142

S e m a n a d a F r a n c o f o n i A

VozeS

Continrancofonia, lusofonia,

multifonia.Este é o tema da próxima

Semana da Francofonia �encontro que acontece simultaneamenteem vários países do mundo para discutir acultura expressa na língua de Montaignee Rousseau. Promovido em São Paulopelos consulados de Bélgica, Canadá,França e Suíça, o evento pretende fugir àdefesa pura e simples das tradiçõesnacionais desses países, procurando fazerdo diálogo entre francófonos e brasileirosum emblema da diversidade num mundoglobalizado, que tende à homogeneizaçãocultural e ao monolingüismo.Tanto é assim que a Semana da Franco-fonia, que acontece entre os dias 20 e 24de março, trará a São Paulo escritores depaíses como Angola, Senegal e Costa doMarfim � num movimento de inclusãode vozes africanas nesse diálogo entrefrancófonos e lusófonos de Europa eAmérica. Esse encontro se dará principal-

mente no dia 20, no debate O que é a linguapara um escritor?, reunindo o romancista esociólogo angolano Pepetela (autor deMayombe, Yaka e A geração da utopia), oescritor Ahmadou Kourouma, da Costa doMarfim (autor dos romances Allah n�est pasobligé e En attendant le vote des bêtes sauvages),e o romancista senegalês Abasse Ndione(autor de Ramata e La vie en spirale).Também participam do encontro doisbrasileiros: o poeta e tradutor NelsonAscher (O sonho da razão e Algo de sol) e oescritor Juliano Garcia Pessanha (Sabedoriado nunca e Ignorância do sempre).Dentro desse mesmo espírito, a revistaCULT participa da Semana da Francofoniaapresentando um texto inédito de AlbertCamus: a conferência que o autor de Oestrangeiro apresentou em Recife em 1949,com o título O escritor e nossa época. Desco-nhecido até hoje, esse texto, que trata dosengajamentos políticos de intelectuais eartistas (tema recorrente no pós-guerra),foi recuperado dos arquivos do Jornal do

Commercio pelo jornalista pernambucanoMário Hélio e será apresentado no âmbitoda palestra Albert Camus, escritor de trêscontinentes � na qual se discutirá a presençado Brasil em sua obra (naturalmentemarcada por outros dois continentes: aÁfrica de sua Argélia natal, e a Europa desua filiação intelectual francesa).Outro destaque da programação é o showem homenagem ao poeta e compositorBoris Vian (1920-1959) � um dos íconesda era existencialista, amante do jazz, autorde quatro romances e do livro de poemasJe voudrais pas crever (publicadopostumamente em 1962). O show BorisVian: Poemas e canções � no qual sãoapresentadas declamações de poemas emúsicas da antologia homônima recém-lançada pela Nankin Editorial � estará emcartaz a partir de 14 de março e oferecepreços promocionais, no dia 22, para opúblico da Semana da Francofonia.Veja na página ao lado o programacompleto do evento.

F

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março/2001 - Cult 43

Encontro entre culturasde línguas francesa eportuguesa traz a SãoPaulo escritores deAngola, Costa doMarfim e SenegalenteSp r o g r a m a ç ã o

23/03 � 6a feira

19h � ALIANÇA FRANCESA Jardim AméricaR. Bela Cintra, 1.737 - Tel. (11) 3062 9754Palestra: Albert Camus, escritor detrês continentes (com apresentaçãoda conferência inédita proferida porAlbert Camus em Recife, em 1949),por Manuel da Costa Pinto (revistaCULT).

24/03 � Sábado

10h � ALIANÇA FRANCESA CentroR. General Jardim, 182 - Tel. (11) 259 0229

Exposição de livros da Livraria Francesa;doação pelo Consulado Geral da Suíça delivros à Biblioteca da Aliança Francesa.

11h � MESA-REDONDA:A literatura contemporânea dos países de língua francesa,A literatura contemporânea dos países de línguaportuguesaParticipantes: Walter Moser (Universidade deMontréal), Pierre Guisan (UFRJ), Benjamin AbdalaJr. (USP).

21/03 � 4a - feira

19h30 � FNACR. Pedroso de Morais, 858 - Tel. (11) 3097-0022Mesa-redonda: Francofonia e lusofonia:Espaços lingüísticos de exceção? Participantes: Benjamin Abdala Jr. (USP), PierreGuisan (UFRJ), Manuel da Costa Pinto (revistaCULT), Jelssa Avolio (PUC-SP), Roger Sidokpohou.Moderação de Serge Borg (Aliança Francesa).

22h � BAR DIRECTOR�S GOURMETAl. Franca, 1.552 - Tel. (11) 3064-7958Noite tecno com a DJ Suzy Seven.

22/03 � 5a feira

21h � CAFÉ TEATRO DOS SATYROSPraça Roosevelt, 214 - Tel. (11) 258-6345 - V. BuarqueEntrada: R$ 10,00 e R$ 5,00 (com o convite-programa)

Show a partir do livro BorisVian: Poemas e canções(Nankin Editorial), comLetícia Coura (canto), BebaZanettini (piano), Ivan Cabral(declamação) e Vítor da Trindade (percussão).

20/03 � 3a - feira

11h � LYCEÉ PASTEURR. Vergueiro, 3.799 - Tel. (11) 5574 7822Mesa-redonda: O que é a francofonia? Seráque existe uma lusofonia?

Participantes: Lothar Versyck (Cônsul Geral daBélgica), Aguinaldo Rocha (Cônsul Geral Honoráriode Cabo Verde), Jean-Michel Roy (Cônsul Geral doCanadá), David Paurd (Cônsul Geral da França),Hermann Buff (Cônsul Geral da Suíça), Pedro Kassab(Diretor Geral da Fundação Liceu Pasteur) e outrosconvidados.

19h � LIVRARIA CULTURAAv. Paulista, 2.073 - Tel. (11) 285 4033Café filosófico com apoio da Folha de S. Paulo.Mesa-redonda: O que é a lingua para um escritor?

Participantes: Ahmadou Kourouma (Costa doMarfim), Pepetela (Angola), Abasse Ndione (Senegal),Nelson Ascher e Juliano Garcia Pessanha(Brasil). Moderação de SoniaGoldfeder.

Apresentação da coleçãoLatitude de ficção contemporâneados países e das regiões de língua francesa por AngelBojadsen, editor da Estação Liberdade.

Da esquerda paraa direita, imagensde Argel, Recifee Paris

três

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44 Cult - março/200144

N a p o n t a d a l í n g u A

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Pasquale Cipro NetoPasquale Cipro NetoPasquale Cipro NetoPasquale Cipro NetoPasquale Cipro Netoprofessor do Sistema Anglo de Ensino, idealizador e

apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TVCultura, autor da coluna Ao Pé da Letra, do Diário do Grande

ABC e de O Globo, consultor e colunista da Folha de S. Paulo

O �SE�, VELHO DE GUERRA (2)Na CULT 43, tratamos de um dos

tantos pontos delicados do ensino e doestudo do português padrão: a flexão doverbo nos casos em que a ele vem associadaa palavra �se�. Vimos que nos vestibularesde instituições importantes (Unicamp eUSP, entre outras), de cuja elaboração ima-gina-se participem os departamentos deletras das próprias universidades, não faltamdemonstrações de acato ao que estabelece agramática normativa a partir de inúmerasocorrências na língua culta.

Direta ou indiretamente, essas institui-ções adotam como padrão a obrigatoriedadeda flexão do verbo em construções como�Ao se discutirem as idéias expostas�, ou�...no qual se lêem, entre outras, as infor-mações...�, tidas como passivas sintéticaspela gramática normativa.

Bem, este texto tem o número 2, por-tanto está na hora de continuar o anterior.Vamos lá. A certa altura do último artigo,fiz uma ressalva importante: �...a indeter-minação do agente (do agente, não do su-jeito)...�. Parece bom explicar o que é isso.Não há brasileiro que nunca tenha ouvidoesta definição: �Sujeito é aquele que praticaa ação�. A ser real, a tese estabeleceria quetodo verbo que tem sujeito expressa ação.Em �O filme é bom�, por exemplo, dir-se-ia que o filme (sujeito da oração) pratica aação de ser bom. Em �O menino apanhouda mãe�, o menino praticaria a bizarra açãode apanhar.

É óbvio que sujeito não é isso. A eti-mologia nos explica que sujeito vem do latim�subjectu� (�posto debaixo�, �base�). Osujeito é o assunto, ou seja, é o termo daoração a respeito do qual se enuncia algo.Em outras palavras, o sujeito é aquele ouaquilo a que se atribui a declaração contidano predicado. Se o predicado se refere aosujeito e o verbo faz parte do predicado, overbo se refere ao sujeito, o que permitesimplificar a definição: sujeito é simples-mente o termo com o qual o verbo concorda,

como gosta de dizer mestre Francisco Achcar.O que se afirma erroneamente a respeito

do sujeito é pertinente em relação ao agente.É ele o tal do praticante da ação. Na vozativa, o sujeito é x, e o agente também é x. Navoz passiva, o sujeito é x, mas o agente é y.Em �A poesia deste momento inunda minhavida inteira�, por exemplo, �a poesia destemomento� é sujeito e é agente; em �Minhavida inteira é inundada pela poesia destemomento�, o sujeito é �minha vida inteira�,mas o agente é �a poesia deste momento�.

Como já vimos na edição anterior, agramática normativa considera passivasorações como �Aceitam-se encomendas� ou�Encomendas são aceitas�. O �se� da pri-meira oração é classificado como �partículaapassivadora�. O sujeito (passivo) dos doisexemplos é �encomendas�. O agente (repito:o agente!), ou seja, aquele que aceita, não éexplicitado, por isso é classificado comoindeterminado.

Já em �No Brasil, não se cuida dascrianças�, a voz é ativa. Com verbos queexigem preposição (�de�, nesse emprego de�cuidar�), não se pode fazer passiva emportuguês. O agente (aquele que executa oprocesso expresso pelo verbo �cuidar�) étão indeterminado quanto o de �Aceitam-seencomendas�, mas agora estamos na vozativa, em que (não custa repetir) o sujeito e oagente coincidem. É por isso que a gramáticanormativa considera indeterminado o sujeitodesse tipo de oração, e �índice de indetermi-nação do sujeito� o pronome �se�. O verbose mantém fixo na terceira pessoa do singular,já que não há sujeito determinado, o quetambém ocorre em �Trata-se de casosgraves� ou �Confia-se em teses absurdas�.

Como vimos, muitos dos que defendema obsolescência da obrigatoriedade deconcordância do verbo na chamada passivasintética usam como argumento a efetivaprática lingüística oral e cotidiana brasileira,em que são correntes construções como�Conserta-se relógios� ou �Aluga-se casas�.

Alguns chegam a ostentar como estan-darte dessa tese o antológico poema �Catarfeijão�, de João Cabral de Melo Neto. Emmuitas edições das obras do mestre pernam-bucano, lê-se isto: �Catar feijão se limita comescrever:/ joga-se os grãos na água do algui-dar/ e as palavras na da folha de papel...�.

Uma leitura mais atenta de outros poe-mas de Cabral (exigência mínima quando seadota metodologia científica séria), no entan-to, permite ver algo como �As avenidas docentro,/ onde se enterram os ricos...� (emMorte e Vida Severina) ou como �Então, é dapraça cheia/ que o canavial é a imagem:/vêem-se as mesmas correntes...� (em �Ovento no canavial�).

É no mínimo intrigante ver que o poeta,com seu conhecido rigor formal, agiudiferentemente em casos semelhantes. Porque respeitou a �norma� em �vêem-secorrentes� e em �onde se enterram os ricos�e não a teria respeitado em �joga-se osgrãos�? A resposta é do próprio Cabral e desua mulher, Marly de Oliveira. Em ObraCompleta, da Nova Aguilar (1995), lê-se�Jogam-se os grãos...�. Ah! Ia esquecendo.A publicação é organizada por Marly, comassistência do autor.

