Desenlace e experiência educativa: o trágico e a medicalização

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ANA PAULA BELLOCHIO THONES Desenlace e experiência educativa: o trágico e a medicalização Porto Alegre 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE EDUCACcedilAtildeO

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM EDUCACcedilAtildeO

ANA PAULA BELLOCHIO THONES

Desenlace e experiecircncia educativa o traacutegico e a medicalizaccedilatildeo

Porto Alegre

2019

ANA PAULA BELLOCHIO THONES

Desenlace e experiecircncia educativa o traacutegico e a medicalizaccedilatildeo

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Educaccedilatildeo

Aacuterea de concentraccedilatildeo Arte linguagem e curriacuteculo Orientadora Profa Dra Simone Zanon Moschen

Porto Alegre

2019

CIP - Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo

Bellochio Thones Ana Paula Desenlace e experiecircncia educativa o traacutegico e amedicalizaccedilatildeo Ana Paula Bellochio Thones -- 2019 224 f Orientadora Simone Zanon Moschen

Tese (Doutorado) -- Universidade Federal do RioGrande do Sul Faculdade de Educaccedilatildeo Programa dePoacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Porto Alegre BR-RS 2019 1 Cena escolar 2 Trageacutedia antiga 3Psicanaacutelise 4 Medicalizaccedilatildeo I Zanon MoschenSimone orient II Tiacutetulo

Elaborada pelo Sistema de Geraccedilatildeo Automaacutetica de Ficha Catalograacutefica da UFRGS com osdados fornecidos pelo(a) autor(a)

Nome THONES Ana Paula Bellochio

Tiacutetulo Desenlace e experiecircncia educativa o traacutegico e a medicalizaccedilatildeo

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Educaccedilatildeo

Banca examinadora

_____________________________________________________________

Dra Lucia Serrano Pereira ndash Associaccedilatildeo Psicanaliacutetica de Porto Alegre (APPOA)

_____________________________________________________________

Prof Dr Marcelo de Andrade Pereira ndash Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

______________________________________________________________

Prof Dr Gilberto Icle ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

_____________________________________________________________

Profa Dra Simone Zanon Moschen (orientadora) ndash Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (UFRGS)

Agrave Martina

vida que pulsa

AGRADECIMENTOS

A escrita de um trabalho de doutorado demanda periacuteodos solitaacuterios No entanto entendo

que o escrever se torna possiacutevel em decorrecircncia de momentos compartilhados com pessoas

acolhedoras com pessoas que instigam o pensamento que oferecem novas leituras de mundo

proporcionando agrave escrita movimentos importantes Gostaria de agradecer a algumas dessas

pessoas que estiveram comigo de algum modo durante o curso de doutorado

Ao meu amor Anderson por compreender os periacuteodos em que precisei me ausentar e

apoiar a realizaccedilatildeo deste sonho Pelo pensamento inquieto pelo coraccedilatildeo imenso

Agrave querida prima Fernanda por ter me acolhido em seu lar durante a estadia em Porto

Alegre pela companhia carinhosa pelas longas conversas

Agrave minha famiacutelia por ser a base Embora longe estatildeo sempre presentes

Agrave minha orientadora Simone pela acolhida ao curso e pelo convite inicial a me perder

A traccedilar um caminho para depois descobrir para onde aponta a buacutessola Agradeccedilo pela leitura

cuidadosa e sensiacutevel por ajudar a transformar minhas inquietaccedilotildees em questotildees de pesquisa

pelas perguntas e provocaccedilotildees que me desacomodaram e me ajudaram a encontrar um novo

tom de escrita

Agrave querida Anna Letiacutecia por inspirar delicadeza e criatividade pelo olhar atento e

cuidadoso pelo interesse sincero nas coisas e nas pessoas agrave Patriacutecia pela companhia calma e

agradaacutevel pela parceria afetuosa nas aulas de Educaccedilatildeo Terapecircutica agrave Tatianne pela amizade

de infacircncia apoacutes os 30 anos por apresentar autoras e livros fascinantes agrave Lia por sustentar ao

mesmo tempo ternura e um pensamento vivaz e criacutetico

Aos demais colegas que fazem e fizeram parte do grupo de orientaccedilatildeo agradeccedilo pelos

momentos de um escrever junto(s) Janniny Luiacutesa Pedro Sthefan Thiago Camila Luiacutes

Adriano Luiacutes Henrique Carmela e Daniel

Agraves ldquoamigas geniaisrdquo Helena Karla e mais uma vez Tati e Lia pela parceria no grupo

de leitura da obra de Elena Ferrante e pelo curso de extensatildeo que resultou desses encontros

Aos membros do Nuacutecleo de Pesquisa em Psicanaacutelise Educaccedilatildeo e Cultura (NUPPEC)

agradeccedilo pelos encontros inspiradores pela companhia em jornadas e viagens pela pergunta

sobre como viver junto(s) Agradeccedilo especialmente agrave Claacuteudia e agrave Elaine por serem educadoras

inteligentes e encantadoras agrave Liacutevia e agrave Sofia pela alegria e sensibilidade contagiantes e ao

Jeferson pela admiraacutevel dedicaccedilatildeo ao nuacutecleo de pesquisa pela revisatildeo cuidadosa deste

trabalho

Agradeccedilo ao Marcelo e agrave Luacutecia pelas preciosas contribuiccedilotildees na qualificaccedilatildeo do projeto

e por aceitarem o convite para compor a banca final Ao Gilberto por aceitar fazer parte da

banca de defesa Agrave Carla pela leitura e participaccedilatildeo da banca do projeto

Aos colegas professores e funcionaacuterios do PPGEdu

Agrave CAPES e

Aos professores e agraves professoras que me educaram

Haacute muitas maravilhas mas nenhuma

eacute tatildeo maravilhosa quanto o homem

[]

Soube aprender sozinho a usar a fala

e o pensamento mais veloz que o vento

e as leis que disciplinam as cidades

[]

ocorrem-lhe recursos para tudo

e nada o surpreende sem amparo

somente contra a morte clamaraacute

em vatildeo por um socorro embora saiba

fugir ateacute de males intrataacuteveis

(Coro em Antiacutegona de Soacutefocles)

Os poetas satildeo aliados valiosiacutessimos e seu testemunho deve ser levado

em alta conta pois conhecem muitas coisas entre o ceacuteu e a terra cuja

existecircncia nem sonha nossa sabedoria acadecircmica No conhecimento

da alma [Seele] estatildeo agrave nossa frente homens comuns pois se nutrem

em fontes que ainda natildeo tornamos acessiacuteveis agrave ciecircncia

(Sigmund Freud El delirio y los suentildeos en la Gradiva de W Jensen)

RESUMO

Este trabalho tem iniacutecio com uma narrativa que encena o encontro entre personagens implicadas

com o mal-estar que surge na escola oriundo de problemas de aprendizagem e comportamento

apresentados por uma crianccedila de seis anos O trabalho de pesquisa busca dar desdobramento

aos impasses eacuteticos indicados pela histoacuteria impasses que surgem no embate de personagens

que ocupam posiccedilotildees discursivas diferentes Constata-se que os processos de medicalizaccedilatildeo da

vida que adentram a cena escolar se apresentam como uma soluccedilatildeo possiacutevel oferecida pela

escola a crianccedilas diagnosticadas com TDAH Diante dessa constataccedilatildeo a tese avanccedila no sentido

de se perguntar quais as condiccedilotildees de autorizaccedilatildeo da escola no que se refere agraves dificuldades

com a escolarizaccedilatildeo desses alunos A leitura da situaccedilatildeo vivenciada na escola e na cliacutenica nos

remete aos modos de desenlace operados pelo traacutegico e agrave forma como eram apresentados pelas

trageacutedias claacutessicas ndash como ocorre em Eacutedipo Rei e Antiacutegona de Soacutefocles tomadas

respectivamente por Freud e Lacan ndash e como ao longo dos seacuteculos foram sendo substituiacutedos

por novas esteacuteticas teatrais causa e ao mesmo tempo consequecircncia de transformaccedilotildees

filosoacuteficas e poliacuteticas Como exemplo desse novo modelo temos as trageacutedias de Euriacutepides

autor considerado por Nietzsche como iacutecone da derrocada da arte traacutegica Dessa forma nossa

investigaccedilatildeo interroga o ponto de virada de um arranjo cecircnico para outro A passagem de um

enredo traacutegico no qual a insolubilidade do conflito organiza a trama para o ensinamento moral

como buacutessola dos desdobramentos do roteiro indica elementos que permitem pensar sobre o

que opera no apelo ao saber meacutedico feito pela escola A tese sustenta que podemos aprender

sobre a cena escolar com a anaacutelise da cena traacutegica onde ocorrem encontros e desencontros onde

se travam as relaccedilotildees que abrem ou natildeo espaccedilo ao exerciacutecio do desejo Sustenta-se que constitui

tarefa importante para a escola de nosso tempo para pais e matildees de alunos e para os

profissionais meacutedicos e psicoacutelogos que satildeo chamados a oferecer soluccedilotildees ter no horizonte de

seu fazer um trabalhar em conjunto reconhecendo os limites e alcances implicados na atuaccedilatildeo

de cada um em um jogo que em vez de excluir o outro convoca-o a falar a partir de seu lugar

de saber

Palavras-chave Cena escolar Medicalizaccedilatildeo Trageacutedia antiga Psicanaacutelise

ABSTRACT

Begining this work with a narrative that sets the meeting between characters involved in malaise

that arises at school through learning and behavioral problems presented by a 6 years old child

The research work seeks to unfold the ethical impasses indicated by history impasses that arise

in the clash of characters that occupy different discursive positions When we look at the

processes of medicalization of life that enter the school scene we understand that the appeal to

medical knowing and the consequent medication prescription of methylphenidate is a possible

solution offered by the school to children diagnosed with ADHD In view of this the thesis

advances in order to ask what are the conditions of authorization of the school regarding the

difficulties with the schooling of these students The reading of the situation experienced in the

school and in the clinic reminds us of the modes of denouement operated by the tragic and how

they were presented by classical tragedies - as in Sophocles Oedipus King and Antigone taken

respectively by Freud and Lacan- and how over the centuries it has been replaced by new

theatrical aesthetic cause and at the same time consequence of philosophical and political

transformations As an example of this new model we have the tragedies of Euripides author

considered by Nietzsche as icon of the collapse of tragic art In this way our investigation

questions the turning point of one scenic arrangement to another The transition from a tragic

plot in which the insolubility of the conflict organizes the story to a moral one as a compass

of the script unfolding indicates elements that allow to think about what operates in the appeal

to the medical knowing made by the school The thesis holds that we can learn about the school

scene by analyzing the tragic scene where encounters and mismatches occur where the relations

open or not to the exercise of desire It is argued that it is an important task for the school of

our time for parents and mothers of students and for the medical professionals and

psychologists who are called to offer solutions have in the horizon of their doing a work

together recognizing the limits and scopes implied in the agency of each one in a play that

instead of excluding the other summons it to speak from its place of knowing

Keywords School scene Medicalization Ancient tragedy Psychoanalysis

SUMAacuteRIO

PROacuteLOGO 12

INTRODUCcedilAtildeO 65

Os caminhos da pesquisa 69

1 A MEDICALIZACcedilAtildeO NA CENA EDUCATIVA E A CONSTITUICcedilAtildeO DO TDAH

72

11 MARGUERITE ou um recorte da histoacuteria da RITALINA 81

12 RITALINA e o consumo de metilfenidato por escolares 84

2 A TRAGEacuteDIA ANTIGA E A CONSTITUICcedilAtildeO DA PSICANAacuteLISE 91

21 A trilogia tebana de Soacutefocles Eacutedipo Rei e o inconsciente 92

22 Eacutedipo (e Antiacutegona) em Colono 93

221 O mito de fundaccedilatildeo de Tebas 96

222 O destino dos Labdaacutecidas 99

23 Antiacutegona heroiacutena traacutegica da eacutetica da psicanaacutelise 101

231 Aacutetē Omos Mecircrima 103

232 Desejo do Outro primordial e castraccedilatildeo 107

233 Antiacutegona ex nihilo e as leis natildeo escritas 111

234 A dimensatildeo do belo 117

235 A mulher Antiacutegona 122

3 O TRAacuteGICO 125

31 Noccedilotildees do traacutegico e da trageacutedia 125

311 O conflito insoluacutevel 125

312 Khocircra 128

313 A funccedilatildeo do logos 129

314 O estranho-familiar e a trageacutedia 131

32 A trageacutedia na Poeacutetica de Aristoacuteteles 136

33 A morte da trageacutedia 140

331 Apoliacutenio-dionisiacuteaco 141

332 Euriacutepides por Nietzsche 147

333 Deus ex machina euripidiano 153

4 EDUCAR E SEUS IMPASSES 163

41 A medicalizaccedilatildeo como deus ex machina na escola e seus efeitos 166

42 A falta como operadora da criaccedilatildeo 172

5 MEDEIA 175

51 ldquoAndarilha de incertas geografiasrdquo 175

52 Medeia de Euriacutepides 178

521 Hoacuterkos 180

522 Sopheacute 182

523 Aacutetē 185

524 Medeia ex machina como desenlace 187

525 Phaacutermakon e pharmakoacutes 191

526 Ananke 194

53 ldquoa raccedila fecircmea ignora como haurir algo elevado saacutebia quando edifica o horror do fadordquo

197

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 201

61 Natildeo definimos o lugar que ocupamos na relaccedilatildeo transferencial 203

62 O lobo do homem eacute o lobo no homem 204

63 A educaccedilatildeo agrave sombra da medicalizaccedilatildeo 205

64 Medicalizaccedilatildeo na escola e dever moral 205

65 Solucionar o problema eacute enunciaacute-lo 206

EPIacuteLOGO 209

REFEREcircNCIAS 219

12

PROacuteLOGO

Todo estudo sobre a infacircncia implica o adulto suas reaccedilotildees e preconceitos

(Mannoni 2003 p 30)

Gostariacuteamos de apresentar este estudo que envolve as dificuldades de aprendizagem de

uma crianccedila com essa consideraccedilatildeo inicial feita por Maud Mannoni em seu livro A crianccedila

sua doenccedila e os outros Para a psicanalista embora a ldquodoenccedilardquo falada pelos pais possa ser

localizada na pessoa da crianccedila afinal eacute o filho ou filha que porta os sintomas eacute pela fala dos

pais que a doenccedila se apresenta e nesse sentido eles ldquoos outrosrdquo estatildeo tambeacutem implicados no

mal-estar Mannoni fala que como adulto o psicanalista pode tambeacutem encontrar um limite na

escuta da mensagem que a crianccedila lhe transmite Dessa forma o tiacutetulo da referida obra inspira

o nome que podemos dar ao caso cliacutenico que seraacute contado

A ESCOLA sua PARCEIRA e outra crianccedila com TDAH

A histoacuteria que estaacute prestes a se desenrolar eacute tecida no encontro entre seis personagens

principais encontro no qual todas elas estatildeo implicadas no mal-estar que surge A narrativa

pode apresentaacute-las de acordo com seu papel social de acordo com sua funccedilatildeo para a histoacuteria

para que o caso se construa natildeo esquecendo tampouco o lugar a partir do qual a narramos

lugar que deslinda uma certa forma de contar e uma certa forma de resistir a contar Nesse

sentido escolhemos fazer da seguinte forma

A coordenadora pedagoacutegica da ESCOLA

A meacutedica (a PARCEIRA da escola)

A crianccedila com TDAH (aluno filho paciente)

A psicoacuteloga

A professora

A matildee

Incluiacutemos mais uma personagem Noacutes que estaacute fora de cena e assume o papel de falar

diretamente com o leitor Eacute uma posiccedilatildeo que busca fundar no jogo cecircnico um terceiro espaccedilo

13

Eacute importante tambeacutem situarmos o tempo

Deacutecada de 2010

A duraccedilatildeo da histoacuteria abrange um periacuteodo letivo em trecircs TEMPOS Outono Inverno e

Primavera

E o local

Cidade de Caxias do Sul ou outra no estado do Rio Grande do Sul

Neste instante deixamos a narrativa em primeira pessoa do plural para experimentar

contar a histoacuteria como um texto dramatuacutergico Entramos em cena

TEMPO 1

Outono

CENA 1

Casa da PSICOacuteLOGA Entardecer

O telefone toca Ela corre para atender

Pedagoga

Alocirc aqui quem fala eacute a coordenadora pedagoacutegica do primeiro ciclo da ESCOLA Tem

um aluno nosso do primeiro ano do ensino fundamental que estaacute em tratamento psicoloacutegico

contigo

Psicoacuteloga

Ah sim sei quem eacute Estaacute em atendimento desde agosto Em que posso ajudar

14

Pedagoga

Sim a matildee dele me disse Estou te ligando para falar que noacutes natildeo sabemos mais o que

fazer com ele porque natildeo para quieto natildeo presta atenccedilatildeo nas aulas natildeo estaacute seguindo o ritmo

de aprendizado da turma Desde a educaccedilatildeo infantil ele eacute assim e o mau comportamento soacute

piora

Psicoacuteloga (para si mesma)

Natildeo segue o ritmo de aprendizado Mas quanto ele deveria ter aprendido em poucas

semanas de aula

Noacutes

Eacute preciso considerar que a preocupaccedilatildeo da escola deve ser reconhecida afinal a

pedagoga estaacute dizendo que tais sintomas jaacute haviam sido observados no ano anterior

Pedagoga (continua)

Achamos que ele tem TDAH e precisa de um tratamento A matildee disse que ele jaacute estava

em acompanhamento psicoloacutegico contigo e noacutes sugerimos tambeacutem uma psiquiatra infantil que

eacute PARCEIRA DA ESCOLA

Psicoacuteloga

A meacutedica eacute parceira da escola

Pedagoga

Sim noacutes costumamos encaminhar nossas crianccedilas com TDAH para que ela faccedila uma

avaliaccedilatildeo

15

Psicoacuteloga

Estaacute certo Bom eu acredito que no momento o menino pode ficar apenas com o

atendimento psicoloacutegico jaacute que as aulas comeccedilaram haacute pouco e ele ainda estaacute passando por um

processo de adaptaccedilatildeo A mudanccedila da educaccedilatildeo infantil para o primeiro ano eacute bem marcante

na vida de uma crianccedila

Pedagoga

Claro Mas ele pode seguir os atendimentos contigo sim mas no caso de uma crianccedila

com TDAH quanto mais completo o atendimento quanto mais profissionais envolvidos

melhor Tem vaacuterias psicoacutelogas na cidade que trabalham em parceria com a psiquiatra

Noacutes

Seraacute a medicalizaccedilatildeo um caminho necessaacuterio A psicoacuteloga estaacute tatildeo segura de suas

intervenccedilotildees cliacutenicas de suas conversas com a matildee de entender as causas dos sintomas tatildeo

certa de sua abordagem cliacutenica a psicanaliacutetica Quanto agrave matildee ela tambeacutem estaacute preocupada

com o comportamento do filho pois a inquietaccedilatildeo e a dispersatildeo em sala de aula estatildeo

comeccedilando a aparecer cada vez mais em casa Sua maior preocupaccedilatildeo eacute a aprendizagem da

leitura e da escrita

Psicoacuteloga

Entendo Mas ainda que ele esteja demonstrando agitaccedilatildeo dispersatildeo isso natildeo quer dizer

que ele tenha um transtorno

Pedagoga

Entatildeo tu achas que ele natildeo eacute TDAH

16

Psicoacuteloga

Natildeo podemos afirmar isso soacute com esses dados do comportamento dele na escola

Existem outras coisas acontecendo com ele na famiacutelia na relaccedilatildeo com os pais que podem estar

ocasionando os sintomas

Pedagoga

Entatildeo noacutes vamos fazer o seguinte vou te pedir que me apresente um laudo pode ser

Um laudo bem completo bem fundamentado com revisatildeo do DSM com teste de inteligecircncia

Psicoacuteloga

Eu natildeo costumo trabalhar dessa forma com testes mas eu posso fazer uma avaliaccedilatildeo

psicoloacutegica

Pedagoga

Entatildeo eu posso indicar para a matildee umas psicoacutelogas aqui da cidade que fazem

Psicoacuteloga

Tudo bem Ele eacute meu paciente eu mesma faccedilo

Pedagoga

Eacute importante fazermos porque se ele natildeo for TDAH ele pode ser TOD entatildeo tem que

fazer um diagnoacutestico diferencial

Psicoacuteloga (para si mesma)

Toddy

17

Pedagoga

E tu podes me entregar quando Eu preciso o mais breve possiacutevel

Psicoacuteloga

Pode deixar vou fazer o quanto antes Preciso tambeacutem conversar com a professora para

ver o que ela acha Entro em contato para marcar a conversa

Pedagoga

Estaacute bem Fico no aguardo Vamos tentar resolver esse problema Tchau

Psicoacuteloga

Tchau

Ambas desligam o telefone A psicoacuteloga senta no sofaacute da sala

Psicoacuteloga (para si)

ldquoParceira da ESCOLArdquo uma psiquiatra Isso eacute muito estranho O que seraacute que ela faz

Diagnostica as crianccedilas mais agitadas com TDAH e daacute Ritalina Soacute pode ser isso Assustador

Imagina soacute se uma escola oferece como praacutetica pedagoacutegica o encaminhamento para um

tratamento psiquiaacutetrico tem alguma coisa errada com a ESCOLA Natildeo natildeo Isso natildeo eacute

possiacutevel Teste de inteligecircncia Toddy o que eacute isso Tenho muito trabalho pela frente

Noacutes

Ainda que se dedique a estudar o campo da Educaccedilatildeo a psicoacuteloga parece estar distante

dos saberes que circulam pela escola De que forma conseguiraacute escutaacute-los

18

CENA 2

Escritoacuterio da casa da psicoacuteloga Noite

Psicoacuteloga procura o DSM entre livros encaixotados

Psicoacuteloga (para si)

Por que a professora ou a coordenadora pedagoacutegica natildeo podem elas mesmas ajudar o

menino em seu processo de adaptaccedilatildeo ao ensino fundamental Existem tantas oficinas naquela

ESCOLA pra ele interagir com os colegas Eacute isso que estaacute acontecendo com ele natildeo eacute um

transtorno De resto se ele estaacute mais agitado e disperso como ela disse isso eacute fruto do lugar

que ocupa no desejo da matildee eu bem sei Bom vou escrever isso no laudo Ah achei

Finalmente

Noacutes

Muito se diz sobre o lugar que a crianccedila ocupa no desejo da matildee do investimento

narciacutesico da matildee em seu filho O menino tambeacutem vive com outra pessoa seu pai Por que natildeo

considerar tambeacutem o desejo do pai pelo filho

Psicoacuteloga abre o DSM

Psicoacuteloga

Eu achava que o trabalho da psiquiatra infantil poderia ser solicitado soacute em casos graves

como uma psicose infantil Vamos ver primeiro o TDAH Ah jaacute estaacute aqui logo no iniacutecio

ldquoTranstornos do neurodesenvolvimentordquo Vamos ver a paacutegina Aqui ldquoTranstorno de Deacuteficit

de AtenccedilatildeoHiperatividaderdquo

Psicoacuteloga lecirc os criteacuterios diagnoacutesticos e marca aquilo que mais lhe chama atenccedilatildeo

19

20

Psicoacuteloga (pensa em voz alta)

Bom pelo que conversei com a matildee dele e pelo que consigo observar na cliacutenica ele se

enquadra no subtipo hiperativoimpulsivo Ele contempla todos os criteacuterios a b c d e Mas

os sintomas estatildeo presentes nos uacuteltimos seis meses Acredito que natildeo Para o manual para

fechar o diagnoacutestico basta que a crianccedila tenha no miacutenimo 6 anos Ele acabou de fazer

aniversaacuterio posso escrever isso no laudo Realmente para esse manual o menino se enquadra

no TDAH Isso eacute inegaacutevel e indiscutiacutevel Aqui soacute existem verdades natildeo haacute discussatildeo Quem

sou eu para questionar Dos nove ldquosintomasrdquo tem que preencher no miacutenimo seis Um tatildeo

parecido com o outro Um sinal acaba levando a outro Que coisa olha soacute o sintoma ldquoerdquo acaba

levando ao sintoma ldquoardquo e ao sintoma ldquobrdquo Fazem parte do mesmo comportamento ora Por

que aparecem aqui como eventos diferentes Como uma crianccedila que se sente desconfortaacutevel

em ficar parada natildeo se mexeria na cadeira e nem se levantaria

Noacutes

Haacute sim crianccedilas que se sentem desconfortaacuteveis ao ficarem paradas e nem por isso se

movem No entanto elas acabam aprendendo a controlar seus corpos Haacute seacuteculos as classes

escolares satildeo iacutempares no exerciacutecio dessa habilidade mas nem sempre bem-sucedidas

Psicoacuteloga

Tem outra coisa muito curiosa aqui na descriccedilatildeo dos sintomas haacute uma referecircncia

constante a um outro No sintoma ldquobrdquo ldquose espera que permaneccedila sentadordquo Quem espera No

ldquoerdquo ldquooutros podem ver o indiviacuteduo como inquietordquo No ldquofrdquo ldquotermina a frase dos outrosrdquo Quem

satildeo os outros Incapaz de brincar calmamente Para quem Fala demais Para quem

ldquoInterromperdquo ldquose intrometerdquo o que quem Quem determina essa medida A famiacutelia A

ESCOLA A meacutedica Como esses outros ocupam o lugar de Outro para a crianccedila

21

CENA 3

Cliacutenica de psicoterapia Manhatilde

Psicoacuteloga e matildee conversam

Psicoacuteloga

A coordenadora pedagoacutegica da ESCOLA ligou esta semana para falar do teu filho

Matildee

Sim ela me avisou que ligaria que bom Estatildeo achando que ele eacute TDAH porque ele

anda muito inquieto na sala natildeo quer ficar sentado anda pelos corredores Lembra que eu jaacute

tinha comentado contigo que eu tambeacutem estava achando Aiacute querem uma ajuda com ele

falaram de uma psiquiatra tambeacutem mas eu disse que ele jaacute estava em acompanhamento contigo

por causa daqueles probleminhas de baixa autoestima dele

Psicoacuteloga

Eu queria falar contigo sobre um pedido que ela fez Ela sugeriu que eu faccedila um laudo

para avaliar se ele tem TDAH O que tu achas disso

Matildee

Pois eacute eu tambeacutem estou achando que ele tem alguma coisa pode ser hiperatividade

mesmo Ele estaacute realmente muito agitado principalmente quando chega em casa da escola ele

fica pulando sobe no sofaacute Eu queria que ele fizesse as tarefas mas ele natildeo faz natildeo se

concentra Eu fico com medo que ele natildeo aprenda ler e escrever

Psicoacuteloga

E tu tens observado isso desde quando Como ele estava na eacutepoca das feacuterias

22

Matildee

Natildeo durante as feacuterias ele estava bem fomos para a praia ele aproveitou bastante e aqui

na cidade ele dormia toda a manhatilde agrave tarde brincava sozinho ou com os primos Acho que ele

estaacute entrando num outro ritmo agora neacute Mas jaacute devia ter se adaptado foi o que disseram na

escola

Psicoacuteloga

Estaacute certo Entatildeo eu vou fazer um laudo conforme a coordenadora me pediu a partir das

sessotildees que jaacute tive com ele a partir das nossas conversas considerando a nova rotina dele a

idade e vou conversar com a professora dele na escola e fazer tambeacutem um teste psicoloacutegico

muito simples que consiste num desenho Antes de ficar pronto eu te digo o que escrevi e

entrego para a escola Pode ser

Matildee

Claro estaacute oacutetimo jaacute vou dizer pra ele fazer um desenho bem bonito

Psicoacuteloga

Vou tentar providenciar para semana que vem Vou te pedir agora para falar um pouco

do dia a dia dele como tem sido desde a volta das feacuterias como vocecircs se organizam como estatildeo

os horaacuterios

CENA 4

ESCOLA Periacuteodo da tarde

Na sala da coordenaccedilatildeo a psicoacuteloga aguarda a professora junto com a coordenadora

pedagoacutegica

23

Pedagoga

A professora soacute estaacute aguardando a supervisora ficar cuidando a turma para poder vir

falar contigo

Psicoacuteloga

Claro eu aguardo Preciso conversar com ela para ver o que estaacute acontecendo na sala

isso tambeacutem eacute importante para constar no laudo

Pedagoga

Sim eacute importante Mas as coisas natildeo se modificaram muito desde que eu te liguei ateacute

pioraram Ele teve uma crise esta semana

Psicoacuteloga

Uma crise

Pedagoga

Eu fiquei triste de ver porque ele estaacute sofrendo e a gente natildeo sabe o que fazer Ele queria

ir para casa gritou e chorou muito no corredor Entatildeo eu telefonei para a matildee dele vir buscar

ela veio e soacute assim ele se acalmou

Psicoacuteloga

Vou perguntar para ela depois como ele ficou Mas o que seraacute que aconteceu soube de

alguma coisa

Pedagoga

24

Ele natildeo consegue mais ficar na sala eacute muito hiperativo ele se levanta da cadeira pega

o material de algum colega conversa com outro a professora chama atenccedilatildeo pede para ele

parar quieto ele natildeo para ameaccedila tiraacute-lo da sala e acaba realmente encaminhando para caacute Isso

tem se repetido todos os dias

Noacutes

Ambos professora e aluno sabem de antematildeo o destino de uma cena que se repete todos

os dias a exclusatildeo da sala de aula Mas na repeticcedilatildeo haveria aposta em um resultado novo

Pedagoga

Ele vem ateacute aqui ficar comigo e aqui eu estou conseguindo ajeitar (A pedagoga sorri)

Enquanto eu trabalho ele faz uns desenhos faz a atividade da aula ele eacute um amor de crianccedila

muito cativante

Psicoacuteloga

Sim eacute uma crianccedila muito querida

Noacutes

Eacute acima de tudo ele eacute uma crianccedila todas sabemos disso Sabemos tambeacutem que tem um

dever a cumprir que eacute ser aluno A questatildeo que fica aqui eacute o que faz ele parar e trabalhar na

sala da coordenaccedilatildeo

Pedagoga

Mas natildeo podemos tornar isso um haacutebito Ontem eu natildeo estava na coordenaccedilatildeo quando

a professora tirou ele da sala ele natildeo quis retornar e aiacute teve a crise Noacutes estamos lidando assim

com ele por enquanto mas natildeo podemos seguir por muito tempo

25

Psicoacuteloga

Que bom que vocecircs encontraram uma forma e que ele faz atividades aqui contigo mas

entendo natildeo daacute pra seguir por muito tempo ele tem que se adaptar agrave sala

Pedagoga

Tu achas que eacute soacute uma questatildeo de adaptaccedilatildeo

Psicoacuteloga

Eu acho que essa eacute uma questatildeo importante sim mas estou fazendo o laudo Agora vou

tentar ver com a professora alguma alternativa

Professora entra na sala

Psicoacuteloga

Olaacute tudo bem professora

Professora

Tudo bem natildeo posso demorar (Para a pedagoga) Deixei uma atividade com eles a

supervisora ficou laacute mas daqui a pouco podem se dispersar

Pedagoga

Pode sentar aqui Essa aqui eacute a psicoacuteloga que veio falar da hiperatividade do teu aluno

Psicoacuteloga (para a pedagoga)

26

Eu gostaria de conversar a soacutes com a professora pode ser

Noacutes

Buscando a cumplicidade da professora a psicoacuteloga deixa de escutar a pedagoga

Conseguiria recuperar sua confianccedila

Pedagoga

Pode ser (Para a professora) Aqui estaacute o protocolo da reuniatildeo Vou ficar aqui ao lado

qualquer coisa pode me chamar

Psicoacuteloga (para a pedagoga)

Obrigada

Pedagoga sai

Professora

Noacutes temos que preencher essa folha aqui com o motivo da reuniatildeo o que foi tratado e o

encaminhamento mas eu vou fazendo ligeirinho enquanto a gente conversa

Psicoacuteloga

Certo Eu queria que tu me falasses sobre o teu aluno Como eacute ser professora dele

Professora

Olha eu vou ser bem sincera contigo Estaacute muito difiacutecil ele eacute muito hiperativo e isso

natildeo eacute de agora Ano passado ele jaacute era bastante agitado dava muito trabalho na educaccedilatildeo

infantil era agressivo com os colegas e agora no primeiro ano natildeo mudou muito Ele natildeo

27

consegue ficar quieto e eu falo para ele ficar sentado e ele natildeo fica (Fica nervosa suas matildeos

tremem) Quando eu viro para o quadro para escrever ele apronta alguma coisa mexe com

algum colega pega o material de algueacutem e diz que natildeo foi ele

Psicoacuteloga

E como satildeo as outras crianccedilas satildeo quietas

Professora

Na sala tem de tudo tem os mais quietinhos tem os mais agitados mas ele eacute diferente

ele me tira do seacuterio fica me desafiando quanto mais eu falo mais ele incomoda Estou cansada

saio daqui com dor de cabeccedila

Psicoacuteloga

E o que faz com que ele seja diferente dos outros para ti

Professora

Ele quer chamar atenccedilatildeo uma atenccedilatildeo que ele tem em casa com a matildee que tem contigo

no consultoacuterio que tem aqui com a coordenadora pedagoacutegica mas que eu natildeo posso dar afinal

tenho vinte alunos em sala

Psicoacuteloga

Sim eu entendo natildeo eacute faacutecil Deve ser muito cansativo Eu acho que ele gosta de ti jaacute

falou da professora pra mim das coisas que aprende contigo

Professora

Eu tambeacutem gosto dele Agraves vezes ele eacute carinhoso mas eacute quando ele quer natildeo eacute sempre

28

Psicoacuteloga

Nesses momentos em que ele eacute carinhoso isso eacute dito para ele de alguma forma Como

ele eacute um menino que estaacute com dificuldade de se adaptar ao ambiente escolar seria interessante

que ele tivesse alguns sinais de que as coisas estatildeo funcionando quando tu achar que estatildeo

Porque senatildeo sabe o que acontece Ele acha que estaacute sempre agindo errado e que natildeo vai

conseguir nunca se adequar agraves regras da escola

Professora

Eu tento fazer isso mas como satildeo muitos natildeo consigo dar uma atenccedilatildeo para cada um

Acredito que contigo com a matildee dele com a famiacutelia ele deve ser um amor de crianccedila sempre

porque vocecircs tecircm soacute uma crianccedila de cada vez mas comigo natildeo daacute certo comigo as coisas

funcionam de outro jeito

Psicoacuteloga

Qual jeito

Professora

Na minha aula ele tem que me obedecer respeitar as regras e isso natildeo estaacute acontecendo

Se ele natildeo obedece ele natildeo pode ficar na sala

Noacutes

E se ele natildeo fica na sala ele natildeo se educa No entanto ele soacute pode finalmente ldquoobedecerrdquo

ndash tomar para si coacutedigos de conduta presentes no ambiente ndash se for educado Entatildeo como saiacutemos

disso

Professora

29

Essa semana ele teve uma crise de choro Gritou pelos corredores todo mundo viu Eu

acho que ele estaacute muito imaturo para estar no primeiro ano Mas agora natildeo tem mais como

voltar atraacutes

Psicoacuteloga

O que noacutes podemos fazer para mudar a situaccedilatildeo entatildeo

Professora

Olha eu acho que ele vai seguir em acompanhamento contigo natildeo eacute Ele foi

encaminhado para a meacutedica tambeacutem por causa da hiperatividade

Psicoacuteloga

Pelo que entendi ele estaacute com um problema de socializaccedilatildeo ele natildeo estaacute conseguindo

seguir a rotina da escola pode ser por ser imaturo ainda ele eacute um dos mais jovens da turma

neacute Entatildeo noacutes podiacuteamos tentar ajudaacute-lo com isso a fazer um amigo pedir para ele ajudar em

alguma tarefa na sala de aula o que tu acha

Professora

Eu acho que pode ser eu vou escrever isso na folha como o que ficou combinado

Psicoacuteloga

Certo eu vou falar tambeacutem com os pais dele e com ele sobre isso Obrigada pela

conversa

Professora retorna agrave sala de aula

Pedagoga entra

30

Pedagoga

Foi tudo bem Conseguiram resolver alguma coisa

Psicoacuteloga

Sim noacutes conversamos sobre como ajudaacute-lo a se adaptar agrave escola estimular uma

atividade com um coleguinha fazer com que ele goste daqui

Pedagoga lecirc o protocolo

Pedagoga

Certo Eu conversei com a matildee dele e noacutes tomamos uma decisatildeo fazer uma readaptaccedilatildeo

curricular Ele fica na escola ateacute o horaacuterio do recreio porque no iniacutecio ele costuma estar mais

calmo mas depois do intervalo ele acaba transtornando

Psicoacuteloga

Ele natildeo vai assistir agraves aulas

Pedagoga

Eacute uma decisatildeo temporaacuteria Ele leva as atividades para casa e faz com a matildee Isso jaacute estaacute

acontecendo mas eu natildeo posso ficar cuidando dele Ele tem que entender que se ele natildeo ficar

na sala de aula natildeo vai poder ficar aqui comigo

Psicoacuteloga

Estaacute certo acho que eacute uma medida necessaacuteria para o momento Eu trago o laudo

semana que vem

31

CENA 5

Cliacutenica de psicologia Manhatilde

A psicoacuteloga apresenta o laudo psicoloacutegico agrave matildee

Psicoacuteloga

Inicialmente escrevi algumas caracteriacutesticas que observei na cliacutenica sobre ele ser uma

crianccedila ativa ao mesmo tempo observadora e criacutetica Escrevi sobre o fato de ele perceber que

seu atual modo de ser e de agir natildeo eacute bem aceito nos lugares que frequenta casa e escola

principalmente pois escuta queixas acerca de seu comportamento Ele sente que natildeo existe

outro jeito possiacutevel de ser e experimenta anguacutestia Escrevi que isso aparecia em forma de medo

de monstro de zumbi de ladratildeo e medo de morrer como ocorria com frequecircncia no ano

passado e que agora percebo que ele luta contra essa anguacutestia ao adotar um comportamento

agitado com o qual parece desafiar a professora

Bom tambeacutem escrevi sobre a hipoacutetese diagnoacutestica de TDAH levantada pela escola

Entendo que se tomarmos o DSM como base ele poderia ser classificado com TDAH de

subtipo hiperativoimpulsivo Eacute possiacutevel que haja discordacircncia em reconhecer um ou outro

sintoma dos criteacuterios pois as respostas da famiacutelia e da escola satildeo subjetivas e dizem respeito agraves

atividades que costumamos realizar com o menino e a forma de apresentaccedilatildeo dos sintomas

varia bastante levando em consideraccedilatildeo com quem ele interage e o que ele faz em cada

situaccedilatildeo Sobre o TDAH o DSM identifica reuacutene e descreve os sintomas do transtorno poreacutem

natildeo aponta o que o causa Como modificadores do curso ou seja prognoacutestico o DSM aponta

que padrotildees de interaccedilatildeo familiar podem natildeo causar o TDAH mas podem influenciar o curso

do transtorno Achei interessante essa parte pois significa que as relaccedilotildees na famiacutelia podem

constituir tanto uma resoluccedilatildeo para o transtorno quanto um agravamento Isso quer dizer que

haacute uma saiacuteda Com a ajuda da famiacutelia a crianccedila que hoje eacute considerada TDAH pode com o

tempo natildeo ser mais

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Aleacutem disso escrevo tambeacutem sobre o diagnoacutestico infantil Eacute preciso levar em

consideraccedilatildeo que a constituiccedilatildeo psiacutequica estaacute curso e aponta tendecircncias para muitas direccedilotildees

Eacute preciso ter muita responsabilidade sobre os atos educativos dirigidos agrave crianccedila pois eles

provocam efeitos em sua formaccedilatildeo Dito isso faccedilo alguns encaminhamentos Recomendo que

seja incluiacutedo em um grupo de atividades extraclasse oferecido pela escola em que possa

conviver com seus colegas de uma outra forma buscando um novo lugar e um novo olhar das

pessoas Eu soube que a escola oferece oficinas de teatro acho que eacute uma boa alternativa Sugiro

tambeacutem passeios pela cidade com algum colega da turma convidar colegas para visitaacute-lo em

casa Conversei tambeacutem com a professora sobre estar atenta a boas iniciativas de seu aluno em

sala de aula e valorizaacute-las Por uacuteltimo recomendo a ti e a teu marido que levem o filho

regularmente a outros ambientes sociais aleacutem da escola buscando lugares em que o menino

possa ver ou entrar em contato com crianccedilas de sua idade Indico a continuidade da psicoterapia

incentivando a criatividade e formas alternativas de lidar com a anguacutestia

Satildeo estes os pontos mais importantes da avaliaccedilatildeo que fiz Quanto ao teste de

inteligecircncia que realizei com ele o desenho da figura humana o resultado apontado pela

interpretaccedilatildeo do teste eacute que ele tem uma inteligecircncia acima da meacutedia para a idade

Matildee

Eu fico muito orgulhosa do meu filho Eu vejo o quanto ele eacute inteligente tem um

raciociacutenio raacutepido eacute muito curioso parece que natildeo estaacute prestando atenccedilatildeo no que a gente diz

mas na verdade estaacute escutando tudo

Psicoacuteloga

Eacute verdade por mais que ele natildeo olhe estaacute sempre muito atento Bom sobre o laudo

tens alguma colocaccedilatildeo a fazer Alguma duacutevida Tenho uma coacutepia para ti e para o pai e hoje agrave

tarde vou levar agrave escola

33

Matildee

Estaacute certo Ele vai seguir aqui contigo sim eacute um espaccedilo em que ele se diverte

conversa e vou convidar um amiguinho dele para ir laacute em casa vamos combinar alguns

passeios juntos soacute ainda natildeo acho uma boa ideia sair para jantar ele natildeo sabe se comportar nos

restaurantes e eu fico com vergonha

Psicoacuteloga

Vamos experimentando aos poucos

Matildee

Eu posso fazer uma coacutepia para entregar para a psiquiatra Eu tenho que te contar como

meu filho natildeo estava muito bem a escola o encaminhou para a psiquiatra quanto mais

profissionais envolvidos melhor Fui conversar com ela semana passada

Psicoacuteloga (se contorce na cadeira)

Pode entregar para ela sim E como foi a consulta

Matildee

Eu falei para ela que ele estava em acompanhamento contigo ela ainda vai entrar em

contato Eacute como tu escreveu no laudo ele tem TDAH e ela disse que no caso dele precisa tomar

Ritalina Noacutes ficamos bem preocupados com a notiacutecia mas aliviados ao mesmo tempo porque

tem tratamento Hoje agrave tarde ele natildeo vai agrave escola e vai fazer uns exames para iniciar o

tratamento

34

Psicoacuteloga (inspira e expira)

Escrevi sobre o TDAH a pedido da escola mas eu acho que ele estaacute agitado em funccedilatildeo

da relaccedilatildeo dele com a professora e com os colegas em funccedilatildeo das diferenccedilas que tem entre a

casa e a escola Ele tem 6 anos estaacute amadurecendo ainda

Matildee

Sim ela falou tudo isso tambeacutem mas com 6 anos jaacute daacute para fazer o diagnoacutestico Ano

passado ele era muito novo ainda

Psicoacuteloga

E como foi o diagnoacutestico

Matildee

Ela conversou comigo e com o pai entregou um teste com umas perguntas para a escola

e para noacutes dois Eu vou pedir um para ti responder tambeacutem O resultado eacute que ele eacute TDAH dos

dois tipos desatento e hiperativo um caso claacutessico Ela tambeacutem avaliou um desenho que ele

fez Ela deu um livrinho para ele de um menino que tem TDAH que explica numa linguagem

acessiacutevel para crianccedilas sobre o problema dele

Psicoacuteloga

E ele jaacute leu

Matildee

Jaacute no mesmo dia Eacute bom para ele ir tentando entender o que ele tem porque eu vejo

que ele anda muito ansioso Para isso o remeacutedio vai ser bom

35

Psicoacuteloga

E o que tu achas do remeacutedio

Matildee

Olha eu natildeo queria mas ela me explicou que natildeo tem problema que o efeito eacute soacute por

umas horinhas soacute para ele se manter calmo enquanto estiver na sala de aula E tu o que acha

do remeacutedio

Psicoacuteloga

Ele vai fazer os exames ainda neacute Eu vou ser sincera contigo Fico preocupada com

a possibilidade da entrada do remeacutedio agora porque o uso do medicamento favorece a tese de

que ele eacute o problema e ele deve se curar quando a questatildeo dele natildeo eacute um problema individual

Esse eacute meu parecer No entanto satildeo vocecircs como pais que vatildeo escolher O que podem fazer eacute

expor para a meacutedica as duacutevidas de vocecircs perguntar para ela sobre os efeitos colaterais por

quanto tempo ele vai precisar tomar como os efeitos da medicaccedilatildeo vatildeo de fato ajudaacute-lo

Tambeacutem natildeo precisam decidir nada imediatamente eacute bom pensar bem

Noacutes

As duacutevidas cogitadas da psicoacuteloga agrave matildee natildeo seriam duacutevidas da psicoacuteloga agrave meacutedica

Matildee

Eacute eu ateacute li uns artigos na internet falando que o remeacutedio pode viciar quanto mais a

crianccedila toma mais ela vai precisar O pai dele natildeo estaacute bem seguro ainda Tu acha que ele tem

que seguir soacute com a terapia e com as recomendaccedilotildees que tu sugeriu

Psicoacuteloga

36

Eu dei minhas sugestotildees de acordo com os atendimentos do que conheccedilo da histoacuteria de

vida das conversas que tive com a pedagoga e com a professora Natildeo cabe a mim falar sobre a

medicaccedilatildeo porque sou psicoacuteloga Mas eu acho que se vocecircs natildeo estatildeo bem seguros eacute bom

pensar e conversar melhor com a meacutedica

Matildee

Eu vou conversar melhor com ela sim Mas eu natildeo sei o que faccedilo se meu filho natildeo

tomar o remeacutedio natildeo vatildeo mais aceitaacute-lo na escola

Noacutes

Seraacute mesmo que a condiccedilatildeo de permanecircncia na escola para que esta possa acolher as

crianccedilas eacute o apagamento dos sintomas efeito possiacutevel do metilfenidato

Psicoacuteloga (consternada)

Se teu filho natildeo tomar remeacutedio natildeo vatildeo mais aceitaacute-lo na escola A escola natildeo pode

obrigaacute-los a tomar essa decisatildeo Tu sentes que a escola quer impor isso como condiccedilatildeo de

permanecircncia do menino

Matildee

Eacute de certa forma estou me sentindo levada a isso sim Mas tu estaacute certa sei que tu

quer o bem do meu filho e acho que o melhor a fazer neste momento eacute pensar antes de tomar

uma decisatildeo Vou falar com a meacutedica de novo

Noacutes

A matildee consegue dizer algo da posiccedilatildeo que a psicoacuteloga ocupa ndash ela quer o bem de seu

paciente Como a psicoacuteloga orientada por uma formaccedilatildeo psicanaliacutetica eacute capturada pelo engodo

de querer o bem da crianccedila De que lugar ela escuta a demanda que lhe eacute dirigida que envolve

37

um mal-estar na escola Ficar capturada nessa ideia de querer o bem pode produzir um ruiacutedo

importante Onde se situa o limite de sua escuta

Fim do tempo 1

TEMPO 2

Inverno

CENA 1

Casa da psicoacuteloga Noite

O telefone toca Eacute a PARCEIRA da ESCOLA

Meacutedica

Boa noite Estou ligando para saber da disfunccedilatildeo

Psicoacuteloga

Boa noite Que disfunccedilatildeo

Meacutedica

Da disfunccedilatildeo do nosso paciente

A psicoacuteloga comeccedila a circular pela casa

38

Psicoacuteloga

Ele estaacute melhorando aos poucos Estaacute frequentando a oficina de teatro da escola fui

ateacute laacute para assisti-lo parece estar gostando Estaacute indo bem na nova turma a nova professora

estaacute conseguindo lidar bem com ele na sala de aula Essa foi uma boa decisatildeo da escola e da

matildee de trocaacute-lo de turma Estaacute aprendendo a ler e escrever

Meacutedica

Escutei algumas queixas da coordenaccedilatildeo da escola quanto ao comportamento dele Noacutes

tiacutenhamos combinado que eu entraria em contato contigo em trecircs meses para rever a questatildeo da

medicaccedilatildeo

Psicoacuteloga

Acho que combinamos seis meses foi o tempo que sugeri para surtir alguma mudanccedila

com a psicoterapia

Noacutes

O que quis a psicoacuteloga ao estipular um prazo para atenuaccedilatildeo dos sintomas Afastar a

meacutedica por seis meses Ou entatildeo estaria capturada pela medida proposta em manuais

psiquiaacutetricos em que encontramos com frequecircncia a enumeraccedilatildeo de um miacutenimo de seis

sintomas por um periacuteodo miacutenimo de seis meses

Meacutedica (suspira)

Natildeo noacutes conversamos sobre trecircs meses A coordenadora me falou que essa semana ele

teve uma crise de ansiedade na escola tu ficaste sabendo

Psicoacuteloga

Natildeo ningueacutem comentou nada comigo O que aconteceu

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Meacutedica

Ele natildeo estaacute conseguindo lidar sozinho com a hiperatividade dele Soacute a psicoterapia natildeo

ajuda Pelo que vi do caso dele eacute um claacutessico TDAH eacute desatento e hiperativo Tentei falar com

a matildee mas ela natildeo retornou queria ver se noacutes poderiacuteamos marcar um encontro juntas para eu

explicar sobre a medicaccedilatildeo

Psicoacuteloga

Podemos marcar sim Soacute natildeo entendo qual seria o motivo da Ritalina sendo que ele

estaacute melhorando na escola Eu vou tentar me informar sobre essa crise que ele teve Mas na

cliacutenica os sintomas de dispersatildeo e hiperatividade que ele apresentava estatildeo muito mais brandos

Talvez poderias fazer uma reavaliaccedilatildeo

Meacutedica

Ele tem TDAH por conta disso as crises seratildeo recorrentes Mesmo que a psicologia e a

escola faccedilam o seu papel de ajudaacute-lo ele vai seguir tendo o problema natildeo vai resolver a

disfunccedilatildeo Sabe qual o prognoacutestico desses casos Sem a medicaccedilatildeo como ele estaacute agora pode

se tornar um jovem inconsequente violento e ldquodrogaditordquo Se ele comeccedilar a tomar a Ritalina

vai ficar quieto calmo os colegas vatildeo finalmente gostar dele se aproximariam para brincar

natildeo vatildeo ter medo

Psicoacuteloga

Eu aposto no seu proacuteprio potencial de se fazer gostar com seu proacuteprio jeito de ser ele

jaacute estaacute conseguindo com a colaboraccedilatildeo da escola e da famiacutelia

40

Meacutedica

Tua especialidade eacute a psicanaacutelise neacute Eu soacute acho que com a psicanaacutelise as coisas satildeo

muito demoradas Ele eacute um caso de urgecircncia estaacute sofrendo muito

Psicoacuteloga

Eu aguardo teu contato para marcarmos uma conversa com a matildee

Meacutedica

Olha se tu puderes agendar para mim eu agradeccedilo

Psicoacuteloga

Eu vou perguntar para a matildee o que ela acha se ela quiser agendar contigo eu compareccedilo

ao encontro eacute o que posso fazer

Meacutedica (suspira)

Eu lavo as minhas matildeos

Noacutes

O que faz a meacutedica suspirar A psicoacuteloga escuta seu suspiro

CENA 2

Escola Periacuteodo da tarde

Pedagoga e psicoacuteloga conversam

41

Pedagoga

A meacutedica gostou muito do laudo que tu fizeste Ela concorda com tudo Eu tambeacutem Jaacute

dei para a nova professora ler tambeacutem para ela ficar a par da situaccedilatildeo Tu concordas que ele

tem TDAH neacute Agora que jaacute se passaram uns meses natildeo seria o caso de dar uma medicaccedilatildeo

para nos ajudar a lidar com ele

Psicoacuteloga

Eu natildeo decido sobre a medicaccedilatildeo isso compete aos pais com a psiquiatra Eu soacute acho

que ele estaacute conseguindo lidar com a anguacutestia de outras formas eu natildeo tenho relacionado mais

o caso dele com os sintomas do TDAH

Pedagoga

Mas aqui na escola ele segue hiperativo e cada vez mais desatento pelo que tenho

falado com a professora

Psicoacuteloga

Ela tem conseguido ficar com ele na sala natildeo eacute Isso eacute muito importante Ele estaacute com

um bom pertencimento agrave turma Ele me conta dos colegas que satildeo amigos dele

Pedagoga

Sim eu tenho percebido Quando ele natildeo quer colaborar ela fala que a turma natildeo gosta

desse tipo de comportamento que gosta de outro que ele sabe qual eacute Ela tem jeito com ele

isso eacute bom O problema eacute que agraves vezes ele passa mal tem uma crise de ansiedade diz que tem

medo de morrer isso eacute sinal de que as coisas natildeo estatildeo bem resolvidas ainda Por isso eu entrei

em contato com a meacutedica de novo para ver a questatildeo da Ritalina para ele se sentir mais calmo

Psicoacuteloga

42

Estou trabalhando a questatildeo dos medos na cliacutenica ele estaacute conseguindo elaborar com

livros faz-de-conta piadas Soacute natildeo entendo a relaccedilatildeo disso com a medicaccedilatildeo

Pedagoga

Tu eacutes contra neacute Olha aqui na escola noacutes temos em torno de cinquenta alunos

matriculados que tecircm diagnoacutestico de TDAH Temos alguns diagnosticados com TOD no

ensino fundamental e no ensino meacutedio alunos que jaacute foram TDAH mas conseguiram evoluir

graccedilas agrave medicaccedilatildeo A grande maioria dos TDAH toma medicaccedilatildeo e o desempenho melhora

muito depois disso Por experiecircncia sei o sofrimento que passam os natildeo medicados Muitas

vezes o problema evolui para transtornos mais graves a medicaccedilatildeo pode ser uma saiacuteda para

evitar problemas futuros

Psicoacuteloga

Natildeo eacute que eu seja contra soacute acho que ele estaacute tendo mudanccedilas significativas com a ajuda

da famiacutelia e com a terapia A troca de turma por sugestatildeo tua foi uma boa alternativa A forma

como eu costumo trabalhar vai numa via diferente dessa do diagnoacutestico de TDAH como se ele

fosse soacute mais uma crianccedila entre as cinquenta que tecircm esse diagnoacutestico e precisa tomar

medicaccedilatildeo Eu gosto de olhar a singularidade do caso Acho que aqui na escola vocecircs acolheram

bem essa forma buscando alternativas singulares para ele As mudanccedilas ocorrem aos poucos

Pedagoga

Sem duacutevida daacute para ver diferenccedila Mas soacute ele tem um tratamento especial aqui na

escola noacutes eacute que temos que entender a dificuldade dele com os limites como a toleracircncia agrave

frustraccedilatildeo mas ele natildeo se dobra Ele natildeo estaacute vindo nas atividades do teatro A matildee dele disse

que eacute o frio

43

Psicoacuteloga

Estaacute certo Vou falar com ela

Pedagoga

Bom e em funccedilatildeo da inteligecircncia dele acima da meacutedia noacutes sugerimos que ele entrasse

no grupo do xadrez a matildee o trouxe um dia para a aula mas ele natildeo quis ficar natildeo teve muita

paciecircncia para aprender

Psicoacuteloga

Interessante Existem outras formas para ele poder desenvolver a inteligecircncia Talvez

seja muito jovem para o xadrez quem sabe daqui a uns anos vamos ver o que ele acha

CENA 3

Cliacutenica de psicologia Tarde

Psicoacuteloga lecirc alguns registros das sessotildees com seu paciente

ldquoele perguntou para a funcionaacuteria da limpeza o que era TDAHrdquo

ldquoo menino diz vou ter que tomar remeacutedio para cabeccedila porque sou malucordquo

ldquoo menino diz eu natildeo sei o que eacute me comportar soacute sei o que eacute natildeo me comportar Todo

mundo diz que eu natildeo me comporto [] se comportar eacute nada Eacute natildeo fazer nadardquo

ldquoObservaccedilotildees Preciso frisar a importacircncia destas questotildees trazidas pelo meu paciente

na medida em que acredito que ele estava tomando um pouco para si a preocupaccedilatildeo do que os

adultos fariam com ele saindo de uma posiccedilatildeo unicamente objetal para uma posiccedilatildeo ativa de

quem pode fazer alguma coisa por si Dei algumas dicas das coisas que pensava que esperavam

dele na escola como cuidar das suas coisas copiar do quadro fazer as tarefas com calma e que

ele poderia perguntar tambeacutem para seus paisrdquo

ldquoos pais decidiram natildeo medicar o filhordquo

ldquopai soacute quero que meu filho seja felizrdquo

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ldquopai jogamos Xbox umas trecircs horas por dia eacute muitordquo

ldquomatildee vai comeccedilar artes marciais para descarregar energiardquo

Psicoacuteloga (para si mesma)

Seraacute que eu agi corretamente Seraacute que fiz a melhor escolha pelo bem do menino Seraacute

que ele estaria melhor se estivesse medicado

Noacutes

O que quer dizer agir corretamente fazer a melhor escolha A psicoacuteloga segue

capturada pelo discurso idealizador da escola em relaccedilatildeo agrave sua parceira meacutedica ao qual ela

mesma buscou constituir oposiccedilatildeo Ao combater a medicalizaccedilatildeo ela parece desejar ocupar

esse lugar de domiacutenio para a matildee o pai o menino

A psicoacuteloga entende que a medicaccedilatildeo acaba por assegurar um discurso que localiza no

indiviacuteduo o problema de aprendizagem e comportamento No entanto cabe perguntar a

Ritalina eacute capaz de impedir a escuta cliacutenica Por que a resistecircncia agrave medicaccedilatildeo afinal

Embora o menino natildeo tome Ritalina e conte com as prescriccedilotildees cliacutenicas a escola segue

com a parceira psiquiatra e dezenas de estudantes desatentos e hiperativos medicados Como

constituir um lugar que resiste agrave individualizaccedilatildeo do problema sem fazer oposiccedilatildeo agrave medicaccedilatildeo

jaacute que esta faz parte de nosso laccedilo social contemporacircneo

Psicoacuteloga (para si mesma)

Querem uma resposta desejam uma soluccedilatildeo definitiva Buscam uma alternativa A

medicaccedilatildeo cumpriria essa funccedilatildeo sem ela o que ou quem o faria nesses casos A psicoterapia

natildeo estaacute surtindo efeitos ou os efeitos da psicoterapia natildeo estatildeo sendo reconhecidos O

diagnoacutestico de TDAH cumpre a funccedilatildeo de abrandar a anguacutestia de natildeo saber o que se passa

45

CENA 4

Cliacutenica de psicoterapia Manhatilde

A matildee chega com o filho para a sessatildeo

Matildee

Eu tenho lido sobre o TDAH parece que pode ser geneacutetico Pelo que o pai me conta

ele era hiperativo hoje estaacute muito bem natildeo precisou de medicaccedilatildeo Jaacute eu era bem quieta entatildeo

natildeo fui eu que transmiti deve ter sido o pai Eu queria te contar de uma coisa que aconteceu na

escola semana passada Passaram por cima de mim fiquei furiosa O meu filho se desentendeu

com um colega na hora do recreio e eles brigaram

Crianccedila

Foi ele quem se desentendeu

Matildee

Sim eu sei meu filho Sempre entram em contato comigo mas em vez disso chamaram

o pai Ele teve que sair do serviccedilo e ir ateacute a escola para buscaacute-lo Fiquei com tanta raiva fizeram

um escacircndalo por uma briguinha de crianccedila Eu vou escrever para a escola reforccedilando que

tudo o que acontecer com ele sou eu que resolvo Ah eu natildeo estou levando ele nas aulas de

teatro porque nessa eacutepoca eacute muito frio para ele ficar

Psicoacuteloga

Depois noacutes conversamos melhor Temos que marcar um horaacuterio

Matildee

Estaacute bem Ateacute logo

46

Noacutes

Tudo o que ocorre com o filho eacute a matildee que resolve assim como tudo o que ocorre com

o paciente eacute a psicoacuteloga que quer resolver A posiccedilatildeo da psicoacuteloga ressoa a posiccedilatildeo da matildee

Psicoacuteloga e crianccedila entram na sala Brincam de ldquoHarry Potter versus Voldemortrdquo Ele

conta sobre um jogo novo em que bruxos da histoacuteria de Harry Potter lutam contra os

dementadores fantasmas que os assombram

Psicoacuteloga

E como eacute

Crianccedila

Os bruxos tecircm que usar as varinhas para matar os dementadores eu joguei ontem

Psicoacuteloga

Que interessante

Crianccedila (brinca que usa varinha contra a psicoacuteloga)

Tu acha isso interessante

Psicoacuteloga

O que aconteceu na escola Teu colega se desentendeu contigo

Crianccedila

Sim Foi ele que comeccedilou dessa vez Agraves vezes sou eu mas agraves vezes satildeo os outros

47

Psicoacuteloga

Entendi E aiacute chamaram teu pai

Crianccedila

Sim

Psicoacuteloga

E o que tu achou do teu pai ter ido

Crianccedila

Atildehn Um pouco bom e um pouco ruim Eu fui para casa Entatildeo por isso foi bom Mas

ele ficou brabo entatildeo isso foi ruim

Psicoacuteloga

Entendi Aiacute tu ficou jogando em casa Sozinho

Crianccedila

Eacute Minha matildee jaacute estava em casa

Psicoacuteloga

E o que parece para ti bruxos lutando contra dementadores

Ele representa os personagens Corre pela sala pula joga-se ao chatildeo

48

Crianccedila

Inteligentes contra idiotas Os idiotas tecircm que morrer os inteligentes vencem Eacute assim

olha

Crianccedila representa mais uma vez com mais intensidade alterna expressotildees de

agressividade e de idiotice

Crianccedila

Achou engraccedilado

Noacutes

A crianccedila estaria tentando representar o que desejam dele que corresponda ao

diagnoacutestico de TDAH ou que corresponda a uma crianccedila inteligente Qual a responsabilidade

do laudo da psicoacuteloga sobre isso

Psicoacuteloga

O que seraacute que tu estaacute querendo me contar

Crianccedila

Agraves vezes eu sou idiota e agraves vezes eu sou inteligente Minha matildee quer que eu seja

inteligente

Psicoacuteloga

E a escola

49

Crianccedila

A escola queria que eu fosse inteligente mas acha que eu sou burro Na verdade a escola

eacute idiota eacute para idiotas perdedores eacute inuacutetil Soacute faccedilo coisas inuacuteteis

Psicoacuteloga

Senta aqui comigo um pouco Respira Bom tu acha que querem que tu seja ou idiota

ou inteligente Eacute muito difiacutecil ser totalmente idiota ou totalmente inteligente natildeo acha

Crianccedila

Por isso que eu sou outra coisa eu fico entre o idiota e o inteligente O nome eacute

preocupatoacuterio

Psicoacuteloga (pensa consigo)

Preacute-operatoacuterio

Crianccedila

Eu me preocupo com tudo Eu tenho medo de tudo Sou a pessoa mais medrosa do

mundo

Psicoacuteloga

Do mundo Na verdade todo mundo tem seus medos suas preocupaccedilotildees na vida a

gente vai lidando aos pouquinhos com cada uma

50

Crianccedila

Mas ter medo eacute para idiotas eacute para os fracos os fortes satildeo os inteligentes eu natildeo tenho

medo de nada eu sou o mais forte

O menino se agita mais uma vez corre pela sala brinca de faz de conta numa cena em

que bate em algueacutem mais fraco

Psicoacuteloga (para si)

Por que eu escrevi sobre o TDAH no laudo Por que eu fiz um teste de inteligecircncia

Psicoacuteloga

Conheccedilo pessoas fortes e inteligentes que tecircm muitos medos

Crianccedila

Quem

Psicoacuteloga

Adultos que eu conheccedilo Na verdade os medos tornaram as pessoas mais fortes

Crianccedila

Natildeo os medos satildeo para os fracos

Psicoacuteloga

Bom tu natildeo eacute fraco tu disse que tem preocupaccedilotildees eacute uma situaccedilatildeo diferente estaacute

enfrentando teus medos

51

CENA 5

Casa da psicoacuteloga Noite

Matildee e psicoacuteloga conversam no telefone

Matildee

Ele ficou muito agitado agrave tarde natildeo quis ir agrave escola eu tambeacutem natildeo insisti O que

adianta Ele chega laacute e mandam ele de volta para casa Como eacute que foi a sessatildeo Ele contou

alguma coisa sobre a briga

Psicoacuteloga

Foi uma sessatildeo importante acho que mobilizou questotildees difiacuteceis para ele as

expectativas das pessoas sobre ele o quanto ele consegue responder a isso Natildeo comentou

muito sobre a briga

Matildee

Na escola disseram que foi ele que ele agrediu um colega no intervalo que

aparentemente o colega natildeo provocou nem nada Estou com raiva porque isso tem se repetido

qualquer probleminha que acontece nos chamam Desde que a nova professora dele saiu da

escola

Psicoacuteloga

O que aconteceu com a professora

52

Matildee

Eu achei que tinha comentado contigo ela estaacute com problema de sauacutede estaacute sem voz

descobriu um tumor na garganta e vai operar Meu filho estaacute sentindo falta dela natildeo estaacute se

acertando com a estagiaacuteria Mas hoje passaram dos limites chamando o pai

Psicoacuteloga

Por que seraacute que chamaram o pai

Noacutes

Por que passaram dos limites Quais limites

Matildee

Eu natildeo sei parece que quiseram me dizer que eu natildeo dou conta do meu filho soacute o pai

natildeo contam mais comigo

Psicoacuteloga

E tu concordas com isso

Matildee

Tu concorda com isso

Psicoacuteloga

Natildeo concordo Acho que tem que ver o lado bom disso a escola quis te ajudar pode ter

sido uma iniciativa de envolvecirc-lo fazer participar tambeacutem dos problemas que estatildeo

enfrentando

53

Matildee

Eacute isso que tu acha Mas ele eacute participativo sempre brinca com o filho em casa Parece

que quiseram me atacar E natildeo desistiram de oferecer a medicaccedilatildeo neacute Eu levei vaacuterios artigos

para lerem sobre os efeitos colaterais da Ritalina nem quiseram ler A meacutedica entrou em contato

comigo de novo a pedido da escola Estou pensando em trocar meu filho de escola ano que

vem

Psicoacuteloga

Eacute uma alternativa a ser considerada Vamos ir pensando e seguimos conversando outra

hora

Fim do tempo 2

TEMPO 3

Primavera

CENA 1

Cliacutenica de psicoterapia Tarde

A matildee chega para atendimento

Psicoacuteloga

Pode sentar aqui por favor

Matildee

Obrigada Leu o material que te enviei

54

Psicoacuteloga

Eu dei uma olhada sim

Matildee

Sei que deve ser difiacutecil para ti entender mas eu acho que faz muito sentido

Psicoacuteloga

O que precisamente tu gostarias que eu entendesse

Matildee

Tu pode ateacute achar que eacute loucura mas eu venho lendo sobre o assunto haacute um tempo As

crianccedilas com TDAH podem ser superdotadas elas demonstram tambeacutem agitaccedilatildeo e dispersatildeo

mas em vez de tratarmos como sintomas de uma doenccedila entendemos como um comportamento

tiacutepico dos superdotados As crianccedilas sofrem muito na infacircncia mas na vida adulta eacute que se

realizam deixam sua marca no mundo Os grandes cientistas artistas foram crianccedilas

hiperativas hoje satildeo considerados com uma inteligecircncia muito superior agrave meacutedia

Psicoacuteloga

Entendi Tu achas que teu filho eacute uma crianccedila superdotada

Matildee

Sei que parece estranho mas ele tem todas as caracteriacutesticas eacute muito inteligente

espontacircneo tem sintomas do TDAH mas natildeo eacute TDAH tem dificuldade em obedecer em

entender regras eacute questionador

55

Psicoacuteloga

Sim realmente ele tem todas as caracteriacutesticas Eacute uma forma de entender o que estaacute

acontecendo Como foi que tu encontraste essa classificaccedilatildeo

Matildee

Foi pesquisando o TDAH na internet Encontrei uns artigos assisti uns viacutedeos tambeacutem

e natildeo soacute de neurologistas mas de psicoacutelogos falando sobre o assunto Eu fiquei ceacutetica a

princiacutepio mas quanto mais eu lia mais fazia sentido

Psicoacuteloga

Eu fiquei pensando que talvez tu tenhas pesquisado bastante sobre o assunto porque natildeo

encontrou uma resposta ainda para o que estaacute acontecendo com teu filho A escola e a meacutedica

entendem que ele eacute TDAH eu disse que ele tem sintomas mas natildeo eacute TDAH como tu mesma

falou aleacutem disso eu atesto que ele tem uma inteligecircncia acima da meacutedia Ele natildeo toma

medicaccedilatildeo mas tu achaste necessaacuterio buscar algo que operasse no corpo como as artes marciais

para descarregar energia acumulada

Matildee

Sim eacute que o teatro natildeo deu mais certo natildeo tem mais ningueacutem da turma dele ele

estava ficando mais agitado ainda

Psicoacuteloga

Tudo bem foi soacute uma sugestatildeo Bom o que eu quero dizer eacute Vecirc se faz sentido para

ti Como nem eu e nem a escola te demos um retorno que te ajudasse a entender o que acontece

com teu filho tu buscaste uma terceira opiniatildeo digamos assim Essa classificaccedilatildeo da

superdotaccedilatildeo pode ter funcionado para te deixar mais tranquila quanto ao que acontece com

ele

56

Matildee

Acho que sim Eacute o que estaacute fazendo sentido agora

Psicoacuteloga

A gente pode entender como uma classificaccedilatildeo possiacutevel Podemos chamar de TDAH

de superdotado de TOD Existem outras classificaccedilotildees Mas de que forma podem nos ajudar

Como isso pode ajudar teu filho a lidar com o sofrimento

Matildee

O que eu achei interessante eacute que no material que te enviei tem uma orientaccedilatildeo para os

pais As matildees e os pais das crianccedilas superdotadas natildeo devem dar proibiccedilotildees aos filhos natildeo

devem limitar sua criatividade impondo regras

Psicoacuteloga

Como acontece isso

Matildee

Eacute porque os superdotados natildeo compreendem bem o que eacute proibido entatildeo eacute preciso

explicar bem fazecirc-los entender em vez de brigar e impor regras Eu vejo pelo meu filho ele

tem muita resistecircncia com coisinhas da rotina como escovar os dentes por exemplo entatildeo em

vez de brigar com ele escovar agrave forccedila como muitas matildees fazem eu me agacho olho em seus

olhos explico para ele que ele pode ficar com caacuterie com dor Tudo tem que ser bem explicado

com muito jeito e calma

57

Psicoacuteloga

Parece que a orientaccedilatildeo para os pais e as matildees das crianccedilas superdotadas eacute natildeo serem

pais e matildees Natildeo sei o quanto esse material pode ajudar Tu natildeo precisas ficar com medo de

brigar com teu filho de mostrar regras e proibiccedilotildees por receio de interferir no desenvolvimento

da criatividade e da inteligecircncia dele Eacute disso que tu tem medo

A matildee chora

Psicoacuteloga

Natildeo acredito que seja possiacutevel educar um filho no papel de matildee de pai sem produzir

alguma marca em sua histoacuteria Achar que evitar agir de certo modo para que uma faculdade se

desenvolva plenamente eacute uma ilusatildeo que criamos

Matildee

Eu sei Eacute que a gente fica tatildeo perdida a gente lecirc tanta coisa que natildeo sabe mais se

estaacute fazendo certo ou errado se estaacute prejudicando o desenvolvimento da crianccedila Eu natildeo sei

educar eu natildeo sei o jeito certo

Psicoacuteloga

Eu acho que ningueacutem sabe bem como educar todo mundo tenta Realmente hoje noacutes

lemos de um tudo na internet temos acesso facilitado agrave informaccedilatildeo e natildeo vatildeo faltar artigos de

jornal dizendo como devemos agir Por isso temos que ter cuidado com o que lemos fazer um

discernimento natildeo tomar tudo como verdade Eu quero dizer que ainda que nesse material

sobre superdotaccedilatildeo diga que tu natildeo deves brigar com o teu filho em alguns momentos quando

tu sentires que deves brigar tu podes brigar

Matildee

58

Eu soacute natildeo quero que meu filho se torne um delinquente

Psicoacuteloga

Certo Mas por que dizes isso

Matildee

Porque agraves vezes eacute muito difiacutecil de lidar com ele ele fica agressivo me desafia tenho

medo de que ele se torne uma maacute pessoa

Psicoacuteloga

Quando eu digo brigar natildeo estou falando de ser violenta de bater mas de impor a tua

palavra de falar em nome da lei isso natildeo vai tornaacute-lo uma pessoa maacute E nem te tornar uma

pessoa maacute

Matildee

Eacute eu sei disso eu tenho que ser matildee dele

Psicoacuteloga

Que matildee natildeo gostaria de ter um filho superdotado brilhante que vai mudar o mundo

Acho que todas noacutes queremos isso dos nossos filhos Mas isso natildeo cabe a ningueacutem dizer soacute o

futuro vai mostrar Ningueacutem pode dizer hoje que teu filho vai ser um delinquente ou uma

pessoa que vai mudar o mundo para melhor O que podemos fazer eacute ajudaacute-lo hoje

proporcionando uma vida saudaacutevel organizando o dia a dia mostrando limites sim lidando

com as birras E jaacute satildeo coisas muito difiacuteceis de fazer Agora no que isso vai dar natildeo

sabemos Soacute temos que ficar atentas a como ele estaacute reagindo hoje agraves coisas que pensamos e

queremos dele

59

Matildee

Eu vou fazer o que estiver ao meu alcance

CENA 2

Casa da psicoacuteloga Meio-dia

Psicoacuteloga recebe uma mensagem de texto da matildee

ldquoEscrevo para informar que natildeo vamos seguir com os atendimentos por enquanto Sei

que ainda temos um caminho pela frente mas tivemos que cortar gastos Quando precisarmos

entramos em contato Obrigada PS A profe voltou da licenccedila e estaacute trabalhando sobre os

MEDOS com a turma Meu filho estaacute adorandordquo

CENA 3

Cliacutenica de psicoterapia Entardecer

Psicoacuteloga organiza pastas dos pacientes Encontra um desenho

60

Recorda-se de uma sessatildeo mesa cheia de folhas canetas e laacutepis de cor O paciente e

a psicoacuteloga conversam sobre um passeio que ele fez com a turma

Psicoacuteloga

Entatildeo quer dizer que tu gostou de ir ao museu Foi uma boa ideia da professora

Crianccedila

Na verdade todas as turmas fazem esse passeio

Psicoacuteloga

Bom mas foi uma atividade da escola que tu gostou de fazer

61

Crianccedila

Eacute um pouco

Psicoacuteloga

Vamos fazer um desenho Pode ser da tua escolha

Crianccedila

Entatildeo me daacute tua matildeo Sabe o que eu vou fazer Adivinha

O menino apoia a matildeo da psicoacuteloga sobre uma folha em branco Ele a contorna com

um laacutepis

Psicoacuteloga

Ah que legal que ficou

Crianccedila

Natildeo terminei ainda

Ele faz o contorno de sua proacutepria matildeo ao lado Faz unhas compridas cortes pelos em

ambas as matildeos

Psicoacuteloga

Que matildeos satildeo essas

Crianccedila

Eacute a matildeo de um lobisomem e a do filho do lobisomem o lobisominho

62

Psicoacuteloga

Entendi eles satildeo pai e filho e tecircm as matildeos muito parecidas

Crianccedila escreve um S na matildeo do lobisominho

Crianccedila

Pronto tinha faltado a tatuagem

Psicoacuteloga

Ah o lobisominho tem uma tatuagem S de quecirc

Crianccedila

S de lobi- Somem

Psicoacuteloga

Ah entendi

Ele escreve LOBISOMEM

Crianccedila

Eacute que eacute com S natildeo eacute com Z mas tem som de Z Sabia que tem um bicho chamado sapo-

boi Descobri ontem

Ele escreve SAPA-BOI

63

Psicoacuteloga

Viu o que tu escreveu SapA Tu conheceu esse bicho no passeio

Crianccedila

Sim A Sapa-boi era matildee do lobisominho

Psicoacuteloga

Comeccedila com S do lobi-Somem

Crianccedila

Eacute mas tem som de S mesmo Esse bicho eacute um hiacutebrido

Psicoacuteloga

Um anfiacutebio

Crianccedila

Natildeo um hiacutebrido mesmo uma mistura de sapo com boi Eacute um sapo mas do tamanho

de um boi

Psicoacuteloga

Ah o Lobisomem e o lobisominho tambeacutem satildeo hiacutebridos

Crianccedila

Sim eles satildeo lobo com homem

64

Noacutes

Homo homini lupus est1

Psicoacuteloga guarda o desenho e volta para casa inquieta Tempos depois ela teraacute

escrito

ldquoO lobo e o homem ocupam o mesmo lugar hiacutebrido da condiccedilatildeo humana Natildeo haacute como

apagar o lobo do humano antes haacute contornos formas de conviver com ele Quando Some o

homem irrompe o lobo

lsquoLobi S omemrsquo eacute o registro de um natildeo lugar a escrita do hibridismo do humano com

um S tatuado o que tinha faltado e agora faz marca Um desejo de saber a que espeacutecie pertence

entre o idiota e o inteligente entre o TDAH e o superdotado entre o forte e o fraco entre lobo

e homem entre sapa e boi natildeo um contra o outro

Entre a casa e a escola entre a psicoacuteloga e a meacutedica que saberes se formam Que

maneiras criamos juntos de circunscrever contornar a infacircncia Entre a cultura e o que lhe

escapa seu lobo O que se encontra aiacute o que deriva desse lugar senatildeo a condiccedilatildeo subjetiva

desejante que faz a vida pulsarrdquo

1 O homem eacute o lobo do homem Encontramos a expressatildeo na peccedila Asinaria do dramaturgo romano Plauto (230 aC-180 aC) O filoacutesofo Thomas Hobbes a retoma no trabalho Leviatatilde (1651) bem como Sigmund Freud em O mal-estar na cultura (1930)

65

INTRODUCcedilAtildeO

O escrito que se segue eacute fruto de uma inquietaccedilatildeo que se coloca de discutir o que resta

da histoacuteria contada em forma dramatuacutergica O texto criado eacute inspirado na praacutetica profissional

de psicoacuteloga cliacutenica com orientaccedilatildeo psicanaliacutetica observando o cuidado de preservar o

anonimato das pessoas envolvidas A ficccedilatildeo arranjada eacute uma tentativa de contornar elementos

destoantes conflitos insoluacuteveis impasses no intuito de transmitir a experiecircncia chegar agrave

extremidade das pontas soltas transformaacute-las numa outra coisa

Com isso fizemos uma escolha por apresentar o problema de pesquisa figurado em

escrita de tempos e cenas dramaacuteticas Agora haacute o que conversar com a calma e a objetividade

que um trabalho acadecircmico demanda seguindo procedimentos para que se chegue a uma

compreensatildeo mais alargada acerca dos temas suscitados pelo texto dramaacutetico alguns mais

emergentes outros aventados todos tocados por alguma coisa que diz respeito ao desejo

humano e a como o desejo se faz presente nas relaccedilotildees que estabelecemos uns com os outros

No entanto o trabalho natildeo eacute sobre o desejo muito embora natildeo possa ser realizado sem o desejo

jaacute que eacute por ele que uma linha de tensatildeo a linha de accedilatildeo se manteacutem sempre viva promovendo

ao mesmo tempo implicaccedilotildees e desajustes

Iniciamos o trabalho inspirados em Mannoni (2003) que fala do envolvimento dos

adultos no mal-estar sofrido pela crianccedila Eacute do que resulta de um jogo de implicaccedilotildees dos

adultos que produz efeitos sobre a crianccedila que esse escrito deseja tratar Considerando os

discursos que atravessam o seu fazer quais as condiccedilotildees de autorizaccedilatildeo da escola no que se

refere agraves dificuldades de certos alunos que apresentam sintomas de aprendizagem De que

forma os adultos envolvidos com a educaccedilatildeo de crianccedilas lidam com o sofrimento com o mal-

estar com o ldquolobordquo Haacute nesse sentido nas cenas do proacutelogo um discurso medicalizante que

participa das decisotildees da escola no que concerne aos problemas de aprendizagem e como

veremos respeitando as singularidades do caso essa natildeo eacute uma situaccedilatildeo isolada da histoacuteria

contada mas algo bastante frequente em nossas escolas Esse discurso tomou de surpresa a

personagem da psicoacuteloga jaacute que natildeo considerava que sua escuta ao se estender para aleacutem da

cliacutenica para aleacutem do paciente e sua famiacutelia encontraria na fala da coordenadora pedagoacutegica a

defesa da medicalizaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo de categorias nosoloacutegicas

Maria Cristina Kupfer pesquisadora de psicanaacutelise e educaccedilatildeo comenta

66

Escutar por exemplo um problema de aprendizagem como uma formaccedilatildeo fantasmaacutetica singular sem nenhuma articulaccedilatildeo com o discurso social escolar pode conduzir em alguns casos ao fracasso da accedilatildeo do psicanalista Disto aliaacutes jaacute falaram autores natildeo psicanalistas como M Helena Patto (1990) De outro lado uma leitura que inclua o discurso social que circula em torno do educativo e do escolar [] estaraacute produzindo uma inflexatildeo na accedilatildeo do psicanalista e o levaraacute a uma praacutetica que natildeo coincide mais com a cliacutenica psicanaliacutetica ldquoortodoxardquo pois ele teraacute de se movimentar o suficiente para ouvir pais e escola (KUPFER 1999 p 19)

