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Cultura, comunicação e mídia Profa. Maria Bernardete Toneto Aula 2 - O que é Cultura / Etnocentrismo e Relativismo Cultural / Identidades e Diferenças Ponto de partida De qual conceito de cultura se trata? O ponto de partida será o conceito formulado por Edward Tylor (18711958) que parte do pressuposto de que a cultura representa um conjunto de aspectos que inclui conhecimentos, crenças, artes, normas, valores, costumes e demais hábitos e capacidades adquiridas pelos seres humanos nas relações estabelecidas como seres sociais. Para operar e circular no campo cultural, o ser humano produz uma linguagem simbólica que lhe permite interatividade. Para produzir cultura, o homem precisa da linguagem simbólica. Os símbolos são invenções humanas por meio das quais o homem pode lidar abstratamente com o mundo que o cerca. Com a linguagem simbólica o homem não está apenas presente no mundo, mas é capaz de “representá-lo”: isto é, o homem torna presente aquilo que está ausente. A linguagem introduz o homem no tempo, porque permite que ele relembre o passado e antecipe o futuro pelo pensamento. A palavra cultura deriva da natureza: çavoura cultivo agrícola, o que cresce naturalmente; Raiz latina colere (cultivar, habitar/adorar, proteger) Culter (latim) = coulter (inglês) relha do arado Ou seja, cultura está ligada à noção de atividade, trabalho. Mas há uma dicotomia no termo. A mesma origem linguística tem duas ramificações: colonus (habitar, ocupar, invadir) X cultus (culto, adoração ao transcendente). No início, o conceito de cultura designava um processo completamente material, que depois foi sendo incorporado a questões do espírito. Pela mudança no sentido da palavra é possível perceber a mudança histórica: do rural para o urbano; da atividade laborial primária à representação de Picasso; de arar a terra ao pensamento que leva à ideia da divisão do átomo. Para pensar: quem é culto? Aquele que cultiva a terra ou aquele que se dedica ao estudo? Raymond Willians (1982) apresenta três sentidos da palavra cultura: 1. Da raiz do trabalho rural, significa algo como civilidade.

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Page 1: Cultura, comunicação e mídia Profa. Maria Bernardete ... · PDF fileA cena instaura a trama da identidade e da alteridade. Ou seja, sentimento de pertença, reconhecimento dos outros

Cultura, comunicação e mídia

Profa. Maria Bernardete Toneto

Aula 2 - O que é Cultura / Etnocentrismo e Relativismo Cultural / Identidades e

Diferenças

Ponto de partida

De qual conceito de cultura se trata? O ponto de partida será o conceito formulado por

Edward Tylor (1871–1958) que parte do pressuposto de que a cultura representa um

conjunto de aspectos que inclui conhecimentos, crenças, artes, normas, valores,

costumes e demais hábitos e capacidades adquiridas pelos seres humanos nas

relações estabelecidas como seres sociais.

Para operar e circular no campo cultural, o ser humano produz uma linguagem

simbólica que lhe permite interatividade. Para produzir cultura, o homem precisa da

linguagem simbólica. Os símbolos são invenções humanas por meio das quais o

homem pode lidar abstratamente com o mundo que o cerca.

Com a linguagem simbólica o homem não está apenas presente no mundo, mas é

capaz de “representá-lo”: isto é, o homem torna presente aquilo que está ausente. A

linguagem introduz o homem no tempo, porque permite que ele relembre o passado e

antecipe o futuro pelo pensamento.

A palavra cultura deriva da natureza: çavoura – cultivo agrícola, o que cresce

naturalmente;

Raiz latina – colere – (cultivar, habitar/adorar, proteger)

Culter (latim) = coulter (inglês) – relha do arado

Ou seja, cultura está ligada à noção de atividade, trabalho.

Mas há uma dicotomia no termo. A mesma origem linguística tem duas ramificações:

colonus (habitar, ocupar, invadir) X cultus (culto, adoração ao transcendente).

No início, o conceito de cultura designava um processo completamente material, que

depois foi sendo incorporado a questões do espírito. Pela mudança no sentido da

palavra é possível perceber a mudança histórica: do rural para o urbano; da atividade

laborial primária à representação de Picasso; de arar a terra ao pensamento que leva

à ideia da divisão do átomo.

Para pensar: quem é culto? Aquele que cultiva a terra ou aquele que se dedica ao

estudo?

Raymond Willians (1982) apresenta três sentidos da palavra cultura:

1. Da raiz do trabalho rural, significa algo como civilidade.

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2. No século XVIII, no cenário do Iluminismo, em que se verifica o culto do

autodesenvolvimento secular e progressivo, cultura se torna sinônimo de civilização,

no sentido de um processo geral de progresso intelectual, espiritual e material.

Esta ideia de civilização, que nasceu na Europa, está ligada aos costumes e moral,

conduta polida e comportamento ético: não cuspir no tapete ou não decapitar

prisioneiros têm a mesma dimensão de civilização.

Na França, civilização implica vida política, econômica e técnica – dimensão da

sociedade.