Para terminar, Drummond: �(...) A gra-videz elétrica/ já não traz delíquios./ Criançasalérgicas/ trocam-se; reformam-se. Há umaimplacável/ guerra às baratas./ Contam-se his-tórias/ por correspondência� (em �Nossotempo�). Drummond e Cabral, como se vêe sabe, são exemplos de sintaxe retrógrada,conservadora...

Posto isso, só me resta repetir o queafirmei na última edição e em outros textos:é preciso acabar com a esquizofrenia...Chega! É desnecessário repetir.

Até a próxima. Um forte abraço.

Pasquale Cipro Neto

Page 44: Cult 44, Heidegger, Mar de 2001

D o s s i ê C U L T

HeideggerO filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) no poço de sua cabana em Todtnauberg,

em imagem de reportagem fotográfica realizada em 1968 para uma entrevista históricaconcedida à revista Der Spiegel em 1966 e publicada uma semana após sua morte

Page 45: Cult 44, Heidegger, Mar de 2001

46 Cult - março/200146

H e i dEm um texto de 1969 no qual

homenageava os oitenta anos deMartin Heidegger, Hannah Arendt

escreveu que há pensadores que com seupróprio pensar contribuem decisiva-mente para a determinação da �fisiono-mia espiritual� de uma época. Ela tinhaem mente a rara possibilidade de que apura atividade de pensar pudesse abarcar,definir e mesmo transcender os contornosespirituais do momento histórico de ondeela emergiu. Pensadores como Hei-degger não apenas respondem a pro-blemas e tendências teóricos de sua época,mas, ao pensar o ainda impensado demaneira radical, em muito ultrapassamresultados e conclusões obtidos por seuscontemporâneos e predecessores. Hei-degger foi um dos maiores filósofos doséculo XX, o último a conferir à filosofiaum papel exclusivo na interpretaçãocrítica do presente e da própria históriaocidental, colocando-se assim na esteirade Hegel e Nietzsche. Entretanto, quempensa grande também se expõe ao riscode, eventualmente, errar na mesmaproporção, como aconteceu com opróprio Heidegger.

A história da vida de um pensadoreminente cuja trajetória viu-se marcada

momento, o livro de Rüdiger Safranski,Heidegger � Um mestre da Alemanha entreo bem e o mal, publicado agora pelaGeração Editorial, com direito a umbonito texto de apresentação de ErnildoStein.

No sóbrio título do original alemão,Ein Meister aus Deutschland: Heideggerund seine Zeit (�Um mestre da Alemanha:Heidegger e seu tempo�), Safranski jáexplicitava seus objetivos: tratava-se dedescartar o caráter polêmico ou mesmopanfletário dos estudos anteriores e deavaliar a obra e a vida de um mestre,referindo-as ao seu lugar de origem e aoseu próprio tempo. A tarefa a que ele sepropusera era difícil e cheia de riscos:como evitar que o comentário sintéticodas principais obras de Heidegger nãoenveredasse pelos caminhos tortuosos damera banalização simplificadora ou doesoterismo acadêmico, alternativas difí-ceis de se escapar em um livro dessanatureza? Em outras palavras: comotornar uma biografia filosófica inte-ressante tanto ao especialista em filosofiaquanto a um público mais amplo?

Safranski enfrentou o desafio comestilo e erudição e daí se originou um livrono qual se entrelaçam vida e obra, sem

pelo breve engajamento político nomovimento totalitário nacional-socialistaconstitui por si só uma fonte de grandeperplexidade e controvérsia: como com-preender a adesão de Heidegger aopartido de Hitler? Questão espinhosa queatravessou o século XX e que dificilmentedeixará de incomodar. Por certo, Hei-degger teria apreciado que dissessem deleapenas aquilo que ele mesmo dissera deAristóteles, isto é, que ele nascera, tra-balhara e morrera. Em seu caso particular,entretanto, isso não seria possível.

Foram apenas onze meses comoReitor da Universidade de Freiburg,entre maio de 1933 e abril de 1934, masesses foram meses que abalariam pro-fundamente o universo acadêmico, aponto de suscitar ainda hoje uma profusãode interpretações, críticas e apologias,sobretudo depois que Victor Faríaspublicou Heidegger e o nazismo, em 1987.No seu rastro vieram, entre outros, osestudos de Hugo Ott, Martin Heidegger:Unterwegs zu seiner Biographie, de 1988, ede François Fédier, Heidegger: Anatomiade um escândalo, do mesmo ano. Poucodepois, em 1994, surgiu na Alemanhaaquela que é possivelmente a melhorbiografia intelectual do filósofo até o

André Duarte

H e i ddHeidegger � Um mestre da

Alemanha entre o bem e o malRüdiger Safranski

Tradução de Lya LuftGeração Editorial

tel. 11/3872-0984520 págs. � R$ 45,00

Heideggerem seu tempo

Page 46: Cult 44, Heidegger, Mar de 2001

março/2001 - Cult 47

d e g gque jamais se pretenda explicar a obrapela vida ou apagar a vida e suascontradições em nome da pureza da obra.Sem apresentar nenhum fato novo sobrea vida de Heidegger e, principalmente,sobre seu envolvimento com o nazismo,a obra de Safranski tem o mérito deapresentar interpretações cuidadosas dafilosofia heideggeriana, além de umareconstrução competente das principaistendências espirituais em relação às quaiso filósofo se posicionou durante sua longavida. Por certo, os estudiosos da obra deHeidegger não encontrarão novidades aolongo das suas quinhentas páginas, muitoembora as formulações teoricamenteprecisas e elegantes de Safranskiofereçam contribuições sugestivas. Alémdisso, já as espirituosas correlaçõesestabelecidas ao longo do livro valem asua leitura, tais como a analogia entre afamosa disputa filosófica entre o rebeldeHeidegger e o liberal Cassirer, ocorridaem Davos no ano de 1929, e os debatesentre Nafta, o jesuíta antiiluminista, eSettembrini, o humanista esclarecido,personagens célebres da Montanhamágica, que Thomas Mann escreverahavia apenas cinco anos e ambientara nomesmo local.

O livro é especialmente recomen-dável a quem busca uma boa introduçãoaos problemas e conceitos com os quaisHeidegger trilhou seu longo caminhode pensamento. Caracterizando o estilodo pensar heideggeriano dos anos 20como uma �encenação dadaísta nafilosofia�, o autor ilustra os principaistemas e motivos em torno dos quais estese movia então: a crítica impiedosa àmera ilustração filosófica, sinônimo deuma cultura oca e de sublimidade apenasaparente, em nome de uma atitude teóricainovadora, capaz de conjugar a fria�conceitualidade abstrata� a uma forte�concretude emocional�, inspirandoinquietação em seus leitores e ouvintes;a exigência de que a filosofia proceda aoestranhamento do que é mais próximo ecomum, de modo a revelar a fragilidadeda rede de sentidos que estrutura a vidacotidiana; em suma, a compreensão dafilosofia como um exercício metódico de�inquietação intensificada�, a qual devepreparar o instante da ruptura docontinuum do tempo e a repetição de umaexperiência primordial. Safranskiobserva que, se nesta revolução dopensamento filosófico Heidegger nãoestá sozinho, ele também não se faz

acompanhar apenas pelos chamadosrevolucionários conservadores, comoJünger e Schmitt, mas também pelos deesquerda, como Ernst Bloch e WalterBenjamin.

Outro mérito do livro é o de que elepermite compreender a lenta maturação etransformação dos conceitos heideg-gerianos. Em seus capítulos iniciais,acompanhamos o desenvolvimento dareflexão de Heidegger e seu progressivoafastamento em relação à esfera deinfluência do pensamento católico, rumoa uma forma bastante peculiar de�filosofia da vida� à qual ele impôs osrigores da análise fenomenológica hus-serliana. Vemos então como o jovemassistente de Husserl começava a ensaiara sua futura rebelião, ao afirmar que �emnossa �vivência do mundo em torno(Umwelterleben)� só estamos teoricamenteorientados por exceção�. Empregando oconceito de �vivência primordial�,oriundo de Dilthey, Heidegger procuraráchamar a atenção para o modo como osentes nos são dados cotidianamente emum mundo circundante já sempre tramadode sentidos, antes mesmo deles se tornaremobjetos para uma consciência que os avaliateoricamente. Com essas reflexões,

dRe

prod

ução

d e g gEm Heidegger � Um mestre daAlemanha entre o bem e o mal,

Rüdiger Safranski traça amelhor biografia intelectual do

pensador alemão que resumiuos dilaceramentos do século XX

com sua exigência de que a filosofia seabra para a angústia que percorre o ser,

sua crítica à violência tecnológica damodernidade e o arroubo metafísico

de sua adesão ao nazismo

Page 47: Cult 44, Heidegger, Mar de 2001

H e i dHeidegger elabora o embrião daquiloque, posteriormente, o levará à distinçãoconceitual entre o ente à mão ou dispo-nível (zuhandenen) e o ente simplesmentepresente (vorhandenen), bem como à suaradicalização do conceito de intencio-nalidade, peças-chave na arquitetura deSer e Tempo.

Safranski analisa ainda os conceitosde �vida fática�, �preocupação� (Sorge) e�existência�, descobertas do curso sobreAristóteles datado do inverno de 1921/22, com as quais se prenuncia a futuradistinção entre a existência, pensadacomo modo de ser do ente que nós mes-mos somos, isto é, o ente que é �acessívelpara si mesmo� no horizonte temporalde suas preocupações mundanas, e osentes que estão simplesmente presentesno mundo. Do curso de 1923, intituladoOntologia � Hermenêutica da facticidade,vem a idéia de que a filosofia tem deespreitar a existência humana em sua�tendência para decair� de si mesma,�fugindo� não de um suposto euverdadeiro, mas da �inquietação�fundamental que habita o homem e daqual ele se desvia ao agarrar-se às más-caras talhadas pela �interpretação públi-ca� de si e de tudo o que é, noções que setornarão fundamentais na grande obraainda em gestação. Acrescente-se a tudo

isso a noção de �historicidade� fun-damental e estaremos às portas de Ser eTempo, sumariado no capítulo 9. Trata-sede um texto claro e bem estruturado, masque se vê prejudicado pelo fato de que atradução apaga a distinção fundamentalentre as �disposições� do medo (Furcht)e da angústia (Angst). Segundo Heidegger,enquanto o medo ainda apresenta umreferente externo mais ou menosidentificável, do qual se pode dizer que étemível � o medo é sempre transitivo �,na angústia esse referencial desaparecepor completo e ela se torna um afetointransitivo: ela se instaura e não se referea nada. Não se trata de uma distinçãoirrelevante, pois na conferência com aqual Heidegger assumiu definitivamentea cadeira de Husserl em Freiburg, O queé a Metafísica?, a angústia seriatematizada justamente como a disposiçãoque dá acesso ao nada, questão que muitoocuparia o filósofo daí por diante.

Também digno de menção é ocomentário a respeito da obsessãoheideggeriana pelo questionamento doser, que se estende por mais de cinqüentaanos de reflexão incessante e unifica opensamento de Ser e Tempo, de 1927, aodas obras que aparecem após a Carta sobreo Humanismo, de 1946. Para o chamado�primeiro� Heidegger, reavivar a questão

do ser implicava descongelar e perfuraros modos ritualizados e enrijecidos comos quais o homem se esquece de que ele éa sua possibilidade e não apenas mais umente real. Quanto ao chamado �segundo�Heidegger, para o qual o pensamento éagora �pensamento do ser�, no sentidode que é o próprio homem que se vêinterpelado e em correspondência com oser em sua ex-istência histórica, persistirno questionamento do ser significavareconhecer as determinações historiais do�atual jogo do mundo�. Isso tambémsignificava recobrar o sentido da pos-sibilidade de sua superação em um �novocomeço�, no �evento� de uma nova con-figuração das relações entre o homem etudo o que é, para além da violênciatecnicista do presente. Pode-se entãodizer que, para Heidegger, o problemado ser é sempre um �problema daliberdade�.