Pensando hoje sobre o que se desenrola nas cenas assumimos neste trabalho o lugar

do ldquoNoacutesrdquo capaz de produzir um distanciamento necessaacuterio para poder falar do caso espiar suas

minuacutecias olhaacute-lo criticamente e tentar entender como se produzem as medidas e desmedidas

dos personagens Um dia fomos a psicoacuteloga presente em todas as cenas e apenas a partir dessa

posiccedilatildeo podemos testemunhar os acontecimentos Entendemos que a psiquiatra entrou em

contato com a psicoacuteloga por ela ter se tornado um obstaacuteculo agrave sua forma de conduzir pois

talvez se ela tivesse encorajado a medicaccedilatildeo possivelmente natildeo haveria motivo para conversa

Do mesmo modo a intervenccedilatildeo da meacutedica havia se tornado um entrave para a maneira da

psicoacuteloga enxergar as coisas afinal pode ter pensado a psicoacuteloga ldquoSe natildeo fosse a escola a me

atrapalhar com sua parceira eu saberia como tratar o menino mas depois do telefonema da

escola eu perdi o domiacutenio da situaccedilatildeordquo Ao tentar retomar um suposto domiacutenio da situaccedilatildeo o

qual percebeu tomado pela meacutedica a psicoacuteloga encontrava o limite de sua escuta seu ponto

cego

A princiacutepio a situaccedilatildeo configura-se numa forma de embate De um lado psicoacuteloga e

matildee de outro a escola e a meacutedica No centro uma crianccedila objeto de certezas No pano de

fundo o discurso medicalizante operando sobre todos noacutes Na tentativa de promover uma boa

relaccedilatildeo entre a professora e o aluno sustentando uma direccedilatildeo de tratamento que considerava

correta talvez a psicoacuteloga tenha desautorizado a escola em sua responsabilidade de conduzir o

caso do aluno Opondo-se a um discurso psicopatologizante a psicoacuteloga oferece outro discurso

a partir do mesmo lugar de imposiccedilatildeo respaldado por um laudo e um teste de inteligecircncia

Cabe questionar o que faz com que a psicoacuteloga seja capturada pelo desejo de se manter

numa posiccedilatildeo de controle como um agente capaz de fazer as melhores escolhas pelo bom

andamento do caso pelo bem da crianccedila Natildeo haacute como responder de um lugar alheio agrave relaccedilatildeo

transferencial que se estabelece com a crianccedila com a escola com a matildee e com a meacutedica

Interessa pois aproximar-se dos contornos da transferecircncia estabelecida

67

O que fazer diante deste impasse que se forma entre o dever de educar de tomar o

menino como mais um dos mais de vinte alunos que precisam aprender a ler e a escrever

aprender alguns coacutedigos de conduta de convivecircncia na cena escolar e aquilo que escapa agrave

funccedilatildeo civilizatoacuteria da escola o que aponta que o menino natildeo eacute apenas mais um Como

situarmos um espaccedilo entre esses dois lugares Dois lugares que tambeacutem nos constituem como

adultos que cuidam das crianccedilas uma divisatildeo entre o compromisso de educar constituindo

bordas para o gozo e desejo de deixaacute-las usufruir desse gozo sem imposiccedilatildeo de limites Haacute

aqui nesse jogo que produz um ldquoentrerdquo uma implicaccedilatildeo do adulto Um dever de se implicar

O discurso medicalizante que opera tambeacutem na escola e toma lugar do discurso educativo faria

as vezes dessa implicaccedilatildeo Constitui um dever nosso dos adultos para com as crianccedilas O que

resulta dessa operaccedilatildeo no fazer do educador

Este lugar de ldquoentrerdquo natildeo eacute senatildeo o lugar subjetivo de inscriccedilatildeo na cultura inscriccedilatildeo que

ldquocomportardquo o enlace de uma singularidade a um comum Assim como minhas marcas

correspondem agrave minha histoacuteria e somente agrave minha as do outro compreendem a singularidade

de sua histoacuteria no entanto por ldquoportarmosrdquo marcas somos iguais entatildeo ldquoportamos-comrdquo o

outro Eacute esse traccedilo comum que temos de encontrar ou reencontrar em nossas crianccedilas Traccedilo

que em posiccedilatildeo de autoria de sua histoacuteria o menino tambeacutem buscava ao dizer que natildeo sabia o

que era ldquose comportarrdquo e sofrer do horror imaginaacuterio do vazio desse lugar da anguacutestia do nada

A professora da crianccedila com TDAH da histoacuteria sabia um jeito de as coisas funcionarem

mas um jeito que encontrava um limite com o menino No limite estava o TDAH Esse

transtorno que impedia em seu entendimento que ele se comportasse Por ter um problema que

natildeo fazia parte da composiccedilatildeo de seu saber como educadora ela se desautorizava na educaccedilatildeo

de seu aluno jaacute que o problema estava fora de sua alccedilada Esbarrava-se com isto ldquoComo educar

a crianccedila com TDAH se seus sintomas me impedem de educaacute-la da forma que julgo saber que

acontece a educaccedilatildeordquo Parece que a soluccedilatildeo eacute a via da medicalizaccedilatildeo como um saber outro

inquestionaacutevel O que nos resta eacute aprender a abordaacute-lo questionaacute-lo Se nos colocarmos em

oposiccedilatildeo como fez a psicoacuteloga ao negar a referecircncia ao saber meacutedico na escola passamos a

ocupar o mesmo lugar impositivo que desautoriza o saber do outro ainda que (e talvez

justamente por isso) as intenccedilotildees sejam as melhores

Nesse sentido neste trabalho vamos tentar enunciar uma equaccedilatildeo sobre o laccedilo que hoje

sustenta a educaccedilatildeo escolar a fim de fazer aparecer o ponto limite de uma educabilidade que

dispensa o professor de sua funccedilatildeo em relaccedilatildeo a crianccedilas com TDAH Jaacute antecipamos aqui

68

nossa versatildeo embora natildeo iremos discuti-la imediatamente achamos que o que demite o

professor tambeacutem o permite Pensamos que isso pode nos remeter ao traacutegico o que nos

conduziraacute a uma visita agrave trageacutedia antiga

Para iniciar a conversa no primeiro capiacutetulo discutimos como a medicalizaccedilatildeo ingressa

no cenaacuterio educativo e o lugar a partir do qual esse discurso opera Aleacutem disso abordamos a

constituiccedilatildeo do TDAH na aacuterea meacutedica e a sua gradual imersatildeo no campo escolar Apresentamos

tambeacutem um recorte da histoacuteria do faacutermaco metilfenidato mais conhecido pelo nome comercial

Ritalina e como se torna a soluccedilatildeo apresentada para o transtorno de hiperatividade e de

desatenccedilatildeo Na primeira parte do trabalho queremos entatildeo mostrar como os processos de

medicalizaccedilatildeo da vida escolar ocorrem em larga escala saindo da particularidade de um caso

cliacutenico e pensando a dimensatildeo da questatildeo seu caraacuteter epidecircmico

No segundo capiacutetulo apresentamos a dimensatildeo do traacutegico Abordamos como a

psicanaacutelise se apropria de noccedilotildees do traacutegico a partir de trageacutedias claacutessicas para dizer de seu

modo de operar Nesse sentido apresentamos como Sigmund Freud trabalha conceitos da

psicanaacutelise com a trageacutedia de Soacutefocles Eacutedipo Rei e tambeacutem como Jacques Lacan trabalha

com a trageacutedia Antiacutegona do mesmo autor para falar da eacutetica da psicanaacutelise Discorremos

ainda sobre a peccedila Eacutedipo em Colono a qual compotildee com as duas outras trageacutedias uma trilogia

No terceiro capiacutetulo vamos abordar o traacutegico como experiecircncia humana e como gecircnero

teatral conhecendo contribuiccedilotildees de filoacutesofos como Aristoacuteteles e Nietzsche e a esteacutetica de

tragedioacutegrafos como Euriacutepides A visita ao campo do traacutegico tem por intuito recolher elementos

que nos permitam uma aproximaccedilatildeo de um modo de operar de contornar o mal-estar presente

em nossa cultura nomeado de lobo pelo caso cliacutenico de dionisiacuteaco pelo filoacutesofo Nietzsche A

escola da histoacuteria dramatizada contava com uma meacutedica representante de um saber capaz de

apaziguar suas anguacutestias diante do limite do natildeo educar Eacute possiacutevel tomar a situaccedilatildeo vivida na

escola como uma cena e o saber medicalizante que se impotildee ao cenaacuterio educativo capaz de

eliminar os conflitos vividos nele como uma repeticcedilatildeo da imposiccedilatildeo de soluccedilotildees presentes na

dramaturgia do teatro grego que assumem o nome de deus ex machina ndash um deus ou outro

personagem que entra em cena atraveacutes de uma maacutequina provocando o desenlace da histoacuteria de

forma derradeira Na segunda parte do capiacutetulo discutimos entatildeo sobre esse recurso cecircnico

bem como sobre seus efeitos

No quarto capiacutetulo ldquoEducar e seus impassesrdquo apresentamos a dimensatildeo impossiacutevel da

educaccedilatildeo enunciada pela psicanaacutelise e trabalhamos com dois desenlaces possiacuteveis diante de

69

conflitos que surgem em cena a medicalizaccedilatildeo como deus ex machina e a falta como operadora

da criaccedilatildeo

Na sequecircncia trabalhamos com uma peccedila de Euriacutepides Medeia ndash citada por Aristoacuteteles

como um mau exemplo de escolha pelo recurso do deus ex machina ndash a fim de discutir a

abordagem do traacutegico os efeitos do desenlace e as vias de abertura que surgem numa obra que

causa de grande inquietaccedilatildeo Tentamos ler Medeia a partir de significantes presentes no texto e

de elementos pensados do encontro entre psicanaacutelise filosofia educaccedilatildeo e traacutegico

De que forma o desenlace em Medeia bem como as vias de abertura nos ajudam a

pensar o modo como lidamos com o traacutegico na cena educativa Abordar essa questatildeo eacute uma

forma de encerrar o trabalho Buscamos trazer agrave frente agrave superfiacutecie os elementos que

trabalhamos ao longo da escrita e que podem compor uma equaccedilatildeo teoacuterica que nos permite ler

a histoacuteria proposta no proacutelogo

Em seguida apresentamos um epiacutelogo constituiacutedo por histoacuterias vividas na escola pela

autora do trabalho ocupando diferentes posiccedilotildees narrativas Eacute a forma que escolhemos de fazer

o desenlace

Os caminhos da pesquisa

Com a psicanaacutelise como meacutetodo de pesquisa acreditamos ser possiacutevel construir um

saber entre os discursos um terceiro espaccedilo uma terceira via que sem intenccedilotildees prescritivas

possibilita a enunciaccedilatildeo dos impasses educativos

O meacutetodo de pesquisa que engendrou este trabalho percorreu duas vias A primeira diz

respeito agrave construccedilatildeo de caso cliacutenico A segunda se pautou na leitura de um acontecimento a

partir de elementos que decantam da anaacutelise de outro campo de experiecircncia

No proacutelogo deste trabalho apresentamos um texto dramatuacutergico inspirado na

experiecircncia cliacutenica da psicoacuteloga da histoacuteria Buscamos atraveacutes do arranjo cecircnico dar lugar aos

impasses vivenciados acerca da escolarizaccedilatildeo da crianccedila num jogo formado pelos lugares

ocupados por cada personagem Criamos um personagem que natildeo participa ativamente das

cenas mas tem o papel de tecer diaacutelogo entre as accedilotildees cecircnicas e o leitor da dramaturgia no

sentido de promover um espaccedilo terceiro entre duas situaccedilotildees entre dois personagens que por

vezes estatildeo em oposiccedilatildeo um em relaccedilatildeo ao outro e buscam de certo modo o apagamento da

demanda do outro a quem se opotildeem O nome que damos a essa voz eacute Noacutes convocando a escrita

70

e a leitura do caso a ocuparem um espaccedilo conjunto observando as tensotildees e polaridades da

cena numa tentativa de nos aproximarmos daquilo que concerne ao traacutegico (cujas

particularidades seratildeo discutidas nas proacuteximas paacuteginas)

Deste lugar que nomeamos Noacutes queremos a partir de uma certa distacircncia dos

acontecimentos vislumbrar elementos miacutenimos que formam a conjuntura das cenas a fim de

que dela decante um saber sobre o caso capaz de ser transmitido De acordo com Acircngela

Vorcaro (2010) os elementos que restam de um caso cliacutenico guardam o seu saber constituiacutedo

pelo encontro que se daacute entre o analista e o analisando e tambeacutem por aquilo que transborda

desse encontro permitindo a experiecircncia da cliacutenica interrogar a teoria e a teacutecnica da psicanaacutelise

fazendo com que uma transmissatildeo seja possiacutevel Para a autora cada caso propotildee um saber

singular impedindo tentativas de aplicabilidade do meacutetodo psicanaliacutetico ldquoEfetivamente Freud

decanta a cliacutenica e transmite dela o caso E interessa ressaltar que o caso natildeo se limita ao

paciente mas refere-se ao encontro que a cliacutenica promoverdquo (VORCARO 2010 p 12)

Eacute este ponto de encontro que a cliacutenica promove ponto em que se tece a relaccedilatildeo

transferencial onde cada personagem fala e age a partir dela que buscamos situar a figura do

Noacutes Destacamos tambeacutem a referecircncia de Vorcaro a Freud na transmissatildeo de casos cliacutenicos

Geralmente os casos mais desafiadores ao psicanalista o impeliam agrave escrita os casos que

supostamente ldquonatildeo deram certordquo ou ainda casos com os quais ele natildeo conseguiu trabalhar

Nesse sentido a cada caso escrito transmitia-se um saber singular sobre a cliacutenica psicanaliacutetica

No papel de psicoacuteloga buscamos com a escrita dos recortes cliacutenicos dar lugar agrave relaccedilatildeo

transferencial a partir da qual era possiacutevel agir e fazer dos elementos que restam do caso uma

pesquisa Segundo Vorcaro

[] nessa dobradiccedila em que se identifica num soacute tempo o cliacutenico e o pesquisador interessa localizar nos traccedilos depositados da escrita literal como o pesquisador ultrapassa sua transcriccedilatildeo Afinal um saber se deposita em seu escrito a despeito da consciecircncia do autor Eacute o que permite ao pesquisador ao retornar outras vezes mais sobre a transcriccedilatildeo feita do caso situar propriamente o que o caso fisga de interesse investigativo (VORCARO 2010 p 15)

Da leitura literal do escrito torna-se possiacutevel encontrar traccedilos que conectados formam

uma constelaccedilatildeo estrutura que busca transmitir o saber ainda que o saber comporte um

impossiacutevel um saber inconsciente Buscamos assim os elementos miacutenimos para produzir uma

71

equaccedilatildeo teoacuterica ndash equaccedilatildeo que nos permite voltar ao cenaacuterio para lecirc-lo novamente e almeja

permitir ler tambeacutem outros cenaacuterios

A fim de produzir um distanciamento dos impasses gerados na escolarizaccedilatildeo da crianccedila

situaccedilatildeo vivenciada na cliacutenica e na escola escolhemos uma estrutura dramatuacutergica para contar

a histoacuteria Identificamos que haacute em cena posiccedilotildees discursivas diferentes que em funccedilatildeo da

posiccedilatildeo sintomaacutetica de cada um e do lugar que ocupam em transferecircncia impedem os

deslocamentos necessaacuterios para que se arme um desenlace capaz de transformar essas posiccedilotildees

Haacute na verdade uma ilusatildeo em cada uma (pedagoga psicoacuteloga meacutedica) de que a escolha

tomada individualmente teraacute condiccedilotildees de resolver o problema

A leitura dessa situaccedilatildeo nos remete aos modos de desenlace operados pelo traacutegico a

como era apresentado pelas trageacutedias claacutessicas e como ao longo dos seacuteculos foi sendo

substituiacutedo por novas esteacuteticas teatrais com grande influecircncia das transformaccedilotildees filosoacuteficas e

poliacuteticas Dessa forma nossa investigaccedilatildeo busca captar o ponto de virada de um arranjo cecircnico

para outro

Eacute nesse sentido que adentramos em nossa segunda via metodoloacutegica que consiste em

tomar elementos estruturais de um campo outro para ler uma questatildeo inquietante de nosso

tempo para entendermos como estamos habituados a trabalhar com ela hoje Da passagem do

mundo traacutegico ao ensinamento moral que ocorreu com os gregos pensamos que haacute uma

estrutura possiacutevel de ser tomada para tentar acessar o que opera nesse apelo ao saber meacutedico

feito pela escola Assim o meacutetodo proposto ocorre no sentido de tomar um acontecimento

analisaacute-lo e destacar dele elementos estruturais que permitem acessar um outro acontecimento

Aleacutem disso destacamos que a opccedilatildeo por um texto dramatuacutergico se aproxima da

construccedilatildeo de caso psicanaliacutetico na medida em que ambas as escritas buscam trazer agrave tona as

nuances da histoacuteria as tensotildees e polaridades sustentadas em cena de modo a transmitir ao leitor

um saber sobre a experiecircncia Diferente seria a tendecircncia a oferecer uma soluccedilatildeo aplicaacutevel para

toda e qualquer situaccedilatildeo uma imposiccedilatildeo de verdade Satildeo duas formas conflitantes que tentamos

expor em cena e nas discussotildees teoacutericas deste trabalho

72

1 A MEDICALIZACcedilAtildeO NA CENA EDUCATIVA E A CONSTITUICcedilAtildeO DO TDAH

Este trabalho se inscreve entre as discussotildees que vem sendo realizadas no campo da

educaccedilatildeo acerca dos processos de medicalizaccedilatildeo da vida e de como o saber meacutedico se faz

presente no discurso da escola

Na extensatildeo de sua obra Michel Foucault apresenta como a medicina ganhou espaccedilo

na sociedade europeia ao longo dos seacuteculos XVIII XIX e XX atraveacutes dos movimentos de

urbanizaccedilatildeo sanitarizaccedilatildeo higienizaccedilatildeo educaccedilatildeo a fim de zelar pela sauacutede da populaccedilatildeo Na

esteira dessa praacutetica no entanto encontramos a medicina como estrateacutegia de um exerciacutecio de

controle e poder sobre os corpos encarregada de produzir discurso de verdade acerca da

normalidade da sexualidade da educaccedilatildeo nas famiacutelias e instituiccedilotildees sociais Hoje colhemos

os efeitos desse discurso e ainda o produzimos na sociedade e educaccedilatildeo brasileira

Considerando as contribuiccedilotildees de Foucault o pesquisador Irving Zola (1972) propotildee

trazer agrave tona o termo ldquomedicalizaccedilatildeordquo Com isso menciona que a medicina se tornou uma

instituiccedilatildeo de controle social que toma o lugar de instituiccedilotildees tradicionais como a religiatildeo e o

direito Conquistou o poder de proferir e julgar a verdade das coisas a partir de um ponto de

vista supostamente neutro em nome da sauacutede Isso natildeo ocorre atraveacutes do poder poliacutetico que a

pessoa do meacutedico pode ter ou influenciar mas eacute ldquoum fenocircmeno insidioso e natildeo dramaacutetico

implicado em lsquomedicalizarrsquo muito da nossa vida diaacuteria fazendo dos medicamentos e dos roacutetulos

lsquosaudaacutevelrsquo e lsquodoentersquo relevantes a toda parte da existecircncia humanardquo (ZOLA 1972 p 487)

O autor fala que esse fenocircmeno comeccedilou a ser percebido atraveacutes da psiquiatria campo

da medicina para o qual criacuteticas e preocupaccedilotildees foram convergidas mas isso natildeo impediu que

a medicalizaccedilatildeo acontecesse Se buscarmos os motivos veremos que tal processo estaacute

ldquoenraizado no avanccedilo do nosso complexo e burocraacutetico sistema tecnoloacutegico que nos levou para

o caminho da relutante confianccedila no especialistardquo (ZOLA 1972 p 487)

Dessa forma Zola (1972) desloca uma possiacutevel culpabilizaccedilatildeo da ciecircncia da medicina

ou da ciecircncia da psiquiatria pela existecircncia dos processos de medicalizaccedilatildeo para um

acontecimento decorrente do progresso cientifico e tecnoloacutegico que acaba por regular as nossas

relaccedilotildees com os outros numa espeacutecie de cuidado e vigilacircncia Natildeo haacute uma entidade ou

indiviacuteduo culpados por implantar os processos de medicalizaccedilatildeo pois estes estatildeo no interior de

nossa cultura

73

Medicalizaccedilatildeo eacute o processo de tornar um problema natildeo meacutedico geralmente um

problema social como algo pertencente ao campo da medicina a qual tem a incumbecircncia de

nomeaacute-lo e trataacute-lo Michel Foucault apresenta no curso Os anormais de que forma a

medicalizaccedilatildeo se constitui no terreno da psiquiatria e lhe confere poder

Despatologizaccedilatildeo do objeto foi essa a condiccedilatildeo para que o poder meacutedico poreacutem da psiquiatria pudesse se generalizar assim Surge entatildeo o problema como pode funcionar um dispositivo tecnoloacutegico um saber-poder tal em que o saber despatologiza de saiacuteda um domiacutenio de objetos que no entanto oferece a um poder que soacute pode existir como poder meacutedico Poder meacutedico sobre o natildeo-patoloacutegico estaacute aiacute a meu ver o problema central ndash mas talvez vocecircs digam evidente ndash da psiquiatria (FOUCAULT 2001 p 394)

Numa perspectiva contemporacircnea da medicalizaccedilatildeo num novo regime de gestatildeo da

vida Seacutergio Carvalho e outros (2015) apontam que os pacientes estatildeo cada vez mais autocircnomos

satildeo agora indiviacuteduos consumidores que natildeo se submetem mais ao meacutedico como um agente de

cuidado mas esperam dele e de outros profissionais implicados com novas tecnologias em

sauacutede prescriccedilotildees e orientaccedilotildees de forma que eles ndash os proacuteprios pacientes ndash possam decidir

sobre o destino de seus corpos No entanto podemos dizer ainda que tenham mudado de

posiccedilatildeo na teia discursiva da medicalizaccedilatildeo seguem fazendo parte desse emaranhado como

consumidores dos produtos da medicina

A medicalizaccedilatildeo com a qual estamos familiarizados hoje ou seja o processo intriacutenseco

ao progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico comeccedilou a aparecer na segunda metade do seacuteculo XX

Poreacutem a praacutetica vem tomando corpo desde o fim do seacuteculo XVIII com o discurso de

normalizaccedilatildeo da existecircncia problematizado na obra de Foucault Se hoje tendemos a traccedilar uma

separaccedilatildeo entre o corpo doente e o corpo saudaacutevel com o desenvolvimento da psiquiatria haacute

dois seacuteculos comeccedilamos a demarcar de forma cada vez mais clara e precisa a fronteira entre o

que eacute normal e o que eacute patoloacutegico

Essa distinccedilatildeo entre a normalidade e a patologia constitui um modo de operar proacuteprio

ao campo da psiquiatria que implica a instituiccedilatildeo de um padratildeo normal de funcionamento

mental e de comportamento ao qual todo indiviacuteduo eacute comparado Tal padratildeo eacute sempre dado a

priori nunca eacute questionado Mas como surge o padratildeo

De acordo com Freitas (2011) a partir de uma heranccedila dos ideais iluministas que

concebe o ser humano como racional e individualizado a psiquiatria durante o seacuteculo XIX

desenvolveu-se no sentido de descobrir funccedilotildees mentais e localizar no ceacuterebro problemas que

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acometiam tais funccedilotildees As descobertas neurofisioloacutegicas possibilitaram a concepccedilatildeo de teorias

acerca das capacidades humanas sendo que cada ser humano como indiviacuteduo deveria zelar

sobre sua mente e adaptaacute-la ao meio externo Aqueles que natildeo conseguiam ter esse cuidado

sobre suas funccedilotildees mentais demonstravam sinais patoloacutegicos de provaacutevel etiologia orgacircnica

Dessa forma o indiviacuteduo normal seria aquele mais adaptado agrave sua realidade e qualquer

desvio de norma poderia indicar uma patologia Entendemos que para a psiquiatria da eacutepoca a

origem de um problema de desajuste social estaacute localizada no organismo de um indiviacuteduo um

ser considerado doente e anormal sem levar em conta as particularidades da vida de cada um

ou entatildeo como a cultura eacute inscrita transmitida a cada sujeito concepccedilotildees que podemos ter hoje

ao nos debruccedilarmos sobre as produccedilotildees de nossos antepassados No seacuteculo XIX eram outros

os elementos que organizavam o discurso social

De acordo com Foucault (2006) nessa eacutepoca o meacutedico acaba por incorporar o poder

psiquiaacutetrico sobre o paciente tornando seu meacutetodo de intervenccedilatildeo a prova do domiacutenio sobre o

saber e sobre o outro A interrogaccedilatildeo que atesta a loucura a prescriccedilatildeo de medicamentos que

controlam o corpo o proacuteprio uso da hipnose satildeo praacuteticas que comprovam o poder psiquiaacutetrico

que tomam por terapecircuticas accedilotildees disciplinares Assim se constituiacuteam relaccedilotildees de poder

operadas por um discurso medicalizante que natildeo pode ser confundido com uma pessoa mas

com a funccedilatildeo que ela exerce num acircmbito relacional

Segundo Chaves e Caliman (2017) havia uma divergecircncia de olhares sobre o indiviacuteduo

doente Enquanto Esquirol pensava que a anormalidade era inata fatalidade bioloacutegica e

hereditaacuteria Seacuteguin acreditava na possibilidade de mudanccedila de comportamento dos indiviacuteduos

se houvesse uma intervenccedilatildeo Seacuteguin trouxe a noccedilatildeo de que o desenvolvimento ocorre a todo

ser humano de modo universal e que alguns apresentam particularidades para as quais uma

intervenccedilatildeo normalizadora eacute possiacutevel Tais particularidades passaram a ser levantadas descritas

e classificadas Nesse sentido a medicina conquista um espaccedilo para atuar de forma pedagoacutegica

e preventiva

Com as noccedilotildees de desenvolvimento e necessidade de prevenccedilatildeo de patologias o cenaacuterio

da psiquiatria passa a abranger tambeacutem a infacircncia de forma a produzir um saber meacutedico sobre

a crianccedila Dessa maneira

[] em torno da crianccedila anormal aquela que natildeo avanccedilava no seu desenvolvimento cresceu a defesa de um tratamento moral e de prevenccedilatildeo dos desvios facilitando a expansatildeo de estrateacutegias disciplinares da psiquiatria

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para aleacutem dos limites asilares aproximando-se das famiacutelias e das escolas (CHAVES CALIMAN 2017 p 141)

Podemos entrever essa ideia em Foucault no curso Os anormais O filoacutesofo aponta que

a psiquiatria proposta por Esquirol tinha um modelo de imitaccedilatildeo ou seja tinha como centro a

doenccedila e o que um conjunto de sintomas poderia representar dessa doenccedila Essa forma de operar

eacute substituiacuteda por uma psiquiatria que desfoca a doenccedila ou natildeo a coloca como causa de suas

investigaccedilotildees mas propotildee como centro um desenvolvimento normativo voltando sua atenccedilatildeo

entatildeo agrave infacircncia Tal modo de fazer psiquiatria eacute para o autor uma correlaccedilatildeo agraves descobertas

cientiacuteficas da neurologia e da biologia com as quais a psiquiatria poderia constituir-se como

saber da medicina

Vocecircs compreendem nessa medida por que e como a psiquiatria pocircde manifestar tanta obstinaccedilatildeo em enfiar o nariz no quarto de crianccedila ou na infacircncia Natildeo eacute porque ela queria acrescentar uma peccedila anexa a seu domiacutenio jaacute imenso natildeo eacute porque queria colonizar mais uma pequena parte de existecircncia em que ela natildeo teria tocado ao contraacuterio eacute que havia aiacute para ela o instrumento de sua universalizaccedilatildeo possiacutevel (FOUCAULT 2001 p 392)

Na infacircncia assim poderiacuteamos averiguar antecipaccedilotildees ou atrasos do desenvolvimento

humano normal que embora natildeo possam ser chamados de doentes eram entendidos como

anomalias Um instinto sexual biologicamente constituiacutedo poderia surgir precocemente na

infacircncia Por outro lado condutas sexuais inapropriadas para adultos de quem se espera um

desenvolvimento normal e controle sobre suas funccedilotildees mentais e instintos eram nomeadas de

infantis A palavra ldquoinfantilrdquo ou ldquoinfantilizadordquo acaba por significar condutas imaturas ou

seja na infacircncia ainda estamos num processo de maturaccedilatildeo orgacircnico e de nossas funccedilotildees

mentais que se bem controlado se bem educado nos conduz a uma normalidade adulta

No acircmbito da escola comeccedilaram a surgir espaccedilos para a educaccedilatildeo de crianccedilas ldquodoentesrdquo

(geralmente classificadas com idiotia ou seja retardo mental) separadas das crianccedilas ditas

normais das classes das escolas regulares No entanto dentro da sala de aula normal

apareceram novas categorias de anormalidade as crianccedilas com problemas morais inquietos e

indisciplinados que atrapalhavam a rotina escolar Dessa forma uma diferenccedila entre

comportamento doentio e conduta anocircmala indesejada no acircmbito da escola passou a ser

estabelecida (CHAVES CALIMAN 2017) Ou entatildeo como pode referir Foucault (2001 p

391)

76

Eacute um contratempo eacute uma sacudida nas estruturas que aparecem em contraste com um desenvolvimento normal e que vatildeo constituir o objeto geral da psiquiatria E eacute soacute secundariamente em relaccedilatildeo a essa anomalia fundamental que as doenccedilas vatildeo aparecer como uma espeacutecie de epifenocircmeno com relaccedilatildeo a esse estado que eacute fundamentalmente um estado de anomalia

Nesse sentido jaacute no seacuteculo XX a psiquiatria sentiu a necessidade de criar compecircndios

e manuais de doenccedilas encontradas nas diferentes fases do desenvolvimento humano e em

diferentes espaccedilos da vida humana a fim de ajudar na sua classificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo Eacute nesse

cenaacuterio que surgem as doenccedilas mentais de causas supostamente fisioloacutegicas que afetam

crianccedilas de acordo com uma concepccedilatildeo que correlaciona a anomalia do desenvolvimento com

achados neuroloacutegicos e bioloacutegicos

Durante a Primeira Guerra Mundial de acordo com Herrera (2015) Europa e Estados

Unidos viveram a epidemia de uma doenccedila misteriosa cujas causa e cura ateacute hoje natildeo foram

satisfatoriamente descobertas a encefalite letaacutergica um tipo de dor de cabeccedila potencialmente

fatal acompanhada de febre letargia tremores perda da fala e psicose entre outros sintomas

Como sintomas residuais foram descritas alteraccedilatildeo do sono hiperatividade teimosia

irritabilidade e problemas de memoacuteria

Entendemos que na eacutepoca muitos agentes etioloacutegicos eram ainda desconhecidos como

viacuterus e bacteacuterias Sabe-se que a doenccedila surgiu em contexto de guerra em que soldados poderiam

entrar em contato com soldados de outros territoacuterios transmitindo ou sendo infectados por

micro-organismos ainda estranhos ao corpo do outro ou ao seu proacuteprio Haacute uma suposiccedilatildeo atual

de que a encefalite letaacutergica tenha se originado por uma bacteacuteria que se alojava na garganta No

entanto na eacutepoca da epidemia quem investigava a doenccedila eram neurologistas por acreditarem

que a origem era um comprometimento das funccedilotildees neuroloacutegicas

No campo da medicina e da neurologia o seacuteculo XX foi marcado por uma importante

mudanccedila na forma de conceber e abordar sintomas de doenccedilas supostamente de origem

orgacircnica Anteriormente agrave Primeira Guerra Mundial meacutedicos viam-se preocupados com casos

de histeria doenccedila que acometia em sua maioria as mulheres e reunia alguns sintomas

semelhantes ao da encefalite letaacutergica aleacutem de paralisias e cegueiras

Sigmund Freud meacutedico formado em Viena atraveacutes do que estudou com Breuer e

Charcot a respeito do meacutetodo hipnoacutetico e com a ajuda de suas pacientes propocircs ao mundo da

medicina um novo meacutetodo de abordagem da histeria a escuta das representaccedilotildees mentais de

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eventos traumaacuteticos e de histoacuterias de vida relacionadas a esses eventos o que levava agrave remissatildeo

ou ao aliacutevio de sintomas e a uma posiccedilatildeo mais responsaacutevel sobre escolhas de vida Assim no

iniacutecio do seacuteculo XX Freud apresentou a psicanaacutelise como teoria e meacutetodo de tratamento para

as neuroses As neuroses ainda que apresentem manifestaccedilotildees no corpo natildeo se originam de

acometimentos orgacircnicos mas se devem ao recalque a conteuacutedos mentais recalcados

alienados da consciecircncia Nesse sentido o surgimento da psicanaacutelise como teoria e meacutetodo de

tratamento foi a escuta de mulheres histeacutericas mulheres que situaram um limite no campo

meacutedico A partir do pedido de suas pacientes por tomarem a palavra Freud engendrou uma

nova forma de abordagem ao saber meacutedico que encontrou suas resistecircncias

Com o desenvolvimento da psicanaacutelise Freud chegou a alguns pilares de sua teoria

como o conceito de Trieb traduzido no Brasil por ldquopulsatildeordquo Na proposta de Freud (19152004)

a pulsatildeo evidenciaria a exigecircncia do trabalho imposto ao psiacutequico por sua articulaccedilatildeo ao corpo

referindo-se a impulsos que brotam do interior do corpo e demandam uma representaccedilatildeo

psiacutequica Aqui pode haver referecircncia agrave forma de abordagem das anormalidades discutida por

Foucault Haacute um trabalho psiacutequico em estabelecer uma articulaccedilatildeo entre as representaccedilotildees e o

que lateja no corpo Mannoni (2003) tambeacutem comenta que as produccedilotildees freudianas no iniacutecio

de sua vida como psicanalista eram tomadas na via de um paralelismo psicofiacutesico observado

em outros estudiosos Mas o corpo trazido agrave tona pelo discurso psicanaliacutetico a partir da escuta

de pacientes eacute o mesmo corpo da neurologia e da biologia objeto de investigaccedilatildeo e controle

da medicina Talvez uma das inovaccedilotildees de Freud para o campo da medicina seja a inauguraccedilatildeo

de uma nova noccedilatildeo de corpo atraveacutes de uma nova abordagem

Nesse sentido acreditamos que haacute aqui um contraste entre formas de abordagem dos

sintomas no campo da medicina Contudo natildeo queremos igualar histeria e encefalite letaacutergica

identificando-as numa mesma categoria nosoloacutegica pois sabemos que natildeo satildeo a mesma coisa

Apenas queremos dizer que para doenccedilas com sintomas neuroloacutegicos semelhantes que

desafiavam o campo meacutedico existiam modos distintos de investigaccedilatildeo que produziam modos

diferentes de conceber o corpo

Na deacutecada de 1930 alguns pesquisadores preocupados com uma nova epidemia de

encefalite letaacutergica voltaram-se agrave investigaccedilatildeo da gecircnese das condiccedilotildees neuroloacutegicas que

caracterizavam a doenccedila e estudaram o comportamento de crianccedilas com supostas lesotildees

cerebrais Jaacute em 1947 de acordo com Herrera (2015) Strauss e Werner criaram o termo Lesatildeo

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Cerebral Miacutenima (LCM) para descrever crianccedilas com problemas de comportamento e com

dificuldades para aprender que natildeo se encaixavam em outras patologias da infacircncia

Poreacutem ao natildeo ser constatada lesatildeo alguma no ceacuterebro de crianccedilas supostamente

doentes o termo LCM foi substituiacutedo por DCM Disfunccedilatildeo Cerebral Miacutenima nova categoria

que foi amplamente divulgada nos Estados Unidos por meio da publicaccedilatildeo de um manual

explicativo em 1964 que traccedilava uma histoacuteria dos problemas de aprendizagem ateacute se chegar

ao DCM O projeto foi financiado pelo governo americano e consistia tambeacutem na distribuiccedilatildeo

de panfletos e na transmissatildeo de curtas-metragens que orientavam a populaccedilatildeo para a detecccedilatildeo

da disfunccedilatildeo (HERRERA 2015)

Em 1968 o Manual diagnoacutestico e estatiacutestico dos transtornos mentais (DSM) era

lanccedilado em sua segunda ediccedilatildeo na qual apresentava outra categoria de transtorno do aprender

chamada Transtorno de Reaccedilatildeo Hipercineacutetica ou Hipercinesia que continha os principais

sintomas da DCM as saber a hiperatividade desatenccedilatildeo e impulsividade

O nome da disfunccedilatildeo foi modificado para Distuacuterbio de Deacuteficit de Atenccedilatildeo na ediccedilatildeo do

DSM-III e para Transtorno do Deacuteficit de Atenccedilatildeo Com ou Sem Hiperatividade (TDAH) ou de

tipo combinado no DSM-IV Aparece com a mesma nomenclatura no DSM-V Jaacute outro manual

de classificaccedilatildeo de desordens mentais o Coacutedigo Internacional de Doenccedilas (CID-10) chama um

distuacuterbio similar ao TDAH de Transtornos Hipercineacuteticos

Segundo o DSM-V o TDAH eacute um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado

por dificuldades no desenvolvimento que se manifestam desde a infacircncia e influenciam no

desempenho estudantil familiar e social O diagnoacutestico pode ser realizado a partir dos 6 anos

de idade Consiste num padratildeo persistente de desatenccedilatildeo eou hiperatividade e impulsividade

que caracterizam uma disfunccedilatildeo no desenvolvimento Tanto o tipo desatento quanto o tipo

hiperativo exigem que no miacutenimo seis sintomas de nove listados de cada um estejam presentes

e persistam por pelo menos seis meses de modo incompatiacutevel com o niacutevel de desenvolvimento

e que tenham prejuiacutezos sobre a vida estudantil profissional e social do indiviacuteduo (AMERICAN

PSYCHIATRY ASSOCIATION 2014)

Freitas (2011) em sua tese de doutorado propotildee pensar o que caracteriza o TDAH Se

nesse transtorno o sujeito eacute marcado por um deacuteficit importante da atenccedilatildeo a autora sugere

investigar este conceito e sua construccedilatildeo histoacuterica Haveria um consenso sobre seu significado

Freitas aponta que natildeo

79

A ausecircncia de uma definiccedilatildeo mais clara do conceito de atenccedilatildeo em muitos escritos pode parecer aparentemente irrelevante como se esse fosse um dado que se pudesse tomar a priori Mas natildeo eacute Entendo que esse conceito vem sendo usado como se todos tiveacutessemos propriedade sobre ele ou mesmo um entendimento padratildeo para seu uso Mas natildeo temos (FREITAS 2011 p 42)

Frisamos que Freud no iniacutecio do seacuteculo XX situando a teacutecnica da escuta analiacutetica

aborda a atenccedilatildeo Ele a teoriza da seguinte forma

[] poupamos de esforccedilo violento nossa atenccedilatildeo a qual de qualquer modo natildeo poderia ser mantida por vaacuterias horas diariamente e evitamos um perigo que eacute inseparaacutevel do exerciacutecio da atenccedilatildeo deliberada Pois assim que algueacutem deliberadamente concentra bastante a atenccedilatildeo comeccedila a selecionar o material que lhe eacute apresentado um ponto fixar-se-aacute em sua mente com clareza particular e algum outro seraacute correspondentemente negligenciado e ao fazer essa seleccedilatildeo estaraacute seguindo suas expectativas ou inclinaccedilotildees Isto contudo eacute exatamente o que natildeo deve ser feito Ao efetuar a seleccedilatildeo se seguir suas expectativas estaraacute arriscado a nunca descobrir nada aleacutem do que jaacute sabe e se seguir as inclinaccedilotildees certamente falsificaraacute o que possa perceber Natildeo se deve esquecer que o que se escuta na maioria satildeo coisas cujo significado soacute eacute identificado posteriormente (FREUD 19121996c p 70)

Sabemos que haacute aqui uma diferenccedila importante a ser situada entre a atenccedilatildeo demandada

na escuta psicanaliacutetica voltada para a literalidade do que se escreve na fala e uma atenccedilatildeo

voluntaacuteria que pertence aos processos conscientes Para Freitas (2011) cada tempo de nossa

histoacuteria apresentou um modo de conceber a atenccedilatildeo de controlaacute-la de julgaacute-la e de medi-la Eacute

possiacutevel entender que a atenccedilatildeo eacute um conceito em transformaccedilatildeo constante inseparaacutevel das

mudanccedilas de paradigma ao longo da nossa histoacuteria

Por exemplo a autora aponta a importacircncia da atenccedilatildeo durante o seacuteculo XIX e o quanto

o desenvolvimento dessa funccedilatildeo psicoloacutegica ficou atrelado agraves possibilidades da ciecircncia de

medi-la pensar formas de estimulaacute-la e controlaacute-la Nesse sentido a concepccedilatildeo de atenccedilatildeo

adequava-se aos limites das teacutecnicas de mediccedilatildeo Coube agrave educaccedilatildeo como papel fundamental

nesse processo entrever as condiccedilotildees de fixar a atenccedilatildeo das crianccedilas para os modelos morais

respeitaacuteveis da eacutepoca

Com o desenvolvimento do conceito de atenccedilatildeo pelo discurso meacutedico as noccedilotildees de

impulsividade e de falta de controle se tornam indiacutecios de patologia Isso pode ter colaborado

para a descriccedilatildeo de uma entidade nosoloacutegica como o TDAH que reuacutene sintomas de desatenccedilatildeo

hiperatividade e impulsividade

80

Santos e Freitas (2016) entrevistando Ilina Singh uma importante pesquisadora inglesa

sobre o TDAH contam que o transtorno ficou conhecido no Brasil nos anos 1990 quando

professores passaram a identificar alunos hiperativos em suas salas de aula e encaminhaacute-los

para diagnoacutesticos meacutedicos Hoje os diagnoacutesticos de TDAH atingiram niacuteveis epidecircmicos no

Brasil

Os pesquisadores afirmam que a miacutedia tem um importante papel nessa mudanccedila de

cenaacuterio No entanto hoje na cidade de Porto Alegre professores recebem treinamento e

capacitaccedilatildeo especiacuteficos para detectar a presenccedila de sintomas de TDAH nos estudantes e satildeo

orientados a fazer o devido encaminhamento para especialistas em sauacutede

Para os autores essa situaccedilatildeo evidencia o quanto a escola brasileira estaacute se tornando

dependente da presenccedila do saber meacutedico para legislar sobre problemas de aprendizagem

Em outras palavras as escolas estatildeo delegando agrave medicina a autoridade para legislar sobre problemas ou questotildees que poderiam ser vistos como escolares ou sociais num claro processo de medicalizaccedilatildeo Neste sentido entendemos que as escolas estatildeo deixando um espaccedilo vazio em termos pedagoacutegicos no que se refere agraves suas possiacuteveis accedilotildees ou praacuteticas [] (SANTOS FREITAS 2016 p 1079)

O fato de o nuacutemero de crianccedilas e de pessoas de diferentes idades ter atingido um

patamar considerado epidecircmico no Brasil eacute algo que causa bastante preocupaccedilatildeo e necessidade

de investigar as causas do transtorno sejam elas orgacircnicas fisioloacutegicas educacionais e sociais

em diversas pesquisas no Paiacutes assim como um dia pesquisadores se ocuparam de estudar a

encefalite letaacutergica no iniacutecio do seacuteculo passado

De acordo com Freitas (2011) uma epidemia eacute assim chamada quando um evento ou

uma doenccedila aparece repentinamente e atinge rapidamente uma parcela consideraacutevel da

populaccedilatildeo A autora aponta que a prevalecircncia de crianccedilas com TDAH no mundo varia de 3 a

6 dependendo do paiacutes ou da regiatildeo E percebe tal realidade quando numa turma de vinte

alunos quatro ou cinco tecircm o diagnoacutestico e os professores natildeo se impressionam com tal fato

As formas de abordar a epidemia do TDAH satildeo bastante diversas de acordo com a aacuterea

de pesquisa e a trajetoacuteria acadecircmica Haacute aqueles que se questionam sobre a existecircncia do

transtorno ndash natildeo seria uma invenccedilatildeo da American Psychiatry Association (APA) Temos uma

epidemia de acometidos ou de diagnoacutesticos ndash e haacute outros que apresentam registros de uma

doenccedila semelhante ao TDAH descrita no seacuteculo XVIII e afirmam que as crianccedilas tecircm o direito

de serem diagnosticadas e tratadas

81

Ilina Singh (apud SANTOS FREITAS 2016) fala da importacircncia de tratarmos da

questatildeo de modo multifatorial como um problema de sauacutede puacuteblica que coloca as diversas

aacutereas a trabalharem juntas Hoje eacute conhecido amplamente que o principal encaminhamento que

se faz a uma crianccedila com TDAH eacute a avaliaccedilatildeo meacutedica para o iniacutecio de tratamento com o

metilfenidato um psicoestimulante criado nos anos 1950 na Suiacuteccedila vendido e consumido no

mundo inteiro

No entanto Singh considera como algo importante no tratamento a escuta das crianccedilas

e de suas famiacutelias a fim de registrar e de divulgar o que elas podem dizer sobre isso que lhes

acontece isso que chamamos TDAH Nada mais justo do que dar voz agravequeles que sofrem os

sintomas assim como no fim do seacuteculo XIX Freud deu voz agraves histeacutericas constituindo um

meacutetodo que permitiu aos sujeitos narrarem as particularidades de suas histoacuterias para aleacutem dos

achados cientiacuteficos Eacute importante na escuta de crianccedilas com TDAH lembrar o que nos disse a

psicanalista Maud Mannoni (2003) natildeo podemos usar a crianccedila para comprovar as verdades

de uma teoria ou seja natildeo devemos querer encontrar na crianccedila os sintomas previstos de

desatenccedilatildeo e hiperatividade mas buscar construir com ela uma narrativa que sirva de ponte

para outras formas de ser e estar no mundo

11 MARGUERITE ou um recorte da histoacuteria da RITALINA

O nome Marguerite tem sua importacircncia para a histoacuteria da psicanaacutelise teoria e meacutetodo

a partir dos quais se pretende traccedilar as linhas desta pesquisa O psicanalista Jacques Lacan

apresentou em sua tese de doutorado em psiquiatria o ldquoCaso Aimeacuteerdquo nome fictiacutecio de

Marguerite uma mulher que sofria de paranoia A partir da escuta de seus deliacuterios Lacan

desloca uma concepccedilatildeo organicista e sintomaacutetica acerca da paranoia para uma concepccedilatildeo

psicanaliacutetica dando ecircnfase aos significantes que organizam e desorganizam o deliacuterio

Gostariacuteamos no entanto de apresentar outra Marguerite natildeo a partir de um caso cliacutenico

mas como sua histoacuteria inspirou o nome de um faacutermaco

Marguerite era uma jovem mulher que vivia com seu marido Leandro Panizzon em

Basel Suiacuteccedila Os dois haviam nascido e crescido na Itaacutelia Ela jogava tecircnis Leandro era quiacutemico

na empresa CIBA Na eacutepoca ele sintetizava compostos de nitrogecircnio

Certo dia no ano de 1944 ele fez experimentos com a piperidina uma amina encontrada

em plantas e criou um composto molecular muito semelhante agraves anfetaminas que satildeo poderosos

82

estimulantes No entanto a empresa onde trabalhava entendeu que Panizzon havia produzido

um estimulante leve uma espeacutecie de ldquopsicotocircnicordquo (SHORTER 2008)

Dessa forma o que ele havia descoberto era diferente dos estimulantes que se conheciam

ateacute entatildeo derivados das anfetaminas Um importante estimulante com essa derivaccedilatildeo

sintetizado em 1932 na Franccedila foi a benzedrina muito utilizada durante a Segunda Guerra

Mundial com o intuito de aumentar a resistecircncia e eliminar o cansaccedilo dos soldados (BRANT

CARVALHO 2012)

Por questatildeo de honra o quiacutemico resolveu experimentar sua criaccedilatildeo para averiguar seus

efeitos Poreacutem ele natildeo sentiu nada digno de nota Resolveu entatildeo oferecer o composto agrave sua

esposa Diferentemente de Leandro Marguerite se sentiu estimulada e disposta quando provou

a droga Passou a usaacute-la com frequecircncia e notou melhora em seu problema de pressatildeo baixa

Aleacutem disso comeccedilou a tomaacute-la antes de suas partidas de tecircnis o que a ajudou a aprimorar seu

desempenho (SHORTER 2008)

Panizzon passou a trabalhar com seu colega Hartmann no aprimoramento da moleacutecula

que havia inventado e em 1950 obtiveram o metilfenidato A patente para sua comercializaccedilatildeo

veio em 1954 O faacutermaco comeccedilou a ser vendido na Suiacuteccedila como um psicoestimulante leve para

agir sobre a fadiga crocircnica a letargia alguns estados depressivos psicose associada agrave depressatildeo

e a narcolepsia (HERRERA 2015)

Considerando o apreccedilo de Marguerite pela droga que criara Leandro resolveu nomeaacute-

la de Ritaline em homenagem agrave sua mulher cujo apelido era Rita (SHORTER 2008)

A Ritalina como a chamamos no Brasil pode ser representada pela seguinte foacutermula

83

De acordo com Herrera (2015) com a patente norte-americana que Panizzon e

Hartmann conseguiram a Ritalina foi importada para os Estados Unidos em 1955 e comeccedilou a

ser utilizada em hospitais para o tratamento de adultos depressivos

Dos anos 1950 ateacute os nossos dias o composto foi crescendo em produccedilatildeo e

comercializaccedilatildeo passando a ser indicado para diferentes puacuteblicos De homens deprimidos a

Ritalina teve bons efeitos sobre idosos depressivos alcoolistas mulheres fatigadas meninos

desobedientes ateacute chegar a crianccedilas e adolescentes com desordens do aprender

Isso eacute o que nos mostra um importante estudo realizado por Herrera (2015) que analisa

propagandas do metilfenidato feitas pelas induacutestrias farmacecircuticas e publicadas em revistas

cientiacuteficas desde sua criaccedilatildeo ateacute 1979 A partir das propagandas o autor constata a mudanccedila

de puacuteblico-alvo As uacuteltimas propagandas analisadas indicam a Ritalina para crianccedilas com

problemas na escrita e na matemaacutetica prometendo melhora no rendimento escolar Aleacutem disso

apontam como puacuteblico-alvo meninos problemaacuteticos inquietos e hiperativos provavelmente

portadores de disfunccedilatildeo cerebral miacutenima

Ainda que a moleacutecula tenha sido aperfeiccediloada no intuito de diminuir os efeitos

colaterais o princiacutepio do metilfenidato eacute o mesmo desde os anos 1950 ateacute hoje uma substacircncia

psicotroacutepica que atua no sistema nervoso central mais precisamente no sistema da dopamina

impedindo sua recaptaccedilatildeo bem como a recaptaccedilatildeo de outros neurotransmissores fazendo com

que eles prolonguem seus estiacutemulos eleacutetricos Poreacutem se na segunda metade do seacuteculo XX o

metilfenidato foi prescrito como estimulante leve capaz de agir contra a depressatildeo e a fadiga

hoje ele eacute indicado a pessoas que apresentam comportamentos diferentes de estados

depressivos ou seja eacute indicado para quem tem hiperatividade e deacuteficit de atenccedilatildeo oferecendo

melhora na concentraccedilatildeo das tarefas escolares

Coincidentemente ou natildeo a eacutepoca da mudanccedila de puacuteblico consumidor do metilfenidato

foi a mesma de descoberta do composto da fluoxetina antidepressivo consumido ateacute hoje com

este fim moleacutecula que tem como diferencial atuar sobre a recaptaccedilatildeo exclusiva do

neurotransmissor serotonina produzindo efeitos colaterais menos nocivos (SHORTER 2008)

No entanto ainda que os pacientes para quem o medicamento eacute indicado tenham

mudado ao longo dos anos haacute um puacuteblico que consome o metilfenidato da eacutepoca de sua criaccedilatildeo

ateacute a atualidade com o mesmo fim Marguerite usava a droga que recebeu seu apelido para

aprimorar seu rendimento nos jogos de tecircnis e hoje existem pessoas que o tomam para obter um

84

bom desempenho nas mais diversas atividades Melhorar a produtividade e a performance satildeo

objetivos natildeo meacutedicos

Isso eacute o que nos apontam Brant e Carvalho (2012) ao dizerem que o puacuteblico que tem

como finalidade melhorar o desempenho eacute bastante diverso como estudantes universitaacuterios

especialmente em eacutepocas de provas profissionais da sauacutede empresaacuterios atletas e motoristas

de caminhatildeo Com o uso natildeo meacutedico por um grupo heterogecircneo como esse os autores sugerem

que haacute venda ou prescriccedilatildeo descontrolada do medicamento a pessoas saudaacuteveis que buscam

melhoria das funccedilotildees cognitivas

Os autores apontam que ao contraacuterio do que se pode imaginar o consumo do

metilfenidato estaacute para aleacutem de fins recreativos como o prazer causado por um estado de

euforia ou uma sensaccedilatildeo de bem-estar Visa responder agraves demandas do mundo do trabalho

competitivo e globalizado Defendem que a Ritalina seria um medicamento gadget da

contemporaneidade o que significa que ocupa um lugar na economia de gozo do nosso tempo

O gadget eacute entendido como um produto criado pela induacutestria que oferece um ganho ldquoum

prolongamento das capacidades humanasrdquo mas sempre insuficiente e limitado no tempo

O uso contemporacircneo do metilfenidato estaacute aleacutem da triacuteade doenccedila sauacutede e cuidado Compreende a busca incessante do homem para superar seus limites e viver bem em sociedade o que torna esse medicamento um gadget um fetiche capaz de aproximar ainda mais o usuaacuterio de sua fraacutegil condiccedilatildeo do ser-aiacute-no-mundo (BRANT CARVALHO 2012 p 632)

12 RITALINA e o consumo de metilfenidato por escolares

Os pais dizem incontrolaacutevel desastrado impulsivo Seus professores dizem hiperativo se distrai com facilidade impulsivo Os meacutedicos diriam PFC (Problema Funcional de Comportamento) DCM (Disfunccedilatildeo Cerebral Miacutenima) LCM (Lesatildeo Cerebral Miacutenima) Hipercinesia Ritalina ajuda a ldquocrianccedila problemardquo a se tornar amaacutevel de novo

(Canadian Family Phisician 1971 traduccedilatildeo nossa)

Em 1971 a CIBA induacutestria farmacecircutica fabricante do metilfenidato publicou uma

propaganda na revista Canadian Family Phisician com os dizeres em epiacutegrafe Conforme

Herrera (2015) esse eacute um dentre vaacuterios anuacutencios publicados em revistas meacutedicas canadenses

85

e norte-americanas para a promoccedilatildeo da Ritalina como um medicamento para crianccedilas com

problemas tanto em casa quanto na escola

Qual a validade do saber da famiacutelia e da escola nessa propaganda Parece que o saber

meacutedico que visa um diagnoacutestico ganha um valor sobredeterminante na conduta com a crianccedila

que apresenta tais caracteriacutesticas com os pais e na sala de aula jaacute que eacute com uma das opccedilotildees

diagnoacutesticas apresentadas que o caminho do medicamento eacute indicado A Ritalina eacute oferecida

como aquilo que vai tornar a crianccedila com problema uma crianccedila amaacutevel como uma ponte entre

uma crianccedila indesejaacutevel porque hiperativa impulsiva desatenta e uma crianccedila amaacutevel digna

de amor pela famiacutelia e pela escola

O anuacutencio cita diferentes diagnoacutesticos jaacute conhecidos pela classe meacutedica na eacutepoca como

a lesatildeo cerebral miacutenima e cita tambeacutem novas nomenclaturas como a disfunccedilatildeo cerebral

miacutenima Dessa forma acaba convocando meacutedicos que nomeiam de formas diferentes a mesma

questatildeo que desejam promover

De acordo com a anaacutelise de Herrera (2015) a CIBA promoveu a Ritalina e o transtorno

receacutem-nomeado de DCM de forma conjunta Se dos anos 1950 ateacute iniacutecio de 1970 o

medicamento era voltado para o puacuteblico adulto conforme mostravam comerciais da eacutepoca a

partir dos anos 1970 o puacuteblico-alvo da induacutestria farmacecircutica mudou para os meninos com

problemas escolares devido agrave impulsividade e agrave inquietaccedilatildeo identificadas tambeacutem em casa

Segundo o autor ldquoo material publicitaacuterio desenvolvido na deacutecada de 1970 reforccedila a associaccedilatildeo

do comportamento inquieto e impulsivo com o gecircnero masculino e consolida efetivamente a

Ritalina como a droga de escolha para o tratamento do comportamento impulsivo em meninosrdquo

(HERRERA 2015 p 123)

No Brasil a Ritalina produzida pela Novartis chegou nos anos 1990 periacuteodo em que

a palavra ldquohiperativordquo tambeacutem passou a ser frequente no discurso social da escola Importante

lembrar que o termo ldquocrianccedila problemardquo citado na propaganda da CIBA foi veiculado no

Brasil nos anos 1930 atraveacutes do livro de mesmo nome do meacutedico alagoano Arthur Ramos no

qual aborda os serviccedilos de higiene mental no estado do Rio de Janeiro e propotildee uma diferenccedila

entre anormalidade da crianccedila e o problema que vive em seu contexto social e cultural O

meacutedico propotildee chamar de ldquocrianccedila problemardquo aquela que experimenta dificuldades de

aprendizagem e de adaptaccedilatildeo agrave escola que natildeo se devem a um problema orgacircnico ou a uma

anomalia jaacute que essas constituem realmente um impedimento uma barreira a uma educaccedilatildeo

comum como eacute o caso nos dias de hoje dos alunos com necessidades educativas especiais A

86

crianccedila problema corresponde agravequela produzida pelo discurso dos pais e educadores Para o

autor

[] as crianccedilas ldquocaudas de classerdquo nas Escolas insubordinadas desobedientes instaacuteveis mentirosas fujonas [] na sua grande maioria natildeo satildeo portadoras de nenhuma ldquoanomaliardquo moral no sentido constitucional do termo Elas foram ldquoanormalizadasrdquo pelo meio Como o homem primitivo cuja ldquoselvageriardquo foi uma criaccedilatildeo de civilizados tambeacutem na crianccedila o conceito de ldquoanormalrdquo foi antes de tudo o ponto de vista adulto a consequumlecircncia de um enorme sadismo inconsciente de pais e educadores (RAMOS 1950 p 18)

Compreendendo o sentido de ldquomeiordquo menos pelo vieacutes behaviorista e mais atrelado agrave

teoria da psicanaacutelise e da antropologia Ramos buscou mostrar o quanto noacutes educadores pais

psicoacutelogos meacutedicos podemos fazer com que alunos respondam a uma expectativa de

anormalidade com sintomas que cabem agrave forma de organizaccedilatildeo social da escola Nesse sentido

busca desconstruir o discurso que patologiza a crianccedila escolar e fala dos problemas vividos no

contexto social brasileiro daquela eacutepoca

No entanto a partir da propaganda da CIBA e da apropriaccedilatildeo que fazemos dos

significantes que designam os transtornos eacute possiacutevel dizer que o conceito utilizado por Ramos

(1950) de ldquocrianccedila problemardquo acabou engolfado pelo processo de medicalizaccedilatildeo da escola

brasileira e ressignificado como um problema individual Agrave diferenccedila de Ramos (1950) que

faz uma criacutetica agrave conduta anormalizadora na escola o anuacutencio da Ritalina propotildee uma

alternativa teacutecnica agrave fala de pais e educadores aleacutem de apresentar a soluccedilatildeo para a ldquodoenccedilardquo da

crianccedila

Nesse sentido hoje o metilfenidato eacute tanto importado quanto produzido no Brasil e

vendido sob o nome comercial Ritalina e Concerta Haacute tambeacutem a opccedilatildeo de medicamento

geneacuterico

Segundo Bianchi e outros (2017) entre 1996 e 2012 a quantidade de metilfenidato

produzido aqui e importado passou de 9 para 578 kg o que representa um aumento de 6322

comparando com a fabricaccedilatildeo mundial de metilfenidato entre 1998 e 2012 a qual variou de

13493 kg a 63236 kg representando um aumento de 369 O relatoacuterio teacutecnico de fabricaccedilatildeo

de substacircncias psicotroacutepicas feito pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e publicado em 2017

ressalta que em 2016 ocorreu o maior registro de fabricaccedilatildeo mundial de metilfenidato no

mundo ou seja 74 toneladas Em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de 2012 haacute um aumento de 17 Ainda

87

que seja possiacutevel perceber uma certa estabilidade registra-se um crescimento na produccedilatildeo do

medicamento

Se a fabricaccedilatildeo mundial tem aumentado cada vez mais isso pode indicar que a

necessidade de consumo pode estar aumentando Em 2018 registrou-se no Brasil uma procura

maior do que a oferta O jornal mineiro O Tempo publicou uma reportagem em outubro sobre

a falta do medicamento que atingiu todo o Paiacutes desde maio A justificativa da Novartis

fabricante da Ritalina para o desabastecimento foi a burocracia para importaccedilatildeo da mateacuteria-

prima o que gerou um atraso na produccedilatildeo aleacutem disso houve uma procura maior que a prevista

De acordo com a repoacuterter Thuanny Motta como forma de garantir o acesso ao

medicamento nas farmaacutecias brasileiras a empresa resolveu duplicar a produccedilatildeo nacional de

150 mil caixas para 300 mil por mecircs pelo menos durante um periacuteodo de trecircs meses aleacutem de

otimizar a via de distribuiccedilatildeo Lembramos que o metilfenidato natildeo eacute vendido apenas para

pessoas diagnosticadas com o TDAH Como discutido o consumo tambeacutem ocorre entre aqueles

que desejam aprimorar seu desempenho em atividades acadecircmicas e profissionais No entanto

eacute preciso considerar que de acordo com Bianchi e outros (2017) o metilfenidato eacute o estimulante

mais vendido no Brasil para o tratamento do TDAH entre crianccedilas jovens e adultos

A Agecircncia Nacional de Vigilacircncia Sanitaacuteria (Anvisa) preocupada com o aumento do

consumo de Ritalina nos anos 2000 divulgou um boletim informativo sobre o puacuteblico

consumidor do metilfenidato O oacutergatildeo constatou um aumento do consumo de Ritalina por

crianccedilas de 6 a 16 anos no Brasil entre os anos de 2009 a 2011 Natildeo haacute divulgaccedilatildeo de um

boletim com dados mais recentes

No entanto a partir da reportagem do jornal O Tempo eacute possiacutevel fazer uma constataccedilatildeo

Se no boletim divulgado em 2012 o maior consumo mensal de metilfenidato considerando a

Ritalina a Ritalina de longa duraccedilatildeo e o Concerta foi de aproximadamente 140 mil caixas no

mecircs de agosto de 2011 (Figura 1) parece que hoje a produccedilatildeo normal apenas de Ritalina e

Ritalina de longa duraccedilatildeo tem sido de 150 mil caixas por mecircs

Para ter dados mais representativos da real produccedilatildeo do metilfenidato seria necessaacuterio

estimar a produccedilatildeo de Concerta e do geneacuterico fabricado pelo laboratoacuterio EMS aleacutem de

relacionar os dados da produccedilatildeo com os dados do consumo Sobre esta relaccedilatildeo no mecircs de

novembro de 2018 a empresa Novartis revelou a pedido do jornal baiano Correio que a

demanda meacutedia de Ritalina eacute de 150 a 160 mil unidades por ano A cada ano haacute aumento de

15 na procura

88

Eacute interessante levar em consideraccedilatildeo a periodicidade da dispensa do metilfenidato no

Brasil conforme o Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC)

Segundo Bianchi e outros (2017) a comercializaccedilatildeo do metilfenidato diminui com o fim do

ano letivo o que pode ser interpretado como uma diminuiccedilatildeo da prescriccedilatildeo meacutedica durante as

feacuterias escolares Podemos observar essa constataccedilatildeo no graacutefico a seguir divulgado no boletim

farmacoepidemioloacutegico do SNGPC (2012)

Figura 1ndash Consumo mensal de metilfenidato industrializado no Brasil entre 2009 e 2011

Fonte SNGPCCSGPCNUVIGAnvisa

A relaccedilatildeo do consumo de metilfenidato ao longo do ano letivo pode ficar um pouco mais

clara se olharmos o graacutefico que informa as caixas de medicamentos consumidas por crianccedilas e

jovens em idade escolar na cidade de Porto Alegre que de acordo com o SNGPC (2012) eacute a

cidade brasileira que registrou o maior consumo desse medicamento no triecircnio

89

Figura 2 ndash Consumo mensal de metilfenidato em Porto Alegre entre 2009 e 2011

Fontes SNGPCCSGPCNUVIGAnvisa DATASUSMinisteacuterio da Sauacutede

Podemos verificar com o graacutefico que existe um aumento no consumo de metilfenidato

com o iniacutecio das aulas e salvo algumas variaccedilotildees haacute uma tendecircncia de crescimento ao longo

do ano Os meses de maior consumo parecem ser outubro e novembro eacutepoca em que os alunos

podem estar realizando as avaliaccedilotildees finais Nos trecircs anos haacute uma ligeira queda no mecircs de julho

mecircs das feacuterias de inverno e logo em seguida um aumento de consumo com o iniacutecio do segundo

semestre

Tais interpretaccedilotildees satildeo confirmadas pelo SNGPC ao analisar um conjunto de dados do

consumo e prescriccedilatildeo meacutedica em todo o paiacutes A agecircncia conclui que ldquotem havido um aumento

no consumo de metilfenidato no paiacutes com um comportamento aparentemente variaacutevel com

destaque para reduccedilatildeo do consumo nos meses de feacuterias e aumento no segundo semestre dos

anos estudadosrdquo (SISTEMA NASCIONAL 2012 p 13)

Aleacutem disso outro importante dado informado pela agecircncia foi o de que a maioria dos

meacutedicos que prescrevem o faacutermaco tem especialidade no atendimento de crianccedilas e jovens

como neurologia pediaacutetrica e pediatria ldquoEntre as especialidades meacutedicas informadas houve

um predomiacutenio daquelas relacionadas com assistecircncia agrave crianccedila e ao adolescente e que tratam

de problemas do sistema nervoso centralrdquo (SISTEMA NACIONAL 2012 p 13) Dessa

90

forma a maior parte das prescriccedilotildees controladas do faacutermaco tem sido realizada para o puacuteblico

infantil e juvenil provavelmente em funccedilatildeo de um diagnoacutestico de TDAH

O consumo de metilfenidato associado agrave escolarizaccedilatildeo eacute um fato que descobrimos pela

anaacutelise dos graacuteficos O medicamento estaria ganhando o espaccedilo escolar de forma a se tornar

condiccedilatildeo para a educaccedilatildeo No final do boletim farmacoepidemioloacutegico o SNGPC nos alerta

para o fato de que o uso do medicamento metilfenidato tem sido feito de forma equivocada

divulgado como a ldquodroga da obediecircnciardquo e que em paiacuteses como os Estados Unidos utiliza-se o

medicamento ldquopara moldar as crianccedilas afinal eacute mais faacutecil modificaacute-las que ao ambienterdquo

(SISTEMA NACIONAL 2012 p 13) Recomenda que o metilfenidato seja utilizado como

mais uma estrateacutegia ldquoaliado a outras medidas como educacionais sociais e psicoloacutegicasrdquo

(SISTEMA NACIONAL 2012 p 13)

Nesse sentido contamos a histoacuteria do diagnoacutestico de TDAH e do consumo de

metilfenidato para aleacutem da questatildeo singular pela qual fomos convocados na cliacutenica

Conhecemos um pouco de seu caraacuteter epidecircmico e das proporccedilotildees que a medicalizaccedilatildeo tomou

em nossa vida como modo de regular nossas relaccedilotildees uns com os outros

Nas paacuteginas seguintes iremos pensar a questatildeo a partir de outra perspectiva a qual traz

agrave tona os embaraccedilos que aparecem na histoacuteria contada no proacutelogo formados quando

interrogamos as escolhas que tomamos junto a crianccedilas com problemas de comportamento na

escola Essa perspectiva eacute a da relaccedilatildeo entre o traacutegico e a psicanaacutelise como formas discursivas

que nos possibilitam enunciar uma questatildeo de modo a criar bordas ao impossiacutevel de nosso

fazer

91

2 A TRAGEacuteDIA ANTIGA E CONSTITUICcedilAtildeO DA PSICANAacuteLISE

Flectere si nequeo superos Acheronta movebo

Virgiacutelio Eneida

Em 1900 Freud publica a obra inaugural da psicanaacutelise chamada A interpretaccedilatildeo dos

sonhos com essa frase de apresentaccedilatildeo a qual significa ldquoSe natildeo posso mover os ceacuteus moverei

o infernordquo ou ainda ldquoSe natildeo puder dobrar os deuses de cima moverei o Aqueronterdquo

Encontramos tal citaccedilatildeo no livro VII verso 312 do poema eacutepico Eneida do poeta romano

Virgiacutelio O Aqueronte referido por Freud eacute o um rio subterracircneo que representa os deuses que

habitam a parte de baixo da terra Deuses que muitas vezes pisaram o palco das trageacutedias

antigas por meio de uma escada situada sob um alccedilapatildeo conhecida por escada de Caronte ou

de Aqueronte

Pensamos o que faz com que Freud escolha tal frase como podemos dizer um oraacuteculo

de abertura agrave sua ciecircncia Preserva o latim liacutengua enigmaacutetica aos falantes das liacutenguas que dela

derivam Os sonhos satildeo justamente isso enigmas aos seus sonhadores figuraccedilotildees que brotam

na consciecircncia e causam surpresa e inquietaccedilatildeo a quem as produz O que Freud mostra na obra

que introduz o seu meacutetodo de escuta dos sonhos eacute o trabalho psiacutequico de encenar o desejo

inconsciente e o trabalho de interpretaccedilatildeo das cenas tornando o desconhecido conhecido o

estranho familiar o conteuacutedo inconsciente consciente

Em vez de incidir sobre o que aparece conscientemente no discurso ndash ou seja o

significado corrente do que o paciente diz ndash situando o falante numa rede discursiva

distanciada sem que se construa um percurso ateacute ela uma rede que o identifica como mais um

indiviacuteduo que sofre de mesmos sintomas Freud escuta o como como o paciente diz o que diz

a dimensatildeo invisiacutevel presente em seu discurso e nesse sentido aproxima-se de um discurso

outro que daacute voz ao sujeito que cinde o indiviacuteduo que o atravessa que mostra como um aspecto

sintomaacutetico compartilhado por muitos o toca singularmente Freud chega ao rio subterracircneo

move o Aqueronte constroacutei a travessia com o sujeito que lhe fala de um modo de dizer a outro

Nesse sentido traz agrave cena o inconsciente comprova sua existecircncia para aleacutem dos sintomas

neuroacuteticos ou seja apresenta os sonhos como manifestaccedilotildees dessa instacircncia alienante

92

21 A trilogia tebana de Soacutefocles Eacutedipo Rei e o inconsciente

Falando de sonhos infantis que retratam o desejo por um dos progenitores e a aversatildeo

ao outro Freud se aproxima de outra histoacuteria claacutessica grega desta vez que se torna emblemaacutetica

da proacutepria psicanaacutelise

Essa descoberta eacute confirmada por uma lenda da Antiguidade claacutessica que chegou ateacute noacutes uma lenda cujo poder profundo e universal de comover soacute pode ser compreendido se a hipoacutetese que propus com respeito agrave psicologia infantil tiver validade igualmente universal O que tenho em mente eacute a lenda do Rei Eacutedipo e a trageacutedia de Soacutefocles que traz o seu nome (FREUD 19002015 p 178)

A histoacuteria de Soacutefocles Oedipus Tiranus tem iniacutecio com a peste que toma conta de

Tebas terra de Cadmo antigo cidade que jaacute conheceu seus momentos de gloacuteria O oraacuteculo do

deus Apolo revela que a terra poderaacute ser purificada quando o assassino do rei antecessor Laio

for descoberto e punido O rei Eacutedipo que assumira o trono de Tebas e se casara com a rainha

Jocasta como recompensa apoacutes desvendar o enigma da Esfinge lanccedila-se na empreitada de

descobrir e combater o assassino de Laio Eacutedipo que chegara agrave terra de Tebas por fugir de seu

destino uma profecia de que seria o assassino de seu pai e desposaria a proacutepria matildee acaba por

se descobrir filho e algoz do antigo rei Ao fugir de seu destino cumpre-o sem sabecirc-lo Aiacute reside

a dimensatildeo do inconsciente

A accedilatildeo da peccedila natildeo consiste em nada aleacutem do processo de revelaccedilatildeo com engenhosos adiamentos e sensaccedilatildeo sempre crescente - um processo que pode ser comparado ao trabalho de uma psicanaacutelise - de que o proacuteprio Eacutedipo eacute o assassino de Laio mas tambeacutem de que eacute o filho do homem assassinado e de Jocasta Estarrecido ante o ato abominaacutevel que inadvertidamente perpetrara Eacutedipo cega a si proacuteprio e abandona o lar A prediccedilatildeo do oraacuteculo fora cumprida (FREUD 19002015 p 179)

O que Freud nos mostra ao apresentar a trageacutedia de Soacutefocles eacute que se essa peccedila nos

comove incomparavelmente em relaccedilatildeo a outras peccedilas mesmo de dramaturgos modernos aleacutem

do amor e da hostilidade em relaccedilatildeo agraves figuras parentais a razatildeo disso reside no fato de que noacutes

somos alheios ao discurso do qual somos feitos e quanto mais tentarmos escapar de nosso

destino buscando culpados ou responsabilizando outrem pelos rumos de nossa vida tanto mais

cairemos na armadilha que noacutes mesmos nos arranjamos

93

O saacutebio e cego Tireacutesias personagem da peccedila declara a Eacutedipo o grande decifrador de

enigmas ldquoVeraacutes num mesmo dia teu princiacutepio e teu fimrdquo (Eacutedipo Rei v 528) Esta profecia se

refere ao momento da peccedila quando o infeliz Eacutedipo descobre ser casado com sua matildee e ter

gerado frutos do incesto concluindo assim a terriacutevel descoberta de sua origem Em suas

palavras ldquoos deuses desprezam-me agora por ser filho de seres impuros e porque fecundei ndash

miseraacutevel ndash as entranhas de onde saiacuterdquo (Eacutedipo Rei vv 1610-1613) Ao natildeo suportar ver a

verdade fura os proacuteprios olhos A frase de Tireacutesias o horror descoberto por Eacutedipo pode ter um

importante sentido para a noccedilatildeo do traacutegico Por ora podemos dizer que de acordo com Tireacutesias

Eacutedipo natildeo eacute um estrangeiro salvador que apareceu em Tebas para livrar a cidade do mal ao

contraacuterio eacute um filho da terra sucessor legiacutetimo do trono que toma o lugar que lhe cabe e se

torna o responsaacutevel pela desgraccedila da cidade

Nesse sentido a psicanaacutelise se aproxima da trageacutedia grega para de certa forma dizer

do seu modo de operar Se Freud recorreu a Eacutedipo Rei e com ele conseguimos nos aproximar

da noccedilatildeo de inconsciente o freudiano Lacan elege Antiacutegona e com ela nos apresenta a eacutetica da

psicanaacutelise O que podemos compreender de pensamento em comum entre os dois psicanalistas

eacute que ainda que sejamos inconscientes de nosso desejo e de nosso destino somos responsaacuteveis

por ele Ao fim da peccedila Eacutedipo diz que jamais teria voluntariamente feito o que fez No entanto

deve arcar com as consequecircncias do destino determinado pelos deuses Ainda iremos conversar

sobre a funccedilatildeo dos deuses na trageacutedia ao que ela corresponde do que ela participa

Gostariacuteamos antes de prosseguirmos com a apreciaccedilatildeo de Lacan da trageacutedia de

apresentar algumas passagens que sucedem Eacutedipo Rei e antecedem Antiacutegona na composiccedilatildeo da

trilogia tebana de Soacutefocles

22 Eacutedipo (e Antiacutegona) em Colono

Na trageacutedia Eacutedipo em Colono2 vemos Eacutedipo sair de Tebas sem rumo Sem a garantia

dos deuses sobre qual o melhor destino a um parricida incestuoso (mataacute-lo por seus crimes

2 Eacutedipo e Antiacutegona apoacutes caminharem por muito tempo chegam a Colono pequeno povoado perto de Atenas onde governa o rei Teseu Ismene chega ao lugar para dar notiacutecias da cidade de Tebas Os irmatildeos Polinices e Eteacuteocles em vez de aceitarem o reinado de Creonte irmatildeo de Jocasta para livrar os tebanos das desgraccedilas dos Labdaacutecidas decidem disputar entre si o trono Ao mesmo tempo o oraacuteculo havia previsto infortuacutenios para a cidade caso o corpo de Eacutedipo fosse violado Dessa forma Creonte parte agrave sua procura para conferir o tuacutemulo nas fronteiras de Tebas e zelar por seu cadaacutever Em solo tebano Eacutedipo natildeo poderia ser enterrado por ter cometido assassinato de um rei crime tambeacutem de parriciacutedio Eacutedipo fica muito decepcionado com os dois filhos por estarem mais preocupados com o poder do que com o destino do pai e lanccedila sobre os dois uma praga a de que morreriam nas

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Enterrar seu corpo Expulsaacute-lo de Tebas) o que Creonte seu cunhado decide eacute libertar a

cidade de sua maldiccedilatildeo contrariando o pedido de Eacutedipo para que Creonte ponha fim agrave sua vida

No entanto como o corpo de Eacutedipo pode vir a desgraccedilar ainda mais a cidade de Tebas a soluccedilatildeo

encontrada eacute mandaacute-lo embora Dessa maneira Eacutedipo vaga ateacute encontrar um lugar que aceite

acolhecirc-lo

Antiacutegona uma de suas filhas com Jocasta escolhe acompanhar o pai na difiacutecil jornada

em busca de uma terra que possa refugiar o cadaacutever de um homem jaacute assolado pela desgraccedila

Antiacutegona parece ocupar o lugar dos olhos furados do pai pois ao longo da caminhada ela lhe

narra tudo o que vecirc tornando-se os proacuteprios olhos do pai Nas palavras de Eacutedipo falando da

coragem da filha Antiacutegona

[] ainda crianccedila sentindo seus membros mais firmes decidiu guiar um anciatildeo em suas longas caminhadas sempre errante descalccedila percorrendo os bosques perigosos faminta atormentada repetidamente pelas aacuteguas das chuvas pelo sol ardente jaacute esquecida do conforto de seu lar cuidando apenas de dar alimento ao pai (Eacutedipo em Colono vv 366-373)

Eacutedipo tambeacutem elogia a atitude de Ismene de ter saiacutedo da proteccedilatildeo de Tebas para ir a seu

encontro e com isso compara as duas filhas aos dois filhos Apesar do lugar desigual que

ocupam na Greacutecia Antiga ou seja o de ser mulher ambas satildeo mais corajosas desafiam-se em

terras distantes enquanto os outros esquecem do pai e se resguardam ao lar e objetivam ocupar

o trono de Tebas Somente apoacutes um tempo em outro episoacutedio da peccedila aparece Polinices para

matildeos um do outro maldiccedilatildeo que se concretiza e antecede a trageacutedia Antiacutegona Com essa decisatildeo Eacutedipo se coloca ao lado de Teseu e promete a ele que sua terra seraacute bendita e protegida pelos deuses se sepultar o seu corpo Isso havia sido pronunciado tambeacutem pelo oraacuteculo de acordo com Ismene Mesmo sabendo a origem desgraccedilada de Eacutedipo Teseu se interessa pela notiacutecia do oraacuteculo e manda edificar uma sepultura a Eacutedipo Numa tentativa frustrada Creonte aparece em Colono com seus soldados captura Ismene e Antiacutegona que satildeo salvas pelos homens de Teseu Depois disso quem aparece eacute Polinices pedindo piedade ao pai em sua retomada do trono Ele conta que Eteacuteocles o irmatildeo mais jovem banira-o de Tebas apoacutes ter convencido os cidadatildeos de que ele deveria ser o novo rei Em Argos Polinices organizara um grupo de guerreiros para invadir Tebas e tomar o trono usurpado pelo irmatildeo No entanto Eacutedipo conta que fora ele proacuteprio banido por Polinices quando lhe entregou o trono e agora que este estava em situaccedilatildeo de anguacutestia ameaccedilado pela maldiccedilatildeo e pelos oraacuteculos lembrou-se da existecircncia do pai Dessa forma Eacutedipo natildeo perdoa o filho e o manda embora assombrado com maldiccedilotildees Polinices retorna em direccedilatildeo a seu fim traacutegico Eacutedipo ao sentir que seu fim se aproxima pede para Teseu segui-lo a um local oculto de sua escolha Apoacutes encontrar o local Eacutedipo eacute chamado pelos deuses e morre misteriosamente Teseu ficara encarregado de natildeo permitir jamais que qualquer mortal mesmo as filhas se aproximasse do misterioso tuacutemulo (SOacuteFOCLES 441aC2014)

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pedir ao pai que volte atraacutes na maldiccedilatildeo do duplo assassinato que havia proclamado aos filhos

pedido este imediatamente negado por Eacutedipo Certo de sua desgraccedila futura Polinices suplica

agraves irmatildes

[] Ah Minhas queridas irmatildes Ao menos voacutes que ouvistes as imprecaccedilotildees impiedosas deste pai natildeo me afronteis Em nome de todos os deuses vos suplico se um dia sua maldiccedilatildeo se consumar e se tiverdes meios de voltar a Tebas dai-me sepultura e oferendas fuacutenebres Assim aos elogios que hoje recebeis por vossa caridosa ajuda a este homem somar-se-atildeo outros louvores natildeo menores pelos cuidados que me houverdes dispensado (Eacutedipo em Colono vv 1661-1671)

