De Solar da Marquesa de Santos a Museu do Primeiro Reinado*

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CAPITULO 13 De Solar da Marquesa de Santos a Museu do Primeiro Reinado* Marieta de Moraes Feeira· Nayara Galena da Vale*** A prop nora o Projeto Pronex it e Cidadania é algumas intervenções urbanas que tiveram lugar no Rio de Janeiro, aqui entendi- das como ações que articuiaram o uso de memórias da cidade e seu patrimô- nio cultural, visando influenciar na sedimentação de determinadas identidades políticas. Especificamente, nosso propósito neste capítulo é, à luz da trajetória do Museu do Primeiro Reinado, destacar a existência de estratégias de reinvenção e reelaboração de memórias sobre o território carioca. O edicio que hoje abriga o Museu do Primeiro Reinado foi construído no início do século para servir de residência à marquesa de Santos, an- te de d. Pedro I, vindo a ter diferentes usos ao longo dos anos. Em 1961, pouco menos de um ano após a criação do estado da Guanabara, O prédio foi desa- propriado com a finalidade de abrigar o projeto de criação do museu. Lançar o Museu do Preiro Reinado, naquele momento, fazia parte de uma estratégia política ampla de revitalização do território carioca, levada a efeito pelo então goveador da Guanabara, Carlos Lacerda (1960-65), com vistas a reatualizar o status da região como capital cultural do ps. Contudo, o projeto não chegaria a se concretizar. Conjuntura igualmente importante de reelaboração das memórias po- líticas brasileiras e deíção do lugar da cidade do Rio de Janeiro nessas re- presentações foram as comemorações dos 150 anos da dependência do Brasil, . Este abalho contou com a colaboração da bolsista de iniciação científica Amanda Gouveia . . Doutora em história do Brasil pela F Professora do Departamento de História da RJ e pesquisadora do Cpdoc/FCV. , Graduanda em história pela U e bolsista de iniciação entífica no Cpdoc/FGV. I

Transcript of De Solar da Marquesa de Santos a Museu do Primeiro Reinado*

CAPITULO 13

De Solar da Marquesa de Santos a Museu

do Primeiro Reinado*

Marieta de Moraes Ferreira"'·

Nayara Galena da Vale***

A proposta que norteia o Projeto Pronex Direitos e Cidadania é analisar algumas

intervenções urbanas que tiveram lugar no Rio de Janeiro, aqui entendi­

das como ações que articuiaram o uso de memórias da cidade e seu patrimô­

nio cultural, visando influenciar na sedimentação de determinadas identidades

políticas. Especificamente, nosso propósito neste capítulo é, à luz da trajetória

do Museu do Primeiro Reinado, destacar a existência de estratégias de

reinvenção e reelaboração de memórias sobre o território carioca.

O edifício que hoje abriga o Museu do Primeiro Reinado foi construído

no início do século XIX para servir de residência à marquesa de Santos, aman­

te de d. Pedro I, vindo a ter diferentes usos ao longo dos anos. Em 1961, pouco

menos de um ano após a criação do estado da Guanabara, O prédio foi desa­

propriado com a finalidade de abrigar o projeto de criação do museu.

Lançar o Museu do Primeiro Reinado, naquele momento, fazia parte

de uma estratégia política ampla de revitalização do território carioca, levada

a efeito pelo então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (1960-65), com

vistas a reatualizar o status da região como capital cultural do país. Contudo,

o projeto não chegaria a se concretizar.

Conjuntura igualmente importante de reelaboração das memórias po­

líticas brasileiras e definíção do lugar da cidade do Rio de Janeiro nessas re­

presentações foram as comemorações dos 150 anos da Independência do Brasil,

... Este trabalho contou com a colaboração da bolsista de iniciação científica Amanda Gouveia .

... Doutora em história do Brasil pela UFF. Professora do Departamento de História da UFRJ e

pesquisadora do Cpdoc/FCV.

It,.,. Graduanda em história pela UFRJ e bolsista de iniciação científica no Cpdoc/FGV.

I

mbacha
Caixa de texto
FERREIRA, Marieta de Moraes. De solar Marquesa de Santos a Museu do Primeiro Reinado. In: GOMES, A. C. (Coord.). Direitos e cidadania. Rio de Janeiro: FGV, 2007. cap. 13, p. 295 - 320.

296 · D I R EITOS E C I DADANIA

em 1972. O projeto de criação do Museu do Primeiro Reinado novamente vol­taria à cena, dessa vez com o objetivo de homenagear o nosso primeiro impe­rador e, ao mesmo tempo, destacar a forte ligação entre a cidade do Rio/

estado da Guanabara e essa memória da nação.

Em 1975, pela terceira vez a idéia de edificar o Museu do Primeiro Rei­

nado ganharia densidade. O marco histórico era a fusão entre a Guanabara e

o antigo estado do Rio de Janeiro, quando estava em jogo redefinir a identida­de e a memória do novo estado que nascia.

Este capítulo procura demonstrar que os projetos museológicos encer­

ram estratégias de construção de memórias e redefinição de identidades, e

que tais estratégias articulam disputas políticas e usos do passado.

A criação do estado da Guanabara e a política cultural de Lacerda:

reinventando a memória do Rio

Com a mudança da capital federal para Brasília, em 21 de abril de 1960, a cidade do Rio de Janeiro passa a constituir o estado da Guanabara, uma cida­

de-estado, a única no Brasil.

Esse evento marcante, é preciso lembrar, trouxe conseqüências signifi­cativas para a história da cidade carioca, uma vez que o recém-criado estado

possuía uma trajetória muito particular. Capital do Brasil Colônia desde 1763,

sede da Corte portuguesa desde 1808, do governo imperial desde 1822 e capi­

tal da República a partir de 1889, durante muito tempo o Rio foi o principal palco e a caixa de ressonância dos empreendimentos culturais, científicos e

políticos do país. Em decorrência disso, e através da história, viria a ser iden­

tificado como "um espaço fundamentalmente nacional", no qual políticos das

mais variadas procedências, "independentemente de onde anteriormente vi­vessem ej ou atuassem politicamente''} se destacariam como porta-vozes de questões de interesse geral da nação.

Como centro do poder político nacional, o Rio era também a capital

cultural brasileira, abrigando as mais importantes instituições culturais do

país, como o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia Brasileira de Letras.

Lugar, por excelência, onde o sentimento de nação se concretizava, o

Rio foi palco de muitos eventos que, longe de serem parte somente de sua

história regional, integraram uma "história nacional". Em suma, o Rio de Ja­neiro preenchia todos os requisitos para ser uma cidade nacional, não

1 Silva, 2005:96.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO • 297

identificada especificamente com qualquer das regiões do país, mas, de forma

ampla, com a nação brasileira.

Tal entendimento é largamente manifestado na produção historiográfica

e na memória coletiva sobre a cidade.2 Pelo seu passado glorioso de capital

monárquica e republicana, por nunca ter dado acolhimento a localismos ou

regionalismos, nas últimas décadas consolidou-se na memória coletiva cario­

ca uma auto-imagem da cidade do Rio como o Jacus privilegiado da formação

da nacionalidade brasileira. Nessa perspectiva, para todos aqueles interessa­

dos em desempenhar um papel central no jogo político nacional, nada melhor

que posicionar-se em um território concebido como a síntese da nação, cujo

povo, por seu cosmopolitismo, representaria a verdadeira "vanguarda social

e política do país".'

Segundo Jose Honório Rodrigues (1982:15), à ocasião da Independên­

cia, a integridade territorial do Brasil encontrava-se ameaçada pelas diver­

gências entre as capitanias que o formavam. Não havia no país um sentimento

de unidade e consciência nacionais. Nesse momento, o Rio capital passaria a

constituir o centro de comando da vida brasileira, sua imagem consolidando­

se, paulatinamente, como a de um lugar que engendrava e representava a

unidade nacional.