No entanto, como não poderia deixarde ser, o cerne do livro diz respeito àavaliação da relação entre Heidegger e onazismo. Safranski acompanha a lentaconfiguração das múltiplas circuns-tâncias que se cristalizarão no engaja-mento heideggeriano de 1933, tais comoo antimodernismo de influência católica,particularmente forte nos anos de suajuventude e de formação intelectual; a

Fotos/Divulgação

48 Cult - março/200148

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e g g ecrise política e econômica que assolaquase todo o período da República deWeimar e que é agravada a partir de 1929;o anti-semitismo declarado de sua espo-sa, além da expectativa por uma soluçãopolítica autoritária capaz de pôr termoao politeísmo dos valores conflitantesentre si.

Entretanto, essas são apenas circuns-tâncias já bem conhecidas e documen-tadas, e se Heidegger as compartilhavacom boa parte de seus concidadãos, ne-nhuma delas foi realmente determinanteem sua decisão. Aqui desponta o aspectofundamental e mais original das análisesde Safranski, que demonstram como taiscircunstâncias se ajustaram perfeitamenteàs exigências internas do pensamentoheideggeriano de meados dos anos 30,que exigia da filosofia que ela estivesse àaltura de agarrar e �dominar� o seupresente. Determinou-se assim o mauencontro que levou Heidegger, que entre1931/32 se ocupara de um semináriosobre a República de Platão, no qualanalisara detidamente o mito da caverna,a enxergar na revolução nacional-socialista o tão esperado momento delibertação das ilusões modernas doliberalismo e do comunismo.

Heidegger não aderiu ao nazismoporque tivesse se tornado anti-semita,

acusação que ele repele com veemênciaao responder a uma carta que Arendt lheescrevera em 1933, como se pode ler narecém-traduzida correspondência entreambos pela editora Relume-Dumará. Eletambém não se engajou porque fosse umoportunista político, ávido por iniciaruma poderosa carreira pública, muitoembora também não se sustente a tese queele próprio defenderá diante do comitêde desnazificação, em 1945, isto é, a deque aceitara participar do regime parapreservar a autonomia da Universidadee impedir que algum espírito medíocrese apossasse dela. Para Safranski, e nissoreside o aspecto dramático da questão,Heidegger politizou os conceitos de Sere Tempo porque o nacional-socialismo lheinspirou idéias filosóficas, as quais,entretanto, em nada correspondiam aonazismo realmente existente, ocasio-nando assim aquela estranha fusão deintenso arroubo metafísico à extremacegueira filosófica e política. Até meadosde 1936 ele ainda acreditou no potencialtransformador do regime de Hitler; noentanto, durante os seminários sobre afilosofia de Nietzsche, que entrementesfora tornado o filósofo oficial do TerceiroReich, Heidegger finalmente percebeuque o nazismo não era o antídoto, massim uma manifestação extrema dos mes-

mos males abjurados por ele entre russose americanos: violência tecnológica soba forma do planejamento calculado edisciplinado do todo dos entes. A partirdaí, seus cursos passam a ser vigiadospela Gestapo.

A despeito das várias declarações teó-ricas nas quais transparecem suas críticasao regime de Hitler, a ausência de umadeclaração pública de desculpas marcariaindelevelmente o modo como o filósofoseria tratado posteriormente. Com-preende-se que se tenha exigido dele umatal retratação; mas também não se podedeixar de compreender o seu silêncio:desculpar-se também significaria ter deassumir responsabilidade direta pelamorte de milhões de judeus, o que lheparecia impertinente e absurdo.

Para concluir, resta lamentar o imensodescuido com que este livro foi tratadopela editora, que parece ter julgadodesnecessário revisá-lo antes de entregá-lo ao público. De imediato, o melhor quese pode esperar é uma segunda ediçãorevisada, e mais atenção para com oprometido volume sobre Nietzsche,também de autoria de Safranski.

André DuarteAndré DuarteAndré DuarteAndré DuarteAndré Duarteprofessor do Departamento de Filosofia da Universidade

Federal do Paraná e autor do livro O pensamento à sombra daruptura: Política e filosofia em Hannah Arendt (Paz e Terra)

Da esquerda para a direita, Rüdiger Safranski,Ernst Bloch (1885-1977), Ernst Cassirer

(1874-1945) e Walter Benjamin (1892-1940)

março/2001 - Cult 49

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50 Cult - março/200150

H e i d1. A tese da aniquilação da coisa

o seu famoso ensaio �Das Ding�*,Heidegger atribui à ciênciamoderna a �aniquilação da coisa�.

Que significa isso? Não a explosão domundo, ocasionada, por exemplo, pelabomba atômica. Aniquilar a coisa não éo mesmo que destruir coisas singulares.De que se trata, então? Heidegger pre-para a compreensão da sua tese por meiode uma comparação. No cotidiano,presenciamos uma jarra como coisaquando a enchemos, e encher uma jarrasignifica deixar correr um derramamentona jarra vazia. O que faz a jarra ser umvasilhame não é a matéria sólida de queela é feita, mas o oposto desta, o vazio.Por outro lado, na visão da ciência, encheruma jarra é um assunto totalmentediferente: trata-se de trocar um enchi-mento (o ar) por um outro (um líquido),num recipiente de paredes impermeáveis.Aqui não há a jarra, o vasilhame. Na exatamedida em que não admite a coisa comopadrão do que há, �a ciência faz da coisa-jarra algo nulo�. O contencioso deHeidegger com a ciência não diz respeitoaos entes, mas ao sentido e à verdade doser dos entes como tais no seu todo. Adiferença que está em jogo é ontológica,não ôntica.

N

* O artigo �Das Ding� (�A coisa�) encontra-se publicado emVorträge und Aufsätze. Pfullingen, Neske, 1954, pp. 163-181.

Heidegger chama o sentido do serprivilegiado pela ciência de �armação�(Gestell), os entes armados de �constan-teações� (Bestand) e a ação de armar, omodo de desocultamento privilegiadopela modernidade, de �instalação perse-guidora� (nachstellendes Bestellen). A ciên-cia aniquila no sentido de deixar-serapenas por instalação, e de nenhuma outramaneira. Ela vê os entes como constan-teações e não como coisas. Não se afirmaque a ciência esteja cega. A ciência vê osentes, e muito bem, mas tão-somentecomo efeitos de causas, como pro-ce-dências (Her-stand) de um processo deefetivação, como objetos postos. A coisaenquanto coisa permanece oculta (ver-borgen). Não isso ou aquilo, mas a coisa-lidade (die Dingheit) mesma da coisa nãochega a se mostrar, nem a ser falada. Oser, a presença, a essenciação (die Wesung)da coisa enquanto tal é anulada.

Esse modo de lidar com a presençanão foi nem poderia ter sido elaboradopela ciência moderna ela mesma. É umaherança da metafísica grega. Mas ametafísica tampouco está em condiçõesde se perguntar pelo sentido e pelaverdade do ser dos entes como coisas, vistoque, desde a Antigüidade grega, ela foidesocultando o ente como algo meramen-te presente, como mera �presentidade�(das Vorhandene), e não como coisa. Nos

nossos dias, esse esquecimento metafísicochegou ao seu estágio terminal: a pre-sença dos entes passou a ser assuntoexclusivo da produção tecnológica noquadro das instituições de indústria ecomércio.

2. A coisa na quadrindadeHaveria como ultrapassar o deixar-

ser científico? Qual é o mundo em quepodem existir entes que não sejammeras instalações? Não surpreenderiaalguém pensar que a solução consisteem voltar ao mundo do mito e da poe-sia. A idéia seria que o modo de deixarser a priori que permite haver coisas,procurado por Heidegger, já existiu,num passado longínquo � um deixar serantigo, posteriormente rechaçado eesquecido. Nessa interpretação, Hei-degger não estaria fazendo mais do quelamentar o fato, já constatado por MaxWeber, de que a racionalidade modernavai progressivamente desenfeitiçandoo mundo.

Há, sem dúvida, um momento ar-queológico no modo de pensar de Hei-degger. Ele recorda que a palavra alemãantiga para a coisa, thing ou dinc, significareunião para fins de tratar de um casolitigioso. Heidegger lembra ainda que osentido originário da palavra latina res éaquilo de que se fala, de que se trata na

H e i dZeljko Loparic

Sobre a

da coisaaniquilação

Page 50: Cult 44, Heidegger, Mar de 2001

março/2001 - Cult 51

e g g evida pública. Uma outra palavra com omesmo significado é causa, que não sereferia inicialmente àquilo que produzefeitos, mas ao caso em pauta, ao que estáem disputa, num sentido aparentado aoque está preservado em português nasexpressões tais como �causa pública� ou�causa jurídica�. O termo thing presta-se, portanto, muito bem à tradução de rese de causa latinos.

Teríamos aqui, na etimologia daspalavras da linguagem comum, uma saídalibertadora do pensamento da ciênciamoderna sobre a coisa? A resposta é não.A pergunta heideggeriana pela coisa nãoé arqueológica. A sua jarra não é uma res.É verdade que o termo res nomeia aquiloque concerne o homem dessa ou daquelamaneira. A concernência (Angang) é arealidade da res. No entanto, os romanosjamais pensaram essa experiência derealidade como tal, tematizando o seumodo específico de se essenciar. Em vezdisso, escreve Heidegger, �a realitas dares foi representada, sob influência dafilosofia grega tardia, no sentido do óngrego; ón, em latim, ens, que significa oque é presente no sentido de pro-cedentedas causas. A res virou ens, o presente, nosentido de algo produzido e representado.A realitas própria da res tal como foiexperienciada originariamente à maneiraromana, a concernência, foi soterrada e

permaneceu impensada como essência dopresente� (p. 174).

O mesmo processo de ontologizaçãoaconteceu com a thing alemã na IdadeMédia. Em conseqüência, ficaramesquecidos os sentidos originários do serdos entes distintos de meras presen-tidades. Nem por isso é lícito dizer queesses sentidos esquecidos permitem pen-sar a presença da coisa heideggeriana.�Uma jarra�, escreve Heidegger, �não éuma coisa nem no sentido da res pensadaà maneira romana, nem no sentido do ensrepresentado à maneira medieval, emenos ainda no sentido do objeto repre-sentado modernamente� (p. 176, itálicosmeus). Esses conceitos não abrangem osentido do ser das coisas que Heideggertem em vista, já que �as coisas em geralnunca puderam manifestar-se ao pensa-mento como coisas� (p. 169). Nuncahouve, portanto, uma coisa tal como ajarra heideggeriana. Ela permaneceessencialmente inacessível a qualquerbusca do tipo arqueológico e não podeser escavada em lugar nenhum. Sendoassim, a filosofia inteira, antes deHeidegger, jamais tratou de coisas, masde presentidades. Para que, afinal, os entespossam manifestar-se como coisas, épreciso que aconteça uma outra verdadea priori possibilitadora, um outro mundo.Que verdade? Que mundo? Uma coisa

vem a ser, responde Heidegger, na roda-mundo (das Gering) onde brincam,espelhando-se uns nos outros, a terra e océu, os mortais e os divinos.

Como é que Heidegger chega a umaafirmação tal inesperada? Partindo daobservação, aludida anteriormente, deque só nos damos conta de uma jarracomo coisa quando a enchemos, e encheruma jarra é o mesmo que deixar umderramamento escorrer nela e ser rece-bido pelo seu vazio. Como o vazio dajarra recebe o que é derramado?, perguntaHeidegger. Ele o �acolhe� e o �contém�.O derramamento recebido pode, emseguida, ser vertido num oferecimento.É nesse momento que se manifesta aessência mesma desse vasilhame: o serjarra da jarra consiste na oferta do vertido.Pode ser uma bebida, pode ser água ouvinho. Na água ofertada, demora-se afonte. Na fonte, demora-se a rocha e,nesta, o sonho escuro da terra que recebedo céu a chuva e o orvalho. �Na água dafonte perduram as núpcias do céu e daterra.� Não só na água. Elas duramtambém �no vinho que o fruto da vinhadá, no qual o nutriente da terra e o sol docéu, um ao outro estão confiados�. Umdesdobramento análogo mostra que, naoferta da jarra, perduram à sua maneira,os mortais. A oferta do vertido é a bebidapara estes. A jarra mitiga-lhes a sede,

Foto de 1950 enviada por Heidegger a Hannah Arendt

Rep

rodu

ção

e g g eA crítica de Heidegger à ciência dizrespeito ao esquecimento metafísicoque em seu estágio terminal reduz o sera objeto no quadro das instituiçõesde produção tecnológica, cujoultrapassamento é antevisto pelopensador nos modelos ônticosdos hinos de Hölderlin

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52 Cult - março/200152

H e i ddeleita seu ócio, alegra seu convívio numataverna. Às vezes, a oferta da jarra é ofer-tada em consagração, como libação aosdeuses imortais. Então, ela não estanca asede, ela se torna oferenda e sacrifício.

