DA TELA À INTERVENÇÃO URBANA NO PARANÁ E EM … · 1 Escola de Música e Belas Artes do Paraná...

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ISSN 1809-2616 ANAIS IV FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006 DA TELA À INTERVENÇÃO URBANA NO PARANÁ E EM SANTA CATARINA LETÍCIA MARQUEZ, VÁLVULAS SOLTAS DA CRIAÇÃO Maria José Justino 1 [email protected] Resumo: O experimentalismo da arte contemporânea vem provocando uma desmesurada abertura no campo das artes visuais. Nem todos os artistas saem ilesos a essa avalanche. No meio deste furacão, surge a obra de Letícia Marquez como uma linguagem herdeira dessas mudanças e, ao mesmo tempo, propositora de uma poética singular. Este artigo analisa a trajetória da artista, abordando fases do seu trabalho – da pintura às instalações –, situando-a como uma das mais criativas linguagens da arte brasileira. Palavras-chave: Letícia Márquez; Artes visuais; Instalações. "Tem sido meu ofício imantar, transformar e penetrar na matéria para recriar estes fragmentos internos na seqüência e forma com que emergem – até senti-los vivos e fora do meu corpo". 2 É desse modo que Letícia Marquez fala do seu processo criativo. Mineira, residente há anos no norte do Paraná, onde se fez artista e mestra de tantos outros, guarda ainda aquele gostoso sotaque regional que conversa com a sutileza e a sofisticação de suas obras. Fora da exigência, por vezes perversa, de um caminho único na arte contemporânea, ela investe em uma terceira via, desconstruindo o instituído, fustigando a ordem vigente. Em um sistema dominado pela arte propositiva ou pela busca da expressão mínima, entre o engajamento da arte e o esmero da forma, a obra de Letícia é um oásis. Válvulas soltas da criação. De lambujem, a artista preserva 1 Escola de Música e Belas Artes do Paraná – Professora. UFPR – Professora. Crítica de Arte, pesquisadora dobre a Arte Paranaense e Brasileira. 2 MARQUEZ, Letícia. Entrevista concedida a Maria José Justino, em Curitiba, 13 ago. 1999. 100

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ISSN 1809-2616

ANAISIV FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTEEscola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006

DA TELA À INTERVENÇÃO URBANA NOPARANÁ E EM SANTA CATARINA

LETÍCIA MARQUEZ, VÁLVULAS SOLTAS DA CRIAÇÃOMaria José Justino1

[email protected]

Resumo: O experimentalismo da arte contemporânea vem provocando uma desmesurada abertura no campo das artes visuais. Nem todos os artistas saem ilesos a essa avalanche. No meio deste furacão, surge a obra de Letícia Marquez como uma linguagem herdeira dessas mudanças e, ao mesmo tempo, propositora de uma poética singular. Este artigo analisa a trajetória da artista, abordando fases do seu trabalho – da pintura às instalações –, situando-a como uma das mais criativas linguagens da arte brasileira. Palavras-chave: Letícia Márquez; Artes visuais; Instalações.

"Tem sido meu ofício imantar, transformar e penetrar na matéria para recriar

estes fragmentos internos na seqüência e forma com que emergem – até senti-los

vivos e fora do meu corpo".2 É desse modo que Letícia Marquez fala do seu processo

criativo. Mineira, residente há anos no norte do Paraná, onde se fez artista e mestra de

tantos outros, guarda ainda aquele gostoso sotaque regional que conversa com a

sutileza e a sofisticação de suas obras.

Fora da exigência, por vezes perversa, de um caminho único na arte

contemporânea, ela investe em uma terceira via, desconstruindo o instituído,

fustigando a ordem vigente. Em um sistema dominado pela arte propositiva ou pela

busca da expressão mínima, entre o engajamento da arte e o esmero da forma, a obra

de Letícia é um oásis. Válvulas soltas da criação. De lambujem, a artista preserva 1 Escola de Música e Belas Artes do Paraná – Professora. UFPR – Professora. Crítica de Arte, pesquisadora dobre a Arte Paranaense e Brasileira.2 MARQUEZ, Letícia. Entrevista concedida a Maria José Justino, em Curitiba, 13 ago. 1999.

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valores transitórios-eternos: a emoção estética, o prazer da mão que forma, a alegria

da invenção, transgredindo as normas e correndo os riscos da marginalidade, pagando

o preço da não-comercialidade.