Passado maís de um século, porém, com a aprovação no Congresso da

transferência da capital federal para Brasília, em outubro de 1957, abrir-se-ia

um período de questionamentos a respeito de qual seria a melhor solução

para o Rio de Janeiro, ao ser deslocado de seu lugar de destaque entre as

demais cidades do país. O Rio se tornaria uma cidade como outra qualquer?

Entre as três propostas à época intensamente debatidas na imprensa' e

no Congresso, uma delas sugeria a transformação da cidade do Rio de Janeiro

em território da Guanabara; outra propunha a incorporação da cidade, com o

nome de Rio de Janeiro, ao já existente estado homônimo; e, por fim, a terceira

2 Ver Dias, 2003.

3 Sento-Sé, 1999:343. Para uma leihrra do Rio de Janeiro como elo nacional, ver Rodrigues

(1982) e Lessa (2000).

4 Entre julho e agosto de 1958, o jornal Correio da Manhã publicou uma série de reportagens sob

o título "O que será do Rio", reunindo a opinião de pessoas de diversas áreas de atuação

profissional a respeito de qual seria o destino do Rio após a mudança da capital para Brasília. O

Jornal do Brasil e a Tribuna da Imprensa, na mesma época, também dedicaram várias reportagens

ao tema. Ver Motta, 2001.

298 • D I REITOS E CIDADANIA

seria a opção vitoriosa. Esta seguia a determinação da Constituição de 1946,

isto é, prescrevia a transformação da cidade do Rio em estado da Guanabara.

Com base na Lei San Tiago Dantas, de 14 de março de 1960, foi então

criado o estado da Guanabara, com sua composição geográfica abrangendo o

território da antiga capital. O primeiro governador do novo estado, José Sette

Câmara Filho, nomeado pelo presidente da República, exerceu o cargo até 5

de dezembro de 1960, quando foi então substituído pelo udenista Carlos

Frederico Werneck de Lacerda, o primeiro governador da Guanabara eleito

por voto direto. A eleição de 1960 para o governo da Guanabara, por si só,

seriam um grande acontecimento para o eleitorado carioca, que pela primeira

vez elegia o seu governante através do voto direto.5

No exercício do governo, Lacerda procuraria transformar a Guanabara

em um estado-capital, buscando preservar o seu papel de "vitrine da nação".

Antes mesmo de sua eleição, ainda durante a campanha eleitoral, os discur­

sos de Lacerda engendravam a imagem do Rio como uma cidade em que to­

dos os brasileiros se sentiam em casa, uma cidade 1/ sem regionalismos". 6 Em

todos os pronunciamentos do governador era perpetuada a força distintiva

do Rio como capital cultural, construída ao longo de mais de 150 anos e com

um importante marco inicial na transferência da Corte portuguesa para o Bra­

sil - quando foram criadas instituições como a Real Biblioteca (núcleo da

Biblioteca Nacional), o Teatro Real de São João, o Passeio Público e o Museu

Real, sendo ainda abertas as primeiras livrarias da cidade.7

Na década de 1960, pois, no momento em que a cidade perdia a prerro­

gativa de ser a capital política do país, a preservação e revalorização do seu

status de capital cultural passariam a ocupar a ordem do dia da agenda gover­

namental. Nesse sentido, Carlos Lacerda daria início a uma série de obras, em

diferentes âmbitos, visando conferir ao recém-criado estado um caráter de

modernidade, ao mesmo tempo que investiria na valorização da memória lo­

cal identificada ao nacional.

Entre outras realizações, Lacerda promoveu a remoção de favelas, com

a conseqüente criação da Vila Kennedy e da Cidade de Deus; a conclusão dos

viadutos dos Marinheiros, Fuzileiros, Saint-Hilaire e Engenheiro Noronha, e

do túnel Santa Bárbara; a abertura do túnel Rebouças e a construção da maior

5 Ver Motta, 2000:19.

6 Dias, 2003:204.

7 Ver Versiani, 2007:7.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO • 299

parte do Aterro do Flamengo, onde foi criada a mais extensa e completa área

de lazer da cidade, o Parque do Flamengo, situado junto à orla da baía de

Guanabara.

Na esfera da cultura, Lacerda mostrou-se especialmente interessado em

revitalizar atividades que garantissem o lugar da antiga cidade do Rio de Ja­

neiro como capital cultural. Entre as iniciativas, foram criados a Sala Cecília

Meireles, o Museu da Imagem e do Som, a Fundação Vieira Fazenda (institui­

ção destinada a administrar a memória e o patrimônio cultural do Rio), o Museu

do Primeiro Reinado, o Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro e o Museu do

Teatro do Fantoche, sendo realizada também a aquisição do Parque Lage.

A idéia que presidiu grande parte dessas iniciativas foi reaproveitar

antigos edifícios ligados à história da cidade do Rio de Janeiro para dar-lhes

novos usos e significados. A Sala Cecília Meireles, por exemplo, ocuparia o

antigo edifício do Cine Colonial, localizado no largo da Lapa. Desapropriado

pelo governo da Guanabara, o cinema foi transformado, em 1965, num gran­

de salão de concertos e conferências, batizado como Sala Cecília Meireles em

homenagem à escritora então condecorada pelo conjunto de sua obra com o

Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras.'

Do mesmo modo, o trabalho de montagem do Museu da Imagem e do

Som (MIS) foi realizado ao longo de todo o governo Lacerda, sendo escolhido

para sua sede o prédio construído em 1922 para servir como pavilhão do Dis­

trito Federal na exposição internacional comemorativa do centenário da Inde­

pendência do Brasil e que, desde então, abrigou sucessivamente o Instituto

Médico Legal, uma delegacia de polícia e, por último, o Serviço de Registro de

Estrangeiros.

O MIS nascia com a finalidade de ser um "centro de documentação

audiovisual da memória carioca",9 e o prédio escolhido reunia importantes

atributos para sediar o museu, não sendo simplesmente um espaço físico, e

sim um espaço que "contava" algo da história da cidade do Rio de Janeiro e

que fazia parte dessa história.

Com igual orientação e motivação seria desapropriado por Lacerda

outro edifício da antiga capital do Brasil, o Solar da Marquesa de Santos, em

3 Mais informações em: <www.centrodacidade.com.br/cultura/Textos/salacm.htm> e

<www.lanalapa.com.brjestabelecimentoDetalhe.asp?qiNuEstab=15>. Acesso em: 1 fev. 2007.

9 Dias, 2003:209.

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300 · DIREITOS E CIDADANIA

São Cristóvão, agora visando à criação do Museu do Primeiro Reinado, tendo

como justificativa o fato de a construção possuir "significação histórica e va­

lor artístico comprovados" /0 pois havia sido tombada pelo Serviço de Patri­

mônio Artístico e Nacional em 1938.

A proposta deste artigo é analisar os significados impressos nas tentati­

vas de transformação do Solar da Marquesa de Santos em Museu do Primei­

ro Reinado, bem como os conflitos de memórias que se delinearam no

decorrer dessas ações, nas diferentes conjunturas, privilegiando ou silenci­

ando elementos constitutivos das representações que compõem o imaginá­

rio político brasileiro.

Reinventando o Solar da Marquesa de Santos

Qual a importância do Solar da Marquesa de Santos e o significado de sua

transformação em Museu do Primeiro Reinado para a reatualização das me­

mórias e identidades cariocas? Responder a essa pergunta implica recuar no

tempo, percorrer a história do edifício e, também, recuperar alguns elementos

da biografia de seus moradores.

A chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, representou

para o Rio de Janeiro a inauguração de um tempo de grandes investimentos e

renovação de sua ambiência cultural. Ao longo das primeiras décadas do sé­

culo XIX, foram construídos na cidade carioca marcos espaciais de grande

significância para a identificação e ligação entre o Brasil e Portngal. O Rio de

Janeiro vivenciaria, naquele momento, importantes transformações, ganhan­

do novos ares e equipamentos que o capacitariam para a função de capital e

sede da Corte, graças à presença, em seu território, de espaços cruciais para a

vida política, econômica e social do Reino e, posteriormente, do Império e da

República.

No Brasil, d. João VI estabeleceu moradia numa chácara em São Cristó­

vão, antes propriedade do negociante Elias Antônio Lopes, o que viria esti­

mular uma ocupação nobre daquela área, com o surgimento de novas chácaras,

algumas delas muito luxuosas. Para melhor abrigar a família real, uma série

de benfeitorias teve lugar na ex-residência de Leite Lopes, a qual passou a

denominar-se Palácio de São Cristóvão.

1Q Guanabara, 1961.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A M U S E U DO P R I M EIRO REINADO • 301

Em 1821, d. João VI retornaria a Portugal, deixando ao seu filho d. Pe­

dro I a responsabilidade pela administração do vice-reinado. No ano seguin­

te, às vésperas da Independência, durante uma visita à cidade de Santos, em

São Paulo, d. Pedro I conheceria Domitila de Castro e Canto Melo, paulista,

separada e mãe de três filhos, um dos quais já falecido. Em 1823, o imperador

providenciaria a mudança de Domitila para o Rio de Janeiro, logo tornando

público o relacionamento entre eles.11

Em virtude de sua especial ligação com o imperador, Domitila recebeu

três titulas: em 1824, baronesa de Santos; em 1825, viscondessa de Santos; e

em 1826, marquesa de Santos. Além desses títulos, d. Pedro I a condecorou

com a Ordem de Santa Isabel, conferida somente a mulheres então considera­

das ilibadamente honestas."

No ano de 1826, d. Pedro I comprou duas chácaras próximas ao Palácio

de São Cristóvão,13 onde tiveram início as obras de construção do Solar da

Marquesa de Santos. Os aspectos arquitetônicos e decorativos do palacete, de

estilo neoclássico, foram confiados a profissionais e artistas de renome. A planta

foi executada pelo arquiteto francês Pedro Jean Pézerat, e a construção, coor­

denada por Alexandre Cavroé, arquiteto do imperador. Cabe mencionar, ain­

da, os trabalhos em talha do frade carmelita José Antônio do Amor Divino; os

afrescos de Francisco Pedro do Amaral, aluno de Debret; e as esculturas dos

irmãos Marcos e Zeferino Ferrez,14 membros da missão artística francesa

trazida por d. João VI ao Brasil e que contava com integrantes de grande pres­

tígio, como o arquiteto Gradjean de Montigny.15

11 Para que estivessem bem próximos, d. Pedro l, em 4 de abril de 1825, nomeou Domitila a

primeira dama da imperatriz Maria Leopoldina Josefa Carolina de Áustria, da casa de

Habsburgo, sua esposa desde 1817. A partir de 1825, Domitila passaria a residir também no

Palácio de São Cristóvão.

12 D. Pedro I e Domitila tiveram cinco filhos: um menino natimorto, em 1823; Isabel Maria de

Alcântara Brasileira (duquesa de Goiás), em 1824i Pedro de Alcântara Brasileiro, em 1825

(falecido antes de completar um ano); Maria Isabel de Alcântara Brasileira, em 1827 (também

falecida com meses de idade); e Maria Isabel Ir de Alcântara Brasileira, em 1830. Mais informações

em: <wvvw.novomilenio.inf.brjsantosjh0095.htm>. Acesso em: 29 jan. 2007.

13 As escrituras de compra dessas chácaras datam de 8 de abril e 20 de maio de 1826. Ver

Franco, 1975:17-18.

14 Ibid., p. 21-26.

15 Responsável, entre outros, pelo projeto arquitetônico da Escola Real de Ciências, Artes e

Ofícios, atual Escola de Belas-Artes da UFRJ. Ver Versiani, 2007:8.

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302 · DIREITOS E C I DADANIA

o palacete ficou pronto no ano de 1827, tendo nele morado a marque­

sa de Santos por um curto período apenas. Com o rompimento definitivo de

seu relacionamento com d. Pedro I, em agosto de 1829, devido ao casamento

dele com Amélia de Leuchtemberg,16 Domitila viu-se obrigada a retornar a

São Paulo, levando do solar todos os seus pertences. O palacete passou en­

tão ao domínio exclusivo do imperador, que o adquiriu mais uma vez atra­

vés de compra.

Quando d. Pedro I abdicou, em 1831, o solar ficou sob a posse de seus

herdeiros, chegando a sediar o governo legitimista de sua filha, a rainha

d. Maria lI. Em 1847, contudo, o palácio foi comprado pelo futuro barão de

Vila Nova do Minho, José Bernardino de Sá, que por sua vez o perdeu em

hipoteca, em 1869, para o empresário barão de Mauá.

Mauá residiu no palácio até 1882, quando o vendeu a Luís José de Sousa

Breves, barão de Guararema. A propriedade permaneceu com a família dos

Guararema até 1898, ano em que foi comprada pelo dr. Abel Parente - gine­

cologista respeitado em sua época - e transformada em maternidade.

Em 1915 o palacete abrigou a legação do Uruguai, sendo novamente

vendido em 1921, dessa vez à firma Hime & Cia. Partes laterais que consti­

tuíam a chácara foram adquiridas em 1922 pelo Ministério da Guerra, e entre

os anos de 1929 e 1930 o prédio foi alugado para o Serviço de Febre Amarela,

então sob a administração da Fundação Rockefeller.

Todos os proprietários do solar realizaram obras nele, de natureza di­

versa. Ao ser desapropriado pelo governo da Guanabara, em 1961, o palácio

ainda pertencia à Hime & Cia.

O tombamento do solar

Em 1938, o Solar da Marquesa de Santos foi reconhecido pelo poder público

como um patrimônio de grande valor artístico, sendo o seu tombamento regis­

trado em 30 de março de 1938, sob o nome de "Casa da Marquesa de Santos".17

Tal iniciativa era parte de um projeto mais amplo do governo Vargas

(1930-45) de desenvolvimento de uma política cultural voltada para a cons-

16 A imperatriz Maria Leopoldina havia falecido em 11 de dezembro de 1826.

17 O tombamento foi realizado com base no Processo n\! ll-T-38 e Inscrição nJ.lIO. Consta o seu

registro em certidão, datada de 22 de maio de 1986, do MEC/Secretaria de Cultura/Subsecretaria

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO • 303

trução de uma identidade nacional para o país. Assim, em 30 de novembro de

1937, através do Decreto-lei n" 25, instituído pelo então ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, foi criado o Serviço do Patrimôrúo Histórico e

Artístico Nacional (Sphan), com a responsabilidade de preservar, divulgar e fiscalizar os bens culturais brasileiros, bem como assegurar a permanência e

usufruto desses bens para a atual e as futuras gerações. Por meio desse instru­

mento legal, foram também normatizadas as regras para os atos de tomba­

mento federal e a proteção do patrimôrúo histórico e artístico nacional.

O decreto trazia a seguinte definição para patrimônio histórico e artístico

nacional: 1/ conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conser­

vação seja do interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis

da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou

etnográfico, bibliográfico ou artístico" .18

Criado no contexto do Estado Novo (1937-45), momento histórico de

crescente centralização e intervenciorúsmo estatal, O Sphan procurou definir e reurúr o conjunto de bens de valor nacional que deveriam ser preservados

corno patrimôrúo da nação brasileira:

Durante esse período o Sphan norteou sua política pelas noções de "tradi­

ção" e de "civilização", dando especial ênfase à relação com o passado. Os

bens culturaís classificados como patrimônio deveriam fazer a mediação

entre os heróis nacionais, os personagens históricos, os brasileiros de on­

tem e os de hoje. Essa apropriação do passado era concebida como um

instrumento para educar a população a respeito da unidade e permanência

da nação.19

Já desde a década de 1920, no Brasil, ganhava força a idéia de preserva­ção do patrimôrúo histórico e artístico, tendo havido algumas iniciativas em

âmbito local com esse fim. O interesse pela "redescoberta" do Brasil afloraria

particularmente na década de 1930, período de especial importância em ter­mos políticos e sociais e, também, um tempo de se pensar o nacional, quando

diversos intelectuais buscariam reinterpretar a história do país."