Apoacutes Antiacutegona ter sugerido ao irmatildeo Polinices que desistisse de enfrentar o reino de

Tebas com seu exeacutercito ele afirma que natildeo haacute mais como voltar atraacutes acovardar-se pois se

contasse aos seus homens a maldiccedilatildeo do pai natildeo lutariam mais com ele e seu dever era assumir

o comando das tropas seguir seu caminho e enfrentar a realizaccedilatildeo da profecia do pai caso esta

de fato se cumprisse Por fim diz para as irmatildes esquivando-se de seus abraccedilos ldquoqueira Zeus

conduzir-vos por caminhos bons se apoacutes a minha morte me proporcionardes os funerais

pedidos jaacute que natildeo podeis fazer por mim ainda em vida coisa algumardquo (Eacutedipo em Colono vv

1701-1704) E entatildeo Antiacutegona se lamenta por antever o final traacutegico de seu irmatildeo por jaacute vecirc-

lo caminhar em direccedilatildeo ao outro mundo

Eacutedipo sofre uma morte carregada de misteacuterio Recebe um aviso dos deuses de que sua

morte estaria proacutexima Sua sepultura natildeo eacute apresentada na accedilatildeo cecircnica mas eacute narrada Antiacutegona

e Ismene participam das honras fuacutenebres conferem um ritual de sepultamento ao pai No

entanto o lugar onde Eacutedipo eacute enterrado fica sob os cuidados de Teseu apenas dele Eacutedipo

oferece seu corpo a Teseu com a promessa divina de proteccedilatildeo agrave sua terra

A princesa tebana se desespera por natildeo saber o que fazer manifesta o desejo de ir ao

encontro do pai de conhecer sua morada de perder sua vida Suas lamentaccedilotildees recebem o

consolo do coro ateacute a chegada de Teseu para quem solicita ver o sepulcro do pai Ao saber que

Eacutedipo havia interditado qualquer pessoa de visitaacute-lo e tirar-lhe a paz a filha respeita sua decisatildeo

e diz ao rei do lugar ldquoSe eacute este o seu desejo que assim seja Manda-nos logo de retorno a

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Tebas nossa antiga cidade para que se for possiacutevel consigamos ambas [Antiacutegona e Ismene]

deter a marcha da carnificina funesta para nossos dois irmatildeosrdquo (Eacutedipo em Colono vv 2084-

2089)

Dessa forma as duas conseguem retornar a Tebas No entanto como narra o iniacutecio da

trageacutedia Antiacutegona natildeo conseguem impedir que a maldiccedilatildeo de Eacutedipo se concretize e Eteacuteocles

e Polinices morrem pelas matildeos um do outro Eacute aiacute que o desejo de Antiacutegona segue seu caminho

no dever para com o irmatildeo de conferir-lhe o sepultamento devido conforme por ele suplicado

Assim Antiacutegona que acompanhou os uacuteltimos passos de Eacutedipo como uma testemunha

de seus uacuteltimos feitos nesse mundo que partiu com ele em busca de um lugar que abrigasse o

corpo eacute impedida de ver o local onde jaz seu pai e tambeacutem irmatildeo algo indispensaacutevel para que

se imponha uma diferenccedila entre os que ainda vivem e os que jaacute morreram De acordo com

Guyomard (1996 p 21) ldquoos funerais separam os vivos dos mortos e permitem aos vivos viver

sem ser assombrados por seus fantasmasrdquo Com isso o que resulta da morte de Eacutedipo para

Antiacutegona eacute uma indiferenciaccedilatildeo entre a vida e a morte e eacute com a urgecircncia de impor uma

separaccedilatildeo entre os dois termos que ela inicia a peccedila intitulada com o seu nome

Interessante visitar a histoacuteria pregressa da famiacutelia de Antiacutegona ver de certo modo a

reincidecircncia de questotildees de seus antepassados em sua vida o que a relaciona ao avocirc Laio ao

seu irmatildeo e ao mesmo tempo pai Eacutedipo Aleacutem disso o destino dos personagens da trilogia

tebana estaacute de certo modo ligada ao mito de fundaccedilatildeo da cidade de Tebas por seu primeiro

rei Cadmo Na proacutexima seccedilatildeo visitamos algumas partes que compotildeem a histoacuteria em que se

inscreve a trilogia tebana

221 O mito de fundaccedilatildeo de Tebas

O helenista Francis Vian realizou uma pesquisa cuidadosa sobre a histoacuteria da fundaccedilatildeo

de Tebas em sua obra As origens de Tebas Cadmo e os espartos Segundo Vian (1963) uma

das referecircncias mais completas sobre a histoacuteria do personagem Cadmo se encontra na Biblioteca

de Apolodoro uma importante fonte de pesquisa sobre mitologia grega datada do seacuteculo I

Dessa maneira um dos livros se dedica a contar as aventuras dos descendentes de Agenor pai

de Cadmo Fecircnix e Europa Segundo o livro Cadmo consulta o oraacuteculo de Delfos para saber o

paradeiro de sua irmatilde Europa que havia sido raptada por Zeus O oraacuteculo lhe diz que natildeo eacute

preciso se preocupar com ela e lhe atribui uma importante tarefa Cadmo deve encontrar uma

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vaca e segui-la ateacute o ponto onde ela cairia de cansaccedilo Neste ponto da queda ele fundaria uma

cidade

Desse modo Cadmo caminha ateacute encontrar a vaca e faz o que o oraacuteculo havia solicitado

A vaca caminha ele a segue ateacute que ela se deita num lugar apoacutes atravessar a Beoacutecia Cadmo

pede para que um de seus companheiros procure aacutegua na fonte de Ares No entanto cada

homem que ele envia para buscar aacutegua acaba morto pelo guardiatildeo da fonte um dragatildeo Furioso

Cadmo vai ateacute a fonte e mata o dragatildeo A deusa Atena lhe diz para arrancar seus dentes e semeaacute-

los Assim que Cadmo cumpre o que a deusa lhe pede guerreiros armados surgem da terra os

semeados ou espartos Cadmo joga pedras nos guerreiros os quais acreditam terem sido

atacados pelos proacuteprios companheiros Assim eles acabam guerreando uns com os outros ateacute

restarem apenas cinco Para expiar o que havia feito Cadmo eacute obrigado a servir o deus Ares

por um ano o que equivale a oito anos dos nossos atuais Haacute uma variaccedilatildeo nessa histoacuteria

segundo Vian (1963) que suprime a parte do surgimento dos guerreiros e no lugar conta que

nasceram os filhos da terra Ares teria punido Cadmo natildeo pelo massacre mas pela morte do

dragatildeo

De acordo com a Biblioteca de Apolodoro apoacutes a servidatildeo por um ano a deusa Atena

torna Cadmo rei e Zeus lhe concede a matildeo de Harmonia filha de Afrodite e de Ares Todos os

deuses celebram o casamento

Segundo fragmento de texto do helecircnico Fereacutecides (VIAN 1963) o episoacutedio dos

guerreiros espartos ocorre apoacutes a fundaccedilatildeo da cidade de Tebas e do casamento de Cadmo com

Harmonia e natildeo antes Cadmo estabelecido em Tebas teria recebido de Ares e Atena metade

dos dentes do dragatildeo e os teria semeado por ordem dos deuses De acordo com Vian (1963)

uma importante contribuiccedilatildeo deixada por Fereacutecides eacute oferecer uma relaccedilatildeo entre o mito de

Cadmo e o mito de Jasatildeo visto que a outra metade dos dentes do dragatildeo eacute dada ao rei Eetes da

Coacutelquida Retomaremos esse episoacutedio quando nos ocuparmos da histoacuteria de Medeia

De acordo com Vian (1963) a princiacutepio Eacutedipo e Cadmo natildeo tinham ligaccedilatildeo alguma

entre eles Eacute num tempo posterior que inserimos os dois numa genealogia comum Uma ligaccedilatildeo

possiacutevel indica o parentesco de Cadmo agrave famiacutelia de Eacutedipo da seguinte forma Cadmo teve

Polidoro que governou Tebas e foi morto pelas Bacantes Polidoro teve Laacutebdaco tambeacutem

morto pelas Bacantes este era pai de Laio morto pelo proacuteprio filho Eacutedipo Todos foram reis

de Tebas

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Nossa principal fonte de informaccedilatildeo satildeo as trageacutedia com Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides

as quais no entanto apresentam versotildees diferentes de filiaccedilatildeo entre os descendentes de Cadmo

e dos guerreiros filhos do dragatildeo e da terra Construir uma genealogia lendaacuteria eacute uma tarefa que

implica artificialidade Ou ainda ficccedilatildeo Sobretudo no que se refere aos espartos que muito

mais do que pertencerem a uma mesma famiacutelia pertencem a uma mesma classe social militar

Eacute dessa classe espartana dos filhos da terra de Tebas que parece descender Creonte

personagem recorrente nas trageacutedias De acordo com Vian (1963) a rivalidade existente entre

Creonte e a famiacutelia de Eacutedipo que podemos averiguar sobretudo na trilogia tebana deve-se a

uma antiga rivalidade entre um Creonte primeiro filho de um dos cinco espartanos que

restaram da batalha lendaacuteria e Cadmo que provocou o massacre e fundou a cidade de Tebas

Sem ser filho da terra torna-se seu primeiro rei Nesse ponto podemos supor uma relaccedilatildeo de

Cadmo com Eacutedipo Ao assumirem o trono de Tebas ambos satildeo considerados estrangeiros

Cadmo era filho de Agenor da Feniacutecia Jaacute Eacutedipo era tebano mas esse fato era desconhecido

por ele e pelos cidadatildeos de Tebas quando assumira o trono

Nas trageacutedias de Soacutefocles a relaccedilatildeo entre Creonte e Eacutedipo parece cordial no entanto o

tragedioacutegrafo se recusa a chamar Creonte de rei nas duas primeiras peccedilas da trilogia tebana Em

vez disso toma-o como tutor dos filhos de Eacutedipo Em Eacutedipo em Colono Creonte eacute citado como

regente natildeo como rei legiacutetimo Eacute tido como rei apenas em Antiacutegona em funccedilatildeo de seu laccedilo de

sangue com os filhos mortos de Eacutedipo Contudo ningueacutem o considera um rei legiacutetimo em

funccedilatildeo da tirania com a qual governa nem seu proacuteprio filho Hecircmon Na trageacutedia de Eacutedipo da

versatildeo contada por Euriacutepides a rivalidade se torna mais evidente visto que eacute Creonte quem

investiga o assassino de Laio e ordena seus seguidores a ferirem os olhos do assassino Eacutedipo

(VIAN 1963)

Francis Vian capta uma estrutura clara das aventuras de Cadmo que faz dele um heroacutei

Tal estrutura parece ter um caraacuteter religioso Para ele o heroacutei estaacute em busca de um lugar para

fundar ex nihilo uma nova cidade Ele eacute guiado por um animal encarnado por uma divindade

e se sacrifica para tornar a nova terra um solo sagrado Em seguida ele luta bravamente com o

dragatildeo Assim temos na histoacuteria de Cadmo um mito de criaccedilatildeo com trecircs atos principais ldquoo

combate vitorioso com o monstro primordial a expiaccedilatildeo ritual do assassinato e o triunfo final

marcado por uma hierogamiardquo (VIAN 1963 p 232)

Podemos observar tal estrutura ou ao menos os trecircs atos heroicos na histoacuteria de Eacutedipo

O heroacutei mata a esfinge que assolava Tebas Com isso ganha a matildeo natildeo de uma deusa mas da

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rainha Jocasta Ao final de Eacutedipo Rei na versatildeo de Soacutefocles expia sua culpa furando seus olhos

e exilando-se de Tebas Outra relaccedilatildeo que podemos identificar entre Cadmo e Eacutedipo se daacute em

Eacutedipo em Colono A relaccedilatildeo que fazemos ocorre na verdade mais especificamente entre Eacutedipo

e a vaca Tal como o animal sagrado Eacutedipo caminha errante acompanhado de Antiacutegona ateacute

cansar e encontrar um lugarejo colonizado por Atenas O ponto onde a vaca cai e falece se torna

o comeccedilo ex nihilo de toda histoacuteria de Tebas Jaacute o local onde Eacutedipo morre misteriosamente

nas fronteiras de Atenas parece tornar-se siacutembolo do fechamento de um ciclo iniciado haacute

muitas geraccedilotildees

222 O destino dos Labdaacutecidas

No livro Eacutedipo ao peacute da letra Antonio Quinet (2015) nos conta uma histoacuteria anterior agrave

trageacutedia de Eacutedipo e de Antiacutegona buscando se aproximar da origem da maldiccedilatildeo dos

Labdaacutecidas aquela que fez gerar o terriacutevel oraacuteculo que assolou a famiacutelia ou seja o oraacuteculo que

proferiu que o filho de Laio o mataria e se casaria com sua esposa Tal histoacuteria pertence agrave

mitologia grega e narra circunstacircncias da vida de Laio

Labdaco rei de Tebas reprimiu o culto ao deus Dioniso que vinha ganhando cada vez

mais forccedila na cidade Em funccedilatildeo disso foi morto pelas bacantes mulheres que honravam o

deus em rituais Laio filho de Labdaco era ainda muito jovem para assumir o trono o qual

ficou sob regecircncia de Lico cunhado de Labdaco Poreacutem tiranos tomaram o reino e mataram o

novo rei Para proteger o pequeno Laio dos ataques seu avocirc Nicteu o enviou para a corte do

reino da Friacutegia e o deixou aos cuidados do rei Peacutelops

Com o passar dos anos Laio se apaixonou por Criacutesipo filho do rei e herdeiro do trono

Quinet (2015) conta que o jovem filho de Labdaco planejou uma fuga resolveu raptar seu

amado e retornar com ele para Tebas com a intenccedilatildeo de assumir o reinado deixado por seu pai

Peacutelops tentou recuperar o filho mas sem sucesso culpou Laio por tecirc-lo sequestrado e lanccedilou

uma maldiccedilatildeo parte da que jaacute conhecemos Laio seria assassinado pelo proacuteprio filho

Os deuses do Olimpo reconheceram a legitimidade das palavras proferidas pelo rei

friacutegio jaacute que Laio desonrou a lei da hospitalidade de grande valor entre os gregos Embora

tenha encontrado um lugar seguro para viver na corte de Peacutelops Laio raptou e fugiu com

Criacutesipo traindo o reino da Friacutegia importante aliado do reino de Tebas Sobre o destino de

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Criacutesipo as histoacuterias divergem uns dizem que ele teria sido morto ou que teria se matado

Outros dizem que teria chegado em Tebas com Laio

Ainda que natildeo se saiba ao certo o que acontecera ao amado de Laio o priacutencipe tebano

casa-se com Jocasta e com a morte do rei tirano reassume o trono de Tebas e daacute seguimento agrave

linhagem real de sua famiacutelia Poreacutem segundo Quinet (2015) como puniccedilatildeo pelo crime de

sequestro a deusa Hera envia a Tebas a Esfinge criatura mitoloacutegica constituiacuteda por um corpo

de leatildeo asas de paacutessaro e cabeccedila de mulher Como diria a crianccedila de nosso Proacutelogo um hiacutebrido

Misterioso hiacutebrido que lanccedila ao outro uma pergunta sobre o ser Liberta somente o cidadatildeo que

decifrar seu enigma devorando aquele que natildeo resolvecirc-lo O rei Laio consulta o oraacuteculo de

Delfos para saber o que fazer diante da terriacutevel ameaccedila e eacute orientado a natildeo ter filhos caso

quisesse salvar a cidade Sabemos o desfecho dessa histoacuteria e curiosamente aquele que eacute capaz

de desvendar o enigma da esfinge eacute Eacutedipo filho de Laio e Jocasta

Natildeo ter filhos significaria dar um fim em sua proacutepria geraccedilatildeo agrave maldiccedilatildeo apregoada

por Peacutelops e reconhecida pelos deuses libertando Tebas de uma dinastia condenada ao

sofrimento No entanto para um rei natildeo ter filhos eacute renunciar ao poder entregaacute-lo a outra

famiacutelia

Laio bem que tentou natildeo ter filhos de acordo com Quinet (2015) Ainda assim Eacutedipo

foi concebido num dia em que cedeu aos prazeres de Dioniso mesmo deus combatido pelo seu

pai Dessa maneira quando o bebecirc nasceu Laio mandou que lhe furassem o peacute e que o

abandonassem no monte Citeron Eacutedipo nome que significa ldquopeacute inchadordquo foi encontrado por

um pastor que o entregou para ser adotado pelos reis de Corinto Poacutelibo e Meacuterope

Assim a maldiccedilatildeo lanccedilada a Laio se torna a maldiccedilatildeo das geraccedilotildees seguintes dos

Labdaacutecidas porque agrave medida que foi sendo concretizada ainda que sua realizaccedilatildeo tenha

ocorrido na tentativa de evitaacute-la mais o fado foi sendo relanccedilado para as geraccedilotildees seguintes

Laio cometeu um crime contra a hospitalidade e foi amaldiccediloado Seu filho Eacutedipo consumou a

maldiccedilatildeo cometendo o parriciacutedio e por consequecircncia o incesto Os dois netos homens gerados

pelo crime de incesto carregaram a maldiccedilatildeo ateacute se destruiacuterem um ao outro O que resta a

Antiacutegona envolvida nesse imbroacuteglio familiar Com Ismene ela eacute a uacuteltima da terriacutevel linhagem

dos Labdaacutecidas

A maldiccedilatildeo se encerra com ela Talvez sim pois o que conhecemos da histoacuteria de

Antiacutegona contada por Soacutefocles na terceira parte da trilogia tebana eacute que ela acolhe a sina dos

Labdaacutecidas em vez de fugir lutar contra ela assim como faz seu pai no fim da vida Eacutedipo

101

como o pai Laio fora acolhido em solo estrangeiro recebido por Teseu sem receio de que o

amaldiccediloado labdaacutecida pudesse trazer a sua terra algum mal Grato por sua acolhida escolhe

um lugar incerto uma regiatildeo sem limites definidos prometendo a Teseu que o ato do enterro

traria proteccedilatildeo a seu reino Aleacutem disso Eacutedipo renega seus filhos homens os quais como o avocirc

Laio tinham como preocupaccedilatildeo reinar sobre Tebas perpetuando o poder da famiacutelia

O nome Antiacutegona de acordo com o Dicionaacuterio etimoloacutegico da mitologia grega (2013

p 36) eacute composto pela preposiccedilatildeo ἀντί que pode significar ldquode frenterdquo ldquoem frente derdquo e γονή

que indica a descendecircncia O segundo termo corresponde ainda ao tema verbal γεν- ldquonascerrdquo

A primeira parte do composto poderia remontar ao sacircnscrito aacutenti no latim ante cuja raiz ant

teria tido como significado original ldquode frenterdquo para passar ao grego com o sentido de ldquoopor-

se encontrar-serdquo

Conforme o dicionaacuterio ainda que apareccedilam interpretaccedilotildees como ldquocontra o nascimentordquo

ou ldquocontra o uacuteterordquo ou tentativas de relacionar o nome com a ldquooposiccedilatildeo ao nascimentordquo pelo

fato de a heroiacutena ter sido fruto de um incesto Antiacutegona significa ldquonascida no lugar derdquo ldquopara

tomar o lugar derdquo algum antepassado algum familiar

Nesse sentido o proacuteprio nome jaacute apresenta a implicaccedilatildeo da princesa na sina da famiacutelia

ou seja ela nasceu para ocupar o lugar de um familiar ou para velar um familiar De que lugar

se fala aqui O lugar da morte

Eacutedipo natildeo deveria ter nascido pois foi recomendado a Laio que natildeo tivesse filhos

Mesmo assim ainda que soubessem da recomendaccedilatildeo do oraacuteculo Laio e Jocasta o

desobedeceram e Eacutedipo foi originado na transgressatildeo de um interdito Toda a famiacutelia carrega

esse signo de negaccedilatildeo da lei pois cada um de seus frutos natildeo deveria ter nascido Mas que lei

eacute esta que a famiacutelia tenta burlar ao longo das geraccedilotildees Talvez a lei divina que Antiacutegona honra

Dessa forma tambeacutem Antiacutegona natildeo deveria ter nascido mas nasceu Ela cumpre o conselho

que o oraacuteculo de Delfos deu ao avocirc pois natildeo se casou e natildeo teve filhos e enfatiza tal sacrifiacutecio

em seus lamentos finais Aleacutem disso o que se pode dizer Como isso ressoa em sua histoacuteria

23 Antiacutegona heroiacutena traacutegica da eacutetica da psicanaacutelise

[] um leito nupcial jamais terei nem ouvirei hinos de bodas nem sentirei as alegrias conjugais nem filhos amamentarei hoje sozinha

102

sem nenhum amigo parto ndash ai infeliz de mim ndash ainda viva para onde os mortos moram (Antiacutegona vv 1021-1026)

Em seu seminaacuterio A eacutetica da psicanaacutelise Lacan (1959-19601997) a exemplo de Freud

recorre agrave trageacutedia grega para enunciar o que se articula como eacutetica psicanaliacutetica a qual estaacute

sustentada pela noccedilatildeo de que o sujeito para viver sua vida com suas escolhas pode ceder de

qualquer fonte de que dispor soacute natildeo pode ceder de seu proacuteprio desejo

Nesse sentido Lacan elege Antiacutegona filha de Eacutedipo a heroiacutena da eacutetica cuja histoacuteria

visita na versatildeo homocircnima de Soacutefocles Patrick Guyomard (1996) em seu livro O gozo do

traacutegico realiza uma leitura do seminaacuterio de Lacan sobre a eacutetica e oferece tambeacutem a dimensatildeo

do desejo em Antiacutegona em que aponta as caracteriacutesticas que fazem com que a heroiacutena adentre

o universo do traacutegico

Sua irredutibilidade sua coragem diante da morte seu desafio em favor de uma causa que lhe eacute vital sua lucidez diante das condiccedilotildees de sua vida que ela natildeo pode salvar ao preccedilo da perda de suas razotildees de viver tudo isso satildeo traccedilos essenciais a qualquer eacutetica do desejo (GUYOMARD 1996 p 21)

A fim de buscar elementos que nos ajudem a pensar a questatildeo dos limites e

possibilidades no cenaacuterio da educaccedilatildeo escolar vamos conhecer a histoacuteria de Antiacutegona heroiacutena

que inspira o trabalho de Lacan sobre a eacutetica da psicanaacutelise

Soacutefocles em Antiacutegona uacuteltima parte da trilogia tebana apresenta inicialmente um

diaacutelogo entre Antiacutegona e Ismene filhas de Eacutedipo e Jocasta em que narram os uacuteltimos

acontecimentos Seus dois irmatildeos Eteacuteocles e Polinices acabam por matar um ao outro na

disputa pelo trono de Tebas Com a morte dos dois eacute o seu tio Creonte que assume o reinado

Creonte confere um sepultamento digno a Eteacuteocles pois ele era o rei de Tebas mas proiacutebe sob

pena de morte o enterro de Polinices pois ele cometeu um atentado contra o governo ao matar

o rei seu proacuteprio irmatildeo Proclama Creonte

[] fique insepulto o seu cadaacutever e o devorem catildees e aves carniceiras em nojenta cena Satildeo estes os meus sentimentos e jamais concederei aos homens vis maiores honras que as merecidas tatildeo somente pelos justos Soacute quem quiser o bem de Tebas haacute de ter a minha estima em vida e mesmo apoacutes a morte

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(Antiacutegona vv 235-241)

Ao edito de Creonte o corifeu responde ldquo[] tens o poder ndash eu reconheccedilo ndash para impor

a lei de tua escolha seja em relaccedilatildeo aos mortos seja a noacutes que ainda estamos vivosrdquo (Antiacutegona

vv 244-246)

Antiacutegona se recusa a se submeter agraves leis do Estado pois vatildeo contra as leis divinas

Sabendo que iraacute pagar com a proacutepria vida enterra seu irmatildeo Polinices com as proacuteprias matildeos e

natildeo nega sua accedilatildeo quando descoberta Em diaacutelogo com Creonte lembra a ele das leis natildeo

escritas aquelas que os regem desde os tempos mais remotos ou seja natildeo se deve negar enterro

a um corpo natildeo importando quem seja Desafiado por Antiacutegona sua sobrinha questionado

pelo coro enfrentado pelo filho Hecircmon Creonte insiste em imprimir agrave princesa um destino

terriacutevel o emparedamento ainda viva numa caverna fora da cidade

Tireacutesias o saacutebio cego diz a Creonte que a cidade de Tebas estaacute amaldiccediloada pela carniccedila

espalhada por catildees e aves e pode perder a proteccedilatildeo dos deuses caso o rei natildeo volte atraacutes de sua

decisatildeo Dessa forma Creonte vai com seus guardas soltar Antiacutegona Um mensageiro anuncia

ao coro o suiciacutedio de Hecircmon noivo de Antiacutegona que jazia abraccedilado ao corpo pendente da

princesa estrangulada com um laccedilo de seu vestido Ao saber do filho morto Euriacutedice retorna

ao palaacutecio para cometer sua morte

Ao fim Creonte carrega o corpo do filho e vecirc o corpo da mulher Deseja a proacutepria

morte mas natildeo eacute esse seu destino A fala que encerra a trageacutedia eacute do coro que ensina sobre a

prudecircncia das palavras

231 Aacutetē Omos Mecircrima

Lacan aponta que Antiacutegona eacute levada por uma paixatildeo pois sua accedilatildeo natildeo eacute simplesmente

defender o direito sagrado do morto e de sua famiacutelia e muito menos se justifica por uma suposta

santidade De acordo com o autor existe uma palavra no texto da trageacutedia que se repete vinte

vezes aacutetē ou ldquoo limite que a vida humana natildeo poderia transpor por muito tempordquo (LACAN

1959-19601997 p 318) e eacute justamente onde Antiacutegona deseja estar ou seja o lugar que deve

ocupar por destino desde o seu nascimento

Ela natildeo suporta viver sob as leis de Creonte sob as leis do homem pois tem algo de

desumano em sua conduta Para Lacan esse caraacuteter desumano fica claro toma forma no

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tratamento que dirige agrave irmatilde Ismene que interroga a decisatildeo de Antiacutegona de enterrar o irmatildeo

das duas jaacute que a conduta da heroiacutena eacute romper a ligaccedilatildeo com a irmatilde tomaacute-la por inimiga e natildeo

a querer mais ainda que volte atraacutes no que disse Mesmo quando Ismene quer acompanhar o

destino de Antiacutegona esse rompimento se manteacutem pois esta a trata com desprezo O coro utiliza

a palavra omos para referir-se agrave heroiacutena que pode significar inflexiacutevel e que Lacan diz ser

literalmente cru ou natildeo civilizado ldquoQue Antiacutegona saia deste modo dos limites humanos o que

isso quer dizer para noacutes ndash senatildeo que seu desejo visa precisamente isto ndash para aleacutem da Ateacuterdquo3

(LACAN 1959-19601997 p 319)

Oliveira (2007 p 63) se ocupa em investigar a palavra aacutetē repetida tantas vezes na

trageacutedia de Antiacutegona

Como traduzir essa palavra intraduziacutevel O dicionaacuterio diz ldquoflagelo enviado pelos deuses particularmente cegueira do espiacuterito desvario loucura ruiacutena infelicidade pesterdquo Como nome proacuteprio Aacutete eacute a Fatalidade a deusa do infortuacutenio O substantivo aacutete estaacute por sua vez relacionado ao verbo aaacuteo que quer dizer ldquoperturbar o espiacuterito abater de vertigem e de loucura ter o espiacuterito desvairado e abater com uma calamidade causar um infortuacuteniordquo

Parece existir uma tendecircncia a relacionar a palavra aacutetē com erro ou hamartia cometido

quando a pessoa estaacute tomada pela loucura ou como resultado do erro levando o indiviacuteduo agrave

ruiacutena e ao infortuacutenio Essa eacute a visatildeo que Aristoacuteteles aponta de acordo com Oliveira (2007) No

entanto segundo o autor Lacan natildeo toma a aacutetē como hamartia e discorda do argumento de

Aristoacuteteles

Para Lacan (1959-19601997) a aacutetē natildeo pode se referir a um erro cometido por um

sujeito jaacute que se encontra num campo aleacutem de suas possibilidades no que concerne ao campo

do Outro A aacutetē eacute um vazio que resta no sujeito de sua relaccedilatildeo com o Outro ou seja refere-se

ao que resta do Outro na emergecircncia do sujeito Hamartia para o autor eacute o que ocorre a

Creonte que natildeo eacute o heroacutei da peccedila ao querer fazer valer uma lei para todos a lei da cidade

Com seu erro traacutegico comete um transbordamento de limites de outro tipo A aacutetē diz respeito

a um limite que separa o sujeito do Outro

3 A ediccedilatildeo brasileira do seminaacuterio A eacutetica da psicanaacutelise traz a forma Ateacute para referir-se ao termo grego Ἄτη (Aacutetē) Trata-se de uma variaccedilatildeo de ἄτη (aacutetē) que consta no texto original de Soacutefocles (fonte httpwwwperseustuftsedu) Ver na sequecircncia o comentaacuterio de Oliveira (2007) sobre a traduccedilatildeo dessas palavras

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Ao se aproximar da aacutetē do limite deste lugar aleacutem do humano Antiacutegona entra numa

cadeia que corre em cascata e o que estaacute no fundo eacute um meacuterimna uma palavra designada por

Lacan (1959-19601997) como algo ambiacuteguo que estaacute entre o objetivo e o subjetivo o que

permite pensar no meacuterimna como significante da cadeia como a desgraccedila da famiacutelia de

Antiacutegona como a maldiccedilatildeo dos Labdaacutecidas lanccedilada e relanccedilada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo

Dessa maneia o que impulsiona a heroiacutena para as fronteiras da aacutetē eacute o meacuterimna de sua

famiacutelia Antiacutegona toma o lugar de seus antepassados sendo esse lugar a proacutepria aacutetē o limite

humano que deseja ultrapassar fronteira entre a vida e a morte Seu desejo de morrer eacute

impulsionado pelo meacuterimna que a conduz agrave morte ao destino de seus familiares com exceccedilatildeo

da traidora Ismene Para ela a interpretaccedilatildeo do meacuterimna familiar parece ser menos fatal

Sobre a etimologia do nome Antiacutegona que podemos designar como ldquonascida no lugar

derdquo ainda questionamos Antiacutegona veio ao mundo substituindo o quecirc Nasceu no lugar de

quem Ela parece carregar a proacutepria condiccedilatildeo de nascer no lugar de algo de substituir algueacutem

de ocupar um lugar Eacute como se em suas accedilotildees ela tomasse para si a responsabilidade do meacuterimna

de sua famiacutelia como se a sua funccedilatildeo no mundo fosse essa a de promover o desenlace do

meacuterimna conforme demonstra em seus lamentos finais

[] Ah Horrores do taacutelamo materno Ah Teus abraccedilos incestuosos minha matildee com o pai de quem nasci Como sou infeliz E para eles vou assim maldita sem ter chegado agraves bodas Meu irmatildeo infortunado Que uniatildeo a nossa Transformas-me morrendo em morta viva (Antiacutegona vv 961-961)

Prestes a morrer no lugar intransponiacutevel ao qual ela se prende a aacutetē Antiacutegona se lembra

de sua origem incestuosa e sugere ir para o mesmo caminho dos pais ao sugerir uma uniatildeo

incestuosa com o irmatildeo Torna-se uma morta-viva ao ocupar este lugar entre vida e morte ao

doar-se como o limite que pode promover essa separaccedilatildeo entre vida e morte Justamente essa

barreira que foi negada desde o princiacutepio aos Labdaacutecidas Nasceram sob o interdito de jamais

existirem Eacutedipo que natildeo deveria ter nascido simplesmente desaparece Natildeo ter sepultura eacute

uma forma de apagar o seu nascimento Polinices natildeo ganha o direito de ser enterrado Ao

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contraacuterio do corpo de Eacutedipo objeto miacutestico o corpo de Polinices fica exposto em sua crueza

de carne abjeto

Dessa forma o limite entre vida e morte fica confuso e eacute essa barreira que Antiacutegona

busca fazer com o miacutenimo que lhe resta com a univocidade de sua metaacutefora com seu corpo e

com sua morte Garantir o passado a histoacuteria da famiacutelia com um presente fatal Garantir o

direito de existecircncia da famiacutelia mesmo em sua negatividade Garantir a vida da famiacutelia com a

sua morte

Em que Antiacutegona se diferencia de seus familiares ao mesmo passo que se alia a eles

Em vez de fugir de seu destino das profecias do oraacuteculo do mandamento das divindades

Antiacutegona encara sua sina deseja-a Confere sepultamento ao irmatildeo criminoso selando natildeo

apenas o fim deste mas o fim do proacuteprio Eacutedipo a quem foi negada num primeiro momento a

sepultura em Tebas Assume o enterro do irmatildeo como de sua responsabilidade acolhendo

dando um lugar em sua existecircncia ao fado familiar

Nesse sentido entendemos que Lacan (1959-19601997) situa Antiacutegona no lugar ex

nihilo zona limite da linguagem a partir da qual acontece a criaccedilatildeo A expressatildeo atribui-se a

ldquodo nadardquo vazio e para o psicanalista haacute uma correspondecircncia entre a modelaccedilatildeo significante

o que fazemos com os significantes que nos marcam como sujeitos e a criaccedilatildeo ex nihilo ldquoa

introduccedilatildeo no real de uma hiacircncia de um furordquo (LACAN 1959-19601997 p 153)

Antiacutegona se apresenta como autocircnomos pura e simples relaccedilatildeo do ser humano com

aquilo que ocorre de ele ser miraculosamente portador ou seja do corte significante que lhe

confere o poder intransponiacutevel de ser o que eacute contra tudo e contra todos (LACAN 1959-

19601997)

Guyomard (1996 p 31) aponta que ela ldquoeacute autoacutenomos ela que daacute a si mesma a lei de

sua fidelidade agrave famiacutelia e aceita sofrer-lhe os efeitosrdquo De acordo com Vieira (2010) Antiacutegona

natildeo tem pretensatildeo alguma de se manter viva mas de sustentar a sobrevida de seu ideal de

conduta de sua eacutetica ldquo[] a morte natildeo significa impossibilidade mas necessidade natildeo

simboliza o final da vida mas seu coroamentordquo (VIEIRA 2010 p 157) Ou seja Antiacutegona

preserva o significante uacuteltimo de sua eacutetica que faz valer sua proacutepria passagem pelo mundo

nem que para isso precise morrer A morte para ela natildeo eacute o limite mas seu limite eacute o seu

significante eacutetico

107

Sem fugir agraves consequecircncias de seu ato de enterrar o irmatildeo (diga-se de passagem duas

vezes) Antiacutegona assume a Creonte increacutedulo da desobediecircncia da sobrinha ser a criminosa

desafiadora da lei ldquoFui eu a autora Digo e nunca negariardquo (Antiacutegona v 503)

232 Desejo do Outro primordial e castraccedilatildeo

O desejo da matildee o texto faz a ele alusatildeo eacute a origem de tudo O desejo da matildee eacute o desejo fundador de toda a estrutura aquele que fez vir agrave luz seus rebentos uacutenicos Eteocleacutes Polinices Antiacutegona e Ismene mas ao mesmo tempo eacute um desejo criminoso [] Nenhuma mediccedilatildeo eacute aqui possiacutevel a natildeo ser esse desejo seu caraacuteter radicalmente destruidor A descendecircncia da uniatildeo incestuosa se desdobrou em dois irmatildeos um que representa o poderio o outro que representa o crime Natildeo haacute ningueacutem para assumir o crime e a validade do crime senatildeo Antiacutegona Entre os dois Antiacutegona escolhe ser pura e simplesmente a guardiatilde do ser criminoso como tal [] Eacute na medida em que a comunidade se recusa a isso [perdoar] que Antiacutegona deve fazer o sacrifiacutecio de seu ser para a manutenccedilatildeo desse ser essencial que eacute a Ateacute familiar ndash motivo eixo verdadeiro em torno do qual gira toda essa trageacutedia Antiacutegona perpetua eterniza imortaliza essa Ateacute (LACAN 1959-19601997 p 342)

A condiccedilatildeo de Antiacutegona ser como eacute o lugar que lhe cabe na linhagem familiar deve-se

ao desejo destruidor do Outro primordial Jocasta Parece ser isso que Lacan tenta propor jaacute

que entende que o desejo da matildee eacute criminoso e destrutivo responsaacutevel por ter gerado filhos

criminosos cabendo ao desejo puro de Antiacutegona a condiccedilatildeo de zelar fielmente a aacutetē familiar

Eacute Guyomard (1996) quem constroacutei uma criacutetica ao argumento de Lacan pois acredita

que Jocasta natildeo pode carregar em seus ombros sozinha a culpa do desejo desmedido de seus

filhos soacute pelo fato de ser a matildee o Outro primordial Como se os pais Laio e Eacutedipo natildeo tivessem

nada a ver com os crimes da famiacutelia e fossem apenas viacutetimas de uma mulher-matildee terriacutevel De

acordo com a tese de Lacan supomos que Antiacutegona sacrifica-se morre em decorrecircncia do

desejo materno incestuoso ao qual se alia purificando seu ser num eterno zelo pelo corpo do

irmatildeo

Acreditamos que haacute outro aspecto a ser pensado nessa passagem de Lacan que diz

respeito agraves inscriccedilotildees significantes que possibilitariam Antiacutegona construir um caminho outro

para a sua vida uma medida uma inflexatildeo ao desejo do Outro primordial Natildeo haacute realmente

nada em seu ato que possa vir a constituir uma medida uma funccedilatildeo simboacutelica ao puro desejo

materno por meio da constituiccedilatildeo da falta

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Guyomard (1996) aborda essa questatildeo ao propor pensarmos na diferenccedila entre o desejo

de Antiacutegona (o qual para Lacan eacute puro desejo materno) e a operaccedilatildeo de castraccedilatildeo operaccedilatildeo esta

que junto agrave frustraccedilatildeo e agrave privaccedilatildeo concede ao sujeito uma condiccedilatildeo desejante marcada pela

falta Para o autor eacute fundamental

[] saber se se trata de seu desejo ou de sua castraccedilatildeo da afirmaccedilatildeo de sua onipotecircncia aleacutem da morte ou do reconhecimento de seus limites Essa diferenccedila eacute essencial O desejo puro realmente remete agrave castraccedilatildeo pensada como puro corte o puro poder de dizer natildeo de Antiacutegona [] como saber se o poder da recusa o natildeo do sujeito eacute ele mesmo aceitaccedilatildeo ou recusa da castraccedilatildeo (de um limite para seus desejos) Seraacute que Antiacutegona apoia sua recusa na aceitaccedilatildeo ou na recusa de sua castraccedilatildeo (GUYOMARD 1996 p 16-17)

A recusa de que Guyomard fala eacute a recusa do interdito de Creonte Sendo assim sua

questatildeo eacute provavelmente quanto ao valor da lei proposta pelo rei para Antiacutegona como tal

interdito se compotildee no ato de Antiacutegona Pensamos que se trata de uma aceitaccedilatildeo de algo que

poderia cumprir a funccedilatildeo da castraccedilatildeo na medida em que no ato de recusar a lei de Creonte

enterrando o irmatildeo Antiacutegona estipula qual a lei que ela segue a lei divina anterior agrave proibiccedilatildeo

de Creonte Eacute essa lei que a constitui como sujeito de desejo e sujeito de linguagem na tentativa

de demarcar a diferenccedila entre vida e morte o traccedilado entre a vida e a morte Eacute a essa lei que ela

se dobra No entanto acreditamos que natildeo haacute limite para seu desejo em seu ato ela se lanccedila a

um destino mortiacutefero de reencontro com o vazio de sua constituiccedilatildeo de reencontro com seus

familiares Deseja esse destino natildeo recua diante dele mas ainda assim experimenta anguacutestia

Ao final acaba por lamentar sua proacutepria morte mas a aceita natildeo foge dela Toma-a como uma

vantagem Desse modo diz a Creonte

[] Eu jaacute sabia que teria de morrer (e como natildeo) antes ateacute de o proclamares Mas se me leva a morte prematuramente Digo que para mim soacute haacute vantagem nisso Assim cercada de infortuacutenios como vivo A morte natildeo seria entatildeo uma vantagem (Antiacutegona vv 524-530)

109

Sabe que um dia iraacute morrer sabe que sua vida e de seus familiares estaacute desgraccedilada para

sempre e nesse sentido escolhe um motivo para morrer Faz de seu ato um ato simboacutelico ao

escolher morrer por algo por alguma coisa Doa-se completamente a isso

No seminaacuterio 10 chamado A anguacutestia em que Lacan (1962-19632005) trabalha esse

conceito fundamental motor da cliacutenica psicanaliacutetica o psicanalista fala da relaccedilatildeo do sujeito

neuroacutetico com a anguacutestia de castraccedilatildeo Ele nos diz que aquilo do qual o neuroacutetico recua natildeo eacute

a castraccedilatildeo mas fazer de sua castraccedilatildeo aquilo que preencheria a falta do Outro ceder uma parte

positivada de si como forma de garantir o Outro Chega a esta formulaccedilatildeo a partir do que Freud

diz sobre a cliacutenica que o ponto intransponiacutevel o ponto de chegada da elaboraccedilatildeo da experiecircncia

do neuroacutetico eacute a anguacutestia de castraccedilatildeo

No entanto Lacan acredita que o limite eacute mais aleacutem do ponto situado por Freud

Dedicar sua castraccedilatildeo agrave garantia do Outro eacute diante disso que o neuroacutetico se deteacutem Ele se deteacutem aiacute por uma razatildeo como que interna agrave anaacutelise e que decorre de que eacute a anaacutelise que o leva a esse encontro A castraccedilatildeo no fim das contas nada mais eacute que o momento da interpretaccedilatildeo da castraccedilatildeo (LACAN 1962-19632005 p 56)

Lembramos aqui que a castraccedilatildeo eacute uma das operaccedilotildees que constituem o sujeito como

ldquoem-faltardquo sendo uma operaccedilatildeo que implica uma perda de uma parte de si para o Outro O que

o sujeito perde eacute a miragem de uma relaccedilatildeo totalizada com a dimensatildeo primordial do Outro

representada por quem exerce a funccedilatildeo materna ou seja o que ele perde eacute justamente ser aquilo

capaz de preencher a falta deste Outro

Na castraccedilatildeo pode-se dizer ele perde a identificaccedilatildeo a uma dimensatildeo objetal

assumindo uma dimensatildeo subjetiva Isso ocorre porque resta uma potecircncia que lanccedila o sujeito

para fora dessa relaccedilatildeo o significante da falta que ele passa a situar numa alteridade simboacutelica

natildeo mais ocupada pela matildee mas pela linguagem pela cultura O sujeito neuroacutetico natildeo deseja

mais ser o objeto que pode completar o Outro mas ter ou natildeo ter esse objeto capaz de

causarcompletar a falta no Outro A dimensatildeo da alteridade precisa permanecer faltante falta

esta realizada pelo sujeito que busca completaacute-la de alguma forma nunca totalmente com os

objetos de que dispotildee ou de que natildeo dispotildee Se a falta for totalmente preenchida o sujeito se

flagra a si mesmo como fixado em uma dimensatildeo totalmente objetal Em vez de doar uma parte

de si uma cessatildeo de objeto ele doa-se por inteiro e da relaccedilatildeo com a alteridade nada resta para

que ele siga desejante percorrendo e produzindo-se em uma cadeia simboacutelica

110

O sujeito para desejar precisa manter o falo como significante da falta do Outro com

o qual pode inventar uma diversidade de representaccedilotildees Nesse sentido seu limite estaacute para

aleacutem da operaccedilatildeo da castraccedilatildeo na medida em que desta operaccedilatildeo natildeo decorra advir como puro

objeto que obtura a falta do Outro o que colocaria em questatildeo ateacute mesmo a sustentaccedilatildeo da

diferenccedila mas advir sempre como sujeito desejante para aleacutem do gozo do Outro

Dessa maneira questionamos o que faz com que Antiacutegona seja a heroiacutena traacutegica que a

psicanaacutelise recupera ao pensar a eacutetica considerando que ela doa seu corpo sua proacutepria vida

falece em nome da garantia do Outro um lugar ocupado pelos deuses gregos O trabalho da

cliacutenica psicanaliacutetica pode ocorrer no sentido de conduzir o sujeito a esse enfrentamento

experimentado natildeo sem anguacutestia de averiguar quais satildeo os contornos que conformam seu

desejo ao que responde sua castraccedilatildeo com o que ou como ele paga a diacutevida simboacutelica de sua

existecircncia Para Lacan o sujeito pode pagar com o que for uma cessatildeo de si de algo de si de

seu gozo soacute natildeo pode pagar com o seu proacuteprio desejo ldquoA uacutenica coisa da qual se pode ser

culpado eacute de ter cedido de seu desejordquo (LACAN 1959-19601997 p 385) Pois pensamos que

a sua condiccedilatildeo desejante eacute a uacutenica coisa que o sujeito realmente pode ter Desse modo o puro

desejo de Antiacutegona eacute a uacutenica coisa que permanece com ela ateacute o fim Ela perde sua vida seu

futuro um casamento alegrias conjugais os filhos e Ismene sua irmatilde mas natildeo perde tudo

pois sustenta seu desejo e com ele vai ateacute a morte atravessa a fronteira entre vida e morte a

aacutetē

Talvez a personagem Antiacutegona mostre para noacutes a dimensatildeo paradoxal inerente a essa

relaccedilatildeo do sujeito com o Outro O que eacute da ordem subjetiva o que eacute da ordem objetal na medida

em que em verdade inventamos o que o Outro supostamente desejaria de noacutes e decidimos o

quanto respondemos ou natildeo a tal demanda Antiacutegona nos diz que natildeo tem nada a perder pois

em sua vida cheia de infortuacutenios a morte se inscreveria como vantagem A morte para noacutes

meros leitores espectadores da cena eacute a perda de tudo eacute mergulho na radicalidade do ser

objetal Talvez para Ismene para Creonte para os demais cidadatildeos tebanos tambeacutem Para

Antiacutegona morte eacute ganho torna-se radicalmente um ganho subjetivo

111

233 Antiacutegona ex nihilo e as leis natildeo escritas

A accedilatildeo traacutegica de Antiacutegona para Lacan (1959-19601997) ocupa um lugar limite lugar

de antecipaccedilatildeo da morte da experiecircncia da proacutepria morte em vida O espectador testemunha ao

mesmo tempo que eacute conduzido a uma travessia neste lugar que situa os limites do simboacutelico

Dessa maneira Antiacutegona situa-se num lugar ex nihilo ou seja com sua accedilatildeo de enterrar

Polinices a heroiacutena vai ao limite da linguagem atribuindo ateacute as uacuteltimas consequecircncias valor

ao significante irmatildeo que impera sobre tudo o que ele possa ter feito pelo bem ou pelo mal E

desse lugar no belo enfrentamento de Antiacutegona contra as leis de Creonte ela diz

Mas Zeus natildeo foi o arauto delas para mim nem essas leis satildeo as ditadas entre os homens pela Justiccedila companheira de morada dos deuses infernais e natildeo me pareceu que tuas determinaccedilotildees tivessem forccedila para impor aos mortais ateacute a obrigaccedilatildeo de transgredir normas divinas natildeo escritas inevitaacuteveis natildeo eacute de hoje natildeo eacute de ontem eacute desde os tempos mais remotos que elas vigem sem que ningueacutem possa dizer quando surgiram (Antiacutegona 511-520)

De que leis Antiacutegona fala aqui construindo uma arguiccedilatildeo alternativa agrave imposiccedilatildeo de

Creonte Satildeo leis de tempos remotos anteriores ao bem que o rei quer para a cidade Satildeo leis

aleacutem do bem natildeo escritas mas que se fazem presentes entre os cidadatildeos Em seu livro Antiacutegona

e a eacutetica traacutegica da psicanaacutelise Ingrid Vorsatz (2013) nos diz que as leis natildeo escritas nomina

diferenciavam-se da lei escrita nomos As nomina dependem da accedilatildeo de cada indiviacuteduo do

quanto cada um consegue inscrever em ato as leis natildeo escritas que segue Apenas por adesatildeo

singular as nomina podem ter validade Isso vale tambeacutem para as imposiccedilotildees divinas As

verdades dos deuses gregos soacute tecircm valor no momento em que um cidadatildeo escolher segui-las

em ato

As leis natildeo escritas nomina satildeo aquelas que vigem desde os tempos imemoriais e sua validade reside exclusivamente na forccedila de sua enunciaccedilatildeo a despeito de sua origem divina Sua incidecircncia eacute real ela ex-siste eacute exterior ao mundo humano que por sua vez se constitui na e atraveacutes da submissatildeo a essas leis Para que tenha validade a lei natildeo escrita convoca o ato singular

112

de cada um ndash no caso da heroiacutena traacutegica ndash a cada vez (VORSATZ 2013 p 114)

Jaacute o nomos a escrita da lei surge de uma necessidade de organizaccedilatildeo da poacutelis numa

tentativa de registrar a legislaccedilatildeo divina Uma vez escrita a lei dispensaria a escolha individual

para adquirir validade e deveria ser respeitada por todos sem exceccedilatildeo pelo bem comum

Vorsatz (2013) argumenta que o universo em que a trageacutedia se estabelece natildeo eacute ainda

o conhecido acircmbito da filosofia acessiacutevel ao nosso modo de organizaccedilatildeo contemporacircneo que

se faz com a razatildeo e o conhecimento em que o indiviacuteduo eacute senhor em sua proacutepria casa Esse

modo de vida comeccedila a se desenvolver na histoacuteria da humanidade no seacuteculo IV antes de Cristo

que corresponde ao surgimento da democracia com o ideal de bem para todos Na trageacutedia natildeo

satildeo motivaccedilotildees racionais e de algum sistema de conhecimento que sustentam a vida dos

homens

A trageacutedia antiga que surgiu e se dissipou ao longo do seacuteculo V antes de Cristo situa-

se no mundo dos deuses gregos e sendo assim a palavra tomada pelo heroacutei traacutegico leva em

consideraccedilatildeo a alteridade divina Para Vorsatz (2013 p 22) ldquoo heroacutei traacutegico determinado pelo

campo real dos deuses dele se extrai por intermeacutedio de seu atordquo Assim o heroacutei surge no

momento em que com sua accedilatildeo garante a presenccedila e a ordem divina Poreacutem sua accedilatildeo implica

sua proacutepria perda

Antiacutegona garante no ato de enterrar Polinices com suas proacuteprias matildeos o lugar das leis

natildeo escritas da Justiccedila companheira dos deuses de baixo da terra como se estivessem na origem

de sua escolha Em seguida mostra-se responsaacutevel pelas consequecircncias de seu ato que implica

a proacutepria morte Com seu ato e com suas palavras Antiacutegona move o Aqueronte

Eacute importante entender que o ato de Antiacutegona aleacutem de corresponder ao seu desejo

inscreve-se numa tradiccedilatildeo grega de entregar os corpos ao mundo dos deuses de baixo Para

fazecirc-lo em respeito e honra aos deuses os corpos passam por um ritual de purificaccedilatildeo as

libaccedilotildees fuacutenebres Aleacutem disso os corpos precisam de sepultura para que possa ocorrer um

esquecimento jaacute que ldquoas almas errantes se transformariam em fantasmas que perseguiriam os

vivosrdquo (VORSATZ 2013 p 64)

Natildeo permitir as honras fuacutenebres e o sepultamento de Polinices eacute uma desmedida de

Creonte ldquoA mutilaccedilatildeo do corpo aleacutem de enfraquecer o espiacuterito do morto atinge gravemente a

honra da estirpe O sepultamento eacute um dever sagrado que faz o morto descer ao Hades onde

ele se torna um numen (espiacuterito ou gecircnio) protetor da linhagemrdquo (VORSATZ 2013 p 64)

113

A purificaccedilatildeo do corpo e o seu enterro correspondem desse modo a uma operaccedilatildeo

simboacutelica que permite estabelecer uma separaccedilatildeo entre os vivos e os mortos Antiacutegona age em

funccedilatildeo da morte simboacutelica de Polinices no entanto as honras fuacutenebres que concede a ele

levam-na agrave sua proacutepria morte simboacutelica ao ponto extremo onde a vida alcanccedila a morte Presa

entre duas mortes conforme define Lacan

Vorsatz (2013 p 67) aponta que Creonte

em seu afatilde legiferante faz com que as funccedilotildees e os lugares sejam subvertidos os vivos satildeo enterrados os mortos jazem insepultos A situaccedilatildeo resulta no chaos a proacutepria natureza desordenou-se e a ordem coacutesmica tatildeo cara ao grego antigo foi revirada pelo avesso A sentenccedila do soberano sobre o ato de Antiacutegona apenas redobra a anterior a proibiccedilatildeo do sepultamento de Polinices este condenado a apodrecer entre os vivos aquela a viver entre os mortos

De acordo com a autora Creonte natildeo ordena a morte de Antiacutegona conforme havia

prometido ao traidor do decreto Natildeo esperava ele que a pessoa a trair seria ela sua sobrinha

sangue de seu sangue Temendo a revolta dos deuses decide pelo seu emparedamento viva A

morte seria uma consequecircncia pela qual ele natildeo quer se responsabilizar

O destino traacutegico de Antiacutegona eacute o de seu corpo no lugar do corpo do irmatildeo Ela aparece

como carne como morta embora viva O que mais ela consegue realizar ainda que

simbolicamente Como jaacute mencionado em Eacutedipo em Colono trageacutedia que antecede Antiacutegona

Eacutedipo eacute enterrado por Teseu em lugar desconhecido seu corpo natildeo pertence a lugar nenhum

natildeo protege a sua linhagem Antiacutegona e a irmatilde Ismene fazem os rituais de purificaccedilatildeo poreacutem

satildeo impedidas de ver e de saber sobre o local da sepultura

Antiacutegona ao dizer os motivos pelos quais enterra Polinices afirma

[] Se houvera sido matildee de filhos ou se o esposo morto apodrecesse exposto jamais enfrentaria eu tamanhas penas tendo de opor-me a todos os concidadatildeos Que leis me fazem pronunciar estas palavras Fosse eu casada e meu esposo falecesse bem poderia encontrar outro e de outro esposo teria um filho se antes perdesse algum mas morta minha matildee morto meu pai jamais outro irmatildeo meu viria ao mundo (Antiacutegona vv 1008-1017)

114

Para Guyomard (1996) Antiacutegona ao enterrar o irmatildeo o uacutenico que lhe resta estaacute

honrando tambeacutem algo que diz respeito agrave sua proacutepria condiccedilatildeo de ter nascido do incesto ldquoA

questatildeo de Antiacutegona eacute que essa unicidade inclui o incesto Um incesto que a fez nascer ndash sem

metaacutefora ndash e que a faz morrer Ela coloca tragicamente a questatildeo da confusatildeo entre a vida e a

morte como entre a lei e o incestordquo (GUYOMARD 1996 p 32)

Como o autor aponta Antiacutegona conhece apenas uma metaacutefora pura que a conduz agrave

morte Eacute tambeacutem o que a faz ver em Polinices a unicidade de ser um irmatildeo o que a faz por

outro lado tomar-se na unicidade de ser uma irmatilde De acordo com Guyomard (1996 p 31)

[] a unicidade do irmatildeo morto converte-se na relaccedilatildeo pura (isto eacute esvaziada de qualquer outro interesse) de Antiacutegona com o que faz dela um sujeito falante ela se identifica com o corte da linguagem ndash a partir desse nada para onde retorna ndash sendo apenas a irmatilde de seu irmatildeo

Dessa maneira podemos depreender disso que o lugar do irmatildeo morto eacute o lugar do

desejo de Antiacutegona O desejo que se revela no cadaacutever de Polinices De acordo com Lacan

(1959-19601997) o valor do ser irmatildeo se torna um valor de linguagem que acaba por mostrar

o corte instaurado em Antiacutegona o corte de linguagem o limite o ex nihilo em que ela fica

presa

Jamais outro irmatildeo de Antiacutegona viria ao mundo estando seu pai Eacutedipo e sua matildee Jocasta

mortos Eacute importante lembrar que Eacutedipo aleacutem de pai eacute tambeacutem irmatildeo de Antiacutegona e nessa

medida ao enterrar Polinices podemos entender que ela enterra tambeacutem o que resta de irmatildeo

em Eacutedipo

Nesse sentido Eacutedipo e Polinices parecem estar ligados por um significado oculto que

diz respeito a ambos serem irmatildeos de Antiacutegona Outra ligaccedilatildeo possiacutevel eacute o dever de enterrar

Eacutedipo (corpo que some subtraiacutedo) deslocado ao dever de enterrar Polinices (corpo exposto

que aparece em demasia) Nessa relaccedilatildeo ela manteacutem a metoniacutemia de seu desejo ateacute as uacuteltimas

consequecircncias apontando o que sustenta essa relaccedilatildeo as leis divinas Os termos morfoloacutegicos

que constituem o nome Antiacutegona em grego ἀντί e γονή aludem agrave funccedilatildeo da metaacutefora a

condiccedilatildeo de substituir uma coisa por outra tomar o lugar de algum familiar nascer no lugar de

algo ou alguma coisa O ato com o qual se afirma como sujeito ao mesmo tempo que se coloca

em perda ou seja o ato de enterrar o irmatildeo ao lembrar das leis natildeo escritas como dissemos

ocorre por meio da tentativa de garantir simbolicamente o enterro de Eacutedipo pelo enterro de

Polinices

115

Contudo como consequecircncia de seu ato Antiacutegona se torna a proacutepria coisa que substitui

o irmatildeo morto eacute enterrada como cadaacutever sem secirc-lo eacute tomada como morta sem secirc-lo sem que

nada reste como diferenccedila como qualquer outra coisa torna-se totalmente metaacutefora Puro corte

significante pura metaacutefora Doa-se como parte fundamental da constituiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo

simboacutelica capaz de marcar a diferenccedila entre dois mundos o mundo dos vivos e o mundo dos

mortos o mundo dos humanos e o mundo dos deuses No entanto Creonte provoca nova

confusatildeo ao natildeo permitir o enterro de um morto e ao ordenar o enterro de uma pessoa viva

A proacutepria trageacutedia grega para Kathrin Rosenfield (2000) eacute uma arte que se apresenta

como metaacutefora quer dizer representaccedilatildeo Eacute um lugar de passagem entre lugares irredutiacuteveis

um ao outro a natureza e a cultura

Enquanto metaacutefora de uma intuiccedilatildeo intelectual a trageacutedia potildee em cena a passagem ndash o meio (termo) indefinido e insuperaacutevel ndash entre mundo estranhos entre si e que satildeo ao mesmo tempo figuras de niacuteveis distintos do entendimento e da razatildeo Nesta perspectiva a trageacutedia eacute inteiramente no momento no instante da representaccedilatildeo transporte infinitamente prolongado entre niacuteveis irredutiacuteveis um ao outro (ROSENFIELD 2000 p 168)

A trageacutedia Antiacutegona permite a realizaccedilatildeo dessa passagem dessa travessia que conduz

de um plano a outro sem que nenhum possa prevalecer sobre o outro Para fazer tal travessia

a qual se prolonga em metoniacutemia desejante faz-se necessaacuteria a construccedilatildeo de uma metaacutefora

nem que para sua garantia o preccedilo a pagar a libra de carne seja a proacutepria existecircncia

Nessa linha de pensamento Vorsatz (2013) nos mostra que aleacutem da temaacutetica proposta

na trageacutedia Antiacutegona a proacutepria esteacutetica traacutegica sua forma de apresentaccedilatildeo linguiacutestica compotildee-

se de modo a trabalhar a linha de tensatildeo entre planos distintos e nesse sentido favorece o

pensamento poeacutetico justamente esse que natildeo visa um argumento racional e loacutegico mas uma

forma de pensamento alargada em que os sentidos vatildeo sendo produzidos em decorrecircncia das

passagens de um termo a outro

Vemos que a proacutepria estrutura de linguagem poeacutetica da trageacutedia caracteriza uma forma de pensamento singular distinta e anterior ao pensamento logico-conceitual em que as contradiccedilotildees natildeo se anulam reciprocamente e diferentes patamares de temporalidade coexistem sem que haja primazia de uns sobre outros A linguagem poeacutetica natildeo subsumida ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo seria aparentada ao funcionamento inconsciente Talvez seja possiacutevel supor que em seu funcionamento o inconsciente tem uma forma poeacutetica de proceder de acordo com sua estrutura de linguagem assinalada por Lacan ndash metaacutefora e

116

metoniacutemia satildeo mecanismos anaacutelogos agrave condensaccedilatildeo e ao deslocamento postulados por Freud (VORSATZ 2013 p 41)

Condensaccedilatildeo e deslocamento satildeo mecanismos que Freud descobre operarem na

deformaccedilatildeo que conteuacutedos inconscientes sofrem na tentativa de figurar o sonho a linguagem

o sintoma O trabalho de interpretar os sonhos vai nesse sentido de averiguar essas operaccedilotildees

com o paciente que captam traccedilos aspectos em comum de diferentes objetos pessoas espaccedilos

e tempos e os fazem participar de uma mesma cena sem que haja uma anulaccedilatildeo ou contradiccedilatildeo

entre eles A condensaccedilatildeo tomada por Lacan como metaacutefora eacute uma operaccedilatildeo simboacutelica que

permite ao sujeito a construccedilatildeo de um novo sentido pela substituiccedilatildeo de um significante por

outro Ele trabalha com essa questatildeo no seminaacuterio As formaccedilotildees do inconsciente (LACAN

1957-19581998)

Nesse sentido na constituiccedilatildeo do sujeito como ser de linguagem Lacan propotildee a

ocorrecircncia de metaacutefora paterna que teria por funccedilatildeo a substituiccedilatildeo do significante do desejo da

matildee pelo significante do nome do pai Isso implicaria uma alienaccedilatildeo ao desejo do Outro uma

pergunta necessaacuteria e fundante sobre o que o Outro quer de mim sendo este uma alusatildeo agrave matildee

como Outro primordial Nesse sentido Antiacutegona desliza a uma rede significante com a qual

interpela esse Outro como metaacutefora o qual corresponde aos deuses gregos ldquoQue mandamentos

transgredi das divindadesrdquo (Antiacutegona v 1027)

Pensamos se na trageacutedia grega natildeo haveria uma intenccedilatildeo nesse sentido uma tentativa

conjunta de criar um dispositivo uma operaccedilatildeo cultural uma metaacutefora que pudesse representar

o desejo humano na cultura Uma tentativa de fundar um saber da civilizaccedilatildeo sempre falha

sempre traacutegica jaacute que por ela todos morrem no final em cadeia Seria uma tentativa de que a

representaccedilatildeo alcanccedilasse um ponto impossiacutevel Como aponta Vorsatz (2013) fazer o simboacutelico

cortar o real

Lacan no complemento ao seu comentaacuterio sobre a trageacutedia Antiacutegona fala que

ldquoAntiacutegona diante de Creonte se situa como a sincronia oposta agrave diacroniardquo (LACAN 1959-

19601997 p 344) Com seu ato de enfrentar Creonte Antiacutegona faz um corte sincrocircnico na

lei proferida pelo rei Ao nomear Polinices como inimigo criminoso escravo o que resulta no

edito de deixar seu corpo exposto a princesa mostra o que ele eacute para ela um irmatildeo antes de

tudo O que o rei faz com isso Natildeo mata o traidor pois eacute sua sobrinha mas a enterra viva para

manter em parte sua palavra Ao ouvir o adivinho Tireacutesias muda de ideia ordena que

desenterrem Antiacutegona Poreacutem jaacute estava morta enforcada com um laccedilo de linho de seu vestido

117

Ao vecirc-la o filho de Creonte noivo da princesa mata-se com uma espada Ao saber da morte

do filho a mulher de Creonte tambeacutem comete suiciacutedio

O rei desesperado implora para que a morte chegue ateacute ele jaacute que ele mesmo natildeo

consegue fazecirc-lo ldquoVenha Aconteccedila a uacuteltima das mortes ndash a minha ndash e traga o meu dia final

o mais feliz de todos Venha Venha pois natildeo quero viver nem mais um diardquo (Antiacutegona vv

1468-1471)

Agrave suacuteplica de Creonte o corifeu diz ldquoisto eacute o futuro antes cuidemos do presenterdquo

(Antiacutegona v 1472) Entendemos que haacute na trageacutedia uma invenccedilatildeo um fazer com a linguagem

e a relaccedilatildeo da temporalidade com a linguagem O saber na trageacutedia um saber que natildeo se revela

a priori que se faz com o ato um saber insabido pode ser transmitido com esses termos

234 A dimensatildeo do belo

No lugar em que Antiacutegona sustenta seu desejo ex nihilo Lacan (1959-19601997) fala

de seu brilho de sua luz que em parte se reflete causando um cegamento no espectador e em

parte se reteacutem e se prolonga O psicanalista menciona especialmente uma imagem de Antiacutegona

que se destaca dentre as outras imagem de sua lamentaccedilatildeo ao entrar viva no tuacutemulo de sua

morte

Pois bem sabemos que para aleacutem dos diaacutelogos para aleacutem da famiacutelia e da paacutetria para aleacutem dos desenvolvimentos moralizadores eacute ela que nos fascina em seu brilho insuportaacutevel naquilo que ela tem que nos reteacutem e ao mesmo tempo nos interdita no sentido em que isso nos intimida no que ela tem de desnorteante ndash essa viacutetima tatildeo terrivelmente voluntaacuteria (LACAN 1959-19601997 p 300)

Nesse sentido para aleacutem da discussatildeo que compreende as leis do Estado opostas agraves leis

familiares no que diz respeito aos deveres para com os mortos que por si soacute jaacute nos coloca numa

dimensatildeo de tensionamento o ato de Antiacutegona nos atravessa ao problematizar a via desejante

que em seu caso sobrevive mesmo ao conduzi-la agrave morte Haacute aiacute um lugar para aleacutem dos limites

eacuteticos que nossa consciecircncia atinge alccedilamos uma experiecircncia esteacutetica compreendida como a

zona do belo que estaacute num ponto aleacutem da zona do bem

O belo diz Lacan pode dar forma ao desejo inconsciente poreacutem haacute uma relaccedilatildeo

ambiacutegua entre os termos ldquodesejordquo e ldquobelordquo Uma vez que o nosso desejo tome forma bela a

partir de um certo arranjo de elementos miacutenimos chegamos a um ponto de suspensatildeo do

118

horizonte do desejo pois ele encontra no belo uma experiecircncia esteacutetica tal que favorece a

satisfaccedilatildeo desejante e natildeo a relanccedila Nesse sentido o belo guarda a condiccedilatildeo tanto de expressatildeo

do desejo quanto de suspendecirc-lo

A verdadeira barreira que deteacutem o sujeito diante do campo inominaacutevel do desejo radical uma vez que eacute o campo da destruiccedilatildeo absoluta [] eacute o fenocircmeno esteacutetico propriamente dito uma vez que eacute identificaacutevel com a experiecircncia do belo (LACAN 1959-19602007 p 265)

A uacutenica maneira possiacutevel de transmitir a experiecircncia do ex nihilo de onde Antiacutegona

situa seu ato simboacutelico eacute a via do belo que para Lacan eacute o verdadeiro limite do desejo para

aleacutem dele nada resta a natildeo ser destruiccedilatildeo Esse limite Antiacutegona o toca e nos comove

Talvez aqui seja interessante fazer um esboccedilo da diferenccedila proposta por Lacan (1959-

19602007) entre o bem e o belo jaacute que o psicanalista compara a barreira do bem com a barreira

do belo O limite do belo situa-se num ponto aleacutem do limite do bem embora por sermos

constantemente iludidos na dimensatildeo do bem por muitas vezes em nossas relaccedilotildees cotidianas

em nossas escolhas de vida paralisamos diante da barreira do bem enganando-nos de que aiacute

reside o que eacute da ordem do nosso desejo ou entatildeo ao menos o que eacute da ordem do justo

Lacan aponta que no fazer do psicanalista eacute preciso pensar sobre como o desejo e o bem

se articulam O desejo de curar em psicanaacutelise seria um desejo de libertar o sujeito das ilusotildees

do bem e dessa forma ir na via contraacuteria da ldquofalcatrua beneacutefica do querer-o-bem-do-sujeitordquo

(LACAN1959-19602007 p 267) Para o psicanalista francecircs o bem eacute o que reteacutem o desejo

ilude o sujeito na realizaccedilatildeo de seu desejo quando na verdade o silencia

Lacan nos aponta que o bem estaacute sempre em referecircncia agrave noccedilatildeo freudiana de princiacutepio

do prazer atraveacutes do qual buscamos satisfaccedilatildeo e com o princiacutepio de realidade que faz com

que nos deparemos com os caminhos equivocados para onde o prazer nos conduz Nesse

sentido o bem estaacute relacionado a um conflito fruto do embate entre esses dois princiacutepios Entre

o prazer e a realidade sabemos que como neuroacuteticos tendemos a entrar num acordo atraveacutes

do qual conseguimos adquirir satisfaccedilatildeo atraveacutes dos compromissos que a realidade nos coloca

sem precisarmos muitas vezes escolher e bancar o que eacute da ordem de nosso desejo Tendemos

a buscar uma parcela de prazer atraveacutes do investimento nos objetos do mundo enganando-nos

na via da realizaccedilatildeo de nosso desejo Isso nos livra da responsabilidade de arcar com a

consequecircncia de seguirmos a via desejante jaacute que esse caminho natildeo nos traz satisfaccedilatildeo da

119

ordem do principio do prazer ou da articulaccedilatildeo deste com o princiacutepio de realidade A satisfaccedilatildeo

seria de outra ordem difiacutecil de bancar aliada agrave pulsatildeo de morte

Dessa maneira o psicanalista apresenta a noccedilatildeo de praacutexis no duplo sentido que ela

evoca a dimensatildeo eacutetica a nossa accedilatildeo como agimos de acordo com nosso lugar na linguagem

e a dimensatildeo ex nihilo a fabricaccedilatildeo o que produzimos com os significantes que nos posicionam

como sujeitos de desejo Antes do surgimento da noccedilatildeo de necessidade do que realmente

precisamos para viver e para realizar nossos desejos antes de qualquer intenccedilatildeo de suprir uma

necessidade no princiacutepio eacute como significante que qualquer coisa se articula Nesse sentido que

Lacan traz a ideia da necessidade de sermos seres vestidos Antes de se pensar na funccedilatildeo do

encobrimento do corpo ou de alguma coisa no iniacutecio estaacute a invenccedilatildeo produtora ex nihilo com

a qual o ser humano organiza-se ao longo dos seacuteculos como um ser vestido Dessa maneira

primeiramente ele cria a roupa (ex nihilo) e com isso surge a necessidade de cobrir-se bem

como o direito de ter suas necessidades satisfeitas as quais tem um valor uacutetil Sendo assim a

praacutexis do homem o coloca a fabricar com alguma coisa que tem valor significante e com isso

o homem descobre a utilidade do que criou numa perspectiva coletiva

De acordo com Lacan (1959-19602007 p 280) ldquoA dimensatildeo do bem levanta uma

muralha poderosa na via do nosso desejordquo Eacute nessa perspectiva que ele apresenta a dimensatildeo

do belo para aleacutem da barreira do bem O belo diferente do bem natildeo nos engana sobre o desejo

natildeo nos oferece uma ilusatildeo de fazer o bem com nossos bens Eacute uma funccedilatildeo que nos abre os

olhos

Se o bem estaacute em relaccedilatildeo ao que nos satisfaz com o princiacutepio do prazer o belo se refere

a algo mais aleacutem desse princiacutepio a pulsatildeo de morte e nesse sentido embora seja o verdadeiro

limite do desejo o mais aleacutem pode de certo modo se conjugar ao desejo Eacute isso que Antiacutegona

realiza

Pensamos nessas contribuiccedilotildees do pensamento psicanaliacutetico para a aacuterea da educaccedilatildeo ou

sobre como podem se articular A experiecircncia educativa parece se aliar melhor a uma ideia de

laccedilo social de construccedilatildeo do conhecimento de tradiccedilatildeo cultural o que podemos prontamente

relacionar ao que produz vida ao que manteacutem o desejo vivo ao que visa preservar o laccedilo as

relaccedilotildees com o outro Contudo Lacan nos fala que se a pulsatildeo de morte para aleacutem de uma

perspectiva que remete a algo da destruiccedilatildeo potildee em causa tudo o que existe ldquoeacute igualmente

vontade de criaccedilatildeo a partir de nada vontade de recomeccedilarrdquo (LACAN 1959-19602007 p 260)

120

Somos impelidos assim a adotar uma atitude questionadora a pensar que as relaccedilotildees

que se cristalizam no cenaacuterio educativo embora possam mobilizar algo da satisfaccedilatildeo de uma

necessidade manter nossas relaccedilotildees aparentemente coesas natildeo satildeo relaccedilotildees estanques ou

necessaacuterias mas podem ser desmontadas e rearranjadas na medida em que modelamos

elementos que significam na cena o que nos coloca no lugar de criadores produtores de uma

outra coisa que pode gerar um novo laccedilo como efeito

Estou-lhes mostrando a necessidade de um ponto de criaccedilatildeo ex nihilo do qual nasce o que eacute histoacuterico na pulsatildeo No comeccedilo era o Verbo o que quer dizer o significante Sem o significante no comeccedilo eacute impossiacutevel articular a pulsatildeo como histoacuterica E isso basta para introduzir a dimensatildeo ex nihilo na estrutura do campo analiacutetico (LACAN 1959-19601997 p 261)

Dessa maneira a pulsatildeo que nos move remonta agrave ideia de fazer com o significante o

que fabricamos com ele

O belo permite alcanccedilar uma zona aleacutem do limite do bem aborda nossas tendecircncias

disjuntivas e de modo misterioso une-se ao nosso desejo Desse modo entendemos que a funccedilatildeo

do belo eacute um tanto paradoxal Diz respeito agrave relaccedilatildeo fundamental do sujeito com seus proacuteprios

limites com a proacutepria morte ao mesmo tempo que figura o desejo Conforme comenta Lacan

remetendo-nos agrave funccedilatildeo do vestir do encobrir-se o uacuteltimo veacuteu antes do horror eacute o belo

Trabalhando significantes soacute conseguimos nos aproximar do horror do vazio de nossa

constituiccedilatildeo com o belo e com ele retirarmos uma dose de satisfaccedilatildeo Para aleacutem disso temos

a dimensatildeo destrutiva que nos faz sofrer que nos retira a possibilidade de fazer com o

significante que nos retira a proacutepria condiccedilatildeo desejante Eacute a esse lugar paradoxal aleacutem do bem

e aleacutem do belo que Antiacutegona se encaminha e em funccedilatildeo disso de passar totalmente dos limites

confundindo o lugar de sujeito com o lugar de objeto ela encontra a proacutepria morte Noacutes leitores

e espectadores atravessamos os limites com ela salvaguardados pelo veacuteu da cena que nos diz

que natildeo passa de ficccedilatildeo o que nos ajuda a colher os efeitos cecircnicos de horror e piedade

O filoacutesofo Eugenio Triacuteas em seu livro El bello y lo siniestro nos fala da relaccedilatildeo

existente entre o horror e o belo fazendo um comentaacuterio especial sobre o belo na trageacutedia grega

Para o autor a trageacutedia formalizou uma esteacutetica tal que nos fez e nos faz admiraacute-la e trabalhaacute-

la ateacute hoje Eacute um modelo artiacutestico indiscutiacutevel A resposta para isso pode ter sido levantada por

Freud quando adotou Eacutedipo como figura exemplar de sua teorizaccedilatildeo no que tange ao desejo

inconsciente No entendimento de Triacuteas haacute para Freud uma estrutura antropoloacutegica

121

inconsciente sustentada e revelada pela trageacutedia especialmente a de Eacutedipo e eacute decorrente do

que a trageacutedia mobiliza do inconsciente humano que sentimos os efeitos esteacuteticos do belo

A antiguidade grega engendrou uma esteacutetica enigmaacutetica que os padrotildees de beleza que

foram sendo estabelecidos nos seacuteculos posteriores natildeo conseguem alccedilar Nesses ideais haacute uma

noccedilatildeo de proporccedilatildeo simplicidade contraste e familiaridade os quais nosso entendimento

racional eacute capaz de captar e reproduzir No entanto a trageacutedia pode abarcar esses ideias e ir

aleacutem deles a um ponto um limite que escapa agrave nossa racionalidade Justamente nesse ponto

aleacutem que toca no inconsciente ponto captado por Freud eacute que reside o belo da trageacutedia Para

Triacuteas (2010) pode-se atingir um ponto tal de familiaridade que sugere um tom de

estranhamento Nesse sentido o filoacutesofo se interessa em estudar o artigo freudiano Das

Unheimliche (1919) para com ele buscar transmitir algo da potecircncia da obra de arte

Para Triacuteas (2010) o unheimlich nomeado na liacutengua espanhola de siniestro pode ser

suscitado pelo reconhecimento de algo familiar na beleza um objeto do mundo reconheciacutevel

pertencente ao nosso meio um rosto de algueacutem conhecido O autor nos diz que esse algo

familiar e harmonioso que identificamos de repente se apresenta como revelador de conteuacutedos

pertencentes a noacutes mesmos portador de misteacuterios que esquecemos e desejamos que

permaneccedilam esquecidos e que pertencem a fantasias forjadas por nosso desejo inconsciente A

forccedila da obra de arte seu efeito de belo reside nessa conjunccedilatildeo do familiar com o siniestro em

sua representaccedilatildeo sensiacutevel e real sendo entatildeo que careceria de forccedila a obra que natildeo contivesse

essa hiacircncia familiarestranho

Por meio do conceito de siniestro Triacuteas buscou comprovar sua hipoacutetese de que o efeito

de belo numa obra de arte depende do jogo entre o familiar e o estranho ao mesmo tempo que

o estranho tambeacutem faz com que a obra perca o efeito do belo Em outras palavras o autor afirma

que o estranho eacute condiccedilatildeo e limite do belo Sendo assim natildeo poderia haver belo sem que o

estranho estivesse presente na obra artiacutestica No entendimento de Triacuteas o estranho deve estar

presente sob forma de ausecircncia velado sob a forma de familiaridade e harmonia natildeo podendo

ser desvelado Com isso o autor presume que o estranho eacute o poder da obra sua magia seu

misteacuterio a fascinaccedilatildeo que causa Nesse sentido a revelaccedilatildeo do estranho implicaria natildeo

obstante a destruiccedilatildeo do efeito esteacutetico (TRIacuteAS 2010)

Assim podemos entender que o belo se transmite pela via da experiecircncia esteacutetica ou

entatildeo que somente por essa vida atingimos o efeito do belo capaz de tocar de tal modo a nos

transformar a nos colocar na via desejante Se o nosso entendimento racional se a nossa

122

consciecircncia tomar o lugar de domiacutenio da compreensatildeo de uma obra corre-se o risco de natildeo

sermos atingidos por ela transformados ela se torna mais um conteuacutedo objetivo que passa pelo

crivo do racional

O arranjo cecircnico que favorece o estranhamento se revela o estranho jaacute natildeo eacute mais

estranho tampouco familiar eacute compreensiacutevel dele nos distanciamos e ele natildeo nos diz mais

respeito como seres humanos Isso depende tambeacutem pensamos da atitude que assumimos

diante de uma obra de arte do quatildeo disponiacuteveis estamos se nos defendemos do que ela suscita

se ela toma parte da nossa vida como bem de consumo se buscamos com ela uma completude

imaginaacuteria enfim Mas haacute tambeacutem obras de arte como Antiacutegona que nos tomam

desprevenidos que nos fazem falar e seguir falando seacuteculos e seacuteculos depois de sua criaccedilatildeo

como supomos a um claacutessico (na concepccedilatildeo de Italo Calvino) que ainda natildeo terminou de dizer

o que tinha para dizer

235 A mulher Antiacutegona

Em muitos momentos Creonte se refere a Antiacutegona como uma mulher num tom

depreciativo Diz que ele nunca obedeceria a uma mulher Acusa Hecircmon seu filho de estar

submetido a uma mulher Fala a Antiacutegona que ela eacute uma mulher que quer fazer o papel de

homem ao enfrentaacute-lo O que quer dizer isso

O lugar da mulher na Greacutecia Antiga era resguardado ao lar a ser esposa gerar filhos e

cuidar da casa Natildeo participavam da vida poliacutetica natildeo estudavam Natildeo participavam da

encenaccedilatildeo das trageacutedias os papeis de mulheres eram realizados por homens jovens com

maacutescaras femininas O papel da corajosa Antiacutegona foi interpretado por um homem

Assim de modo diferente ao que esperavam dela por ser mulher a personagem

Antiacutegona enfrentou a decisatildeo do rei provocando um questionamento sobre sua poliacutetica e

justiccedila Aleacutem disso natildeo se casou e natildeo teve filhos Esse fato eacute algo marcado por ela em sua

fala quando lamenta sua morte precoce

[] Se houvera sido matildee de filhos ou se o esposo morto apodrecesse exposto jamais enfrentaria eu tamanhas penas tendo de opor-me a todos os concidadatildeos Que leis me fazem pronunciar estas palavras Fosse eu casada e meu esposo falecesse bem poderia encontrar outro e de outro esposo

123

teria um filho se antes perdesse algum [] um leito nupcial jamais terei nem ouvirei hinos de bodas nem sentirei as alegrias conjugais nem filhos amamentarei [] (Antiacutegona vv 1008-1015 1021-1024)

Entendemos com essa passagem que se Antiacutegona se tornasse esposa e matildee o laccedilo

existente com marido e possiacuteveis filhos natildeo seria um laccedilo tatildeo fundamental como o que a prende

aos seus antecessores familiares especialmente ao seu irmatildeo Natildeo morreria para sustentar a

existecircncia de um esposo pois arranjaria outro com o qual teria outros filhos O lugar de marido

e descendentes para ela parece ser mais um compromisso social uma obrigaccedilatildeo facilmente

restituiacuteda Um destino certo para qualquer mulher sem escolhas que faccedilam aparecer o desejo