Falar dessa artista é uma tarefa das mais agradáveis. Quando vi a obra de

Antonio Gaudí em Barcelona, extasiei-me. É quase impossível traduzir em palavras as

sensações experimentadas. Foi um verdadeiro deslumbramento. Bebi Gaudí durante

seis dias ininterruptos. Havia nele um espaço milimétrico e desafiador entre a

genialidade e o kitsch, vencendo o gênio. Materiais os mais diversos possíveis (ferro,

tijolos, pedras, fragmentos de azulejos, madeira, cores e uma infinidade de outras

energias, tudo o que se possa imaginar) ganham nele ordem e comunhão, tornando

parceiros os inconciliáveis. Gaudí estrutura a fantasia, materializa o devaneio, com

resoluções desafiadoras e perfeitas.

Esse mesmo sentimento experimentei no meu primeiro encontro com o

trabalho de Letícia Marquez, em seu ateliê em Londrina. É um elogio à loucura: a

convivência de pinturas, esculturas e tantos outros objetos e tralhas, chegando às

instalações, em meio a que não tem sentido perguntar se se trata de vanguarda ou

kitsch. É um espaço generoso, onde tudo conversa sem preconceitos, numa afirmação

do princípio da vida. Um mundo delirante, sem nenhuma censura a materiais, formas,

linguagens e valores. É um convite a esquecer as formas aprendidas, o bom ou mau-

gosto, mesmo que sobressaia a inclinação surrealista nessa neo-expressionista

contemporânea.

Gaudí, o gênio-arquiteto. Letícia, a desestruturadora, a anarquista da ordem

artística paranaense. Arte bruta, espontânea, individual, estranha, enigmática. Um

pulsar da natureza. Entre olho e espírito, as sensações. Contraditória? Certamente, e

nisso reside a riqueza de sua obra. Tudo troca de sentido, permeia, brinca, provoca e

assusta.

Trata-se de uma artista que não se importa com classificações. À margem da

exigência, por vezes perversa, da coerência na arte, ela investe em várias frentes. Sem

medo de errar, abre o destampatório da criação. Na pintura encontra a espontaneidade

gestual tantas vezes perseguida por Matisse e Klee. Para Matisse, ver já é um ato

criador.

Tudo o que vemos, na vida cotidiana, sofre, mais ou menos, a deformação gerada pelos hábitos adquiridos e isso é mais sensível em uma época como a nossa, onde cinema, publicidade e periódicos nos inundam diariamente com imagens preconcebidas, que são um pouco, na ordem da visão, o que é o preconceito na ordem da inteligência. O esforço

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necessário para desembaraçar-se disso exige uma espécie de coragem: e essa coragem é indispensável ao artista que deve ver tudo como se visse pela primeira vez; é preciso ver a vida inteira como quando se era criança.3

Nas esculturas-objetos, e hoje instalações, essa espontaneidade dialoga com

um estranhamento, ocasião em que a artista explora uma reflexão sobre a vida e a

morte. O arrebatamento pelas emoções, em alguns momentos, a sedução pela

interrogação e pelos mistérios, em outros, resulta em fantasia delirante, quase barroca.

Nem sempre ela consegue o equilíbrio na conjugação entre diurno e noturno.

Prevalece o noturno, as profundezas. Dionísio é o carro forte, impulso criador, princípio

da dor, do prazer e da vida, subversivo, porta à pulsão e ao mito.

De onde vem tanta energia? Vem da infância vivida em Minas, terra de tantos

mistérios. Vem do pai serralheiro, talentoso designer sem diploma. Vem da avó

paterna, vó Cesira, costureira de mão cheia, que veio da Áustria. Com ela aprendeu o

traço-alinhavo (visível em Dama de Honra e Fonte dos Desejos) e a anatomia, nas

brincadeiras da infância singela que incluíam rasgar bonecas. Vem também da avó

mineira, de quem herdou o aprendizado da cor, o sabor da matéria nos doces do fogão

à lenha. Da mãe ficou a marca de mulher-tudo-a-tempo-e-hora-e-no-lugar-certo.

Disciplina.

Mas tem também a vivência da moderna Londrina, terra paranaense que

acolheu gente de tantos lugares, permitindo o cruzamento das diversas culturas, o

convívio das diferenças. Estranhos arquétipos: a tradição mineira com a coragem

desbravadora dos povos novos, a fragilidade e a doçura da costura com a força do

parafuso e do aço (influência do pai). E no meio de tudo, o deslumbramento com as

cores. A cor de Minas, dos sonhos, dos mitos, e a cor vermelha, tropical e terrena de

Londrina. Até nas esculturas a artista não abre mão da cor. Ela é o seu élan vital, como

o entendia Bergson. A consciência da artista penetra a matéria e a estrutura com a cor,

realizando nesta o mundo orgânico. Mesmo quando usa a cor natural dos materiais –

ferro, madeira, aço, penas, cabelos –, a artista parece reinventar texturas e cor,

extraindo da natureza a beleza profunda, sugada das ruínas.