Essa �descrição�, inspirada em Höl-derlin, permite a Heidegger um passodecisivo: como o ser jarra da jarra está naoferta da água e do vinho e como, nessaoferta, demoram-se o céu e a terra, osmortais e os divinos, no ser jarra da jarraduram o céu e a terra, os mortais e os divi-nos. Uma coisa tal como uma jarra reúne,estancia (verweilt) os quatro, no sentidode aproximá-los, preservando, contudo,as distâncias entre eles. É nesse contextoque Heidegger dirá que a coisa dingt, queela �coisa� dos quatro.

O �coisar� dos quatro pela coisa nãopoderia dar-se se estes não pertencessemuns aos outros e não se antecipassem,unificados numa quadrindade (Geviert),a tudo que nesta se torna presente, a todacoisa. A quadrindade é, portanto, o mun-do ou o a priori possibilitador dos entesprocurado por Heidegger. De que manei-ra estão unidos os quatro na quadrindade?Não por uma estrutura cósmica, mas �aqui Heidegger surpreende de novo � porum jogo, melhor, uma brincadeira (Spiel),a de espelhamento: cada um espelha à suamaneira a essência dos outros. Esse espe-lhamento não é reprodução visual, e sim

uma iluminação que libera cada um parao que é seu. Individuados desta maneira,nenhum dos quatro teima em se separar eem permanecer na sua particularidade.A essa brincadeira de espelhamento queune os quatro na simplicidade da suacomum-pertença, Heidegger chama de�mundo�. Na tentativa de caracterizarmelhor esse tipo de abertura, Heideggerfalará em quadração (Vierung) que une osquatro e dirá que esta se dá como umaronda (Reigen). A ronda dos quatro é aroda (Ring) que gira e cujo girar inteiraos quatro na roda-mundo (das Gering).

Agora podemos dizer o que possi-bilita o ser-coisa da coisa: o �coisar� dacoisa fundamenta-se na brincadeira deespelhamento dos quatro da quadrin-dade. Inversamente, a coisa possibilitadaestancia os quatro unidos na simplicidadeda roda-mundo. A estância dos quatrointeira-se num in-stante: nisto, nessa coisa(p. 172). Esta é a versão heideggerianatardia da relação entre a verdade a priori,possibilitadora, e o ente possibilitado, nocaso, a coisa. O que possibilita tais entesé um modo de abertura da presença (emtermos kantianos, um modo da verdadetranscendental): a quadrindade da terra edo céu, dos mortais e dos divinos. Aquadrindade é a roda-mundo que tornapossível a coisa a qual, por seu turno, está�coisando� desta.

3. O homem da quadrindadeEssa foi a maneira que Heidegger

encontrou, seguindo o poeta Hölderlin,de pensar o ser do ente não mais domina-do pela armação. À alternativa heidegge-riana para os entes enquanto constan-teações, corresponde um modo do existirhumano diferente da instalação perse-guidora. Na fábrica, o homem é mais umentre muitos agentes que participam dacadeia de produção racionalmente plane-jada, nada mais. Na quadrindade, aidentidade última do ser humano e aordem de seus afazeres determinam-sepela brincadeira de espelhamento entreos constituintes da quadrindade. Tornan-do-se oleiro, o homem apronta jarras. Naqualidade de agricultor, ele enche as jar-ras. Nas horas de descanso, ele bebe nastavernas das jarras. Nos dias de festa, eleas usa para fazer oferendas aos desconhe-cidos divinos. Na hora da morte, ele seafasta de todas as coisas e passa para o�santuário do nada�.

Esses modos de ser do homem daquadrindade podem parecer familiares,mas não são. Eles todos têm um sentidocomo que transfigurado. Tomemos comoexemplo a atividade de aprontar jarras.O oleiro da quadrindade é um artesão,sim, ele faz jarras, mas ele não as fabrica.Ele nem ao menos enforma (gestaltet) aargila, a matéria. O seu produzir não se

Hannah Arendt (1906-1975)

Reprodução

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e g g evale das quatro causas aristotélicas(matéria, forma, finalidade, efetivação).Ele não é um trabalhador, nem no sentidosociológico, nem na acepção existencial-ôntica dessa palavra em Ser e Tempo, exem-plificada por um artesão da vida quoti-diana. O oleiro heideggeriano não obe-dece nem às regras das linhas demontagem industrial, nem às que impõeo mundo do trabalho manual. O que�determina cada movimento do [seu]produzir� é o vazio da jarra. Isso porque acoisalidade do vasilhame não reside namatéria que o constitui, mas no vazio queele próprio contém. No essencial, o oleiroheideggeriano apenas enforma o vazio: �Poreste, neste e a partir deste [vazio], o oleiromodela a argila numa forma� (p. 167). EHeidegger continua: �Em primeiro lugare sempre, o oleiro capta o incaptável do vazioe o põe, como o continente, na forma[Gestalt] do vasilhame.�

Assim como a aniquilação da coisaimplica um perigo extremo para o serhumano, no salvamento da coisa sãopensados não somente o salvamento domundo da condição exclusiva de umestoque de materiais e um canteiro deobras, mas também e sobretudo a liber-tação do homem de um destino que o levaà robotização total. Apesar desse signi-ficado �prático� do pensamento hei-deggeriano sobre a quadrindade � um

assunto que permanece insuficientementecompreendido pela maioria dos comen-tadores �, não há como negar que ohomem mortal do último Heideggercarece de facticidade, mais precisamente,de um lugar determinado no espaço e notempo. Poderia parecer, inclusive, que asua única concretude é a que lhe podemosatribuir à luz da poesia de Hölderlin. Damesma forma, a descrição heideggerianado roda-mundo, por ser desespera-damente abstrata, poderia facilmente serconfundida, como ele próprio teme, comuma mitologia poética ou religiosa(pagã) (p. 168). Se, por um lado, existemsérias dificuldades em desvincular o apriori das coisas do Heidegger tardio dasua fonte inspiradora, da poesia de Höl-derlin, por outro lado, não há como admi-tir que a poesia possa, por si só, abrir umespaço de manifestação dos entes comotais no seu todo ou dispensar a filosofiada tarefa de vincular a abertura possibi-litadora a priori a possibilitados concretos.Desde Ser e Tempo, Heidegger sempreensinou, seguindo o método de análisede Kant, que não se pode falar de con-dições de possibilidade em abstrato, semque o possibilitado seja dável por contaprópria, em pessoa.

Fica, portanto, a questão: a quefenômenos concretos, poesia de Hölderlinà parte, Heidegger está se referindo

quando fala dos mortais na quadrindade?Ou ainda: onde, quando e como podemser encontrados os mortais heideg-gerianos? A resposta de Heidegger, dadaem �Das Ding�, é mais uma vez sur-preendente: estes ainda não existem. Elesnunca existiram, pelo menos não no Oci-dente, porque lhes foi vedado existir.Assim como nunca deixaram o ente ser acoisa, a metafísica ocidental e, por conta-minação, a ciência moderna continuamsem permitir ao homem ser mortal. Ametafísica desde sempre o representoucomo animal racional. Ora, foi justamenteessa visão do mundo que fez do ente merapresentidade e que preparou as condiçõesde possibilidade para a acontecência daarmação. A fim de desarmar a armação,�os seres vivos racionais têm-que [müssen]antes tornar-se [werden] mortais� (p. 177).Essa tese inaudita contém a resposta sobrea facticidade do mortal heideggeriano:este não é fatual porque existe tão-somentecomo um ter-que-ser, enquanto a facticidadeimplica a presença efetiva (e calculável)no passado, no presente ou no futuro.

Esse resultado do pensamento hei-deggeriano suscita naturalmente nume-rosas objeções. Mencionarei aqui apenasuma, a de que Heidegger, inspirado emHölderlin, caiu na ficção poética. Creio serpossível rebater essa objeção traçandomais um paralelo com Kant. Na segunda

C o r r e s p o n d ê n c i a s f i l o s ó f i c a sAlém da biografia escrita por Rüdiger Safranski, outro importante lançamento sobre o pensador alemão é o volume Hannah Arendt� Martin Heidegger. Correspondência 1925/1975 (editora Relume Dumará, tel. 21/564-6869, 340 págs., R$ 35,00). O volumereúne as cartas trocadas entre o autor de Ser e Tempo e a filósofa de As origens do totalitarismo desde a época em que queHannah Arendt (1906-1975) foi discípula e amante de Heidegger, em Marburg, até a retomada do diálogo entre ambos, em 1950� após uma longa interrupção motivada pelo nazismo (que provocou a fuga de Arendt da Alemanha para os EUA, em 1933) epela decepção que ela, como judia, sentiu em relação à adesão de Heidegger ao regime de Hitler, durante sua gestão como reitorda Universidade de Freiburg.Há ainda uma outra publicação que serve de introdução à obra do filósofo: Heidegger, de Jonathan Rée � pequeno volume (68págs., R$ 7,00) que faz parte da coleção Grandes Filósofos, da Editora Unesp (tel. 11/232-7171), na qual já foram editados livrosintrodutórios às obras de pensadores como Aristóteles, Platão, Descartes, Hume, Locke, Kant, Voltaire, Marx, Nietzsche, Wittgensteine Popper.

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H e i dparte de O conflito de faculdades (1798),Kant pergunta se é possível dizer algosobre o progresso futuro da humanidadepara o melhor, isto é, em direção damoralização crescente dos costumes.Claro está, de início, que uma previsãodesse tipo não pode ser classificada comoum juízo �teórico� ou �especulativo�, jáque não pode ser interpretada nodomínio dos fatos da natureza. Ela deveránecessariamente ser tratada como umjuízo prático e, por ter implicaçõesmorais normativas incondicionais (amoralização dos costumes é um impe-rativo categórico), como um juízo a priori.Em vista disso, surge a pergunta: comosão possíveis juízos práticos a priori sobreo futuro dos costumes? A resposta de Kanté a seguinte: tais juízos (só) serão possí-veis se quem fizer a previsão realizar einstituir ele próprio as ocorrências queprenuncia. No caso, trata-se de realizar oque pede a lei moral, devidamente esten-dida para incluir a exigência da realizaçãode uma história mundial moralizada.Ora, um gênero humano moralmentemelhor no sentido kantiano é um gênerodiferente do atual, ele nunca existiu e sópassará a existir se os homens se tornarem

o que ainda não são, por obediência à leimoral. Portanto, quem afirmar, no sentidode Kant, que a humanidade caminha paraa moralização dos costumes não está sereferindo a nada fatual; está dizendo que,cumprindo o seu dever, ele está traba-lhando com outras pessoas na instituiçãode uma ordem moral mundial. Os juízossintéticos a priori da história dos costumessão, portanto, todos ficcionais e recebema sua realidade objetiva exclusivamentedas ações e dos modos de vida humanosque eles próprios antecipam. Não seriaerrado, parece-me, chamá-los de pro-fecias autoconfirmadoras da razãoprática.

O paralelo entre Heidegger e Kantpode agora ser construído aproximandoo homem mortal do gênero humanomoralmente melhor, o ter-que superar atécnica do dever imposto pela lei moral eo tornar-se mortal da realização dasmudanças em direção da moralização. Seesse paralelo procede, então o discursoheideggeriano sobre o homem mortal daquadrindade não é mais �poético� do queo de Kant sobre o gênero humano pro-gressivamente moralizado. Ele éficcional, sim, tanto quanto o kantiano,

sendo que, em ambos os casos, trata-sede ficções a priori necessárias � a kantianadecorrendo de uma lei da razão, aheideggeriana, do destino da verdade doser �, cuja realidade objetiva nuncapoderá ser assegurada por um exemplofatual adequado.