Parece-nos haver para Antiacutegona uma separaccedilatildeo da ideia de ser esposa e matildee da ideia de

ser um sujeito Esse lugar estaacute mais aleacutem dos deveres sociais Sua eacutetica natildeo eacute uma moral social

eacute a eacutetica de seu desejo Isso eacute o que Creonte natildeo admite ver em Antiacutegona Ele a vecirc sair do lugar

circunscrito a uma mulher e chamando-a de mulher tenta evocar essas obrigaccedilotildees

Assim Antiacutegona provoca um corte nas accedilotildees de Creonte especialmente quando ao

morrer faz com que ele perca filho e esposa mortes pelas quais ele se responsabiliza ao final

da peccedila Acreditamos que esse aspecto da relaccedilatildeo entre Creonte e Antiacutegona da diferenccedila entre

o lugar de homem e o lugar de mulher na sociedade tebana eacute um ponto importante a ser

mencionado ainda que seja num trabalho em que o tema central natildeo eacute esse Natildeo podemos

ignoraacute-lo como temaacutetica capaz de dialogar com discursos vivos correntes de nossa atualidade

acerca do feminismo Eacute disso que se trata em um claacutessico haacute sempre um aspecto capaz de falar

diretamente ao contemporacircneo

Dissemos no iniacutecio da seccedilatildeo sobre a trageacutedia Antiacutegona que gostariacuteamos de abordaacute-la

para entender a questatildeo dos limites e das possibilidades na cena educativa Pois bem o que

podemos dizer para o momento eacute que a crianccedila que apresenta sintomas relativos agrave escola como

hiperatividade dificuldades de atenccedilatildeo e de aprendizagem talvez precise realizar uma operaccedilatildeo

simboacutelica que se decirc ao niacutevel de uma invenccedilatildeo para aleacutem das obrigaccedilotildees e medidas

preestabelecidas de bom comportamento no ciacuterculo social da qual participa Com Antiacutegona

entendemos que haacute um laccedilo que nos sustenta para aleacutem de discursos que se impotildeem sobre a

cena no intuito de organizaacute-la um laccedilo mais proacuteximo agraves nossas condiccedilotildees inventivas agraves

possibilidades de rearranjo da cena Mas como satildeo ldquoleis natildeo escritasrdquo escrevemos e criamos a

124

cada vez pela modelaccedilatildeo dos significantes presentes na cena escolar os quais ao serem

trabalhados bordejam um vazio circunscrito por fronteiras que natildeo excluem o outro mas se

formam com ele

Nas proacuteximas paacuteginas discutiremos como algumas questotildees identificadas pela

psicanaacutelise na trageacutedia grega participam de noccedilotildees e conceitos do traacutegico e da trageacutedia trazendo

novos elementos para a conversa

125

3 O TRAacuteGICO

Como sondar o traacutegico o que lhe eacute proacuteprio Elegemos como uma primeira aproximaccedilatildeo

sua definiccedilatildeo no dicionaacuterio afinal haacute de se comeccedilar por algum caminho Buscamos logo um

dicionaacuterio de teatro e seguimos com ele Patrice Pavis indica em seu Dicionaacuterio de teatro que

quanto ao traacutegico eacute preciso estabelecer uma diferenccedila entre o gecircnero literaacuterio da trageacutedia e o

traacutegico como aquilo que se refere a um ldquoprinciacutepio antropoloacutegico e filosoacutefico que se encontra

em vaacuterias outras formas artiacutesticas e mesmo na existecircncia humanardquo (PAVIS 2015 p 416)

Haacute dessa forma o gecircnero chamado trageacutedia nascido no seacuteculo V aC e sistematizado

pelo filoacutesofo Aristoacuteteles em sua obra Poeacutetica no seacuteculo IV aC Como exemplos podemos citar

as trageacutedias antigas dos claacutessicos Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides as quais foram propostas no

seacuteculo V aC Tambeacutem fazem parte do gecircnero traacutegico as trageacutedias modernas de poetas como

Shakespeare Corneille e Racine

Jaacute o traacutegico deriva de uma apreciaccedilatildeo filosoacutefica da existecircncia humana a qual pode ter

uma essecircncia traacutegica Tal concepccedilatildeo aparece a partir do seacuteculo XIX atraveacutes das filosofias de

Hegel Schopenhauer Nietzsche entre outros No entanto eacute preciso considerar segundo Pavis

(2015) que a essecircncia do traacutegico apresentada por filoacutesofos soacute eacute possiacutevel a partir do que foi

capturado por eles na trageacutedia em forma de poesia e representaccedilatildeo Dentre os filoacutesofos vamos

abordar um pouco da apreciaccedilatildeo que Nietzsche faz da trageacutedia por considerar que sua

contribuiccedilatildeo traz agrave tona o tensionamento essencial para compreender a forma do traacutegico

31 Noccedilotildees do traacutegico e da trageacutedia antiga

311 O conflito insoluacutevel

A partir de Pavis (2015) podemos entender que o conflito inevitaacutevel e insoluacutevel

proposto pela trageacutedia antiga se transforma ao longo da histoacuteria possibilitando dramas soluacuteveis

reflexotildees filosoacuteficas e o sentimento do absurdo da existecircncia temas propostos em outros

gecircneros teatrais Talvez o que a trageacutedia antiga tenha inaugurado no cenaacuterio teatral como

essecircncia do traacutegico que se relanccedila e se renova seja uma relaccedilatildeo intriacutenseca agrave fatalidade da

experiecircncia humana O traacutegico nos coloca diante da condiccedilatildeo humana dos limites de nossa

126

existecircncia da falta de garantia sobre o sucesso de nossas escolhas da dimensatildeo da fragilidade

e vulnerabilidade do humano

Diante da dimensatildeo insoluacutevel da existecircncia eacute possiacutevel adotar diferentes formas de se

posicionar Com as noccedilotildees do traacutegico podemos ler a vida cotidiana as relaccedilotildees humanas que

estabelecemos nos mais diferentes espaccedilos de conviacutevio que por muitas vezes resultam em

conflitos Tais conflitos bem poderiam ser tomados como insoluacuteveis mostrarem-se verdadeiros

impasses pois as pessoas que os formam podem ter propoacutesitos legiacutetimos No entanto o quanto

estamos comprometidos com nossas escolhas com os efeitos de nosso fazer sobre o outro

O cenaacuterio escolar eacute uma arena rica em conflitos e impasses ndash lhe eacute inerente como locus

da vida a presenccedila de choques embaraccedilos empecilhos subversotildees Nesse sentido com a

aproximaccedilatildeo do traacutegico queremos destacar elementos que possibilitem compor diferentes

equaccedilotildees para o desdobramento possiacutevel a partir do encontro com a dimensatildeo insoluacutevel da

(ex)sistecircncia refletindo sobre suas consequecircncias para a relaccedilatildeo dos atores escolares com a

praacutexis educativa

Segundo Rosenfield (2000) a trageacutedia antiga coloca em cena o impasse dando enredo

a situaccedilotildees em que natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel entre as posiccedilotildees dos personagens jaacute que suas

escolhas mesmo quando antagocircnicas podem se sustentar como legiacutetimas Nos enredos

traacutegicos assistimos aos percalccedilos de um heroacutei ou de uma heroiacutena cujo destino aparece como

cifrado jaacute desde o iniacutecio da peccedila Trata-se dos desdobramentos de um percurso de vida que

encerra opccedilotildees que bem poderiam ser nomeadas de ldquoescolha forccediladardquo tal como indicou Lacan

(19642008) ao renomear a ldquoescolha pela neuroserdquo proposta por Freud (19132014) como uma

escolha forccedilada entre a ldquobolsa ou a vidardquo Assim os impasses impostos pelo traacutegico colocaratildeo

o sujeito diante de embaraccedilos eacuteticos o que observou muito bem Lacan (1959-19601997) ao

retomar a Antiacutegona de Soacutefocles

Eacute a Antiacutegona que Lacan recorreraacute quando se ocupa da eacutetica da psicanaacutelise

estabelecendo-a sustentada em preceitos que de forma alguma respondem a uma obrigaccedilatildeo a

um ordenamento preacutevio ou a uma moral social Da eacutetica da psicanaacutelise decanta um uacutenico

princiacutepio que indica a necessidade do sujeito natildeo ceder de seu desejo Natildeo eacute demais relembrar

que a dimensatildeo do desejo pode um sem nuacutemero de vezes impelir o sujeito a atos que natildeo se

coadunam com sua vontade Nem sempre desejamos aquilo do que podemos dizer que temos

vontade E justo aiacute reside a complexidade desse preceito eacutetico Respondendo ao ditame

inconsciente o desejo natildeo eacute algo passiacutevel de controle ou antecipaccedilatildeo mas ainda assim de

127

acordo com os caminhos abertos pela psicanaacutelise requer que o sujeito natildeo recue diante de sua

emergecircncia e que possa se responsabilizar por suas consequecircncias

Lacan se interessaraacute por esquadrinhar o percurso de Antiacutegona que escolhe agrave revelia de

sua morte alinhar-se aos preceitos dos deuses em oposiccedilatildeo agrave lei da cidade da qual Creonte se

apresenta como guardiatildeo Como nos lembra Vorsatz (2013) a posiccedilatildeo tomada pelo heroacutei

traacutegico leva em consideraccedilatildeo a alteridade divina ldquoo heroacutei traacutegico determinado pelo campo real

dos deuses dele se extrai por intermeacutedio de seu atordquo (VORSATZ 2013 p 22) O heroacutei se

inscreve como tal atraveacutes de uma accedilatildeo que garante a presenccedila e a ordem divina Poreacutem sua

accedilatildeo implica sua proacutepria perda

O heroacutei alccedila uma posiccedilatildeo digna comovente admiraacutevel bela pois mesmo sabendo de

sua mortalidade de sua infelicidade de seu destino traacutegico natildeo cede de sua decisatildeo e eacute nesse

instante de natildeo ceder que ele atinge a potecircncia possiacutevel a um ser humano a responsabilidade

sobre suas escolhas pelas perdas que derivam dessas escolhas Tatildeo humano que parece divino

O Coro em Antiacutegona de Soacutefocles nos diz que ldquoHaacute muitas maravilhas mas nenhuma eacute tatildeo

maravilhosa quanto o homemrdquo (Antiacutegona vv 384-385)

As accedilotildees do heroacutei satildeo definidas por Aristoacuteteles ndash quem primeiro propocircs uma

sistematizaccedilatildeo da trageacutedia ndash como de caraacuteter elevado superiores agraves dos homens comuns Para

ele a trageacutedia eacute uma representaccedilatildeo dessas belas accedilotildees que suscitam no espectador o terror e a

piedade tendo como efeito a purificaccedilatildeo dessas emoccedilotildees Nesse sentido ao final do drama o

espectador experimenta um apaziguamento uma sensaccedilatildeo de que tudo retornou a uma suposta

ordem inicial ainda que o impasse tenha conduzido o heroacutei a um destino traacutegico sem

conciliaccedilatildeo possiacutevel entre as partes que formam o conflito

Aleacutem dos efeitos destacados por Aristoacuteteles o heroacutei traacutegico tem a funccedilatildeo de convidar o

expectador a habitar uma arena conflituosa em que os personagens se situam entre dois mundos

distintos o ritual antigo e o poliacutetico novo De acordo com Melo (2014) a qualidade desse

conflito eacute poliacutetica e coletiva e natildeo moralista e individual como podem se caracterizar muitos

conflitos que vivenciamos no mundo contemporacircneo Isso caracterizaria para ela um desafio

na representaccedilatildeo de trageacutedias antigas ao puacuteblico de hoje jaacute que o heroacutei natildeo tornaria seu impasse

como se pretende o impasse tambeacutem do outro mas seria simplesmente julgado como algueacutem

que tomou uma decisatildeo errada

A tensatildeo do conflito o compartilhamento da questatildeo eacutetica inerentes ao efeito traacutegico

da trageacutedia antiga tornam-se dificuldades para quem propotildee essa forma artiacutestica Para Melo

128

(2014) muito aleacutem dos afetos que a trageacutedia pretende suscitar segundo paracircmetros

aristoteacutelicos o que se impotildee como essencial eacute a dimensatildeo eacutetica na qual o heroacutei estaacute envolvido

a qual o dilacera e o transforma A funccedilatildeo da trageacutedia seria essa possibilitar um pensamento

eacutetico ao puacuteblico natildeo moral o que conduziria ao refinamento e agrave responsabilidade sobre as

escolhas eacuteticas em suas vivecircncias

De acordo com Rosenfield (2000) o paradoxo para onde o destino traacutegico conduz

desencadeia uma experiecircncia que natildeo cabe em qualquer polaridade ou dualismo A escolha que

os personagens estatildeo em vias de fazer natildeo eacute equacionaacutevel por um isso ou aquilo mas distende-

se com mais precisatildeo no diapasatildeo do ldquoisso e aquilordquo Na trageacutedia antiga vemos se desdobrar

uma narrativa que localiza um veacutertice impossiacutevel desenhando uma terceira margem para a

travessia do heroacutei

Dessa terceira margem partimos para outra palavra para um nome Sondamos um

conceito apresentado por Platatildeo em seu diaacutelogo Timeu trabalhado por Jacques Derrida Esta

palavra se chama khocircra

312 Khocircra

Na referida obra Platatildeo apresenta discussotildees sobre a origem do mundo a criaccedilatildeo da

natureza e dos seres humanos Entre as possibilidades um princiacutepio divino e um processo de

transformaccedilatildeo das coisas Platatildeo apresenta o conceito de khocircra importante para pensarmos a

respeito do traacutegico Jacques Derrida (1995) dedica um livro para discutir o diaacutelogo platocircnico e

amplia o entendimento acerca de khocircra para aleacutem das definiccedilotildees que a localizam e a

essencializam Enfatiza seu aspecto de indefiniccedilatildeo e as condiccedilotildees que a tornam uma terceira

via possiacutevel natildeo apenas um espaccedilo localizado entre dois pontos

De acordo com Derrida (1995) khocircra desafia a loacutegica de natildeo contradiccedilatildeo da filosofia

que precisa definir o que eacute e o que natildeo eacute um conceito justamente porque ela pode satisfazer

ambas as condiccedilotildees e nenhuma Sabe-se que khocircra estaacute entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel entre o

mito e o logos e eacute desta condiccedilatildeo de ocupar um entrelugar ou de vir a ser um entrelugar que

traccedilamos uma relaccedilatildeo com o traacutegico

No entanto com Derrida (1995) temos que khocircra acaba por situar embora natildeo se situe

entre esses dois lugares num movimento de oscilaccedilatildeo em que sua conceituaccedilatildeo escapa Derrida

nos diz que natildeo se trata de uma oscilaccedilatildeo como qualquer outra entre polos opostos jaacute que na

129

verdade khocircra natildeo eacute nem sensiacutevel nem inteligiacutevel ou pode ser ao mesmo tempo as duas

coisas isto e aquilo

Platatildeo apresenta a khocircra palavra feminina como lugar de passagem como regiatildeo e

apresenta metaacuteforas que descrevem o conceito como receptaacuteculo como matildee ama capaz de

acolher e transformar as coisas Entendemos com a criacutetica de Derrida que a diferenccedila que ele

busca acentuar estaacute na ideia de devir relacionada ao deslocamento metoniacutemico agrave condiccedilatildeo de

transformaccedilatildeo pela qual algo passa e natildeo o lugar em que isso eacute transformado natildeo o molde

mas a condiccedilatildeo de moldar

Khocircra natildeo eacute sobretudo natildeo eacute um suporte ou um sujeito que daria lugar recebendo ou concebendo ou ateacute mesmo se deixando conceber Como lhe denegar essa significaccedilatildeo essencial de receptaacuteculo jaacute que esse mesmo nome eacute dado por Platatildeo Eacute difiacutecil [] Talvez seja a partir de khocircra que comeccedilaremos a aprendecirc-lo ndash a recebecirc-lo a receber dela o que seu nome denomina A recebecirc-lo senatildeo a compreendecirc-lo a concebecirc-lo (DERRIDA 1995 p 20)

A relaccedilatildeo que se molda nesta breve paacutegina entre trageacutedia e khocircra ocorre no sentido de

construir as bordas tomar o traacutegico como efeito como um desenrolar ou entatildeo um devir de um

gesto de criaccedilatildeo

313 A funccedilatildeo do logos

Segundo Vorsatz (2013) a trageacutedia se desenvolve durante o seacuteculo V aC e se situa

num lugar entre tempo de transiccedilatildeo da histoacuteria da humanidade do mundo mitoloacutegico ao mundo

poliacutetico Diante disso os mitos misturam-se a uma tentativa de constituiccedilatildeo das leis na polis

grega

Com o surgimento da democracia e da filosofia no seacuteculo IV aC a relaccedilatildeo do ser

humano com a palavra sofre uma mudanccedila Em vez de estar referenciada a um saber outro

inacessiacutevel e intuitivo como na trageacutedia a funccedilatildeo do logos passa a se atribuir agrave razatildeo e ao

conhecimento acessiacuteveis agrave consciecircncia humana O ser humano sai de uma posiccedilatildeo de

imprevisibilidade de falta de garantia e alcanccedila uma posiccedilatildeo de domiacutenio com sua linguagem

A trageacutedia propotildee um modo singular de incidecircncia da palavra jaacute que esta acontece eacute

colocada em ato Tem um encontro com a accedilatildeo um acontecimento Para Vorsatz (2013) a

130

palavra aqui natildeo quer demonstrar alguma coisa ela mostra Nesse sentido os atos da trageacutedia

satildeo atos de linguagem

O que precisamente a palavra mostra em ato Ela mostra que haacute uma tentativa de unir

costurar linguagem e accedilatildeo pois haacute uma cisatildeo entre nossos desejos com as accedilotildees que tomamos

uma cisatildeo que hoje natildeo queremos ver os impasses eacuteticos entre o fazer e o falar na tentativa

traacutegica de coincidir a palavra e a accedilatildeo Desse modo Vorsatz (2013 p 40) afirma que ldquoa arte

traacutegica consistiria propriamente em tornar simultacircneo o que eacute sucessivo [] O resultado seria

uma accedilatildeo cuja causa eacute exterior ao heroacutei traacutegico mas em relaccedilatildeo agrave qual ele eacute inteiramente

responsaacutevelrdquo

Antiacutegona realiza suas accedilotildees a partir desse lugar onde os tempos se cruzam a aacutetē atraveacutes

da sua criaccedilatildeo com o significante ex nihilo Nesse sentido ela provoca um corte nas accedilotildees de

Creonte que se tecem numa sucessatildeo de fatos numa linha que natildeo consegue que natildeo pode

alccedilar o eixo onde se situa Antiacutegona sendo que para ele um traidor da paacutetria merece castigo e

quem ajudaacute-lo natildeo importando o motivo sofreraacute tambeacutem as consequecircncias Ao fim da peccedila

quando Creonte sofre tantas perdas aquilo que era mais importante para ele ele implora para

que aconteccedila sua morte buscando com suas palavras dominar a simultaneidade dominar o

ponto onde os tempos se cruzam e a resposta que ouve do corifeu eacute que sua morte eacute o futuro

cabe a ele cuidar do presente O que isso pode significar Natildeo haacute como querer controlar a

simultaneidade nem mesmo um rei como Creonte pode fazer isso Noacutes podemos traccedilar a linha

das sucessotildees apenas com nosso desejo Poreacutem o que podemos fazer como Antiacutegona eacute nos

responsabilizarmos pela causa de nossos atos e de nossa fala ainda que sobre ela natildeo possamos

exercer domiacutenio

Podemos entender a relaccedilatildeo disso com o conflito insoluacutevel que caracteriza a trageacutedia

natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel justamente porque natildeo podemos exercer domiacutenio sobre todos os

eventos e dele retirar uma verdade uma resposta ou uma moral da histoacuteria Podemos apenas

dizer enunciar que haacute e sempre haveraacute um aspecto do qual natildeo podemos saber sobre o qual

natildeo temos controle pois somos apenas mais um elemento de cena somos controlados por uma

forccedila inconsciente e nos cabe apenas estar cientes disso Assim natildeo haacute uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

entre Antiacutegona e Creonte mas a enunciaccedilatildeo de um jogo de forccedilas e de um conflito irresoluacutevel

Haacute outro importante aspecto que podemos abordar no que tange agrave simultaneidade de

eventos no tempo Eacute o que esse encontro de elementos que geram um acontecimento e

131

suspendem a cronologia pode suscitar a quem o vivencia ou a quem assiste a isso Trata-se do

Unheimliche

314 O estranho-familiar e a trageacutedia

O que pode causar um efeito de estranhamento a uma pessoa eacute a simultaneidade de fatos

de modo que se flagra envolvida numa trama de acontecimentos que natildeo eacute capaz de controlar

ou prever No andamento ndash sucessivo ndash da vida o sujeito pode se ver surpreendido pela

atualizaccedilatildeo de sentidos sobrepostos em camadas ndash simultacircneas ndash de tal forma com tal arranjo

cecircnico que isso faz com que ele experimente uma sensaccedilatildeo de unheimlich ao perceber por um

momento que algo estranho e tambeacutem familiar lhe ocorre interrompendo suas associaccedilotildees e

suas certezas Eacute o que pode ter sucedido a Creonte ao deparar-se com a morte de Hecircmon e

Euriacutedice seus preciosos bens ao se dar conta de que escolheu inconscientemente colocaacute-los

em perda Eacute o que pode ter ocorrido a Eacutedipo apoacutes buscar incansavelmente o assassino de Laio

e descobrir que fora ele mesmo ao desvelar seu terriacutevel destino de matar o pai e casar com a

matildee na tentativa de justamente fugir do que o oraacuteculo pregara

Pois bem o que eacute unheimlich Eacute um termo que qualifica alguma coisa ao mesmo tempo

como assustadora e familiar Em seu artigo de 1919 Das Unheimliche Freud se propotildee a

investigar essa temaacutetica que atribui ao campo da esteacutetica a partir do olhar da teoria

psicanaliacutetica e das contribuiccedilotildees da literatura Apresenta ao leitor uma investigaccedilatildeo em

dicionaacuterios em que busca o sentido da palavra no alematildeo e em outros idiomas Descobre que o

verbete unheimlich refere algo misterioso sobrenatural que desperta horriacutevel temor Para

Freud referindo-se a Schelling o estranho diz respeito a tudo aquilo que deveria permanecer

secreto oculto mas veio agrave luz (FREUD 19191969)

Freud acaba por descobrir em sua investigaccedilatildeo um encontro do unheimlich (estranho

assustador) com o heimlich (familiar) chegando a um ponto em que as palavras que num

primeiro momento parecem opostas antocircnimas tornam-se coincidentes sinocircnimas O

dicionaacuterio Wortebuch der Deutschen Sprache escrito por Daniel Sanders (1860) traz como

primeira definiccedilatildeo de heimlich familiar domeacutestico iacutentimo amistoso obsoleto alegre

disposto Na segunda definiccedilatildeo o termo eacute designado como oculto escondido dos outros dos

olhares dos outros encontro ou caso de amor lugar ou comportamento estranho No dicionaacuterio

de Grimm (1877) Freud encontra heimlich como aleacutem do tradicional significado de ldquofamiliarrdquo

132

definiccedilotildees como afastado dos olhos de estranhos secreto miacutestico alegoacuterico e por fim

inconsciente

Nesse sentido Freud (19191969) entende que a palavra que investigava unheimlich

podia ser uma subespeacutecie de heimlich colocando em questatildeo a concepccedilatildeo dos opostos Ou seja

elas podem ser compreendidas como termos e situaccedilotildees opostas uma a outra mas haveria um

ponto original de encontro ou reencontro entre as duas e eacute isso que o motivava a investigar ou

trazer agrave luz Acreditamos que isso pode ter relaccedilatildeo com a simultaneidade que a trageacutedia

apresenta

Freud recorre agrave literatura fantaacutestica para tentar entender em que circunstacircncia o familiar

e o assustador coincidem Visita o conto O Homem de Areia de E T A Hoffmann autor que

possui na visatildeo de Freud (19191969) grande criatividade para inventar situaccedilotildees e descobrir

elementos que fazem surgir a sensaccedilatildeo de estranheza No referido conto eacute o que acontece com

o aparecimento da personagem Oliacutempia (que na verdade eacute um autocircmato) pela qual o

protagonista Nathanael se apaixona O autor escreve seu conto de maneira que os leitores se

questionem sobre a humanidade de Oliacutempia fazendo-os sentir um estranhamento Contudo

Freud retira do mesmo texto outro fragmento que eacute tomado por ele como algo que merece mais

atenccedilatildeo do que a duacutevida em relaccedilatildeo agrave vida de Oliacutempia Esse fragmento se refere agrave ideia de ter

os olhos roubados que aparece ligada agrave figura do Homem de Areia

A fantasia que ocorre a Nathanael eacute para Freud o que realmente torna o conto estranho

A tese freudiana eacute pautada em sua teoria psicanaliacutetica do medo ou ameaccedila de castraccedilatildeo O medo

de ficar cego de perder os olhos eacute para Freud um substituto do medo de ser castrado medo este

recalcado mas que veio agrave luz por meio de um substituto metafoacuterico ndash medo de cegar

Nesse sentido o Homem de Areia eacute uma das figuraccedilotildees da castraccedilatildeo criatura de quem

se teme uma terriacutevel accedilatildeo A figura do Homem de Areia eacute temida porque este deseja arrancar

os olhos dos meninos que natildeo dormem dos meninos vigilantes que desejam ter o controle de

tudo para alimentar seus filhos que moram na Lua

Como dissemos na seccedilatildeo anterior para Lacan o neuroacutetico recua natildeo da castraccedilatildeo em si

mas da ameaccedila de castraccedilatildeo da ameaccedila de dispor de uma parte de si para propiciar a completude

do Outro Essa proposiccedilatildeo nos abre caminho para articular a sensaccedilatildeo terriacutevel do unheimlich agrave

anguacutestia tal como delineada por Lacan

O desejo que nos conduz a buscar objetos do mundo de modo a retirar deles uma parcela

de satisfaccedilatildeo estaacute velado e marcado por uma falta No entanto em certas circunstacircncias eacute

133

possiacutevel que algo venha a ocupar esse lugar da falta sem que o sujeito possa saber jaacute que se

trata de algo que estaacute em um lugar inapreensiacutevel

Nesse lugar da falta onde algo pode aparecer [] aqui se perfila uma relaccedilatildeo com a reserva libidinal ou seja com esse algo que natildeo se projeta natildeo se investe no niacutevel da imagem especular que eacute irredutiacutevel a ela em razatildeo de permanecer profundamente investido no niacutevel do proacuteprio corpo do narcisismo primaacuterio daquilo a que chamamos de auto-erotismo de um gozo autista (LACAN 1962-19632005 p 55)

Quando algo efetivamente aparece no lugar da falta irrompe a anguacutestia

[] a anguacutestia surge quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar que chamarei para me fazer entender de natural ou seja o lugar (-phi) que corresponde [] ao lugar ocupado [] pelo a do objeto do desejo Eu disse alguma coisa ndash entendam uma coisa qualquer (LACAN 1962-19632005 p 51)

Lacan nomeia essa alguma coisa que pode produzir anguacutestia do seguinte modo ldquoa

Unheimlichkeit eacute aquilo que aparece no lugar em que deveria estar o menos -phirdquo (LACAN

1962-19632005 p 51) No lugar em que a falta que possibilita a condiccedilatildeo desejante deveria

estar resguardada percebemos irromper alguma coisa seja qual for Qualquer coisa que ao

lugar assinalado pela falta venha lhe conferir uma imagem eacute inquietante Quando a proacutepria falta

falta o que resta a desejar A falta da falta desencadeia a anguacutestia

Retornando agraves contribuiccedilotildees freudianas o personagem que inspira a versatildeo do

complexo de Eacutedipo da peccedila Eacutedipo Rei de Soacutefocles cega-se para expiar sua culpa por ter se

casado com a matildee (FREUD 19001969) Nesse sentido a castraccedilatildeo que Eacutedipo se impotildee eacute no

olhar uma vez que eacute no niacutevel da imagem que algo lhe causa perturbaccedilatildeo O unheimlich parece

estar invariavelmente relacionado a uma questatildeo do olhar Nesse sentido o elemento que causa

estranhamento surge sempre enquadrado numa cena numa janela ou numa cortina que se abre

no recorte de visatildeo de onde vemos e somos vistos

Como comenta Lacan natildeo pode ser dito aparece de repente de suacutebito ldquoapresenta-se

atraveacutes de claraboiasrdquo (LACAN 1962-19632005 p 86) Eacute interessante pensar a partir desse

comentaacuterio de Lacan a relaccedilatildeo que se estabelece entre o heroacutei traacutegico e os deuses gregos

supondo que um vecirc o outro pela claraboia celeste O ato de Eacutedipo de se privar da visatildeo furando

os olhos cortando o eixo da relaccedilatildeo de ver-e-ser-visto eacute uma representaccedilatildeo do limite a que

chegou em sua vida da impossibilidade de seguir vivendo do mesmo modo apoacutes descobrir a

134

terriacutevel verdade Precisaria transformar alguma coisa perder uma parte de si para garantir da

ordem do mundo a supremacia divina

Haacute uma relaccedilatildeo que podemos averiguar entre a trilogia traacutegica de Soacutefocles e o conto

fantaacutestico comentado por Freud no ensaio sobre o estranho Embora de estilos narrativos e

eacutepocas bem diferentes e distantes haacute uma peculiar semelhanccedila A boneca Oliacutempia surge no

quadro ou ainda o estudante Nathanael a vecirc atraveacutes da janela e se apaixona por ela sem saber

que se trata de um autocircmato Quem teve a oportunidade de ler a histoacuteria sabe que o estudante

cai em estado de loucura quando descobre que misteriosamente seus olhos foram roubados e

estatildeo na boneca Oliacutempia Eacutedipo por sua vez apoacutes furar os olhos e sair dos limites de Tebas eacute

acompanhado por Antiacutegona que ocupa o lugar de seus olhos ou seja vecirc o mundo atraveacutes dela

A semelhanccedila que notamos eacute o fato de as duas figuras femininas estarem de certa forma cada

uma a seu modo com os olhos ou com o olhar das figuras masculinas de quem os olhos foram

arrancados ndash de forma metafoacuterica ou em realidade Ocupam esse ponto esse objeto olhar que

eacute compreendido por Lacan como uma das formas do objeto a que vinculam o sujeito ao Outro

Como vimos Freud (19001969) apresenta a teoria sobre Eacutedipo tomando a trageacutedia de

Soacutefocles como uma forma de simbolizaccedilatildeo dos desejos fundamentais de incesto e parriciacutedio

realizados por Eacutedipo que recebe de si mesmo o seu devido castigo Para ele o desejo humano

desdobra-se em diferentes vertentes chegando a um ponto de ambivalecircncia amor-oacutedio A forccedila

da proibiccedilatildeo universal que percorre diferentes culturas em relaccedilatildeo ao duplo desejo incestuoso

e parricida demonstra a forccedila tambeacutem existente nesses desejos Freud reconhece em Eacutedipo a

realizaccedilatildeo daquilo que supotildee a todos noacutes em fantasia o drama que vivenciamos em nossas

vidas na relaccedilatildeo com nossos pais e por isso essa trageacutedia em especiacutefico possui uma forccedila tatildeo

grande Apesar das diferenccedilas culturais entre o povo grego e noacutes as barreiras sociais e histoacutericas

satildeo ultrapassadas e com isso a trageacutedia Eacutedipo Rei apresenta uma estrutura antropoloacutegica

Pois bem de acordo com a teoria freudiana ao assistir agrave peccedila tomamos conhecimento

do conflito que guardamos no inconsciente o qual conseguimos atingir em uma experiecircncia de

reconhecimento por meio da arte No decorrer da trageacutedia nos identificamos com o heroacutei (no

caso Eacutedipo) que padece de um drama muito familiar mas ao realizar o desejo suscita em noacutes

o sentimento de temor por desvendar estranhamente nossas fantasias inconscientes Em funccedilatildeo

da experiecircncia de reconhecimento e estranheza do caraacuteter fictiacutecio da representaccedilatildeo traacutegica que

torna possiacutevel uma accedilatildeo impossiacutevel chegamos agrave purificaccedilatildeo das paixotildees que eacute tomada tambeacutem

como conhecimento sobre noacutes mesmos sobre a direccedilatildeo de nossos desejos

135

Rosenfield (2000) faz uma leitura da obra de Soacutefocles a partir do poeta Houmllderlin que

realiza uma traduccedilatildeo que manteacutem a densidade da letra sofocliana o que pode contribuir para o

entendimento do unheimlich implicado na arte traacutegica De acordo com Rosenfield (2000) a

abordagem houmllderliniana de Eacutedipo Rei ressalta o conflito entre duas diferentes formas de saber

Um saber que se mostra atraveacutes da investigaccedilatildeo do exame racional e do conhecimento que ele

gera e um saber de outra ordem profeacutetico oracular inacessiacutevel agrave razatildeo falho quando utilizado

na praacutetica

A trageacutedia de Eacutedipo comeccedila justamente aiacute ao natildeo diferenciar as formas de saber jaacute que

o heroacutei aspira agrave revelaccedilatildeo desse saber outro ao domiacutenio do saber profeacutetico que estaacute no limite

da existecircncia humana natildeo lhe pertence assim como o saber sobre o proacuteprio destino natildeo lhe

pertence Eacutedipo ao desconhecer a proacutepria origem eacute tomado pelo intenso desejo de alcanccedilar o

domiacutenio absoluto da proacutepria existecircncia o que se refere agrave ldquometaacutefora do desejo fundamentalmente

desmedido que caracteriza a condiccedilatildeo humanardquo (ROSENFIELD 2000 p 102)

Na tentativa de dominar e ao mesmo tempo negar aquilo que de alguma forma

(inconsciente) jaacute sabia o saber profeacutetico da existecircncia Eacutedipo deseja um saber racional e

consciente Eacute este iacutempeto por querer conhecer o assassino de Laio por promover uma busca

incessante atraacutes do culpado para impor-lhe as devidas penas devorando todo o conteuacutedo

profeacutetico como a Esfinge devora quem ignora a resposta para seu enigma que acaba por tornar

Eacutedipo presa objeto no quadro da anguacutestia da trageacutedia Ele se vecirc vendo ele se sabe sabendo

cena perturbadora e insuportaacutevel que o leva a se automutilar

A exatidatildeo a verdade a ciecircncia desautorizam o saber profeacutetico sobre o sujeito e ao fim

resta o estranhamento Na perspectiva de Houmllderlin supotildee Rosenfield (2000) Soacutefocles

apresenta a linguagem como dimensatildeo autocircnoma responsaacutevel por fazer brotar sentidos

independentes do domiacutenio racional de seus agentes O heroacutei se apresenta como errante que

perambula entre sentidos distantes do que a inteligecircncia ediacutepica pode identificar e pretender

Portanto o que visa compreender pelo vieacutes do racional natildeo eacute alcanccedilado pois o sentido eacute apenas

total e ateacute mesmo excessivo quando na aceitaccedilatildeo e no jogo com o saber das premoniccedilotildees e

oraacuteculos inacessiacuteveis a noacutes (ROSENFIELD 2000)

Os personagens da trageacutedia Eacutedipo Rei satildeo desse modo assombrados pela antecipaccedilatildeo

de algo terriacutevel que natildeo pode ser representado que natildeo cabe agrave simbolizaccedilatildeo Haacute algo inquietante

que se pronuncia atraveacutes de suas accedilotildees e de sua linguagem para aleacutem de suas intenccedilotildees

voluntaacuterias (ROSENFIELD 2000)

136

Feita esta apreciaccedilatildeo do unheimlich freudiano na trageacutedia seguimos com a esteacutetica de

Aristoacuteteles

32 A trageacutedia na Poeacutetica de Aristoacuteteles

Na Poeacutetica Aristoacuteteles apresenta o gecircnero traacutegico seu contexto de nascimento os

elementos que o compotildee suas caracteriacutesticas explanando o que seria em sua visatildeo o ideal de

trageacutedia Para o filoacutesofo grego esta arte eacute superior agrave epopeia ou seja aos poemas eacutepicos que

narram mitos e feitos heroicos como eacute o caso da Iliacuteada e da Odisseia atribuiacutedas ao poeta

Homero Aleacutem de contemplar todos os aspectos das narrativas eacutepicas como a meacutetrica o ritmo

o mito a trageacutedia consegue reunir ainda o espetaacuteculo e a muacutesica Nesse sentido conseguimos

entender a ecircnfase que atribui agrave trageacutedia em sua apreciaccedilatildeo de uma forma praacutetica do pensamento

humano uma forma poeacutetica Natildeo podemos contudo desconsiderar o fato consabido da perda

de uma importante parte do texto aristoteacutelico em que ele supostamente trabalharia as

especificidades da comeacutedia e sua relaccedilatildeo com a catarse

Ao fim do texto Aristoacuteteles justifica a superioridade da trageacutedia em relaccedilatildeo agrave epopeia

tambeacutem em funccedilatildeo da finalidade a trageacutedia seria a arte que melhor consegue atingir o propoacutesito

artiacutestico Na sexta parte da Poeacutetica o filoacutesofo define o gecircnero traacutegico e fala de sua finalidade

a qual seria a imitaccedilatildeo ou a representaccedilatildeo de accedilotildees

[] o elemento mais importante eacute a trama dos fatos pois a trageacutedia natildeo eacute imitaccedilatildeo dos homens mas de accedilotildees e de vida de felicidade [e infelicidade mas felicidade] e infelicidade reside na accedilatildeo e a proacutepria finalidade da vida eacute uma accedilatildeo natildeo uma qualidade Ora os homens possuem tal ou tal qualidade conformemente ao caraacuteter mas satildeo bem ou mal-aventurados pelas accedilotildees que praticam Daqui se segue que na trageacutedia natildeo agem as personagens para imitar caracteres mas assumem caracteres para efetuar certas accedilotildees por isso as accedilotildees e o mito constituem a finalidade da trageacutedia e a finalidade eacute de tudo o que mais importa (Poeacutetica VI 1450a 16-22)

A partir do que Aristoacuteteles define como finalidade da trageacutedia ou seja a representaccedilatildeo

de accedilotildees podemos tentar entender qual o seu interesse por essa temaacutetica no contexto de sua

obra Lacan (1959-19601997) ao apresentar seu programa da eacutetica da psicanaacutelise reporta-se

agrave eacutetica aristoteacutelica as accedilotildees do ser humano tendem a um bem e o bem uacuteltimo eacute a felicidade a

qual pode ser entendida como um bem supremo A essecircncia humana se expressa nessa busca

pela felicidade embora de acordo com Freud (19302012) natildeo haja nada na civilizaccedilatildeo que

137

garanta ao ser humano a realizaccedilatildeo do desejo de ser feliz Por sua vez Aristoacuteteles parecia

preocupar-se com isso de que modo o homem poderia encontrar o caminho para a felicidade

que garantia poderia a poacutelis grega dar agrave felicidade dos cidadatildeos Nesse sentido a trageacutedia

poderia cumprir uma funccedilatildeo social numa educaccedilatildeo para a vida feliz ao retratar accedilotildees que

conduzem da felicidade agrave infelicidade ou vice-versa Lembrando que se a finalidade da accedilatildeo

humana eacute um bem eacute a felicidade a finalidade da trageacutedia eacute tatildeo somente a accedilatildeo

Na Poliacutetica Aristoacuteteles fala de um ideal de vida em sociedade de uma educaccedilatildeo moral

para se atingir a felicidade Haacute uma retomada do efeito cataacutertico mas dessa vez o filoacutesofo o

menciona como suscitado pela muacutesica Essa arte eacute capaz de provocar emoccedilotildees distintas eacute capaz

de apaixonar comover e acalmar dependendo do modo como nos aproximamos dela Fala de

estilos e harmonias diferentes e de tipos de instrumentos

Como lembra Lacan a muacutesica assume um papel na trageacutedia o efeito cataacutertico de

purificar temor e piedade provocando um certo prazer e permitindo o retorno a um certo estado

normal um apaziguamento interno

Qual eacute entatildeo esse prazer ao qual se retorna depois de uma crise que se desenvolve numa outra dimensatildeo que num dado momento o ameaccedila pois sabe-se a que extremos uma muacutesica entusiasmadora pode levar Eacute aqui que a topologia que definimos do prazer como sendo a lei do que se desenrola aqueacutem do aparelho onde o temiacutevel centro de aspiraccedilotildees do desejo nos atrai permite-nos talvez convergir melhor do que se fez ateacute aqui com a intuiccedilatildeo aristoteacutelica (LACAN 1959-19601997 p 298)

Podemos entender que embora o desejo inconsciente do qual fala Freud o mesmo que

participa da formulaccedilatildeo da eacutetica da psicanaacutelise segundo Lacan natildeo faccedila parte do que Aristoacuteteles

pretendeu definir como eacutetica eacute possiacutevel encontraacute-lo no que o filoacutesofo chamou de prazer obtido

na experiecircncia da trageacutedia sistematizada na Poeacutetica Isso porque o que importa para Lacan na

eacutetica eacute a conformidade das accedilotildees com o desejo inconsciente a quem age ou seja o desejo

aparece em accedilatildeo mas dele o indiviacuteduo nada sabe

Da mesma forma para Aristoacuteteles o que importa na bela arte traacutegica eacute a accedilatildeo e ela eacute

quem define as caracteriacutesticas do heroacutei ou seja podemos entender com isso que a accedilatildeo antecipa

a posiccedilatildeo subjetiva natildeo o contraacuterio e essa noccedilatildeo estaacute em conformidade com a eacutetica da

psicanaacutelise No entanto se formos analisar o entendimento de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave sua

noccedilatildeo de eacutetica haacute um distanciamento do que fala sobre a trageacutedia pois o foco estaacute na moral e

nos bons costumes dos cidadatildeos conscientes de seus atos

138

Quanto agrave catarse ou seja agrave purificaccedilatildeo do temor e da piedade efeitos da trageacutedia cabem

algumas colocaccedilotildees De acordo com Aristoacuteteles ldquosuscitando o terror e a piedade [a trageacutedia]

tem por efeito a purificaccedilatildeo dessas emoccedilotildeesrdquo (Poeacutetica VI 1449b 25-28) Lacan nos fornece o

termo no original grego ldquodirsquo eleou kai phobou perainousa ten ton toiouton pathematon

kaacutetharsinrdquo (LACAN 1959-19601997 p 297) O psicanalista designa o termo kaacutetharsin ou

catarse como purificaccedilatildeo ou purgaccedilatildeo Na eacutepoca em que foi sugerida por Aristoacuteteles tal

expressatildeo era conhecida no campo meacutedico e se referia a eliminaccedilotildees do organismo com o

objetivo de retorno a um estado normal

No entanto Lacan reconhece que tal forma de nomear a meta da trageacutedia natildeo era

exclusiva do campo meacutedico jaacute que haacute estudiosos que a relacionam a uma purificaccedilatildeo ritual o

que teria mais proximidade com o proacuteprio surgimento da arte Qualquer conclusatildeo no sentido

de conhecer a origem do termo empregado por Aristoacuteteles eacute precipitada na medida em que haacute

uma parte da Poeacutetica perdida na qual se supotildee que o filoacutesofo teria trabalhado mais

detalhadamente sobre esse conceito

Destacamos a lembranccedila de Lacan da catarse na tradiccedilatildeo meacutedica termo utilizado

seacuteculos mais tarde na experiecircncia psicanaliacutetica com Freud e Breuer A catarse teria a funccedilatildeo

de uma descarga motora em ato de afetos que ficariam em suspensatildeo no aparelho psiacutequico

desligados do evento que os teria originado

Triacuteas (2010) nos ajuda a ampliar o entendimento do que seriam tais paixotildees humanas

O temor fobos em alguns casos traduzido para o portuguecircs como ldquoterrorrdquo designa um

sentimento de medo do espectador em relaccedilatildeo ao heroacutei traacutegico agraves suas accedilotildees e ao destino que

jaacute pode ser entrevisto agrave medida que se acompanha a linha de accedilatildeo O espectador sente um

impulso por se afastar da cena Ao mesmo tempo sente tambeacutem compaixatildeo piedade o eacuteleos

ao se identificar com o desejo do heroacutei ao admirar sua coragem seu iacutempeto sua forccedila

qualidades que pode ter como ideais das quais deseja se aproximar

Nesse sentido o jogo de tensotildees a ambiguidade de paixotildees que o percurso heroico

provoca nos espectadores lembra a duplicidade afetiva do unheimlich estranho e familiar

Ainda que a cena desperte inquietaccedilatildeo perturbaccedilatildeo afastamento haacute alguma trama

acontecendo aos poucos de cena a cena que prende que costura com a histoacuteria de vida de

cada um que assiste agrave trageacutedia que lecirc o que favorece a transmissatildeo da experiecircncia traacutegica o

reconhecimento do outro a noccedilatildeo de alteridade o entendimento de que aquele drama poderia

ocorrer a qualquer um de noacutes Assim se constroacutei uma forma de saber sobre a vida

139

Lacan (1959-19601997 p 300) ao estudar a peccedila Antiacutegona nos diz que ldquopelo

intermeacutedio da piedade e do temor somos purgados purificados de tudo o que eacute dessa ordem

Essa ordem podemos entatildeo reconhececirc-la ndash eacute a seacuterie do imaginaacuterio propriamente dita E somos

dela purgados pelo intermeacutedio de uma imagem dentre outrasrdquo Lacan nos explica que essa

imagem eacute a da beleza de Antiacutegona no lugar entre a vida e a morte A sua contribuiccedilatildeo a esse

entendimento da purgaccedilatildeo das paixotildees eacute quanto ao desejo articulado a elas Diz ele que na

travessia do lugar onde a heroiacutena fica presa ldquoo raio do desejo se reflete e ao mesmo tempo se

retrai chegando a nos dar esse efeito tatildeo singular o mais profundo que eacute o efeito do belo no

desejordquo (LACAN 1959-19601997 p 302) Nesse sentido eacute o desejo humano que estaacute

implicado nos efeitos de temor e piedade da trageacutedia

Aristoacuteteles define o desenlace como o periacuteodo da trageacutedia que se inicia com a ocorrecircncia

de uma mudanccedila de sorte e termina com o final da peccedila Para o filoacutesofo o desenlace traacutegico eacute

fruto do jogo entre os elementos presentes na histoacuteria desde o iniacutecio dispensando o uso de

novos recursos cecircnicos para propor o final da cena traacutegica O desenlace assim decorre emana

da trama traacutegica

Um dos recursos cecircnicos propostos na trageacutedia antiga era o deus ex machina Para

Aristoacuteteles sua intervenccedilatildeo natildeo deveria fazer parte da cena traacutegica pois as accedilotildees dos

personagens eram de certa forma alheias a esse recurso bem como o modo como

encaminhavam o desenlace do drama Acerca do deus ex machina Aristoacuteteles propotildee

Ao deus ex machina [] natildeo se deve recorrer senatildeo em acontecimentos que se passam fora do drama ou nos do passado anteriores aos que se desenrolam em cena ou nos que ao homem eacute vedado conhecer ou nos futuros que necessitam ser preditos ou prenunciados ndash pois que aos deuses atribuiacutemos noacutes o poder de tudo verem (Poeacutetica XV 1454b 1-7 grifos nossos)4

No entanto algumas peccedilas da trageacutedia antiga contrariando a esteacutetica aristoteacutelica

apresentada no seacuteculo IV aC apresentavam o deus ex machina como artifiacutecio para conferir

uma soluccedilatildeo aos conflitos traacutegicos um deus grego descia ao centro da accedilatildeo atraveacutes de uma

maquinaria a fim de dar um encaminhamento definitivo aos impasses do drama O recurso ao

deus ex machina proposto como elemento exterior ao enredo capaz de nele ingressar para

desenhar uma soluccedilatildeo derradeira aos conflitos contraria o que no dizer de Aristoacuteteles

caracteriza a trageacutedia

4 A referecircncia do texto de Aristoacuteteles segue a numeraccedilatildeo Bekker estabelecida pela Revised Oxford Translation

140

Entrevemos o nascedouro do decliacutenio da dimensatildeo traacutegica da experiecircncia humana

localizada em sua forma narrativa na esteacutetica da trageacutedia grega no surgimento de peccedilas que

apresentavam o deus ex machina como forma intervir sobre os impasses como foi o caso de

peccedilas do tragedioacutegrafo Euriacutepides Nietzsche (18721992) em seu trabalho O nascimento da

trageacutedia situa nesse dramaturgo o fim da trageacutedia antiga e elenca como um de seus motivos

a forma como propunha esse dispositivo cenograacutefico

Mas como um recurso cecircnico pode ser capaz de modificar a esteacutetica dramaacutetica o modo

de o humano representar o traacutegico De que forma um autor pode ser responsaacutevel pelo fim de

um gecircnero tatildeo aclamado em seu tempo Eacute importante questionar o contexto social grego quais

laccedilos sustentavam as relaccedilotildees entre os cidadatildeos quais mudanccedilas poliacuteticas e de pensamento

vivenciavam jaacute que isso pode ter contribuiacutedo para que Euriacutepides inovasse em sua forma de

interpretar os mitos de apresentar o que considerava essencial nas histoacuterias que escolhia colocar

em cena Ainda assim eacute importante considerar que se para Nietzsche Euriacutepides eacute responsaacutevel

pelo fim da trageacutedia claacutessica para Aristoacuteteles ele eacute o mais traacutegico dos poetas

Nesse sentido nas linhas que se seguem vamos conhecer como o filoacutesofo Nietzsche

compreende a trageacutedia de que modo em sua visatildeo o drama euripidiano acaba com esse gecircnero

traacutegico e como o uso deus ex machina estaacute implicado nessa mudanccedila Interessa a este trabalho

fazer tal apreciaccedilatildeo a fim de tentar compreender o modo como noacutes hoje lidamos com a

dimensatildeo do traacutegico no laccedilo social educativo visto que muitas vezes apelamos a uma soluccedilatildeo

desta natureza para intervir na escolarizaccedilatildeo de crianccedilas

33 A morte da trageacutedia

Em seu livro O nascimento da trageacutedia Nietzsche apresenta a origem desse gecircnero

dramaacutetico sua ascensatildeo e seu decliacutenio Chamamos esta parte da escrita de ldquomorte da trageacutediardquo

porque desejamos destacar de que modo o filoacutesofo entende a transiccedilatildeo da representaccedilatildeo claacutessica

para outras formas de representar a arte da cena Mas antes elencamos alguns pontos do texto

de Nietzsche que abordam a trageacutedia em vida

141

331 Apoliacutenio-dionisiacuteaco

O desenvolvimento da arte da trageacutedia depende da tensatildeo entre os opostos apoliacuteneo e

dionisiacuteaco os quais raramente encontram uma conciliaccedilatildeo O universo artiacutestico apoliacuteneo se

refere ao deus grego Apolo e representa o sonho humano projetado pela arte plaacutestica e o

universo artiacutestico dionisiacuteaco do deus grego Dioniacutesio refere-se agrave embriaguez da arte natildeo

figurada da muacutesica (NIETZSCHE 18721992)

Segundo o filoacutesofo alematildeo ldquoApolo na qualidade de deus dos poderes configuradores

eacute ao mesmo tempo o deus divinatoacuterio Ele segundo a raiz do nome o lsquoresplendentersquo a divindade

da luz reina tambeacutem sobre a bela aparecircncia do mundo interior da fantasiardquo (NIETZSCHE

18721992 p 29) A forccedila do deus da luz caracteriza o impulso apoliacuteneo ou seja a beleza da

aparecircncia das coisas a confianccedila e a tranquilidade diante de um mundo de tormentos a partir

do princiacutepio de individuaccedilatildeo Esse princiacutepio o autor o retira da filosofia de Schopenhauer e

pode se referir agrave crenccedila numa essecircncia uacutenica e indivisiacutevel que natildeo se deixa abalar Assim

[] tampouco deve faltar agrave imagem de Apolo aquela linha delicada que a imagem oniacuterica natildeo pode ultrapassar a fim de natildeo atuar de um modo patoloacutegico pois do contraacuterio a aparecircncia nos enganaria como realidade grosseira isto eacute aquela limitaccedilatildeo mensurada aquela liberdade em face das emoccedilotildees mais selvagens aquela sapiente tranquilidade do deus plasmador (NIETZSCHE 18721992 p 30)

Natildeo obstante quando a delicada linha se rompe cedendo ao oniacuterico um lugar para o

patoloacutegico para o abjeto ou seja quando o terror atinge o homem rompendo esse princiacutepio de

individuaccedilatildeo e um poderoso ecircxtase adveacutem com essa quebra eacute o impulso dionisiacuteaco que se

apodera do humano anaacutelogo a uma sensaccedilatildeo de embriaguez A forccedila de Dioniacutesio potildee o humano

a cantar e danccedilar a conciliar-se com os outros de forma a romper com os limites que

diferenciam os homens unindo-os num soacute O ser humano sente-se parte da natureza funde-se

a ela aos animais e plantas sente-se como um deus enlevado extasiado Como aponta

Nietzsche (18721992 p 31) no impulso dionisiacuteaco

O homem natildeo eacute mais artista tornou-se obra de arte a forccedila artiacutestica de toda a natureza para a deliciosa satisfaccedilatildeo do Uno-primordial revela-se aqui sob o frecircmito da embriaguez A argila mais nobre a mais preciosa pedra de maacutermore eacute aqui amassada e moldada []

142

Dessa forma habita no homem duas tendecircncias opostas regidas pelas forccedilas de Apolo e

Dioniacutesio do mesmo modo que o humano se sente impelido por criar coisas belas por afirmar

sua essecircncia como indiviacuteduo uacutenico lutando contra os tormentos da vida ele tambeacutem se deixa

moldar pelas matildeos do mundo chegando ao seu estado de argila pronto a ser fundido com a

natureza pronto a fazer-se obra de arte

De acordo com Nietzsche (18721992) a trageacutedia grega originou-se da conciliaccedilatildeo

desses dois impulsos A sua tese compartilhada por outros pensadores da eacutepoca eacute a de que suas

primeiras formas de expressatildeo apareceram com o coro do ditirambo um coro que se

diferenciava de qualquer outro pois as pessoas que cantavam e danccedilavam em honra a Dioniacutesio

suspendiam qualquer marca civilizatoacuteria qualquer funccedilatildeo social e encarnavam saacutetiros seres

sublimes e divinos que tinham a forma hiacutebrida homem-bode e que possuiacuteam uma visatildeo

desvelada da natureza por serem a representaccedilatildeo da forccedila do impulso do deus Dioniacutesio A forma

final do coro da trageacutedia eacute a imitaccedilatildeo artiacutestica desse protoacutetipo do qual surgiu tambeacutem a figura

do ator No periacuteodo mais antigo da trageacutedia Dioniacutesio natildeo estava presente em cena

verdadeiramente mas era representado pelo coro que deu origem agrave proacutepria trageacutedia

Esse coro contempla em sua visatildeo o seu senhor e mestre Dioniacutesio e eacute por isso eternamente o coro servente ele vecirc como este o deus padece e se glorifica e por isso ele proacuteprio natildeo atua Nessa posiccedilatildeo de absoluto servimento em face do deus o coro eacute pois literalmente a mais alta expressatildeo da natureza e profere como esta em seu entusiasmo sentenccedilas de oraacuteculo e de sabedoria como compadecente ele eacute ao mesmo tempo o saacutebio que do coraccedilatildeo do mundo enuncia a verdade (NIETZSCHE 18721992 p 61)

Nietzsche (18721992) aponta o quanto o coro dos primoacuterdios da arte traacutegica chamado

de espectador ideal difere-se dos espectadores de sua eacutepoca jaacute que esses natildeo habitam a cena

traacutegica tal como o coro apesar de este representar a multidatildeo o homem comum e simples O

coro sofre com o heroacutei traacutegico pois antevecirc e profere a sua ruiacutena Lacan (1959-19601997 p

305) aborda o papel do coro no seu comentaacuterio sobre Antiacutegona afirmando que ldquoo Coro satildeo as

pessoas que se emocionamrdquo O espectador comum para ele estaacute livre de qualquer preocupaccedilatildeo

ou comprometimento em se emocionar Eacute o coro quem assume o papel da emoccedilatildeo que se supotildee

ser expressa pelo povo que assiste agrave cena

A partir de Schiller Nietzsche afirma que o coro eacute como uma muralha viva que se coloca

sobre a realidade atroz jaacute que entrevecirc a vida de forma mais crua e real ldquomais completa do que

o homem civilizado que comumente julga ser a uacutenica realidaderdquo (NIETZSCHE 18721992 p

143

57) Ou seja eacute como se o coro formasse uma barreira de proteccedilatildeo aos olhos do homem

civilizado que natildeo pode sentir ou ver a olho nu a crueza de um mundo miacutetico que o antecedeu

E com isso as pessoas do coro conhecem uma verdade inacessiacutevel ao espectador comum talvez

porque tal acesso seja simplesmente impossiacutevel

Todos os elementos cecircnicos que surgem posteriormente ao coro revelando sua

diferenciaccedilatildeo e seus contrastes expressam a dimensatildeo apoliacutenea da aparecircncia das coisas O

apoliacuteneo aparece no diaacutelogo da trageacutedia de forma clara e bela E assim o coro tambeacutem participa

de um diaacutelogo a partir do qual pode transmitir ao puacuteblico aquilo que o vento sopra em seus

ouvidos aquilo que a luz irradia em seus olhos

Nietzsche faz especial alusatildeo agrave dimensatildeo apoliacutenea na trageacutedia de Soacutefocles pois a

linguagem do heroacutei eacute tatildeo clara e precisa que acaba por conduzir o espectador por um caminho

surpreendentemente curto ao mais iacutentimo e ao mais fundo do heroacutei O que isso significa Que

o heroacutei traacutegico consegue aproximar o espectador de seu desejo por meio do arranjo de suas

palavras sem dizecirc-lo Aquilo que surge na superfiacutecie a aparecircncia a imagem luminosa do heroacutei

pode se revelar como resultante de um olhar que mira o mais fundo do ser como o autor mostra

na seguinte passagem

Quando numa tentativa eneacutergica de fitar de frente o Sol nos desviamos ofuscados surgem diante dos olhos como uma espeacutecie de remeacutedio manchas escuras inversamente as luminosas apariccedilotildees dos heroacuteis de Soacutefocles em suma o apoliacuteneo da maacutescara satildeo produtos necessaacuterios de um olhar no que haacute de mais iacutentimo e horroroso na natureza como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite medonha (NIETZSCHE 18721992 p 63)

A noite medonha a dimensatildeo dionisiacuteaca da trageacutedia eacute revestida pela luz apoliacutenea

Soacutefocles parece oferecer no apoliacuteneo de sua trageacutedia a beleza de sua obra Bela agrave medida do

horror que ela oculta

E o que ela oculta eacute o proacuteprio deus Dioniacutesio sob a maacutescara de tantos outros heroacuteis que

representam o seu sofrimento E de que sofrem os heroacuteis Nietzsche fala sobre Eacutedipo Em Eacutedipo

Rei em que busca investigar o assassino de Laio seu pai bioloacutegico Eacutedipo ignora que ele mesmo

o fizera e que se casara com Jocasta sua matildee ele atenta contra a natureza ao decifrar o enigma

da Esfinge ao ousar conhecer segredos da natureza Em funccedilatildeo disso destroacutei aquilo que deve

ser sua proacutepria natureza revelando que havia cometido os crimes de parriciacutedio e incesto

144

Haacute uma antiquiacutessima crenccedila popular persa sobretudo segundo a qual um saacutebio mago soacute podia nascer do incesto o que noacutes em relaccedilatildeo a Eacutedipo o decifrador do enigma e desposante de sua matildee devemos interpretar imediatamente no sentido de que laacute onde por meio das forccedilas divinatoacuterias e maacutegicas foi quebrado o sortileacutegio do presente e do futuro a riacutegida lei da individuaccedilatildeo e mesmo o encanto proacuteprio da natureza laacute deve ter-se antecipado como causa primordial uma monstruosa transgressatildeo da natureza ndash como era ali o incesto pois como se poderia forccedilar a natureza a entregar seus segredos senatildeo resistindo-lhe vitoriosamente isto eacute atraveacutes do inatural Este conhecimento eu o vejo cunhado naquela espantosa triacuteade do destino edipiano aquele que decifra o enigma da natureza ndash essa esfinge biforme ndash ele mesmo tem de romper tambeacutem como assassino do pai e esposo da matildee as mais sagradas ordens da natureza (NIETZSCHE 18721992 p 65)

Eacute possiacutevel dizer que desse rompimento adveacutem o dionisiacuteaco o saber dionisiacuteaco A partir

do que Nietzsche propotildee sobre Eacutedipo o que podemos pensar sobre outra trageacutedia de Soacutefocles

que compotildee a trilogia tebana Antiacutegona em tal armadilha do inatural

A princesa de Tebas eacute filha de Eacutedipo e de Jocasta filha de seu proacuteprio irmatildeo materno

filha de sua proacutepria avoacute paterna ou seja fruto de uma monstruosa genealogia que deve honrar

com sua proacutepria morte Sua destruiccedilatildeo eacute o preccedilo que escolhe pagar por ser ela mesma

transgressatildeo da natureza Parece-nos que viver em seu caso eacute violar o natural Paradoxalmente

ao escolher quando morrer ou seja ao natildeo deixar que sua vida flua em direccedilatildeo ao matrimocircnio

e agrave maternidade a jovem Antiacutegona pode tambeacutem transgredir a natureza

Antiacutegona porta em si mesma um antinatural e natildeo um princiacutepio natural suposto pelos

gregos O fato de ter nascido de existir resistir eacute ultrapassar um limite humano a aacutetē lugar de

seu destino final para onde caminha seu desejo Origem e destino convergem em Antiacutegona Ao

mesmo tempo que paga o preccedilo de ser um crime ela o comete

Qual o crime contra a natureza que ela mesma comete para aleacutem do crime contra o

interdito de enterrar o irmatildeo Talvez o de saber ser uma morta-viva Rumo agrave sua morte a

proacutepria Antiacutegona questiona ldquoQue mandamentos transgredi das divindadesrdquo (Antiacutegona v

1027) Talvez o mandamento de preservar a ignoracircncia sobre o proacuteprio destino pois a heroiacutena

o sabe opta por morrer de causas natildeo naturais impede que a natureza haja em seu corpo

permitindo casar ter filhos envelhecer Antiacutegona antecipa sua morte morada final de todos

noacutes De acordo com Nietzsche (18721992 p 65) ldquoa sabedoria e precisamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute um horror antinatural que aquele que por seu saber precipita a natureza no abismo

da destruiccedilatildeo haacute de experimentar tambeacutem em si proacuteprio a desintegraccedilatildeo da naturezardquo

145

O saber sobre a proacutepria natureza deve permanecer intacto como um eterno misteacuterio

enigma a ser desvendado durante uma vida mas que de fato nunca pode ser

Assim Antiacutegona natildeo age de acordo com a mesma natureza suposta nos demais cidadatildeos

tebanos O rei Creonte a acusa de agir de modo diferente do povo ao recusar seguir a lei que

impocircs agrave cidade ou seja as palavras de interdito contra aquele que ousar enterrar o traidor do

reino Polinices Antiacutegona eacute chamada de desumana Para o povo de Tebas natureza e

humanidade satildeo valores ausentes na heroiacutena

Uma questatildeo que se coloca agora e que vale uma breve discussatildeo eacute sobre o natural no

homem Existe uma natureza especificamente humana que se violada torna o homem

antinatural digno de destruiccedilatildeo Estaacute na natureza a humanidade do homem O que torna o

homem ser humano A filosofia desde a Antiguidade buscou responder qual seria o proacuteprio

do humano Natildeo eacute o propoacutesito deste trabalho discorrer sobre as mais variadas teorias que

buscam dar conta dessa inquietante questatildeo que por si soacute nos mobiliza Mas buscamos olhaacute-la

a partir do entendimento da psicanaacutelise A escolha por pensar a partir desse campo eacute em funccedilatildeo

da abertura que este saber oferece ao conhecimento que concerne agrave trageacutedia antiga ou seja agrave

sua relaccedilatildeo com a palavra e com o fazer

Num artigo em que aborda o brincar no iniacutecio da escolarizaccedilatildeo como um exerciacutecio que

permite agrave crianccedila a entrada no universo do simboacutelico Moschen (2011) argumenta que o que

podemos chamar de humano dificilmente encontra suas bases na natureza A autora explica que

Qualquer raciociacutenio que se desdobre reivindicando sua legitimidade numa suposta Natureza dos homens seraacute facilmente derrubado por uma simples reflexatildeo histoacuterica capaz de nos mostrar que os homens se produzem como homens quando satildeo assujeitados agraves condiccedilotildees de uma ancestralidade que configura um campo de possibilidades e de limitaccedilotildees para a sua realizaccedilatildeo (MOSCHEN 2011 p 91)

O ser humano natildeo parece ter em si um coacutedigo de conduta natural para ser o que eacute Sua

fisiologia e sua geneacutetica podem importar para determinar questotildees condizentes ao organismo

mas natildeo agrave humanidade Ele se torna humano ao se submeter agravequilo que o precede aos seus

ancestrais e a uma linha que separa seus limites e possibilidades Mas como o homem pode

acessar esse legado Como ele se sujeita a uma ancestralidade De acordo com Moschen

(2011) os homens se tornam humanos quando satildeo assim chamados por outros seres humanos

antecessores Somente eacute possiacutevel a estes dar as boas-vindas aos pequenos homens que chegam

ao mundo nomeando seus iguais porque eles mesmos se submetem agrave linguagem Com efeito

146

A humanizaccedilatildeo do organismo vai se dar no entre-lugares de um assujeitamento agraves condiccedilotildees histoacutericas transmitidas pelos adultos proacuteximos agraves crianccedilas e da tomada de posiccedilatildeo do pequeno frente a esses determinantes que lhe chegam vindos de uma ancestralidade que ele natildeo domina (MOSCHEN 2011 p 91)

Ser humano eacute a possibilidade de ir aleacutem da condiccedilatildeo de organismo atraveacutes da

transmissatildeo da ancestralidade feita pelos adultos ou seja por aqueles jaacute submetidos agrave

linguagem e atraveacutes da postura diante de tal transmissatildeo o que ocorre no entre-lugar onde

emerge o sujeito Parece natildeo haver nada na natureza que defenda o caraacuteter humano do homem

A humanidade se encontra nos contornos simboacutelicos que a definem que para Antiacutegona

estatildeo num ponto mais aleacutem em relaccedilatildeo agraves leis compartilhadas pelos tebanos Ela o ultrapassa

com o seu desejo de morte sustentando as origens de sua famiacutelia a aacutetē familiar

Eacute nesse sentido que a princesa de Tebas sofre o julgamento dos cidadatildeos tebanos pois

como seres humanos que satildeo natildeo a reconhecem como parte de um legado compartilhado entre

eles Para os tebanos Antiacutegona eacute cruel e inflexiacutevel caracteriacutesticas que situam uma

impossibilidade de tomaacute-la como pertencente ao que os humaniza Mas eacute justamente aiacute que

Antiacutegona parece fundar uma humanidade a sua no firme terreno de sua eacutetica que a faz honrar

a ancestralidade que lhe foi transmitida ao enterrar o irmatildeo ao mesmo tempo que torna

manifesta sua posiccedilatildeo subjetiva a de ser uma morta-viva a de querer morrer

O que assombra a cidade de Tebas talvez seja o pano de fundo de suas accedilotildees a dimensatildeo

dionisiacuteaca escondida em sua linguagem apoliacutenea a sua plena convicccedilatildeo do que deseja morrer

sem desvios sem enganos ou ilusotildees uma linha reta traccedilada de seus peacutes ateacute o tuacutemulo ou seja

manifestaccedilatildeo plena da pulsatildeo de morte Assusta a sua plena ldquoconsciecircnciardquo demonstrada em

accedilatildeo sobre seu proacuteprio destino tanto que a chamam de desumana Talvez seja mesmo

desumana por sustentar seu desejo para aleacutem dos limites simboacutelicos que contornam a vida na

polis grega a vida compartilhada com os outros inscritos em uma cultura Talvez seja ldquohumana

demaisrdquo atribuiccedilatildeo dos heroacuteis e heroiacutenas caracterizados com as melhores disposiccedilotildees dos

homens e mulheres conforme Aristoacuteteles considerando que dentre tais disposiccedilotildees esteja a

fidelidade a seu proacuteprio desejo e agrave luta para sua realizaccedilatildeo

Nos entrelugares da servidatildeo agrave ancestralidade e da posiccedilatildeo diante do legado rumo ao

leito de morte viva e humana o que ela faz eacute se lamentar Um lamento apoliacuteneo que expressa

147

sorrateiramente o horror dionisiacuteaco Antiacutegona nasce como sujeito autocircnomos num espaccedilo curto

de tempo na trageacutedia encabeccedilada por seu nome proacuteprio

[] um leito nupcial jamais terei nem ouvirei hinos de bodas nem sentirei as alegrias conjugais nem filhos amamentarei hoje sozinha sem nenhum amigo parto ndash ai infeliz de mim ndash ainda viva para onde os mortos moram (Antiacutegona vv 1021-1026)

Tecendo em belo discurso apoliacuteneo Antiacutegona expressa o dionisiacuteaco colocando em cena

o tensionamento das duas forccedilas que formam o que eacute essencial na trageacutedia na visatildeo de

Nietzsche como heroiacutena legiacutetima do aclamado Soacutefocles Faccedilamos agora algumas

consideraccedilotildees sobre Euriacutepides no que tange agraves duas dimensotildees traacutegicas

332 Euriacutepides por Nietzsche

Nietzsche (18721992) aponta que Euriacutepides foi responsaacutevel por excluir o dionisiacuteaco da

trageacutedia grega e com isso responsaacutevel tambeacutem pela morte do gecircnero que dependia de uma

conciliaccedilatildeo possiacutevel entre os impulsos de Apolo e os de Dioniacutesio Em suas palavras

Excisar da trageacutedia aquele elemento dionisiacuteaco originaacuterio e onipotente e voltar a construiacute-la de novo puramente sobre uma arte uma moral e uma visatildeo do mundo natildeo dionisiacuteacas ndash tal eacute a tendecircncia de Euriacutepides que agora se nos revela em luz meridiana (NIETZSCHE 18721992 p 78)

Como seria uma arte uma moral e uma visatildeo de mundo natildeo dionisiacuteacas Um aspecto

apontado por Nietzsche (18721992) diz respeito ao lugar conferido por Euriacutepides ao homem

comum em suas trageacutedias ele que colocou no centro da cena a imitaccedilatildeo do cotidiano com todas

as caracteriacutesticas e psicologismos dos personagens o que foi muito caro ao surgimento da

comeacutedia nova Poreacutem isso demarcou o fim da trageacutedia antiga De acordo com Nietzsche pelo

intermeacutedio de Euriacutepides

[] o homem da vida cotidiana deixou o acircmbito dos espectadores e abriu caminho ateacute o palco o espelho em que antes apenas os traccedilos grandes e audazes chegavam agrave expressatildeo mostrou agora aquela desagradaacutevel exatidatildeo

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que tambeacutem reproduz conscienciosamente as linhas mal traccediladas na natureza (NIETZSCHE 18721992 p 73-74)

Para sustentar a realidade dionisiacuteaca na trageacutedia eacute preciso manter uma certa imprecisatildeo

uma atmosfera enigmaacutetica uma inexatidatildeo da imitaccedilatildeo dos personagens e natildeo expor na

superfiacutecie da fala e das accedilotildees um personagem comum que poderia ser visto todos os dias por

qualquer um desvelado na vida cotidiana

Um certo enigma um inatingiacutevel um natildeo clarificaacutevel do homem deveria ser mantido

como a forccedila do drama decorrente da sua origem em Dioniacutesio ou seja num mundo que natildeo

conhece fronteiras entre os seres Era justamente aiacute que residia a potecircncia dos dramas

inventados pelos tragedioacutegrafos antigos

O filoacutesofo alematildeo alega que Euriacutepides como um pensador buscou estudar e

compreender a estrutura das obras-primas da trageacutedia de seus antecessores Eacutesquilo e Soacutefocles

mas se deparou com muitas incertezas ldquo[] percebeu alguma coisa de incomensuraacutevel em cada

traccedilo e em cada linha uma certa precisatildeo enganadora e ao mesmo tempo uma profundidade

enigmaacutetica sim uma infinitude do fundordquo (NIETZSCHE 18721992 p 77)

Ora o que eacute essa coisa incomensuraacutevel essa infinitude essa profundidade intrigante a

Euriacutepides senatildeo a percepccedilatildeo da proacutepria dimensatildeo dionisiacuteaca O autor buscou dar forma

controlar domesticar algo que resiste agrave domesticaccedilatildeo que deve permanecer ali borrado no

desenho do quadro da cena traacutegica Como ele natildeo pocircde explicar racionalmente tal sensaccedilatildeo

tratou-a como exagerada como desnecessaacuteria como inimiga da criaccedilatildeo e resolveu eliminar de

suas obras traacutegicas os arranjos atraveacutes dos quais o dionisiacuteaco parecia ganhar expressatildeo

Ao abordar o espiacuterito traacutegico presente na traduccedilatildeo de Antiacutegona de Soacutefocles feita pelo

poeta alematildeo Holderlin Rosenfield (2000) enfatiza essa dupla dimensatildeo com a qual a trageacutedia

se fazia A poesia se articula com a dimensatildeo do cognosciacutevel da experiecircncia empiacuterica e com

a apresentaccedilatildeo poeacutetica ela mesma o que faz surgir ldquoum movimento cujo ponto de fuga reside

aleacutem das determinaccedilotildees numa dimensatildeo radicalmente irredutiacutevel aos conceitos do

entendimentordquo (ROSENFIELD 2000 p 167)

Segundo a autora o que resulta desse jogo do cognosciacutevel com o poeacutetico eacute uma

sabedoria de outra ordem que faz marcas ao conhecimento comum situando um limite do nosso

discurso em poder transpor essa sabedoria a um dizer Ela permanece como um misteacuterio que

encanta e inquieta que natildeo se deixa dominar pela compreensatildeo Talvez seja justamente esse

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ponto inalcanccedilaacutevel pela razatildeo essa sabedoria obscura causa do belo da experiecircncia que

Euriacutepides desejou excluir de seus dramas

Assim Nietzsche (18721992 p 77) nos revela os incocircmodos de Euriacutepides em relaccedilatildeo

agrave trageacutedia dos consagrados Eacutesquilo e Soacutefocles

[] quatildeo duvidosa permanecia para ele a soluccedilatildeo dos problemas eacuteticos Quatildeo questionaacutevel o tratamento dos mitos Quatildeo desigual a reparticcedilatildeo de ventura e desventura Mesmo na linguagem da trageacutedia antiga havia para ele muita coisa de ofensiva ao menos enigmaacutetica em especial achava haver demasiada pompa para relaccedilotildees muito comuns demasiados tropos e monstruosidades para a simplicidade dos caracteres Assim cismando intranquilo ficava sentado no teatro e ele o espectador confessava a si mesmo que natildeo entendia seus grandes predecessores

A trageacutedia de Euriacutepides Medeia talvez uma de suas obras mais instigantes que nos

propomos a estudar na sequecircncia deste trabalho contempla as caracteriacutesticas citadas pelo

filoacutesofo alematildeo Podemos nos perguntar antes de uma apreciaccedilatildeo mais pontual de sua Medeia

por que Euriacutepides natildeo compartilhava da esteacutetica de seus predecessores Podemos

responsabilizaacute-lo pela derrocada da trageacutedia antiga pelo fim da representaccedilatildeo dos mitos ou

entatildeo tentar entender que talvez expressasse atraveacutes da arte as mudanccedilas poliacuteticas e filosoacuteficas

de seu tempo numa Atenas que abrigava o movimento sofista e as condiccedilotildees para a constituiccedilatildeo

da democracia numa cidade ideal

De acordo com Vorsatz (2013) a trageacutedia antiga situa-se entre dois momentos histoacutericos

fundamentais ou seja divide um tempo miacutetico e um tempo poliacutetico sucede o tempo do ideal

homeacuterico e antecede o tempo do ideal filosoacutefico A trageacutedia claacutessica eacute expressatildeo de um mundo

em transformaccedilatildeo encenaccedilatildeo da genuiacutena experiecircncia humana num mundo agrave mercecirc da vontade

divina recortado com a insuficiecircncia da palavra do heroacutei no jogo cantado e contado pelo coro

Nesse sentido Euriacutepides ao viver em tal periacuteodo de transiccedilatildeo pode ter pertencido ao

grupo dos que aspiravam a uma inovaccedilatildeo das ideias uma nova forma de interpretar os mitos a

escuta de questotildees humanas sob um acircngulo diferente da estrutura enigmaacutetica dos poemas

homeacutericos e da tradiccedilatildeo oral Talvez mais interessado em explorar as pequenezas dos

sentimentos e as sutilezas do pensamento como um contraponto a feitos admiraacuteveis e

grandiosos Hoje Euriacutepides eacute considerado junto com Eacutesquilo e Soacutefocles um dos principais

tragedioacutegrafos da Greacutecia Antiga e ainda que sua esteacutetica seja questionada pelos ideais de beleza

aristoteacutelicos eacute considerado por Aristoacuteteles o mais traacutegico dos poetas traacutegicos

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Dessa forma indagamos sem buscar suas bases no terreno dionisiacuteaco onde se funda o

drama de Euriacutepides Como pode restar o elemento apoliacuteneo sem o seu contraponto Para

Nietzsche (18721992) o tragedioacutegrafo propotildee uma nova tensatildeo entre dimensotildees opostas uma

tensatildeo natildeo artiacutestica mas realista no lugar do apoliacuteneo versus dionisiacuteaco Euriacutepides parece

inaugurar a frieza do pensamento versus o fervor do afeto conflito que encontramos em

Medeia

Outro modo de ver a proposta de Euriacutepides segundo o filoacutesofo alematildeo refere-se ao que

ele chamou de ldquosocratismo esteacuteticordquo (NIETZSCHE 18721992 p 81) Na luta pela expulsatildeo

do inquietante impulso dionisiacuteaco da trageacutedia o que se ergue contra ele eacute o pensamento

socraacutetico que visa colocar tudo o que existe sob o exame do racional do inteligiacutevel Aquilo

que passar por tal provaccedilatildeo eacute considerado bom Do mesmo modo Euriacutepides acreditou que a

trageacutedia deveria passar por um exame da inteligecircncia O que resultasse desse crivo da razatildeo

seria belo Ou seja para ele o que natildeo era compreensiacutevel justificaacutevel pela racionalidade

tampouco tinha beleza

O filoacutesofo alematildeo aborda a relaccedilatildeo entre Soacutecrates e Euriacutepides e a importacircncia dessa

relaccedilatildeo para a esteacutetica proposta pelo tragedioacutegrafo Em Atenas circulava a ideia de que Soacutecrates

ajudava Euriacutepides na escrita uma lenda contada por aqueles mais saudosos de tempos passados

que sentiam os valores tradicionais ruiacuterem pelos sofistas que eram os representantes de um

pensamento racional que buscavam destituir os mitos do discurso dos cidadatildeos Na visatildeo

desses cidadatildeos Soacutecrates poderia sustentar uma linha filosoacutefica que preservava as tradiccedilotildees e

utilizava a razatildeo pelo bem em nome do saber e da consciecircncia Sem eliminar os mitos buscava

apenas trazecirc-los agrave luz da razatildeo e do conhecimento Nesse sentido Soacutecrates que natildeo apreciava

a arte traacutegica costumava assistir apenas agraves peccedilas de Euriacutepides em funccedilatildeo do questionamento e

tratamento racional que imprimia aos mitos

Nietzsche (18721992) destaca uma importante passagem da vida de Soacutecrates

fundamental para o surgimento de sua filosofia para sua circulaccedilatildeo pela via puacuteblica O oraacuteculo

de Delfos oraacuteculo do deus Apolo diz a um amigo de Soacutecrates que ele eacute o mais saacutebio dentre os

saacutebios Quando o amigo conta as palavras do oraacuteculo o filoacutesofo volta sua vida agrave busca de

algueacutem mais dotado de sabedoria questionando conceitos e valores construiacutedos por saacutebios

reconhecidos na cidade professores e sofistas No entanto a cada encontro que tecia no intuito

de refutar tal prenuacutencio Soacutecrates colocava seu interlocutor diante da contradiccedilatildeo de seus

pensamentos provando a si mesmo o acerto do oraacuteculo Passou a buscar a verdade desejava

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fazecirc-la brotar vir ao mundo atraveacutes dos diaacutelogos que tecia com os outros Assim tornou-se ele

mesmo um saacutebio admirado por muitos desprezado por outros tantos

Tal ocasiatildeo da vida de Soacutecrates eacute relatada num texto de Platatildeo Apologia de Soacutecrates o

qual apresenta a defesa do enigmaacutetico saacutebio condenado agrave morte hoje considerado um dos

fundadores da filosofia ocidental Mas Nietzsche conta ainda e eacute isso que desejamos frisar que

se o primeiro saacutebio eacute Soacutecrates o segundo eacute Euriacutepides No entanto Euriacutepides natildeo alcanccedilou a

notoriedade de seu suposto mestre

Do mesmo modo Lacan (1960-19611992) menciona Euriacutepides no seminaacuterio A

transferecircncia Numa das passagens situa o tragedioacutegrafo como um saacutebio nada mal lembrando

tambeacutem as prediccedilotildees do oraacuteculo poreacutem Soacutecrates eacute o mais saacutebio dentre todos Essa questatildeo (a

de Soacutecrates ser o mais saacutebio) Lacan comenta logo na apresentaccedilatildeo de seu seminaacuterio como a

questatildeo que Soacutecrates sustentou durante toda sua vida colocando o filoacutesofo na origem da mais

longa transferecircncia da histoacuteria jaacute que a sustentou como verdade ateacute o fim da vida