Ainda menina, muito cedo experimentou, nas vivências e no prazer de

acompanhar de perto o trabalho do pai, o encontro com o desconhecido – de acesso

proibido; com o interdito; com os mistérios, as verdades veladas que devem ser

mantidas secretas; sua primeira aproximação com a morte (avós). No não-

entendimento, em idade da inocência, o desafio de compreender a criação e a morte.

3 MATISSE, Henri. Ecrits et Propos sur L’Art. Paris: Hermann, 1972. p. 321.

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Mais tarde, a obra da artista passa a ser um diálogo profundo com a tradição. Letícia

torna-se quase prisioneira dela, tanto na esfera dos valores como nas opções das

linguagens. Mas uma tradição feita de rupturas. Trocando de pele como as cobras, a

artista parte da pintura, da escultura, do desenho, enfim, das formas tradicionais da

arte, para chegar ao objeto, às instalações e ao design e, novamente, refazer o

movimento cíclico. Um eterno retorno à pintura e à escultura, nunca totalmente

abandonadas. Cor, traço, luz, matéria e muita sensibilidade. Em todos os campos

impõe uma singularidade assustadora, que não se confunde com nenhum outro artista,

senão consigo mesma. Mesmo que nela se veja a presença de Picasso, trata-se tão

somente de admiração... Seu universo é outro.

Pintora, escultora, designer, decoradora, animadora cultural, professora, acima

de tudo inventora, Letícia Marquez parece contrariar as regras de seu tempo dizendo

um não categórico à especialização. É uma artista da ambigüidade, forte, bricoleur,

lúdica, erótica, profundamente simbólica, seduzida pelos números, pela energia

espiritual, do mesmo modo que se inclina a desvendar a matéria. Em alguns

momentos, entrega-se à atração pelos números (cabalística?), pelo quatro, o quadrado

perfeito, simbologia do universo, a busca de uma lógica para o caos: os Quatro

Guardiões. A incursão pela aventura das instalações – tanto a sua primeira instalação,

a capelinha dos irmãos maristas (Capela do Juvenato Marcelino Champagnat), em

Londrina, 1991, como a seqüência das pinturas sobre o Apocalipse expostas no Salão

de Arte Contemporânea (Picacicaba) e no MAC/PR (1992) – permitiu-lhe uma viagem

enriquecedora pelo profano e pelo religioso.

Letícia Marquez “Capela”, 1991. 10 m diâ. X 3,33 m alt.

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As gigantescas pinturas do Apocalipse (33 ao todo), encontro marcado com o

visceral, estruturas internas abrindo o céu, unhando a tela, rasgando, continuam nos

provocando fascínio e pavor. Alegorias incompreensíveis e provocadoras. A natureza

se abrindo em espírito e matéria; os conflitos se materializando: trombetas do juízo final

ou berrantes dos boiadeiros tangendo gado? A sedução pela magia dos números, pela

expansão universal – madeira, pedra, ferro, alumínio, malha de aço, bronze, prótese de

resina, penas naturais, elementos que se cruzam para permitir ao universo pulsar. O

sexto decênio, o seis da besta, dos inocentes inúteis soltos entre o céu e o inferno.

Sempre visível na obra de Letícia a vigília eterna entre o presente e as lembranças

vividas, sem tempo determinado, as sensações, evocações de imagens, os cheiros, os

ambientes, as emoções à espera da outra vigília, a do espectador, que poderá tudo

inverter, trazer outros significados, outros sentidos. Os 39 ossos de aço, coluna de

dinossauro. A química dos anjos – seres diáfanos entre céu e terra. No mistério da

matéria, a revelação do espírito, o sentido nascente.

Em outra ocasião, na exposição feita em Londrina em 1998, que batizou de

Limbo – lugar onde vagueiam as crianças inocentes que não foram livradas do pecado

original por meio do batismo –, a artista translada o limbo para aqui mesmo na Terra,

onde vagueiam todas as criaturas transgressoras, errando em busca de sentido –

promessa de salvação. Limbo também é o lugar onde jogamos todas as coisas inúteis

ou os perdidos dos quais não conseguimos nos livrar. Essa exposição é quase toda

ainda na linguagem da pintura, mas em que Letícia exercita a sua passagem para o

objeto, com elementos que saltam fora dos quadros para se constituírem em objetos,

buscando instalar-se no espaço tridimensional.