A comparação com Kant tambémpermite entender melhor a relação entreHeidegger e Hölderlin: o que o poetafornece ao pensador são figuras oumodelos ônticos que o ajudam a anteverum a priori possibilitador dos entes e doexistir humano totalmente diferente daarmação que determina o sentido dapresença na época da técnica. Os hinoshölderlinianos são usados como �esque-mas simbólicos�, não como �idéias� deuma outra vida, uso que só poderá sercompreendido por aqueles que seguiremHeidegger na sua análise da claustro-fobia que nos inspira o mundo das insta-lações computáveis.

Zeljko LoparicZeljko LoparicZeljko LoparicZeljko LoparicZeljko Loparicprofessor-titular do Departamento de Filosofia da

Unicamp e docente do Programa de Pós-graduação emPsicologia Clínica da PUC-SP, autor de Heidegger réu(Papirus), Ética e finitude (Educ), Descartes heurístico

(Instituto de Filosofia e Ciências Humanas daUnicamp) e A semântica transcendental de Kant

(CLE – Centro de Lógica e Epistemologia da Unicamp)

O filósofo Immanuel Kant (1724-1804)

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e g g eMinha agitação é a deste mar �

extensão sem fim, movimento sem limites �,mas meu segredo consiste em que pertenço aduas realidades. Porque caminho pela rua

Corrientes, em Buenos Aires, justamentedepois de ter jantado no restaurante

Sorrento. E ao mesmo tempo estou ali, nopleno, no pleno e agitado mar! Sacudido nosespaços agitados... estou em Corrientes e ao

mesmo tempo estou nos mais negros abismosinterplanetários: só no espaço! Acabo dejantar bastante bem e estou lançado no

infinito como um grito...W. Gombrowicz

um livro anedótico de autoresingleses, o nome Heidegger desig-na uma máquina de procedência

alemã destinada a perfurar a substância.A correção da anedota � afinal, a des-truição da ontologia da coisa é um projetoexplícito de Ser e Tempo � poderia, entre-tanto, esconder a verdadeira potência des-ta britadeira, que, na sua obsessão pér-furo-desrealizante, põe em �estado dehesitação� não apenas este ou aquele mo-do da presentidade (coisa, instrumento),mas a presença como tal. Isso significaque tanto a instrumentabilidade (Zuhan-denheit) como o meramente subsistente

N

(Vorhandenheit) são modos da presenti-dade e que, em ambos, o ser já resultoucomo presença (Anwesen). Ora, Hei-degger não está interessado em se deternesta faixa onde a presença já vigora, masem perfurar a faixa ela mesma, a fim deencontrar o elemento ou, melhor dito, omovimento do qual ela resulta. Vale dizer:o que é que possibilita a presentificação?

Com isso não se pretende, obvia-mente, atenuar a diferença que há entreessas duas chaves da presentidade: encon-trar o ente como instrumento é radical-mente diverso de encontrá-lo como coisa.Quase um terço das páginas de Ser e Tempotratam da instrumentabilidade, e é preci-samente a idéia de um acesso instru-mental ao ente que permite a crítica daontologia da coisa (perfuração da subs-tância) e um primeiro deslocamento emrelação ao predomínio metafísico dametáfora do olhar. Não é pouco afirmarque todo pensamento ocidental, deParmênides até Husserl, esqueceu ofenômeno do mundo e permaneceu presoao modelo do ver teorético. Não é poucoabrir um território, até então insuspeitado,a partir do qual o acesso ao ente pode serconcebido fora do regime do logocen-trismo (da idéia de que é o juízo que abre

o ente; de que sua descoberta é a expo-sição num discurso do tipo S é P). Não épouco, também, deixar para trás toda umasérie de imagens metafísicas do homem-vidente e do mundo como sistema-de-coisas �em nome� do Dasein agente-com-preensor e do mundo como sistema detarefas; afinal, se o velho espectador ape-nas discernia as propriedades de algo real,agora o Dasein envolvido e expectante seapropria de instrumentos, pois já com-preendeu ali um sentido e articulou umapossibilidade. Mas se nada disso é pouco,e certamente não o é, o que falta então?Não é a noção de instrumentabilidadeuma noção central, a ponto de Heideggersempre a ela retornar, até mesmo napágina final de Ser e Tempo? Sem dúvidaque ela é importante, mas não é central.O verdadeiro núcleo de Ser e Tempo está,ainda, em outro lugar, e, por mais que oinventário acerca do potencial revolucio-nário da noção de instrumentabilidadepudesse seguir até o tedioso, ele seriasempre um prelúdio, provavelmenteainda tímido, de uma revolução maisprofunda: �Ser e Tempo� não é apenas umamáquina de desrealização (crítica da ontologiada coisa), mas uma máquina de desfazer todae qualquer presentidade. Isso quer dizer que

Juliano Garcia Pessanha Conceito espacial (1962), tela de Lucio Fontana

Ser e Tempo: uma�pedagogia�

da perfuração

Ser e Tempo: uma�pedagogia�

da perfuração

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H e i dtanto na visualização do meramentesubsistente quanto na apropriação de uminstrumento está pressuposto um en-contro cuja possibilitação permaneceimpensada e que, em ambos os casos,ainda que de maneira diversa, já fomosconcernidos e atingidos pelo que é. Quala raiz desta não indiferença em relação aoque é? São questões deste tipo que formamo núcleo de Ser e Tempo, um livro inaca-bado que aponta já para um lugar quenão mais pertence à metafísica. Ora, setambém no instrumento já vigora algoque é, resta então perguntar como amáquina de desfazer presentidade vaiperfurar o instrumento.

Uma das conseqüências da noção deinstrumentabilidade é, precisamente, asuperação da questão tradicional doconhecimento. Quando se pergunta pelamaneira como se dá a instauração docomércio gnoseológico (sujeito/mundo,espírito/real etc.), encobre-se o �fato� deque esse comércio já aconteceu e que oente intramundano já está descoberto. Issosignifica que eu não pré-subsisto, encap-sulado em minha natureza específica, atéo momento em que se abre alguma janelana consciência. Não; eu já estou sempre�lá fora�, junto aos entes, e é só na medidadesse comércio acontecido que eu mesmoposso ser. Mas se o ente intramundano jáestá descoberto é porque deve vigorar algumaespécie de luz. De que luminosidade se trata?Posto que não é nenhuma �luz ocular�(dos sentidos), nenhuma luz divina ou

racional, trata-se, tão-somente, daluminosidade do sentido (da signifi-cação). Vale dizer que há uma cenasignificativa, uma trama (sistema deremissões), cujo fio me é familiar e aoqual este ou aquele ente pertence ou nãopertence, cabe ou excede, tem lugar ouexorbita. Se um pigmeu, cuja sorte otivesse privado dos antropólogos e demaisespecialistas do �homem�, se deparasse,na selva, com um telefone celular,subtraída a hipótese de que ele pudessefazer daquilo um uso qualquer einsuspeitado (projetar possibilidades parao ente), diríamos que ele encontrou algoabsurdo. O telefone excede à rede con-formativa daquele mundo; não pertenceao conjunto das remissões que o pigmeu�entende�. Mas algo só excede se pensa-mos numa relação: é só sobre a base deum mundo como �conjunto� de significa-ções que um ente particular pode ter ounão sentido. O absurdo ratifica que osentido já vigora e que um certo mundoaconteceu � ele não é ausência de sentido,mas contra-sentido sob a base do sentidoacontecido. Essa base é exatamente omundo na acepção existencial, um lugariluminado a partir do qual o ente podeganhar um ser. �Aí�, nesse lugar, o ente é.Está descoberto: foi compreendido eapropriado em função de uma rede designificatividade que, segundo Heideg-ger, constitui a própria estrutura domundo. �Em todo instrumento, o mundojá está �aí�� (par. 18). Ora, estávamos

perseguindo o instrumento a fim deperfurá-lo e encontramos o fenômeno domundo. Seria então o mundo esse lugariluminado onde acontece o sentido; finalmente,a província última em que poderíamosassentar e edificar? Constituiria ofenômeno do mundo uma espécie de posi-tividade alternativa? Aquilo que a nossamáquina negativa, a britadeira-Hei-degger, não conseguiria atravessar? Aresposta é não. Esse mundo já aberto epor nós ocupado, essa cena legível eiluminada dentro da qual nos movemostodos os dias, não é senão a vertigem deuma fuga e o resultado de um encobrimento.A significatividade em que nos susten-tamos (mundo) esconde precisamente airrupção original do mundo. É apenasquando a significatividade quebra e seretira (par. 40), quando, rigorosamente,já não posso encontrar nenhum ente (ins-trumento, coisa subsistente, e mesmo�eu�) que o mundo se mostra como mun-do e que emerge o �quem� do Dasein.

Mundo (e não o estoque das coisas),na acepção existencial anteriormenteexplicitada, não é algo dado de uma vezpor todas. A abertura iluminada ondeencontro o ente pode ausentar-se. E nãoé um ausentar-se qualquer, mais ou menosprovável, mas algo que já acercou desdesempre o Dasein. O Dasein é o ente queexiste, porque é aquele ente que mantémligação com esse ausentar-se. Por maisque o Dasein insista na segurança domundo e confie nessa �evidência�, mais

À esquerda, o filósofo Karl Jaspers(1883-1969), amigo de Heidegger eHannah Arendt. Na página oposta,Heidegger na mesma época (1920).

Fotos/Reprodução

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e g g eele recalca a possibilidade daqueleausentar (possibilidade de não mais estaraí), encontrando-se, portanto, sempre emrelação a ele. Isso equivale a dizer que oser-no-mundo não evoca um assenta-mento no necessário ou um alojamentoem algo permanente (Beaufret), mas, aocontrário, é precisamente o que falta e oque não está dado. Por isso, quando seafirma, como geralmente acontece, queo homem em Ser e Tempo é o ser-no-mundo, se esquece de acrescentar que issonão lhe é dado e que o ser-no-mundodeve ser lido como um ter-de-chegar-ao-mundo e um ter-de-manter-se-aí-no-mundo. É apenas resistindo à possibi-lidade da impossibilidade (ser para amorte) que o Dasein mantém-se no inte-rior da significatividade de um mundo,embora essa resistência nunca supere ouapague a possibilidade de não mais estaraí.