Soacutecrates antes de morrer concorda com deus Apolo sim ele era o mais saacutebio por

duvidar de sua sabedoria por saber que nada sabia o que o diferenciava de outros sofistas que

se julgavam saacutebios a priori Isso fazia com que defendessem qualquer ideia como verdade

buscando argumentos racionais para isso Faziam mal-uso da razatildeo Ao ser julgado como

destruidor dos mitos por desprezar os deuses Soacutecrates diz que o proacuteprio deus Apolo o

considerava o mais saacutebio e que apenas ele Apolo saberia se sua condenaccedilatildeo agrave morte era justa

ou injusta

Em decorrecircncia da influecircncia socraacutetica em suas obras os mitos histoacuterias compartilhadas

entre o povo grego que davam origem aos dramas traacutegicos para Euriacutepides deveriam ser bem

justificados sem deixar espaccedilos vazios ou margem para duacutevidas Nesse sentido natildeo havia uma

supressatildeo dos mitos ou uma supressatildeo da presenccedila divina em favor da razatildeo humana A

diferenccedila consistia em integrar a mitologia agrave racionalidade engolfaacute-la Para Vieira (2010) eacute

feitio de Euriacutepides construir accedilotildees com propoacutesitos inovadores que para ele beiram o absurdo

em vez de tomar tais accedilotildees como decorrentes do mito em que os deuses interferem de modo

enigmaacutetico sobre o ser humano Sobre a diferenccedila de Euriacutepides na trageacutedia Nietzsche

(18721992 p 72) o critica por tecirc-la eliminado e o indaga pessoalmente

E assim como o mito morreu para ti tambeacutem morreu para ti o gecircnio da muacutesica e mesmo se saqueaste com presas aacutevidas todos os jardins da muacutesica ainda assim soacute pudeste chegar a uma arremedada muacutesica mascarada E porque abandonaste Dioniacutesio por isso Apolo tambeacutem te abandonou afugenta todas

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as paixotildees de seu covil e as conjura em teu ciacuterculo afila e aguccedila como se deve uma dialeacutetica sofiacutestica para as falas de teus heroacuteis ndash tambeacutem os teus heroacuteis tecircm paixotildees arremedadas e mascaradas e proferem apenas falas arremedadas e mascaradas

Por ignorar o dionisiacuteaco Euriacutepides natildeo compreende o mito Em consequecircncia desse

abandono ignora tambeacutem o apoliacuteneo O que eacute a figura sem o que lhe faz pano de fundo

Subjugar a arte da trageacutedia a questionamentos filosoacuteficos acarretou numa montagem de heroacuteis

e heroiacutenas que apenas imitam accedilotildees e falas de heroacuteis e heroiacutenas sem secirc-los A dialeacutetica

socraacutetica que busca trazer a verdade agrave luz tem lugar no teatro euripidiano o que tem por efeito

uma nova forma de apresentar a palavra em cena

De acordo com Vorsatz (2013) haacute uma diferenccedila fundamental na forma de trabalhar

com a palavra na trageacutedia antiga e na filosofia Os tragedioacutegrafos colocam a palavra em cena

de modo a circunscrever um lugar subjetivo uma zona onde o dizer do heroacutei e da heroiacutena muito

mais que significar alguma coisa eacute um ato aparece em accedilatildeo Segundo a autora eacute desta palavra

como accedilatildeo que deriva a posiccedilatildeo subjetiva O heroacutei e a heroiacutena garantem com seu ato a presenccedila

divina sujeitam-se a ela e ao mesmo tempo satildeo responsaacuteveis pelo destino traacutegico a eles

imposto ainda que dele nada saibam Eacute justamente essa condiccedilatildeo subjetiva apresentada pela

heroiacutena Antiacutegona na peccedila de Soacutefocles que inspira Lacan (1959-19601997) a trabalhar sobre

a eacutetica da psicanaacutelise uma eacutetica essencialmente traacutegica pois se configura numa travessia em

que o sujeito natildeo cede de seu desejo desejo inconsciente ao qual eacute alienado

Jaacute na filosofia encontramos a tendecircncia de colocar a palavra na eterna busca de uma

verdade uacutenica e universal passiacutevel de ser dominada pela consciecircncia do indiviacuteduo

[] a filosofia grega eleva o homem agrave categoria de ser de razatildeo atraveacutes da constituiccedilatildeo de um saber sobre ele e sobre o mundo que o cerca Por sua vez a trageacutedia antiga parece colher aquilo mesmo que escaparaacute ao domiacutenio filosoacutefico o fato de que o homem natildeo eacute senhor em sua proacutepria casa pois haacute um campo imperscrutaacutevel domiacutenio dos deuses a cujas injunccedilotildees ele deveraacute responder por meio da libra de carne que lhe cabe pagar cessatildeo de uma parte de si (VORSATZ 2013 p 24)

Nos dramas de Euriacutepides com o surgimento de uma filosofia que comeccedilava a atravessar

o espaccedilo puacuteblico a tomar parte da organizaccedilatildeo poliacutetica da cotidianidade das pessoas que

passava a permear o campo das artes com seus atributos de tomar o indiviacuteduo como ser dotado

de razatildeo com o uso da ironia da busca pela verdade encontramos a mudanccedila de relaccedilatildeo com

a palavra que aparece nos textos do coro e dos personagens

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333 Deus ex machina euripidiano

A mudanccedila na trageacutedia a partir de Euriacutepides se expressa de modo mais evidente no

desenlace do drama de acordo com Nietzsche (18721992) a partir do recurso deus ex machina

utilizado como forma de resolver impasses e ldquopontas soltasrdquo da trama Eacutesquilo Soacutefocles e

outros tragedioacutegrafos tambeacutem apresentaram o deus ex machina em algumas de suas trageacutedias

A diferenccedila estaacute na intervenccedilatildeo dos deuses trazidos pela maacutequina nos rumos da cena traacutegica

Nesse sentido ao final das trageacutedias de Eacutesquilo e Soacutefocles o espectador poderia se

confortar com um prazer inerente ao traacutegico uma sensaccedilatildeo de conciliaccedilatildeo com o mundo que

apresenta um equiliacutebrio do dionisiacuteaco e do apoliacuteneo Lembramos que a conciliaccedilatildeo eacute uma

experiecircncia esteacutetica que emana da trama traacutegica no entanto natildeo haacute um acordo entre os

personagens da cena

No Dicionaacuterio de teatro Pavis (2015 p 21) nomeia este prazer de ldquoapaziguamento

finalrdquo e o toma como um produto da estrutura narrativa que indica o final da peccedila a impressatildeo

de que o heroacutei resolveu de algum modo seus conflitos e de que tudo retornou a uma suposta

ordem inicial No caso da trageacutedia a sensaccedilatildeo experimentada pelo espectador eacute a de uma

ldquojusticcedila transcendente do universo traacutegicordquo (PAVIS 2015 p 22)

Poreacutem com as modificaccedilotildees euripidianas que produzem uma intervenccedilatildeo divina

derradeira sobre a cena haacute apaziguamento final

De acordo com Nietzsche (18721992 p 107)

[] o heroacutei depois de bastante martirizado pelo destino colhia uma bem merecida recompensa em um magniacutefico casamento em algumas homenagens divinas O heroacutei se tornara um gladiador a quem apoacutes ter sido bastante maltratado e estar coberto de ferimentos era ocasionalmente doada a liberdade O deus ex machina tomou o lugar do reconforto metafiacutesico Natildeo quero dizer que a consideraccedilatildeo traacutegica do mundo tenha sido destruiacuteda em toda parte e por completo pelo acossante espiacuterito natildeo dionisiacuteaco sabemos apenas que precisou fugir da arte para refugiar-se por assim dizer no mundo iacutenfero numa degeneraccedilatildeo em culto secreto

Deus ex machina entra como substituto do ldquoreconforto metafiacutesicordquo mas sem provocar

tal sensaccedilatildeo Ele eacute uma presenccedila que dita o futuro dos heroacuteis

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[] uma consonacircncia terrena [] o deus das maacutequinas e crisoacuteis vale dizer as forccedilas dos espiacuteritos naturais conhecidas e empregadas a serviccedilo do egoiacutesmo superior que acredita em uma correccedilatildeo do mundo pelo saber em uma vida guiada pela ciecircncia [] (NIETZSCHE 18721992 p 108)

Dessa forma o deus ex machina proposto inicialmente por Eacutesquilo torna-se em

Euriacutepides a marca mais visiacutevel da mudanccedila de sua trageacutedia que se coloca no lugar da sensaccedilatildeo

de um conforto transcendente tiacutepico das trageacutedias antigas que dependiam da tensatildeo apoliacuteneo-

dionisiacuteaco A entrada do deus ex machina se torna signo de um desenlace que natildeo se constroacutei

ao longo do drama que natildeo emana das relaccedilotildees entre os personagens da histoacuteria de acordo

com a criacutetica nietzschiana Eacute um recurso que por carregar a funccedilatildeo de fazer justiccedila de conhecer

a verdade e a razatildeo sobre o mundo justifica-se por si mesmo Encontra em sua funccedilatildeo de

correccedilatildeo e julgamento do certo e do errado do bem e do mal seu direito de intervir e impor o

desenlace da histoacuteria (NIETZSCHE 18721992)

Eacute possiacutevel dizer desse modo que a entrada do deus ex machina na trageacutedia de Euriacutepides

tem o intuito de encaminhar o impasse traacutegico produzido entre os personagens para a soluccedilatildeo

que defenda o justo a razatildeo o correto e conforme apontado por Nietzsche (18721992) a

ciecircncia Tais finalidades estatildeo em consonacircncia com os objetivos da filosofia que se expandia

cada vez mais na via puacuteblica encontrando lugar na cena traacutegica

Entendemos esse dispositivo teatral como uma soluccedilatildeo a partir da qual uma atitude de

autoria fica suspensaA impressatildeo da suspensatildeo do lugar de autor pode ser decorrente da

suspensatildeo da criaccedilatildeo incitada pelo proacuteprio desfecho da cena Quando entra em cena um deus

ex machina para impor um fim a sensaccedilatildeo eacute de que os conflitos produzidos entre os

personagens natildeo satildeo realmente solucionados Parecem em vez disso suspensos silenciados

amortecidos por uma imposiccedilatildeo moral

De acordo com Antonio Rebelo (1995) em artigo sobre a peccedila euripidiana Ifigecircnia em

Tauris o deus ex machina eacute comparado aos ensinamentos filosoacuteficos de Soacutecrates no diaacutelogo

Clitofonte atribuiacutedo a Platatildeo e nesse sentido o dispositivo assumiria uma funccedilatildeo moralizante

O autor nos ajuda a pensar a funccedilatildeo do deus ex machina para aleacutem das concepccedilotildees

criacuteticas de Aristoacuteteles e de Nietzsche

A anaacutelise aristoteacutelica foi determinante para conferir uma carga depreciativa agrave utilizaccedilatildeo do deus ex machina Toda a criacutetica posterior ateacute os nossos dias foi fortemente influenciada pelas normas que o Estagirita estabeleceu para a trageacutedia Do ponto de vista teoacuterico o deus ex machina passou a ser

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considerado uma violaccedilatildeo do princiacutepio aristoteacutelico da verossimilhanccedila e coerecircncia entre o desenvolvimento da intriga e o seu desenlace Soacute recentemente o deus ex machina tem vindo a ser reabilitado e revalorizado apoacutes a rejeiccedilatildeo de antigos preconceitos (REBELO 1995 p 170-171)

Nesse sentido o autor diz que na anaacutelise de Aristoacuteteles em que o filoacutesofo deprecia o

uso do deus ex machina haacute tambeacutem recomendaccedilatildeo de como usar o recurso sem que a accedilatildeo

dramaacutetica seja prejudicada A presenccedila dos deuses funciona na cena para situar certos

acontecimentos sobre o passado eou sobre o futuro simplesmente porque os heroacuteis ou outros

personagens os desconhecem

No entanto quem deve desenhar um destino em cena ateacute o momento de desenlace da

accedilatildeo ainda que fracassem ainda que o fim seja traacutegico satildeo os personagens Natildeo eacute o fato de

uma trageacutedia apresentar ou natildeo apresentar o deus ex machina que necessariamente a accedilatildeo dos

heroacuteis estaraacute em prejuiacutezo Deuses situam o tempo o lugar as circunstacircncias da accedilatildeo Quando

uma trageacutedia atribui aos deuses um papel que natildeo este como por exemplo decidir sobre o

destino das personagens pode haver uma mudanccedila abrupta de rumo desnecessaacuteria eou

inverossiacutemil que vai contra um caminho tecido pelo drama

De acordo com Rebelo (1995) eacute esta a criacutetica que costumamos encontrar aos dramas de

Euriacutepides Poreacutem para o autor das trageacutedias de Euriacutepides agraves quais temos acesso duas se

encerram com um deus ex machina que encaminha o desenlace de modo a resolver o conflito

insoluacutevel que satildeo Orestes e Hipoacutelito Nas trageacutedias Medeia Heacutecuba Heacuteracles e Os

Heraclidas satildeo mortais que surgem ex machina impondo o desenlace e assim natildeo satildeo

comparaacuteveis aos deuses quando estatildeo nesse lugar Dessa maneira as peccedilas Androcircmaca As

Suplicantes Electra Ifigecircnia entre os Tauros Ion Helena As Bacantes e Ifigecircnia em Aulide

ainda que apresentem deuses num plano exterior ao da cena ou que entram em cena por meio

de uma maquinaria sua intervenccedilatildeo natildeo modifica os rumos da trama pois o desenlace ocorre

como um fruto da trama e a funccedilatildeo divina consiste em dar uma palavra final uma costura

O entendimento de Lacan (1959-19601997) a respeito desse recurso cecircnico vai ao

encontro dessa definiccedilatildeo pois para o psicanalista o deus ex machina ldquoserve somente de

enquadramento e de limite da trageacutediardquo (LACAN 1959-19601997 p 384) e natildeo devemos

levar em conta esse recurso mais do que as vigas que estatildeo na volta do que sustenta realmente

o palco

O psicanalista faz esse comentaacuterio ao citar a peccedila de Soacutefocles Filoctetes em que o heroacutei

eacute salvo por Heacutercules ex machina de uma ilha onde o haviam abandonado Poreacutem para Rebelo

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(1995) justamente nessa peccedila haacute uma diferenccedila no uso do recurso pois assume funccedilatildeo de

intervir de modo inesperado e definitivo Eacute importante esse apontamento de Rebelo (1995) pois

ele mostra que o dispositivo cecircnico em questatildeo tambeacutem aparece em peccedilas de Soacutefocles de

maneira a mudar os rumos da histoacuteria Tambeacutem podemos destacar a peccedila de Eacutesquilo Orestes

cujo desfecho ocorre com a intervenccedilatildeo divina de Apolo o qual interrompe um final traacutegico

Orestes mata a proacutepria matildee para vingar a morte do pai arranjada por ela Como provavelmente

ele seraacute condenado agrave morte pede a seu tio Menelau que interceda por ele em seu julgamento

Quem acaba por ajudaacute-lo eacute o proacuteprio deus Apolo que entra em cena no carro do Sol e confere

um novo ordenamento agraves accedilotildees dos homens Essa eacute a primeira vez que o recurso ex machina eacute

utilizado na trageacutedia grega Desse modo Rebelo (1995) esclarece que o sentido de atribuir o

uso desse recurso por Euriacutepides se justifica apenas por sua escolha na maioria de suas peccedilas

mas natildeo pela vinculaccedilatildeo do desenlace das peccedilas do tragedioacutegrafo ao dispositivo

Para Otto Maria Carpeaux (2010) haacute uma diferenccedila crucial entre Eacutesquilo e Euriacutepides

decorrente das transformaccedilotildees sociais e espirituais que os separam que eacute o modo como

apresentam o mito e a divindade pois enquanto ldquoEacutesquilo parecia ser representante do

conservadorismo religioso Euriacutepides eacute representante do individualismo filosoacutefico [] Eacutesquilo

eacute coletivista Euriacutepides individualistardquo (CARPEAUX 2010 p 188) Talvez essas diferenccedilas

caracterizem de modo mais sutil o que os autores desejavam transmitir com o uso do deus ex

machina pois ldquoem Eacutesquilo falam montanhas em Euriacutepides almasrdquo (CARPEAUX 2010 p

190)

Para Rebelo (1995 p 167) ldquouma das finalidades se natildeo uacutenica do deus ex machina

seria a parecircnese a exortaccedilatildeo aos espectadores para agirem de acordo com os preceitos divinosrdquo

Dessa maneira a funccedilatildeo do dispositivo teria como propoacutesito uma expansatildeo de sua intervenccedilatildeo

para aleacutem dos limites da cena Entendemos que o alvo do deus ex machina satildeo os espectadores

natildeo os personagens de forma a impor se o final da histoacuteria ldquoa moral da histoacuteriardquo

Eacute nesse sentido que o desenlace da histoacuteria adquire uma marca diferente na maioria das

peccedilas de Euriacutepides conforme comenta Nietzsche (18721992) pois a transmissatildeo da

experiecircncia do traacutegico daacute lugar agrave imposiccedilatildeo moral atraveacutes da presenccedila e da palavra divina que

encerram a trama Ainda que Soacutefocles e Eacutesquilo tenham utilizado esse recurso algumas vezes

tendo como consequecircncia o efeito moralizador para o filoacutesofo alematildeo satildeo as trageacutedias de

Euriacutepides que marcam o fim do gecircnero O tradutor de O nascimento da trageacutedia Jacoacute

Guinsburg ajuda-nos a entender o motivo

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No teatro de Euriacutepides Nietzsche identifica o ponto de inflexatildeo do processo que conduziu ao esvaziamento da trageacutedia grega e ao advento da Comeacutedia Nova Muito embora consigne um tardio arrependimento ao gecircnio criador de As bacantes atribui-lhe em face das dramatizaccedilotildees tidas como as mais expressivas do tragicismo helecircnico pelo menos quatro pecados capitais a eacutepica desmitificada o realismo mimeacutetico o socratismo criacutetico e o otimismo cientifista (GUINSBURG 1992 p 163)

O abandono do dionisiacuteaco jaacute dava notiacutecias antes mesmo da reinvenccedilatildeo dos mitos feita

por Euriacutepides pois jaacute com Soacutefocles podemos ver a modificaccedilatildeo do papel do coro que passa

da musicalidade (talvez um dos uacutenicos elementos da trageacutedia que preservavam a relaccedilatildeo com o

ritual em honra a Dioniso de onde o gecircnero deriva) para a personalizaccedilatildeo caracteriacutestica que se

torna mais marcante nas peccedilas euripidianas No coro haacute um ator o corifeu que o representa em

alguns diaacutelogos

Isso pode ser compreendido como uma evoluccedilatildeo que acompanha mudanccedilas na

organizaccedilatildeo cultural Se natildeo fosse assim talvez o gecircnero traacutegico natildeo teria nascido e teriacuteamos

ainda os rituais dionisiacuteacos como forma de arte O nascimento da trageacutedia permanece como um

misteacuterio uma faacutebula miacutetica para todos noacutes como lembra Pierre-Aimeacute Touchard (1970)

Sabemos que por volta do ano 492 aC uma pessoa resolveu se separar do coro e dizer ldquoagora

sou Dionisordquo representando o bode expiatoacuterio causa dos cantos da comoccedilatildeo do temor e da

piedade O primeiro ator Theacutespis separou-se do coro e aprimorou a arte de imitar viajando

sozinho encenando suas proacuteprias peccedilas utilizando maacutescaras para diferenciar uma personagem

da outra Tornou-se o primeiro dramaturgo de teatro e criou a possibilidade do ator contracenar

com o coro inventando a figura do protagonista Desse modo as encenaccedilotildees seguiram um

processo de transformaccedilatildeo que acompanha as transformaccedilotildees da vida puacuteblica em um fluxo de

criaccedilatildeo que vai se tecendo com cada vez mais elementos cecircnicos

Contudo a partir de Guinsburg (1992) podemos dizer que satildeo as alternativas

encontradas por Euriacutepides dentro desse processo cultural de transformaccedilotildees artiacutesticas que o

localizam como grande responsaacutevel pelo fim da trageacutedia na opiniatildeo de Nietzsche O

tragedioacutegrafo encaminhou a arte traacutegica para uma criacutetica aos seus contemporacircneos que

buscavam o equiliacutebrio apoliacuteneo-dionisiacuteaco tornando-a uma forma de divulgar sua indignaccedilatildeo

e apresentar sua concepccedilatildeo iluminista do traacutegico Aleacutem disso Nietzsche acredita que Euriacutepides

em sua trageacutedia promoveu uma campanha ideoloacutegica em favorecimento de Soacutecrates

158

[] fala por sua boca o filoacutesofo racionalista que esgota no conceito e na loacutegica o conhecimento e a verdade do ser Euriacutepides e Soacutecrates satildeo pois na perspectiva de O nascimento da trageacutedia duas faces da mesma maacutescara que eacute no entanto primordialmente a do Sofista (GUINSBURG 1992 p 164)

Considerando a influecircncia de Soacutecrates na trageacutedia de Euriacutepides entendemos que o deus

ex machina euripidiano acaba por legitimar o domiacutenio do conhecimento filosoacutefico ndash jaacute que

divino verticalizado metafiacutesico ndash sobre a arte traacutegica sobre as possibilidades de criaccedilatildeo

Fizemos essa digressatildeo teoacuterica em torno do traacutegico para entender o que resta dele como

ele resta apoacutes a morte da trageacutedia grega bem como para fundamentar nossa tese de que hoje

haacute sobre noacutes outros nomes para o deus ex machina cujo ldquoforardquo e cuja ldquomaacutequinardquo noacutes mesmos

produzimos Um eacute portanto a medicalizaccedilatildeo requerida para que nossas relaccedilotildees dentro dos

mais diferentes espaccedilos de convivecircncia funcionem bem e deem um destino para o dionisiacuteaco

que haacute em noacutes o qual por mais arcaico que seja por mais distante cronologicamente natildeo eacute

passiacutevel de ser completamente recoberto pelos recursos simboacutelicos de que a cultura dispotildee a

cada tempo em cada territoacuterio Ainda que o dionisiacuteaco tenha sido aparentemente expulso

varrido da cultura ocidental ele subsiste como diz Nietzsche na sombra num mundo iacutenfero

Vimos que as alteraccedilotildees culturais que datildeo ensejo agrave filosofia socraacutetica satildeo proacuteximas agraves

que estabelecem o deus ex machina como um dispositivo a oferecer uma aprovaccedilatildeo moral dos

atos das personagens da cena que significa um juiacutezo de valor a atestaccedilatildeo de uma verdade

Entendemos que na cena escolar diante de um problema de comportamento ou de

aprendizagem apresentado por uma crianccedila muitas vezes a escola pode julgar ter a obrigaccedilatildeo

moral de chamar para a cena um personagem que representa o saber meacutedico de modo que este

costure um desenlace com uma palavra diagnosticadora sobre o mal-estar A partir de testes e

consultas cliacutenicas o especialista pode dizer se a crianccedila apresenta uma dificuldade de

aprendizagem como dislexia um transtorno mental como o TDAH ou o TOD e a partir do

diagnoacutestico muitas vezes definir os rumos da rotina escolar desse estudante como por

exemplo para crianccedilas com TDAH o horaacuterio da medicaccedilatildeo combinado ao horaacuterio de estudos

No proacuteximo capiacutetulo discutiremos os efeitos do saber meacutedico no campo escolar Antes

queremos apresentar outro argumento que leva a pensar que a medicalizaccedilatildeo pode ser acionada

como uma instacircncia moral

Haacute um comentaacuterio de Lacan no seminaacuterio A transferecircncia no qual trabalha com o texto

de Platatildeo O banquete que indica uma aproximaccedilatildeo de Soacutecrates ao saber meacutedico

159

Jaacute se observou que haacute em Soacutecrates uma referecircncia ambiente agrave medicina Com muita frequecircncia quando quer levar seu interlocutor ao plano de diaacutelogo no qual entende dirigi-lo rumo agrave percepccedilatildeo de um percurso rigoroso ele se refere a tal arte de teacutecnico Se sobre tal assunto quiserem saber a verdade pergunta frequentemente a quem se dirigiratildeo E dentre estes o meacutedico estaacute longe de ser excluiacutedo Ele eacute mesmo tratado com uma reverecircncia particular (LACAN 1960-19611992 p 73)

Lacan logo assinala que o meacutedico ao qual Soacutecrates se refere na ocasiatildeo do texto de

Platatildeo eacute Erixiacutemaco o qual toma a medicina como a maior de todas as artes Natildeo entraremos

no discurso sobre o amor do personagem de O banquete no entanto queremos apresentar alguns

pontos trabalhados por Lacan no que concerne ao discurso meacutedico Ainda que a histoacuteria da

medicina seja bastante longa dividida mesmo na antiguidade por diferentes escolas haacute um

aspecto que lhe atravessa A medicina sempre busca alcanccedilar uma precisatildeo cientiacutefica sendo

esta uma necessidade intriacutenseca agrave sua proacutepria existecircncia Para Lacan (1960-19611992) essa

busca acaba por natildeo enfrentar poreacutem assuntos elementares como a definiccedilatildeo de sauacutede

Quando haacute desejo de entender as diferenccedilas entre normal e patoloacutegico geralmente isso

eacute realizado por um saber das ciecircncias humanas por exemplo poreacutem natildeo constitui questatildeo de

pesquisa na aacuterea da medicina Ainda assim Lacan busca desvendar especialmente no discurso

de Erixiacutemaco a noccedilatildeo de sauacutede para o discurso meacutedico no qual se inclui como psiquiatra e

psicanalista

[] qualquer que seja a natureza da sauacutede e a boa forma que seria a da sauacutede somos levados a postular no seio desta boa forma estados paradoxais ndash e o miacutenimo que se pode dizer ndash estes mesmos cuja manipulaccedilatildeo em nossas terapecircuticas eacute responsaacutevel pelo retorno a um equiliacutebrio que permanece no conjunto muito pouco criticado enquanto tal Aiacute estaacute portanto o que encontramos no niacutevel dos postulados menos acessiacuteveis a demonstraccedilatildeo sobre a posiccedilatildeo meacutedica E justamente esta que seraacute consagrada aqui no discurso de Erixiacutemaco sob o nome de harmonia Natildeo sabemos de que harmonia se trata mas a noccedilatildeo eacute bastante fundamental para toda a posiccedilatildeo meacutedica como tal (LACAN 1960-19611992 p 75)

Nesse sentido ao contextualizar o discurso do personagem meacutedico com o pensamento

de Heraacuteclito e de Soacutecrates Lacan entende que a ideia da sauacutede como harmonia meacutedica estaacute

ligada ao saber da fiacutesica agrave metaacutefora da comunicaccedilatildeo entre um vaso cheio com um vazio por

um fio de latilde e agrave arte da muacutesica no que diz respeito aos acordes

O que podemos destacar aqui eacute a criacutetica de Lacan agrave definiccedilatildeo de Erixiacutemaco sobre o que

eacute a ciecircncia meacutedica

160

Existe ali uma parcialidade de que natildeo partilhamos Todas as espeacutecies de modelos da fiacutesica nos trouxeram a ideia de uma fecundidade dos contraacuterios dos contrastes das oposiccedilotildees e de uma natildeo-contradiccedilatildeo absoluta do fenocircmeno com seu princiacutepio conflitual Toda a fiacutesica tende muito mais para o lado da imagem da onda do que para o lado da forma da Gestalt da boa forma natildeo importa o que disso tenha feito a psicologia moderna Natildeo podemos deixar de nos surpreender digo eu tanto nessa passagem quanto em vaacuterias outras de Platatildeo ao ver sustentada a ideia de natildeo sei que impasse que aporia de natildeo sei que preferecircncia a ser dada ao lado do caraacuteter forccedilosamente fundamental do acorde com o acorde da harmonia com a harmonia (LACAN 1960-19611992 p 79)

Entrever a potecircncia das contrariedades dos impasses eacuteticos que surgem em cena eacute o que

o traacutegico tem a transmitir visando natildeo agrave harmonia agrave boa forma mas daando lugar agrave dimensatildeo

da anguacutestia em cena dos limites humanos do que perdemos em nossa posiccedilatildeo desejante

subjetiva Haacute uma distacircncia talvez uma antinomia entre o que se busca transmitir com o

discurso socraacutetico ndash aparentado em certo ponto ao discurso meacutedico ndash presente em trageacutedias de

Euriacutepides e o traacutegico que se transmite em trageacutedias sofocleanas como Antiacutegona cuja eacutetica eacute

partilhada com a psicanaacutelise

Natildeo que natildeo haja nas noccedilotildees visitadas do traacutegico uma tendecircncia de encaminhar uma

transformaccedilatildeo um retorno a um suposto equiliacutebrio ou estado anterior Como vimos esta noccedilatildeo

cataacutertica aparece em textos meacutedicos como expurgaccedilatildeo das impurezas do corpo assim como na

noccedilatildeo de harmonia meacutedica haacute o entendimento de evacuar alguma coisa do corpo ou preencher

o corpo com alguma coisa Sabemos que haacute tal noccedilatildeo tambeacutem nos primoacuterdios da histoacuteria da

psicanaacutelise com Freud e Breuer no sentido de que o tratamento das histeacutericas consistia na

descarga dos afetos conforme mencionado anteriormente

Em que reside na diferenccedila de uma posiccedilatildeo para outra Da harmonia meacutedica ao

apaziguamento final das trageacutedias antigas Acreditamos que a operaccedilatildeo meacutedica tende a veicular

um ideal de corpo saudaacutevel Jaacute a conciliaccedilatildeo final das trageacutedias o equiliacutebrio entre apoliacuteneo e

dionisiacuteaco demarca um reposicionamento dos personagens em cena fruto do jogo de tensotildees

e de desacordos que ocorre num movimento contraacuterio ao da idealizaccedilatildeo Vemos heroacuteis e

heroiacutenas se deslocarem de um lugar admiraacutevel para uma posiccedilatildeo que os arruiacutena Mas haacute sempre

algo que permanece vivo a uacutenica coisa que resta para de certa forma restaurar a cena o desejo

A presenccedila de uma ilusatildeo de harmonia operada atraveacutes da liberaccedilatildeo dos afetos presente

nos primoacuterdios da psicanaacutelise vai em sua histoacuteria cedendo lugar a uma concepccedilatildeo que indica

o mal-estar como inerente agrave condiccedilatildeo humana O sujeito elabora certos eventos de sua vida

161

numa perspectiva inventiva junto com seu analista ldquorecriandordquo memoacuterias com as quais produz

novos sentidos Isso eacute o que nos aponta Freud (19371975) no texto Construccedilotildees em anaacutelise

Nesse sentido entendemos que a eacutetica da psicanaacutelise sendo uma eacutetica do desejo que situa os

limites do sujeito encontra ressonacircncia na eacutetica transmitida com o traacutegico em trageacutedias gregas

do seacuteculo IV aC anteriores agrave virada proposta por Euriacutepides que de acordo com Nietzsche

(18721992) calca sua dramaturgia na moral socraacutetica moral que acaba por servir ao saber

meacutedico conforme exposiccedilatildeo de Lacan (1960-19611992)

Na equaccedilatildeo por noacutes proposta a medicalizaccedilatildeo estaacute para o deus ex machina assim como

a cena escolar estaacute para a cena traacutegica respeitando as devidas temporalidades Na cena traacutegica

os heroacuteis e heroiacutenas em sua relaccedilatildeo traacutegica com o desejo situam os limites entre a vida e a

morte os limites desejantes em si mesmos abrem outras vias de criaccedilatildeo para e por noacutes nos

comovem nos fazem sentir um plano mais aleacutem que ocorre na horizontalidade metoniacutemica do

desejo dando expressatildeo ao dionisiacuteaco este que pode ser subjugado na cena euripidiana por

um modo de conhecimento moralizante que surge ex machina

Sendo assim podemos aprender sobre a cena escolar com a anaacutelise da cena traacutegica onde

ocorrem encontros e desencontros onde se travam as relaccedilotildees que abrem ou natildeo espaccedilo ao

exerciacutecio do desejo conflitos entre seus agentes professores alunos funcionaacuterios Entendemos

que a medicalizaccedilatildeo eacute muito frequentemente um saber que se impotildee sobre a escola tal qual um

deus ex machina nas circunstacircncias em que seus agentes se esbarram com o limite de seu fazer

e delegam seu posto a um outro saber ndash reconhecido cientiacutefico justificado bem-vindo ndash o

saber meacutedico Cabe agrave medicalizaccedilatildeo confirmar que seu saber fala a partir desse lugar divino

legitimado para que uma moral se instaure uma moral sobre corpos inquietos e dispersos que

satildeo os corpos das crianccedilas com TDAH No proacuteximo capiacutetulo nos aproximamos da forma como

autores da interface educaccedilatildeo e psicanaacutelise transmitem essa questatildeo e tentamos entender os

efeitos de um discurso medicalizante a partir do lugar do deus ex machina na cena escolar

Queremos destacar aqui o meacutetodo que utilizamos na escrita deste trabalho que consiste

em tomar elementos estruturais de um campo outro para ler uma questatildeo inquietante de nosso

tempo Haacute uma transiccedilatildeo do mundo traacutegico ao ensinamento moral Dessa passagem que ocorreu

com os gregos pensamos que haacute uma estrutura possiacutevel de ser tomada para ler o que opera

162

nesse apelo ao saber meacutedico na escola Percorremos nosso caminho de pesquisa tomando um

acontecimento para ao analisaacute-lo destacar dele elementos estruturais que permitem fazer

emergir novos sentidos em um outro acontecimento

163

4 EDUCAR E SEUS IMPASSES

No primeiro capiacutetulo deste trabalho mostramos que o mal-estar que atinge as crianccedilas

em idade escolar nomeado de TDAH chegou a patamares epidecircmicos Diante disso haacute muitas

prescriccedilotildees de metilfenidato para esse problema que localizamos no corpo Nesse sentido a

alternativa que parecemos buscar para educar as crianccedilas desatentas e hiperativas de nosso

discurso eacute a medicalizaccedilatildeo diagnosticando e medicando os alunos reais considerando que haacute

segundo Mannoni (2003) as crianccedilas faladas e as crianccedilas em carne e osso A intervenccedilatildeo

medicamentosa sobre o aluno em pessoa produz efeitos sobre o aluno falado

Como dissemos este trabalho pretende se guiar pela psicanaacutelise com o que atraveacutes dela

tambeacutem portamos de limites Haacute para essa teoria um limite insuperaacutevel na educaccedilatildeo um

impossiacutevel do educar De acordo com Freud (19251996b) educar eacute uma profissatildeo como

psicanalisar e governar impossiacutevel Os trecircs fazeres se datildeo por meio da linguagem de palavras

que guardam em si contradiccedilotildees jaacute que podem constituir sentidos diversos na medida em que

vatildeo sendo encadeadas de acordo com quem fala e quem escuta

No entanto ainda que haja uma impossibilidade como lembra Leandro de Lajonquiegravere

soacute eacute possiacutevel educar com as palavras

[] natildeo haacute educaccedilatildeo que natildeo se sirva de uma liacutengua e portanto que natildeo pressuponha a linguagem Mais ainda como a estrutura da linguagem eacute de natureza remissiva ou seja trata-se de uma rede de diferenccedilas o transmitido via uma liacutengua estaacute condenado tanto a se repetir quanto a diferir [] Com efeito essa contradiccedilatildeo insuperaacutevel inviabiliza o fato do aprendiz vir a ser uma reacuteplica do mestre e natildeo como agraves vezes se pensa a mesmiacutessima transmissatildeo educativa [] Assim agrave medida que essa tensatildeo contraditoacuteria eacute equacionada a educaccedilatildeo vira um fato ou em outras palavras o equacionamento da impossibilidade de fabricar replicantes torna a priori possiacutevel que a educaccedilatildeo venha de fato a acontecer (LAJONQUIEgraveRE 1997 p 39)

O reconhecimento do limite das nossas palavras em direccedilatildeo ao outro pode permitir a

elaboraccedilatildeo de uma equaccedilatildeo para o educar na qual estaraacute contida a impossibilidade da educaccedilatildeo

O ponto em que se situa a crianccedila com TDAH eacute o ponto em que justamente se encontra um

limite ao fazer do professor pois a crianccedila natildeo se comporta do modo como o professor lhe

pede e eacute muitas vezes natildeo se comportando da forma esperada que ela busca de algum modo

atender inconscientemente agraves demandas do Outro agrave linguagem agrave qual estaacute submetida na

tentativa de articular seu lugar subjetivo em diferentes espaccedilos em casa e na escola No entanto

164

na medida em que sua forma de interpretar o que dela desejam estiver distante da conduta

compartilhada entre seus pares na escola ndash que ainda que de modos diferentes conseguem

acompanhar a rotina cumprir tarefas ndash ela assume uma posiccedilatildeo tal que potildee em evidecircncia o

limite do educar

A resistecircncia aos moldes que nossa cultura arranja representada pela crianccedila hiperativa

eou desatenta pode fazer alguns professores ou professoras chegarem ao ponto de fracasso de

sua profissatildeo A professora do caso apresentado poderia ter pensado ldquoSe com todo arranjo

escolar e com minhas palavras em lugar de autoridade a crianccedila natildeo se ordena haacute um limite

meu mas porque certamente haacute um impossibilidade nela o TDAHrdquo E com isso a professora

renunciaria a seu papel encaminharia a crianccedila para a coordenaccedilatildeo acionaria matildee e psicoacuteloga

O fracasso portanto para a escola tomada pelo discurso medicalizante parece estar no

organismo do aluno O aluno com TDAH eacute causa do fracasso do professor e se natildeo fosse por

ele tudo correria bem (assim como pensou inicialmente a psicoacuteloga da histoacuteria ldquose natildeo fosse

pela escola e sua parceira teria dado tudo certordquo)

Tomando por referecircncia uma anaacutelise sobre o fenocircmeno do fracasso escolar realizada

por Lajonquiegravere (1997) para quem o fracasso eacute fruto de uma tentativa sintomaacutetica de situar o

impossiacutevel da fala entendemos que no caso da crianccedila com TDAH acontece algo semelhante

ela eacute tomada como causa do impossiacutevel do fazer do professor e nesse sentido haacute um

impedimento agrave sua presenccedila em sala de aula e por consequecircncia agraves palavras norteadoras do

educador que podem ingressaacute-la na educaccedilatildeo escolar Se pedir para o aluno sair da sala

encaminhaacute-lo para coordenaccedilatildeo e por fim medicaacute-lo fosse o modo de equacionar a educaccedilatildeo

escolar ou ainda se esse transtorno fosse realmente o impossiacutevel da educaccedilatildeo com o qual

devemos lidar talvez hoje trabalhariacuteamos melhor com o mal-estar natildeo haveria educadores

adoecidos por conta disso e o mal-estar gerado pelas crianccedilas com TDAH natildeo existiria O

sintoma quando natildeo escutado tende a se repetir

O ponto de limite enunciado pela escola o que faz com que peccedila ajuda eacute produzido por

um discurso que se trama com o discurso medicalizante Natildeo eacute o mesmo lugar em que estaacute a

impossibilidade da educaccedilatildeo da qual fala a psicanaacutelise Entendemos que as coisas se formam

da seguinte maneira atraveacutes da psicanaacutelise Freud diz que o ato educativo se faz com o

impossiacutevel intriacutenseco ao educar A escola com o discurso medicalizante parece querer educar

sem o impossiacutevel Mas como natildeo se educa sem a impossibilidade intriacutenseca ao educar ndash

165

lembrando que se educa com palavras ndash a escola parece renunciar agrave sua tarefa com aquelas

crianccedilas que representam para ela um limite

Produzimos um impedimento que toma o lugar do impossiacutevel da linguagem justamente

porque natildeo podemos com ele O limite produzido em nosso discurso ou seja a

psicopatologizaccedilatildeo eacute um limite sanado pela medicaccedilatildeo que dispensa a implicaccedilatildeo com o ato

educativo

Natildeo eacute tarefa faacutecil se fazer suporte dos limites da linguagem pois disso depende que

reconheccedilamos os limites de nosso proacuteprio acontecer como sujeito De certo modo em casos

que natildeo se bastam com os dispositivos educativos que criamos que precisam de uma funccedilatildeo a

mais temos que como educadores reviver a cena da imposiccedilatildeo de nossos limites tomar o lugar

do mestre que sabe por delegaccedilatildeo e de certa forma pagar a diacutevida simboacutelica de nossa filiaccedilatildeo

a uma cultura (LAJONQUIEgraveRE 1997)

No entanto se natildeo conseguimos reconhecer na crianccedila um pertencimento a uma tradiccedilatildeo

cultural eacute possiacutevel que estejamos presos a um certo ideal Haacute crianccedilas que conseguem

comportar-se como alunos idealizados pela escola jaacute que conseguem controlar seus corpos

ficam quietas quando lhe pedem fazem as tarefas quando lhe pedem sem deixar eacute claro de

ter seus momentos de espontaneidade Mas haacute crianccedilas como as diagnosticadas com TDAH

que satildeo tomadas pelo vieacutes psicopatoloacutegico jaacute que natildeo correspondem ao padratildeo Eacute verdade que

noacutes estamos sempre em certa medida distantes de um ideal Nessa medida que se vecirc a

necessidade da medicaccedilatildeo ou natildeo Mas nunca eacute questionado o padratildeo ele eacute dado a priori

Parece-nos que a medicaccedilatildeo poderia fazer o esforccedilo de igualar ou pelo menos aproximar

a crianccedila hiperativa e desatenta ao ideal de comportamento tomando o lugar das palavras Que

sujeitos formamos assim Lajonquiegravere (1997) comenta que haacute em cada adulto uma fantasia que

se realiza ao ver sua infacircncia projetada em uma crianccedila de seu conviacutevio com a esperanccedila de

que ela escape das proibiccedilotildees e obrigaccedilotildees impostas pela realidade

[] cada vez que um adulto se endereccedila a uma crianccedila natildeo eacute improvaacutevel que experimente a queda de vir a poupaacute-la de todo tipo de restriccedilotildees Infelizmente se porventura assim o for a legalidade educativa natildeo pode menos do que acabar sendo embaralhada (LAJONQUIEgraveRE 1997 p 40)

No caso das crianccedilas medicadas haacute de certo modo uma suspensatildeo do dever do adulto

para com a crianccedila em transmitir-lhe palavras ordenadoras capazes de ajudaacute-la a articular seu

desejo agrave realidade agrave cultura compartilhada Eacute como se os adultos delegassem tal tarefa ao

166

especialista ou ao medicamento esperando que ele cumpra a funccedilatildeo da legalidade educativa

Tal forma de conduta livra o adulto de ter que reviver a sua proacutepria histoacuteria com a crianccedila e de

pagar a diacutevida simboacutelica de sua existecircncia

Como o ato educativo eacute possiacutevel na medida do equacionamento de uma diacutevida simboacutelica ou seja do reconhecimento de uma obrigaccedilatildeo por parte do adulto em posiccedilatildeo de mestre entatildeo constitui um paradoxo mortal pretender educar e ao mesmo tempo almejar que as leis percam sua validade perante as crianccedilas Em outras palavras todo ato educativo alimentado pela ilusatildeo de que a crianccedila possa de direito vir a driblar a lei estaacute a priori condenado ao fracasso uma vez que se auto-esvazia Isso eacute inevitaacutevel pois quando o adulto almeja poupar agrave crianccedila das restriccedilotildees inerentes em uacuteltima instacircncia agrave lei da vida humana abre a possibilidade de uma exceccedilatildeo que mina os proacuteprios fundamentos do ato educativo ndash o fato de o adulto estar engajado no mesmo apenas em cumprimento de um dever-ser existencial Natildeo haacute do que nos surpreender ou todos estamos obrigados por igual ou natildeo haacute lei (LAJONQUIEgraveRE 1997 p 40)

41 A medicalizaccedilatildeo como deus ex machina na escola e seus efeitos

O discurso medicalizante participa de nosso laccedilo social e portanto estaacute presente na

escola e em outros ambientes sociais e educacionais Nesse sentido produzimos deus ex

machina na escola a fim de encontrar uma soluccedilatildeo medicalizante para um problema escolar

que venha de um fora de uma exterioridade Para ocupar esse lugar chamamos para a cena

escolar profissionais alheios a ela a fim de resolver problemas que os estudantes manifestam

em seu percurso de aprendizagem No momento em que agentes da educaccedilatildeo como professores

e pedagogos importam para o centro da accedilatildeo uma figura que teraacute como incumbecircncia a resoluccedilatildeo

de um problema que os paralisa que interrompe o fluxo da rotina escolar portam-se como o

autor da trageacutedia que diante de um impasse apela ao deus ex machina eximindo-se da

responsabilidade sobre o uacuteltimo ato

Diante de quais impasses os educadores sentem-se impotentes sentem que chegaram a

um limite intransponiacutevel precisam ldquosair de cenardquo e dar lugar a algueacutem de fora Eacute possiacutevel dizer

que os mais comuns envolvem problemas de aprendizagem e disciplina apresentados pelos

estudantes que frequentemente satildeo nomeados com transtornos disfuncionais a partir de uma

linguagem meacutedica que adentra o discurso de alguns educadores Dessa maneira acreditamos

ser o saber psicopatologizante a figura que frequentemente assume a funccedilatildeo de deus ex machina

na escola instalando-se de tal forma que impossibilita a accedilatildeo e o saber dos educadores

167

Stolzmann e Rickes (1999) confirmam esse argumento ao dizerem que eacute bastante

frequente o encaminhamento de crianccedilas para consultoacuterios da aacuterea ldquopsirdquo por uma iniciativa da

escola As queixas satildeo geralmente em torno de problemas de aprendizagem e de

comportamento forma que alguns entraves da constituiccedilatildeo subjetiva tomam na vivecircncia

escolar e sobre os quais os pais dos alunos ateacute entatildeo natildeo haviam produzido uma questatildeo Dessa

maneira para as autoras ldquoas dificuldades de aprendizagem entraram na ordem do dia

Tornaram-se as vilatildes de todas as mazelas que assolam o cotidiano escolar bem como o das

famiacutelias aiacute envolvidasrdquo (STOLZMANN RICKES 1999 p 40)

Podemos entender que ao longo do seacuteculo XX a medicina desenvolveu-se de forma a

garantir maior longevidade agrave populaccedilatildeo e a diminuir o sofrimento fiacutesico as dores e riscos de

vida em procedimentos meacutedicos graccedilas ao aprimoramento de teacutecnicas e ao avanccedilo da produccedilatildeo

de novos medicamentos para doenccedilas orgacircnicas especiacuteficas No entanto Moyseacutes e Collares

(2015) apontam que esse progresso cientiacutefico do uacuteltimo seacuteculo trouxe tambeacutem uma outra

vertente (que desemboca na escola) responsaacutevel pela exacerbaccedilatildeo diagnoacutestica de doenccedilas

consideradas orgacircnicas e pela consequente prescriccedilatildeo indiscriminada de medicamentos

avalizada pelo crescimento da induacutestria farmacecircutica conforme discutimos no iniacutecio deste

trabalho As autoras datildeo destaque agrave descriccedilatildeo de doenccedilas neuroloacutegicas que ao longo de cem

anos tornaram-se tatildeo especiacuteficas que hoje encontramos na literatura meacutedica transtornos que

envolvem apenas a aprendizagem e o comportamento para os quais haacute um tratamento

medicamentoso previsto

De acordo com Moyseacutes e Collares (2015) o espaccedilo escolar brasileiro jaacute retratado pelo

saber meacutedico desde o iniacutecio do seacuteculo XX ainda recebe atenccedilatildeo dessa aacuterea por ser um campo

de investigaccedilatildeo de ldquopretensas disfunccedilotildees neuroloacutegicasrdquo e nesse sentido atualmente ldquoa quase

totalidade dos discursos medicalizantes referem-se agrave dislexia TDAH (transtorno do deacuteficit de

atenccedilatildeohiperatividade) TOD (transtorno de oposiccedilatildeo desafiadora) e outros supostos

transtornos inventados a cada dia pela Associaccedilatildeo Psiquiaacutetrica Americanardquo (MOYSEacuteS

COLLARES 2015 p 68)

Na medida em que o Manual Diagnoacutestico e Estatiacutestico de Transtornos Mentais o DSM

manual de referecircncia internacional que se encontra em sua quinta ediccedilatildeo recolhe sintomas

presentes no cenaacuterio educativo e os distribui em transtornos mentais eacute compreensiacutevel que tais

classificaccedilotildees despertem o interesse de educadores que observam seus alunos diariamente O

que parece erguer-se como efeito colateral da curiosidade docente eacute com frequecircncia uma

168

desautorizaccedilatildeo do saber proacuteprio aos professores perante um campo do conhecimento

consolidado e criterioso que se propotildee na condiccedilatildeo de saber exatamente o que se passa com o

aluno que apresenta dificuldades em seu percurso escolar Natildeo eacute raro que diante do saber

meacutedico o professor veja minguar o que pode seu saber pedagoacutegico e acabe por recorrer a um

recurso externo ao cenaacuterio educativo como forma de desdobrar os impasses proacuteprios a esse

cenaacuterio ndash qualquer semelhanccedila com o papel desempenhado pelo deus ex machina na trageacutedia a

partir de Euriacutepedes natildeo nos parece mera coincidecircncia

Entendemos que seja assim que expressotildees como ldquohiperativordquo ldquodesatentordquo ldquodisleacutexicordquo

entre outras adentram a cena escolar na tentativa de nomear o sintoma desconhecido que

irrompe no comportamento de dar conta e de entender o que acontece com o estudante que natildeo

aprende Fazem parte de um discurso social patologizante do espaccedilo educativo de nosso tempo

O diagnoacutestico no campo meacutedico pode servir de buacutessola a apontar o norte para

tratamentos e intervenccedilotildees medicamentosas visando agrave sauacutede do paciente No lugar de doentes

tendemos a confiar nos caminhos apontados pelo especialista pois sendo ele delegado do saber

da medicina conhece as causas de nosso padecimento orgacircnico e eacute capaz de indicar as melhores

alternativas para atenuar os sintomas e promover a cura da doenccedila A posiccedilatildeo que meacutedicos

assumem em nossa cultura geralmente eacute a de detentores do saber sobre o que causa nosso

sofrimento Eacute possiacutevel que a presenccedila do especialista na escola se decirc no mesmo arranjo talvez

ele natildeo assuma um novo lugar no jogo de relaccedilotildees entre os agentes da educaccedilatildeo lembrando

que ele eacute convocado na cena escolar a falar a partir desse lugar ou seja de saber sobre o outro

de legislador das accedilotildees educativas Sendo assim ao tomar os sintomas da educaccedilatildeo como

sintomas meacutedicos o discurso psicopatologizante pode nublar o horizonte e paralisar a

caminhada Por quecirc Porque o modo como se organiza o campo meacutedico natildeo eacute o modo como se

arranja o campo educativo

O ofiacutecio de educar eacute um ofiacutecio que depende da fala e das marcas que a palavra pode

produzir sobre quem fala e quem escuta e nesse sentido a educaccedilatildeo constitui um cenaacuterio em

que circulam afetos e significantes abertos a novos sentidos Significantes que emergem num

jogo de relaccedilotildees entre eu e o outro num espaccedilo em que surgem impasses que podem

paradoxalmente carregar em seu enunciado as pistas para o desenho de uma saiacuteda Mas para

que essa saiacuteda seja desenhada seraacute necessaacuterio apostar na dimensatildeo produtiva do conflito que

se natildeo pode ser resolvido de forma integral pode em sua dimensatildeo de impossiacutevel

apaziguamento absoluto relanccedilar o caminho e ver surgir prosseguimentos criativos para a

169

empreitada educativa Eacute desse modo que a arte traacutegica pode nos inspirar a tomarmos caminhos

desejantes

Maria Cristina Kupfer (1999) atenta para a relaccedilatildeo existente entre o sintoma e o discurso

social Eacute possiacutevel considerar o problema de aprendizagem como um sintoma social pois para

a autora ele estaacute inscrito no discurso social dominante do campo da educaccedilatildeo Ou seja os

sintomas manifestados pelos estudantes satildeo produzidos no interior das relaccedilotildees escolares a

partir dos significantes presentes no discurso social da escola e se devem propriamente agraves

interaccedilotildees entre os sujeitos nesse campo Desse modo o aluno natildeo pode ser o uacutenico responsaacutevel

por seu sintoma como se ele portasse individualmente uma doenccedila Eacute preciso entender o

sintoma como produto da cena escolar como um impasse que toca o fazer de todos que

constituem essa rede de relaccedilotildees Considerar o sintoma de aprendizagem escolar como uma

questatildeo individual eacute recalcar o sujeito ndash que se estrutura no laccedilo ao outroOutro ndash como

elemento crucial da equaccedilatildeo que pensa os avatares da relaccedilatildeo ensino-aprendizagem

Na esteira de uma perspectiva que toma o sintoma de aprendizagem como produccedilatildeo de

um indiviacuteduo vemos se instalar no cotidiano escolar uma verdadeira epidemia de diagnoacutesticos

de Transtornos de Hiperatividade com Deacuteficit de Atenccedilatildeo Bernardino (2015) atenta para o

efeito iatrogecircnico da atribuiccedilatildeo de um diagnoacutestico fechado para uma crianccedila que se encontra

num processo de construccedilatildeo de sua identidade jaacute que ela pode se agarrar a um traccedilo

identificatoacuterio que proveacutem de um saber anocircnimo cientiacutefico e imperativo e com isso natildeo

encontrar um lugar de filiaccedilatildeo na rede simboacutelica Dessa forma dizer para a crianccedila que

apresenta dificuldades na escola que ela eacute ou porta um transtorno de aprendizagem eacute contribuir

para a cristalizaccedilatildeo de seu problema jaacute que ldquoo sujeito sofre justamente dessa ausecircncia de

significantes familiares que lhe possam indicar um lugar na filiaccedilatildeordquo (BERNARDINO 2015

p 54)

De acordo com Kupfer (1999) os problemas de aprendizagem vivenciados pelos

estudantes no acircmbito da educaccedilatildeo escolar satildeo produzidos por um conflito um impasse a forma

de aprender do sujeito aluno a qual a autora nomeia de ldquoestilo cognitivordquo choca-se com o

discurso social dominante da escola o qual circunscreve o estilo do aluno em ideais de bom ou

mau desempenho ou comportamento Por exemplo um aluno que se demora na apreciaccedilatildeo de

uma leitura pode ser considerado um aluno lento que natildeo segue um ritmo de aprendizagem

idealizado pela escola pois este se pauta no discurso social da rapidez da prontidatildeo Na

170

tentativa de responder a esse ideal o estudante pode vir a fracassar jaacute que o seu estilo de

aprender natildeo encontra valor no acircmbito da escola

A epidemia diagnoacutestica eacute muitas vezes acompanhada de uma prescriccedilatildeo maciccedila do

metilfenidato mais conhecido pelo seu nome comercial Ritalina conforme discutido na

primeira parte deste trabalho Por se tratar de um psicotroacutepico atua no sistema nervoso central

e seus efeitos aparecem no comportamento do aluno que se modifica enquanto o remeacutedio agir

sobre o organismo

A prescriccedilatildeo maciccedila dessa medicaccedilatildeo acaba por desembocar em chistes entre os

professores que solicitam a adiccedilatildeo de Ritalina agrave caixa drsquoaacutegua da escola Essa forma jocosa de

se referir agrave entrada da medicaccedilatildeo na cena escolar imiscuiacuteda na aacutegua de forma anocircnima sem

estar incluiacuteda em qualquer relaccedilatildeo transferencial chama atenccedilatildeo Eacute a essa indicaccedilatildeo sem rosto

que recalca a dimensatildeo transferencial ndash e com ela o sujeito ndash em causa na prescriccedilatildeo de uma

soluccedilatildeo a um conflito que acaba por corresponder uma suspensatildeo da responsabilidade dos

atores escolares pela construccedilatildeo de uma saiacuteda aos conflitos que emergem no transcurso das

relaccedilotildees de ensino-aprendizagem

Assim o que importa atentar eacute para a posiccedilatildeo que o medicamento vem ocupar no

cotidiano escolar A medicaccedilatildeo entra na cena como a promessa de uma resoluccedilatildeo para o impasse

e acaba desresponsabilizando seus atores a crianccedila que estaacute aprendendo a suspender o interesse

em seu entorno para focar sua atenccedilatildeo na resoluccedilatildeo de uma tarefa de forma a manter-se atenta

mesmo quando algo curioso atravessa seu caminho ou ainda quando se frustra por natildeo conseguir

chegar a bom termo nas primeiras tentativas o professor que estaacute construindo alternativas para

fisgar o desejo de aprender da crianccedila a escola que estaacute elaborando as vias de servir de suporte

para ambos mantendo a aposta em que com o tempo se chegaraacute a um bom termo na empreitada

educativa mesmo quando o avanccedilo tropeccedila nos desequiliacutebrios proacuteprios agrave aprendizagem e

parece patinar sem sair do lugar A reflexatildeo deve recair sobre a forma como a medicaccedilatildeo pode

entrar no jogo de relaccedilotildees entre os atores escolares como um deus ex machina que economiza

o tempo necessaacuterio para que nas idas e vindas por uma arena conflituosa chegue-se a uma

ldquosoluccedilatildeordquo

Outro risco que se acaba por correr eacute de que o estudante se torne condicionado ao uso

do metilfenidato para conseguir ter um miacutenimo de controle sobre o seu corpo e sobre seu objeto

de atenccedilatildeo Ou seja a quietude e a atenccedilatildeo demandadas pela escola natildeo decantam do que se

vive na cena escolar mas satildeo artificialmente produzidas pelo organismo de um indiviacuteduo que

171

pode estar denunciando com seus sintomas a imperfeiccedilatildeo do sistema de ensino (MOYSEacuteS

COLLARES 2015)

Dany-Robert Dufour (2005) fala que quando haacute um fracasso da autoridade da palavra

na arte de educar a alternativa que surge eacute a da prescriccedilatildeo medicamentosa Eacute o que ocorre

quando a escola se abre ao discurso medicalizante a partir do qual pensa que se natildeo

conseguimos educar os alunos a saiacuteda eacute medicaacute-los Para o autor isso faria parte de uma

negaccedilatildeo geracional em que natildeo haacute responsabilidade pela transmissatildeo da cultura que pode

ocorrer pela via da palavra

Maneiro e Minnicelli (2013) chamam atenccedilatildeo para a tendecircncia que existe hoje nos

espaccedilos onde circulam crianccedilas e adolescentes de transmissatildeo pela via do orgacircnico e geneacutetico

ou seja do palpaacutevel e material jaacute que esse modo de transmitir alcanccedila uma melhor compreensatildeo

das pessoas Assim a infacircncia vai se enclausurando em diagnoacutesticos e tratamentos que a

excluem

Monteiro (2013) considera fundamental o jogo de relaccedilotildees formado no espaccedilo escolar

para pensarmos a indicaccedilatildeo de problemas de aprendizagem A autora nos ajuda a problematizar

o encontro do aluno com seu educador atribuindo grande importacircncia agrave posiccedilatildeo ocupada pelo

professor em sua funccedilatildeo de educar Se o professor se apresentar como algueacutem que deteacutem um

saber absoluto fechado que tem o intuito de transmitir apenas certezas e garantias o aluno

pode natildeo encontrar espaccedilo para duacutevidas uma brecha para produzir suas questotildees e assim a

educaccedilatildeo pode natildeo fazer sentido para ele Da mesma forma o aprender na escola pode natildeo ter

sentido pode natildeo propiciar uma experiecircncia de aprendizagem ao aluno quando o educador se

apresentar como algueacutem que natildeo sustenta o lugar de fala que se desautoriza e se sente impotente

em sua funccedilatildeo de transmissatildeo Assim de acordo com Monteiro (2013) muitos sintomas que

constituem o chamado fracasso escolar satildeo decorrentes do modo como o professor se relaciona

com o lugar de saber e de como ele o apresenta aos seus alunos

Talvez os sintomas do TDAH desatenccedilatildeo e hiperatividade deixem de causar

preocupaccedilatildeo quando o educador puder supor que haacute ocasiotildees em que algo de sua fala pode

fisgar os alunos em seu desejo de aprender produzindo como efeito a atenccedilatildeo dos estudantes agrave

sua aula mas que tambeacutem as crianccedilas podem aprender fora dos contornos de sua intervenccedilatildeo

em momentos em que estiverem desatentas agrave aula circulando pela sala ou conversando Ou

seja a escola pode ser rica em momentos nos quais o que desperta o interesse das crianccedilas estaacute

172

para aleacutem da sala de aula e dos conteuacutedos curriculares e tambeacutem nesses momentos eacute possiacutevel

aprender alguma coisa

Ainda que aqui estejamos tomando a figura do professor como equivalente agrave figura do

educador entendemos que o professor eacute um educador na medida em que sua funccedilatildeo social eacute

educar da mesma forma que qualquer adulto que se dirigir a uma crianccedila no intuito de educaacute-

la filiaacute-la a uma tradiccedilatildeo cultural tambeacutem poderaacute ser considerado educador jaacute que seu ato

poderaacute inscrevecirc-la num mundo de coacutedigos compartilhados

Acreditamos que eacute com a trama das relaccedilotildees escolares e das produccedilotildees do estudante no

espaccedilo educativo que ele pode encontrar uma forma de desenlace para os conflitos que

experimenta um desenlace que tambeacutem daacute lugar ao dionisiacuteaco na educaccedilatildeo o qual emana do

jogo entre agentes escolares Eacute possiacutevel pensar um desenlace criado com os personagens que

fazem o enredo sem que seja necessaacuteria a produccedilatildeo de um fora o qual denominamos deus ex

machina e que a medicalizaccedilatildeo vem a ocupar Como a histoacuteria poderia seguir para que o

desenlace se torne ldquoreenlacerdquo

42 A falta como operadora da criaccedilatildeo

Da apreciaccedilatildeo do traacutegico na trageacutedia antiga e do comentaacuterio de Lacan sobre a Antiacutegona

de Soacutefocles apresentados na segunda parte deste trabalho recolhemos a eacutetica psicanaliacutetica e o

operar significante que conduz agrave criaccedilatildeo ex nihilo Para situar este fabricar com o vazio Lacan

toma por metaacutefora a atividade do oleiro ao produzir o vaso talvez o significante mais antigo

modelado pelo humano Na accedilatildeo de fazer esse objeto material o oleiro acaba por criar um

vazio e a perspectiva de preenchecirc-lo o que lhe eacute inerente Nesse sentido o vaso eacute um lugar

vazio de significante que permite que se deslindem outros significantes A partir dessa

representaccedilatildeo entendemos que uma rede simboacutelica se sustenta com um nihilo criado por noacutes

contornado pelo nosso fazer pela nossa accedilatildeo

Lembramos aqui a noccedilatildeo grega de Khocircra apresentada do segundo capiacutetulo entendida

como lugar de passagem onde as coisas tomam forma e se transformam em outras receptaacuteculo

molde Derrida (1995) enfatiza sobretudo o vir a ser o vir a se tornar que tal conceito filosoacutefico

provoca observando a condiccedilatildeo de operar de moldar significantes as potencialidades de criar

uma terceira via um terceiro gecircnero um entrelugar sem secirc-lo

173

Conforme a trageacutedia Antiacutegona tomada como exemplo por Lacan (1959-19601997) ateacute

mesmo o lugar da intervenccedilatildeo divina pode ser situado de acordo com a perspectiva ex nihilo

lugar este situado na fala da personagem como lei simboacutelica que a governa Assim podemos

questionar a presenccedila de um deus ex machina como princiacutepio ordenador na medida em que natildeo

for fruto de nosso fazer e na medida em que natildeo entrar como significante na cadeia mas como

uma significaccedilatildeo total fechada

De acordo com Lacan a criaccedilatildeo ex nihilo remonta agrave criaccedilatildeo de um vazio como o que

decanta da trama significante que o sujeito mobiliza em sua emergecircncia Eacute justo esse vazio que

a resposta medicamentosa procura obturar sem considerar poreacutem que o funcionamento

simboacutelico depende de que esse vazio continue operativo para colocar a maacutequina da vida a girar

Manter a casa do enigma vazia natildeo preenchecirc-la com a resposta medicamentosa

depende da condiccedilatildeo construiacuteda pelo coletivo da escola ndash certamente natildeo se trata de uma

construccedilatildeo de responsabilidade individual do professor ndash de suportar por um periacuteodo de tempo

o impasse que a educaccedilatildeo de certo aluno inscreve e buscar constituir com ele um desenlace A

ldquosoluccedilatildeordquo certamente seraacute fruto de uma invenccedilatildeo e por conta disso por mais que possa orientar

novas invenccedilotildees natildeo teraacute o atributo de poder ser ofertada a todo e qualquer aluno

Por meio de um trabalhar conjuntamente na escola que se faz ex nihilo do nada que

considera os sintomas do TDAH como significantes de outra coisa que bordejam um vazio em

nossa fala que limita um campo possiacutevel e impossiacutevel do nosso dever podemos talvez ir mais

longe mais aleacutem do diagnoacutestico com nossas alternativas educacionais Assim conscientes da

nossa constituiccedilatildeo subjetiva em torno da falta encontramo-nos numa travessia desejante que

pode operar pela via da criaccedilatildeo Uma invenccedilatildeo ocorre pelo operar significante pela produccedilatildeo

de um vazio onde se assenta a condiccedilatildeo de uma experiecircncia subjetiva e o desejo de criar Se no

lugar do vazio o que resultar de nosso fazer eacute uma soluccedilatildeo sob a forma de um deus ex machina

representado por especialistas da sauacutede remeacutedios diagnoacutesticos roacutetulos enfim o que restaria

de condiccedilotildees para a emergecircncia do sujeito no campo escolar

Dissemos que o professor ao se relacionar com o saber de determinada maneira ao

endereccedilar suas palavras aos estudantes iraacute refletir no seu aprendizado no seu desejo pelos

estudos ou em sua dispersatildeo e desrespeito Natildeo queremos contudo responsabilizar

unilateralmente o professor por tudo o que se passa com seus alunos Apenas lembrar que seu

modo de se posicionar ndash do professor e dos outros agentes escolares ndash guarda a potecircncia de

incidir de forma consequente sobre seus alunos

174

Se em seu fazer no endereccedilamento de suas palavras ao aluno ele considerar a forma

como o estudante se apresenta na escola seja atraveacutes da atenccedilatildeo seja atraveacutes da dispersatildeo o

professor se coloca como responsaacutevel sobre os efeitos de seu ensino ainda que os efeitos natildeo

tenham sido necessariamente provocados por ele a princiacutepio Eacute possiacutevel que um estudante com

sintomas de TDAH natildeo esteja ainda fazendo parte do laccedilo social proporcionado pela escola e

isso pode ser em decorrecircncia das questotildees mais diversas No entanto se o professor em seu

fazer agir com o aluno de modo a tomar os sintomas como efeito de sua fala ele pode estar

oferecendo uma possibilidade de laccedilo dando lugar ao sintoma O estudante por sua vez

encontra um outro a quem endereccedilar seu sofrimento e pode com isso sentir-se acolhido

escutado

Sabemos que um educador autorizado em seu saber e em seu fazer natildeo conquista tal

tarefa sozinho precisa de suporte da instituiccedilatildeo de ensino onde trabalha precisa de respaldo e

respeito da comunidade e das poliacuteticas puacuteblicas em educaccedilatildeo A questatildeo natildeo se resolve

facilmente Justamente por conta disso precisamos estar atentos aos deī ex māchinīs que se

instalam na cena escolar com a promessa de resoluccedilatildeo das dificuldades de aprendizagem

quando na verdade privam a possibilidade dos educadores e dos estudantes de descobrirem

juntos uma forma de desenlace ao impasse o que corresponderia no cenaacuterio educativo a uma

forma de laccedilo social na escola

O que nos resta o que a psicanaacutelise nos autoriza a fazer ndash o que atraveacutes da arte de seu

curvar(-se) agrave criaccedilatildeo do poeta como Freud e Lacan fazem diante dos tragedioacutegrafos gregos a

psicanaacutelise nos ensina a fazer ndash eacute construir um saber natildeo sobre o outro mas com o outro e

assim jaacute que Euriacutepides natildeo eacute o mais saacutebio dos poetas mas o segundo mais saacutebio haacute

possibilidade de encontramos as brechas os furos as vias abertas de criaccedilatildeo desejante em suas

peccedilas E nos desafiamos a pensar uma em especial que natildeo eacute qualquer uma mas aquela citada

por Aristoacuteteles aquela que apresenta uma exceccedilatildeo na apariccedilatildeo do deus ex machina quando agrave

espera da puniccedilatildeo divina somos surpreendidos pela divinaccedilatildeo de um ser humano uma mulher

onde talvez podemos encontrar um resiacuteduo do dionisiacuteaco entre elucubraccedilotildees filosoacuteficas

Estamos falando de Medeia

175

5 MEDEIA

51 ldquoAndarilha de incertas geografiasrdquo

De morada e cidade filhos natildeo careceraacute nenhum dos dois ausente a matildee apoacutes o adeus carpido Vou-me andarilha de incertas geografias frustracircnea na visatildeo do regozijo sem lhes doar adorno para o leito nupcial sem soerguer a tocha ao ceacuteu (Medeia vv 1021-1027)

Os estrangeiros deve-se sempre acolhecirc-los Eacute o que dizia a lei da hospitalidade

compartilhada entre gregos Tal lei eacute narrada no episoacutedio da Odisseia em que criados perguntam

ao rei Menelau se devem receber estrangeiros receacutem-chegados ou indicar a casa de algum

vizinho Indignado com a interrogaccedilatildeo o rei ordena que abram as portas sem nem mesmo

perguntar quem eram ou o que queriam os visitantes Um estrangeiro explica Menelau pode

ser um deus disfarccedilado e nesse sentido oferecer hospitalidade eacute tambeacutem respeitar os deuses

Jeanne Marie Gagnebin (2010) nos ajuda a estender a compreensatildeo da hospitalidade

grega Os estrangeiros acolhidos pelos gregos como os de que trata o episoacutedio da Odisseia

pertenciam aos limites geograacuteficos dominados pelos mesmos deuses falavam idioma

semelhante e se submetiam agrave liacutengua e agrave bondade do rei que lhes oferecia abrigo o que contribuiacutea

para reforccedilar seu poder e suas melhores qualidades Nesse sentido o acolhimento do estrangeiro

eacute possiacutevel na medida em que a identidade dos gregos natildeo estiver ameaccedilada pelo outro O que

poderia abalar as estruturas do mundo grego A descoberta de povos regidos por outras crenccedilas

outra liacutengua e cultura tatildeo desenvolvida quanto a grega como eacute o caso dos egiacutepcios Deparar-

se com algueacutem de lugar e de costumes diferentes dignos e vaacutelidos para seu mundo pode causar

no indiviacuteduo a experiecircncia de tambeacutem ver-se como outro estrangeiro para si Afinal o que eacute

mesmo e comum para o outro natildeo o eacute para mim e vice-versa Como restituir os limites e

contornos de minha identidade abalados pela presenccedila do outro

O filoacutesofo Soacutecrates jaacute mencionado neste trabalho como importante influecircncia na

trageacutedia de Euriacutepides eacute condenado agrave morte por sua habilidade em questionar preceitos morais

e costumes Define-se a si mesmo em Apologia de Soacutecrates como um estrangeiro em Atenas

176

ainda que fosse seu fiel cidadatildeo O que podemos entender desse duplo sentimento Eacute possiacutevel

sentir-se um outro em sua proacutepria casa Eacutedipo eacute um homem que preenche essas condiccedilotildees

A heroiacutena Medeia da trageacutedia de Euriacutepides de mesmo nome vive a radicalidade desta

dupla posiccedilatildeo estrangeira em Corinto geograacutefica e culturalmente persona non grata em sua

paacutetria Coacutelquida por ter traiacutedo o rei seu proacuteprio pai Na cidade grega para onde se mudara com

Jasatildeo vive a amargura da traiccedilatildeo do marido e se depara com o conflito de tornar-se uma cidadatilde

grega ou ser uma baacuterbara no sentido mais temido para os coriacutentios Quem eacute Medeia

Gagnebin (2010) lembra o socioacutelogo Georg Simmel para quem um estrangeiro eacute um

andarilho potencial ldquoo que introduz assim uma potencialidade viajante no seio da fixidez

justamente porque ele natildeo se contenta mais em passar mas se estabelece em um lugar que

como se diz natildeo eacute o seu abalando a estabilidade desse proacuteprio lugarrdquo (Gagnebin 2010 p 42)

A estrangeira Medeia perturbava a paz de Corinto pelas notiacutecias que circulavam sobre seu

passado pelo medo de que ela viesse a causar o mal novamente Nesse sentido apoacutes o abandono

de Jasatildeo ela eacute convidada a se retirar ou seja exilada com a cordialidade grega Entre o luto de

ser uma boa esposa e os pensamentos de vinganccedila decorrentes da fuacuteria pela traiccedilatildeo Medeia

coloca em evidecircncia sua estrangeiridade Percebe o quanto se deixou enganar por Jasatildeo e pelos

coriacutentios percebe em si uma cidadatilde quase grega oscila entre desejar a proacutepria morte e realizar

a mais terriacutevel das vinganccedilas Como sustentar sua pertenccedila sem corresponder ao que desejam

dela

Por um momento Medeia pensa em ir embora deixar os filhos na esperanccedila de que

sejam aceitos em Corinto e profere os versos que destacamos na epiacutegrafe O lugar de Medeia

talvez seja esse de ser andarilha potencial andarilha de incertas geografias sem paacutetria na

radicalidade de ser uma outra

De acordo com o tradutor da versatildeo biliacutengue consultada neste trabalho Trajano Vieira

(2010) a personagem Medeia aparece na mitologia grega nas Argonaacuteuticas que contam sobre

expediccedilotildees gregas no mar Negro Eacute atraveacutes do escritor alexandrino Apolocircnio de Rodes que

viveu no seacuteculo III aC que conhecemos a narrativa do mito de Medeia e dos feitos heroicos

de Jasatildeo

Segundo o mito Jasatildeo filho do rei da Tessaacutelia tem seu trono usurpado pelo tio quando

seu pai adoece Seu tio Peacutelias lhe confere uma importante tarefa como condiccedilatildeo de lhe entregar

o reinado recuperar uma reliacutequia de sua famiacutelia que estava sob a posse do rei Eeta da Coacutelquida

Tratava-se do tosatildeo velocino ou velo de ouro pelagem de um carneiro que tem propriedades

177

maacutegicas Quando Jasatildeo chega agrave terra estrangeira o rei Eeta filho do Sol e pai de Medeia

promete devolver a Jasatildeo o velo de ouro se o heroacutei cumprir trecircs difiacuteceis tarefas lavrar um campo

com dois touros monstruosos e semear no campo lavrado os dentes de um dragatildeo Desse plantio

nasceriam guerreiros os quais deveria derrotar Medeia apaixonada ajuda Jasatildeo no

cumprimento das tarefas atraveacutes de sua misteriosa sabedoria na produccedilatildeo de venenos

O rei da Coacutelquida furioso natildeo quer entregar o precircmio mas Medeia consegue mais uma

vez atrapalhar os planos do pai Oferece ao dragatildeo que guardava o velo de ouro uma substacircncia

que o faz dormir Jasatildeo e Medeia conseguem assim fugir para a Tessaacutelia depois de o viajante

ter pedido a princesa em casamento As nuacutepcias ocorrem durante a viagem Apsirto o irmatildeo da

moccedila persegue o casal pelo mar e eacute assassinado pelos argonautas com a ajuda de Medeia Ela

joga o corpo do irmatildeo ao mar para que seu pai se ocupe de buscaacute-lo em vez de persegui-la Na

terra de Jasatildeo Medeia faz com que as filhas do rei na esperanccedila de rejuvenescer o pai matem-

no envenenado Com isso os dois partem e encontram refuacutegio na cidade de Corinto Eacute nesse

lugar que se inicia a accedilatildeo cecircnica da trageacutedia de Euriacutepides Medeia cujo desenrolar conduz

Medeia a assassinar seus proacuteprios filhos o que faz com que fique conhecida como a terriacutevel

matildee infanticida Aleacutem da trageacutedia de Euriacutepides haacute outras versotildees contemporacircneas que

apresentam outras Medeias

Na trageacutedia musical de Chico Buarque Gota drsquoaacutegua haacute a adoccedilatildeo da invenccedilatildeo de

Euriacutepides cometida pela personagem Joana referecircncia clara agrave mulher traiacuteda Medeia Haacute

tambeacutem uma importante versatildeo cinematograacutefica de Pier Paolo Pasolini que se passa na mesma

eacutepoca da peccedila de Euriacutepides e traz o contraste entre o mundo miacutetico de Medeia e o mundo

pragmaacutetico de Jasatildeo

As duas obras citadas satildeo bastante conhecidas mas sabemos que existem outras

encenaccedilotildees propostas de tempos em tempos que optam ou natildeo pelo filiciacutedio O espetaacuteculo

Medeia Vozes da Tribo de Atuadores Oacutei Noacuteis Aqui Traveiz opta por apresentar uma versatildeo

do mito em que Medeia natildeo comete o filiciacutedio Enfatiza as diferenccedilas culturais entre a Coacutelquida

oriental e a Greacutecia ocidental aleacutem de questionar as relaccedilotildees de poder implicadas na

transmissatildeo do mito por Euriacutepides que coloca Medeia como a baacuterbara infanticida a ser banida

Em contraponto a outras versotildees o espetaacuteculo a toma como o bode expiatoacuterio perseguido por

aqueles que detecircm o poder

Na peccedila Medeia diante dos filhos mortos apedrejados pelos cidadatildeos de Corinto fala

que os coriacutentios a acusam de ela mesma ter matado os filhos ldquoQuem acreditaraacute em mimrdquo

178

pergunta ao puacuteblico que passa repensar sobre o mito que conhece Vale dizer que o grupo

teatral inspirou-se no livro homocircnimo da escritora alematilde Christa Wolf para criar a encenaccedilatildeo

Wolf rejeita que Medeia tenha cometido qualquer um dos crimes de que eacute acusada parriciacutedio

fratriciacutedio filiciacutedio entre outros A escritora sustenta que a imagem de uma mulher vingativa

e cruel foi mantida durante milecircnios como forma de apagar a imagem de uma feiticeira poderosa

(MELO 2014)

A encenaccedilatildeo da Tribo de Atuadores Oacutei Noacuteis Aqui Traveiz inova natildeo apenas por livrar

Medeia dos crimes mas tambeacutem na forma como propotildee o desenlace Em vez de sair de cena ex

machina conforme a versatildeo euripidiana protegida por Heacutelios solar Medeia eacute condenada a

vagar sem rumo sem louvores a seu caraacuteter sem aplausos do puacuteblico (pois natildeo retorna para

recebecirc-los) Sai de cena como andarilha errante num lugar de exiacutelio eterno ou como propotildee

Melo (2014) condenada ao natildeo lugar Mesmo destino sem registro de Eacutedipo

52 Medeia de Euriacutepides

A peccedila do tragedioacutegrafo se passa em Corinto A princesa estrangeira e Jasatildeo satildeo casados

e tecircm dois filhos Contudo Jasatildeo trai o laccedilo que tinha com Medeia ao noivar com Glauce filha

do rei Creonte Medeia eacute expulsa pelo rei pois ele a considera uma grande ameaccedila

principalmente agrave sua filha Apesar de ter chegado a Corinto como esposa de Jasatildeo um grego

ela natildeo havia deixado de ser estrangeira O rei reconhece que haacute nela uma cultura diferente

daquela compartilhada entre as pessoas do lugar Haacute um receio de que ela venha causar um mal

jaacute que tem um saber de uma ordem desconhecida conhece o poder das plantas e com elas sabe

produzir remeacutedios e venenos Aleacutem disso no passado foi uma pessoa destrutiva Justificado por

tais ameaccedilas Creonte a manda embora

De acordo com o Dicionaacuterio etimoloacutegico da mitologia grega (2013 p 208) o termo

ldquoMedeiardquo deriva do verbo μήδομαι ldquomeditar um projeto prepararrdquo e significa portanto ldquoa que

medita (um projeto)rdquo De acordo com Trajano Vieira (2010) Medeia deriva de ldquoimaginarrdquo

ldquotramarrdquo ldquoprepararrdquo e tambeacutem de ldquodesiacutegniordquo e ldquopensamentordquo

O que se sucede na histoacuteria Medeia solicita a Creonte apenas mais um dia para

organizar sua partida e pedir a Jasatildeo que aceite ficar com os filhos Apela a Creonte no lugar

de pai para que tenha compaixatildeo Com isso o rei concede mais um dia e Medeia ldquoaquela que

medita que arma um planordquo arranja sua saiacuteda Consegue exiacutelio com o rei Egeu com uma troca

179

que lhe propotildee ldquomeus faacutermacos daratildeo agrave luz os filhos de um sem-filhosrdquo Envenena Glauce e

Creonte que morrem mata os seus dois filhos anuncia a Jasatildeo seu triste fim e sai de cena ex

machina

De acordo com Guinsburg (1992) haacute pelo menos dois erros capitais cometidos por

Euriacutepides em sua trageacutedia Medeia Um quanto agrave forma como nos aponta Aristoacuteteles O outro

aceito pelo filoacutesofo grego mas criticado por Nietzsche eacute uma afronta agrave tradiccedilatildeo miacutetica O

primeiro diz respeito ao desenlace O segundo eacute quanto ao filiciacutedio

Quanto ao desenlace da accedilatildeo Aristoacuteteles comenta o seguinte ldquoEacute pois evidente que

tambeacutem os desenlaces devem resultar da proacutepria estrutura do mito e natildeo do deus ex machina

como acontece em Medeia []rdquo (Poeacutetica XV 1454a 33-36) Acreditamos no entanto com

base em Rebelo (1995) que existe uma diferenccedila importante nesse desenlace quando quem

ocupa o lugar do deus moralizador eacute uma pessoa justamente a heroiacutena do drama Quem entra

em cena atraveacutes da maacutequina eacute a proacutepria Medeia que embora presente desde a primeira cena