Na Alemanha, a ideia de civilização ganha dimensão religiosa, artística e intelectual –

dimensão individual e grupal. Neste aspecto, a civilização minimiza diferenças

nacionais e a cultura as realça.

Até o século XIX, o conceito de cultura está ligado à classe média refinada pré

industrial. Não basta ter cultura, é preciso ser reconhecido por isso, para não ser

confundido com os trabalhadores/agricultores. Mas a Revolução Industrial mexe nesta

ideia. Neste período explode o conflito porque cultura está relacionada a civilização, e

o período da revolução industrial foi o da não civilização, de degradação do

trabalhadores, do fim dos direitos, da exploração humana.

3. Do Iluminismo (universalista) ao Idealismo alemão: conflito entre o eurocentrismo de

uma cultura como civilização universal e o reconhecimento da diversidade de formas

de vida específicas, cada uma com suas leis evolutivas próprias e peculiares. Daí

nasce a ideia de cultura como modo de vida característico, mas ligado ao pendor

romântico colonialista por sociedades exóticas subjulgadas. Ou seja, há o

reconhecimento de que os pobres, as classes subalternas são sujeitos culturais, mas

da chamada cultura popular, exótica, em contraposição à cultura de elite e das belas

artes. No século XX a a ideia do exotismo ressurge no modernismo e na moderna

antropologia cultural, e posteriormente no culto da cultura popular.

Cultura e arte

Raymond Willians também aponta o sentido de cultura associada à expressão

artística. Neste conceito, cultura está ligada à atividade intelectual (cientistas, filósofos,

pensadores) ou a atividades imaginativas (pintura, música, literatura, teatro). Ou seja,

restrita a pequena porção de pessoas dotadas de talento ou de formação específica,

traduzida em obras que devem circular. Este é o conceito de cultura como espetáculo,

a ser passivamente recebido, tendo o sentido de lazer e entretenimento.

Etnocentrismo

Podemos perceber que o sufixo “centrismo” destaca algo como central, a partir de

uma determinada perspectiva. O radical “etn(o)”, por sua vez, corresponde à cultura.

Unindo “etno” e “centrismo”, temos uma cultura que está no centro. Trata-se de uma

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perspectiva de compreensão da diversidade que coloca uma cultura no centro para a

compreensão do universo plural.

O conceito de “etnocentrismo” parte de uma lógica de interpretar as diferenças

culturais humanas, estabelecendo critérios de superioridade e inferioridade para a

classificação dos povos. A questão central é a estranheza que se estabelece com o

encontro de duas ou mais referências culturais. O etnocentrismo se afirma quando há

algum choque entre os “diferentes”; nesse contexto, surgem as ideias de “meu grupo”

e de “grupo do outro” e a definição de categorias hierárquicas. Normalmente, o “meu

grupo” é visto como o melhor, o superior, enquanto os outros são vistos como

menores, inferiores.

Para pensar: qual é a referência para considerar algo ou alguma cultura "diferente"?

Nós somos "diferentes" para quem ou para que?

A leitura etnocêntrica tem base nos processos históricos que pressupõem a

justificativa para a dominação de um povo em relação a outro. Assim, por exemplo,

encontra-se legitimidade para o discurso a ação eurocêntrica na colonização da

América, da África e da Ásia. Também, com muita ênfase, o etnocentrismo está

presente no imperialismo nazista alemão. A doutrina do sangue azul é a principal

referência.

Relativismo cultural

Contrapõe-se ao Etnocentrismo;

Cada manifestação cultural é compreendida como uma dimensão própria de

significação. O que tem valor em um grupo ou uma comunidade ganha sentido dentro

de uma lógica interna. As normas de comportamento e os valores de um determinado

grupo são resultantes de um processo histórico que abrange espaço, tempo, indivíduo

e sociedade.

Não se pode eleger uma forma cultural específica como referência de um padrão de

comportamento humano. Os sentidos das práticas culturais devem ser legitimados em

uma ordem interna que congrega o grupo.

Identidade

A dinâmica da relação entre como nos vemos e como somos vistos, os processos de

reconhecimento individual e social compõem a nossa identidade. Mas também

olhamos o outro. Vivemos no espelho da interação social, no campo da alteridade.

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A trama social construída entre os movimentos de ver, ser e ser visto modela a teoria

do reconhecimento. Os olhares, entretanto, têm significados e se colocam em uma

territorialidade de poder.

Diversos elementos, conjugados ou não, são traços para a definição de identidades:

origem, geração, etnia, raça, gênero, orientação sexual, posição econômica, religião

etc. Nesse universo, nós nos sentimos, percebemos o outro e somos percebidos.

A cena instaura a trama da identidade e da alteridade. Ou seja, sentimento de

pertença, reconhecimento dos outros e percepção pelos outros. Assim, a afirmação de

identidade é uma dimensão de cultura essencial ao pertencimento do sujeito ou grupo

a um lugar. A ausência ou a negação de reconhecimento é um mecanismo de

dominação desencadeador de desigualdades. Possuir identidade significa existir, com

poder e visibilidade distintivos.