18 Diário Oficial da União, 6 dez. 1937.

19 Serviço do Patrimônio ...

lO Por exemplo, Caio Prado ]T. (Evolução política do Brasil, 1933); Gilberto Freyre (Casa grande &

senzala, 1933); e Sérgio Buarque de Hol1anda (Rnfzes do Brasil, 1937).

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304 • DIREITOS E CIDADANIA

No âmbito cultural, uma nova tendência se iniciava, com a presença do

Estado em ações articuladas a partir da colaboração de importantes intelectu­

ais brasileiros que nesse tempo atuavam junto aos órgãos públicos. Assim, em

1936, Mário de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura da Pre­

feitura de São Paulo, foi chamado a preparar um anteprojeto para a criação de

uma instituição nacional de patrimônio.21

Com base no anteprojeto de Mário de Andrade são regulamentados os

termos para a organização e proteção do patrimônio histórico e artístico na­

cional, ficando sob a responsabilidade de Rodrigo Mello Franco de Andrade a

efetiva implantação de uma secretaria de patrimônio.

Quatro livros de tombo foram então orgarúzados para inscrição, no Sphan,

de todas as obras a serem tombadas. Como vimos, a construção à qual se refere

a nossa história seria tombada como "Casa da Marquesa de Santos" em 1938. É

curioso observar que a inscrição de tombamento da casa não foi feita no Livro

de Tombo Histórico, no qual deveriam ser registradas 1/ as coisas de interesse histórico e as obras de arte histórica", e sim no Livro de Tombo de Belas-Artes,

no qual constavam lias coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira".22

Nesse sentido, a própria definição da Casa da Marquesa de Santos como

objeto de tombamento já expressava, de alguma forma, um primeiro conflito de

memória acerca dos significados do edifício. Por um lado, o ato de tombamento

classificou o solar na categoria de arte erudita, e não como um bem de valor

lústórico. Ou seja, a justificativa para a preservação do imóvel priorizava o seu

valor artístico, em detrimento do papel do relacionamento entre a marquesa de

Santos e d. Pedro I na lústória do Brasil. Por outro lado, no ato de tombamento,

o prédio foi denominado "Casa da Marquesa". Essa contradição, à primeira

vista irrelevante, denota as ambigilidades que daí em diante marcariam o ima­

ginário e as representações acerca do solar e seus principais personagens.

A despeito de seu tombamento, a Casa da Marquesa de Santos não re­

cebeu nenhuma atenção especial nas décadas seguintes e continuou em mãos

de sua antiga proprietária, a empresa Hime & Cia., que ali estabeleceu escri­

tórios comerciais.

21 Foi esse o documento usado nas discussões preliminares sobre a estrutura e os objetivos do

Sphan - embora o museólogo Mário Chagas (2006), fazendo uma comparação do anteprojeto

de Mário de Andrade com o texto do Decreto-Lei n.Q 25, afirme tratar-se de proposições diferentes

e que, na conformação do decreto, muitas das idéias de Mário de Andrade foram modificadas.

21 Ver nota 18.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO • 305

Somente na década de 1960, já criada a Guanabara, o prédio mereceria

novamente atenção. Desapropriado em 1961 pelo governador Lacerda, com o

fim de "ser utilizado pela Secretaria Geral de Educação e Cultura"," o solar foi

restaurado entre 1964 e 1965 - trabalho que valeu aos seus realizadores, Wladimir

de Alves Sousa, Geraldo Raposo da Câmara e Edson Motta, a IV Premiação Anual

do Instituto dos Arquitetos do Brasil- Departamento da Guanabara."

Em carta datada de 14 de setembro 1965," Marcelo Moreira Ipanema,

então diretor da Divisão de Patrimônio Histórico e Artístico da Guanabara,

solicitou ao diretor do Museu Imperial, Francisco Marques dos Santos, o em­

préstimo, por dois meses, de algumas peças para compor o acervo do Museu

do Primeiro Reinado, a ser inaugurado na Casa da Marquesa de Santos "em

futuro próximo".

Como podemos perceber, o Museu do Primeiro Reinado não possuía

acervo próprio, havendo a expectativa, para sua inauguração, de que fossem

conseguídas peças emprestadas de outros museus. Talvez por isso, afora mo­

tivações de ordem política que tentaremos esclarecer adiante, mesmo tendo

sido criado formalmente em 2 de dezembro de 1965," só muito depois o mu­

seu seria efetivamente inaugurado, já no final da década de 1970.

A partir da desapropriação do Solar da Marquesa de Santos, o projeto

de Carlos Lacerda era inaugurar o Museu do Primeiro Reinado como parte do

programa de comemorações do IV Centenário da cidade, em 1965. Em carta

datada de 13 de outubro de 196527 à secretária de Educação e Cultura da Gua­

nabara, Maria Terezinha Tourinho Saraiva, Marcelo Moreira prestava infor­

mações sobre os trabalhos de restauração que vinham sendo realizados no

solar e reafirmava a intenção do governo estadual de ali instalar o Museu do

Primeiro Reinado. Segundo ele, faltava à Guanabara um museu "de época",

capaz de resgatar a cultura "de um período" e de levar ao público toda a

"vivência de um tempo", no caso, o Primeiro Reinado.

Para justificar sua pretensão, argumentava: "que melhor poderia justifi­

car a instalação de um museu-símbolo do Primeiro Reinado, senão o aproveita-

23 Guanabara, 1961.

2i O prêmio incluía uma menção honrosa na categoria A-lO (restauração arquitetônica de

monumentos e sítios).

25 Acervo do Museu do Primeiro Reinado.

26 Ver Guanabara, 1965.

27 Acervo do Museu do Primeiro Reinado.

306 · D I REITOS E CIDADANIA

menta do Solar da Marquesa de Santos, ele próprio um símbolo desse período,

para essa finalidade cultural?".28 Por fim, acrescentava que a própria Comissão

do IV Centenário, numa de suas reuniões, aprovara em ata essa idéia.

O projeto de Lacerda de criar o Museu do Primeiro Reinado denota sua

preocupação de revalorizar a herança portuguesa do Brasil, destacando a vin­

da para o país da família real e o período do Primeiro Reinado como marcos

civilizatórios da construção da nação brasileira. O desdobramento natural dessa

representação seria ressaltar as ligações do Rio de Janeiro com esse passado

luso-brasileiro, assim reafirmando a vocação da cidade corno centro da nacio­

nalidade.

Ambicionando concorrer às eleições presidenciais, previstas para o ano

de 1965, Lacerda tentaria transformar sua experiência no governo da Guana­

bara em "vitrineff de seus feitos. Naturalmente, era enorme para ele a conve­

niência política da estratégia de recuperar para a terra carioca o status de

"capital", perdido com a transferência da capital federal para Brasília.

Do ponto de vista político-administrativo, um aspecto facilitador dessa

estratégia era o fato de a antiga capital abrigar ainda importantes órgãos re­

presentativos do governo federal. Contudo, os esforços para a preservação de

seu lugar no cenário nacional envolveriam também ações em prol da afirma­

ção da identidade da cidade-estado como espaço-síntese da nação.