(res)surge ao fim na carruagem do Sol com os corpos dos filhos O ex-marido Jasatildeo a

abandonara com a prole para casar com a filha do rei Apesar de ter cometido um ato repulsivo

e impensaacutevel entre as mulheres de Corinto como diz Jasatildeo Medeia consegue ir embora sem

ser atingida por seus inimigos e na posiccedilatildeo divina que ocupa dita acontecimentos futuros

Quanto ao segundo erro natildeo existe referecircncia no mito de Medeia de origem bastante

remota sobre o assassinato dos proacuteprios filhos cometido por ela De acordo com Trajano Vieira

(2010) tradutor de Medeia o filiciacutedio foi uma criaccedilatildeo do tragedioacutegrafo Ou seja por alguma

razatildeo Euriacutepides considerou que seria cabiacutevel que Medeia matasse os filhos que teve com Jasatildeo

Trajano Vieira (2010) conta que eacute muito provaacutevel que Euriacutepides tenha proposto o

filiciacutedio inovando em sua concepccedilatildeo da histoacuteria No mito compartilhado entre os gregos antes

da apresentaccedilatildeo da peccedila euripidiana em 431 aC Medeia fugia de Corinto apoacutes assassinar a

princesa prometida a Jasatildeo e o rei Creonte Assim como apresenta a peccedila Medeia Vozes os

cidadatildeos eacute que matavam as crianccedilas e natildeo a matildee Aristoacuteteles menciona que Euriacutepides

modificava o mito o que eacute uma escolha que fere os preceitos de uma trageacutedia ideal a qual deve

ser fiel ao mito mas ainda assim trata-o como o mais traacutegico dos poetas provavelmente por

ousar trazer agrave cena os limites aos quais os heroacuteis podem chegar com suas accedilotildees Desse modo

na versatildeo apresentada por Euriacutepides o assassinato cometido pela protagonista aparece

superficialmente como uma vinganccedila decorrente da traiccedilatildeo do marido

180

521 Hoacuterkos

De acordo com Vieira (2010) natildeo haacute uma justificativa passional no crime natildeo haacute ciuacuteme

de Medeia em relaccedilatildeo a Jasatildeo pois natildeo fica expliacutecita uma ligaccedilatildeo afetiva forte entre os dois

pelo menos na peccedila euripidiana Medeia mata as crianccedilas assim como comete outros

assassinatos porque Jasatildeo quebra um acordo um comprometimento que os dois tinham

firmado desde a conquista do velo de ouro ldquoNatildeo eacute da manifestaccedilatildeo afetiva que Medeia sente

falta mas da manutenccedilatildeo do compromisso A traiccedilatildeo decorre do fato de o ex-esposo natildeo

preservar o conjunto de favores proporcionados por ela em seu peacuteriplo bem-sucedidordquo

(VIEIRA 2010 p 158) O peacuteriplo bem-sucedido eacute relembrado por Medeia em seu primeiro

diaacutelogo com Jasatildeo apoacutes o edito de expulsatildeo realizado por Creonte

[] quem salvou tua vida os gregos sabem todos os nautas de Argo quando em touros fogo- -arfantes impuseste o jugo quando semeaste o campo que abrigava a morte E a serpente-vigia que abraccedilava com a rosca de aneacuteis o velo de ouro assassinei e fiz jorrar a luz Traiacute morada e pai ao vir contigo [] Homuacutenculo me pagas como Enganando-me ao leito ainda virgem depois que procriei (Medeia vv 475-490)

Qual o motivo da fuacuteria de Medeia com Jasatildeo O fato de ele natildeo ter cumprido a sua

promessa natildeo ter feito exatamente o que Medeia esperava dele Medeia queria que Jasatildeo tivesse

domiacutenio absoluto sobre as suas palavras e accedilotildees Natildeo fica expliacutecito na peccedila precisamente o que

se passou entre os dois na Coacutelquida natildeo haacute uma prova de Jasatildeo dizendo que ficaraacute com Medeia

para sempre que a assumiraacute como digna esposa na Greacutecia e honraraacute eternamente o leito

matrimonial se ela o ajudar em sua difiacutecil jornada Mas eacute assim que Medeia toma a proposta

de Jasatildeo e eacute assim que ela lhe cobra Rompe seus viacutenculos com sua terra e com sua famiacutelia para

constituir novos laccedilos com Jasatildeo em um novo lugar Lembramos Antiacutegona que cumpre com

seu juramento em relaccedilatildeo ao pedido do irmatildeo Polinices o de ser enterrado agrave custa de sua

proacutepria vida honrando as leis natildeo escritas

181

Como Jasatildeo natildeo cumpre a promessa da forma como ela espera ou seja um acolhimento

em solo estrangeiro e o lugar de esposa Medeia se volta para os filhos com uma forccedila destrutiva

vislumbrando neles o que tem que suportar como resto de suas escolhas e de seus planos

ldquoDobrou-me o mal mirar os dois natildeo eacute possiacutevelrdquo ela diz (Medeia vv 1076-1077) Essa eacute uma

maneira de entender o infanticiacutedio

De acordo com Oliveira (2007) o significante principal do drama de Euriacutepides que

amarra todos os outros da peccedila eacute hoacuterkos cujo significado eacute ldquojuramentordquo ou ldquoaquilo que

prenderdquo Ou seja eacute um significante que exerce na obra a funccedilatildeo de amarraccedilatildeo da mesma forma

que isso se refere ao seu significado Para Oliveira o campo do hoacuterkos estaacute fora dos domiacutenios

da Lei que organiza o mundo mitoloacutegico sob o ordenamento do grande Zeus Ou seja dentro

da dimensatildeo do juramento todos os acordos satildeo ainda precaacuterios pois estatildeo na iminecircncia de

natildeo serem cumpridos Com isso

[] a jura ou juramento pertence a um campo onde a Lei ainda natildeo estaacute propriamente instituiacuteda um campo onde ainda natildeo haacute o bem e o mal um campo para aqueacutem ou para aleacutem do bem e do mal e por conseguinte para aqueacutem ou para aleacutem da proacutepria Lei [] Eacute nesse contexto que temos que entender a posiccedilatildeo de Medeia Ela natildeo conhece propriamente o campo da Lei Ela jaacute tinha dado muitas provas disso antes de chegar a Corinto e continuaraacute dando provas disso mesmo quando de laacute partir A uacutenica coisa que organiza sua existecircncia e que lhe daacute um lugar na cidade ela que eacute sem cidade eacute a jura que Jasatildeo lhe fez (OLIVEIRA 2007 p 66)

Dessa forma na medida em que Jasatildeo natildeo honra a jura que tem com Medeia ou seja o

compromisso que tinha firmado por ter recebido ajuda na conquista do velo de ouro ela

experimenta um terriacutevel sentimento a destruiccedilatildeo de tudo o que havia constituiacutedo a partir da

uniatildeo com ele Medeia natildeo eacute grega eacute da Coacutelquida paiacutes baacuterbaro Ela eacute estrangeira sob o ceacuteu

grego e seu casamento com Jasatildeo eacute garantido apenas pelo hoacuterkos Quando desonrada por Jasatildeo

para Medeia natildeo resta garantia alguma a natildeo ser buscar um novo laccedilo que a sustente Oliveira

(2007) demarca os momentos da peccedila em que existe menccedilatildeo agraves juras de forma que organizam

a estrutura dramaacutetica a nutriz e o coro citam o juramento de Jasatildeo chamam Medeia de

desonrada Medeia acusa Jasatildeo de desonrar a diacutevida que deve a ela Medeia clama agrave deusa

Tecircmis guardiatilde das juras para interceder pelo seu destino o que tambeacutem eacute frisado pelo coro e

pela nutriz A respeito disso Oliveira (2007) argumenta que Medeia soacute pode reclamar aos

deuses e natildeo aos homens por seu compromisso desonrado Segundo ele como a jura natildeo

pertence ao campo simboacutelico da Lei a mulher precisa exigir o cumprimento da promessa no

182

campo do real o campo de onde os deuses podem intervir de modo inesperado tatildeo inesperado

quanto o seu ato de matar os proacuteprios filhos

Podemos entender que as accedilotildees de Medeia de matar seus filhos e em seguida fugir na

carruagem de Apolo estatildeo interligadas tomar ambas como inovaccedilotildees do mito O que nos

parece como leitores da peccedila eacute que fazia parte do jogo de relaccedilotildees entre os personagens que

Medeia cometesse sim uma accedilatildeo contra o descumprimento do hoacuterkos por parte de Jasatildeo visto

que ela abandona sua paacutetria ajuda-o na captura da pele dourada do carneiro alado escondida

pelo seu pai ajuda-o tambeacutem a vingar-se do tio tirano ndash todos esses satildeo acontecimentos

anteriores agrave peccedila e aqui caberia caso o autor assim desejasse o recurso deus ex machina de

acordo com a esteacutetica aristoteacutelica jaacute que isso natildeo eacute capaz de modificar o rumo da histoacuteria Mas

quem introduz a peccedila eacute a nutriz mulher cuidadora das crianccedilas registrando outra marca da

inovaccedilatildeo de Euriacutepides ou seja dar voz agraves pessoas sem prestiacutegio social

Aleacutem disso Medeia eacute expulsa de Corinto pelo rei No primeiro diaacutelogo que tem com

Jasatildeo eacute transparente fala de seu oacutedio e desejo de vinganccedila Em posterior conversa com o coro

de mulheres fala em matar a todos e fugir com os filhos mas sabe que natildeo seria acolhida em

lugar algum Ousamos dizer que um dos caminhos possiacuteveis para desenlace da peccedila buscando

o ideal aristoteacutelico seria aquele em que Medeia mataria noiva e pai e tentaria fugir com os

filhos As crianccedilas acabariam mortas pelos cidadatildeos conforme o mito Medeia acabaria morta

ao tentar entrar em nova cidade ou quem sabe tomaria algum veneno ao saber da morte dos

filhos e Jasatildeo sentiria grande dor e arrependimento destinado a uma vida infeliz Essa possiacutevel

versatildeo preservaria o mito e apresentaria a linha de accedilatildeo em decorrecircncia da desmedida de Jasatildeo

As accedilotildees de Medeia mostrariam seu caraacuteter vingativo e furioso e estariam de certa forma

contornadas pelos limites da trama

522 Sopheacute

A escolha de Euriacutepides eacute outra Medeia engana Jasatildeo e Creonte quanto a suas intenccedilotildees

enquanto arma o seguinte plano promete a Egeu um filho em troca de acolhimento em sua

terra Depois disso envia as crianccedilas com presentes envenenados para a princesa que

educadamente os aceita e os veste Ao ver a filha agonizar Creonte tenta tirar-lhe o veneno

mas tambeacutem morre envenenado Haacute expectativa de Medeia de que as crianccedilas tambeacutem fossem

183

acidentalmente atingidas pelo veneno No entanto o personagem que as conduz ao paccedilo real

o pedagogo frustra-a ao revelar que os meninos estatildeo a salvo

Aqui a histoacuteria poderia tomar novo rumo Bem poderia Medeia nesse ponto fugir ilesa

com os filhos Jasatildeo natildeo estaria vingado Natildeo para ela Apoacutes momentos de oscilaccedilatildeo em que

considera preservar a vida dos filhos Medeia parece despertar de repente de uma escolha que

natildeo reconhece como sua

Prejudicar crianccedilas em prejuiacutezo do pai natildeo dobra o mal Faraacute sentido Comigo natildeo adeus projetos aacuterduos O que se passa em mim Acertarei O escaacuternio de inimigos impunidos Que infacircmia ouvir de mim reclamos tiacutepicos de gente frouxa Ao rasgo de ousadia (Medeia vv 1046-1052)

Alegando atingir Jasatildeo pois supotildee que natildeo haveria dor maior do que esta a matildee decide

matar as crianccedilas Como os dois natildeo satildeo atingidos pelo veneno que levam agrave noiva do pai

Medeia acaba por mataacute-los com um punhal antes de sair de cena ex machina

Vieira (2010 p 158) comenta a raridade de tal desenlace ldquoEacute sem duacutevida impressionante

tal desfecho imagem que sugere antes a luminosidade e o futuro alvissareiro do que o pesar e

a puniccedilatildeo pelo ato macabro que estamos acostumados a ler nos epiacutelogos traacutegicosrdquo

Numa outra passagem Vieira (2010) comenta o quatildeo inusitado eacute o recurso do deus ex

machina em tal peccedila pois natildeo eacute propriamente um deus que desce do ceacuteu para exercer o

julgamento final e a puniccedilatildeo sobre os personagens como ocorria costumeiramente em trageacutedias

que terminavam com esse recurso ldquoComo interpretar esse final surpreendente de que estaacute

ausente o mecanismo de puniccedilatildeo divina [] A autonomia humana nos sugere um universo

novo em que a puniccedilatildeo natildeo eacute decorrecircncia necessaacuteria da accedilatildeo desmedidardquo (VIEIRA 2010 p

170)

Estaria mesmo ausente o mecanismo da puniccedilatildeo divina A accedilatildeo impune de Medeia eacute

desmedida ou fora muito bem arquitetada O assassinato dos filhos natildeo foi cometido num

momento de fuacuteria de descontrole das paixotildees mas executado num momento propiacutecio apoacutes o

envenenamento de Glauce apoacutes Medeia ter encontrado um lugar de exiacutelio junto a Egeu no seu

uacuteltimo dia em Corinto Eacute Medeia que encarna tal mecanismo divino ela eacute o deus ex machina

que age muito antes de subir agrave carruagem de Apolo Vieira (2010) parece concordar ao

184

compreender que Euriacutepides o proacuteprio autor eacute quem age atraveacutes de Medeia Tem-se a impressatildeo

de que ela eacute o ponto de articulaccedilatildeo de toda a peccedila pois os personagens agem conforme suas

vontades e sofrem de acordo com suas decisotildees Medeia tem um caraacuteter farsesco em que a

protagonista consegue manipular todos agrave sua volta iludi-los com intenccedilotildees falsas e ser bem-

sucedida em seus planos escapando ilesa

Vieira (2010) aponta que a ciecircncia de Medeia coincide com a ciecircncia de Euriacutepides Isso

aparece atraveacutes do significante sopheacute cujo radical estaacute presente 23 vezes no texto A

protagonista eacute assim denominada pelos outros personagens e por si mesma jaacute que reivindica a

si esse significante e por ele comete seus atos macabros Sopheacute de acordo com Vieira (2010)

eacute tambeacutem utilizado para designar caracteriacutesticas que apontam o autocontrole e a ponderaccedilatildeo de

Medeia aleacutem de indicar criaccedilatildeo e inovaccedilatildeo Eacute nesse ponto que a sua sophiacutea estaacute atrelada agrave de

Euriacutepides pois o ato ldquoinovadorrdquo de Medeia eacute tambeacutem o ato inovador do tragedioacutegrafo O

filiciacutedio ato destrutivo eacute um ato inaugurador inconcebiacutevel e impraticaacutevel pelos demais

cidadatildeos Assim aponta Vieira (2010)

Natildeo haacute nada de heroico em apunhalar crianccedilas indefesas mas natildeo eacute isso que Medeia reivindica O ineditismo de sua accedilatildeo passional confunde-se com o argumento dramaacutetico De certo modo Euriacutepides fala pela voz de sua personagem ao imaginar um enredo que se destaca pela novidade Nesse sentido o autor pode ser considerado um escritor moderno O ineditismo do ato que estaacute para praticar pelo qual Medeia se eterniza confunde-se com a originalidade do tema imaginado pelo autor Que o novo seja o horror eacute um aspecto secundaacuterio para um poeta que inventa uma personagem que insiste no caraacuteter novo da ldquosabedoriardquo implicada na accedilatildeo que estaacute por ocorrer [] (VIEIRA 2010 p 159)

O interesse de Euriacutepides em propor o filiciacutedio em sua obra pode ser motivado mais pela

tentativa de alccedilar uma originalidade do que problematizar o horror No entanto ao natildeo permitir

em sua Medeia que o horror do filiciacutedio seja elaborado em accedilatildeo ao natildeo inscrever um desenlace

que convoque o consolo metafiacutesico Euriacutepides acaba por sugerir outra coisa que a racionalidade

e a ciecircncia expandam seus limites de modo a engolfar dominar justificar legitimar o ato

destrutivo desembocando tal ato num ato criativo Lembremos que aqui o que natildeo tem

reconhecimento ou legitimidade eacute o dionisiacuteaco esse aspecto da trageacutedia que natildeo se define que

transborda lugar de gozo que natildeo tem nome

De acordo com uma leitura nietzschiana de uma obra de Euriacutepides eacute possiacutevel dizer que

Medeia vence sua pura afetaccedilatildeo natildeo permitindo a derrota do raciociacutenio arquitetando e

185

executando o assassinato Isso eacute o novo o moderno O ato de Medeia de matar os filhos motivo

que faz Jasatildeo chamaacute-la de natildeo humana eacute o mesmo que a faz ser racional Assim como

Antiacutegona considerada desumana por acessar um saber inatingiacutevel por uma pessoa comum

Medeia provoca assombro por ter uma sabedoria ou ainda um domiacutenio de conhecimento de

outra ordem Em Antiacutegona haacute lugar para o dionisiacuteaco articulado a um saber que se sabe em

accedilatildeo quando a heroiacutena revela seu iacutempeto sua inflexibilidade sua crueza E o ldquosaberrdquo de

Medeia como eacute

Em Nietzsche (18721992 p 108) como jaacute mencionado o deus ex machina estaacute a

serviccedilo da razatildeo que se impotildee para corrigir o mundo a serviccedilo de ldquouma vida guiada pela

ciecircnciardquo Como tambeacutem jaacute discutido a partir de Vieira (2010) em Medeia o significante sopheacute

ldquosaacutebiardquo eacute atribuiacutedo de igual modo a ldquoponderadardquo ldquoautocontroladardquo No desenvolvimento das

cenas da trageacutedia apoacutes Medeia ser expulsa de Corinto com seus filhos os diaacutelogos que ela

manteacutem com os demais personagens demonstram que estaacute tramando um plano enquanto tenta

convencer seus inimigos que seguiraacute as ordens de Creonte O ldquosaberrdquo de Medeia parece ser algo

que se revela em sua fala ao mesmo tempo que suas palavras mascaram o que estaacute por traacutes das

suas verdadeiras intenccedilotildees Eacute uma consciecircncia enganadora Diferentemente de Antiacutegona que

com sua fala conduz o espectador e os outros personagens para o buraco de sua cova sua eterna

morada

523 Aacutetē

Sabemos que existem outras versotildees para o mito de Medeia em que ela natildeo comete

filiciacutedio ou qualquer outro crime violento No entanto buscamos pensar a estrutura proposta

por Euriacutepides como paradigmaacutetica de uma transiccedilatildeo em que as mudanccedilas de um mundo miacutetico

para um mundo filosoacutefico e poliacutetico passam a aparecer Nesse sentido como entender o ato

filicida de Medeia Parece ser um excesso um ato que natildeo se encontra no jogo formado pela

trama tatildeo bem articulada pela saacutebia mulher mas algo que transborda agrave cena Quando dizemos

excesso natildeo estamos nos referindo agrave hybris grega agrave desmedida do personagem a arrogacircncia de

seu caraacuteter que o leva ao erro de julgamento ou agrave hamartia como comete Creonte em Antiacutegona

de Soacutefocles O caso de Medeia em nossa visatildeo eacute de um excesso natildeo estipulaacutevel nos contornos

da encenaccedilatildeo traacutegica ao menos natildeo haacute nada na histoacuteria contada por Euriacutepides no argumento

do coro que situe o ato final como erro de julgamento ou como falha do caraacuteter Ela sabia o

186

que estava fazendo Diz ldquoNatildeo eacute que ignore a horripilacircncia do que perfarei mas a emoccedilatildeo

derrota raciociacutenios e eacute causa dos mais graves malefiacuteciosrdquo (Medeia vv 1077-1080)

Em nota de rodapeacute Vieira (2010) afirma que nesse trecho existe na opiniatildeo de alguns

comentadores uma menccedilatildeo ao socratismo agrave impossibilidade do homem praticar o mal

conscientemente Isso parece curioso pois Medeia afirma ter consciecircncia do mal que iraacute fazer

ainda que admita que esse mal esteja dominado por um impulso irracional Mas admiti-lo natildeo

freia seu ato O que estaacute aiacute em questatildeo

Sobre a accedilatildeo humana defendida por Soacutecrates Zingano (2009) afirma que

O agente pode ter uma opiniatildeo errada e assim buscar um fim que no fundo eacute para ele um grande mal mas para explicar o seu erro moral basta apelar ao tipo de crenccedila que possuiacutea sem precisar lanccedilar matildeo de qualquer conflito entre o que pensa e emoccedilotildees ou paixotildees que sente A accedilatildeo pode ser acompanhada de emoccedilotildees e paixotildees mas estas em nenhum momento a guiam pois seu elemento determinante eacute a crenccedila que o agente tem no momento em que age Se o agente tiver um saber do fim visto que o saber eacute sempre verdadeiro natildeo haacute como deixar de buscar seu verdadeiro bem (ZINGANO 2009 p 20-21)

Para concluir seu plano para que ele se torne perfeito Medeia precisa matar os filhos

enfrentando a dor e o sofrimento desse terriacutevel ato

Contudo podemos pensar o ato de Medeia por outra via Parece se tratar da aacutetē limite para

onde Antiacutegona se dirige interpretado por Aristoacuteteles como mais uma forma da hamartia e por

Lacan (1959-19601997) como a fronteira que delimita as accedilotildees possiacuteveis agrave vida humana

estando nesse sentido para aleacutem do erro Aleacutem do campo da aacutetē eacute o lugar em que Antiacutegona se

situa para onde se direciona seu desejo Eacute o lugar para onde Medeia acaba por nos conduzir

surpreendentemente com sua accedilatildeo

Atribui-se o horror a Medeia individualmente em seu caraacuteter terriacutevel em sua ldquoacircnima

megaintumescida antidelimitaacutevelrdquo (Medeia vv 108-109) Interessa ao autor justamente a

complexidade dos sentimentos a individualidade dos personagens O que diferencia Medeia

dos demais para que esteja tatildeo soacute em seu ato terriacutevel Ora ela eacute baacuterbara saacutebia e mulher de

caraacuteter furioso (o que Aristoacuteteles natildeo recomendava agraves personagens mulheres) Representa um

estrangeirismo uma alteridade radical em relaccedilatildeo agrave poacutelis grega agrave sua moral e a seus bons

costumes Em nada o espectador grego se identifica com ela No entanto possui uma das

virtudes mais admiraacuteveis e desejaacuteveis do helenismo o discurso Nesse sentido haacute uma

complexidade em seu caraacuteter que divide o espectador mais disponiacutevel Se haacute em Antiacutegona a

187

tensatildeo entre o horror e a beleza que seu ato produz ao atravessar as fronteiras da aacutetē talvez em

Medeia haja tensatildeo entre o horror ao seu ato e admiraccedilatildeo por sua inteligecircncia o desejo de ver

ateacute onde sua armaccedilatildeo nos conduziraacute

O drama euripidiano permanece como o mais conhecido sobrepondo-se ateacute mesmo ao

mito ainda que cause efeitos distintos daqueles imaginados por Aristoacuteteles ou seja de piedade

e temor Natildeo que esses sentimentos natildeo possam ocorrer ao assistir a peccedila mas cabe indagar

de que modo a encenaccedilatildeo fora arranjada para que o puacuteblico grego pudesse sentir piedade da

matildee assassina O que temer se uma mulher terriacutevel como ela escapa agrave puniccedilatildeo divina por um

recurso cecircnico que representa o justo e correto Quais inquietaccedilotildees teratildeo sido provocadas aos

espectadores de uma peccedila que ficou em uacuteltimo lugar no concurso de trageacutedias Satildeo muitas as

inovaccedilotildees e complexidades de Euriacutepides com a trama de Medeia

524 Medeia ex machina como desenlace

Pensemos agora na seguinte fala da nutriz

Acerta quem registre a obtusidade o saber vazio dos antigos inventores de poesia som em que germina a vida no afago do festim Natildeo houve musa que desvendasse em cantos pluricordes a arte de estancar o luto luacutegubre dizimador de moradias com o reveacutes atroz de Tacircnatos Que lucro logro em curar musicalmente o luto Por que a inutilidade da voz no sobretom no acircmbito da festa farta Na plenitude do cardaacutepio disponiacutevel vigora o regozijo (Medeia vv 190-202)

Para Vieira (2010) a criacutetica da nutriz eacute em relaccedilatildeo agrave impossibilidade dos efeitos

prazerosos da poesia prevalecerem sobre a dor do luto De acordo com o autor Euriacutepides fala

aqui atraveacutes de uma personagem com o intuito de criticar a trageacutedia de seus antecessores que

tornavam a morte um ato nobre e admiraacutevel ao passo que deveria ser apresentada com sua

crueza e horror O respeito ao mito a valorizaccedilatildeo do coro elementos fraacutegeis nos dramas

188

euripidianos natildeo satildeo caracteriacutesticas que tornam o luto mais faacutecil em obras de outros

tragedioacutegrafos

Atraveacutes da fala da nutriz Euriacutepides parece criticar os poetas antigos na sua impotecircncia

e irresponsabilidade diante da pulsatildeo destrutiva a pulsatildeo de morte Talvez na leitura de

Euriacutepides a arte traacutegica de seus antecessores buscasse derrotar a anguacutestia e a destrutividade

quando na verdade a trageacutedia operava com a tensatildeo com o jogo de forccedilas apoliacuteneo-donisiacuteaco

sem que um impulso se supervalorize em detrimento do outro Afinal eacute com essa tensatildeo que a

trageacutedia se torna bela No entanto para Euriacutepides atraveacutes de sua Medeia haacute um resto um

excesso que transborda o qual natildeo haacute musa capaz de contornar

Euriacutepides pode expressar a tocircnica de um tempo de transiccedilatildeo de um tempo miacutetico ao

mundo filosoacutefico como aponta Vorsatz (2013) ao reivindicar uma nova forma de lidar com

isso que natildeo se inscreve E ao natildeo se inscrever repete-se como acontece a Medeia em seu ato

de matar filhos que se inscreve em repeticcedilatildeo Eacute possiacutevel que Medeia tenha se eternizado na

radicalidade desse ato mata o filho de seu pai seu irmatildeo mata a filha de Creonte a princesa

por fim mata os filhos de Jasatildeo que satildeo tambeacutem seus

Podemos tambeacutem pensar a partir da fala da nutriz que haacute uma criacutetica ao consolo

metafiacutesico apontado por Nietzsche (18721992) ao apaziguamento final decorrente da tensatildeo

entre a dimensatildeo apoliacutenea e a dionisiacuteaca com a qual Euriacutepides natildeo se conforma Mais um

indiacutecio que justifica a escolha de deus ex machina ao fim do drama Como natildeo eacute possiacutevel agraves

encenaccedilotildees traacutegicas uma cura do luto tambeacutem natildeo eacute possiacutevel uma sensaccedilatildeo de apaziguamento

a catarse decorrente do encadeamento de accedilotildees que formam o drama Embora esse

encadeamento natildeo produza uma soluccedilatildeo final para os conflitos entre os personagens

(ROSENFIELD 2000) o proacuteprio ato de encenar de repetir suscita uma experiecircncia esteacutetica

que produz um saber sobre a vida O deus ex machina teria a funccedilatildeo de solucionar os conflitos

Como a maquinaria trabalha com esse resto com esse gozo que Euriacutepides propotildee

destacar do arranjo cecircnico e transbordar para aleacutem dos fins esteacuteticos No carro alado do deus

Sol Medeia anuncia que iraacute viver em outra terra sob a proteccedilatildeo dos deuses fora do alcance

dos inimigos e que Jasatildeo morreraacute tragicamente Escapa impune por ser sopheacute termo a ela

atribuiacutedo nos diaacutelogos da peccedila (VIEIRA 2010) o qual podemos entender por ldquosaacutebiardquo Em

funccedilatildeo de ter planejado sua fuga e ter sabiamente enganado todos quanto agraves suas intenccedilotildees ela

consegue fugir Utiliza bons argumentos destaca-se pelo bom uso da retoacuterica pelo qual eacute

189

elogiada e temida e com isso conquista tudo o que precisa para permanecer viva e comeccedilar

nova vida com Egeu Nesse sentido a soluccedilatildeo estaacute no discurso no uso que faz do logos

Eacute um novo uso da palavra que Euriacutepides sugere natildeo apenas como palavra posta em accedilatildeo

para garantir a existecircncia divina da qual o heroacutei deriva como sujeito mas palavra que utiliza

seu poder de persuasatildeo e argumentaccedilatildeo para enganar o outro oferecendo aquilo que o outro

deseja ouvir Apoacutes articular com Egeu seu acolhimento em outra terra diz a Jasatildeo iludindo-o

quanto a suas verdadeiras intenccedilotildees ldquoVislumbrei no automergulho a estupidez de meu

ressentimento Me apercebo do quanto te preocupas em nos propiciar parentes nobres Errei

ao me excluir do plano ao natildeocolaborar ao natildeo servir a noiva sorrindo agrave beira-leitordquo

(Medeia vv 882-888)

Podemos tambeacutem tentar entender a problemaacutetica colocada por Euriacutepides em seu drama

sob outra luz Natildeo haacute como natildeo captar a ironia de Medeia ao dizer que errou ao se excluir do

plano proposto por Jasatildeo Quem a excluiu na verdade foi o povo de Corinto O rei ao mandaacute-

la embora Jasatildeo ao natildeo considerar o casamento com ela e noivar com a princesa O motivo eacute

o fato de ser aleacutem de estrangeira e mulher sagaz pessoa terriacutevel No entanto se natildeo coubesse

a ela o caraacuteter furioso a tarefa de matar a quem caberia Se ela natildeo tivesse ajudado Jasatildeo natildeo

teria alcanccedilado seus objetivos podendo ter morrido Nesse sentido ela se vecirc usada e descartada

natildeo acolhida em terra estrangeira Quem a exclui do jogo cecircnico dessa forma desde o princiacutepio

da peccedila satildeo os cidadatildeos que natildeo querem hospedar em sua terra algueacutem como ela

Assim a trageacutedia segue um novo rumo que natildeo se daacute no sentimento do traacutegico que

transcende a polaridade que resulta de um conflito insoluacutevel quando cada um dos polos ocupa

uma posiccedilatildeo legiacutetima O novo drama se daacute pela manipulaccedilatildeo exclusatildeo uso do outro Nesse

sentido natildeo haacute apaziguamento ou consolo final sentimento que emana da experiecircncia traacutegica

da experiecircncia esteacutetica do belo O que haacute eacute vitoacuteria da razatildeo da nova funccedilatildeo da palavra na cena

da trageacutedia

Percebemos a sagacidade de Euriacutepides em propor sua versatildeo em solo ateniense terra

onde crescia o sofismo a arte capaz de argumentar em defesa de uma verdade cientiacutefica contra

as crenccedilas mitoloacutegicas Podemos dizer que sua proposta tem matildeo dupla em primeiro lugar de

certa forma ele mostra a deficiecircncia dos valores e leis da poacutelis grega que ainda que em

referecircncia aos deuses e aos mitos mostram-se insuficientes ao tratar de questotildees que tocam a

alteridade como o estrangeiro a mulher formas outras de saber Em segundo lugar se haacute

exclusatildeo produccedilatildeo de um fora em relaccedilatildeo a Medeia ele torna esse fora a fronteira mais

190

evidente com o deus ex machina com a proteccedilatildeo dos deuses Nesse sentido ele tambeacutem faz

uso do sofismo para combater o sofismo ateniense

O que deus ex machina pode vir a cumprir no fim da peccedila Podemos tentar compreender

isso com a uacuteltima fala do coro a que encerra a trama ldquoDe inuacutemeras accedilotildees Zeus eacute ecocircnomo

deuses forjam inuacutemeras surpresas O previsiacutevel natildeo se concretiza o deus descobre a via do

imprevisto E assim esta performance terminardquo (Medeia vv 1415-1419) Zeus eacute o deus

supremo da mitologia grega que domina a vida humana comanda as demais divindades e

estende seu poder para aleacutem daquilo que podemos prever O previsiacutevel que natildeo se concretiza o

interpretamos como a puniccedilatildeo de Medeia que natildeo acontece Nesse sentido a mensagem final

do coro eacute para Jasatildeo e demais cidadatildeos coriacutentios A via do imprevisto eacute aquilo que nossa

compreensatildeo natildeo alcanccedila que nossa consciecircncia natildeo atinge Nesse sentido somos

surpreendidos por isso que natildeo conseguimos controlar que natildeo dominamos

Conforme Lacan (1960-19611992) os deuses gregos pertencem ao campo do real

compreendido pela psicanaacutelise como o limite da articulaccedilatildeo significante O que essa mensagem

pode nos dizer sobre a eacutetica da psicanaacutelise Apesar de natildeo prevermos e natildeo controlarmos o que

pode nos acontecer uma postura eacutetica condiz com aquela de quem se responsabiliza pelos

efeitos de seus atos ainda que imprevistos Do mal da exclusatildeo que desejavam de Medeia a

cidade de Corinto sofreu os efeitos no entanto dificilmente aceitariam as surpresas forjadas

pelos deuses como resposta ao seu erro de julgamento

A trama de Medeia em vez de ser formada com o outro faz do outro seu oponente

Deseja-se excluir Medeia e o que ela faz eacute excluir de si o que restava de laccedilo com Jasatildeo ou

seja ser matildee de seus filhos quando os assassina Haacute nesse ato uma nova forma de lidar com o

traacutegico o qual ficou sob a incumbecircncia individualizada de Medeia que representa a alteridade

radical Haacute uma transiccedilatildeo de um desenlace traacutegico que deriva da trama para um desfecho que

resulta da exclusatildeo do outro como reduto do horror que natildeo queremos lidar o qual aparece

quando se tenta excluir Medeia ou quando Medeia se exclui levando o que restava de sua

relaccedilatildeo com Jasatildeo

Haacute outro ponto importante a pensar aqui Ainda que a terriacutevel matildee pareccedila sair vitoriosa

da cena protegida pelos deuses gregos ganhando uma nova chance de recomeccedilar a vida

entendemos que haacute uma derrota do domiacutenio do saber racional mesmo que ele parece ter saiacutedo

vitorioso A necessidade de expulsar aquele que representa algo com o qual natildeo consigo lidar

191

conviver eacute a prova disso Os conflitos natildeo se resolvem negando ou excluindo o que os provoca

A tendecircncia eacute que ele retorne sob nova forma talvez mais destruidora

525 Phaacutermakon e pharmakoacutes

Medeia quando solicita exiacutelio em Atenas a Egeu propotildee o seguinte ao pai que natildeo

consegue gerar descendentes ldquoEacute um achado o que achas pois meus faacutermacos daratildeo agrave luz os

filhos de um sem-filhordquo (Medeia vv 717-718) A palavra grega correspondente a ldquofaacutermacosrdquo

traduzida diretamente do grego por Trajano Vieira eacute ϕαρmicroακα relativa a phaacutermakon De

acordo com Fernandes (2001) uma palavra muito semelhante ϕαρmicroακος apenas de sufixo

diferente corresponde a pharmakoacutes ou bode expiatoacuterio pessoa sacrificada em rituais em honra

aos deuses com o intuito de livrar a comunidade de impurezas e malefiacutecios Com isso eacute possiacutevel

pensar que Medeia de certo modo tenha articulado uma troca sinistra oferece faacutermacos em

troca de filhos De quais filhos estaria falando Embora refira-se a futuros filhos de Egeu

parece remeter-se aos seus proacuteprios como bodes expiatoacuterios pagamento de sua saiacuteda da cena

onde eacute hostilizada para entrar numa cena em que encontra hospitalidade Parece haver aqui um

deslizamento significante de phaacutermakon para pharmakoacutes pois ao final Medeia sustenta o

deslocamento que a palavra pode ter lhe produzido no momento do pacto com Egeu antes de

ir embora para Atenas mata os filhos

Os termos phaacutermakon e pharmakoacutes satildeo apresentados por Jacques Derrida (2005) em

seu livro A farmaacutecia de Platatildeo para pensar a ambiguidade e as oscilaccedilotildees da escritura A

segunda palavra vem no fio condutor da primeira o que corrobora a ideia de que o texto escrito

eacute feito de diversas camadas de significaccedilatildeo e abre uma multiplicidade de caminhos Derrida

(2005) toma o texto como tecido pano que oculta as leis da composiccedilatildeo das quais eacute efeito Para

ele um texto eacute somente um texto quando algo nele permanece imperceptiacutevel quando jamais

temos acesso agraves regras de seu jogo Reporta-se assim a Fedro obra de Platatildeo em que Soacutecrates

dialoga com seu interlocutor Fedro sobre a dececircncia ou indececircncia de escrever

Na obra claacutessica de Platatildeo o filoacutesofo Soacutecrates se refere aos escritos que Fedro traz

consigo como uma droga um phaacutermakon que toma e faz com que ele saia de seu lugar

Segundo Derrida (2005 p 14)

Esse Phaacutermakon essa medicina esse filtro ao mesmo tempo remeacutedio e veneno jaacute se introduz no corpo do discurso com toda sua ambivalecircncia Esse

192

encanto essa virtude de fascinaccedilatildeo essa potecircncia de feiticcedilo podem ser alternada ou simultaneamene ndash beneacuteficas ou maleacuteficas [] Operando por seduccedilatildeo o phaacutermakon faz sair dos rumos e das leis gerais naturais ou habituais Aqui ele faz Soacutecrates sair de seu lugar habitual e de seus caminhos costumeiros Estes sempre o retinham no interior da cidade As folhas da escritura agem como um phaacutermakon []

Dessa forma Soacutecrates tem a experiecircncia de sair da cidade do lugar onde gosta de

ensinar e aprender para ler com Fedro Ler textos que fazem efeito agrave medida da leitura na

temporalidade do escrito textos que se guardam em suas letras ocultas diferidos em que a

presenccedila do autor eacute barrada Eacute justamente a equivocidade provocada pela palavra escrita que

seduz o leitor que age sobre ele como um phaacutermakon e o faz sair do lugar se desacomodar

No entanto segundo Derrida (2005) Soacutecrates lembra Fedro que na origem da escrita

havia uma intenccedilatildeo benevolente Um deus oferecera a gramaacutetica de presente ao rei do Egito

como um phaacutermakon no sentido de remeacutedio como modo de preservar e favorecer a memoacuteria

e a instruccedilatildeo do povo egiacutepcio O rei por sua vez contesta a escrita avalia-a para aleacutem do

remeacutedio ressalta o seu aspecto maleacutefico a sua significaccedilatildeo como veneno Pois eacute justamente em

razatildeo da existecircncia do escrito que o indiviacuteduo pode se permitir esquecer Com isso o valor da

escrita eacute atribuiacutedo pelo rei ou ainda pelo pai do logos Sem a presenccedila viva do autor de um

discurso seriacuteamos meros repetidores Ao substituir a fala a escrita indicaria a morte da

memoacuteria do pai do discurso e estaria a serviccedilo desse suposto assassinato

Derrida (2005) observa que mesmo sem a presenccedila do rei que eacute capaz de julgar a escrita

a palavra phaacutermakon por si mesma jamais significaria apenas remeacutedio jaacute que remeacutedio natildeo eacute

somente beneacutefico ele pode ser maleacutefico Phaacutermakon carrega em si essa tensatildeo essa polaridade

que natildeo necessariamente precisa se decidir por uma ou por outra faceta segundo uma

problemaacutetica platocircnica

Mais adiante Derrida (2005) discorre que apesar da palavra pharmakoacutes natildeo estar

presente no texto de Platatildeo ela pode se fazer presente em cadeia associativa com phaacutermakon

Mas o que quer dizer aqui ausente ou presente Como todo texto aquele de ldquoPlatatildeordquo natildeo poderia deixar de estar em relaccedilatildeo de modo ao menos virtual dinacircmico lateral com todas as palavras que compotildeem o sistema da liacutengua grega Forccedilas de associaccedilatildeo unem agrave distacircncia com uma forccedila e segundo vias diversas as palavras ldquoefetivamente presentesrdquo num discurso com todas as outras palavras do sistema lexical quer elas apareccedilam ou natildeo como ldquopalavrasrdquo ou seja como unidades verbais relativas num tal discurso [] Por exemplo ldquophaacutermakonrdquo comunica desde jaacute mas natildeo apenas com todas as

193

palavras da mesma famiacutelia com todas as significaccedilotildees construiacutedas a partir da mesma raiz (DERRIDA 2005 p 78-79)

De acordo com o autor a palavra pharmakoacutes estaacute relacionada a bode expiatoacuterio

personagem de rituais de sacrifiacutecio com ou sem morte na Greacutecia Antiga Representava o mal

e o fora o malefiacutecio que deveria ser expulso colocado para fora do corpo e fora da cidade

atraveacutes da exclusatildeo do bode O indiviacuteduo que encarnava o bode representava ldquosem duacutevida a

alteridade do mal que vem afetar e infectar o dentro irrompendo nele imprevisivelmenterdquo

(DERRIDA 2005 p 80) Mas eacute importante ressaltar que a pessoa escolhida para o sacrifiacutecio

tinha uma funccedilatildeo dentro da comunidade ou seja ele encontrava abrigo alimento sustento no

lado de dentro no seio da comunidade para no momento oportuno ser oferecido no ritual de

purificaccedilatildeo do mal

Segundo Derrida (2005 p 80) ldquoOs parasitas eram como eacute evidente domesticados pelo

organismo vivo que os hospeda a sua proacutepria custardquo Assim sendo quando a cidade era

assolada por um terriacutevel periacuteodo de seca fome e peste dois indiviacuteduos criados pela comunidade

como inuacuteteis degenerados vadios ou melhor como os bodes expiatoacuterios eram sacrificados

em honra aos deuses no intuito de livrar a cidade do mal e reestabelecer a ordem Conforme

Derrida (2005 p 80) ldquoA cerimocircnia do pharmakoacutes se passa pois no limite do dentro e do fora

que ela tem por funccedilatildeo traccedilar e retraccedilar sem cessar Intramurosextramuros Origem da

diferenccedila e da partilha o pharmakoacutes representa o mal introjetado e projetadordquo

O mal que existia em cada um dos cidadatildeos era projetado nos dois homens

representantes do bode Dois homens sacrificados dois filhos de Medeia com Jasatildeo Medeia

conhecedora do poder de ervas e plantas sobre o phaacutermakon remeacutedio e veneno Medeia

estrangeira mulher terriacutevel assassina de dois pai e irmatildeo foi tomada por Creonte como

pharmakoacutes bode expiatoacuterio No entanto em vez de entregar-se ao sacrifiacutecio da expulsatildeo a

partir do qual ficaria sem paacutetria e sem proteccedilatildeo alguma ela faz seus filhos seus dois meninos

morrerem em seu lugar Com amparo garantido por Egeu sai de cena viva com as crianccedilas

mortas No carro do Sol ex machina No limite que separa dentro e fora intramuros e

extramuros

194

526 Ananke

Haacute que se falar tambeacutem da dimensatildeo do sacrifiacutecio presente em Medeia o antigo ritual

de sacrificar indiviacuteduos em nome da proteccedilatildeo divina Medeia pode natildeo ter simplesmente matado

os filhos para se vingar de Jasatildeo mas seu ato pode significar justamente sacrificaacute-los Esta eacute

a interpretaccedilatildeo que nos propotildee o doutor em filosofia Alexandre Costa (2013) em palestra

intitulada Pasolini e a trageacutedia do homem ocidental O ato de matar os filhos eacute interpretado

pelo saber cientiacutefico filosoacutefico e racional do povo ocidental representado por Jasatildeo como um

crime de filiciacutedio No entanto Medeia pertence ao povo oriental cujo saber miacutetico e profano

toma o ato como sacrifiacutecio seguindo leis divinas ou seja respeitando os deuses Por isso

questiona Jasatildeo se ele adota leis ineacuteditas jaacute que ele traiacutera as juras o hoacuterkos

Embora da Coacutelquida os deuses que Medeia segue satildeo os mesmos dos gregos Haacute

contudo uma diferenccedila a ser observada aqui O coro de mulheres de Corinto enquanto estaacute ao

lado de Medeia fala-lhe em algumas passagens que Zeus certamente estaacute do seu lado que

Zeus eacute guardiatildeo das juras Medeia cita Zeus mas clama por Tecircmis deusa da Justiccedila por Geia

ou Gaia deusa da terra por Nike deusa da vitoacuteria por Heacutecate deusa das passagens por Heacutelios

deus do Sol do qual descende Quando fala com Egeu pede para o rei que jure pela estirpe

pandivina em vez de apelar a um deus uno regente de todos Zeus Sabemos que ao final a

fala do coro salienta a imprevisiacutevel via pela qual os deuses gregos agem ainda que Zeus seja o

deus dominante

Aleacutem disso Jasatildeo quando descobre o ato traacutegico de Medeia invoca Zeus pela puniccedilatildeo

da mulher invoca Dike a deusa da justiccedila dos homens mesma de Creonte na peccedila Antiacutegona

de Soacutefocles e natildeo Tecircmis a justiccedila dos deuses Medeia lhe interroga ldquoQue deus ou dacircimon te

daraacute escuta perjurador traidor dos proacuteprios hoacutespedesrdquo (Medeia vv 1391-1392) De acordo

com nota do tradutor haveria uma referecircncia aqui a uma versatildeo do mito em que Jasatildeo teria

raptado Medeia Seja como for Medeia chega agrave Greacutecia como sua mulher ele deve para com

ela o cumprimento da lei divina por ele esquecida da hospitalidade Mais um motivo para que

os deuses protejam Medeia e punam Jasatildeo

De acordo com Costa (2013) com a morte dos filhos Medeia restabelece a ordem

atraveacutes de uma loacutegica sacrificial que devolve resgata agrave terra (deusa Gaia) seus rebentos Se o

destino da vida dos filhos como de todos eacute a morte por que deixaacute-los vivos e fazer com que

sofram as puniccedilotildees dos cidadatildeos de Corinto

195

Nesse sentido Medeia age como Antiacutegona seguindo leis divinas atraveacutes de um ato

traacutegico Antiacutegona enterra seu irmatildeo Medeia mata seus filhos Ambos os atos podem ser

interpretados pela lei dos homens como criminosos A diferenccedila eacute que Antiacutegona presa em sua

alcova decide tirar a proacutepria vida Medeia decide ir embora

Talvez seja na dupla interpretaccedilatildeo da accedilatildeo de matar as crianccedilas ndash crimesalvaccedilatildeo ndash a

origem do sofrimento de Medeia ao menos na segunda parte da peccedila Oscila entre matar e natildeo

matar mas considera a morte dos dois a finalizaccedilatildeo de seu plano Antes dos meninos levarem

os venenos que matam princesa e rei Medeia diz ldquoEstaacute para nascer algueacutem que agrida um filho

meu Se ananke o necessaacuterioimpotildee sua lei indesviaacutevel noacutes daremos fim a quem geramosrdquo

(Medeia vv 1060-1063)

Logo depois da morte de Glauce e Creonte comunica ao coro de mulheres

Estaacute traccedilado amigas mato os filhos E apresso a fuga Natildeo existe um ser ndash um ser somente ndash que suporte ver o braccedilo bruto sobre os seus Natildeo tardo o fim dos dois se impotildee e a matildee os mata se eacute isso o que haacute de ser Oacute coraccedilatildeo- -hoplita descumprir esse ato horriacutevel Se ananke o imperativo o dita (Medeia vv 1236-1243)

Medeia se torna mais certa de sua decisatildeo de matar os filhos nessa passagem Antes a

matildee cumprir o destino do que serem submetidos agrave puniccedilatildeo de outros agrave morte por

apedrejamento No entanto ateacute o momento da morte das crianccedilas vive momentos de anguacutestia

A sua anguacutestia se daacute nesse intervalo que divide duas significaccedilotildees do assassinato a de sacrificar

os filhos para proteger seus corpos dos cidadatildeos tebanos e o filiciacutedio Ao final sentindo a

imposiccedilatildeo divina de Ananke ela se torna outra e quem se compadece somos noacutes

Ananke eacute uma divindade antiga citada por Medeia que fala da inevitabilidade do

destino da forccedila com a qual o destino traacutegico pode se impor Nesse sentido a morte dos filhos

para Medeia se torna uma necessidade um dever que ela mesma como matildee que os gerou

precisa cumprir Aiacute se encontra o paradoxo dessa trageacutedia

Em O mal-estar na cultura Freud (19302012) fala que Ananke junto com Eros satildeo os

pais da nossa civilizaccedilatildeo Eros eacute responsaacutevel pela coesatildeo dos objetos pelo amor que nutrimos

uns pelos outros pelo amor da matildee por seus filhos Jaacute Ananke eacute a imposiccedilatildeo da realidade o

196

compromisso e o dever para com a cultura a necessidade de trabalhar para manter a ordem no

mundo

Em 1920 em Aleacutem do princiacutepio do prazer Freud jaacute havia falado a respeito de Ananke

Na ocasiatildeo ela eacute tomada como forccedila da natureza inevitaacutevel lei natural que se impotildee na

realidade de todos noacutes Ser submetido a esse princiacutepio da realidade significa para o ser humano

a aceitaccedilatildeo de seus limites de sua proacutepria morte Esta lei implacaacutevel eacute apresentada aqui na

articulaccedilatildeo com Eros pulsatildeo de vida e Tacircnatos pulsatildeo de morte e podemos compreendecirc-la no

sentido de entre vida e morte aceitar a proacutepria natureza e enfrentar condiccedilotildees de existecircncia

Na primeira parte da peccedila logo apoacutes Creonte expulsaacute-la de Corinto e conceder um dia

para que Medeia organize sua partida ela diz ldquoNatildeo deixes pelo meio teus projetos Medeia

Nada te demovardquo (Medeia vv 401-402)

Isso nos faz pensar na posiccedilatildeo eacutetica de Medeia Se a eacutetica da psicanaacutelise diz respeito a

uma posiccedilatildeo subjetiva em que o sujeito natildeo recua de seu desejo e para sustentaacute-lo paga com

uma parte de si com uma dose de gozo ou sofrimento se a posiccedilatildeo de Antiacutegona eacute honrar sua

ascendecircncia e por ela morrer Medeia destroacutei a descendecircncia dos outros e por fim deve

(ananke) destruir a sua Eacute possiacutevel perceber que Medeia ldquoaquela que meditardquo ou que ldquoarquiteta

um projeto um planordquo comete assassinato seja do proacuteprio irmatildeo seja dos filhos ou de Glauce

a fim de atingir uma outra pessoa Natildeo escolhe matar o pai Jasatildeo ou Creonte mas torna viacutetimas

os filhos desses adversaacuterios talvez porque a morte deles mesmos natildeo seja uma pena muito dura

natildeo destruiria suas vidas como o sofrimento de perder um filho Medeia eacute uma filicida por

excelecircncia ateacute atingir o ponto traacutegico em que os filhos satildeo dela mesma Aleacutem disso o que pode

significar o aniquilamento da descendecircncia Eacute a impossibilidade de seguir vivendo atraveacutes de

um filho a despeito da proacutepria morte Eacute saber que a vida que se viveu natildeo teraacute uma continuidade

eacute natildeo deixar um legado Talvez a forma escolhida por Medeia de atingir seus inimigos

assassinar os descendentes tenha sido mais fatal mais proacutexima do que significa matar em vez

de atentar diretamente contra a vida deles proacuteprios

Nesse sentido na peccedila de Euriacutepides que leva o seu nome Medeia acaba por pagar a

condiccedilatildeo de sua existecircncia com a morte de seus filhos que deve ser cometida por ela mesma

ao preccedilo de seu sofrimento Havia de certo modo abandonado seu iacutempeto ao chegar em Corinto

com Jasatildeo tornar-se esposa e matildee zelosa ateacute o momento em que percebe que foi traiacuteda E o

que isso significa Que de algum modo abriu matildeo de seu desejo

197

O que chamo de ceder de seu desejo acompanha-se sempre no destino do sujeito ndash observaratildeo isso em cada caso reparem em sua dimensatildeo ndash de alguma traiccedilatildeo Ou o sujeito trai sua via se trai a si mesmo e eacute sensiacutevel a si mesmo Ou mais simplesmente tolera que algueacutem com quem ele se dedicou mais ou menos a alguma coisa tenha traiacutedo sua expectativa natildeo tenha feito com respeito a ele o que o pacto comportava qualquer que seja seu pacto [] (LACAN 1959-19601997 p 384)

Nesse sentido o que o indiviacuteduo faz diante de uma traiccedilatildeo pode definir se ele eacute um heroacutei

ou uma pessoa comum A traiccedilatildeo coloca a pessoa comum na via do serviccedilo dos bens sem que

ele reconheccedila seu desejo nessa via Jaacute o heroacutei eacute ldquoaquele que pode impunemente ser traiacutedordquo

(LACAN 1959-19601997 p 385) e atraveacutes dos bens ele paga o preccedilo de seu acesso ao

desejo ele banca seu desejo Compreendemos Medeia como uma heroiacutena traacutegica que se

percebe traiacuteda por Jasatildeo no descumprimento do horkos o juramento que tinha com ela Aleacutem

de Jasatildeo tecirc-la enganado percebe que ela mesma se deixou trair A linha de accedilatildeo da peccedila eacute a que

reconduz Medeia para a via de seu desejo destruindo por completo seu laccedilo com Jasatildeo ao pagar

com a morte dos filhos

Dessa maneira encontramos a via de abertura que a peccedila Medeia nos deixa Para aleacutem

do saber socraacutetico sofista racional que Euriacutepides apresenta em sua personagem natildeo pensamos

ser essa forma de saber que impera mesmo com o uso do recurso deus ex machina

Vislumbramos uma heroiacutena traacutegica que se impotildee sua proacutepria puniccedilatildeo sofre a perda de seu lugar

de matildee paga com a perda dos filhos o seu caraacuteter terriacutevel Nesse sentido podemos entender

que natildeo escapa impune das accedilotildees terriacuteveis de seu passado do assassinato do rei e da princesa

na medida em que ela mesma deve cometer o homiciacutedio dos filhos talvez mais importante para

ela do que ao proacuteprio Jasatildeo Para feri-lo com a dor mais profunda ela tambeacutem precisa se infligir

a mesma dor suportaacute-la e recomeccedilar nova vida

53 ldquoa raccedila fecircmea ignora como haurir algo elevado saacutebia quando edifica o horror do

fadordquo

No texto ldquoJuventude de Gide ou a letra e o desejordquo em que Lacan comenta um livro do

psiquiatra Jean Delay A juventude de Andreacute Gide ele fala sobre o ato de uma ldquoverdadeira

mulherrdquo Esse ato teria como efeito a abertura de um vazio no homem

Lacan (19581998) compara Andreacute Gide a Jasatildeo personagem da trageacutedia Medeia que

abandona a protagonista para casar com outra mulher Medeia eacute personagem enigmaacutetica que

198

na versatildeo de Euriacutepides mata os filhos que teve com Jasatildeo Jaacute a esposa de Gide Madeleine

queima suas cartas cartas escritas ao longo de uma vida de uma importacircncia tal para o homem

que este chega a tomaacute-las como filhos O ato de queimar as cartas do marido eacute entendido por

Lacan como um ato de mulher

[] de uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher Esse ato foi o de queimar as cartas que eram o que Madeleine possuiacutea ldquode mais preciosordquo Que ela natildeo tenha dado outra razatildeo para isso senatildeo o ter ldquotido que fazer alguma coisardquo acrescenta ao ato o signo da fuacuteria provocada pela uacutenica traiccedilatildeo intoleraacutevel [] o gemido de Andreacute Gide o de uma fecircmea de primata ferida no ventre com o qual ele pranteia a extirpaccedilatildeo do desdobramento de si mesmo que eram suas cartas razatildeo pela qual as chamava de seu filho soacute faz parecer que preenche com exatidatildeo o vazio que o ato da mulher quis abrir em seu ser longamente escavado por uma apoacutes outra das cartas atiradas ao fogo de sua alma flamejante Andreacute Gide revolvendo no coraccedilatildeo a intenccedilatildeo redentora que atribui ao olhar que nos retrata ndash sem dar importacircncia agrave sua respiraccedilatildeo ofegante ndash agravequela passante que atravessa seu trespasse sem cruzar com ele engana-se Pobre Jasatildeo que tendo partido para a conquista do tosatildeo dourado da felicidade natildeo reconhece Medeacuteia (LACAN 19581998 p 772-773 grifos nossos)

Pensamos que Medeia assim como Madeleine eacute certeira na escolha da pior das

vinganccedilas para Jasatildeo Natildeo apenas por atingir sua descendecircncia mas por eliminar tambeacutem a

nova esposa Ao fim da peccedila Jasatildeo retorna desesperado agrave sua casa para proteger os filhos dos

cidadatildeos de Corinto jaacute que os meninos provavelmente seriam punidos por ter envenenado o

rei e a princesa embora ignorassem o que estavam fazendo A fala do coro o alerta ldquoa prole

natildeo existerdquo (Medeia vv 1311) Jasatildeo jamais poderia imaginar ou entender que o ato tinha sido

cometido por Medeia Esta justifica ldquofiz o que devia para te atingir no iacutentimordquo (Medeia vv

1359-1360)

Miller (2010) entende que Medeia quando assassina seus proacuteprios filhos para se vingar

de Jasatildeo vai aleacutem de seu lugar de matildee sustentando o seu lugar de mulher Natildeo haacute explicaccedilotildees

ou palavra alguma do ex-marido que faccedila Medeia voltar atraacutes em sua de-cisatildeo

Mata seus proacuteprios filhos que satildeo tambeacutem de Jasatildeo o que permite dizer que o que haacute de mulher nela supera o que haacute de matildee [] ela constitui o exemplo radical do que significa ser mulher mais aleacutem do que matildee Com esse ato sai de sua depressatildeo Ela estaacute toda nesse ato a partir do qual todas as palavras satildeo inuacuteteis saindo decididamente do registro do significante (MILLER 2010 p 8)

199

Uma ruptura radical entre o ser matildee e ser mulher que gera em decorrecircncia uma ruptura

com sua proacutepria prole ao servirem de bodes expiatoacuterios para que Medeia perfizesse seu plano

de exiacutelio e vinganccedila por um instante as crianccedilas satildeo de Jasatildeo natildeo dela considerando as

contribuiccedilotildees de Lacan e Miller Assim a matildee fala aos filhos em tom de despedida dessa

relaccedilatildeo primordial ldquoNada valeu meninos meu empenho nada valeu sofrer as convulsotildees

doloridiacutessimas do parto Sonhos inuacuteteis que nutri ao vislumbrar nas crias meu amparo na

velhice apuro em ritos funeraacuterios ndash aacutepice do que pode sonhar quem viverdquo (Medeia vv 1029-

1035)

Eacute com seus filhos eacute com o ser matildee que Medeia paga sua liberdade o que se confunde

com o ser puramente uma mulher inteiramente mulher como compreendem Lacan e Miller

Contudo considerando o lamento de despedida de Medeia e a versatildeo que toma seu ato como

sacrifiacutecio seria equivocado pensar que Medeia apareccedila justamente como matildee natildeo como

mulher no traacutegico desenlace Que mulher teria a coragem de sacrificar crianccedilas para salvaacute-las

senatildeo uma matildee

Ora o que significa ser mulher De acordo com Alexandre Costa (2013) natildeo por acaso

Euriacutepides escolheu uma heroiacutena mulher em sua peccedila capaz de ato tatildeo terriacutevel Ser mulher

contrasta com o ser homem que o tragedioacutegrafo deseja expor ao lado de outras polaridades

tais como oriente versus ocidente saber miacutetico versus saber racional magia versus ciecircncia

sociedades arcaicas (matriarcais) versus sociedades modernas (patriarcais) Contudo segundo

Vieira (2010) o interesse de Euriacutepides em representar o mito de Medeia decorre de suas

proacuteprias insatisfaccedilotildees da falta de acolhimento que experimenta em relaccedilatildeo agrave sua sopheacute agrave sua

forma de pensar que como discutimos tem grande influecircncia de sua amizade com o filoacutesofo

Soacutecrates

Encerramos esta seccedilatildeo sobre o mito de Medeia e sobre a Medeia de Euriacutepides com as

palavras da escritora alematilde Christa Wolf autora do livro Medeia Vozes que busca resgatar nas

entrelinhas dos textos sobre esta mulher emblemaacutetica as vozes natildeo ouvidas observando suas

ressonacircncias em tantas outras histoacuterias de mulheres fortes apagadas por um princiacutepio

moralizador

Pronunciamos um nome e como as paredes satildeo permeaacuteveis entramos no tempo que foi o seu encontro desejado Sem hesitaccedilotildees ela responde das profundezas do tempo ao nosso olhar Infanticida Pela primeira vez esta duacutevida [] Mandamos-lhe embora ela vem ao nosso encontro das profundezas do tempo noacutes mergulhamos nele [] E haacute de haver um momento

200

em que nos encontramos Somos noacutes que descemos ateacute os Antigos Satildeo eles que nos apanham Tanto faz Basta estender a matildeo Passam para o nosso mundo com a maior facilidade estranhos hoacutespedes iguais a noacutes Noacutes temos a chave que abre todas as eacutepocas por vezes a usamos sem reservas deitamos um olhar apressado pela fresta da porta aacutevidos de juiacutezos precipitados Mas tambeacutem deve haver maneira de nos aproximarmos passo a passo com um certo pudor diante do tabu dispostos a arrancar dos mortos seu segredo mas assumindo o preccedilo de algum sofrimento O reconhecimento das nossas fraquezas ndash era por aiacute que deviacuteamos comeccedilar (WOLF 1998 p 11)

201

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Com a articulaccedilatildeo entre educaccedilatildeo trageacutedia antiga e psicanaacutelise produzimos uma

extensatildeo teoacuterica para ler a histoacuteria cliacutenica dramatizada na abertura deste trabalho Agora eacute o

momento de recolher os elementos miacutenimos que sustentaram nossa argumentaccedilatildeo e

constituiacuteram uma equaccedilatildeo teoacuterica que nos permite voltar ao cenaacuterio para lecirc-lo novamente e

quiccedilaacute nos ajude a ler outros cenaacuterios

Da apreciaccedilatildeo das trageacutedias gregas de Soacutefocles e de Euriacutepides recolhemos uma

pergunta sobre a eacutetica colocada em cena atraveacutes das accedilotildees dos heroacuteis e heroiacutenas diante dos

conflitos vividos com outros personagens Por meio da leitura psicanaliacutetica da trilogia tebana

em especial Antiacutegona feita por Lacan (1959-19601997) e Vorsatz (2013) entendemos que

somos inteiramente responsaacuteveis por nossas escolhas eacuteticas pelos efeitos traacutegicos dessas

escolhas em nosso destino ainda que seu fundamento seja o desejo inconsciente portanto

inacessiacutevel a nosso comando

Nesse sentido as perdas decorrentes de uma posiccedilatildeo subjetiva em que heroacuteis e heroiacutenas

se veem tomados em accedilatildeo satildeo o preccedilo que pagam para sustentar seu desejo o que significa

afirmarem-se como sujeito de desejo perante os impasses que surgem em cena Pelo estudo das

trageacutedias sabemos que haacute uma diferenccedila substancial entre as obras sofocleanas Eacutedipo Rei e

Antiacutegona A primeira trata-se de uma trageacutedia de destino como aponta Freud (19002015) em

que o heroacutei ignora completamente as consequecircncias de sua postura investigativa e racional

Apenas no uacuteltimo ato quando Eacutedipo descobre ser o proacuteprio criminoso que buscava ser o

sucessor legiacutetimo do trono ser o marido da proacutepria matildee revelando-se o mais terriacutevel dos

homens abraccedila as duras penas pelas quais deve passar o restante de seus dias e em Eacutedipo em

Colono sustenta sua dignidade perante os deuses

Em Antiacutegona jaacute no primeiro ato a heroiacutena conhece o destino traacutegico que a espera por

ter escolhido enterrar o irmatildeo Se em Eacutedipo temos a hybris a arrogacircncia que conduz ao erro de

julgamento e ao infortuacutenio em Antiacutegona temos a aacutetē a fatalidade inevitaacutevel para onde a heroiacutena

deseja caminhar Aqui estaacute o paradoxo de Antiacutegona pois ao sustentar sua posiccedilatildeo eacutetica ela

perde sua proacutepria vida Se sustentasse sua vida obedecendo a Creonte natildeo se afirmaria como

sujeito de desejo Lacan toma dessa trageacutedia justamente a diferenccedila que quer estabelecer entre

a eacutetica da psicanaacutelise a eacutetica do desejo e a obrigaccedilatildeo moral imposta pelas convenccedilotildees sociais

que reprimem o desejo

202

Atraveacutes das criacuteticas de Nietzsche averiguamos que um dos aspectos que levam agrave morte

da trageacutedia antiga eacute o de embasar as escolhas eacuteticas em justificativas filosoacuteficas como ocorre

nas trageacutedias de Euriacutepides influenciadas pelo pensamento de Soacutecrates Nesse sentido aqui se

situa um ponto de virada importante para a nossa forma de representar os conflitos humanos no

teatro pois no lugar de enunciar um desenlace traacutegico que embora natildeo signifique uma

conciliaccedilatildeo provoca um sentimento de apaziguamento final a trageacutedia de Euriacutepides passa a

oferecer finais resolutivos na medida em que modifica os mitos e busca justificativas racionais

para solucionar impasses Uma das formas mais utilizadas por Euriacutepides nessa nova proposta

de desenlace acontece com o uso do dispositivo do deus ex machina

Com Rebelo (1995) entendemos que nem sempre as trageacutedias de Euriacutepides ao

apresentarem tal ferramenta buscam impor uma soluccedilatildeo derradeira para os conflitos sem que

estes se construam ao longo da histoacuteria No entanto conseguimos reconhecer atraveacutes do autor

que haacute no deus ex machina um imperativo moral que passa a participar da cena que pode

influenciar as decisotildees tomadas entre os personagens Assim ocorre na cena traacutegica uma virada

eacutetica importante que reflete as mudanccedilas ocorridas no modo de organizaccedilatildeo de vida na poacutelis

grega que passa de um mundo miacutetico para um mundo filosoacutefico

Entre as peccedilas de Euriacutepides que apresentam o recurso do deus ex machina trabalhamos

com a Medeia citada por Rebelo (1995) como uma exceccedilatildeo pois quem vem a ocupar tal lugar

na maquinaria natildeo eacute um deus mas um ser humano A peccedila destaca-se tambeacutem por ter sido

utilizada por Aristoacuteteles como exemplo do uso desse recurso

Na apreciaccedilatildeo que produzimos acerca da obra euripidiana entendemos que a

personagem Medeia se vale de posiccedilatildeo semelhante agrave de Antiacutegona ao lembrar as leis natildeo escritas

que firmam o laccedilo de matrimocircnio desonrado por Jasatildeo Como a filha de Eacutedipo Medeia natildeo

aceita seguir as leis do rei de mesmo nome Creonte sentindo que o que resta apoacutes a sua funesta

vinganccedila contra o rei e a princesa eacute sua obrigaccedilatildeo para com seus filhos Como podemos

qualificar essa obrigaccedilatildeo Ela remete ao seu desejo subjetivo ou a um dever moral

Medeia nomeia sua eacutetica de ananke e a partir dela coloca em cena o paradoxo traacutegico

mata seus filhos (na versatildeo de Euriacutepides) para salvaacute-los de serem mortos pelos cidadatildeos de

Corinto Ainda que Euriacutepides apresente em Medeia o saber socraacutetico sofista racional natildeo

pensamos ser essa a forma de saber que domina no desenlace da peccedila O saber que aparece em

cena eacute articulado com o dever que se impotildee atraveacutes de ananke uma necessidade que pode advir

203

de sua funccedilatildeo como matildee ainda que proteger os filhos signifique destruiacute-los e nesse sentido

destruir a matildee em Medeia

Aleacutem disso vale pontuar na peccedila de Medeia a estrangeiridade que ela representa O fato

de pertencer a outra cultura acessar um saber diferente do compartilhado no mundo grego ser

uma mulher com atribuiccedilotildees permitidas aos homens (brava saacutebia dominadora) faz com que

ela ocupe diante dos cidadatildeos de Corinto e mesmo dos leitores e dos espectadores o lugar do

estranho radical do qual se deseja distanciamento Ao revelar-se em cena como uma mulher

assassina e filicida a repulsa sentida por ela tende a aumentar e o que se espera do fim da peccedila

eacute uma puniccedilatildeo severa O fato de ter permanecido viva protegida pelos deuses e conquistado o

exiacutelio mesmo apoacutes matar as crianccedilas pode ocasionar aos espectadores uma sensaccedilatildeo muito

distante do indicado apaziguamento final das trageacutedias de Soacutefocles O desenlace em Medeia

natildeo propotildee uma costura das accedilotildees mas um rompimento abrupto de nossas convicccedilotildees um

questionamento moral Talvez esse seja o efeito da presenccedila do deus ex machina na peccedila Para

conseguir trabalhar e entender a proposta de Euriacutepides foi preciso vencer as barreiras que nos

distanciam da terriacutevel personagem e reconhecer nela traccedilos eacuteticos o que permite uma

aproximaccedilatildeo

Partindo da posiccedilatildeo eacutetica apresentada em accedilatildeo pelos heroacuteis do desenlace traacutegico do

deus ex machina como dever moral acessamos a histoacuteria dramatizada no proacutelogo

61 Natildeo definimos o lugar que ocupamos na relaccedilatildeo transferencial

Ler com a distacircncia temporal e o trabalho teoacuterico atravessado o andamento do roteiro

construiacutedo no proacutelogo permite identificar na posiccedilatildeo em que a psicoacuteloga acaba por tomar as

ressonacircncias da posiccedilatildeo ocupada por Eacutedipo ao se descobrir o criminoso que provocava a ruiacutena

de Tebas A psicoacuteloga se vecirc capturada no empenho por responder agrave demanda da escola de dar

respostas e oferecer soluccedilotildees para a crianccedila que apresentava problemas em seu percurso escolar

ainda que se coloque numa posiccedilatildeo de criacutetica dessas mesmas atitudes quando tomadas pelos

outros Nesse sentido parece-nos que a psicoacuteloga eacute capturada no efeito transferencial de

oferecer uma resoluccedilatildeo definitiva para o caso recalcando a posiccedilatildeo de escuta de trabalhar em

conjunto assim como ocorre com Eacutedipo

Embora tenha assumido responsabilidade pelo caso a psicoacuteloga natildeo encontrou as vias

de se movimentar no sentido de escutar a meacutedica ou ainda de reconhecer o esforccedilo da escola

204

Quando mais tarde se flagrou dos efeitos de sua conduta nas sessotildees com a crianccedila na fala da

matildee jaacute estava sozinha Com isso podemos entender que qualquer um pode falar a partir da

posiccedilatildeo de deus ex machina desde que haja em seu modo de conduzir um natildeo reconhecimento

ou um recalcamento do lugar do outro e uma prerrogativa moral que faz o indiviacuteduo acreditar

que sua escolha diante de uma situaccedilatildeo eacute a mais correta

62 O lobo do homem eacute o lobo no homem

A trageacutedia de Medeia evidencia as soluccedilotildees que tomamos ao nos depararmos com uma

parte natildeo domesticaacutevel que nos habita algo que insiste em escapar do projeto civilizatoacuterio Em

vez de olhar para essa porccedilatildeo que havia em si mesmo Creonte expulsa o lobo que conseguia

identificar em Medeia na certeza de que desse modo conseguiria livrar Corinto de sua

influecircncia maleacutefica Ao natildeo acolher a estrangeira Medeia Creonte provoca o efeito contraacuterio

ao que almejava ou seja abrindo caminho para a realizaccedilatildeo de uma pulsatildeo destrutiva

Como trabalhar o lugar do lobo que pode constituir o limite de nossa escuta o limite do

reconhecimento do outro a nossa resistecircncia aos coacutedigos de comportamento dentro da escola

Como dar lugar a esse lobo no seio de nossas relaccedilotildees sem que seja preciso recalcaacute-lo expulsaacute-

lo de nosso conviacutevio o que pode fazer com que ele retorne com ainda mais vigor Satildeo perguntas

que nos ajudaram a constituir um mapeamento teoacuterico de modo a tentar enunciar nosso

problema

Trabalhar com o lobo que existe na crianccedila seja aluno filho paciente exige que

saibamos trabalhar com o lobo que haacute em noacutes Nesse sentido a escuta que a psicoacuteloga conseguiu

promover ao final da histoacuteria eacute fundamental para que possamos interrogar nossa forma de

conduzir O que ela consegue ler da experiecircncia eacute que tanto a escola quanto a meacutedica e a matildee

nos desdobramentos do fazer de cada uma eram chamadas a se colocar em relaccedilatildeo com o lobo

na crianccedila representado no desenho Esse dever nos conduz a um segundo aspecto que podemos

recolher da histoacuteria o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo diante de problemas de aprendizagem e

comportamento apresentados pelos estudantes

205

63 A educaccedilatildeo agrave sombra da medicalizaccedilatildeo

Como adultos responsaacuteveis pelas crianccedilas estamos implicados com seu mal-estar Natildeo

eacute raro que o discurso medicalizante que opera na escola e toma lugar do discurso educativo faccedila

as vezes dessa implicaccedilatildeo constituindo um dever dos adultos para com as crianccedilas No entanto

o que pode resultar dessa operaccedilatildeo no fazer do educador ou seja a operaccedilatildeo de colocar a

educaccedilatildeo em funccedilatildeo do saber meacutedico eacute produzir nos professores uma desautorizaccedilatildeo de seu

lugar de saber eacute produzir na escola uma paralisia em arranjar alternativas pedagoacutegicas para

problemas educacionais como apontam Santos e Freitas (2016) Ao mesmo tempo tal operaccedilatildeo

resulta em produzir um fora em convocar um representante do saber medicalizante a partir de

um lugar de saber impositivo e resolutivo como o recurso deus ex machina que natildeo se tece

com outros saberes

Na pesquisa sobre a medicalizaccedilatildeo descobrimos que a relaccedilatildeo entre saber medicalizante

e escola participa de um processo que vem se construindo haacute muitos anos Na medida em que

coube agrave psiquiatria a autoridade para promover a diferenccedila entre normalidade e patologia e criar

meios para investigar e prevenir anormalidades a medicina foi ganhando espaccedilo no seio das

relaccedilotildees familiares e dentro das escolas para detectar ainda nas crianccedilas possiacuteveis problemas

de desenvolvimento Como ocorre a conquista dessa autoridade

64 Medicalizaccedilatildeo na escola e dever moral

A partir de Foucault (1974-19752001) entendemos que esse processo estaacute a serviccedilo da

manutenccedilatildeo da moral social e com isso justifica-se por si mesmo Os desvios de

comportamento de crianccedilas mesmo em classes consideradas normais que tocavam em alguma

moral estabelecida socialmente como por exemplo a indisciplina eram motivo suficiente para

a escola abrir as portas para o saber constituiacutedo cientificamente pela psiquiatria Entendemos

que a medicalizaccedilatildeo na escola cumpre um dever moral assim como o deus ex machina assumiu

uma funccedilatildeo moralizante na trageacutedia antiga culminando em seu fim de acordo com Nietzsche

(18721992)

Com o estudo e o desenvolvimento dos transtornos mentais chegamos ao TDAH cujo

diagnoacutestico parece ser bastante frequente em estudantes considerando a frequecircncia de

prescriccedilotildees medicamentosas para este puacuteblico (SISTEMA NACIONAL 2012) Acreditamos

206

que o transtorno apresenta sintomas que questionam uma regulaccedilatildeo social em nossos dias que

diz respeito ao modo como lidamos com o tempo A falta de atenccedilatildeo e de concentraccedilatildeo nos

estudos e atividades acadecircmicas bem como a inquietaccedilatildeo que impede o controle sobre o proacuteprio

corpo satildeo vistas como signo de um futuro fracasso escolar na medida em que podem interferir

nos ideais sociais de rendimento e de produtividade que almejamos inscrever em nossas

crianccedilas

Nesse sentido o encaminhamento por parte da escola de um aluno que apresenta

sintomas de desatenccedilatildeo e hiperatividade para um especialista acaba por constituir um dever

moral da escola de nosso tempo Servimo-nos do discurso medicalizante e psicopatologizante

para oferecer soluccedilotildees praacuteticas para problemas educativos ao percebermos a que distancia

nossas crianccedilas se encontram dos ideais de comportamento do perfil desejado na escola

O problema de nos pautarmos em tais ideais na cena escolar eacute que no lugar das palavras

que educam oferecemos diagnoacutesticos e medicamentos como soluccedilatildeo aos problemas de

aprendizagem e comportamento Tais intervenccedilotildees meacutedicas acabam por dispensar as estrateacutegias

pedagoacutegicas da escola ou ao menos colocaacute-las como alternativas temporaacuterias e secundaacuterias agraves

medidas corretas e justas oferecidas pelo saber meacutedico

Parece-nos que compartilhamos da seguinte ideia ao identificarmos em sala de aula

uma crianccedila com dificuldades para se comportar da maneira desejada temos a obrigaccedilatildeo moral

de dizer a seus pais que provavelmente ela sofre de algum transtorno e deve consultar um

especialista Se natildeo o fizermos estaremos em falta com uma moral social O que tentamos

mostrar neste trabalho eacute que tal conduta natildeo eacute dada a priori ela eacute construiacuteda ao longo dos

seacuteculos e o que nos cabe eacute questionar seus efeitos para a legitimaccedilatildeo do saber da escola

65 Solucionar o problema eacute enunciaacute-lo

Na medida em que a conduta da escola de encaminhar um aluno com problemas de

aprendizagem e comportamento para um especialista estiver respondendo a uma obrigaccedilatildeo

moral isso pode constituir uma barreira poderosa agraves alternativas que podem ser arranjadas pelo

desejo de educar considerando que haacute uma diferenccedila importante entre uma lei moralmente

imposta e uma lei que se revela em accedilatildeo sempre e a cada vez

Recuperamos dessa maneira a equaccedilatildeo teoacuterica por noacutes proposta O deus ex machina na

cena traacutegica pode produzir um desenlace de efeito moralizante Do mesmo modo a

207

medicalizaccedilatildeo pode incidir sobre a cena escolar Se num trabalho conjunto seguindo a lei de

nosso desejo conseguirmos rearranjar a disposiccedilatildeo desses elementos em cena podemos

produzir novas formas de desenlace

Se educar eacute um dever social que podemos exercer natildeo sem o desejo que nos move eacute

porque representa um modo de pagar a diacutevida simboacutelica por termos sido inscritos em uma

cultura por um mestre de ocasiatildeo (LAJONQUIEgraveRE 1997) Nesse sentido somente podemos

educar pela via da palavra que nos marcou subjetivamente o que comporta a equivocidade que

lhe eacute inerente Assim entendemos que a educaccedilatildeo se situa numa arena carregada de

potencialidades simboacutelicas e que guarda uma dimensatildeo impossiacutevel limite insuperaacutevel e

inconsciente intriacutenseco ao educar O uacutenico modo de trabalharmos o impossiacutevel eacute sabermos que

natildeo podemos jamais controlaacute-lo ou excluiacute-lo entatildeo podemos arranjar formas de trabalhar com

ele

O TDAH natildeo eacute o impossiacutevel do educar para o professor nem nenhum outro transtorno

de aprendizagem ou comportamento que a psiquiatria encontra na cena escolar Ele tem se

tornado na verdade uma dificuldade na rotina escolar para a qual o saber meacutedico apresenta

uma soluccedilatildeo farmacoloacutegica Tal conduta natildeo eacute capaz de situar ou de ressituar o lugar do

impossiacutevel na cena educativa Essa tarefa pode ser realizada a partir das palavras norteadoras

que dirigimos aos nossos alunos e dos efeitos destas no modo como eles conseguem se situar

na rotina escolar

Podemos trabalhar com o impossiacutevel inerente ao ato educativo na medida em que

tomarmos os sintomas descritos do TDAH vividos em cada histoacuteria singular de nossas crianccedilas

como efeitos da experiecircncia escolar e de outros ambientes onde os estudantes circulam

acolhendo a hiperatividade e a desatenccedilatildeo como parte de um jogo de relaccedilotildees que constituiacutemos

diariamente uns com os outros natildeo como mal individual a ser moralmente combatido

eliminado com medicamentos e exclusatildeo escolar

Aleacutem disso a agitaccedilatildeo e a dispersatildeo que as crianccedilas podem apresentar na escola natildeo

constituem em si mesmas um impedimento para a aprendizagem A tentativa de buscar um

lugar na cena educativa que muitas vezes aparece na forma de sintomas principalmente no

iniacutecio da escolarizaccedilatildeo pode abrir espaccedilo para que a aprendizagem aconteccedila Do mesmo modo

o professor pode reencontrar seu lugar a autorizaccedilatildeo de seu saber se entender que mesmo os

alunos que apresentam dificuldades de comportamento podem estar aprendendo para aleacutem dos

contornos de sua intervenccedilatildeo

208

Em nossas escolas haacute muitas crianccedilas e adolescentes diagnosticados com TDAH ou

com outros transtornos e medicados com metilfenidato alunos com os quais os professores

precisam trabalhar diariamente Embora a agitaccedilatildeo e a dispersatildeo sejam suspensas

temporariamente como efeito decorrente do remeacutedio agindo no Sistema Nervoso Central o

fato de os alunos permanecerem assintomaacuteticos durante as aulas natildeo garante por si soacute o sucesso

acadecircmico Talvez o que a intervenccedilatildeo meacutedica possa garantir eacute que esses alunos natildeo atrapalhem

a rotina escolar e o planejamento do professor

No entanto o trabalho de inscrever a crianccedila no mundo de descobertas que a escola

possibilita tomaacute-la como parte de uma cultura compartilhada com seus colegas tocaacute-la em seu

desejo de aprender constitui a indispensaacutevel e insubstituiacutevel tarefa do educador que a exerce

como desejo e dever como ananke

Acreditamos portanto que constitui tarefa importante para a escola de nosso tempo

para pais e matildees de alunos e para os profissionais meacutedicos e psicoacutelogos que satildeo chamados a

falar a partir do lugar de saber que tenhamos no horizonte de nosso fazer um trabalhar em

conjunto reconhecendo os limites e alcances de nossa atuaccedilatildeo num jogo que em vez de excluir

o outro convoca-o a falar a partir do seu lugar de saber Desejamos com este trabalho contribuir

para o campo da educaccedilatildeo valorizar o fazer dos professores e professoras a cena escolar e as

suas potencialidades na transformaccedilatildeo de vidas

209

EPIacuteLOGO

As passagens que se seguem fizeram parte do cenaacuterio de composiccedilatildeo deste trabalho

ainda que natildeo tenham ingressado nas discussotildees teoacutericas Satildeo histoacuterias vividas em diferentes

escolas narradas de diferentes lugares ocupados pela autora

Jaacute passava das 13h Por descuido de algueacutem ou quem sabe por zelo uma fresta do

portatildeo permanecia aberta por onde era possiacutevel cruzar Sem a sineta da entrada sem a

cantoria de boas-vindas sem as matildeos dos colegas na fila desajeitadamente dadas apertadas

o que fazer Comeccedilava assim um dos segundos dias na escola

Sem muito pensar apoacutes passar pelo portatildeo de entrada o menino subiu os degraus e

atravessou sozinho pelos portotildees do edifiacutecio Teve a sensaccedilatildeo de que algueacutem o vira a sensaccedilatildeo

de ser olhado Laacute de dentro natildeo tinha como sair o teto era tatildeo alto e amplo que chegava a

sufocar mas isso o fez andar os corredores eram tatildeo longos que natildeo se via o seu fim mas

por isso deveria percorrecirc-lo

Enquanto ia as portas das salas de aula proliferavam a cada passo mais e mais Todas

fechadas Ateacute que parou diante de uma que lhe pareceu especialmente familiar Havia um

barulho que vinha laacute de dentro O uacutenico a habitar aquele espaccedilo Um som de batidas leves

ritmadas o giz Comprido e seco receacutem-retirado da caixa O giz riscando o quadro De que

cor Pouco importava pensou meses depois Talvez fosse o quadro a consumir o giz

Embalado pelo som da consumaccedilatildeo agora mais apressado a chegar ao fim da escrita

o aluno perdido deu duas batidas agrave porta O barulho inicial parecia mais expressivo era o

barulho interrompido o barulho da ausecircncia do barulho O menino sentiu que existia naquele

instante A porta se abriu a professora do outro lado sorriu mas antes apertou os laacutebios