Nesse ponto torna-se claro até ondenos conduz a britadeira-Heidegger: suaontologia fundamental não oferece maisnenhuma fundamentação última nosentido da metafísica, mas aponta para anegatividade radical que nos atravessa.Somos um constante transbordamento domundo e nos situamos precisamente nalinha sísmica, entre o chão e a cratera.Vale dizer que, doravante, todos os modosde estar-no-mundo devem ser lidos comoderivações, no sentido específico deafastamento, recalcamento e encobri-mento da região fronteiriça. É o próprio

pensamento, portanto, que sofre umametamorfose, pois ele, longe de ser abusca de um fundamento inabalável,implica agora um poder permanecer emtrânsito constante pela linha da fronteira.E é preciso, talvez, uma espécie depulmão-anfíbio a fim de interrogar quetrânsito ou que movimento é esse que faza passagem do abismo à casa e que,bifurcando, vincula as possibilitações aoimpossível. Esse trânsito, diz Heidegger,é o tempo. Sua determinação primária, ofuturo, é o nada. Isso significa que aprópria �decisão� pelo ser (o residir nacasa) é o tempo. É um tipo específico detemporalização do tempo (o mais básico).Tanto o encontro do instrumento quantoo do meramente dado são modos, são�figuras�, mais derivadas, da tempora-lização do tempo. Ambas são legítimas,desde que não esqueçam sua genealogiae procedência. De nada adiantaria insistirque, na chave instrumental, o homempode, agora, responder quem é?, que horassão? e onde está?, não mais a partir dainsipidez da cronologia e dos �agoras�,mas da tensão da vida prática e dodesassossego de suas esperas, se seguimosignorando o que esse outro tempopressupõe. (Que ele já é resultado e nãoorigem.) Mais originário que essehomem concreto (habitante da espessuracotidiana) é a finitização do Dasein nele.Quando responde que horas são?, quem,onde e quando agora? (as questões inesgo-táveis de Claudel e Beckett) e � incri-

velmente! � acredita em suas respostas,quando espera por um emprego, diz as�suas� datas, sente medo de uma doença,glorificando assim a hora positiva, nãofaz mais do que produzir o seu sintoma,encobrindo temporalizações mais origi-nárias. Foi o próprio Heidegger quem,no parágrafo 72 de Ser e Tempo, ao falardo nascimento e do ser-para-o-começo,abriu a possibilidade de pensarmos paraaquém, tanto do tempo vazio e abstra-tamente infinito dos agoras (intratempo-ralidade, Innerzeitlichkeit) quanto dotempo mundano das ocupações (tempo-ralidade inautêntica). Pensar o ser-para-o-início e o modo da chegada ao mundoé poder se apropriar daquilo mesmo que,pela primeira vez, eclodiu contra a noiteda ausência. Trata-se de uma porta queHeidegger deixou aberta e que permite,para além do próprio Ser e Tempo (dasanálises da historicidade autêntica),pensarmos numa singularização positivae no tema da constância do si-mesmo. Seum tal pensamento, que desce até aindigência na qual algo nos foi confiado,continuar sendo tachado de �jargão daautenticidade�, então é necessário queessa expressão equivocada se apliquetambém ao que a psicanálise nos legoude mais radical.

Juliano Garcia PessanhaJuliano Garcia PessanhaJuliano Garcia PessanhaJuliano Garcia PessanhaJuliano Garcia Pessanhaautor de Sabedoria do nunca

e Ignorância do sempre(ambos pela Atêlie Editorial)

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58 Cult - março/200158

H e i dDedicado a Jorge Cravo, Arnaldo

Xavier, Helena Falcão e Judith Kayaz alguns anos, assistindo emBruxelas à palestra de um espe-cialista francês em filosofia contem-

porânea, ouvi-o se lamentar do discoursconfus da maioria dos filósofos de nossaépoca. Se o gosto pela expressão difícil,obscura, sibilina, dizia, estivesse restritoa pensadores de baixa audiência � espe-ciosos, mas de pouco fôlego especulativo,acrescentou �, talvez fosse menos penosoenfrentar o problema. Contudo, prosse-guiu o lamuriento mestre, a tendência emassociar obscuridade a profundidade �preconceito romântico, escreveu certa vezo pensador brasileiro Roland Corbisier� tornou-se a moeda mais corrente nacena filosófica contemporânea, mesmoentre os filósofos de maior destaque. Osonho do professor queixoso era o de quetodo filósofo buscasse como modeloestilístico os autores ingleses e os fran-ceses pré-existencialismo, a seu ver omelhor antídoto às tortuosidades deexpressão e à vocação para o mistifório,pois insuperáveis na difícil combinaçãode expor questões complexas de maneirasimples. E, melhor ainda, jamais nenhumdeles esquecesse a lição aristotélicacontida na Retórica, na qual o Estagiritaadverte que se o discurso não tornamanifesto seu objeto, não cumpre suafunção. O conferencista, a exemplo deMoréas, disse à platéia que ininteligívelrima com charlatanice.

FAo lastimar, não fosse ele francês, o

desprestígio da lendária e secular virtudecartesiana de clareza estilística, nossoprofessor viu na raiz do fenômeno a, paraele, desmedida importância conferidamodernamente à reflexão filosófica dematriz alemã. Invertendo uma situaçãovigente por mais de um século, quando acultura francesa impôs sua hegemonia,nossa época viu a filosofia germânica daras cartas, a tal ponto que mesmo o maiorfilósofo francês surgido no período, Jean-Paul Sartre, permanece com o nomeinevitavelmente associado ao de MartinHeidegger, e ambos, por sua vez,caudatários filosoficamente de outropensador alemão, Edmund Husserl. Acomplexidade da meditação husserlianaparadoxalmente popularizou-se graças àobscuridade oracular (sic) de Heidegger.

Aos nomes antes citados, exemplaresconsumados do �filosofar difícil�, oconferencista acrescentou o de outroautor de língua alemã, o austríaco LudwigWittgenstein. Para seu desespero,justamente o quarteto de filósofos maisinfluente de nosso tempo, aprecie-se ounão isso. Logo, referências impossíveisde serem descartadas em sala de aula eem qualquer debate sobre os rumos dafilosofia do século XX. Constatar, note-se, não é aderir, mas render-se ao óbvio,lição acaciana de razoável valor.

Descontados o vezo do julgamentosumário, as imprecisões históricas, adeclarada germanofobia, a ironia mordaz

e certos critérios discutíveis do professor,bem como a hostilidade a alguns pensa-dores, fruto, a meu ver, de sua formaçãocultural, mistura eclética e algo insólitade sociologia weberiana com tinturasmarxistas de matiz lukacsiana, forçoso éadmitir, temperada cum grano salis, razoá-vel procedência às suas diatribes. Autorescomo Wittgenstein e Heidegger, porexemplo, criadores de novos idiomasfilosóficos, descompromissados, por-tanto, com o vocabulário clássico, são deleitura desanimadora para os espíritosmenos persistentes, assim como habi-tualmente irritam as mentes mais pregui-çosas, predispostas estas a rechaçaremcomo impenetrável qualquer texto maisdesafiador. É óbvio também, cabedestacar, que o argumento pode servir deálibi a filosofantes de baixo coturno,buscando, no recurso à expressão insólita,escudo que lhes esconda a minguadafatura especulativa. Alijada esta hipótese,vale lembrar a advertência de Popper,segundo a qual a compreensão de umproblema só é alcançada depois deinúmeros fracassos em resolvê-lo. Quemignora tal alerta sequer ultrapassará osparágrafos iniciais de Ser e Tempo e doTractatus logico-philosophicus, os textosfundadores, ao lado de O Ser e o Nada, dareflexão filosófica do século XX.

Mas deixando de lado, porque irrele-vante neste momento, a discussão sobreos motivos que levam alguns filósofos ase comprazerem em tornar mais difícil a

H e i dJoão da Penha

Heidegger eWittgenstein,

uma (im)possívelconvergência

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março/2001 - Cult 59

e g g eR

epro

duçã

o

vida dos leitores, me detenho nos nomesde Heidegger e Wittgenstein, nomescardeais da geografia filosófica contem-porânea, e me indago se é possível esten-der, ou mesmo divisar, um fio deconvergência que atravesse as idéias dosdois.

Um heideggeriano de grande prestí-gio entre nós, o professor EmmanuelCarneiro Leão, em Aprendendo a pensar(Vozes), observa que num mapa dafilosofia Heidegger e Wittgenstein esta-riam localizados em pontos extremos,pois autores de sistemas opostos na cons-telação filosófica do século XX. Paraalém das diferenças de orientação siste-mática e endereço metodológico, ex-pressos, de um lado, por termos comofenomenologia, ontologia fundamental,filosofia da existência, e, de outro, filosofiaanalítica, positivismo lógico, filosofia dalinguagem, ambos também se diferen-ciariam existencialmente na geografiacultural do Ocidente. Ao caracterizarcada um deles sob uma luz diferente, oprof. Carneiro Leão descreve Heideggercomo a expressão consumada do filósofoalemão: especulativo, de formação clás-sica e filológica, empenhado em repetirtoda a tradição metafísica, mas com o fitode despedi-la (sic), processo ao longo doqual ele recusa, como modelo, a ciênciamoderna, em seu modo de reflexãotécnico-matemático rigoroso, vendo-acomo sintoma. Wittgenstein, por sua vez,contrastando, seria o modelo por exce-

lência do espírito antiespeculativo, autorde duas obras � o Tractatus e as Inves-tigações filosóficas � tornadas documentosclássicos da filosofia analítica noscírculos que ele chamou de epistemo-logia dogmática.

Toda essa mentalidade antiespecu-lativa � ainda nas palavras do ilustre autor� vigente no nominalismo inglês desdeOckham, passando por Hobbes, Lockee Hume, mais a crítica fundada na análiselógica da linguagem, surgida com Boole,Frege, Russell, Peirce e Moore, conver-giram em Wittgenstein sob a forma deuma suspeita cética. Qual? O ceticismoquanto à eficácia investigativa de todametafísica, pois, destituída de sentido, elaé em si mesma uma insensatez, oriundade uma incompreensão lógica da línguade nossos discursos. Mas é justamentenessa suspeita de insensatez que o prof.Carneiro Leão vislumbra a possibilidadede encontrar nas diferenças entre Hei-degger e Wittgenstein uma identidade depensamento. E assim é porque em ambosnos deparamos com uma suspeita dainsensatez da metafísica � em Wittgen-stein, porque ela se origina de uma espéciede alienação da língua; em Heidegger,de uma alienação do Ser.

A tese é sedutora. E, em princípio,procedente. No entanto, seja pelo fato dea oposição entre os dois pensadores sertão flagrante, seja pelo fato de justamentepor isso parecer aos estudiosos fora depropósito dedicar-se à questão, a biblio-

grafia em torno dela, até onde sei,considerando a importância dos prota-gonistas, é modesta, e o que se escreveu arespeito é, em termos analíticos, de resul-tados minguados. Do que de mais inte-ressante li sobre o tema, isto é, o confron-to entre o pensamento de Heidegger e ode Wittgenstein, encontram-se asanálises de Paul Standish (Beyond the self:Wittgenstein, Heidegger and the limits oflanguage, 1992) e Hervert Hrachovec(Vorbei. Heidegger, Frege, Wittgenstein,1981). Mesmo assim, a despeito dosinegáveis méritos dos críticos citados, osresultados obtidos ficaram aquém do quea tarefa requeria. No caso de Hrachovec,não houve, a rigor, nem mesmo o cotejoentre as idéias dos dois filósofos, mas merajustaposição.

Também aqui, por limitações várias,não posso pretender ir além disso. Seaspirasse a tanto, a pretensão, para serminimamente atendida, exigiria oslimites mais amplos da exposição ensaís-tica. Contento-me, por conseguinte, mes-mo num vôo brevíssimo, em destacar umou dois temas das reflexões de Heideggere Wittgenstein, o que, de alguma forma,localiza as latitudes onde se situam suasrespectivas idéias.

Heidegger é nossa primeira escala.O mestre da Floresta Negra, confor-

me sintetizou em certeira definição GerdBornheim, em Dialética, teoria, práxis(Globo, 1977), é o pensador por exce-lência da crise da metafísica. Para Hei-

e g g eNomes cardeais da geografia filosóficacontemporânea, o autor do Tractatuslogico-philosophicus e o pensador deSer e Tempo criaram �idiomas� opostos,embora seja possível ver um pontocomum entre ambos na denúnciada insensatez da metafísica

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951)

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H e i dÀ esquerda, o filósofo EdmundHusserl (1859-1938). Na páginaoposta, Jean-Paul Sartre (1905-1980).

Fotos/Reprodução

degger, é na filosofia moderna que ametafísica alcançou seu auge, entendidoaqui o termo no sentido de etapa final,estágio cuja tônica é marcada pelosubjetivismo, do qual o idealismo hege-liano é a expressão consumada. Há umtema obsedante na meditação heidegge-riana, enunciado sob forma de denúncia:a metafísica, diz o filósofo, é, poucodepois de ter madrugado na Hélade, umateoria do ente esquecida do ser. E, maisgrave, associou-se à vontade de podersubjacente à técnica � técnica que vempatrocinando o assalto à natureza. É pormeio da questão do ser que Heideggerdiscute a tradição metafísica do Oci-dente. A história do Ocidente, com todosos seus fenômenos, decorre da metafísica,isto é, resulta de uma maneira específica,muito peculiar de interpretação darelação entre o ser e o pensar, logo daforma como o homem ocidental inter-preta a si mesmo. A idéia dominante sobreo que seja a relação entre ser e pensaracabou por configurar as concepções cul-turais do Ocidente, fato, diz Heidegger,que tem sua expressão consumada natécnica e na avassaladora cientificação domundo e do homem. Uma palavra,metafísica, surgida graças a um acidentecometido por Andrônico de Rodes aoclassificar as obras de Aristóteles, acabouadquirindo significado mais profundo,tornou-se, na definição aristotélica, umaciência que estuda o ser enquanto ser,ciência que investiga os princípios iniciaise as causas últimas, filosofia primeira,fixada pela tradição como a parte maisimportante no estudo da filosofia. A

metafísica é o discurso sobre a essênciado existente. Cabe-lhe, portanto, dizersobre a natureza última da realidade.