Dessa forma, já na campanha eleitoral para o governo da Guanabara,

Lacerda denunciava a espoliação sofrida pelo Rio no tempo em que estivera

sob a égide do poder federal. 29 Eleito governador, apresentou-se como o

"reconstrutor" da cidade do Rio, "devastada" por consecutivos governos cor­

ruptos - quadro, segundo ele, agravado com a administração de Kubitschek

(1956-61) e a transferência da capital para Brasília.3D

Nesse contexto, a proximidade das comemorações do IV Centenário de

fundação da cidade do Rio de Janeiro se apresentava corno um momento pro­

pício para o governador da Guanabara mostrar ao país e ao mundo as suas

realizações. Seu desejo era provar que o "velho Rio" fora transformado graças

à sua administração inovadora.31

2B Grifos nossos.

29 Ver Motta, 2000:45.

30 Ver Rocha, 1996.

" Ibid., p. 20-22.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO • 307

A abertura oficial das comemorações do IV Centenário se deu no dia 31

de dezembro de 1964, numa cerimônia realizada junto ao suposto marco de

fundação da cidade do Rio, a fortaleza de São João, com as presenças de Carlos

Lacerda e do presidente da República Castello Branco (1964-67)32. Ao longo

das comemorações, Lacerda não deixou escapar a oportunidade para reafir­

mar o Rio como a cidade "síntese do Brasil", a Uporta do Brasil para o mundo,

a verdadeira imagem que ele faz de nós".33

O momento de redefinição da identidade coletiva do país representado

pelo boom memorialista decorrente das comemorações do IV Centenário pro­

porcionava, pois, um ambiente propício para a manipulação da imagem da

cidade}4 e a criação de um museu mostrava-se um caminho coerente com

essa perspectiva.

Como parte dos festejos do IV Centenário foi criado o Departamento de

Patrimônio Histórico do Rio de Janeiro, com vistas a IIsalvar os 400 anos da

cidade".35 Nessa mesma linha se inscrevia o projeto de inauguração de um

museu que tivesse como tema o Primeiro Reinado. A idéia surgia articulada à

orientação que se pretendia imprimir à cidade como berço do Brasil " civiliza­

do" - inclusive porque, vale a pena lembrar, o estatuto do Rio como " capital

cultural" teve o seu marco fundamental na vinda da família real e nas modifi­

cações feitas na cidade para a acolhida da Corte portuguesa.

Nessa mesma perspectiva, a seleção das primeiras coleções do Museu

da Imagem e do Som indicava a "escolha de d. João VI como mito de origem

da história carioca" f evidenciando a intenção de difundir e valorizar, através

daquele museu, os vínculos entre a cidade do Rio e a "profunda vocação

civilizadora de Portugal", segundo as palavras de Lacerda.36 Tal desígnio po­

deria ter continuidade com o Museu do Primeiro Reinado, evocando o perío­

do personificado na figura de d. Pedro I, herói que legou ao Brasil o estatuto da Independência.

O Museu da Imagem e do Som foi legalmente formalizado em 24 de

abril de 1964 com a criação da Fundação Vieira Fazenda, responsável por co-

32 Ver Rocha, 1996:23.

33 Apud Motta, 2000:44-45 (discurso proferido a 17 de junho de 1960 na convenção da UDN-GB

que homologou sua candidatura ao governo da Guanabara).

34 Ver Dias, 2003:207.

35 Apud Rocha, 1996:25.

36 Apud Dias, 2003:211.

308 · D I R E ITOS E CI DADANIA

operar com o poder público no cuidado com os documentos audiovisuais que

constituíssem o patrimônio histórico da cidade do Rio de Janeiro, devendo,

para tanto, manter, ampliar e administrar o MIS.37

Já o Museu do Primeiro Reinado não chegaria, naquele momento, a ser

inaugurado, talvez em virtude do fim do governo Lacerda, que não consegui­

ria eleger o seu sucessor. De toda forma, é interessante notar que o nome dado

ao museu excluía em boa medida a significação histórica do solar, uma vez

que enfatizava apenas a figura de d. Pedro I e seu governo, eliminando refe­

rências à marquesa de Santos, primeira proprietária. Isso ilustra bem a apro­

priação, por parte do governo da Guanabara, de uma imagem do Rio que

remetia às ligações entre o passado carioca, o Império brasileiro e a figura de

d. Pedro I, monarca tido como" o Emancipador" €, portanto, criador da nação

brasileira.

Na reelaboração dessa memória, a exclusão do papel da marquesa de

Santos se explica não apenas pelo fato de ela ter tido uma relação extraconjugal

com o imperador, mas especialmente por tratar-se de uma mulher que con­

quistara espaço de poder na Corte brasileira, exercendo grande influência nos

atos e decisões de d. Pedro I.

Ao longo dos sete anos de sua relação com o imperador, Domitila de

Castro desempenhou inúmeras atividades, intermediando pedidos e obtendo

favores especiais para seus familiares e amigos. Relatos da época a descrevem

como uma aventureira imoral que se aproveitava de seu prestígio junto ao

imperador para garantir status e vantagens financeiras para sua própria famí­

lia, bem corno conseguir nomeações para cargos públicos mediante propinas

financeiras.

O grande rancor que transparece nas memórias contemporâneas a res­

peito de Domitila não se deve ao fato de ela ter sido a favorita do imperador e

com isso impor humilhações à imperatriz, e sim à sua influência na política e

nos negócios públicos da nação, o que obrigava as principais figuras da vida

política brasileira de então a recorrerem a sua intermediação e ao seu auxílio

para obter sucesso nos seus pleitos junto a d. Pedro I. Ainda que a fidedigni­

dade desses relatos possa ser questionada e mereça uma crítica documental

mais acurada, eles serviram de base para a construção de uma memória que

absolve d. Pedro I de todas as acusações que contra ele pairavam, inclusive a

de ser conivente com as ações de Dornitila. À concubina era atribuída a ex-

37 Ver Dias, 2003:210.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO • 309

clusiva responsabilidade por tais atos. Era ela a depositária de todos os males

da corrupção e imoralidade que envolviam o Estado brasileiro. Ocupando

um lugar tão negativo na memória nacional, é compreensível o silêncio a seu

respeito no momento em que se pretendeu criar o Museu do Primeiro Reina­

do no Solar da Marquesa de Santos.

O Solar da Marquesa de Santos como espaço administrativo da Universida­

de do Estado da Guanabara

A pretensão de Lacerda de concorrer às eleições presidenciais previstas para o

ano de 1965 usando a sua experiência no governo do estado da Guanabara

como propaganda política frustrou-se com a suspensão das eleições diretas

para a presidência da República imposta pela ditadura militar.38 Antes do fim

oficial de seu mandato, Lacerda rompeu com o regime militar, renunciando

ao cargo de governador em 4 de novembro de 1965. Nas eleições seguintes

para o governo da Guanabara, seu candidato, Flexa Ribeiro, veio a ser derro­

tado pelo pessedista Francisco Negrão de Lima.

O novo governador da Guanabara não daria continuidade à política

cultural levada a efeito na gestão de Lacerda, ficando assim postergada a cria­

ção do Museu do Primeiro Reinado.

Em 1967, Luiz Carlos Palmeira, então chefe do Serviço de Museus, ten­

taria reavivar a idéia de usar o solar como museu, enviando para tanto uma

carta, datada de 30 de março, ao diretor da Divisão de Patrimônio Histórico e

Artístico.39 Na missiva, Palmeira sugeria algumas medidas para atenuar a

"situação esdrúxula" em que se encontrava o imóvel. Propunha a organiza­

ção, no local, de uma biblioteca especializada em temas relativos ao Primeiro

Reinado e, também, a transferência para o prédio de peças museológicas de­

positadas em outras instituições. Carlos Palmeira, embora reconhecendo que

o diminuto acervo existente impossibilitava a organização imediata do Mu­

seu do Primeiro Reinado, defendia o cumprimento do decreto que determina­

va a sua instalação no Solar da Marquesa de Santos'O Finalmente, rogava

38 O Ato Institucional nQ 2, de 27 de outubro de 1965, determinava, entre outras medidas, a

suspensão das eleições diretas, no Brasil, para a presidência da República.