Letícia retira do esquecimento (limbo) ou do inconsciente coletivo toda a sua

imagística: pedaços humanos, agulheiro, parafusos, seios, meias, escadas, rodas,

piranhas, mesas, corpetes, triângulos, cornos, totens. As pinturas contidas na

bidimensionalidade ficam ainda mais estranhas conversando com pequenos objetos

soltos no espaço – piranhas, canelas de frango, agulheiros, escada, elementos da

natureza ou do imaginário –, transformando o ambiente em uma instalação, onde tudo

conversa sem fronteiras, sem limites. Em Commodu Incommodu, uma estranha

simbiose de mulher-macaco (símbolo da fertilidade) convive com uma massa disforme

(macho?), lembrando a decomposição de Francis Bacon, a crucificação da carne e a

deterioração da matéria. Em Fonte dos Desejos, os pierrôs e colombinas barrocos

contrastam com a dureza geométrica da casa-cubo, com janelas e setas – lugar da

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transgressão, do pecado e da penitência. E a água, feita em respingos, sugere a

purificação dos pecadores – um rio de água viva resplandecente como cristal

(Apocalipse) –, mas também os alinhavos da vó Cesira. Ou seja, o sagrado dialoga

com o profano.

Em outras obras, a artista volta-se à Morte, deusa implacável. São fragmentos

de corpos divididos, ora humanos, ora animais, como Roda dos Ventos e Peito de

Pombo. Nas referências pessoais, Letícia carrega o profano, nunca superando sua

inclinação pelo sagrado, que ela encontra na compreensão religiosa de Deus como

natureza do mundo, na visão dos objetos e animais como almas materializadas. O

maravilhoso dos surrealistas em Peito de Pombo, Frango D'Água e Roda dos Ventos

convive com a ingenuidade de Abra Cadabra e a intrigante Semitom, que contrasta a

pirâmide com uma menina solitária e dois cachorros.

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Mistério em alguns momentos, transparência em tantos outros. Necessidade

inconsciente do passado e consciência excessiva do presente. Pedaços, cortes,

fragmentos – dividir para juntar –, sempre obedecendo a uma espécie de força cega,

reminiscência da infância em Minas – tempo de espera e fantasia –, quando a artista

brincava com arruelas ou com um joguinho chamado mac-bras (uma espécie de Lego),

e ouvia estórias assombrosas, baseadas nas crenças antropomórficas, povoada de

caraças.

E tinha o outro lado, sempre o contraste entre diurno e noturno: a natureza, o

rio, a pesca, os pássaros, as arapongas (curiosamente, seu canto imita as pancadas

do ferreiro na bigorna, o martelar constante do trabalho do pai), o grito da seriema,

comedor de bagas e lagartos: "Nem cobra escapa do bico da fera",4 diz a artista. O

mesmo pode ser dito de Letícia: nada escapa de sua fúria criativa. Entre Pró-fecias Pó-

éticas (MAC-PR, 1999) e Transgênesis (Telecom, Curitiba, 2002), a artista nos introduz

em ambientes fascinantes.

4 MARQUEZ, Letícia. Entrevista concedida a Maria José Justino, em Curitiba, 13 ago. 1999.

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Letícia Marquez “Transgênesis”, 2002.

De um azul anil distante, onde três anjos guardam uma grande esfera de

alumínio, um universo frio, viajamos para o calor de um vermelho intenso nutrido pelo

fogo. Nessa última instalação, em requintada elaboração, um sistema cosmogônico é

formado por objetos suspensos no ar (partes humanas, animais e pedaços de

máquinas), situados em um tempo real (velas que se consomem), num espaço todo

vermelho. Esse clima é obtido na conjugação dos objetos com uma interação entre cor

vermelha, luz vermelha, fogo e som. Entrar nessa instalação (penetrável) é mergulhar

num campo perceptual, em uma rede de presença e ausência, num lugar propício aos

devaneios.

Hoje seu trabalho se concentra fundamentalmente nos objetos (com forte

sustentação na escultura, pois muitos deles são moldados pela mão), em meio a

recursos os mais inusitados possíveis. Continua recorrendo a todo tipo de material –

pigmentos, ferro, madeira, cabelos, fitas de seda, resina, alumínio, silicone, massa

universal, gesso pedra –, para criar instigantes instalações.