Mas Heidegger, ao debruçar-sesobre a questão, não se ocupa nem sepreocupa com essa concepção, digamos,acadêmica, formal, da metafísica. Seuintuito é outro. Sua investigação se voltapara a maneira como a metafísica temsido concebida ao longo da história doOcidente e dos efeitos mutiladores quetal concepção trouxe à cultura ocidental.A mutilação da metafísica, sua peripécia,resulta de, a partir de um certo instante �seu momento platônico �, ela ter-setornado uma ciência que se engana conti-nuamente de objeto: em vez de perguntarpelo ser, ela pergunta pelo ente. Ela pensao ente enquanto ente. Isso a faz perma-necer junto do ente, quando, na verdade,deveria se voltar para o ser enquanto ser.Por representar o ente enquanto ente, ametafísica não pensa no próprio ser. Ametafísica diz o que é o ente, conceitua-lhe a identidade. Na entidade do ente, elapensa o ser, sem no entanto, devido a suamaneira de pensar, poder considerar averdade do ser. A metafísica se move,assim, no âmbito da verdade do ser quelhe permanece o fundamento desconhe-cido e infundado. No repertório dosproblemas filosóficos, a pergunta pelo seré o maior deles. A filosofia ocidentaldesnaturou sua máxima questão ontoló-gica. Ela só tem perguntado pelo ente � elaesqueceu o ser. Tal esquecimento foi e temsido danoso, na perspectiva de Heidegger.A história da metafísica, portanto, é a históriado esquecimento do ser.

São muitos, passe a ressalva, os queencaram a distinção heideggeriana entreser e ente pouco menos que artificial.Sciacca viu nela um exercício de sofista,de que resultou a destruição do ser, daontologia e da metafísica. Bochenski, nasDiretrizes do pensamento filosófico (E.P.U.,1977), escreve que julgou sempre maisadequado falar em ente do que em ser,pois tudo o que existe, tudo o que é,chama-se ente: o leitor de seu livro, olenço que ele carrega. Tudo o que é é ente,e fora dele nada existe. Já o ser é o termoabstrato do concreto ente, mais ou menoscomo vermelhidão é o abstrato do con-creto vermelho. Se recuarmos no tempo,encontraremos Duns Scott, tema de umadas análises de Heidegger, privilegiandoo ente como o objeto primordial dametafísica.

Em suas origens, leciona Heidegger,a história da filosofia voltou-se para aindagação do ser. Mas logo depois, surdaàs lições dos pré-socráticos, ela se entre-gou ao esquecimento dessa interrogação.Aliás, a um duplo esquecimento: esque-ceu a pergunta pelo ser e esqueceu esteesquecimento. Só há uma tarefa sanea-dora, de redenção mesmo � voltar a essasorigens, recuperar a força da perguntafundadora sobre o ser. É preciso voltarao princípio, ao fundamento da própriafilosofia do Ocidente. Por isso é queHeidegger afirma que filosofar implicasempre recomeçar. O filósofo, nessesentido, é um principiante. E é em nomedesse recomeço que Heidegger repudiatoda a tradição metafísica construídadesde Platão, tradição que se firmou

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e g g ealheia à verdadeira natureza do ser,porque a esqueceu.

Quem subverteu a missão origináriada metafísica, acusa Heidegger, foiPlatão, pois a história das idéias noOcidente vive sob a égide do platonismo,ou seja, do idealismo. São múltiplas asfaces do idealismo, mas todas estãorefletidas no espelho platônico. Mascomo podemos nos livrar dessa imagemdeformada? De que maneira � se há �pode-se refazer, corrigindo-a, a trajetóriada metafísica, encaminhando-a para a suasenda original, recuperando-lhe o papelde protagonista da cultura ocidental?

O caminho existe, responde Heideg-ger. Para encontrá-lo há que se superar ametafísica, a única via de retorno àverdade originária. É preciso refazer amarcha da metafísica desde seu início. Ecomo a traição da metafísica à suaverdadeira missão se deve ao esque-cimento do ser, é justamente perguntandopor ele que nossa jornada deve começar.

Então, o que é o ser?O ser pertence à lista de noções

supostamente evidentes por si mesmas,justamente por isso é um dos vocábulosde mais difícil definição, logrando maiscomumente ser caracterizado, mas nãoexatamente definido. A mais abstrata dasidéias, sua simples menção parece pres-cindir de qualquer nota explicativa. Porisso mesmo, a tradição filosófica fezparecer desnecessário discutir o ser. E adificuldade resulta não apenas dos muitossignificados que se lhes concede, masmuito mais das muitas interpretaçõesconferidas a cada um desses significados:

ora se o compreende como essência, oracomo existência; outras vezes se o iden-tifica com o ente, mas também com asubstância. Contudo, nenhum dessesconceitos, divergentes entre si, dá contada idéia de ser.

Aristóteles deu início à questão. Viuo ser, em sua Metafísica, como o conceitomais universal. Desde então, sabe-se queo sentido do ser é polivalente (pollachos).Portanto, o ser, ao longo da história dafilosofia, se tem dito de vários modos.

Primordialmente, ser significa existirrealmente. Logo, pareceria fácil a ques-tão, pois, dito assim, o conceito torna-seevidente por si mesmo, não precisandode nada mais que o explique. Já Tomásde Aquino, na Suma Teológica, afirmavaque a compreensão do ser está perfeita-mente contida em tudo aquilo queapreendemos do ente. Heidegger con-sidera insatisfatórias todas essas defini-ções ou caracterizações. Para ele há umaquestão do ser, questão que não foiresolvida. Na Introdução à Metafísica(Tempo Brasileiro, 1969), ele investigainicialmente o ser em sua gramática eetimologia, para só então deter-se em suaessência, visto, ressalva, se recusar aaceitar um fato às cegas, da mesma formaque se admite sem mais nem menos aexistência de gato e cachorro.

Heidegger assenta sua reflexão noterreno ontológico. Seu intento é aconstrução de uma ontologia fundamen-tal, a despeito de ele mesmo reconhecero embaraço da expressão, isso porqueaceitá-la é o mesmo que induzir à opiniãode que o pensamento que busca pensar a

verdade do ser, e não a do ente, é, enquantoontologia fundamental, também ela umaespécie de ontologia. Impôs a si mesmoa tarefa de interrogar o sentido exato doser desde o alvorecer da filosofia, valedizer, em seu surgimento na Hélade. Ser,do grego einai, significa estar presente.Por sua vez, a substância do existente, diz-se em grego ousia. E a ousia era concebidacomo parousia, ou seja, como aparição.Assim, o ser é um estar-presente, algo queirrompe e se aproxima do homem. A florque desabrocha em meu jardim surge, serevela, se desoculta, é jogada diante demim. Revela-se a meu olhar. É pro-duzida.

O ser, na descrição fornecida porHeidegger, carrega consigo, em seuprocesso de revelação, uma dialética deocultação e desocultação de caráterdialético � dialética, importante frisar,que não se confunde com aquela expressapela tríade hegeliano-marxista. Adialética sugerida pela descrição heideg-geriana decorre do fato de, se o ser torna-se presente, admite-se, então, que ele nãose revela em sua totalidade, de uma sóvez. É como se mantivesse uma reservanão revelada, pois o tornar-se presentesupõe a existência de algo ainda nãopresente. Portanto, ao pensar a presençado ser, também penso naquilo que delepermanece oculto, naquilo que perma-nece latente. A desocultação do ser é asua verdade. Verdade que se diz em gregoalétheia, desocultação. O �a� prefixal dealétheia é partícula negativa. Létheia, porsua vez, encontra seu equivalente no latimlatere, de onde deriva latente, que os

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H e i ddicionários dão como sinônimos deoculto, subentendido. Mas nem mesmoessa dialética de ocultação/desocultaçãologra dar plena conta do que é o ser.Quando o ser se desoculta, se torna pre-sente, nem assim ele manifesta toda arealidade. Por isso que está fadada aofracasso toda fixação no presente � serásempre redutora, parcial, portantoincapaz de fornecer a verdadeira naturezado ser. Fixar esse instante como absolutoé o que Heidegger chama de presenti-ficação. E submeter-se à presentificaçãoé perder o sentido dinâmico do ser. Aonominar a presença, já se está face à suarepresentação, apenas � mas não diantedo presente no âmbito da presentificação.

Heidegger vê nesse amor ao presentenada mais do que uma traição à verda-deira natureza do ser, erro que desde Pla-tão marca a metafísica ocidental.

Heidegger é o pensador da crise dametafísica e toda sua reflexão se desen-volve no âmbito dessa cultura. A despeitode sua crítica à metafísica, ou a seusdescaminhos desde a Antigüidade grega,culpada, dentre outras coisas, pelaindigência a que relegou o ser, Heideggerainda assim acredita em recuperá-la, crêpoder devolvê-la à sua legítima função.

Tal empreitada sequer é cogitada porWittgenstein. Firme na concepçãopositivista de que a verdade significa umacorrespondência com os fatos, nossofilósofo descarta qualquer possibilidadede um saber metafísico. Falta à metafísicaa capacidade de fundamentar qualquerconhecimento, ou seja, ela não pode as-pirar a se impor como um saber científico

porque impossibilitada de forneceralgum tipo de saber seguro, fundado naexperiência. O destino da metafísica épermanecer indefinidamente � e inutil-mente � buscando atingir um princípioabsoluto, perguntando sempre, semnunca obter resposta, sobre as questõesque se estendem além do empírico. Por-tanto, qualquer coisa que a metafísicaafirme é um contra-senso, visto sua pre-tensão, sempre malograda, de explicarrealidades que estão além da experiência.Sendo assim, é desprovido de sentido atémesmo o postulado básico da metafísicaquanto à existência de uma realidadesupra-sensível. O ânimo antimetafísicode Wittgenstein, sustentado em basespositivistas, mostra-se mais violento doque o golpe kantiano desfechado contraa metafísica na Crítica da Razão Pura. Naanálise de Kant, é impossível a metafísicase constituir como ciência no sentido emque o termo designa as ciências físico-matemáticas, fato que levará a se discutirindefinidamente as mesmas questõesmetafísicas, sem que jamais obtenhamosrespostas, pois esbarraremos sempre nosdomínios da razão. Wittgenstein vaialém: a especulação metafísica é umadoença, uma patologia do intelecto.

À pretensão heideggeriana deconstruir uma ontologia da existência,Wittgenstein oporia que a tarefa dafilosofia nada tem que ver com isso, con-sistindo apenas em clarificar logicamenteos pensamentos e não a existência � derZweck der Philosophie ist die logischenKlärung der Gedanken (Tractatus, par.4.112, Suhrkamp Verlag, 1989). O tema

que atordoava Heidegger � a questão doser � é descartado por Wittgenstein, poisnão existem problemas filosóficos. E oque passa por isso resulta de produto daimaginação dos filósofos, cujas descriçõessimples, aparentando profundidade,escondem, na verdade, as complexidadesda linguagem. Compreendemos mal alinguagem que usamos, por isso, de formaenganosa, vivemos a formular as mesmasperguntas. A linguagem é a origem dasconfusões filosóficas. As teses propostaspelos filósofos, se não são falsas, são, noentanto, sem sentido. Elas só existemporque não compreendemos a lógica denossa linguagem. Se o destino doOcidente, como pensa Heidegger, esteve,ou está, ameaçado há mais de dois milanos porque esquecemos o ser, Wittgens-tein aponta para a inutilidade de qualqueresforço tendente a corrigir a falha. Afilosofia, diz o autor, apenas apresenta ascoisas. Ela não esclarece nem deduz nada,pois, estando tudo à vista, nada há aesclarecer. Se alguma coisa está oculta,isso não nos interessa, lê-se no parágrafo126 das Investigações filosóficas (FundaçãoCalouste Gulbenkian, 1987).