39 Acervo do Museu do Primeiro Reinado.

40 Ver Guanabara, 1965.

oi

310 ' D I REITOS E CIDADANIA

que, naquele espaço, não fosse permitida a realização de atividades burocrá­

ticas que não valorizassem o caráter histórico do imóvel.

Ao que parece, as solicitações de Luiz Carlos Palmeira no sentido de

vetar a utilização do espaço para atividades não condizentes com sua impor­

tância histórica e artística foram em parte atendidas. Pelo Decreto n" 2.054, de

10 de abril de 1968, Negrão de Lima cedia o prédio à Universidade Estadual

da Guanabara (UEG), sob a condição de ela aí instalar a sua sede nobre, a

reitoria. O projeto do Museu do Primeiro Reinado, contudo, seria mantido,

ficando a UEG responsável por manter as condições físicas para sua execu­

ção, inclusive a conservação da arquitetura e decoração originais do imóvel. O

decreto especificava, também, uma série de medidas que a universidade deve­

ria tomar para estreitar os vínculos entre o museu e a área acadêmica, como, por

exemplo, a criação de propostas didáticas que atraíssem alunos para aquele

espaço. Além disso, caberia à UEG oferecer um curso de história do Brasil, in­

corporando às suas atividades curriculares visitas regulares ao museu.

Nenhuma dessas propostas, contudo, foi adiante, e o imóvel acabou

sendo doado à UEG em 1974, durante o governo de Chagas Freitas (1971-

75)." O projeto do Museu do Primeiro Reinado continuava, assim, a constar

apenas no papel.

Comemoração do Sesquicentenário da Independência: exaltação da figura

de d. Pedro I e cenlralidade do Primeiro Reinado na memória nacional

O golpe civil-militar deflagrado no Brasil em 31 de março de 1964, que depôs

o governo do presidente João Goulart (1961-64) e instaurou uma ditadura

militar, veio modificar sobremaneira o arcabouço político do país.

Como geralmente ocorre nos governos estabelecidos pela força, e não

pelo voto popular, o regime militar brasileiro procurou legitimar-se lançando

mão de farta propaganda política que divulgava uma pródiga imagem do

governo e exaltava o progresso econômico do país. O apelo ao patriotismo e a

escolha e generalização de simbolos nacionais foram meios importantes para

aproximar os militares das camadas populares.

Nesse sentido, a comemoração dos 150 anos da Independência do Bra­

sil, em 1972, pode ser vista como um momento-chave em que foram colocadas

41 Lei nº 2.427, de 13 de setembro de 1974, originária da Assembléia Legislativa e sancionada

pelo então governador Chagas Freitas.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A M U S E U DO P R I M E I RO REINADO • 311

em prática estratégias de evocação das memórias e identidades brasileiras,

visando ao fortalecimento dos laços entre o regime militar e a nação.

A transladação dos restos mortais de d. Pedro I assinalou o inicio das

comemorações do SesquicentEnário, subliminarmente sugerindo e relevando

uma particular proximidade entre o Brasil e Portugal. Em 22 de abril daquele

ano, a urna mortuária com os restos mortais de d. Pedro I chegou ao Brasil

numa embarcação que, partindo de Lisboa alguns dias antes, trouxe também

o presidente de Portugal e diversos ministros do Estado português.42

Na ocasião, reportagens publicadas na imprensa enfatizaram a forte

presença militar nas cerimônias comemorativas da "volta do Emancipador" Y D. Pedro I era caracterizado como "um homem, um rei, um imperador, um

soldado",44 sendo sua figura associada aos militares brasileiros, como uma

construção simbólica a conferir legitimação política ao regime.

Ao longo das 20 semanas de comemorações oficiais, a urna mortuária

de d. Pedro I visitou todos os estados e territórios brasileiros, além do Distrito

Federal, €, conforme noticiado na mídia, /I após a entrega do esquife ao Brasil,

um salão especial, preparado na Quinta da Boa Vista, guardou a relíquia".45

Ainda no âmbito das comemorações do Sesquicentenário, vários livros

que discorriam sobre acontecimentos políticos ligados à Independência do Bra­

sil foram reeditados. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em particu­

lar, destacou-se não só pela publicação de obras antigas, mas também, e

principalmente, pela realização de um curso específico sobre o Sesquicentenário,

organizado com o apoio do presidente da Comissão Executiva dos Festejos,

general Antônio Jorge Correa, e do Ministério da Educação e Cultura. Todas

essas realizações eram formas de valorízação da história do Brasil e dos heróis

nadonais, com forte conotação exaltativa da nadonalidade brasileira.

Novamente era atualizada uma antiga representação, segundo a qual a

construção da nação brasileira ocorreu não pela ruptura com as tradições lu­

sas, mas sÍfi por dar-se continuidade à "tarefa dvilizadora iniciada pela colo­

nização portuguesa".46 As comemorações foram um momento expressivo de

atualização de uma memória vinculada à valorização do império português e

42 Ver Almeida, 2007.

43 O Cruzeiro, 29 mar. 1972 (apud Almeida, 2007:5).

44 O Cruzeiro, 26 abro 1972 (apud Almeida, 2007:5).

45 O Cruzeíro, 3 maio 1972 (apud Almeida, 2007:6).

46 Guimarães, 1988.

312 ' DIREITOS E CIDADANIA

da figura de d. Pedro I como elementos deterInillantes para a consolidação da

nacionalidade brasileira.

Ao mesmo tempo, o evento comemorativo dos 150 anos da Indepen­

dência do Brasil reavivaria, também, uma memória do Rio de Janeiro como o

centro de onde partiam as decisões sobre a vida nacionat descortinando

o papel da cidade como criadora da unidade da nação.

Não podemos afirmar com certeza que a apropriação da figura de

d. Pedro I, o "Emancipador", pelo regime militar brasileiro, assim como todo

o clima comemorativo em torno do Primeiro Reinado como um momento es­

pecial de construção da nacionalidade brasileira tenham influenciado as deci­

sões políticas posteriores de retomar o projeto do Museu do Primeiro Reinado.

Sabemos, no entanto, que o evento do Sesquicentenário estimulou uma série

de pesquisas, estudos e publicações.

Dentro do programa das comemorações, a UEG promoveu a elabora­

ção de um estudo histórico-artístico sobre o Solar da Marquesa,47 além de um

ciclo de conferências sobre o Sesquicentenário, depois reunidas num livro

intitulado Independência do Brasil (1822-1972), publicado em 1974.

No entanto, nesse mesmo ano de 1974, como já foi dito, o Solar da Mar­

quesa de Santos foi incorporado aos domínios da UEG, não sendo tomada en­

tão qualquer medida concreta para a instalação do Museu do Primeiro Reinado.

A fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro e a efetiva

implantação do Museu do Primeiro Reinado

A idéia de unir o estado do Rio de Janeiro ao estado da Guanabara ganhou

corpo e importância ao longo da década de 1970. A fusão foi regulamentada

pela Lei Complementar n" 20, de 1" de julho de 1974, e implementada a partir

de 1" de março de 1975.

V árias explicações têm sido apresentadas para a fusão. Segundo uma

delas, o governo Geisel (1974-79) teria decretado a fusão para neutralizar a

força oposicionista do MDB no estado da Guanabara. Mais recentemente, no­

vas pesquisas têm relativizado os postulados dessa interpretação, contra-ar­

gumentando que Chagas Freitas, apesar de eleito governador da Guanabara

em 1970 pela legenda do MDB, não representava uma efetiva oposição ao

47 Ver Franco, 1975.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO • 31 3

regime militar,48 e que o governo Geisel não tinha motivações apenas par­

tidárias no empreendimento da fusão. Embora as motivações não fossem

partidárias, não se pode dizer que não eram políticas.