Os últimos trabalhos (instalações na CAM, artista convidada na 7ª Mostra João

Turin, Curitiba, 2005) são perturbadores. A artista continua extraindo da matéria a

beleza subterrânea, a alquimia que permite o devaneio da criação. Em todas as três

instalações, encontramos sombras de mulheres. Pode-se falar em uma espécie de

maturação da colheita, como nos antigos rituais mágicos. A mulher, recorrente em

muitas obras de Marquez, vivencia o paradoxo entre a racionalidade que almeja e a

sensibilidade a que é relegada. Ela, mulher e artista, anseia pelo equilíbrio. Seus

delírios equivalem a seus demônios. Por isso mesmo, suas mulheres nos olham em

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silêncio (quase sempre de olhos fechados, pois falam do interior, da alma). Externam

em prosa muda uma fala urdida na resistência, expondo as relações partidas que

precisam se recompor.

A obra Andor – sete cabeças femininas degoladas, sete pecados capitais –

repousa no roxo, a cor cristã da elevação (onde se carrega o santo – o andor –

carrega-se a dor), num diálogo com o vermelho do Cabo de Guerra. Nesta, forças

opostas tramam uma tensão, gerando energias que instigam a ruptura do cordão

umbilical que deve ser rompido, para, na explosão do sangue, festejar a renovação

cósmica.

Essas cabeças sofridas interagem com a cabeça presente na obra de outra

artista, Chueng, reminiscência da mulher oriental oprimida, desespero surdo que busca

o equilíbrio das emoções no branco e preto, agora cortado pela luz amarela, o calor do

sol, a revigoração. A mulher é um ser privilegiado da criação, pois é nela que a espécie

se renova. A felicidade bestializa, só o sofrimento humaniza as pessoas, disse nosso

Mário Quintana.5 Marquez trabalha nessa dimensão, na matéria da dor, mas recusa o

niilismo na arte do mesmo modo que recusa todo pessimismo humano.

Letícia Marquez “Cheung”, 2005

Letícia é uma artista forte, seduzida pela energia espiritual e pelas

transcendências, em que o tempo pessoal e histórico não abole o mítico. Misteriosa em

5 QUINTANA, Mário. Diário Poético. Rio de Janeiro: Globo, 1987. s.p.

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alguns momentos, transparente em tantos outros, tece sua obra recorrendo ao

inconsciente do passado e à consciência corporal do presente. Realiza esse feito por

meio de uma linguagem fortemente expressionista com interferências do fantástico.

Como os surrealistas, busca a beleza convulsiva, superando a soleira da normalidade

e permitindo a expansão da imaginação em viagens por regiões escondidas, recônditos

da criação. Sua obra é um teatro de provocações. Breton ficaria maravilhado com esse

mundo por demais real que desafia o fantástico. A obra de Letícia é o eterno jogo entre

presença e ausência, visível e invisível, pluralidade de mundos, lugar de todas as

impurezas da invenção.

Ela continua sua saga pelo fantástico, com imagens que nos fazem um convite

a percorrer um labirinto simbólico, onde o monstro verte-se em fenômenos

surpreendentes. A condição é a do espectador perder-se na riqueza dessas

provocações, ora fisgado pela racionalidade, ora arrebatado pelo mistério, no eterno

jogo entre o diurno e o noturno. É dessa intimidade que germina um mundo de

ambigüidades, o extraordinário, o maravilhoso, o insensato, onde o insólito a tudo

invade; uma arte singular, enigmática, em estado de vigília, que se oferece como porta

de entrada a experiências mais profundas. Entre o olho e o espírito, Marquez desenrola

os fios da criação, fazendo gritar a sensibilidade. É sempre temerário adentrar nas

águas dessa artista, mas vale a pena correr os riscos.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar. São Paulo: DIFEL, 1986.

MARQUEZ, Letícia. Entrevista concedida a Maria José Justino, em Curitiba, 13 ago. 1999.

MARQUES, Letícia. Disponível em: <www.leticiamarquez.pop.com.br>. Acesso em 20 set. 2005.

MATISSE, Henri. Ecrits et Propos sur L’Art. Paris: Hermann, 1972.

QUINTANA, Mário. Diário Poético. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

7ª. Mostra João Turim de Arte Tridimensional. Casa Andrade Muricy, Secretaria de Estado da Cultura. Curitiba, set. 2005. Catálogo.

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