Olhou para o reloacutegio e disse estaacute atrasado Indicou uma classe e convidou o aluno a se sentar

Ele entrou olhou para os outros seus colegas que tambeacutem o olharam por um momento

O que havia acontecido Todos estavam tatildeo seacuterios enfileirados uniformizados assombrados

quietos Parecia guardarem um segredo um segredo prometido a jamais ser revelado Algueacutem

tinha falecido

210

O menino pensou que sim estavam todos na primeira seacuterie do ensino fundamental

Todos os alunos faziam o mesmo que a professora fazia com o giz e o quadro mas usando o

laacutepis e a folha respectivamente Olhavam identificavam as formas as letras e as copiavam em

seus cadernos A professora de costas terminou de escrever ao quadro sentou-se agrave sua mesa

e olhou para seu caderno Quando o aluno se sentou em seu lugar entendeu que deveria fazer

o mesmo que os outros Sentiu uma espeacutecie de aliacutevio Agora era tambeacutem um outro Estava a

salvo

Mais ou menos assim se acomodou a escuta das lembranccedilas de escola de alguns alunos

de cursos de licenciatura quando a professora de Psicologia da Educaccedilatildeo lhes pediu para

narrarem cenas vividas na escola Alguns quiseram contar sobre a transiccedilatildeo da educaccedilatildeo infantil

para o ensino fundamental Outros sobre um dia em que chegaram atrasados ou sobre a

atmosfera que sentiam na escola seus espaccedilos ares cores ritmos Outros ainda sobre

professoras especiais sobre projetos cientiacuteficos sobre amizades sobre preconceitos

ldquoPor que fica essa marca de alguma coisa como a morte como uma coisa da qual se

escapa por um trizrdquo pensa inquieta a professora Eacute E se a porta estivesse fechada e se o

aluno natildeo encontrasse a sala e se a professora natildeo o deixasse entrar e se ele se entregasse agrave

imensidatildeo abismal daquele lugar chamado escola Um lugar que paradoxalmente nos eacute

apresentado como salvaccedilatildeo como caminho digno para virarmos pessoas dignas Por que

apesar de os estudantes natildeo terem dito exatamente isso que a professora conseguiu escrever o

que resta a ela tem uma atmosfera sombria de pesar de solidatildeo Natildeo haacute como pedir para os

outros atravessarem lugares esquecidos da memoacuteria sem atravessaacute-los tambeacutem

Mas o preacutedio ndash que edifiacutecio mais excecircntrico e antigo aquele ndash para mim como era verdadeiramente um palaacutecio encantado Natildeo havia de fato fim para seus meandros ndash para suas incompreensiacuteveis subdivisotildees Era difiacutecil a qualquer dado momento dizer com certeza em qual de seus dois andares calhava de se estar De qualquer cocircmodo para qualquer outro acontecia seguramente de se topar com trecircs ou quatro degraus fosse para subir fosse para descer E ainda as passagens laterais eram inumeraacuteveis ndash inconcebiacuteveis ndash e de tal modo desembocando em si mesmas que nossas ideaccedilotildees mais exatas com respeito agrave totalidade da mansatildeo natildeo eram muito diferentes dessas com que ponderaacutevamos sobre o infinito (POE 2012 p 28)

211

O cenaacuterio embora confuso e de difiacutecil compreensatildeo passiacutevel de descriccedilatildeo na pena de

Edgar Allan Poe em seu conto ldquoWilliam Wilsonrdquo poderia ser a escola do pequeno texto

produzido pela professora na tentativa de contornar as imagens provocadas pelos relatos de seus

alunos Eacute tambeacutem uma escola no conto de Poe onde o narrador estudava o lugar onde aparece

um colega de mesmo nome e aparecircncia causador de grande sofrimento Esse cenaacuterio escolar

de possiacutevel emergecircncia da anguacutestia da estranheza eacute o mesmo local onde a crianccedila encontra

possibilidades de lidar com ela acessa um mundo aleacutem de seu lar comeccedila a participar de

relaccedilotildees aleacutem do pequeno universo de familiares vizinhos parentes Conhece outros jeitos

possiacuteveis de ser e estar no mundo conhece outras regras novos valores ganha papeis sociais

Natildeo eacute apenas filho irmatildeo sobrinho natildeo eacute somente crianccedila mas torna-se aluno e colega assume

responsabilidades pelas quais seraacute cobrado avaliado ou pelo menos assim se espera

Ao registrar a escuta a professora se reporta agrave antiga escola onde cursou os primeiros

anos do primeiro grau Parecia estar laacute mais uma vez Quantas alegrias quantas violecircncias

Adorava perambular pelos corredores espiar as outras salas flagrar outras turmas em seus

disfarces de alunos comportados Adorava ir para a cantina da escola conversar com as

cozinheiras sentir aquele cheirinho de mingau ou de caldo de feijatildeo sendo preparado Agraves vezes

apanhava de colegas mais fortes por um motivo ou outro Levou soco chute bolada que hoje

natildeo doem mais Lembra-se de que tinha medo mesmo de natildeo conseguir terminar de copiar tudo

o que estava no quadro O quadro era imenso Dividido em trecircs partes Tinha que terminar de

escrever porque era preciso apagar para escrever mais e noacutes precisaacutevamos registrar tudo

Por que as professoras eram tatildeo quietas Aguardavam pacientemente que a turma

terminasse de copiar e ficavam absortas em seus pensamentos Por observarmos as professoras

em seus jeitos calados ou entatildeo por olharmos os galhos das grandes aacutervores que nos

circundavam pelo lado de fora ou ainda por olharmos a atenccedilatildeo bonita a letra bonita de um ou

outro colega alguns de noacutes natildeo conseguiacuteamos terminar de copiar Isso deixava professoras e

matildees chateadas preocupadas com nossa evoluccedilatildeo Copiar era coisa muito importante

As matildees perguntavam para noacutes seus filhos por que ficaacutevamos olhando para as paredes

em vez de copiar Natildeo era por falta de tempo jaacute que a maioria da turma conseguia As

professoras diziam que eacuteramos dispersos e desatentos Checavam caderno por caderno para ver

se a tarefa do dia anterior havia sido feita para ver se os alunos tinham de fato copiado tudo

para ver como estava a letra para ver se tinham feito orelhas e garranchos Isso nos deixava

nervosos apreensivos achaacutevamos que nunca conseguiriacuteamos aprender

212

Alguns de noacutes passavam esse limite de uma simples falta de atenccedilatildeo ao quadro e ao

caderno Faltava um cuidado tambeacutem com os corpos Natildeo os continham eram conduzidos por

eles de um lado a outro da sala para fora da sala pelos corredores Algumas crianccedilas explodiam

seus corpos na hora do recreio depois de uma eternidade contida poderiam finalmente se

libertar daquele lugar daquele papel de aluno comportado e correr pelo paacutetio jogar-se ao chatildeo

brigar com colegas

Ateacute acalmarem os acircnimos na volta do recreio levava um bocado de tempo Alguns

tomavam advertecircncia saiacuteam da sala para a diretoria choravam gritavam As matildees diziam que

na classe parecia haver um bicho carpinteiro que os impedia de ficarem sentados As

professoras concordavam mas no fundo pensavam que essas matildees natildeo davam limite aos seus

filhos e agora elas eacute que teriam que lidar com isso Deveriam entatildeo envolvecirc-las na educaccedilatildeo

escolar Qualquer deslize dos alunos com o caderno que era disciacutepulo do quadro negro ou com

o comportamento um bilhete era enviado para os pais E naquele tempo as crianccedilas respeitavam

os pais Os pais davam razatildeo para os professores Os professores eram uma referecircncia para que

a educaccedilatildeo acontecesse Eacute o que agraves vezes pensa nostaacutelgica a professora que tem essas

memoacuterias

Lendo esse pequeno texto essa pequena lembranccedila eacute possiacutevel dizer que as professoras

faziam as coisas acontecerem Natildeo sabiam como natildeo sabiam por quecirc mas estavam sempre

referidas ao quadro ao caderno ao giz a pilares que sustentavam seus lugares de saber na sala

de aula e todos noacutes acreditaacutevamos nelas Bem ou mal nos educaacutevamos Alguns chegavam ao

fim do primeiro grau ao ensino meacutedio quando copiaacutevamos menos anotaacutevamos mais a

explicaccedilatildeo do conteuacutedo liacuteamos livros sabiacuteamos quais as mateacuterias favoritas quais as odiadas

e o que nos movia era um laccedilo de amizade um desejo de futuro vou ser artista engenheiro

advogada meacutedico jornalista Para outros a escola deixava de fazer sentido laacute pela quinta ou

sexta seacuterie ou mesmo mais tarde Talvez nunca tivesse feito sentido Por quecirc Faltavam agraves aulas

por dias semanas ateacute desistirem Comeccedilavam a trabalhar cedo formavam uma famiacutelia cedo

Cedo para mim O futuro deles era agora

Uma aluna entre noacutes buscou a sonhada formaccedilatildeo em teatro e depois de um tempo de

procura por trabalho e indecisotildees optou pela carreira acadecircmica mestrado e doutorado em

educaccedilatildeo Numa escola estadual de ensino fundamental e meacutedio um grupo de alunos do

primeiro ao quarto ano foi designado a participar de uma oficina de teatro que ocorreria

semanalmente Assim foi nomeada a atividade pela nossa colega agora proponente da oficina

213

artista e doutoranda em educaccedilatildeo As professoras chamaram de reforccedilo para alunos com

dificuldade para ler e escrever

O retorno agrave escola causou ansiedade agrave ministrante da oficina porque a escola puacuteblica

onde estudou tinha quase a mesma estrutura fiacutesica o mesmo cheiro a mesma umidade nos

corredores Passou de sala em sala para chamar os participantes e se surpreendeu ao ver as

crianccedilas copiando do quadro A professora seacuteria e sentada Haacute quantos anos havia saiacutedo da

escola Numa das turmas a professora entregava folhinhas mimeografadas cheia de atividades

para os alunos completarem O velho mimeoacutegrafo continua trabalhando Numa outra sala a

professora discutia com um aluno que natildeo queria sentar e tinha riscado no caderno de uma

colega Ao ver a oficineira a professora disse ele estaacute impossiacutevel hoje precisa ir para o reforccedilo

O objetivo era oferecer a arte teatral como um dispositivo de expressatildeo e elaboraccedilatildeo de

questotildees subjetivas que possam estar dificultando a aprendizagem e o estabelecimento de laccedilos

A psicopedagoga e a psicoacuteloga da escola adoraram a ideia ldquoTudo o que vem para nos ajudar a

gente aceita A gente precisa de ajuda com os alunos que natildeo sabem ler e escrever e que natildeo

podem repetir de ano Eles satildeo muito agitados e hiperativos Alguns tecircm laudo Natildeo obedecem

mais As matildees natildeo se preocupam mais com a educaccedilatildeo dos filhos Acham que a escola precisa

dar conta de tudo Poreacutem a escola natildeo eacute uma extensatildeo de casardquo

Numa reuniatildeo com responsaacuteveis pelas crianccedilas participantes para explicar o

funcionamento da oficina muitas queixas foram feitas sobre as professoras satildeo riacutegidas

exigentes datildeo tarefa quase todos os dias haacute conteuacutedos que os pais natildeo lembram mais e as

professoras os obrigam a fazer junto com os filhos que o filho chega machucado em casa e

ningueacutem sabe o que aconteceu que tem paacuteginas arrancadas do caderno e a professora natildeo sabe

quem fez que a professora apaga muito raacutepido do quadro e natildeo daacute tempo do filho copiar Muitas

crianccedilas tecircm laudo e natildeo tomam remeacutedio e isso pode ser perigoso porque podem bater nos

colegas e as professoras natildeo cuidam Quanto agrave proposta da oficina adoraram

Os elementos cecircnicos na escola eram praticamente os mesmos talvez as funccedilotildees fossem

ainda as mesmas o cenaacuterio os papeis Mas havia algo novo um novo arranjo um novo

discurso Ouviam-se termos como ldquolaudordquo ldquohiperatividaderdquo ldquoencaminhamento para meacutedicordquo

Havia um pedido de ajuda de algo que operasse entre pais e professores entre professores e

alunos E natildeo era um pedido pela oficina

Logo a ministrante percebeu que as crianccedilas natildeo queriam aprender fundamentos do jogo

cecircnico para que atraveacutes da representaccedilatildeo teatral apresentassem e elaborassem questotildees

214

subjetivas questotildees que ela natildeo sabia quais eram e pensava que natildeo vinham ao caso pois ali

natildeo era uma terapia Suas questotildees subjetivas deveriam aparecer apenas em jogo em cena

Encontrar um tom entre a professora de teatro e uma posiccedilatildeo de escuta era um desafio

uma busca contiacutenua Num desses dias de encontrar um tom uma das meninas respondeu a uma

pergunta oacutebvia da ministrante Ela queria saber como era ser crianccedila como sabiam que eram

crianccedilas ldquoEacute oacutebvio que somos crianccedilas natildeo estaacute vendo Acha que somos o quecirc Cococirc de

cavalordquo

No teatro cococirc de cavalo mais conhecido como merda eacute sinal de que uma encenaccedilatildeo

fez sucesso Quando essa expressatildeo surgiu os espectadores iam ao teatro de charrete puxada

por cavalos Desejava-se que os arredores do local ficassem cheios de merda Por isso que hoje

desejam merda aos atores que vatildeo entrar em cena eacute uma forma de desejar-lhes sorte

Essa foi uma forma de interpretar que a ministrante estava em busca dos resultados do

sucesso de sua proposta Aleacutem disso estava diante de crianccedilas Os alunos com dificuldades

eram antes de tudo crianccedilas Crianccedilas que brincam que pulam que correm Desejam sair desse

lugar de resto excremento constituir-se como sujeitos

Foi assim brincando experimentando de modo caoacutetico impaciente urgente destrutivo

uma atividade apoacutes a outra um livro apoacutes o outro sem tempo para pausas que criaram uma

atividade que os capturou como grupo uma brincadeira de escola Brincar de ser a professora

de ser a diretora de ser a aluna ou o aluno mais inteligente da escola ou o mais perigoso ou

um aluno adolescente do ensino meacutedio Brincar de escrever no quadro brincar de ensinar de

escrever o proacuteprio nome o nome do colega de procurar nos livros as letras do seu nome ou de

palavras que significavam algo importante para eles O faz-de-conta da sala de aula durava todo

o tempo da oficina eles mesmos regulavam criavam regras entravam num acordo de quem

seria a professora e por quanto tempo Agraves vezes retornavam ao caos novos membros entravam

no grupo outros saiacuteam porque jaacute sabiam ler e escrever ou entatildeo porque saiacuteam ou mudavam de

escola

Natildeo sei bem como as oficinas chegaram ao fim a ministrante queria muito que as

professoras vissem os alunos brincando contava para elas durante o intervalo ou na porta da

sala o que os alunos faziam nos encontros Elas sorriam agradeciam perguntavam sobre um

ou outro que lhes causava mais preocupaccedilatildeo Nunca assistiram A ministrante pensou em

formar uma oficina das professoras Propocircs para a coordenadora pedagoacutegica e para a psicoacuteloga

que se reunissem agrave tardinha mas elas jaacute avisaram que as professoras natildeo teriam interesse Natildeo

215

quis insistir Tambeacutem natildeo tinha convicccedilatildeo de que queria mesmo isso Matildees reclamaram que os

filhos estavam perdendo aula para participar das oficinas o que tambeacutem era uma preocupaccedilatildeo

da ministrante mas era o uacutenico horaacuterio possiacutevel A tentativa de marcar meia hora antes da aula

ou apoacutes a aula natildeo funcionou

Apoacutes trecircs semestres de atividades as oficinas terminaram Afinal qual era a funccedilatildeo da

ministrante naquele cenaacuterio Era um trabalho sutil uma ponte das crianccedilas com seu desejo de

aprender algo que pode acontecer de outras formas natildeo com uma oficina ldquoAs crianccedilas acabam

aprendendo de uma forma ou de outrardquo pensava

Nas brincadeiras de sala de aula que as crianccedilas inventavam muitas vezes as professoras

eram brabas furiosas xingavam os alunos por qualquer motivo mandavam sentar calar a boca

ameaccedilavam com bilhete para casa davam nota zero para a maioria mandavam copiar tudo do

quadro e natildeo aguardavam apagavam rapidamente Os alunos favoritos geralmente dois

ganhavam nota dez e eram alvo de chacota Os que faziam os alunos mais rebeldes provocavam

a professora perguntando em demasia reclamando que um colega empurrou pedindo para ir

ao banheiro

Algumas vezes as professoras eram doces inventavam algum conteuacutedo sobre qualquer

coisa explicavam pacientemente os alunos faziam as atividades com calma um desenho

respondiam as perguntas de uma folhinha que a professora entregava Depois ela passava de

classe em classe avaliando o que cada um estava fazendo Estaacute muito bom mas pode melhorar

soacute errou duas ou entatildeo acertou todas nota dez vai ser o ajudante do dia Muitas vezes isso

acontecia com aquelas crianccedilas mais difiacuteceis Havia um menino que era alvo de queixa de toda

a escola porque sempre se metia em confusatildeo Ameaccedilava colegas o tempo todo fazia

comentaacuterios preconceituosos que prontamente eram sinalizados pelos outros que o faziam se

desculpar pedindo o apoio da ministrante Muitas vezes gritava que queria matar sua matildee que

a odiava Gritava que natildeo gostava de sua professora que era brega e chata

Um dia disseram que ele seria o professor Ficou constrangido natildeo sabia como agir

mas aceitou Oscilou entre os dois papeis de um professor perverso e um professor amoroso

A turma divertiu-se muito com ele riam de seu jeito furioso e da imitaccedilatildeo que apareceu na hora

Perverso para demandar tarefas amoroso para corrigir Conferiu o caderno de cada aluno seu e

fez um certinho de laacutepis vermelho Natildeo se sentiu confortaacutevel quis interromper a encenaccedilatildeo

disse que tinha feito errado que natildeo sabia brincar de ser o professor mas a turma o aprovou eacute

216

assim mesmo que acontece as professoras agraves vezes satildeo brabas e agraves vezes satildeo queridas Agraves vezes

elogiam datildeo notas boas agraves vezes gritam e datildeo zero

Algo se passou com o menino difiacutecil e raivoso certamente natildeo uma mudanccedila definitiva

mas se mostrou mais amigo da turma emprestou materiais a quem natildeo tinha oferecia-se para

ajudar a arrumar a sala mas desestabilizava-se facilmente Fugia do grupo corria pelo paacutetio e

voltava O olhar da professora e da escola sobre ele parecia seguir o mesmo natildeo havia

diferenccedila Jaacute haviam pedido para a matildee levaacute-lo a um meacutedico levaacute-lo ao CAPS porque

certamente tinha algum problema era hiperativo com certeza soacute natildeo tinha laudo mas a matildee

pouco se importava Natildeo sabia nem quem era seu pai A psicoacuteloga da escola sabia dessa

situaccedilatildeo conhecia sua histoacuteria de vida mas dizia e defendia que haacute coisas que a escola natildeo

pode e nem deve dar conta vatildeo aleacutem do papel dela e das professoras Aleacutem de um papel de

educar ldquoEducaccedilatildeo vem do berccedilo de casa [] aqui as professoras ensinam a ler a escrever a

fazer contas Tudo o que estaacute aleacutem disso eacute um problema para os pais resolverem [] eu ajudo

escuto encaminho mas eles satildeo os responsaacuteveisrdquo

Nas brincadeiras de sala de aula as aprendizagens de leitura e escrita as contas eram

meras coadjuvantes Brincavam na imprecisatildeo dessas habilidades pouco importava se estava

realmente certo agraves vezes simulavam escritas faziam rabiscos faz de conta que sabiam escrever

O que os movia ali era o jogo de relaccedilotildees era ser algueacutem que sabia ser um aluno comportado

ser a professora

A ministrante sabia que as representaccedilotildees de mestres que apareciam em cena natildeo

correspondiam diretamente ao modo de ser ou agrave personalidade das professoras dos primeiros

anos Quem eram entatildeo essas personagens caricatas Eram produtos de suas relaccedilotildees com as

professoras era o que sustentava esse viacutenculo era um oacutedio e um amor encenados era a

transferecircncia operando para que o desejo de aprender acontecesse

Freud no texto ldquoAlgumas reflexotildees sobre a psicologia do escolarrdquo de 1914 ao discursar

no aniversaacuterio de sua escola primaacuteria fala-nos que como estudantes ele e seus colegas

poderiam tanto amar quanto odiar seus professores inventando simpatias e antipatias que natildeo

provinham dos mestres mas de projeccedilotildees do lugar de aluno em direccedilatildeo a esse lugar ocupado

por aquela figura que organiza uma sala de aula Para Freud

[] eacute difiacutecil dizer se o que exerceu mais influecircncia sobre noacutes e teve importacircncia maior foi a nossa preocupaccedilatildeo pelas ciecircncias que nos eram ensinadas ou pela personalidade de nossos mestres Eacute verdade no miacutenimo que esta segunda preocupaccedilatildeo constituiacutea uma corrente oculta e constante em

217

todos noacutes e para muitos os caminhos das ciecircncias passavam apenas atraveacutes de nossos professores Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos ndash porque natildeo admitir outros tantos ndash ela foi por causa disso definitivamente bloqueada (FREUD 19141996a p 286)

As professoras tinham na escola essa tarefa de dar um suporte de sustentar acolher

projeccedilotildees Difiacutecil oferecer-se assim de matriz a receber inscriccedilotildees demandas que natildeo satildeo suas

Mas eacute assim que a educaccedilatildeo pode acontecer Enquanto ensinam conteuacutedos satildeo suporte de

outras coisas de cada um dos alunos para que a relaccedilatildeo ensino aprendizagem opere E sobre

os alunos o que elas pensavam o que esperavam deles Falavam de um ou de outro

atravessadas por um vieacutes diagnoacutestico que estava aleacutem de sua alccedilada de sua responsabilidade

de seu fazer de seu saber

A maioria dos participantes do grupo havia sido encaminhada pelas professoras em

funccedilatildeo de seu comportamento hiperativo Para elas a dificuldade de aprender estava

relacionada agrave hiperatividade pois se conseguissem parar e prestar atenccedilatildeo certamente

aprenderiam Se pudessem ter um tempo soacute com eles individualmente sentar ao lado ajudar a

organizar o caderno acreditam que conseguiriam fazecirc-los aprender Mas com uma turma de

mais de vinte crianccedilas natildeo conseguem Por isso agradeciam a ajuda da psicoacuteloga da escola e da

ministrante das oficinas que conseguiam dar uma atenccedilatildeo mais individualizada a esses alunos

Ao ler essas passagens registros de uma oficineira parece-me que as pessoas que

trabalham na escola sabem que haacute algo novo que emerge em sala de aula uma urgecircncia que

aparece com alguns alunos e para a qual natildeo se sentem aptas a contornar Entendem que isso

estaacute para aleacutem de suas possibilidades Firmam-se ao protocolar agravequilo que funcionava quando

foram alunos ao que lhes foi transmitido em suas formaccedilotildees docentes O que natildeo se organiza

dentro dessas arestas entendem que natildeo lhes pertence A responsabilidade eacute dos pais a

educaccedilatildeo vem do berccedilo dizem Ou entatildeo a crianccedila tem um problema eacute hiperativa logo a

responsabilidade eacute do meacutedico que iraacute atendecirc-la Mas apesar disso que pode ser nomeado de

hiperatividade apesar dessa coisa que escapa agrave educaccedilatildeo formal haacute um desejo de ensinar

imaginam uma situaccedilatildeo em que sentam ao lado do aluno e lhe datildeo uma atenccedilatildeo diferenciada

Esse gesto seria potente diante da indisciplina Por que natildeo encorajaacute-lo

A posiccedilatildeo da escola de armar bem suas arestas definir seus limites dizer qual seu papel

qual seu lugar eacute digno e responsaacutevel

A proponente da oficina descobriu que os participantes eram crianccedilas ndash um lugar

investido para aleacutem de um resto de uma merda Precisou reconhecer esse lugar para que a

218

oficina ganhasse uma forma criada e inventada em grupo que fez aparecer algo em comum as

coisas que natildeo aparecem quando satildeo alunos que natildeo satildeo vistas Seus afetos seus desejos a

atualizaccedilatildeo da transferecircncia

Na sala de aula poreacutem eles satildeo alunos Devem ser alunos Assim como as professoras

em sala de aula devem ser professoras Eacute esse o papel que pais e sociedade lhes exigem

Quantas coisas invisiacuteveis gostariam tambeacutem de tornar visiacuteveis em suas falas expressar de

alguma forma o que sentem Quem as escuta As professoras resistem A escola resiste com

suas folhinhas mimeografadas cheirando a aacutelcool

219

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ZOLA I K Medicine as an institution of social control The sociological review ano 4 n 20 1972

Page 2: Desenlace e experiência educativa: o trágico e a medicalização

ANA PAULA BELLOCHIO THONES

Desenlace e experiecircncia educativa o traacutegico e a medicalizaccedilatildeo

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Educaccedilatildeo

Aacuterea de concentraccedilatildeo Arte linguagem e curriacuteculo Orientadora Profa Dra Simone Zanon Moschen

Porto Alegre

2019

CIP - Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo

Bellochio Thones Ana Paula Desenlace e experiecircncia educativa o traacutegico e amedicalizaccedilatildeo Ana Paula Bellochio Thones -- 2019 224 f Orientadora Simone Zanon Moschen

Tese (Doutorado) -- Universidade Federal do RioGrande do Sul Faculdade de Educaccedilatildeo Programa dePoacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Porto Alegre BR-RS 2019 1 Cena escolar 2 Trageacutedia antiga 3Psicanaacutelise 4 Medicalizaccedilatildeo I Zanon MoschenSimone orient II Tiacutetulo

Elaborada pelo Sistema de Geraccedilatildeo Automaacutetica de Ficha Catalograacutefica da UFRGS com osdados fornecidos pelo(a) autor(a)

Nome THONES Ana Paula Bellochio

Tiacutetulo Desenlace e experiecircncia educativa o traacutegico e a medicalizaccedilatildeo

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Educaccedilatildeo

Banca examinadora

_____________________________________________________________

Dra Lucia Serrano Pereira ndash Associaccedilatildeo Psicanaliacutetica de Porto Alegre (APPOA)

_____________________________________________________________

Prof Dr Marcelo de Andrade Pereira ndash Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

______________________________________________________________

Prof Dr Gilberto Icle ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

_____________________________________________________________

Profa Dra Simone Zanon Moschen (orientadora) ndash Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (UFRGS)

Agrave Martina

vida que pulsa

AGRADECIMENTOS

A escrita de um trabalho de doutorado demanda periacuteodos solitaacuterios No entanto entendo

que o escrever se torna possiacutevel em decorrecircncia de momentos compartilhados com pessoas

acolhedoras com pessoas que instigam o pensamento que oferecem novas leituras de mundo

proporcionando agrave escrita movimentos importantes Gostaria de agradecer a algumas dessas

pessoas que estiveram comigo de algum modo durante o curso de doutorado

Ao meu amor Anderson por compreender os periacuteodos em que precisei me ausentar e

apoiar a realizaccedilatildeo deste sonho Pelo pensamento inquieto pelo coraccedilatildeo imenso

Agrave querida prima Fernanda por ter me acolhido em seu lar durante a estadia em Porto

Alegre pela companhia carinhosa pelas longas conversas

Agrave minha famiacutelia por ser a base Embora longe estatildeo sempre presentes

Agrave minha orientadora Simone pela acolhida ao curso e pelo convite inicial a me perder

A traccedilar um caminho para depois descobrir para onde aponta a buacutessola Agradeccedilo pela leitura

cuidadosa e sensiacutevel por ajudar a transformar minhas inquietaccedilotildees em questotildees de pesquisa

pelas perguntas e provocaccedilotildees que me desacomodaram e me ajudaram a encontrar um novo

tom de escrita

Agrave querida Anna Letiacutecia por inspirar delicadeza e criatividade pelo olhar atento e

cuidadoso pelo interesse sincero nas coisas e nas pessoas agrave Patriacutecia pela companhia calma e

agradaacutevel pela parceria afetuosa nas aulas de Educaccedilatildeo Terapecircutica agrave Tatianne pela amizade

de infacircncia apoacutes os 30 anos por apresentar autoras e livros fascinantes agrave Lia por sustentar ao

mesmo tempo ternura e um pensamento vivaz e criacutetico

Aos demais colegas que fazem e fizeram parte do grupo de orientaccedilatildeo agradeccedilo pelos

momentos de um escrever junto(s) Janniny Luiacutesa Pedro Sthefan Thiago Camila Luiacutes

Adriano Luiacutes Henrique Carmela e Daniel

Agraves ldquoamigas geniaisrdquo Helena Karla e mais uma vez Tati e Lia pela parceria no grupo

de leitura da obra de Elena Ferrante e pelo curso de extensatildeo que resultou desses encontros

Aos membros do Nuacutecleo de Pesquisa em Psicanaacutelise Educaccedilatildeo e Cultura (NUPPEC)

agradeccedilo pelos encontros inspiradores pela companhia em jornadas e viagens pela pergunta

sobre como viver junto(s) Agradeccedilo especialmente agrave Claacuteudia e agrave Elaine por serem educadoras

inteligentes e encantadoras agrave Liacutevia e agrave Sofia pela alegria e sensibilidade contagiantes e ao

Jeferson pela admiraacutevel dedicaccedilatildeo ao nuacutecleo de pesquisa pela revisatildeo cuidadosa deste

trabalho

Agradeccedilo ao Marcelo e agrave Luacutecia pelas preciosas contribuiccedilotildees na qualificaccedilatildeo do projeto

e por aceitarem o convite para compor a banca final Ao Gilberto por aceitar fazer parte da

banca de defesa Agrave Carla pela leitura e participaccedilatildeo da banca do projeto

Aos colegas professores e funcionaacuterios do PPGEdu

Agrave CAPES e

Aos professores e agraves professoras que me educaram

Haacute muitas maravilhas mas nenhuma

eacute tatildeo maravilhosa quanto o homem

[]

Soube aprender sozinho a usar a fala

e o pensamento mais veloz que o vento

e as leis que disciplinam as cidades

[]

ocorrem-lhe recursos para tudo

e nada o surpreende sem amparo

somente contra a morte clamaraacute

em vatildeo por um socorro embora saiba

fugir ateacute de males intrataacuteveis

(Coro em Antiacutegona de Soacutefocles)

Os poetas satildeo aliados valiosiacutessimos e seu testemunho deve ser levado

em alta conta pois conhecem muitas coisas entre o ceacuteu e a terra cuja

existecircncia nem sonha nossa sabedoria acadecircmica No conhecimento

da alma [Seele] estatildeo agrave nossa frente homens comuns pois se nutrem

em fontes que ainda natildeo tornamos acessiacuteveis agrave ciecircncia

(Sigmund Freud El delirio y los suentildeos en la Gradiva de W Jensen)

RESUMO

Este trabalho tem iniacutecio com uma narrativa que encena o encontro entre personagens implicadas

com o mal-estar que surge na escola oriundo de problemas de aprendizagem e comportamento

apresentados por uma crianccedila de seis anos O trabalho de pesquisa busca dar desdobramento

aos impasses eacuteticos indicados pela histoacuteria impasses que surgem no embate de personagens

que ocupam posiccedilotildees discursivas diferentes Constata-se que os processos de medicalizaccedilatildeo da

vida que adentram a cena escolar se apresentam como uma soluccedilatildeo possiacutevel oferecida pela

escola a crianccedilas diagnosticadas com TDAH Diante dessa constataccedilatildeo a tese avanccedila no sentido

de se perguntar quais as condiccedilotildees de autorizaccedilatildeo da escola no que se refere agraves dificuldades

com a escolarizaccedilatildeo desses alunos A leitura da situaccedilatildeo vivenciada na escola e na cliacutenica nos

remete aos modos de desenlace operados pelo traacutegico e agrave forma como eram apresentados pelas

trageacutedias claacutessicas ndash como ocorre em Eacutedipo Rei e Antiacutegona de Soacutefocles tomadas

respectivamente por Freud e Lacan ndash e como ao longo dos seacuteculos foram sendo substituiacutedos

por novas esteacuteticas teatrais causa e ao mesmo tempo consequecircncia de transformaccedilotildees

filosoacuteficas e poliacuteticas Como exemplo desse novo modelo temos as trageacutedias de Euriacutepides

autor considerado por Nietzsche como iacutecone da derrocada da arte traacutegica Dessa forma nossa

investigaccedilatildeo interroga o ponto de virada de um arranjo cecircnico para outro A passagem de um

enredo traacutegico no qual a insolubilidade do conflito organiza a trama para o ensinamento moral

como buacutessola dos desdobramentos do roteiro indica elementos que permitem pensar sobre o

que opera no apelo ao saber meacutedico feito pela escola A tese sustenta que podemos aprender

sobre a cena escolar com a anaacutelise da cena traacutegica onde ocorrem encontros e desencontros onde

se travam as relaccedilotildees que abrem ou natildeo espaccedilo ao exerciacutecio do desejo Sustenta-se que constitui

tarefa importante para a escola de nosso tempo para pais e matildees de alunos e para os

profissionais meacutedicos e psicoacutelogos que satildeo chamados a oferecer soluccedilotildees ter no horizonte de

seu fazer um trabalhar em conjunto reconhecendo os limites e alcances implicados na atuaccedilatildeo

de cada um em um jogo que em vez de excluir o outro convoca-o a falar a partir de seu lugar

de saber

Palavras-chave Cena escolar Medicalizaccedilatildeo Trageacutedia antiga Psicanaacutelise

ABSTRACT

Begining this work with a narrative that sets the meeting between characters involved in malaise

that arises at school through learning and behavioral problems presented by a 6 years old child

The research work seeks to unfold the ethical impasses indicated by history impasses that arise

in the clash of characters that occupy different discursive positions When we look at the

processes of medicalization of life that enter the school scene we understand that the appeal to

medical knowing and the consequent medication prescription of methylphenidate is a possible

solution offered by the school to children diagnosed with ADHD In view of this the thesis

advances in order to ask what are the conditions of authorization of the school regarding the

difficulties with the schooling of these students The reading of the situation experienced in the

school and in the clinic reminds us of the modes of denouement operated by the tragic and how

they were presented by classical tragedies - as in Sophocles Oedipus King and Antigone taken

respectively by Freud and Lacan- and how over the centuries it has been replaced by new

theatrical aesthetic cause and at the same time consequence of philosophical and political

transformations As an example of this new model we have the tragedies of Euripides author

considered by Nietzsche as icon of the collapse of tragic art In this way our investigation

questions the turning point of one scenic arrangement to another The transition from a tragic

plot in which the insolubility of the conflict organizes the story to a moral one as a compass

of the script unfolding indicates elements that allow to think about what operates in the appeal

to the medical knowing made by the school The thesis holds that we can learn about the school

scene by analyzing the tragic scene where encounters and mismatches occur where the relations

open or not to the exercise of desire It is argued that it is an important task for the school of

our time for parents and mothers of students and for the medical professionals and

psychologists who are called to offer solutions have in the horizon of their doing a work

together recognizing the limits and scopes implied in the agency of each one in a play that

instead of excluding the other summons it to speak from its place of knowing

Keywords School scene Medicalization Ancient tragedy Psychoanalysis

SUMAacuteRIO

PROacuteLOGO 12

INTRODUCcedilAtildeO 65

Os caminhos da pesquisa 69

1 A MEDICALIZACcedilAtildeO NA CENA EDUCATIVA E A CONSTITUICcedilAtildeO DO TDAH

72

11 MARGUERITE ou um recorte da histoacuteria da RITALINA 81

12 RITALINA e o consumo de metilfenidato por escolares 84

2 A TRAGEacuteDIA ANTIGA E A CONSTITUICcedilAtildeO DA PSICANAacuteLISE 91

21 A trilogia tebana de Soacutefocles Eacutedipo Rei e o inconsciente 92

22 Eacutedipo (e Antiacutegona) em Colono 93

221 O mito de fundaccedilatildeo de Tebas 96

222 O destino dos Labdaacutecidas 99

23 Antiacutegona heroiacutena traacutegica da eacutetica da psicanaacutelise 101

231 Aacutetē Omos Mecircrima 103

232 Desejo do Outro primordial e castraccedilatildeo 107

233 Antiacutegona ex nihilo e as leis natildeo escritas 111

234 A dimensatildeo do belo 117

235 A mulher Antiacutegona 122

3 O TRAacuteGICO 125

31 Noccedilotildees do traacutegico e da trageacutedia 125

311 O conflito insoluacutevel 125

312 Khocircra 128

313 A funccedilatildeo do logos 129

314 O estranho-familiar e a trageacutedia 131

32 A trageacutedia na Poeacutetica de Aristoacuteteles 136

33 A morte da trageacutedia 140

331 Apoliacutenio-dionisiacuteaco 141

332 Euriacutepides por Nietzsche 147

333 Deus ex machina euripidiano 153

4 EDUCAR E SEUS IMPASSES 163

41 A medicalizaccedilatildeo como deus ex machina na escola e seus efeitos 166

42 A falta como operadora da criaccedilatildeo 172

5 MEDEIA 175

51 ldquoAndarilha de incertas geografiasrdquo 175

52 Medeia de Euriacutepides 178

521 Hoacuterkos 180

522 Sopheacute 182

523 Aacutetē 185

524 Medeia ex machina como desenlace 187

525 Phaacutermakon e pharmakoacutes 191

526 Ananke 194

53 ldquoa raccedila fecircmea ignora como haurir algo elevado saacutebia quando edifica o horror do fadordquo

197

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 201

61 Natildeo definimos o lugar que ocupamos na relaccedilatildeo transferencial 203

62 O lobo do homem eacute o lobo no homem 204

63 A educaccedilatildeo agrave sombra da medicalizaccedilatildeo 205

64 Medicalizaccedilatildeo na escola e dever moral 205

65 Solucionar o problema eacute enunciaacute-lo 206

EPIacuteLOGO 209

REFEREcircNCIAS 219

12

PROacuteLOGO

Todo estudo sobre a infacircncia implica o adulto suas reaccedilotildees e preconceitos

(Mannoni 2003 p 30)

Gostariacuteamos de apresentar este estudo que envolve as dificuldades de aprendizagem de

uma crianccedila com essa consideraccedilatildeo inicial feita por Maud Mannoni em seu livro A crianccedila

sua doenccedila e os outros Para a psicanalista embora a ldquodoenccedilardquo falada pelos pais possa ser

localizada na pessoa da crianccedila afinal eacute o filho ou filha que porta os sintomas eacute pela fala dos

pais que a doenccedila se apresenta e nesse sentido eles ldquoos outrosrdquo estatildeo tambeacutem implicados no

mal-estar Mannoni fala que como adulto o psicanalista pode tambeacutem encontrar um limite na

escuta da mensagem que a crianccedila lhe transmite Dessa forma o tiacutetulo da referida obra inspira

o nome que podemos dar ao caso cliacutenico que seraacute contado

A ESCOLA sua PARCEIRA e outra crianccedila com TDAH

A histoacuteria que estaacute prestes a se desenrolar eacute tecida no encontro entre seis personagens

principais encontro no qual todas elas estatildeo implicadas no mal-estar que surge A narrativa

pode apresentaacute-las de acordo com seu papel social de acordo com sua funccedilatildeo para a histoacuteria

para que o caso se construa natildeo esquecendo tampouco o lugar a partir do qual a narramos

lugar que deslinda uma certa forma de contar e uma certa forma de resistir a contar Nesse

sentido escolhemos fazer da seguinte forma

A coordenadora pedagoacutegica da ESCOLA

A meacutedica (a PARCEIRA da escola)

A crianccedila com TDAH (aluno filho paciente)

A psicoacuteloga

A professora

A matildee

Incluiacutemos mais uma personagem Noacutes que estaacute fora de cena e assume o papel de falar

diretamente com o leitor Eacute uma posiccedilatildeo que busca fundar no jogo cecircnico um terceiro espaccedilo

13

Eacute importante tambeacutem situarmos o tempo

Deacutecada de 2010

A duraccedilatildeo da histoacuteria abrange um periacuteodo letivo em trecircs TEMPOS Outono Inverno e

Primavera

E o local

Cidade de Caxias do Sul ou outra no estado do Rio Grande do Sul

Neste instante deixamos a narrativa em primeira pessoa do plural para experimentar

contar a histoacuteria como um texto dramatuacutergico Entramos em cena

TEMPO 1

Outono

CENA 1

Casa da PSICOacuteLOGA Entardecer

O telefone toca Ela corre para atender

Pedagoga

Alocirc aqui quem fala eacute a coordenadora pedagoacutegica do primeiro ciclo da ESCOLA Tem

um aluno nosso do primeiro ano do ensino fundamental que estaacute em tratamento psicoloacutegico

contigo

Psicoacuteloga

Ah sim sei quem eacute Estaacute em atendimento desde agosto Em que posso ajudar

14

Pedagoga

Sim a matildee dele me disse Estou te ligando para falar que noacutes natildeo sabemos mais o que

fazer com ele porque natildeo para quieto natildeo presta atenccedilatildeo nas aulas natildeo estaacute seguindo o ritmo

de aprendizado da turma Desde a educaccedilatildeo infantil ele eacute assim e o mau comportamento soacute

piora

Psicoacuteloga (para si mesma)

Natildeo segue o ritmo de aprendizado Mas quanto ele deveria ter aprendido em poucas

semanas de aula

Noacutes

Eacute preciso considerar que a preocupaccedilatildeo da escola deve ser reconhecida afinal a

pedagoga estaacute dizendo que tais sintomas jaacute haviam sido observados no ano anterior

Pedagoga (continua)

Achamos que ele tem TDAH e precisa de um tratamento A matildee disse que ele jaacute estava

em acompanhamento psicoloacutegico contigo e noacutes sugerimos tambeacutem uma psiquiatra infantil que

eacute PARCEIRA DA ESCOLA

Psicoacuteloga

A meacutedica eacute parceira da escola

Pedagoga

Sim noacutes costumamos encaminhar nossas crianccedilas com TDAH para que ela faccedila uma

avaliaccedilatildeo

15

Psicoacuteloga

Estaacute certo Bom eu acredito que no momento o menino pode ficar apenas com o

atendimento psicoloacutegico jaacute que as aulas comeccedilaram haacute pouco e ele ainda estaacute passando por um

processo de adaptaccedilatildeo A mudanccedila da educaccedilatildeo infantil para o primeiro ano eacute bem marcante

na vida de uma crianccedila

Pedagoga

Claro Mas ele pode seguir os atendimentos contigo sim mas no caso de uma crianccedila

com TDAH quanto mais completo o atendimento quanto mais profissionais envolvidos

melhor Tem vaacuterias psicoacutelogas na cidade que trabalham em parceria com a psiquiatra

Noacutes

Seraacute a medicalizaccedilatildeo um caminho necessaacuterio A psicoacuteloga estaacute tatildeo segura de suas

intervenccedilotildees cliacutenicas de suas conversas com a matildee de entender as causas dos sintomas tatildeo

certa de sua abordagem cliacutenica a psicanaliacutetica Quanto agrave matildee ela tambeacutem estaacute preocupada

com o comportamento do filho pois a inquietaccedilatildeo e a dispersatildeo em sala de aula estatildeo

comeccedilando a aparecer cada vez mais em casa Sua maior preocupaccedilatildeo eacute a aprendizagem da

leitura e da escrita

Psicoacuteloga

Entendo Mas ainda que ele esteja demonstrando agitaccedilatildeo dispersatildeo isso natildeo quer dizer

que ele tenha um transtorno

Pedagoga

Entatildeo tu achas que ele natildeo eacute TDAH

16

Psicoacuteloga

Natildeo podemos afirmar isso soacute com esses dados do comportamento dele na escola

Existem outras coisas acontecendo com ele na famiacutelia na relaccedilatildeo com os pais que podem estar

ocasionando os sintomas

Pedagoga

Entatildeo noacutes vamos fazer o seguinte vou te pedir que me apresente um laudo pode ser

Um laudo bem completo bem fundamentado com revisatildeo do DSM com teste de inteligecircncia

Psicoacuteloga

Eu natildeo costumo trabalhar dessa forma com testes mas eu posso fazer uma avaliaccedilatildeo

psicoloacutegica

Pedagoga

Entatildeo eu posso indicar para a matildee umas psicoacutelogas aqui da cidade que fazem

Psicoacuteloga

Tudo bem Ele eacute meu paciente eu mesma faccedilo

Pedagoga

Eacute importante fazermos porque se ele natildeo for TDAH ele pode ser TOD entatildeo tem que

fazer um diagnoacutestico diferencial

Psicoacuteloga (para si mesma)

Toddy

17

Pedagoga

E tu podes me entregar quando Eu preciso o mais breve possiacutevel

Psicoacuteloga

Pode deixar vou fazer o quanto antes Preciso tambeacutem conversar com a professora para

ver o que ela acha Entro em contato para marcar a conversa

Pedagoga

Estaacute bem Fico no aguardo Vamos tentar resolver esse problema Tchau

Psicoacuteloga

Tchau

Ambas desligam o telefone A psicoacuteloga senta no sofaacute da sala

Psicoacuteloga (para si)

ldquoParceira da ESCOLArdquo uma psiquiatra Isso eacute muito estranho O que seraacute que ela faz

Diagnostica as crianccedilas mais agitadas com TDAH e daacute Ritalina Soacute pode ser isso Assustador

Imagina soacute se uma escola oferece como praacutetica pedagoacutegica o encaminhamento para um

tratamento psiquiaacutetrico tem alguma coisa errada com a ESCOLA Natildeo natildeo Isso natildeo eacute

possiacutevel Teste de inteligecircncia Toddy o que eacute isso Tenho muito trabalho pela frente

Noacutes

Ainda que se dedique a estudar o campo da Educaccedilatildeo a psicoacuteloga parece estar distante

dos saberes que circulam pela escola De que forma conseguiraacute escutaacute-los

18

CENA 2

Escritoacuterio da casa da psicoacuteloga Noite

Psicoacuteloga procura o DSM entre livros encaixotados

Psicoacuteloga (para si)

Por que a professora ou a coordenadora pedagoacutegica natildeo podem elas mesmas ajudar o

menino em seu processo de adaptaccedilatildeo ao ensino fundamental Existem tantas oficinas naquela

ESCOLA pra ele interagir com os colegas Eacute isso que estaacute acontecendo com ele natildeo eacute um

transtorno De resto se ele estaacute mais agitado e disperso como ela disse isso eacute fruto do lugar

que ocupa no desejo da matildee eu bem sei Bom vou escrever isso no laudo Ah achei

Finalmente

Noacutes

Muito se diz sobre o lugar que a crianccedila ocupa no desejo da matildee do investimento

narciacutesico da matildee em seu filho O menino tambeacutem vive com outra pessoa seu pai Por que natildeo

considerar tambeacutem o desejo do pai pelo filho

Psicoacuteloga abre o DSM

Psicoacuteloga

Eu achava que o trabalho da psiquiatra infantil poderia ser solicitado soacute em casos graves

como uma psicose infantil Vamos ver primeiro o TDAH Ah jaacute estaacute aqui logo no iniacutecio

ldquoTranstornos do neurodesenvolvimentordquo Vamos ver a paacutegina Aqui ldquoTranstorno de Deacuteficit

de AtenccedilatildeoHiperatividaderdquo

Psicoacuteloga lecirc os criteacuterios diagnoacutesticos e marca aquilo que mais lhe chama atenccedilatildeo

19

20

Psicoacuteloga (pensa em voz alta)

Bom pelo que conversei com a matildee dele e pelo que consigo observar na cliacutenica ele se

enquadra no subtipo hiperativoimpulsivo Ele contempla todos os criteacuterios a b c d e Mas

os sintomas estatildeo presentes nos uacuteltimos seis meses Acredito que natildeo Para o manual para

fechar o diagnoacutestico basta que a crianccedila tenha no miacutenimo 6 anos Ele acabou de fazer

aniversaacuterio posso escrever isso no laudo Realmente para esse manual o menino se enquadra

no TDAH Isso eacute inegaacutevel e indiscutiacutevel Aqui soacute existem verdades natildeo haacute discussatildeo Quem

sou eu para questionar Dos nove ldquosintomasrdquo tem que preencher no miacutenimo seis Um tatildeo

parecido com o outro Um sinal acaba levando a outro Que coisa olha soacute o sintoma ldquoerdquo acaba

levando ao sintoma ldquoardquo e ao sintoma ldquobrdquo Fazem parte do mesmo comportamento ora Por

que aparecem aqui como eventos diferentes Como uma crianccedila que se sente desconfortaacutevel

em ficar parada natildeo se mexeria na cadeira e nem se levantaria

Noacutes

Haacute sim crianccedilas que se sentem desconfortaacuteveis ao ficarem paradas e nem por isso se

movem No entanto elas acabam aprendendo a controlar seus corpos Haacute seacuteculos as classes

escolares satildeo iacutempares no exerciacutecio dessa habilidade mas nem sempre bem-sucedidas

Psicoacuteloga

Tem outra coisa muito curiosa aqui na descriccedilatildeo dos sintomas haacute uma referecircncia

constante a um outro No sintoma ldquobrdquo ldquose espera que permaneccedila sentadordquo Quem espera No

ldquoerdquo ldquooutros podem ver o indiviacuteduo como inquietordquo No ldquofrdquo ldquotermina a frase dos outrosrdquo Quem

satildeo os outros Incapaz de brincar calmamente Para quem Fala demais Para quem

ldquoInterromperdquo ldquose intrometerdquo o que quem Quem determina essa medida A famiacutelia A

ESCOLA A meacutedica Como esses outros ocupam o lugar de Outro para a crianccedila

21

CENA 3

Cliacutenica de psicoterapia Manhatilde

Psicoacuteloga e matildee conversam

Psicoacuteloga

A coordenadora pedagoacutegica da ESCOLA ligou esta semana para falar do teu filho

Matildee

Sim ela me avisou que ligaria que bom Estatildeo achando que ele eacute TDAH porque ele

anda muito inquieto na sala natildeo quer ficar sentado anda pelos corredores Lembra que eu jaacute

tinha comentado contigo que eu tambeacutem estava achando Aiacute querem uma ajuda com ele

falaram de uma psiquiatra tambeacutem mas eu disse que ele jaacute estava em acompanhamento contigo

por causa daqueles probleminhas de baixa autoestima dele

Psicoacuteloga

Eu queria falar contigo sobre um pedido que ela fez Ela sugeriu que eu faccedila um laudo

para avaliar se ele tem TDAH O que tu achas disso

Matildee

Pois eacute eu tambeacutem estou achando que ele tem alguma coisa pode ser hiperatividade

mesmo Ele estaacute realmente muito agitado principalmente quando chega em casa da escola ele

fica pulando sobe no sofaacute Eu queria que ele fizesse as tarefas mas ele natildeo faz natildeo se

concentra Eu fico com medo que ele natildeo aprenda ler e escrever

Psicoacuteloga

E tu tens observado isso desde quando Como ele estava na eacutepoca das feacuterias

22

Matildee

Natildeo durante as feacuterias ele estava bem fomos para a praia ele aproveitou bastante e aqui

na cidade ele dormia toda a manhatilde agrave tarde brincava sozinho ou com os primos Acho que ele

estaacute entrando num outro ritmo agora neacute Mas jaacute devia ter se adaptado foi o que disseram na

escola

Psicoacuteloga

Estaacute certo Entatildeo eu vou fazer um laudo conforme a coordenadora me pediu a partir das

sessotildees que jaacute tive com ele a partir das nossas conversas considerando a nova rotina dele a

idade e vou conversar com a professora dele na escola e fazer tambeacutem um teste psicoloacutegico

muito simples que consiste num desenho Antes de ficar pronto eu te digo o que escrevi e

entrego para a escola Pode ser

Matildee

Claro estaacute oacutetimo jaacute vou dizer pra ele fazer um desenho bem bonito

Psicoacuteloga

Vou tentar providenciar para semana que vem Vou te pedir agora para falar um pouco

do dia a dia dele como tem sido desde a volta das feacuterias como vocecircs se organizam como estatildeo

os horaacuterios

CENA 4

ESCOLA Periacuteodo da tarde

Na sala da coordenaccedilatildeo a psicoacuteloga aguarda a professora junto com a coordenadora

pedagoacutegica

23

Pedagoga

A professora soacute estaacute aguardando a supervisora ficar cuidando a turma para poder vir

falar contigo

Psicoacuteloga

Claro eu aguardo Preciso conversar com ela para ver o que estaacute acontecendo na sala

isso tambeacutem eacute importante para constar no laudo

Pedagoga

Sim eacute importante Mas as coisas natildeo se modificaram muito desde que eu te liguei ateacute

pioraram Ele teve uma crise esta semana

Psicoacuteloga

Uma crise

Pedagoga

Eu fiquei triste de ver porque ele estaacute sofrendo e a gente natildeo sabe o que fazer Ele queria

ir para casa gritou e chorou muito no corredor Entatildeo eu telefonei para a matildee dele vir buscar

ela veio e soacute assim ele se acalmou

Psicoacuteloga

Vou perguntar para ela depois como ele ficou Mas o que seraacute que aconteceu soube de

alguma coisa

Pedagoga

24

Ele natildeo consegue mais ficar na sala eacute muito hiperativo ele se levanta da cadeira pega

o material de algum colega conversa com outro a professora chama atenccedilatildeo pede para ele

parar quieto ele natildeo para ameaccedila tiraacute-lo da sala e acaba realmente encaminhando para caacute Isso

tem se repetido todos os dias

Noacutes

Ambos professora e aluno sabem de antematildeo o destino de uma cena que se repete todos

os dias a exclusatildeo da sala de aula Mas na repeticcedilatildeo haveria aposta em um resultado novo

Pedagoga

Ele vem ateacute aqui ficar comigo e aqui eu estou conseguindo ajeitar (A pedagoga sorri)

Enquanto eu trabalho ele faz uns desenhos faz a atividade da aula ele eacute um amor de crianccedila

muito cativante

Psicoacuteloga

Sim eacute uma crianccedila muito querida

Noacutes

Eacute acima de tudo ele eacute uma crianccedila todas sabemos disso Sabemos tambeacutem que tem um

dever a cumprir que eacute ser aluno A questatildeo que fica aqui eacute o que faz ele parar e trabalhar na

sala da coordenaccedilatildeo

Pedagoga

Mas natildeo podemos tornar isso um haacutebito Ontem eu natildeo estava na coordenaccedilatildeo quando

a professora tirou ele da sala ele natildeo quis retornar e aiacute teve a crise Noacutes estamos lidando assim

com ele por enquanto mas natildeo podemos seguir por muito tempo

25

Psicoacuteloga

Que bom que vocecircs encontraram uma forma e que ele faz atividades aqui contigo mas

entendo natildeo daacute pra seguir por muito tempo ele tem que se adaptar agrave sala

Pedagoga

Tu achas que eacute soacute uma questatildeo de adaptaccedilatildeo

Psicoacuteloga

Eu acho que essa eacute uma questatildeo importante sim mas estou fazendo o laudo Agora vou

tentar ver com a professora alguma alternativa

Professora entra na sala

Psicoacuteloga

Olaacute tudo bem professora

Professora

Tudo bem natildeo posso demorar (Para a pedagoga) Deixei uma atividade com eles a

supervisora ficou laacute mas daqui a pouco podem se dispersar

Pedagoga

Pode sentar aqui Essa aqui eacute a psicoacuteloga que veio falar da hiperatividade do teu aluno

Psicoacuteloga (para a pedagoga)

26

Eu gostaria de conversar a soacutes com a professora pode ser

Noacutes

Buscando a cumplicidade da professora a psicoacuteloga deixa de escutar a pedagoga

Conseguiria recuperar sua confianccedila

Pedagoga

Pode ser (Para a professora) Aqui estaacute o protocolo da reuniatildeo Vou ficar aqui ao lado

qualquer coisa pode me chamar

Psicoacuteloga (para a pedagoga)

Obrigada

Pedagoga sai

Professora

Noacutes temos que preencher essa folha aqui com o motivo da reuniatildeo o que foi tratado e o

encaminhamento mas eu vou fazendo ligeirinho enquanto a gente conversa

Psicoacuteloga

Certo Eu queria que tu me falasses sobre o teu aluno Como eacute ser professora dele

Professora

Olha eu vou ser bem sincera contigo Estaacute muito difiacutecil ele eacute muito hiperativo e isso

natildeo eacute de agora Ano passado ele jaacute era bastante agitado dava muito trabalho na educaccedilatildeo

infantil era agressivo com os colegas e agora no primeiro ano natildeo mudou muito Ele natildeo

27

consegue ficar quieto e eu falo para ele ficar sentado e ele natildeo fica (Fica nervosa suas matildeos

tremem) Quando eu viro para o quadro para escrever ele apronta alguma coisa mexe com

algum colega pega o material de algueacutem e diz que natildeo foi ele

Psicoacuteloga

E como satildeo as outras crianccedilas satildeo quietas

Professora

Na sala tem de tudo tem os mais quietinhos tem os mais agitados mas ele eacute diferente

ele me tira do seacuterio fica me desafiando quanto mais eu falo mais ele incomoda Estou cansada

saio daqui com dor de cabeccedila

Psicoacuteloga

E o que faz com que ele seja diferente dos outros para ti

Professora

Ele quer chamar atenccedilatildeo uma atenccedilatildeo que ele tem em casa com a matildee que tem contigo

no consultoacuterio que tem aqui com a coordenadora pedagoacutegica mas que eu natildeo posso dar afinal

tenho vinte alunos em sala

Psicoacuteloga

Sim eu entendo natildeo eacute faacutecil Deve ser muito cansativo Eu acho que ele gosta de ti jaacute

falou da professora pra mim das coisas que aprende contigo

Professora

Eu tambeacutem gosto dele Agraves vezes ele eacute carinhoso mas eacute quando ele quer natildeo eacute sempre

28

Psicoacuteloga

Nesses momentos em que ele eacute carinhoso isso eacute dito para ele de alguma forma Como

ele eacute um menino que estaacute com dificuldade de se adaptar ao ambiente escolar seria interessante

que ele tivesse alguns sinais de que as coisas estatildeo funcionando quando tu achar que estatildeo

Porque senatildeo sabe o que acontece Ele acha que estaacute sempre agindo errado e que natildeo vai

conseguir nunca se adequar agraves regras da escola

Professora

Eu tento fazer isso mas como satildeo muitos natildeo consigo dar uma atenccedilatildeo para cada um

Acredito que contigo com a matildee dele com a famiacutelia ele deve ser um amor de crianccedila sempre

porque vocecircs tecircm soacute uma crianccedila de cada vez mas comigo natildeo daacute certo comigo as coisas

funcionam de outro jeito

Psicoacuteloga

Qual jeito

Professora

Na minha aula ele tem que me obedecer respeitar as regras e isso natildeo estaacute acontecendo

Se ele natildeo obedece ele natildeo pode ficar na sala

Noacutes

E se ele natildeo fica na sala ele natildeo se educa No entanto ele soacute pode finalmente ldquoobedecerrdquo

ndash tomar para si coacutedigos de conduta presentes no ambiente ndash se for educado Entatildeo como saiacutemos

disso

Professora

29

Essa semana ele teve uma crise de choro Gritou pelos corredores todo mundo viu Eu

acho que ele estaacute muito imaturo para estar no primeiro ano Mas agora natildeo tem mais como

voltar atraacutes

Psicoacuteloga

O que noacutes podemos fazer para mudar a situaccedilatildeo entatildeo

Professora

Olha eu acho que ele vai seguir em acompanhamento contigo natildeo eacute Ele foi

encaminhado para a meacutedica tambeacutem por causa da hiperatividade

Psicoacuteloga

Pelo que entendi ele estaacute com um problema de socializaccedilatildeo ele natildeo estaacute conseguindo

seguir a rotina da escola pode ser por ser imaturo ainda ele eacute um dos mais jovens da turma

neacute Entatildeo noacutes podiacuteamos tentar ajudaacute-lo com isso a fazer um amigo pedir para ele ajudar em

alguma tarefa na sala de aula o que tu acha

Professora

Eu acho que pode ser eu vou escrever isso na folha como o que ficou combinado

Psicoacuteloga

Certo eu vou falar tambeacutem com os pais dele e com ele sobre isso Obrigada pela

conversa

Professora retorna agrave sala de aula

Pedagoga entra

30

Pedagoga

Foi tudo bem Conseguiram resolver alguma coisa

Psicoacuteloga

Sim noacutes conversamos sobre como ajudaacute-lo a se adaptar agrave escola estimular uma

atividade com um coleguinha fazer com que ele goste daqui

Pedagoga lecirc o protocolo

Pedagoga

Certo Eu conversei com a matildee dele e noacutes tomamos uma decisatildeo fazer uma readaptaccedilatildeo

curricular Ele fica na escola ateacute o horaacuterio do recreio porque no iniacutecio ele costuma estar mais

calmo mas depois do intervalo ele acaba transtornando

Psicoacuteloga

Ele natildeo vai assistir agraves aulas

Pedagoga

Eacute uma decisatildeo temporaacuteria Ele leva as atividades para casa e faz com a matildee Isso jaacute estaacute

acontecendo mas eu natildeo posso ficar cuidando dele Ele tem que entender que se ele natildeo ficar

na sala de aula natildeo vai poder ficar aqui comigo

Psicoacuteloga

Estaacute certo acho que eacute uma medida necessaacuteria para o momento Eu trago o laudo

semana que vem

31

CENA 5

Cliacutenica de psicologia Manhatilde

A psicoacuteloga apresenta o laudo psicoloacutegico agrave matildee

Psicoacuteloga

Inicialmente escrevi algumas caracteriacutesticas que observei na cliacutenica sobre ele ser uma

crianccedila ativa ao mesmo tempo observadora e criacutetica Escrevi sobre o fato de ele perceber que

seu atual modo de ser e de agir natildeo eacute bem aceito nos lugares que frequenta casa e escola

principalmente pois escuta queixas acerca de seu comportamento Ele sente que natildeo existe

outro jeito possiacutevel de ser e experimenta anguacutestia Escrevi que isso aparecia em forma de medo

de monstro de zumbi de ladratildeo e medo de morrer como ocorria com frequecircncia no ano

passado e que agora percebo que ele luta contra essa anguacutestia ao adotar um comportamento

agitado com o qual parece desafiar a professora

Bom tambeacutem escrevi sobre a hipoacutetese diagnoacutestica de TDAH levantada pela escola

Entendo que se tomarmos o DSM como base ele poderia ser classificado com TDAH de

subtipo hiperativoimpulsivo Eacute possiacutevel que haja discordacircncia em reconhecer um ou outro

sintoma dos criteacuterios pois as respostas da famiacutelia e da escola satildeo subjetivas e dizem respeito agraves

atividades que costumamos realizar com o menino e a forma de apresentaccedilatildeo dos sintomas

varia bastante levando em consideraccedilatildeo com quem ele interage e o que ele faz em cada

situaccedilatildeo Sobre o TDAH o DSM identifica reuacutene e descreve os sintomas do transtorno poreacutem

natildeo aponta o que o causa Como modificadores do curso ou seja prognoacutestico o DSM aponta

que padrotildees de interaccedilatildeo familiar podem natildeo causar o TDAH mas podem influenciar o curso

do transtorno Achei interessante essa parte pois significa que as relaccedilotildees na famiacutelia podem

constituir tanto uma resoluccedilatildeo para o transtorno quanto um agravamento Isso quer dizer que

haacute uma saiacuteda Com a ajuda da famiacutelia a crianccedila que hoje eacute considerada TDAH pode com o

tempo natildeo ser mais

32

Aleacutem disso escrevo tambeacutem sobre o diagnoacutestico infantil Eacute preciso levar em

consideraccedilatildeo que a constituiccedilatildeo psiacutequica estaacute curso e aponta tendecircncias para muitas direccedilotildees

Eacute preciso ter muita responsabilidade sobre os atos educativos dirigidos agrave crianccedila pois eles

provocam efeitos em sua formaccedilatildeo Dito isso faccedilo alguns encaminhamentos Recomendo que

seja incluiacutedo em um grupo de atividades extraclasse oferecido pela escola em que possa

conviver com seus colegas de uma outra forma buscando um novo lugar e um novo olhar das

pessoas Eu soube que a escola oferece oficinas de teatro acho que eacute uma boa alternativa Sugiro

tambeacutem passeios pela cidade com algum colega da turma convidar colegas para visitaacute-lo em

casa Conversei tambeacutem com a professora sobre estar atenta a boas iniciativas de seu aluno em

sala de aula e valorizaacute-las Por uacuteltimo recomendo a ti e a teu marido que levem o filho

regularmente a outros ambientes sociais aleacutem da escola buscando lugares em que o menino

possa ver ou entrar em contato com crianccedilas de sua idade Indico a continuidade da psicoterapia

incentivando a criatividade e formas alternativas de lidar com a anguacutestia

Satildeo estes os pontos mais importantes da avaliaccedilatildeo que fiz Quanto ao teste de

inteligecircncia que realizei com ele o desenho da figura humana o resultado apontado pela

interpretaccedilatildeo do teste eacute que ele tem uma inteligecircncia acima da meacutedia para a idade

Matildee

Eu fico muito orgulhosa do meu filho Eu vejo o quanto ele eacute inteligente tem um

raciociacutenio raacutepido eacute muito curioso parece que natildeo estaacute prestando atenccedilatildeo no que a gente diz

mas na verdade estaacute escutando tudo

Psicoacuteloga

Eacute verdade por mais que ele natildeo olhe estaacute sempre muito atento Bom sobre o laudo

tens alguma colocaccedilatildeo a fazer Alguma duacutevida Tenho uma coacutepia para ti e para o pai e hoje agrave

tarde vou levar agrave escola

33

Matildee

Estaacute certo Ele vai seguir aqui contigo sim eacute um espaccedilo em que ele se diverte

conversa e vou convidar um amiguinho dele para ir laacute em casa vamos combinar alguns

passeios juntos soacute ainda natildeo acho uma boa ideia sair para jantar ele natildeo sabe se comportar nos

restaurantes e eu fico com vergonha

Psicoacuteloga

Vamos experimentando aos poucos

Matildee

Eu posso fazer uma coacutepia para entregar para a psiquiatra Eu tenho que te contar como

meu filho natildeo estava muito bem a escola o encaminhou para a psiquiatra quanto mais

profissionais envolvidos melhor Fui conversar com ela semana passada

Psicoacuteloga (se contorce na cadeira)

Pode entregar para ela sim E como foi a consulta

Matildee

Eu falei para ela que ele estava em acompanhamento contigo ela ainda vai entrar em

contato Eacute como tu escreveu no laudo ele tem TDAH e ela disse que no caso dele precisa tomar

Ritalina Noacutes ficamos bem preocupados com a notiacutecia mas aliviados ao mesmo tempo porque

tem tratamento Hoje agrave tarde ele natildeo vai agrave escola e vai fazer uns exames para iniciar o

tratamento

34

Psicoacuteloga (inspira e expira)

Escrevi sobre o TDAH a pedido da escola mas eu acho que ele estaacute agitado em funccedilatildeo

da relaccedilatildeo dele com a professora e com os colegas em funccedilatildeo das diferenccedilas que tem entre a

casa e a escola Ele tem 6 anos estaacute amadurecendo ainda

Matildee

Sim ela falou tudo isso tambeacutem mas com 6 anos jaacute daacute para fazer o diagnoacutestico Ano

passado ele era muito novo ainda

Psicoacuteloga

E como foi o diagnoacutestico

Matildee

Ela conversou comigo e com o pai entregou um teste com umas perguntas para a escola

e para noacutes dois Eu vou pedir um para ti responder tambeacutem O resultado eacute que ele eacute TDAH dos

dois tipos desatento e hiperativo um caso claacutessico Ela tambeacutem avaliou um desenho que ele

fez Ela deu um livrinho para ele de um menino que tem TDAH que explica numa linguagem

acessiacutevel para crianccedilas sobre o problema dele

Psicoacuteloga

E ele jaacute leu

Matildee

Jaacute no mesmo dia Eacute bom para ele ir tentando entender o que ele tem porque eu vejo

que ele anda muito ansioso Para isso o remeacutedio vai ser bom

35

Psicoacuteloga

E o que tu achas do remeacutedio

Matildee

Olha eu natildeo queria mas ela me explicou que natildeo tem problema que o efeito eacute soacute por

umas horinhas soacute para ele se manter calmo enquanto estiver na sala de aula E tu o que acha

do remeacutedio

Psicoacuteloga

Ele vai fazer os exames ainda neacute Eu vou ser sincera contigo Fico preocupada com

a possibilidade da entrada do remeacutedio agora porque o uso do medicamento favorece a tese de

que ele eacute o problema e ele deve se curar quando a questatildeo dele natildeo eacute um problema individual

Esse eacute meu parecer No entanto satildeo vocecircs como pais que vatildeo escolher O que podem fazer eacute

expor para a meacutedica as duacutevidas de vocecircs perguntar para ela sobre os efeitos colaterais por

quanto tempo ele vai precisar tomar como os efeitos da medicaccedilatildeo vatildeo de fato ajudaacute-lo

Tambeacutem natildeo precisam decidir nada imediatamente eacute bom pensar bem

Noacutes

As duacutevidas cogitadas da psicoacuteloga agrave matildee natildeo seriam duacutevidas da psicoacuteloga agrave meacutedica

Matildee

Eacute eu ateacute li uns artigos na internet falando que o remeacutedio pode viciar quanto mais a

crianccedila toma mais ela vai precisar O pai dele natildeo estaacute bem seguro ainda Tu acha que ele tem

que seguir soacute com a terapia e com as recomendaccedilotildees que tu sugeriu

Psicoacuteloga

36

Eu dei minhas sugestotildees de acordo com os atendimentos do que conheccedilo da histoacuteria de

vida das conversas que tive com a pedagoga e com a professora Natildeo cabe a mim falar sobre a

medicaccedilatildeo porque sou psicoacuteloga Mas eu acho que se vocecircs natildeo estatildeo bem seguros eacute bom

pensar e conversar melhor com a meacutedica

Matildee

Eu vou conversar melhor com ela sim Mas eu natildeo sei o que faccedilo se meu filho natildeo

tomar o remeacutedio natildeo vatildeo mais aceitaacute-lo na escola

Noacutes

Seraacute mesmo que a condiccedilatildeo de permanecircncia na escola para que esta possa acolher as

crianccedilas eacute o apagamento dos sintomas efeito possiacutevel do metilfenidato

Psicoacuteloga (consternada)

Se teu filho natildeo tomar remeacutedio natildeo vatildeo mais aceitaacute-lo na escola A escola natildeo pode

obrigaacute-los a tomar essa decisatildeo Tu sentes que a escola quer impor isso como condiccedilatildeo de

permanecircncia do menino

Matildee

Eacute de certa forma estou me sentindo levada a isso sim Mas tu estaacute certa sei que tu

quer o bem do meu filho e acho que o melhor a fazer neste momento eacute pensar antes de tomar

uma decisatildeo Vou falar com a meacutedica de novo

Noacutes

A matildee consegue dizer algo da posiccedilatildeo que a psicoacuteloga ocupa ndash ela quer o bem de seu

paciente Como a psicoacuteloga orientada por uma formaccedilatildeo psicanaliacutetica eacute capturada pelo engodo

de querer o bem da crianccedila De que lugar ela escuta a demanda que lhe eacute dirigida que envolve

37

um mal-estar na escola Ficar capturada nessa ideia de querer o bem pode produzir um ruiacutedo

importante Onde se situa o limite de sua escuta

Fim do tempo 1

TEMPO 2

Inverno

CENA 1

Casa da psicoacuteloga Noite

O telefone toca Eacute a PARCEIRA da ESCOLA

Meacutedica

Boa noite Estou ligando para saber da disfunccedilatildeo

Psicoacuteloga

Boa noite Que disfunccedilatildeo

Meacutedica

Da disfunccedilatildeo do nosso paciente

A psicoacuteloga comeccedila a circular pela casa

38

Psicoacuteloga

Ele estaacute melhorando aos poucos Estaacute frequentando a oficina de teatro da escola fui

ateacute laacute para assisti-lo parece estar gostando Estaacute indo bem na nova turma a nova professora

estaacute conseguindo lidar bem com ele na sala de aula Essa foi uma boa decisatildeo da escola e da

matildee de trocaacute-lo de turma Estaacute aprendendo a ler e escrever

Meacutedica

Escutei algumas queixas da coordenaccedilatildeo da escola quanto ao comportamento dele Noacutes

tiacutenhamos combinado que eu entraria em contato contigo em trecircs meses para rever a questatildeo da

medicaccedilatildeo

Psicoacuteloga

Acho que combinamos seis meses foi o tempo que sugeri para surtir alguma mudanccedila

com a psicoterapia

Noacutes

O que quis a psicoacuteloga ao estipular um prazo para atenuaccedilatildeo dos sintomas Afastar a

meacutedica por seis meses Ou entatildeo estaria capturada pela medida proposta em manuais

psiquiaacutetricos em que encontramos com frequecircncia a enumeraccedilatildeo de um miacutenimo de seis

sintomas por um periacuteodo miacutenimo de seis meses

Meacutedica (suspira)

Natildeo noacutes conversamos sobre trecircs meses A coordenadora me falou que essa semana ele

teve uma crise de ansiedade na escola tu ficaste sabendo

Psicoacuteloga

Natildeo ningueacutem comentou nada comigo O que aconteceu

39

Meacutedica

Ele natildeo estaacute conseguindo lidar sozinho com a hiperatividade dele Soacute a psicoterapia natildeo

ajuda Pelo que vi do caso dele eacute um claacutessico TDAH eacute desatento e hiperativo Tentei falar com

a matildee mas ela natildeo retornou queria ver se noacutes poderiacuteamos marcar um encontro juntas para eu

explicar sobre a medicaccedilatildeo

Psicoacuteloga

Podemos marcar sim Soacute natildeo entendo qual seria o motivo da Ritalina sendo que ele

estaacute melhorando na escola Eu vou tentar me informar sobre essa crise que ele teve Mas na

cliacutenica os sintomas de dispersatildeo e hiperatividade que ele apresentava estatildeo muito mais brandos

Talvez poderias fazer uma reavaliaccedilatildeo

Meacutedica

Ele tem TDAH por conta disso as crises seratildeo recorrentes Mesmo que a psicologia e a

escola faccedilam o seu papel de ajudaacute-lo ele vai seguir tendo o problema natildeo vai resolver a

disfunccedilatildeo Sabe qual o prognoacutestico desses casos Sem a medicaccedilatildeo como ele estaacute agora pode

se tornar um jovem inconsequente violento e ldquodrogaditordquo Se ele comeccedilar a tomar a Ritalina

vai ficar quieto calmo os colegas vatildeo finalmente gostar dele se aproximariam para brincar

natildeo vatildeo ter medo

Psicoacuteloga

Eu aposto no seu proacuteprio potencial de se fazer gostar com seu proacuteprio jeito de ser ele

jaacute estaacute conseguindo com a colaboraccedilatildeo da escola e da famiacutelia

40

Meacutedica

Tua especialidade eacute a psicanaacutelise neacute Eu soacute acho que com a psicanaacutelise as coisas satildeo

muito demoradas Ele eacute um caso de urgecircncia estaacute sofrendo muito

Psicoacuteloga

Eu aguardo teu contato para marcarmos uma conversa com a matildee

Meacutedica

Olha se tu puderes agendar para mim eu agradeccedilo

Psicoacuteloga

Eu vou perguntar para a matildee o que ela acha se ela quiser agendar contigo eu compareccedilo

ao encontro eacute o que posso fazer

Meacutedica (suspira)

Eu lavo as minhas matildeos

Noacutes

O que faz a meacutedica suspirar A psicoacuteloga escuta seu suspiro

CENA 2

Escola Periacuteodo da tarde

Pedagoga e psicoacuteloga conversam

41

Pedagoga

A meacutedica gostou muito do laudo que tu fizeste Ela concorda com tudo Eu tambeacutem Jaacute

dei para a nova professora ler tambeacutem para ela ficar a par da situaccedilatildeo Tu concordas que ele

tem TDAH neacute Agora que jaacute se passaram uns meses natildeo seria o caso de dar uma medicaccedilatildeo

para nos ajudar a lidar com ele

Psicoacuteloga

Eu natildeo decido sobre a medicaccedilatildeo isso compete aos pais com a psiquiatra Eu soacute acho

que ele estaacute conseguindo lidar com a anguacutestia de outras formas eu natildeo tenho relacionado mais

o caso dele com os sintomas do TDAH

Pedagoga

Mas aqui na escola ele segue hiperativo e cada vez mais desatento pelo que tenho

falado com a professora

Psicoacuteloga

Ela tem conseguido ficar com ele na sala natildeo eacute Isso eacute muito importante Ele estaacute com

um bom pertencimento agrave turma Ele me conta dos colegas que satildeo amigos dele

Pedagoga

Sim eu tenho percebido Quando ele natildeo quer colaborar ela fala que a turma natildeo gosta

desse tipo de comportamento que gosta de outro que ele sabe qual eacute Ela tem jeito com ele

isso eacute bom O problema eacute que agraves vezes ele passa mal tem uma crise de ansiedade diz que tem

medo de morrer isso eacute sinal de que as coisas natildeo estatildeo bem resolvidas ainda Por isso eu entrei

em contato com a meacutedica de novo para ver a questatildeo da Ritalina para ele se sentir mais calmo

Psicoacuteloga

42

Estou trabalhando a questatildeo dos medos na cliacutenica ele estaacute conseguindo elaborar com

livros faz-de-conta piadas Soacute natildeo entendo a relaccedilatildeo disso com a medicaccedilatildeo

Pedagoga

Tu eacutes contra neacute Olha aqui na escola noacutes temos em torno de cinquenta alunos

matriculados que tecircm diagnoacutestico de TDAH Temos alguns diagnosticados com TOD no

ensino fundamental e no ensino meacutedio alunos que jaacute foram TDAH mas conseguiram evoluir

graccedilas agrave medicaccedilatildeo A grande maioria dos TDAH toma medicaccedilatildeo e o desempenho melhora

muito depois disso Por experiecircncia sei o sofrimento que passam os natildeo medicados Muitas

vezes o problema evolui para transtornos mais graves a medicaccedilatildeo pode ser uma saiacuteda para

evitar problemas futuros

Psicoacuteloga

Natildeo eacute que eu seja contra soacute acho que ele estaacute tendo mudanccedilas significativas com a ajuda

da famiacutelia e com a terapia A troca de turma por sugestatildeo tua foi uma boa alternativa A forma

como eu costumo trabalhar vai numa via diferente dessa do diagnoacutestico de TDAH como se ele

fosse soacute mais uma crianccedila entre as cinquenta que tecircm esse diagnoacutestico e precisa tomar

medicaccedilatildeo Eu gosto de olhar a singularidade do caso Acho que aqui na escola vocecircs acolheram

bem essa forma buscando alternativas singulares para ele As mudanccedilas ocorrem aos poucos