Em docmnentos do Arquivo Ernesto Geise149 existem indícios de que, à

época do seu governo, foram feitos investimentos políticos e simbólicos com o

propósito de reconstruir a genealogia da cidade e do estado do Rio de Janeiro,

tendo em vista tecer a identidade do novo estado que nascia a partir da fusão.

Esta era vista corno algo acima dos interesses das populações locais. Pelo con­

trário, objetivava atender a interesses nacionais.

Uma idéia que norteou o projeto governamental foi a construção de

urna nova identidade para o estado recém-criado através do destaque de pon­

tos comuns entre as duas unidades da federação que se fundiam. Foram

invocadas as origens comuns dos dois estados, ganhando força a tese de que

as qualidades dos povos carioca e fluminense estavam imbricadas e compro­

metidas primeiramente com a nação. 50

Contudo, apesar dos esforços realizados pelo governo, alguns proble­

mas se interpunham à construção de uma nova identidade para a cidade do

Rio de Janeiro. Esta, desde tempos antigos, havia sido uma capital por exce­

lência, construindo sua identidade como espaço-síntese da nação.

No início da década de 1970, grande parte dos órgãos políticos de go­

verno foi transferida para Brasília, como demonstração do empenho do regi­

me militar em dotar Brasília do estatuto de "capital de fato", posto que mesmo

com a transferência da capital federal, em 1960, grande parte das funções do

governo central continuava a ter como sede a cidade do Rio de Janeiro, então

estado da Guanabara.

A fusão e o desejo de transformar o Rio em um "município como outro

qualquerU aprofundavam a política de esvaziamento da cidade como tra­

dicional vitrina do país. O processo de municipalização, que implicou a

subordinação do poder local ao governo do estado ( ... ) expressa as contra­

dições do projeto de fusão, ao querer retirar da antiga capital a simbologia

4S Ver Ferreira, 2006.

49 Depositado no Cpdoc/FGV.

50 Ver Ferreira, 2006:178.

-

314 • D I REITOS E C I DADANIA

de cartão-postal do país, mas ao mesmo tempo concebê-la como um dína­

mo incumbido de levar energia para o novo estado.51

Como sede do poder do Império e da República, a cidade do Rio desen­

volveu como nenhmna outra cidade do Brasil atividades rentáveis no setor de

serviços, tornando-se matriz do sistema financeiro nacional e loeus da repre­

sentação cultural, política e econômica da nação.52

Atento à tarefa de estabelecer uma estrutura administrativa e uma nova

identidade para o novo estado do Rio, seu primeiro governador, Faria Lima,

com o apoio da secretária de Educação e Cultura, Mirtes Wenzel, criou a Fun­

dação Estadual de Museus do Rio de Janeiro (Femurj), cuja primeira diretora

foi Neusa Fernandes (1975-79). A nova instituição tinha por finalidade "esti­

mular o aprimoramento educacional e cultural"53 e administrar os órgãos sob

gestão da Secretaria de Educação e Cultura, do antigo estado do Rio de Janei­

ro, e da Secretaria de Cultura, Desportos e Turismo, do antigo estado da Gua­

nabara, incluindo o Museu do Primeiro Reinado.

Segundo Neusa Fernandes, o projeto do governo era promover uma

integração cultural entre a antiga Guanabara e o interior fluminense. Nesse

contexto, o então diretor do Departamento de Cultura, Paulo Afonso Grisolli,

teria desempenhado um papel-chave:

Grisolli era uma figura especiat que investiu no desejo de participação do

povo do interior do estado no campo da cultura. Ele vestiu a camisa da

fusão e ficou encantado com o interior. Queria levar cultura ao interior. Era

teatrólogo e trabalhava na TV Globo. Largou tudo para ser diretor do De­

partamento de Cultura. Era um homem ágil e inteligente, de posições polí­

ticas bem definidas. Fez muitos projetos culturais no interior e investiu no

desejo de participação do povo do interior:54

A política da Femurj assumiu uma orientação valorizadora dos museus,

inclusive promovendo a integração destes com o ensino, a partir do projeto

51 Ver Ferreira, 2006:178-179.

52 Ver Versiaru, 2007:9-10.

53 Decreto-Lei nº" 60, de 9 de abril de 1975 (disponível em: <http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/

decest.nsl/ 5126186a751527 ae032569b a 00834b51 / 980ca 2d adb8eldb603256b2100538305'

OpenDocrnnent>. Acesso em: 19 jan. 2007).

54 Entrevista concedida à autora em maio de 2007.

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DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A M U S E U DO PRIMEIRO REINADO • 31 5

1/ Ação educativa dos museus" F no qual alunos de diversos níveis escolares visi­

tavam os museus do estado na companhia de um museólogo responsável.

De acordo com o decreto de criação da Femurj, a Secretaria de Estado

de Educação e Cultura ficava "autorizada a adotar as medidas necessárias

para a criação do Museu Histórico do Estado do Rio de Janeiro, com a finali­

dade de reunir acervo que preserve a memória das duas unidades federativas

que deram origem ao novo estado".55 O museu, que seria instalado no Palácio

Nilo Peçanha, em Niterói, constituía uma tentativa de reunir no acervo de um

único espaço elementos de identificação das memórias fluminense e carioca.

Ainda em 3 de novembro de 1975, a Femurj indicou os nomes de Aloísio

de Paula, Neusa Fernandes e Afonso Arinos de Mello Franco (autor do estudo

artistico sobre o Solar da Marquesa) para representarem-na junto à reitoria da

antiga UEG, a partir da fusão Universidade do Estado do Rio de Janeiro, nos

estudos necessários para a elaboração de um convênio com o objetivo de efetivar

a instalação do Museu do Primeiro Reinado no Solar da Marquesa de Santos.

Em 15 de junho de 1976, nos termos do convênio firmado entre a Uerj e

a Femurj, a universidade cedia à fundação o uso daquele imóvel, a fim de ser

nele instalado e mantido pela fundação o Museu do Primeiro Reinado. Na

ocasião, o reitor da Uerj, Caio Tácito, enviou à secretária de Estado de Educa­

ção e Cultura uma cópia do convênio celebrado. Por meio deste, a Uerj e Femurj

concordavam em manter pleno intercâmbio, visando ao aprimoramento das

atividades culturais e didáticas do museu.

A inauguração do Museu do Primeiro Reinado aconteceu finalmente

em 12 de março de 1979, durante o governo de Antônio de Pádua Chagas

Freitas, 14 anos após a publicação do decreto que regulamentava o seu funcio­

namento.

Alguns meses depois foi autorizada a criação da Fundação de Artes do

Rio de Janeiro (Funarj), que derivou da junção de dois antigos órgãos: a Femurj

e a Fundação Estadual de Teatros do Rio de Janeiro (Funterj).56

55 Ver nota 53. O Decreto-Lei n!.! 126, de 9 de junho de 1975, autorizou a cessão, por parte do

Poder Executivo, do Palácio Nilo Peçanha, também conhecido como Palácio do Ingá, localizado

em Niterói, para nele ser instalado o Museu Histórico do Estado do Rio de Janeiro, como unidade

da Femurj (disponível em: <http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/ decest.nsfj83b1ella446ce7f703256

9ba0082511c/ a2086a5d52abfOa303256b37006fd264?OpenDocument >. Acesso em: 20 jan. 2007).

56 Lei nll 291, de 10 de dezembro de 1979, assinada pelo governador Chagas Freitas (disponível em:

<hllp' II alerilnl.aleri .ri . gov.br I conllei.ns! Ibc008ecb 13dcfc6e03256827006dbbf55a36317

c86eb8b990325658e0073a829?OpenDocument&ExpandSection=-2>. Acesso em 5 fev. 2007).