O que o filósofo tradicional classificade problemas filosóficos, Wittgensteindiagnostica como ilusões gramaticais.Estas é que nos induzem aos equívocoslingüísticos. Quando falamos das coisasque nos cercam, em vez de as compreen-dermos, damos-lhe interpretaçõeserradas. Quando fazemos filosofia somoscomo selvagens, homens primitivos, queouvem as expressões dos homens civili-zados, interpretam-nas erradamente e

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e g g eWittgenstein

Rep

rodu

ção

tiram, da sua interpretação, as conclusõesmais extravagantes (parágrafo 194, parte1, Investigações filosóficas).

Se a origem do que se convencionouchamar de problemas filosóficos decorreda falta de compreensão de nossalinguagem, Wittgenstein declara que afunção principal do Tractatus está eminvestigar o que pode ser dito claramente,isto é, descobrir o que pode ser expressosem erros pela linguagem. Conhecida alógica da linguagem, dissolvem-se osproblemas filosóficos, na verdade, insistenosso filósofo, falsos problemas, ouproblemas surgidos quando o que deveser silenciado termina por ser dito. Noparágrafo final do Tractatus, encontra-sea frase-resumo que Wittgenstein pôs emcirculação no léxico filosófico contem-porâneo: Wovon man nicht sprechenkann,darüber muss man schweigen . �Acercadaquilo de que não se pode falar, deve-sesilenciar.�

Um crítico hostil a Heidegger, oinglês Roger Scruton, descreveu opensamento do filósofo alemão comovítima de um fenômeno apontado porWittgenstein, qual seja, o do enfeitiça-mento do intelecto, doença � pois assimele trata a velha maneira de filosofar �contraída por meio da linguagem. O pen-samento de Heidegger, conforme mostraa avassaladora bibliografia acumulada emtorno dele desde seu surgimento, se prestaa interpretações as mais desencontradas.Sua fortuna crítica percorre um arco quecontempla variados matizes ideológicos:desde a afirmação de Djacir Menezes,um hegeliano de direita, de que a filosofia

de Heidegger (e, por extensão, todas ascorrentes afins) é produto da ressacaideológica de uma fase histórica, carac-terizada pelo desprestígio do valor epis-temológico da razão, passando pelaanálise algo receptiva do marxista LucienGoldmann, até desembocar na recusatotal de um Lukács, para quem as idéiasdo autor de Ser e Tempo não passam deuma quarta-feira de cinzas dosubjetivismo parasitário.

Heidegger, conforme sua obra eregistros biográficos fazem supor, adotavauma posição olímpica � para uns, deelegante desprezo � diante do julgamentode seus contemporâneos. É possível, mepermito divagar, que a esse respeito eleadotasse como lema a máxima heraclítica:se não houvesse injustiça, ignorar-se-ia atéo nome da justiça.

Observações:

1. É conhecida a posição de Heideggercontrária a que o classificassem deexistencialista, pois, como ele mesmodeclarou, a questão que o preocupava eraa do ser em seu conjunto e enquanto tal, enão a existência do homem. Também nãose ignora a aversão do filósofo a algo quese pudesse chamar de heideggeriano, poisaceitá-lo implicaria na aceitação da idéiade sistema, que ele via como suspeita eexpressão metafísica da vontade de poder.Não obstante isso, e para efeito mera-mente de registro, mas importante paramim, informo que não sou heideggeriano,embora o tenha sido décadas atrás.Heidegger, aceite-se ou não, é um pensa-

dor que está no horizonte cultural denossa época. Se, como disse o poeta W.H.Auden, Freud tornou-se um clima deopinião, a mesma avaliação, no âmbitoda filosofia, pode ser estendida aHeidegger.2. Uma questão inevitável quando semenciona o nome de Heidegger dizrespeito à sua relação ambígua com onazismo. Tornou-se, em termos filosó-ficos, cause célèbre. Uma mancha gravís-sima em sua biografia, sem dúvida, masque não pode ofuscar o valor de sua obra,buscando filiá-la a uma genealogia filo-sófica que traria em germe os aspectossinistros do hitlerismo. Quando se adotatal postura, no afã de denegrir o pensadore seu pensamento, descamba-se para ocaricatural, como o fez Lukács, em seulamentável O assalto à razão, livro-síntese,no âmbito da filosofia, do período daGuerra Fria. Noutra vertente, tampoucoé salutar o ânimo apologético de muitosadmiradores de Heidegger, teimosa-mente cegos às verdades biograficamenteincômodas de seu mestre. Por isso, asexceções a essa prática de hagiologiamenor são sempre bem-vindas. Nabibliografia brasileira em torno do tematornaram-se referências indispensáveisHeidegger réu � Um ensaio sobre apericulosidade da filosofia, de ZeljkoLoparic (Papirus, 1990) e No tempo doniilismo e Outros ensaios, de Benedito Nunes(Ática,1993).

João da PenhaJoão da PenhaJoão da PenhaJoão da PenhaJoão da Penhaautor, dentre outros, de O que é existencialismo

(Brasiliense), Períodos filosóficos e Wittgenstein(ambos pela Ática), além dos inéditos Proust e Bergson:

Aproximações e O marxismo de Sartre

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Cartas para a revista CULT devem ser enviadas para a Lemos Editorial (r. Rui Barbosa, 70, São Paulo, CEP 01326-010). Mensagensvia fax podem ser transmitidas pelo tel. 11/251-4300 e, via correio eletrônico, para o e-mail �[email protected]�.Os textos publicados nesta seção poderão ser resumidos ou publicados parcialmente, sem alteração de conteúdo.

D o l e i t o r C U L T

Guimarães RosaNa última parte de minha resenha, “His-tória, psique e metalinguagem em Gui-marães Rosa” [CULT 43], que tratavado livro O O, de João Adolfo Hansen,faltou importante nota sobre resenha deMarília Librandi (“O O – o livro e aficção da leitura de João Adolfo Han-sen”, revista Magma nº 7, USP, no pre-lo), da qual aproveitei a formulação so-bre a divisão dos capítulos. O leitor dapróxima Magma notará também que asresenhas trazem visão diametralmenteoposta sobre o livro em questão e queuso, nessa inversão de pontos de vista,a idéia da autora de que O O formariao infinito, no entanto, brincando comisso, já que se trata de um dos nomesdo diabo e que, para Hansen, a lingua-gem, demoníaca, gira infinitamentesobre si mesma. Sou contudo (apesardas marcadas diferenças de visão) deve-dora da resenha da autora, que escla-receu linhas de fundo do trabalho docrítico.

Ana Paula PachecoSão Paulo, SP

Nelson Rodrigues &Shakespeare

Resposta do jornalista Fernando Mar-ques à carta do leitor Alexandre Alvespublicada na CULT 42.

Um pouco de polêmica. Em artigosobre Nelson Rodrigues, intitulado “Umteatro hiperbólico”, publicado na CULT41, eu brincava dizendo que, se quere-mos homenagear Nelson, não devemoschamá-lo de “nosso Shakespeare”, jáque “a referência somos nós, deve estardeste lado do Atlântico”. Portanto, di-zia, “o mais lisonjeiro e exato seráadmitir que Shakespeare, vamos evenhamos, é o Nelson Rodrigues dosingleses”. O leitor Alexandre Alvesaceitou a provocação e, emborapercebendo o “evidente tom de brinca-deira”, reagiu em carta publicada naCULT 42, falando em “absurdo quefecha em tom menor um texto que deresto seria excelente”. Obrigado,Alexandre, pelo “excelente”. Situadosos termos, quero dizer o seguinte: aobra de Shakespeare é pelo menos duasvezes mais extensa que a de Nelson, émais rica e variada tematicamente que

a de Nelson e dotada de registros e derecursos formais também mais ricos enumerosos que os utilizados na drama-turgia do brasileiro – se é que faz sen-tido comparar os dois autores. Suspeito,porém, que o que incomodou Alexan-dre Alves não foi o pretenso despropó-sito literário da aproximação bem-hu-morada que tentei fazer, mas o ataque(o beliscão, digamos) a certo provin-cianismo congênito pelo qual estamostodos nós, brasileiros, solidamenteconvictos de que os autores nascidospor aqui, nestes trópicos mal-amanha-dos, jamais se poderão comparar – nemde brincadeira! – aos maiores nomesdo cânone ocidental. Alexandre nãoestá só: pelo menos três amigos meus,que consultei, concordam (divertidoscom a pendenga, é verdade) com ele.Acreditam, portanto, em valoresintocáveis, com os quais é temeráriobrincar. (Três! É quase uma unanimi-dade.) Esse “complexo de vira-lata” émuito nosso, como o samba, a pronti-dão e outras bossas: os franceses nãoficariam chocados caso se comparasseMolière a Shakespeare; os alemães nãotêm pudor em comparar Goethe aShakespeare; portugueses e espanhóisnão se escandalizariam caso se aproxi-masse Gil Vicente ou Calderón do poe-ta inglês. E nós? Nós achamos graçada travessura segundo a qual “Shakes-peare é o Nelson Rodrigues dos ingle-ses”. Ou ficamos indignados com o“absurdo”. Reafirmo, diante de meuscaros zeladores do panteão literário,que Nelson, a meu ver, embora nãotenha a amplitude de Shakespeare, trazpara o debate lítero-teatral aspectosestetica e humanamente vitais que nãose encontram nas peças do inglês nemnas de nenhum outro autor, vivo ou mor-to. A provocação surtiu efeito, era essatambém a minha intenção, está tudocerto, mas repito: Nelson (não só ele,mas é dele que falamos agora) nos des-provincianiza, lançando o texto teatralbrasileiro no mapa-múndi literário coma força de um... de um... Sófocles.

Fernando MarquesBrasília, DF

Autran DouradoAssinar a CULT foi uma decisão mara-vilhosa. Tem sido um prazer me infor-

mar por meio de leituras tão ricas e épor isso que venho solicitar matéria como nosso premiado Autran Dourado.Tenho acompanhado o percurso dessemineiro e foi com satisfação que li anotícia de sua mais recente conquista:o Prêmio Camões de Literatura. Demaneira belíssima o escritor recomendaque se leia, pois quem lê “refaz oscaminhos que a gente traça e disfarça”.Que tal atender a esse pedido?

Lenice PimentelMaceió, AL

Crítica LiteráriaA crítica literária em nosso pobre e ricoBrasil divide-se em duas grandescorrentes: (i) os cegos, voltados para opróprio umbigo, confundindo literaturacom a “merda” da comunicação demassa ou os mass-media; e (ii) aquelesque têm “olhos de ver”: CULT, Medusa,Cigarra, Inimigo Rumor, O Carioca,Babel, O Pão... são as revistas que nasolidão da Mega-Ló-Polis, orientam aviagem do Leitor, Autor/ Criador.

Pedrinho RenziAraraquara, SP

Ernst JandlParabéns pelo ótimo artigo/biografiasobre o poeta Ernst Jandl, publicado naCULT 42. Sou assinante da mesma egostaria de solicitar uma “luz” sobre apoesia visual/experimental (atual) doBrasil (lembrem do Nordeste tam-bém!!!).

Avelino de Araujopor e-mail

Londres LiteráriaGostei muito do texto O palco daanarquia, de Marcello Rollemberg,publicado na seção “Turismo Literário”da CULT 42. Porém, não pude acreditarna omissão da fascinante Poetry Libraryno South Bank Centre. Quero preencheressa omissão com uma sugestão devisita à ótima biblioteca da poesia que,além dos livros, tem um acervo rico deáudio e vídeo. Ao visitar Londres,assista a um vídeo na Poetry Library!!!Imperdível!

Laurita Caldaspor e-mail