316 • D I REITOS E CIDADANIA

Subordinada à Funarj, em 1981 a Fundação de Museus do Rio de Janei­

ro passou a integrar o âmbito da Superintendência de Museus, mais tarde

transformada em Coordenação de Museus.

Com o Museu do Primeiro Reinado já em funcionamento, a Funarj fir­

maria um novo convênio com a Uerj, com o objetivo de criar visitas guiadas

ao museu e ampliar a discussão sobre os espaços não-formais da educação.

A inauguração do Museu do Primeiro Reinado ocorreu, enfim, no con­

texto pós-fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, durante o go­

verno de Chagas Freitas. E nesse momento o museu ganharia uma significação

diferente. A redefinição da identidade da cidade do Rio de Janeiro se fazia

agora em outros termos, com o seu passado integrando-se ao passado do an­

tigo estado do Rio. O projeto museológico que norteou a criação efetiva do

Museu do Primeiro Reinado optou novamente por silenciar acerca da sua prin­

cipal moradora, a marquesa de Santos, preferindo enfatizar a importância de

d. Pedro I e do período histórico de seu governo. Ainda que não tenham rea­

lizado grandes investimentos para reunir um acervo expressivo, nem proce­

dido a um novo enquadramento de representações que definisse mais

claramente a identidade e o papel do museu como lugar de memória no Rio

de Janeiro, os gestores culturais não conseguiram ultrapassar as ambigüida­

des que marcam a trajetória do solar, a sua memória dividida.

Considerações finais

Atualmente, observando a organização do acervo do Museu do Primeiro Rei­

nado à luz da definição de memória formulada por Maurice Halbwachs (1999),

podemos encontrar evidências de uma construção coletiva que desejou desti­

nar aquele local à memória de d. Pedro I e seu tempo, em detrimento da figu­

ra da marquesa. Para que tal ocorresse foram necessários procedimentos de

seletividade que relevaram certos aspectos do período do Primeiro Reinado e

fizeram submergir outros, como o papel da marquesa no processo histórico

brasileiro.

Hoje o museu estabelece apenas uma pequena ponte com a figura da

marquesa, ao evocar o passado através de alguns poucos objetos que lhe per­

tenceram. Domitila, ao embarcar para São Paulo em 1829, levou consigo tam­

bém seus pertences, deixando o solar vazio de suas coisas, mas não de sua

presença.

No palácio encontra-se hoje a réplica de um suposto túnel que liga­

ria o Paço de São Cristóvão - atual Museu Nacional, na Quinta da Boa

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A M U S E U DO P R I M EIRO REINADO • 317

Vista - ao Solar da Marquesa de Santos. A real existência do túnel não foi

comprovada, mas, apesar das tentativas de silenciar a figura da marquesa,

está ali presente nas reentrâncias da memória que se constituiu em torno

de sua casa.

O Museu do Primeiro Reinado permanece em funcionamento. Recebe

visitantes, hospeda exposições temporárias, oferece o serviço de visitas guia­

das. Possui também uma biblioteca aberta ao público e abriga uma exposição

permanente, cujo acervo procura compor a ambientação da casa como um

exemplo de residência nobre da época imperial, com móveis, pinturas e peças

decorativas do período.

Além de alguns objetos pessoais da marquesa de Santos ali expostos,

há um cômodo contendo parte da mobília em estilo imperial francês que per­

tenceu ao príncipe de Joinville, casado com d. Francisca, filha de d. Pedro I e

d. Leopoldina. O museu possui ainda uma "Sala do Mobiliário Luso-Brasilei­

ro", com móveis e objetos pertencentes a diferentes gerações da família real

portuguesa. De modo geral, as salas de exposição do Museu do Primeiro Rei­

nado, compreendido corno um lugar de memória, foram organizadas com o

intuito de recriar a época imperial. Contudo, como informa um texto apresen­

tado no site oficial do museu,57 seu principal acervo é o próprio prédio, de

dois pavimentos, magnífico exemplar de estilo neoclássico.

Os museus não são criados como idéias prontas e acabadas de um só

indivíduo. Pelo contrário, sua inauguração é precedida de inúmeras negocia­

ções visando a definir, não necessariamente nessa ordem, o seu espaço físico,

os _ objetos que deverão integrar o seu acervo e, principalmente, a sua

sigrúficância para a edificação de uma determinada identidade, seja ela local,

regional ou nacional.

No caso do Museu do Primeiro Reinado, essas ambigüidades aparecem

de forma marcante, desde as inúmeras denominações conferidas ao lugar -

Casa da Marquesa de Santos, Solar da Marquesa de Santos, Solar do Camioho

Novo e Museu do Primeiro Reinado - até a própria definição da identidade

do museu, que compromete a sua consolidação.

O relato da diretora da Femurj, Neusa Fernandes,58 fornece algumas

pistas a esse respeito:

57 DispolÚvel em:,,:<w:ww.sec.rj.gov.br/webmuseu/mpr.htm>. Acesso em: 19 jan. 2007.

58 Entrevista concedida à autora em maio de 2007.

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o projeto de criação do Museu do Primeiro Reinado voltou à tona em 1975.

O plano do museu vinha da época de Carlos Lacerda, e o prédio da Casa da

Marquesa estava muito deteriorado. O trabalho de restauração foi demora­

do, e o museu foi inaugurado em 15 de março, quando saía Faria Lima. O

projeto era fazer uma "casa-museufl. É um lugar de identidade muito am­

bígua, pois remete a urna história de amor, mas isso não aparece, por exem­

plo, no nome do museu, que remete ao período do Primeiro Reinado, nem

nO projeto museológico.

De acordo com Neusa Fernandes, a figura da marquesa ganhou expres­

são com o Museu do Primeiro Reinado funcionando onde foi sua casai por

outro lado, ela reconhece que seria mais correto dar-lhe o nome de Casa da

Marquesa de Santos:

o maior acervo do Museu do Primeiro Reinado é o espaço onde está insta­

lado. É uma casa-museu, pela história dos personagens que viveram lá e

pelas pinturas em suas paredes. Para que isso ocorrar tem que se levar em

conta a centralidade da figura da marquesa de Santos, silenciada pelos

idealizadores do museu.

No entender de Fernandes, é injusta a imagem que se tem da marquesa,

a quem considerar aliásr uma mulher valorosa e avançada para o seu tempo.

Critica, por exemplo, o fato de que seu papel tenha sido minimizado no livro

que Afonso Arinos escreveu sobre o solar - lançado exatamente no ano de

1975, quando o governo Faria Lima e a Femurj retomaram o projeto do museu.

Márcia Bibiani,s' atual diretora de Museus da Funarj, salienta que o

Museu do Primeiro Reinado tem vivido uma situação pendular, oscilando de

acordo com a visão de seus gestores, ora destacando sua identidade de lugar

de memória do Primeiro Reinado, com vocação para se constituir num centro

de reflexão acadêmica sobre esse período da história do Brasil, ora deixando

emergir ou mesmo estimulando urna memória subterrânea que vincula o

local à figura da marquesa de Santos. Segundo Bibiani, as tentativas de si­

lenciar a respeito da principal personagem do solar se explicam pelo fato de

a marquesa de Santos representar uma relação extraconjugal do imperador,

59 Entrevista concedida à autora em abril de 2007.

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DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO • 3 1 9

o que causaria desconforto tanto à família imperial quanto aos governantes

do Estado.

Dos depoimentos mencionados podem-se extrair também algumas ava­

liações positivas sobre as perspectivas futuras do Museu do Primeiro Reina­

do. Assim, por exemplo, com o processo de revitalização por que está passando

o bairro de São Cristóvão, o Museu do Primeiro Reinado poderá fulgurar com

maior destaque no âmbito cultural do estado. Corno desdobramento desse

argumento emerge uma aposta na consolidação do museu e na superação dos

conflitos de memória que têm marcado a trajetória do solar.

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