Pedagoga

Sem duacutevida daacute para ver diferenccedila Mas soacute ele tem um tratamento especial aqui na

escola noacutes eacute que temos que entender a dificuldade dele com os limites como a toleracircncia agrave

frustraccedilatildeo mas ele natildeo se dobra Ele natildeo estaacute vindo nas atividades do teatro A matildee dele disse

que eacute o frio

43

Psicoacuteloga

Estaacute certo Vou falar com ela

Pedagoga

Bom e em funccedilatildeo da inteligecircncia dele acima da meacutedia noacutes sugerimos que ele entrasse

no grupo do xadrez a matildee o trouxe um dia para a aula mas ele natildeo quis ficar natildeo teve muita

paciecircncia para aprender

Psicoacuteloga

Interessante Existem outras formas para ele poder desenvolver a inteligecircncia Talvez

seja muito jovem para o xadrez quem sabe daqui a uns anos vamos ver o que ele acha

CENA 3

Cliacutenica de psicologia Tarde

Psicoacuteloga lecirc alguns registros das sessotildees com seu paciente

ldquoele perguntou para a funcionaacuteria da limpeza o que era TDAHrdquo

ldquoo menino diz vou ter que tomar remeacutedio para cabeccedila porque sou malucordquo

ldquoo menino diz eu natildeo sei o que eacute me comportar soacute sei o que eacute natildeo me comportar Todo

mundo diz que eu natildeo me comporto [] se comportar eacute nada Eacute natildeo fazer nadardquo

ldquoObservaccedilotildees Preciso frisar a importacircncia destas questotildees trazidas pelo meu paciente

na medida em que acredito que ele estava tomando um pouco para si a preocupaccedilatildeo do que os

adultos fariam com ele saindo de uma posiccedilatildeo unicamente objetal para uma posiccedilatildeo ativa de

quem pode fazer alguma coisa por si Dei algumas dicas das coisas que pensava que esperavam

dele na escola como cuidar das suas coisas copiar do quadro fazer as tarefas com calma e que

ele poderia perguntar tambeacutem para seus paisrdquo

ldquoos pais decidiram natildeo medicar o filhordquo

ldquopai soacute quero que meu filho seja felizrdquo

44

ldquopai jogamos Xbox umas trecircs horas por dia eacute muitordquo

ldquomatildee vai comeccedilar artes marciais para descarregar energiardquo

Psicoacuteloga (para si mesma)

Seraacute que eu agi corretamente Seraacute que fiz a melhor escolha pelo bem do menino Seraacute

que ele estaria melhor se estivesse medicado

Noacutes

O que quer dizer agir corretamente fazer a melhor escolha A psicoacuteloga segue

capturada pelo discurso idealizador da escola em relaccedilatildeo agrave sua parceira meacutedica ao qual ela

mesma buscou constituir oposiccedilatildeo Ao combater a medicalizaccedilatildeo ela parece desejar ocupar

esse lugar de domiacutenio para a matildee o pai o menino

A psicoacuteloga entende que a medicaccedilatildeo acaba por assegurar um discurso que localiza no

indiviacuteduo o problema de aprendizagem e comportamento No entanto cabe perguntar a

Ritalina eacute capaz de impedir a escuta cliacutenica Por que a resistecircncia agrave medicaccedilatildeo afinal

Embora o menino natildeo tome Ritalina e conte com as prescriccedilotildees cliacutenicas a escola segue

com a parceira psiquiatra e dezenas de estudantes desatentos e hiperativos medicados Como

constituir um lugar que resiste agrave individualizaccedilatildeo do problema sem fazer oposiccedilatildeo agrave medicaccedilatildeo

jaacute que esta faz parte de nosso laccedilo social contemporacircneo

Psicoacuteloga (para si mesma)

Querem uma resposta desejam uma soluccedilatildeo definitiva Buscam uma alternativa A

medicaccedilatildeo cumpriria essa funccedilatildeo sem ela o que ou quem o faria nesses casos A psicoterapia

natildeo estaacute surtindo efeitos ou os efeitos da psicoterapia natildeo estatildeo sendo reconhecidos O

diagnoacutestico de TDAH cumpre a funccedilatildeo de abrandar a anguacutestia de natildeo saber o que se passa

45

CENA 4

Cliacutenica de psicoterapia Manhatilde

A matildee chega com o filho para a sessatildeo

Matildee

Eu tenho lido sobre o TDAH parece que pode ser geneacutetico Pelo que o pai me conta

ele era hiperativo hoje estaacute muito bem natildeo precisou de medicaccedilatildeo Jaacute eu era bem quieta entatildeo

natildeo fui eu que transmiti deve ter sido o pai Eu queria te contar de uma coisa que aconteceu na

escola semana passada Passaram por cima de mim fiquei furiosa O meu filho se desentendeu

com um colega na hora do recreio e eles brigaram

Crianccedila

Foi ele quem se desentendeu

Matildee

Sim eu sei meu filho Sempre entram em contato comigo mas em vez disso chamaram

o pai Ele teve que sair do serviccedilo e ir ateacute a escola para buscaacute-lo Fiquei com tanta raiva fizeram

um escacircndalo por uma briguinha de crianccedila Eu vou escrever para a escola reforccedilando que

tudo o que acontecer com ele sou eu que resolvo Ah eu natildeo estou levando ele nas aulas de

teatro porque nessa eacutepoca eacute muito frio para ele ficar

Psicoacuteloga

Depois noacutes conversamos melhor Temos que marcar um horaacuterio

Matildee

Estaacute bem Ateacute logo

46

Noacutes

Tudo o que ocorre com o filho eacute a matildee que resolve assim como tudo o que ocorre com

o paciente eacute a psicoacuteloga que quer resolver A posiccedilatildeo da psicoacuteloga ressoa a posiccedilatildeo da matildee

Psicoacuteloga e crianccedila entram na sala Brincam de ldquoHarry Potter versus Voldemortrdquo Ele

conta sobre um jogo novo em que bruxos da histoacuteria de Harry Potter lutam contra os

dementadores fantasmas que os assombram

Psicoacuteloga

E como eacute

Crianccedila

Os bruxos tecircm que usar as varinhas para matar os dementadores eu joguei ontem

Psicoacuteloga

Que interessante

Crianccedila (brinca que usa varinha contra a psicoacuteloga)

Tu acha isso interessante

Psicoacuteloga

O que aconteceu na escola Teu colega se desentendeu contigo

Crianccedila

Sim Foi ele que comeccedilou dessa vez Agraves vezes sou eu mas agraves vezes satildeo os outros

47

Psicoacuteloga

Entendi E aiacute chamaram teu pai

Crianccedila

Sim

Psicoacuteloga

E o que tu achou do teu pai ter ido

Crianccedila

Atildehn Um pouco bom e um pouco ruim Eu fui para casa Entatildeo por isso foi bom Mas

ele ficou brabo entatildeo isso foi ruim

Psicoacuteloga

Entendi Aiacute tu ficou jogando em casa Sozinho

Crianccedila

Eacute Minha matildee jaacute estava em casa

Psicoacuteloga

E o que parece para ti bruxos lutando contra dementadores

Ele representa os personagens Corre pela sala pula joga-se ao chatildeo

48

Crianccedila

Inteligentes contra idiotas Os idiotas tecircm que morrer os inteligentes vencem Eacute assim

olha

Crianccedila representa mais uma vez com mais intensidade alterna expressotildees de

agressividade e de idiotice

Crianccedila

Achou engraccedilado

Noacutes

A crianccedila estaria tentando representar o que desejam dele que corresponda ao

diagnoacutestico de TDAH ou que corresponda a uma crianccedila inteligente Qual a responsabilidade

do laudo da psicoacuteloga sobre isso

Psicoacuteloga

O que seraacute que tu estaacute querendo me contar

Crianccedila

Agraves vezes eu sou idiota e agraves vezes eu sou inteligente Minha matildee quer que eu seja

inteligente

Psicoacuteloga

E a escola

49

Crianccedila

A escola queria que eu fosse inteligente mas acha que eu sou burro Na verdade a escola

eacute idiota eacute para idiotas perdedores eacute inuacutetil Soacute faccedilo coisas inuacuteteis

Psicoacuteloga

Senta aqui comigo um pouco Respira Bom tu acha que querem que tu seja ou idiota

ou inteligente Eacute muito difiacutecil ser totalmente idiota ou totalmente inteligente natildeo acha

Crianccedila

Por isso que eu sou outra coisa eu fico entre o idiota e o inteligente O nome eacute

preocupatoacuterio

Psicoacuteloga (pensa consigo)

Preacute-operatoacuterio

Crianccedila

Eu me preocupo com tudo Eu tenho medo de tudo Sou a pessoa mais medrosa do

mundo

Psicoacuteloga

Do mundo Na verdade todo mundo tem seus medos suas preocupaccedilotildees na vida a

gente vai lidando aos pouquinhos com cada uma

50

Crianccedila

Mas ter medo eacute para idiotas eacute para os fracos os fortes satildeo os inteligentes eu natildeo tenho

medo de nada eu sou o mais forte

O menino se agita mais uma vez corre pela sala brinca de faz de conta numa cena em

que bate em algueacutem mais fraco

Psicoacuteloga (para si)

Por que eu escrevi sobre o TDAH no laudo Por que eu fiz um teste de inteligecircncia

Psicoacuteloga

Conheccedilo pessoas fortes e inteligentes que tecircm muitos medos

Crianccedila

Quem

Psicoacuteloga

Adultos que eu conheccedilo Na verdade os medos tornaram as pessoas mais fortes

Crianccedila

Natildeo os medos satildeo para os fracos

Psicoacuteloga

Bom tu natildeo eacute fraco tu disse que tem preocupaccedilotildees eacute uma situaccedilatildeo diferente estaacute

enfrentando teus medos

51

CENA 5

Casa da psicoacuteloga Noite

Matildee e psicoacuteloga conversam no telefone

Matildee

Ele ficou muito agitado agrave tarde natildeo quis ir agrave escola eu tambeacutem natildeo insisti O que

adianta Ele chega laacute e mandam ele de volta para casa Como eacute que foi a sessatildeo Ele contou

alguma coisa sobre a briga

Psicoacuteloga

Foi uma sessatildeo importante acho que mobilizou questotildees difiacuteceis para ele as

expectativas das pessoas sobre ele o quanto ele consegue responder a isso Natildeo comentou

muito sobre a briga

Matildee

Na escola disseram que foi ele que ele agrediu um colega no intervalo que

aparentemente o colega natildeo provocou nem nada Estou com raiva porque isso tem se repetido

qualquer probleminha que acontece nos chamam Desde que a nova professora dele saiu da

escola

Psicoacuteloga

O que aconteceu com a professora

52

Matildee

Eu achei que tinha comentado contigo ela estaacute com problema de sauacutede estaacute sem voz

descobriu um tumor na garganta e vai operar Meu filho estaacute sentindo falta dela natildeo estaacute se

acertando com a estagiaacuteria Mas hoje passaram dos limites chamando o pai

Psicoacuteloga

Por que seraacute que chamaram o pai

Noacutes

Por que passaram dos limites Quais limites

Matildee

Eu natildeo sei parece que quiseram me dizer que eu natildeo dou conta do meu filho soacute o pai

natildeo contam mais comigo

Psicoacuteloga

E tu concordas com isso

Matildee

Tu concorda com isso

Psicoacuteloga

Natildeo concordo Acho que tem que ver o lado bom disso a escola quis te ajudar pode ter

sido uma iniciativa de envolvecirc-lo fazer participar tambeacutem dos problemas que estatildeo

enfrentando

53

Matildee

Eacute isso que tu acha Mas ele eacute participativo sempre brinca com o filho em casa Parece

que quiseram me atacar E natildeo desistiram de oferecer a medicaccedilatildeo neacute Eu levei vaacuterios artigos

para lerem sobre os efeitos colaterais da Ritalina nem quiseram ler A meacutedica entrou em contato

comigo de novo a pedido da escola Estou pensando em trocar meu filho de escola ano que

vem

Psicoacuteloga

Eacute uma alternativa a ser considerada Vamos ir pensando e seguimos conversando outra

hora

Fim do tempo 2

TEMPO 3

Primavera

CENA 1

Cliacutenica de psicoterapia Tarde

A matildee chega para atendimento

Psicoacuteloga

Pode sentar aqui por favor

Matildee

Obrigada Leu o material que te enviei

54

Psicoacuteloga

Eu dei uma olhada sim

Matildee

Sei que deve ser difiacutecil para ti entender mas eu acho que faz muito sentido

Psicoacuteloga

O que precisamente tu gostarias que eu entendesse

Matildee

Tu pode ateacute achar que eacute loucura mas eu venho lendo sobre o assunto haacute um tempo As

crianccedilas com TDAH podem ser superdotadas elas demonstram tambeacutem agitaccedilatildeo e dispersatildeo

mas em vez de tratarmos como sintomas de uma doenccedila entendemos como um comportamento

tiacutepico dos superdotados As crianccedilas sofrem muito na infacircncia mas na vida adulta eacute que se

realizam deixam sua marca no mundo Os grandes cientistas artistas foram crianccedilas

hiperativas hoje satildeo considerados com uma inteligecircncia muito superior agrave meacutedia

Psicoacuteloga

Entendi Tu achas que teu filho eacute uma crianccedila superdotada

Matildee

Sei que parece estranho mas ele tem todas as caracteriacutesticas eacute muito inteligente

espontacircneo tem sintomas do TDAH mas natildeo eacute TDAH tem dificuldade em obedecer em

entender regras eacute questionador

55

Psicoacuteloga

Sim realmente ele tem todas as caracteriacutesticas Eacute uma forma de entender o que estaacute

acontecendo Como foi que tu encontraste essa classificaccedilatildeo

Matildee

Foi pesquisando o TDAH na internet Encontrei uns artigos assisti uns viacutedeos tambeacutem

e natildeo soacute de neurologistas mas de psicoacutelogos falando sobre o assunto Eu fiquei ceacutetica a

princiacutepio mas quanto mais eu lia mais fazia sentido

Psicoacuteloga

Eu fiquei pensando que talvez tu tenhas pesquisado bastante sobre o assunto porque natildeo

encontrou uma resposta ainda para o que estaacute acontecendo com teu filho A escola e a meacutedica

entendem que ele eacute TDAH eu disse que ele tem sintomas mas natildeo eacute TDAH como tu mesma

falou aleacutem disso eu atesto que ele tem uma inteligecircncia acima da meacutedia Ele natildeo toma

medicaccedilatildeo mas tu achaste necessaacuterio buscar algo que operasse no corpo como as artes marciais

para descarregar energia acumulada

Matildee

Sim eacute que o teatro natildeo deu mais certo natildeo tem mais ningueacutem da turma dele ele

estava ficando mais agitado ainda

Psicoacuteloga

Tudo bem foi soacute uma sugestatildeo Bom o que eu quero dizer eacute Vecirc se faz sentido para

ti Como nem eu e nem a escola te demos um retorno que te ajudasse a entender o que acontece

com teu filho tu buscaste uma terceira opiniatildeo digamos assim Essa classificaccedilatildeo da

superdotaccedilatildeo pode ter funcionado para te deixar mais tranquila quanto ao que acontece com

ele

56

Matildee

Acho que sim Eacute o que estaacute fazendo sentido agora

Psicoacuteloga

A gente pode entender como uma classificaccedilatildeo possiacutevel Podemos chamar de TDAH

de superdotado de TOD Existem outras classificaccedilotildees Mas de que forma podem nos ajudar

Como isso pode ajudar teu filho a lidar com o sofrimento

Matildee

O que eu achei interessante eacute que no material que te enviei tem uma orientaccedilatildeo para os

pais As matildees e os pais das crianccedilas superdotadas natildeo devem dar proibiccedilotildees aos filhos natildeo

devem limitar sua criatividade impondo regras

Psicoacuteloga

Como acontece isso

Matildee

Eacute porque os superdotados natildeo compreendem bem o que eacute proibido entatildeo eacute preciso

explicar bem fazecirc-los entender em vez de brigar e impor regras Eu vejo pelo meu filho ele

tem muita resistecircncia com coisinhas da rotina como escovar os dentes por exemplo entatildeo em

vez de brigar com ele escovar agrave forccedila como muitas matildees fazem eu me agacho olho em seus

olhos explico para ele que ele pode ficar com caacuterie com dor Tudo tem que ser bem explicado

com muito jeito e calma

57

Psicoacuteloga

Parece que a orientaccedilatildeo para os pais e as matildees das crianccedilas superdotadas eacute natildeo serem

pais e matildees Natildeo sei o quanto esse material pode ajudar Tu natildeo precisas ficar com medo de

brigar com teu filho de mostrar regras e proibiccedilotildees por receio de interferir no desenvolvimento

da criatividade e da inteligecircncia dele Eacute disso que tu tem medo

A matildee chora

Psicoacuteloga

Natildeo acredito que seja possiacutevel educar um filho no papel de matildee de pai sem produzir

alguma marca em sua histoacuteria Achar que evitar agir de certo modo para que uma faculdade se

desenvolva plenamente eacute uma ilusatildeo que criamos

Matildee

Eu sei Eacute que a gente fica tatildeo perdida a gente lecirc tanta coisa que natildeo sabe mais se

estaacute fazendo certo ou errado se estaacute prejudicando o desenvolvimento da crianccedila Eu natildeo sei

educar eu natildeo sei o jeito certo

Psicoacuteloga

Eu acho que ningueacutem sabe bem como educar todo mundo tenta Realmente hoje noacutes

lemos de um tudo na internet temos acesso facilitado agrave informaccedilatildeo e natildeo vatildeo faltar artigos de

jornal dizendo como devemos agir Por isso temos que ter cuidado com o que lemos fazer um

discernimento natildeo tomar tudo como verdade Eu quero dizer que ainda que nesse material

sobre superdotaccedilatildeo diga que tu natildeo deves brigar com o teu filho em alguns momentos quando

tu sentires que deves brigar tu podes brigar

Matildee

58

Eu soacute natildeo quero que meu filho se torne um delinquente

Psicoacuteloga

Certo Mas por que dizes isso

Matildee

Porque agraves vezes eacute muito difiacutecil de lidar com ele ele fica agressivo me desafia tenho

medo de que ele se torne uma maacute pessoa

Psicoacuteloga

Quando eu digo brigar natildeo estou falando de ser violenta de bater mas de impor a tua

palavra de falar em nome da lei isso natildeo vai tornaacute-lo uma pessoa maacute E nem te tornar uma

pessoa maacute

Matildee

Eacute eu sei disso eu tenho que ser matildee dele

Psicoacuteloga

Que matildee natildeo gostaria de ter um filho superdotado brilhante que vai mudar o mundo

Acho que todas noacutes queremos isso dos nossos filhos Mas isso natildeo cabe a ningueacutem dizer soacute o

futuro vai mostrar Ningueacutem pode dizer hoje que teu filho vai ser um delinquente ou uma

pessoa que vai mudar o mundo para melhor O que podemos fazer eacute ajudaacute-lo hoje

proporcionando uma vida saudaacutevel organizando o dia a dia mostrando limites sim lidando

com as birras E jaacute satildeo coisas muito difiacuteceis de fazer Agora no que isso vai dar natildeo

sabemos Soacute temos que ficar atentas a como ele estaacute reagindo hoje agraves coisas que pensamos e

queremos dele

59

Matildee

Eu vou fazer o que estiver ao meu alcance

CENA 2

Casa da psicoacuteloga Meio-dia

Psicoacuteloga recebe uma mensagem de texto da matildee

ldquoEscrevo para informar que natildeo vamos seguir com os atendimentos por enquanto Sei

que ainda temos um caminho pela frente mas tivemos que cortar gastos Quando precisarmos

entramos em contato Obrigada PS A profe voltou da licenccedila e estaacute trabalhando sobre os

MEDOS com a turma Meu filho estaacute adorandordquo

CENA 3

Cliacutenica de psicoterapia Entardecer

Psicoacuteloga organiza pastas dos pacientes Encontra um desenho

60

Recorda-se de uma sessatildeo mesa cheia de folhas canetas e laacutepis de cor O paciente e

a psicoacuteloga conversam sobre um passeio que ele fez com a turma

Psicoacuteloga

Entatildeo quer dizer que tu gostou de ir ao museu Foi uma boa ideia da professora

Crianccedila

Na verdade todas as turmas fazem esse passeio

Psicoacuteloga

Bom mas foi uma atividade da escola que tu gostou de fazer

61

Crianccedila

Eacute um pouco

Psicoacuteloga

Vamos fazer um desenho Pode ser da tua escolha

Crianccedila

Entatildeo me daacute tua matildeo Sabe o que eu vou fazer Adivinha

O menino apoia a matildeo da psicoacuteloga sobre uma folha em branco Ele a contorna com

um laacutepis

Psicoacuteloga

Ah que legal que ficou

Crianccedila

Natildeo terminei ainda

Ele faz o contorno de sua proacutepria matildeo ao lado Faz unhas compridas cortes pelos em

ambas as matildeos

Psicoacuteloga

Que matildeos satildeo essas

Crianccedila

Eacute a matildeo de um lobisomem e a do filho do lobisomem o lobisominho

62

Psicoacuteloga

Entendi eles satildeo pai e filho e tecircm as matildeos muito parecidas

Crianccedila escreve um S na matildeo do lobisominho

Crianccedila

Pronto tinha faltado a tatuagem

Psicoacuteloga

Ah o lobisominho tem uma tatuagem S de quecirc

Crianccedila

S de lobi- Somem

Psicoacuteloga

Ah entendi

Ele escreve LOBISOMEM

Crianccedila

Eacute que eacute com S natildeo eacute com Z mas tem som de Z Sabia que tem um bicho chamado sapo-

boi Descobri ontem

Ele escreve SAPA-BOI

63

Psicoacuteloga

Viu o que tu escreveu SapA Tu conheceu esse bicho no passeio

Crianccedila

Sim A Sapa-boi era matildee do lobisominho

Psicoacuteloga

Comeccedila com S do lobi-Somem

Crianccedila

Eacute mas tem som de S mesmo Esse bicho eacute um hiacutebrido

Psicoacuteloga

Um anfiacutebio

Crianccedila

Natildeo um hiacutebrido mesmo uma mistura de sapo com boi Eacute um sapo mas do tamanho

de um boi

Psicoacuteloga

Ah o Lobisomem e o lobisominho tambeacutem satildeo hiacutebridos

Crianccedila

Sim eles satildeo lobo com homem

64

Noacutes

Homo homini lupus est1

Psicoacuteloga guarda o desenho e volta para casa inquieta Tempos depois ela teraacute

escrito

ldquoO lobo e o homem ocupam o mesmo lugar hiacutebrido da condiccedilatildeo humana Natildeo haacute como

apagar o lobo do humano antes haacute contornos formas de conviver com ele Quando Some o

homem irrompe o lobo

lsquoLobi S omemrsquo eacute o registro de um natildeo lugar a escrita do hibridismo do humano com

um S tatuado o que tinha faltado e agora faz marca Um desejo de saber a que espeacutecie pertence

entre o idiota e o inteligente entre o TDAH e o superdotado entre o forte e o fraco entre lobo

e homem entre sapa e boi natildeo um contra o outro

Entre a casa e a escola entre a psicoacuteloga e a meacutedica que saberes se formam Que

maneiras criamos juntos de circunscrever contornar a infacircncia Entre a cultura e o que lhe

escapa seu lobo O que se encontra aiacute o que deriva desse lugar senatildeo a condiccedilatildeo subjetiva

desejante que faz a vida pulsarrdquo

1 O homem eacute o lobo do homem Encontramos a expressatildeo na peccedila Asinaria do dramaturgo romano Plauto (230 aC-180 aC) O filoacutesofo Thomas Hobbes a retoma no trabalho Leviatatilde (1651) bem como Sigmund Freud em O mal-estar na cultura (1930)

65

INTRODUCcedilAtildeO

O escrito que se segue eacute fruto de uma inquietaccedilatildeo que se coloca de discutir o que resta

da histoacuteria contada em forma dramatuacutergica O texto criado eacute inspirado na praacutetica profissional

de psicoacuteloga cliacutenica com orientaccedilatildeo psicanaliacutetica observando o cuidado de preservar o

anonimato das pessoas envolvidas A ficccedilatildeo arranjada eacute uma tentativa de contornar elementos

destoantes conflitos insoluacuteveis impasses no intuito de transmitir a experiecircncia chegar agrave

extremidade das pontas soltas transformaacute-las numa outra coisa

Com isso fizemos uma escolha por apresentar o problema de pesquisa figurado em

escrita de tempos e cenas dramaacuteticas Agora haacute o que conversar com a calma e a objetividade

que um trabalho acadecircmico demanda seguindo procedimentos para que se chegue a uma

compreensatildeo mais alargada acerca dos temas suscitados pelo texto dramaacutetico alguns mais

emergentes outros aventados todos tocados por alguma coisa que diz respeito ao desejo

humano e a como o desejo se faz presente nas relaccedilotildees que estabelecemos uns com os outros

No entanto o trabalho natildeo eacute sobre o desejo muito embora natildeo possa ser realizado sem o desejo

jaacute que eacute por ele que uma linha de tensatildeo a linha de accedilatildeo se manteacutem sempre viva promovendo

ao mesmo tempo implicaccedilotildees e desajustes

Iniciamos o trabalho inspirados em Mannoni (2003) que fala do envolvimento dos

adultos no mal-estar sofrido pela crianccedila Eacute do que resulta de um jogo de implicaccedilotildees dos

adultos que produz efeitos sobre a crianccedila que esse escrito deseja tratar Considerando os

discursos que atravessam o seu fazer quais as condiccedilotildees de autorizaccedilatildeo da escola no que se

refere agraves dificuldades de certos alunos que apresentam sintomas de aprendizagem De que

forma os adultos envolvidos com a educaccedilatildeo de crianccedilas lidam com o sofrimento com o mal-

estar com o ldquolobordquo Haacute nesse sentido nas cenas do proacutelogo um discurso medicalizante que

participa das decisotildees da escola no que concerne aos problemas de aprendizagem e como

veremos respeitando as singularidades do caso essa natildeo eacute uma situaccedilatildeo isolada da histoacuteria

contada mas algo bastante frequente em nossas escolas Esse discurso tomou de surpresa a

personagem da psicoacuteloga jaacute que natildeo considerava que sua escuta ao se estender para aleacutem da

cliacutenica para aleacutem do paciente e sua famiacutelia encontraria na fala da coordenadora pedagoacutegica a

defesa da medicalizaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo de categorias nosoloacutegicas

Maria Cristina Kupfer pesquisadora de psicanaacutelise e educaccedilatildeo comenta

66

Escutar por exemplo um problema de aprendizagem como uma formaccedilatildeo fantasmaacutetica singular sem nenhuma articulaccedilatildeo com o discurso social escolar pode conduzir em alguns casos ao fracasso da accedilatildeo do psicanalista Disto aliaacutes jaacute falaram autores natildeo psicanalistas como M Helena Patto (1990) De outro lado uma leitura que inclua o discurso social que circula em torno do educativo e do escolar [] estaraacute produzindo uma inflexatildeo na accedilatildeo do psicanalista e o levaraacute a uma praacutetica que natildeo coincide mais com a cliacutenica psicanaliacutetica ldquoortodoxardquo pois ele teraacute de se movimentar o suficiente para ouvir pais e escola (KUPFER 1999 p 19)

Pensando hoje sobre o que se desenrola nas cenas assumimos neste trabalho o lugar

do ldquoNoacutesrdquo capaz de produzir um distanciamento necessaacuterio para poder falar do caso espiar suas

minuacutecias olhaacute-lo criticamente e tentar entender como se produzem as medidas e desmedidas

dos personagens Um dia fomos a psicoacuteloga presente em todas as cenas e apenas a partir dessa

posiccedilatildeo podemos testemunhar os acontecimentos Entendemos que a psiquiatra entrou em

contato com a psicoacuteloga por ela ter se tornado um obstaacuteculo agrave sua forma de conduzir pois

talvez se ela tivesse encorajado a medicaccedilatildeo possivelmente natildeo haveria motivo para conversa

Do mesmo modo a intervenccedilatildeo da meacutedica havia se tornado um entrave para a maneira da

psicoacuteloga enxergar as coisas afinal pode ter pensado a psicoacuteloga ldquoSe natildeo fosse a escola a me

atrapalhar com sua parceira eu saberia como tratar o menino mas depois do telefonema da

escola eu perdi o domiacutenio da situaccedilatildeordquo Ao tentar retomar um suposto domiacutenio da situaccedilatildeo o

qual percebeu tomado pela meacutedica a psicoacuteloga encontrava o limite de sua escuta seu ponto

cego

A princiacutepio a situaccedilatildeo configura-se numa forma de embate De um lado psicoacuteloga e

matildee de outro a escola e a meacutedica No centro uma crianccedila objeto de certezas No pano de

fundo o discurso medicalizante operando sobre todos noacutes Na tentativa de promover uma boa

relaccedilatildeo entre a professora e o aluno sustentando uma direccedilatildeo de tratamento que considerava

correta talvez a psicoacuteloga tenha desautorizado a escola em sua responsabilidade de conduzir o

caso do aluno Opondo-se a um discurso psicopatologizante a psicoacuteloga oferece outro discurso

a partir do mesmo lugar de imposiccedilatildeo respaldado por um laudo e um teste de inteligecircncia

Cabe questionar o que faz com que a psicoacuteloga seja capturada pelo desejo de se manter

numa posiccedilatildeo de controle como um agente capaz de fazer as melhores escolhas pelo bom

andamento do caso pelo bem da crianccedila Natildeo haacute como responder de um lugar alheio agrave relaccedilatildeo

transferencial que se estabelece com a crianccedila com a escola com a matildee e com a meacutedica

Interessa pois aproximar-se dos contornos da transferecircncia estabelecida

67

O que fazer diante deste impasse que se forma entre o dever de educar de tomar o

menino como mais um dos mais de vinte alunos que precisam aprender a ler e a escrever

aprender alguns coacutedigos de conduta de convivecircncia na cena escolar e aquilo que escapa agrave

funccedilatildeo civilizatoacuteria da escola o que aponta que o menino natildeo eacute apenas mais um Como

situarmos um espaccedilo entre esses dois lugares Dois lugares que tambeacutem nos constituem como

adultos que cuidam das crianccedilas uma divisatildeo entre o compromisso de educar constituindo

bordas para o gozo e desejo de deixaacute-las usufruir desse gozo sem imposiccedilatildeo de limites Haacute

aqui nesse jogo que produz um ldquoentrerdquo uma implicaccedilatildeo do adulto Um dever de se implicar

O discurso medicalizante que opera tambeacutem na escola e toma lugar do discurso educativo faria

as vezes dessa implicaccedilatildeo Constitui um dever nosso dos adultos para com as crianccedilas O que

resulta dessa operaccedilatildeo no fazer do educador

Este lugar de ldquoentrerdquo natildeo eacute senatildeo o lugar subjetivo de inscriccedilatildeo na cultura inscriccedilatildeo que

ldquocomportardquo o enlace de uma singularidade a um comum Assim como minhas marcas

correspondem agrave minha histoacuteria e somente agrave minha as do outro compreendem a singularidade

de sua histoacuteria no entanto por ldquoportarmosrdquo marcas somos iguais entatildeo ldquoportamos-comrdquo o

outro Eacute esse traccedilo comum que temos de encontrar ou reencontrar em nossas crianccedilas Traccedilo

que em posiccedilatildeo de autoria de sua histoacuteria o menino tambeacutem buscava ao dizer que natildeo sabia o

que era ldquose comportarrdquo e sofrer do horror imaginaacuterio do vazio desse lugar da anguacutestia do nada

A professora da crianccedila com TDAH da histoacuteria sabia um jeito de as coisas funcionarem

mas um jeito que encontrava um limite com o menino No limite estava o TDAH Esse

transtorno que impedia em seu entendimento que ele se comportasse Por ter um problema que

natildeo fazia parte da composiccedilatildeo de seu saber como educadora ela se desautorizava na educaccedilatildeo

de seu aluno jaacute que o problema estava fora de sua alccedilada Esbarrava-se com isto ldquoComo educar

a crianccedila com TDAH se seus sintomas me impedem de educaacute-la da forma que julgo saber que

acontece a educaccedilatildeordquo Parece que a soluccedilatildeo eacute a via da medicalizaccedilatildeo como um saber outro

inquestionaacutevel O que nos resta eacute aprender a abordaacute-lo questionaacute-lo Se nos colocarmos em

oposiccedilatildeo como fez a psicoacuteloga ao negar a referecircncia ao saber meacutedico na escola passamos a

ocupar o mesmo lugar impositivo que desautoriza o saber do outro ainda que (e talvez

justamente por isso) as intenccedilotildees sejam as melhores

Nesse sentido neste trabalho vamos tentar enunciar uma equaccedilatildeo sobre o laccedilo que hoje

sustenta a educaccedilatildeo escolar a fim de fazer aparecer o ponto limite de uma educabilidade que

dispensa o professor de sua funccedilatildeo em relaccedilatildeo a crianccedilas com TDAH Jaacute antecipamos aqui

68

nossa versatildeo embora natildeo iremos discuti-la imediatamente achamos que o que demite o

professor tambeacutem o permite Pensamos que isso pode nos remeter ao traacutegico o que nos

conduziraacute a uma visita agrave trageacutedia antiga

Para iniciar a conversa no primeiro capiacutetulo discutimos como a medicalizaccedilatildeo ingressa

no cenaacuterio educativo e o lugar a partir do qual esse discurso opera Aleacutem disso abordamos a

constituiccedilatildeo do TDAH na aacuterea meacutedica e a sua gradual imersatildeo no campo escolar Apresentamos

tambeacutem um recorte da histoacuteria do faacutermaco metilfenidato mais conhecido pelo nome comercial

Ritalina e como se torna a soluccedilatildeo apresentada para o transtorno de hiperatividade e de

desatenccedilatildeo Na primeira parte do trabalho queremos entatildeo mostrar como os processos de

medicalizaccedilatildeo da vida escolar ocorrem em larga escala saindo da particularidade de um caso

cliacutenico e pensando a dimensatildeo da questatildeo seu caraacuteter epidecircmico

No segundo capiacutetulo apresentamos a dimensatildeo do traacutegico Abordamos como a

psicanaacutelise se apropria de noccedilotildees do traacutegico a partir de trageacutedias claacutessicas para dizer de seu

modo de operar Nesse sentido apresentamos como Sigmund Freud trabalha conceitos da

psicanaacutelise com a trageacutedia de Soacutefocles Eacutedipo Rei e tambeacutem como Jacques Lacan trabalha

com a trageacutedia Antiacutegona do mesmo autor para falar da eacutetica da psicanaacutelise Discorremos

ainda sobre a peccedila Eacutedipo em Colono a qual compotildee com as duas outras trageacutedias uma trilogia

No terceiro capiacutetulo vamos abordar o traacutegico como experiecircncia humana e como gecircnero

teatral conhecendo contribuiccedilotildees de filoacutesofos como Aristoacuteteles e Nietzsche e a esteacutetica de

tragedioacutegrafos como Euriacutepides A visita ao campo do traacutegico tem por intuito recolher elementos

que nos permitam uma aproximaccedilatildeo de um modo de operar de contornar o mal-estar presente

em nossa cultura nomeado de lobo pelo caso cliacutenico de dionisiacuteaco pelo filoacutesofo Nietzsche A

escola da histoacuteria dramatizada contava com uma meacutedica representante de um saber capaz de

apaziguar suas anguacutestias diante do limite do natildeo educar Eacute possiacutevel tomar a situaccedilatildeo vivida na

escola como uma cena e o saber medicalizante que se impotildee ao cenaacuterio educativo capaz de

eliminar os conflitos vividos nele como uma repeticcedilatildeo da imposiccedilatildeo de soluccedilotildees presentes na

dramaturgia do teatro grego que assumem o nome de deus ex machina ndash um deus ou outro

personagem que entra em cena atraveacutes de uma maacutequina provocando o desenlace da histoacuteria de

forma derradeira Na segunda parte do capiacutetulo discutimos entatildeo sobre esse recurso cecircnico

bem como sobre seus efeitos

No quarto capiacutetulo ldquoEducar e seus impassesrdquo apresentamos a dimensatildeo impossiacutevel da

educaccedilatildeo enunciada pela psicanaacutelise e trabalhamos com dois desenlaces possiacuteveis diante de

69

conflitos que surgem em cena a medicalizaccedilatildeo como deus ex machina e a falta como operadora

da criaccedilatildeo

Na sequecircncia trabalhamos com uma peccedila de Euriacutepides Medeia ndash citada por Aristoacuteteles

como um mau exemplo de escolha pelo recurso do deus ex machina ndash a fim de discutir a

abordagem do traacutegico os efeitos do desenlace e as vias de abertura que surgem numa obra que

causa de grande inquietaccedilatildeo Tentamos ler Medeia a partir de significantes presentes no texto e

de elementos pensados do encontro entre psicanaacutelise filosofia educaccedilatildeo e traacutegico

De que forma o desenlace em Medeia bem como as vias de abertura nos ajudam a

pensar o modo como lidamos com o traacutegico na cena educativa Abordar essa questatildeo eacute uma

forma de encerrar o trabalho Buscamos trazer agrave frente agrave superfiacutecie os elementos que

trabalhamos ao longo da escrita e que podem compor uma equaccedilatildeo teoacuterica que nos permite ler

a histoacuteria proposta no proacutelogo

Em seguida apresentamos um epiacutelogo constituiacutedo por histoacuterias vividas na escola pela

autora do trabalho ocupando diferentes posiccedilotildees narrativas Eacute a forma que escolhemos de fazer

o desenlace

Os caminhos da pesquisa

Com a psicanaacutelise como meacutetodo de pesquisa acreditamos ser possiacutevel construir um

saber entre os discursos um terceiro espaccedilo uma terceira via que sem intenccedilotildees prescritivas

possibilita a enunciaccedilatildeo dos impasses educativos

O meacutetodo de pesquisa que engendrou este trabalho percorreu duas vias A primeira diz

respeito agrave construccedilatildeo de caso cliacutenico A segunda se pautou na leitura de um acontecimento a

partir de elementos que decantam da anaacutelise de outro campo de experiecircncia

No proacutelogo deste trabalho apresentamos um texto dramatuacutergico inspirado na

experiecircncia cliacutenica da psicoacuteloga da histoacuteria Buscamos atraveacutes do arranjo cecircnico dar lugar aos

impasses vivenciados acerca da escolarizaccedilatildeo da crianccedila num jogo formado pelos lugares

ocupados por cada personagem Criamos um personagem que natildeo participa ativamente das

cenas mas tem o papel de tecer diaacutelogo entre as accedilotildees cecircnicas e o leitor da dramaturgia no

sentido de promover um espaccedilo terceiro entre duas situaccedilotildees entre dois personagens que por

vezes estatildeo em oposiccedilatildeo um em relaccedilatildeo ao outro e buscam de certo modo o apagamento da

demanda do outro a quem se opotildeem O nome que damos a essa voz eacute Noacutes convocando a escrita

70

e a leitura do caso a ocuparem um espaccedilo conjunto observando as tensotildees e polaridades da

cena numa tentativa de nos aproximarmos daquilo que concerne ao traacutegico (cujas

particularidades seratildeo discutidas nas proacuteximas paacuteginas)

Deste lugar que nomeamos Noacutes queremos a partir de uma certa distacircncia dos

acontecimentos vislumbrar elementos miacutenimos que formam a conjuntura das cenas a fim de

que dela decante um saber sobre o caso capaz de ser transmitido De acordo com Acircngela

Vorcaro (2010) os elementos que restam de um caso cliacutenico guardam o seu saber constituiacutedo

pelo encontro que se daacute entre o analista e o analisando e tambeacutem por aquilo que transborda

desse encontro permitindo a experiecircncia da cliacutenica interrogar a teoria e a teacutecnica da psicanaacutelise

fazendo com que uma transmissatildeo seja possiacutevel Para a autora cada caso propotildee um saber

singular impedindo tentativas de aplicabilidade do meacutetodo psicanaliacutetico ldquoEfetivamente Freud

decanta a cliacutenica e transmite dela o caso E interessa ressaltar que o caso natildeo se limita ao

paciente mas refere-se ao encontro que a cliacutenica promoverdquo (VORCARO 2010 p 12)

Eacute este ponto de encontro que a cliacutenica promove ponto em que se tece a relaccedilatildeo

transferencial onde cada personagem fala e age a partir dela que buscamos situar a figura do

Noacutes Destacamos tambeacutem a referecircncia de Vorcaro a Freud na transmissatildeo de casos cliacutenicos

Geralmente os casos mais desafiadores ao psicanalista o impeliam agrave escrita os casos que

supostamente ldquonatildeo deram certordquo ou ainda casos com os quais ele natildeo conseguiu trabalhar

Nesse sentido a cada caso escrito transmitia-se um saber singular sobre a cliacutenica psicanaliacutetica

No papel de psicoacuteloga buscamos com a escrita dos recortes cliacutenicos dar lugar agrave relaccedilatildeo

transferencial a partir da qual era possiacutevel agir e fazer dos elementos que restam do caso uma

pesquisa Segundo Vorcaro

[] nessa dobradiccedila em que se identifica num soacute tempo o cliacutenico e o pesquisador interessa localizar nos traccedilos depositados da escrita literal como o pesquisador ultrapassa sua transcriccedilatildeo Afinal um saber se deposita em seu escrito a despeito da consciecircncia do autor Eacute o que permite ao pesquisador ao retornar outras vezes mais sobre a transcriccedilatildeo feita do caso situar propriamente o que o caso fisga de interesse investigativo (VORCARO 2010 p 15)

Da leitura literal do escrito torna-se possiacutevel encontrar traccedilos que conectados formam

uma constelaccedilatildeo estrutura que busca transmitir o saber ainda que o saber comporte um

impossiacutevel um saber inconsciente Buscamos assim os elementos miacutenimos para produzir uma

71

equaccedilatildeo teoacuterica ndash equaccedilatildeo que nos permite voltar ao cenaacuterio para lecirc-lo novamente e almeja

permitir ler tambeacutem outros cenaacuterios

A fim de produzir um distanciamento dos impasses gerados na escolarizaccedilatildeo da crianccedila

situaccedilatildeo vivenciada na cliacutenica e na escola escolhemos uma estrutura dramatuacutergica para contar

a histoacuteria Identificamos que haacute em cena posiccedilotildees discursivas diferentes que em funccedilatildeo da

posiccedilatildeo sintomaacutetica de cada um e do lugar que ocupam em transferecircncia impedem os

deslocamentos necessaacuterios para que se arme um desenlace capaz de transformar essas posiccedilotildees

Haacute na verdade uma ilusatildeo em cada uma (pedagoga psicoacuteloga meacutedica) de que a escolha

tomada individualmente teraacute condiccedilotildees de resolver o problema

A leitura dessa situaccedilatildeo nos remete aos modos de desenlace operados pelo traacutegico a

como era apresentado pelas trageacutedias claacutessicas e como ao longo dos seacuteculos foi sendo

substituiacutedo por novas esteacuteticas teatrais com grande influecircncia das transformaccedilotildees filosoacuteficas e

poliacuteticas Dessa forma nossa investigaccedilatildeo busca captar o ponto de virada de um arranjo cecircnico

para outro

Eacute nesse sentido que adentramos em nossa segunda via metodoloacutegica que consiste em

tomar elementos estruturais de um campo outro para ler uma questatildeo inquietante de nosso

tempo para entendermos como estamos habituados a trabalhar com ela hoje Da passagem do

mundo traacutegico ao ensinamento moral que ocorreu com os gregos pensamos que haacute uma

estrutura possiacutevel de ser tomada para tentar acessar o que opera nesse apelo ao saber meacutedico

feito pela escola Assim o meacutetodo proposto ocorre no sentido de tomar um acontecimento

analisaacute-lo e destacar dele elementos estruturais que permitem acessar um outro acontecimento

Aleacutem disso destacamos que a opccedilatildeo por um texto dramatuacutergico se aproxima da

construccedilatildeo de caso psicanaliacutetico na medida em que ambas as escritas buscam trazer agrave tona as

nuances da histoacuteria as tensotildees e polaridades sustentadas em cena de modo a transmitir ao leitor

um saber sobre a experiecircncia Diferente seria a tendecircncia a oferecer uma soluccedilatildeo aplicaacutevel para

toda e qualquer situaccedilatildeo uma imposiccedilatildeo de verdade Satildeo duas formas conflitantes que tentamos

expor em cena e nas discussotildees teoacutericas deste trabalho

72

1 A MEDICALIZACcedilAtildeO NA CENA EDUCATIVA E A CONSTITUICcedilAtildeO DO TDAH

Este trabalho se inscreve entre as discussotildees que vem sendo realizadas no campo da

educaccedilatildeo acerca dos processos de medicalizaccedilatildeo da vida e de como o saber meacutedico se faz

presente no discurso da escola

Na extensatildeo de sua obra Michel Foucault apresenta como a medicina ganhou espaccedilo

na sociedade europeia ao longo dos seacuteculos XVIII XIX e XX atraveacutes dos movimentos de

urbanizaccedilatildeo sanitarizaccedilatildeo higienizaccedilatildeo educaccedilatildeo a fim de zelar pela sauacutede da populaccedilatildeo Na

esteira dessa praacutetica no entanto encontramos a medicina como estrateacutegia de um exerciacutecio de

controle e poder sobre os corpos encarregada de produzir discurso de verdade acerca da

normalidade da sexualidade da educaccedilatildeo nas famiacutelias e instituiccedilotildees sociais Hoje colhemos

os efeitos desse discurso e ainda o produzimos na sociedade e educaccedilatildeo brasileira

Considerando as contribuiccedilotildees de Foucault o pesquisador Irving Zola (1972) propotildee

trazer agrave tona o termo ldquomedicalizaccedilatildeordquo Com isso menciona que a medicina se tornou uma

instituiccedilatildeo de controle social que toma o lugar de instituiccedilotildees tradicionais como a religiatildeo e o

direito Conquistou o poder de proferir e julgar a verdade das coisas a partir de um ponto de

vista supostamente neutro em nome da sauacutede Isso natildeo ocorre atraveacutes do poder poliacutetico que a

pessoa do meacutedico pode ter ou influenciar mas eacute ldquoum fenocircmeno insidioso e natildeo dramaacutetico

implicado em lsquomedicalizarrsquo muito da nossa vida diaacuteria fazendo dos medicamentos e dos roacutetulos

lsquosaudaacutevelrsquo e lsquodoentersquo relevantes a toda parte da existecircncia humanardquo (ZOLA 1972 p 487)

O autor fala que esse fenocircmeno comeccedilou a ser percebido atraveacutes da psiquiatria campo

da medicina para o qual criacuteticas e preocupaccedilotildees foram convergidas mas isso natildeo impediu que

a medicalizaccedilatildeo acontecesse Se buscarmos os motivos veremos que tal processo estaacute

ldquoenraizado no avanccedilo do nosso complexo e burocraacutetico sistema tecnoloacutegico que nos levou para

o caminho da relutante confianccedila no especialistardquo (ZOLA 1972 p 487)

Dessa forma Zola (1972) desloca uma possiacutevel culpabilizaccedilatildeo da ciecircncia da medicina

ou da ciecircncia da psiquiatria pela existecircncia dos processos de medicalizaccedilatildeo para um

acontecimento decorrente do progresso cientifico e tecnoloacutegico que acaba por regular as nossas

relaccedilotildees com os outros numa espeacutecie de cuidado e vigilacircncia Natildeo haacute uma entidade ou

indiviacuteduo culpados por implantar os processos de medicalizaccedilatildeo pois estes estatildeo no interior de

nossa cultura

73

Medicalizaccedilatildeo eacute o processo de tornar um problema natildeo meacutedico geralmente um

problema social como algo pertencente ao campo da medicina a qual tem a incumbecircncia de

nomeaacute-lo e trataacute-lo Michel Foucault apresenta no curso Os anormais de que forma a

medicalizaccedilatildeo se constitui no terreno da psiquiatria e lhe confere poder

Despatologizaccedilatildeo do objeto foi essa a condiccedilatildeo para que o poder meacutedico poreacutem da psiquiatria pudesse se generalizar assim Surge entatildeo o problema como pode funcionar um dispositivo tecnoloacutegico um saber-poder tal em que o saber despatologiza de saiacuteda um domiacutenio de objetos que no entanto oferece a um poder que soacute pode existir como poder meacutedico Poder meacutedico sobre o natildeo-patoloacutegico estaacute aiacute a meu ver o problema central ndash mas talvez vocecircs digam evidente ndash da psiquiatria (FOUCAULT 2001 p 394)

Numa perspectiva contemporacircnea da medicalizaccedilatildeo num novo regime de gestatildeo da

vida Seacutergio Carvalho e outros (2015) apontam que os pacientes estatildeo cada vez mais autocircnomos

satildeo agora indiviacuteduos consumidores que natildeo se submetem mais ao meacutedico como um agente de

cuidado mas esperam dele e de outros profissionais implicados com novas tecnologias em

sauacutede prescriccedilotildees e orientaccedilotildees de forma que eles ndash os proacuteprios pacientes ndash possam decidir

sobre o destino de seus corpos No entanto podemos dizer ainda que tenham mudado de

posiccedilatildeo na teia discursiva da medicalizaccedilatildeo seguem fazendo parte desse emaranhado como

consumidores dos produtos da medicina

A medicalizaccedilatildeo com a qual estamos familiarizados hoje ou seja o processo intriacutenseco

ao progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico comeccedilou a aparecer na segunda metade do seacuteculo XX

Poreacutem a praacutetica vem tomando corpo desde o fim do seacuteculo XVIII com o discurso de

normalizaccedilatildeo da existecircncia problematizado na obra de Foucault Se hoje tendemos a traccedilar uma

separaccedilatildeo entre o corpo doente e o corpo saudaacutevel com o desenvolvimento da psiquiatria haacute

dois seacuteculos comeccedilamos a demarcar de forma cada vez mais clara e precisa a fronteira entre o

que eacute normal e o que eacute patoloacutegico

Essa distinccedilatildeo entre a normalidade e a patologia constitui um modo de operar proacuteprio

ao campo da psiquiatria que implica a instituiccedilatildeo de um padratildeo normal de funcionamento

mental e de comportamento ao qual todo indiviacuteduo eacute comparado Tal padratildeo eacute sempre dado a

priori nunca eacute questionado Mas como surge o padratildeo

De acordo com Freitas (2011) a partir de uma heranccedila dos ideais iluministas que

concebe o ser humano como racional e individualizado a psiquiatria durante o seacuteculo XIX

desenvolveu-se no sentido de descobrir funccedilotildees mentais e localizar no ceacuterebro problemas que

74

acometiam tais funccedilotildees As descobertas neurofisioloacutegicas possibilitaram a concepccedilatildeo de teorias

acerca das capacidades humanas sendo que cada ser humano como indiviacuteduo deveria zelar

sobre sua mente e adaptaacute-la ao meio externo Aqueles que natildeo conseguiam ter esse cuidado

sobre suas funccedilotildees mentais demonstravam sinais patoloacutegicos de provaacutevel etiologia orgacircnica

Dessa forma o indiviacuteduo normal seria aquele mais adaptado agrave sua realidade e qualquer

desvio de norma poderia indicar uma patologia Entendemos que para a psiquiatria da eacutepoca a

origem de um problema de desajuste social estaacute localizada no organismo de um indiviacuteduo um

ser considerado doente e anormal sem levar em conta as particularidades da vida de cada um

ou entatildeo como a cultura eacute inscrita transmitida a cada sujeito concepccedilotildees que podemos ter hoje

ao nos debruccedilarmos sobre as produccedilotildees de nossos antepassados No seacuteculo XIX eram outros

os elementos que organizavam o discurso social

De acordo com Foucault (2006) nessa eacutepoca o meacutedico acaba por incorporar o poder

psiquiaacutetrico sobre o paciente tornando seu meacutetodo de intervenccedilatildeo a prova do domiacutenio sobre o

saber e sobre o outro A interrogaccedilatildeo que atesta a loucura a prescriccedilatildeo de medicamentos que

controlam o corpo o proacuteprio uso da hipnose satildeo praacuteticas que comprovam o poder psiquiaacutetrico

que tomam por terapecircuticas accedilotildees disciplinares Assim se constituiacuteam relaccedilotildees de poder

operadas por um discurso medicalizante que natildeo pode ser confundido com uma pessoa mas

com a funccedilatildeo que ela exerce num acircmbito relacional

Segundo Chaves e Caliman (2017) havia uma divergecircncia de olhares sobre o indiviacuteduo

doente Enquanto Esquirol pensava que a anormalidade era inata fatalidade bioloacutegica e

hereditaacuteria Seacuteguin acreditava na possibilidade de mudanccedila de comportamento dos indiviacuteduos

se houvesse uma intervenccedilatildeo Seacuteguin trouxe a noccedilatildeo de que o desenvolvimento ocorre a todo

ser humano de modo universal e que alguns apresentam particularidades para as quais uma

intervenccedilatildeo normalizadora eacute possiacutevel Tais particularidades passaram a ser levantadas descritas

e classificadas Nesse sentido a medicina conquista um espaccedilo para atuar de forma pedagoacutegica

e preventiva

Com as noccedilotildees de desenvolvimento e necessidade de prevenccedilatildeo de patologias o cenaacuterio

da psiquiatria passa a abranger tambeacutem a infacircncia de forma a produzir um saber meacutedico sobre

a crianccedila Dessa maneira

[] em torno da crianccedila anormal aquela que natildeo avanccedilava no seu desenvolvimento cresceu a defesa de um tratamento moral e de prevenccedilatildeo dos desvios facilitando a expansatildeo de estrateacutegias disciplinares da psiquiatria

75

para aleacutem dos limites asilares aproximando-se das famiacutelias e das escolas (CHAVES CALIMAN 2017 p 141)

Podemos entrever essa ideia em Foucault no curso Os anormais O filoacutesofo aponta que

a psiquiatria proposta por Esquirol tinha um modelo de imitaccedilatildeo ou seja tinha como centro a

doenccedila e o que um conjunto de sintomas poderia representar dessa doenccedila Essa forma de operar

eacute substituiacuteda por uma psiquiatria que desfoca a doenccedila ou natildeo a coloca como causa de suas

investigaccedilotildees mas propotildee como centro um desenvolvimento normativo voltando sua atenccedilatildeo

entatildeo agrave infacircncia Tal modo de fazer psiquiatria eacute para o autor uma correlaccedilatildeo agraves descobertas

cientiacuteficas da neurologia e da biologia com as quais a psiquiatria poderia constituir-se como

saber da medicina

Vocecircs compreendem nessa medida por que e como a psiquiatria pocircde manifestar tanta obstinaccedilatildeo em enfiar o nariz no quarto de crianccedila ou na infacircncia Natildeo eacute porque ela queria acrescentar uma peccedila anexa a seu domiacutenio jaacute imenso natildeo eacute porque queria colonizar mais uma pequena parte de existecircncia em que ela natildeo teria tocado ao contraacuterio eacute que havia aiacute para ela o instrumento de sua universalizaccedilatildeo possiacutevel (FOUCAULT 2001 p 392)

Na infacircncia assim poderiacuteamos averiguar antecipaccedilotildees ou atrasos do desenvolvimento

humano normal que embora natildeo possam ser chamados de doentes eram entendidos como

anomalias Um instinto sexual biologicamente constituiacutedo poderia surgir precocemente na

infacircncia Por outro lado condutas sexuais inapropriadas para adultos de quem se espera um

desenvolvimento normal e controle sobre suas funccedilotildees mentais e instintos eram nomeadas de

infantis A palavra ldquoinfantilrdquo ou ldquoinfantilizadordquo acaba por significar condutas imaturas ou

seja na infacircncia ainda estamos num processo de maturaccedilatildeo orgacircnico e de nossas funccedilotildees

mentais que se bem controlado se bem educado nos conduz a uma normalidade adulta

No acircmbito da escola comeccedilaram a surgir espaccedilos para a educaccedilatildeo de crianccedilas ldquodoentesrdquo

(geralmente classificadas com idiotia ou seja retardo mental) separadas das crianccedilas ditas

normais das classes das escolas regulares No entanto dentro da sala de aula normal

apareceram novas categorias de anormalidade as crianccedilas com problemas morais inquietos e

indisciplinados que atrapalhavam a rotina escolar Dessa forma uma diferenccedila entre

comportamento doentio e conduta anocircmala indesejada no acircmbito da escola passou a ser

estabelecida (CHAVES CALIMAN 2017) Ou entatildeo como pode referir Foucault (2001 p

391)

76

Eacute um contratempo eacute uma sacudida nas estruturas que aparecem em contraste com um desenvolvimento normal e que vatildeo constituir o objeto geral da psiquiatria E eacute soacute secundariamente em relaccedilatildeo a essa anomalia fundamental que as doenccedilas vatildeo aparecer como uma espeacutecie de epifenocircmeno com relaccedilatildeo a esse estado que eacute fundamentalmente um estado de anomalia

Nesse sentido jaacute no seacuteculo XX a psiquiatria sentiu a necessidade de criar compecircndios

e manuais de doenccedilas encontradas nas diferentes fases do desenvolvimento humano e em

diferentes espaccedilos da vida humana a fim de ajudar na sua classificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo Eacute nesse

cenaacuterio que surgem as doenccedilas mentais de causas supostamente fisioloacutegicas que afetam

crianccedilas de acordo com uma concepccedilatildeo que correlaciona a anomalia do desenvolvimento com

achados neuroloacutegicos e bioloacutegicos

Durante a Primeira Guerra Mundial de acordo com Herrera (2015) Europa e Estados

Unidos viveram a epidemia de uma doenccedila misteriosa cujas causa e cura ateacute hoje natildeo foram

satisfatoriamente descobertas a encefalite letaacutergica um tipo de dor de cabeccedila potencialmente

fatal acompanhada de febre letargia tremores perda da fala e psicose entre outros sintomas

Como sintomas residuais foram descritas alteraccedilatildeo do sono hiperatividade teimosia

irritabilidade e problemas de memoacuteria

Entendemos que na eacutepoca muitos agentes etioloacutegicos eram ainda desconhecidos como

viacuterus e bacteacuterias Sabe-se que a doenccedila surgiu em contexto de guerra em que soldados poderiam

entrar em contato com soldados de outros territoacuterios transmitindo ou sendo infectados por

micro-organismos ainda estranhos ao corpo do outro ou ao seu proacuteprio Haacute uma suposiccedilatildeo atual

de que a encefalite letaacutergica tenha se originado por uma bacteacuteria que se alojava na garganta No

entanto na eacutepoca da epidemia quem investigava a doenccedila eram neurologistas por acreditarem

que a origem era um comprometimento das funccedilotildees neuroloacutegicas

No campo da medicina e da neurologia o seacuteculo XX foi marcado por uma importante

mudanccedila na forma de conceber e abordar sintomas de doenccedilas supostamente de origem

orgacircnica Anteriormente agrave Primeira Guerra Mundial meacutedicos viam-se preocupados com casos

de histeria doenccedila que acometia em sua maioria as mulheres e reunia alguns sintomas

semelhantes ao da encefalite letaacutergica aleacutem de paralisias e cegueiras

Sigmund Freud meacutedico formado em Viena atraveacutes do que estudou com Breuer e

Charcot a respeito do meacutetodo hipnoacutetico e com a ajuda de suas pacientes propocircs ao mundo da

medicina um novo meacutetodo de abordagem da histeria a escuta das representaccedilotildees mentais de

77

eventos traumaacuteticos e de histoacuterias de vida relacionadas a esses eventos o que levava agrave remissatildeo

ou ao aliacutevio de sintomas e a uma posiccedilatildeo mais responsaacutevel sobre escolhas de vida Assim no

iniacutecio do seacuteculo XX Freud apresentou a psicanaacutelise como teoria e meacutetodo de tratamento para

as neuroses As neuroses ainda que apresentem manifestaccedilotildees no corpo natildeo se originam de

acometimentos orgacircnicos mas se devem ao recalque a conteuacutedos mentais recalcados

alienados da consciecircncia Nesse sentido o surgimento da psicanaacutelise como teoria e meacutetodo de

tratamento foi a escuta de mulheres histeacutericas mulheres que situaram um limite no campo

meacutedico A partir do pedido de suas pacientes por tomarem a palavra Freud engendrou uma

nova forma de abordagem ao saber meacutedico que encontrou suas resistecircncias

Com o desenvolvimento da psicanaacutelise Freud chegou a alguns pilares de sua teoria

como o conceito de Trieb traduzido no Brasil por ldquopulsatildeordquo Na proposta de Freud (19152004)

a pulsatildeo evidenciaria a exigecircncia do trabalho imposto ao psiacutequico por sua articulaccedilatildeo ao corpo

referindo-se a impulsos que brotam do interior do corpo e demandam uma representaccedilatildeo

psiacutequica Aqui pode haver referecircncia agrave forma de abordagem das anormalidades discutida por

Foucault Haacute um trabalho psiacutequico em estabelecer uma articulaccedilatildeo entre as representaccedilotildees e o

que lateja no corpo Mannoni (2003) tambeacutem comenta que as produccedilotildees freudianas no iniacutecio

de sua vida como psicanalista eram tomadas na via de um paralelismo psicofiacutesico observado

em outros estudiosos Mas o corpo trazido agrave tona pelo discurso psicanaliacutetico a partir da escuta

de pacientes eacute o mesmo corpo da neurologia e da biologia objeto de investigaccedilatildeo e controle

da medicina Talvez uma das inovaccedilotildees de Freud para o campo da medicina seja a inauguraccedilatildeo

de uma nova noccedilatildeo de corpo atraveacutes de uma nova abordagem

Nesse sentido acreditamos que haacute aqui um contraste entre formas de abordagem dos

sintomas no campo da medicina Contudo natildeo queremos igualar histeria e encefalite letaacutergica

identificando-as numa mesma categoria nosoloacutegica pois sabemos que natildeo satildeo a mesma coisa

Apenas queremos dizer que para doenccedilas com sintomas neuroloacutegicos semelhantes que

desafiavam o campo meacutedico existiam modos distintos de investigaccedilatildeo que produziam modos

diferentes de conceber o corpo

Na deacutecada de 1930 alguns pesquisadores preocupados com uma nova epidemia de

encefalite letaacutergica voltaram-se agrave investigaccedilatildeo da gecircnese das condiccedilotildees neuroloacutegicas que

caracterizavam a doenccedila e estudaram o comportamento de crianccedilas com supostas lesotildees

cerebrais Jaacute em 1947 de acordo com Herrera (2015) Strauss e Werner criaram o termo Lesatildeo

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Cerebral Miacutenima (LCM) para descrever crianccedilas com problemas de comportamento e com

dificuldades para aprender que natildeo se encaixavam em outras patologias da infacircncia

Poreacutem ao natildeo ser constatada lesatildeo alguma no ceacuterebro de crianccedilas supostamente

doentes o termo LCM foi substituiacutedo por DCM Disfunccedilatildeo Cerebral Miacutenima nova categoria

que foi amplamente divulgada nos Estados Unidos por meio da publicaccedilatildeo de um manual

explicativo em 1964 que traccedilava uma histoacuteria dos problemas de aprendizagem ateacute se chegar

ao DCM O projeto foi financiado pelo governo americano e consistia tambeacutem na distribuiccedilatildeo

de panfletos e na transmissatildeo de curtas-metragens que orientavam a populaccedilatildeo para a detecccedilatildeo

da disfunccedilatildeo (HERRERA 2015)

Em 1968 o Manual diagnoacutestico e estatiacutestico dos transtornos mentais (DSM) era

lanccedilado em sua segunda ediccedilatildeo na qual apresentava outra categoria de transtorno do aprender

chamada Transtorno de Reaccedilatildeo Hipercineacutetica ou Hipercinesia que continha os principais

sintomas da DCM as saber a hiperatividade desatenccedilatildeo e impulsividade

O nome da disfunccedilatildeo foi modificado para Distuacuterbio de Deacuteficit de Atenccedilatildeo na ediccedilatildeo do

DSM-III e para Transtorno do Deacuteficit de Atenccedilatildeo Com ou Sem Hiperatividade (TDAH) ou de

tipo combinado no DSM-IV Aparece com a mesma nomenclatura no DSM-V Jaacute outro manual

de classificaccedilatildeo de desordens mentais o Coacutedigo Internacional de Doenccedilas (CID-10) chama um

distuacuterbio similar ao TDAH de Transtornos Hipercineacuteticos

Segundo o DSM-V o TDAH eacute um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado

por dificuldades no desenvolvimento que se manifestam desde a infacircncia e influenciam no

desempenho estudantil familiar e social O diagnoacutestico pode ser realizado a partir dos 6 anos

de idade Consiste num padratildeo persistente de desatenccedilatildeo eou hiperatividade e impulsividade

que caracterizam uma disfunccedilatildeo no desenvolvimento Tanto o tipo desatento quanto o tipo

hiperativo exigem que no miacutenimo seis sintomas de nove listados de cada um estejam presentes

e persistam por pelo menos seis meses de modo incompatiacutevel com o niacutevel de desenvolvimento

e que tenham prejuiacutezos sobre a vida estudantil profissional e social do indiviacuteduo (AMERICAN

PSYCHIATRY ASSOCIATION 2014)

Freitas (2011) em sua tese de doutorado propotildee pensar o que caracteriza o TDAH Se

nesse transtorno o sujeito eacute marcado por um deacuteficit importante da atenccedilatildeo a autora sugere

investigar este conceito e sua construccedilatildeo histoacuterica Haveria um consenso sobre seu significado

Freitas aponta que natildeo

79

A ausecircncia de uma definiccedilatildeo mais clara do conceito de atenccedilatildeo em muitos escritos pode parecer aparentemente irrelevante como se esse fosse um dado que se pudesse tomar a priori Mas natildeo eacute Entendo que esse conceito vem sendo usado como se todos tiveacutessemos propriedade sobre ele ou mesmo um entendimento padratildeo para seu uso Mas natildeo temos (FREITAS 2011 p 42)

Frisamos que Freud no iniacutecio do seacuteculo XX situando a teacutecnica da escuta analiacutetica

aborda a atenccedilatildeo Ele a teoriza da seguinte forma

[] poupamos de esforccedilo violento nossa atenccedilatildeo a qual de qualquer modo natildeo poderia ser mantida por vaacuterias horas diariamente e evitamos um perigo que eacute inseparaacutevel do exerciacutecio da atenccedilatildeo deliberada Pois assim que algueacutem deliberadamente concentra bastante a atenccedilatildeo comeccedila a selecionar o material que lhe eacute apresentado um ponto fixar-se-aacute em sua mente com clareza particular e algum outro seraacute correspondentemente negligenciado e ao fazer essa seleccedilatildeo estaraacute seguindo suas expectativas ou inclinaccedilotildees Isto contudo eacute exatamente o que natildeo deve ser feito Ao efetuar a seleccedilatildeo se seguir suas expectativas estaraacute arriscado a nunca descobrir nada aleacutem do que jaacute sabe e se seguir as inclinaccedilotildees certamente falsificaraacute o que possa perceber Natildeo se deve esquecer que o que se escuta na maioria satildeo coisas cujo significado soacute eacute identificado posteriormente (FREUD 19121996c p 70)

Sabemos que haacute aqui uma diferenccedila importante a ser situada entre a atenccedilatildeo demandada

na escuta psicanaliacutetica voltada para a literalidade do que se escreve na fala e uma atenccedilatildeo

voluntaacuteria que pertence aos processos conscientes Para Freitas (2011) cada tempo de nossa

histoacuteria apresentou um modo de conceber a atenccedilatildeo de controlaacute-la de julgaacute-la e de medi-la Eacute

possiacutevel entender que a atenccedilatildeo eacute um conceito em transformaccedilatildeo constante inseparaacutevel das

mudanccedilas de paradigma ao longo da nossa histoacuteria

Por exemplo a autora aponta a importacircncia da atenccedilatildeo durante o seacuteculo XIX e o quanto

o desenvolvimento dessa funccedilatildeo psicoloacutegica ficou atrelado agraves possibilidades da ciecircncia de

medi-la pensar formas de estimulaacute-la e controlaacute-la Nesse sentido a concepccedilatildeo de atenccedilatildeo

adequava-se aos limites das teacutecnicas de mediccedilatildeo Coube agrave educaccedilatildeo como papel fundamental

nesse processo entrever as condiccedilotildees de fixar a atenccedilatildeo das crianccedilas para os modelos morais

respeitaacuteveis da eacutepoca

Com o desenvolvimento do conceito de atenccedilatildeo pelo discurso meacutedico as noccedilotildees de

impulsividade e de falta de controle se tornam indiacutecios de patologia Isso pode ter colaborado

para a descriccedilatildeo de uma entidade nosoloacutegica como o TDAH que reuacutene sintomas de desatenccedilatildeo

hiperatividade e impulsividade

80

Santos e Freitas (2016) entrevistando Ilina Singh uma importante pesquisadora inglesa

sobre o TDAH contam que o transtorno ficou conhecido no Brasil nos anos 1990 quando

professores passaram a identificar alunos hiperativos em suas salas de aula e encaminhaacute-los

para diagnoacutesticos meacutedicos Hoje os diagnoacutesticos de TDAH atingiram niacuteveis epidecircmicos no

Brasil

Os pesquisadores afirmam que a miacutedia tem um importante papel nessa mudanccedila de

cenaacuterio No entanto hoje na cidade de Porto Alegre professores recebem treinamento e

capacitaccedilatildeo especiacuteficos para detectar a presenccedila de sintomas de TDAH nos estudantes e satildeo

orientados a fazer o devido encaminhamento para especialistas em sauacutede

Para os autores essa situaccedilatildeo evidencia o quanto a escola brasileira estaacute se tornando

dependente da presenccedila do saber meacutedico para legislar sobre problemas de aprendizagem

Em outras palavras as escolas estatildeo delegando agrave medicina a autoridade para legislar sobre problemas ou questotildees que poderiam ser vistos como escolares ou sociais num claro processo de medicalizaccedilatildeo Neste sentido entendemos que as escolas estatildeo deixando um espaccedilo vazio em termos pedagoacutegicos no que se refere agraves suas possiacuteveis accedilotildees ou praacuteticas [] (SANTOS FREITAS 2016 p 1079)

O fato de o nuacutemero de crianccedilas e de pessoas de diferentes idades ter atingido um

patamar considerado epidecircmico no Brasil eacute algo que causa bastante preocupaccedilatildeo e necessidade

de investigar as causas do transtorno sejam elas orgacircnicas fisioloacutegicas educacionais e sociais

em diversas pesquisas no Paiacutes assim como um dia pesquisadores se ocuparam de estudar a

encefalite letaacutergica no iniacutecio do seacuteculo passado

De acordo com Freitas (2011) uma epidemia eacute assim chamada quando um evento ou

uma doenccedila aparece repentinamente e atinge rapidamente uma parcela consideraacutevel da

populaccedilatildeo A autora aponta que a prevalecircncia de crianccedilas com TDAH no mundo varia de 3 a

6 dependendo do paiacutes ou da regiatildeo E percebe tal realidade quando numa turma de vinte

alunos quatro ou cinco tecircm o diagnoacutestico e os professores natildeo se impressionam com tal fato

As formas de abordar a epidemia do TDAH satildeo bastante diversas de acordo com a aacuterea

de pesquisa e a trajetoacuteria acadecircmica Haacute aqueles que se questionam sobre a existecircncia do

transtorno ndash natildeo seria uma invenccedilatildeo da American Psychiatry Association (APA) Temos uma

epidemia de acometidos ou de diagnoacutesticos ndash e haacute outros que apresentam registros de uma

doenccedila semelhante ao TDAH descrita no seacuteculo XVIII e afirmam que as crianccedilas tecircm o direito

de serem diagnosticadas e tratadas

81

Ilina Singh (apud SANTOS FREITAS 2016) fala da importacircncia de tratarmos da

questatildeo de modo multifatorial como um problema de sauacutede puacuteblica que coloca as diversas

aacutereas a trabalharem juntas Hoje eacute conhecido amplamente que o principal encaminhamento que

se faz a uma crianccedila com TDAH eacute a avaliaccedilatildeo meacutedica para o iniacutecio de tratamento com o

metilfenidato um psicoestimulante criado nos anos 1950 na Suiacuteccedila vendido e consumido no

mundo inteiro

No entanto Singh considera como algo importante no tratamento a escuta das crianccedilas

e de suas famiacutelias a fim de registrar e de divulgar o que elas podem dizer sobre isso que lhes

acontece isso que chamamos TDAH Nada mais justo do que dar voz agravequeles que sofrem os

sintomas assim como no fim do seacuteculo XIX Freud deu voz agraves histeacutericas constituindo um

meacutetodo que permitiu aos sujeitos narrarem as particularidades de suas histoacuterias para aleacutem dos

achados cientiacuteficos Eacute importante na escuta de crianccedilas com TDAH lembrar o que nos disse a

psicanalista Maud Mannoni (2003) natildeo podemos usar a crianccedila para comprovar as verdades

de uma teoria ou seja natildeo devemos querer encontrar na crianccedila os sintomas previstos de

desatenccedilatildeo e hiperatividade mas buscar construir com ela uma narrativa que sirva de ponte

para outras formas de ser e estar no mundo

11 MARGUERITE ou um recorte da histoacuteria da RITALINA

O nome Marguerite tem sua importacircncia para a histoacuteria da psicanaacutelise teoria e meacutetodo

a partir dos quais se pretende traccedilar as linhas desta pesquisa O psicanalista Jacques Lacan

apresentou em sua tese de doutorado em psiquiatria o ldquoCaso Aimeacuteerdquo nome fictiacutecio de

Marguerite uma mulher que sofria de paranoia A partir da escuta de seus deliacuterios Lacan

desloca uma concepccedilatildeo organicista e sintomaacutetica acerca da paranoia para uma concepccedilatildeo

psicanaliacutetica dando ecircnfase aos significantes que organizam e desorganizam o deliacuterio

Gostariacuteamos no entanto de apresentar outra Marguerite natildeo a partir de um caso cliacutenico

mas como sua histoacuteria inspirou o nome de um faacutermaco

Marguerite era uma jovem mulher que vivia com seu marido Leandro Panizzon em

Basel Suiacuteccedila Os dois haviam nascido e crescido na Itaacutelia Ela jogava tecircnis Leandro era quiacutemico

na empresa CIBA Na eacutepoca ele sintetizava compostos de nitrogecircnio

Certo dia no ano de 1944 ele fez experimentos com a piperidina uma amina encontrada

em plantas e criou um composto molecular muito semelhante agraves anfetaminas que satildeo poderosos

82

estimulantes No entanto a empresa onde trabalhava entendeu que Panizzon havia produzido

um estimulante leve uma espeacutecie de ldquopsicotocircnicordquo (SHORTER 2008)

Dessa forma o que ele havia descoberto era diferente dos estimulantes que se conheciam

ateacute entatildeo derivados das anfetaminas Um importante estimulante com essa derivaccedilatildeo

sintetizado em 1932 na Franccedila foi a benzedrina muito utilizada durante a Segunda Guerra

Mundial com o intuito de aumentar a resistecircncia e eliminar o cansaccedilo dos soldados (BRANT

CARVALHO 2012)

Por questatildeo de honra o quiacutemico resolveu experimentar sua criaccedilatildeo para averiguar seus

efeitos Poreacutem ele natildeo sentiu nada digno de nota Resolveu entatildeo oferecer o composto agrave sua

esposa Diferentemente de Leandro Marguerite se sentiu estimulada e disposta quando provou

a droga Passou a usaacute-la com frequecircncia e notou melhora em seu problema de pressatildeo baixa

Aleacutem disso comeccedilou a tomaacute-la antes de suas partidas de tecircnis o que a ajudou a aprimorar seu

desempenho (SHORTER 2008)

Panizzon passou a trabalhar com seu colega Hartmann no aprimoramento da moleacutecula

que havia inventado e em 1950 obtiveram o metilfenidato A patente para sua comercializaccedilatildeo

veio em 1954 O faacutermaco comeccedilou a ser vendido na Suiacuteccedila como um psicoestimulante leve para

agir sobre a fadiga crocircnica a letargia alguns estados depressivos psicose associada agrave depressatildeo

e a narcolepsia (HERRERA 2015)

Considerando o apreccedilo de Marguerite pela droga que criara Leandro resolveu nomeaacute-

la de Ritaline em homenagem agrave sua mulher cujo apelido era Rita (SHORTER 2008)

A Ritalina como a chamamos no Brasil pode ser representada pela seguinte foacutermula

83

De acordo com Herrera (2015) com a patente norte-americana que Panizzon e

Hartmann conseguiram a Ritalina foi importada para os Estados Unidos em 1955 e comeccedilou a

ser utilizada em hospitais para o tratamento de adultos depressivos

Dos anos 1950 ateacute os nossos dias o composto foi crescendo em produccedilatildeo e

comercializaccedilatildeo passando a ser indicado para diferentes puacuteblicos De homens deprimidos a

Ritalina teve bons efeitos sobre idosos depressivos alcoolistas mulheres fatigadas meninos

desobedientes ateacute chegar a crianccedilas e adolescentes com desordens do aprender

Isso eacute o que nos mostra um importante estudo realizado por Herrera (2015) que analisa

propagandas do metilfenidato feitas pelas induacutestrias farmacecircuticas e publicadas em revistas

cientiacuteficas desde sua criaccedilatildeo ateacute 1979 A partir das propagandas o autor constata a mudanccedila

de puacuteblico-alvo As uacuteltimas propagandas analisadas indicam a Ritalina para crianccedilas com

problemas na escrita e na matemaacutetica prometendo melhora no rendimento escolar Aleacutem disso

apontam como puacuteblico-alvo meninos problemaacuteticos inquietos e hiperativos provavelmente

portadores de disfunccedilatildeo cerebral miacutenima

Ainda que a moleacutecula tenha sido aperfeiccediloada no intuito de diminuir os efeitos

colaterais o princiacutepio do metilfenidato eacute o mesmo desde os anos 1950 ateacute hoje uma substacircncia

psicotroacutepica que atua no sistema nervoso central mais precisamente no sistema da dopamina

impedindo sua recaptaccedilatildeo bem como a recaptaccedilatildeo de outros neurotransmissores fazendo com

que eles prolonguem seus estiacutemulos eleacutetricos Poreacutem se na segunda metade do seacuteculo XX o

metilfenidato foi prescrito como estimulante leve capaz de agir contra a depressatildeo e a fadiga

hoje ele eacute indicado a pessoas que apresentam comportamentos diferentes de estados

depressivos ou seja eacute indicado para quem tem hiperatividade e deacuteficit de atenccedilatildeo oferecendo

melhora na concentraccedilatildeo das tarefas escolares

Coincidentemente ou natildeo a eacutepoca da mudanccedila de puacuteblico consumidor do metilfenidato

foi a mesma de descoberta do composto da fluoxetina antidepressivo consumido ateacute hoje com

este fim moleacutecula que tem como diferencial atuar sobre a recaptaccedilatildeo exclusiva do

neurotransmissor serotonina produzindo efeitos colaterais menos nocivos (SHORTER 2008)

No entanto ainda que os pacientes para quem o medicamento eacute indicado tenham

mudado ao longo dos anos haacute um puacuteblico que consome o metilfenidato da eacutepoca de sua criaccedilatildeo

ateacute a atualidade com o mesmo fim Marguerite usava a droga que recebeu seu apelido para

aprimorar seu rendimento nos jogos de tecircnis e hoje existem pessoas que o tomam para obter um

84

bom desempenho nas mais diversas atividades Melhorar a produtividade e a performance satildeo

objetivos natildeo meacutedicos

Isso eacute o que nos apontam Brant e Carvalho (2012) ao dizerem que o puacuteblico que tem

como finalidade melhorar o desempenho eacute bastante diverso como estudantes universitaacuterios

especialmente em eacutepocas de provas profissionais da sauacutede empresaacuterios atletas e motoristas

de caminhatildeo Com o uso natildeo meacutedico por um grupo heterogecircneo como esse os autores sugerem

que haacute venda ou prescriccedilatildeo descontrolada do medicamento a pessoas saudaacuteveis que buscam

melhoria das funccedilotildees cognitivas

Os autores apontam que ao contraacuterio do que se pode imaginar o consumo do

metilfenidato estaacute para aleacutem de fins recreativos como o prazer causado por um estado de

euforia ou uma sensaccedilatildeo de bem-estar Visa responder agraves demandas do mundo do trabalho

competitivo e globalizado Defendem que a Ritalina seria um medicamento gadget da

contemporaneidade o que significa que ocupa um lugar na economia de gozo do nosso tempo

O gadget eacute entendido como um produto criado pela induacutestria que oferece um ganho ldquoum

prolongamento das capacidades humanasrdquo mas sempre insuficiente e limitado no tempo

O uso contemporacircneo do metilfenidato estaacute aleacutem da triacuteade doenccedila sauacutede e cuidado Compreende a busca incessante do homem para superar seus limites e viver bem em sociedade o que torna esse medicamento um gadget um fetiche capaz de aproximar ainda mais o usuaacuterio de sua fraacutegil condiccedilatildeo do ser-aiacute-no-mundo (BRANT CARVALHO 2012 p 632)

12 RITALINA e o consumo de metilfenidato por escolares

Os pais dizem incontrolaacutevel desastrado impulsivo Seus professores dizem hiperativo se distrai com facilidade impulsivo Os meacutedicos diriam PFC (Problema Funcional de Comportamento) DCM (Disfunccedilatildeo Cerebral Miacutenima) LCM (Lesatildeo Cerebral Miacutenima) Hipercinesia Ritalina ajuda a ldquocrianccedila problemardquo a se tornar amaacutevel de novo

(Canadian Family Phisician 1971 traduccedilatildeo nossa)

Em 1971 a CIBA induacutestria farmacecircutica fabricante do metilfenidato publicou uma

propaganda na revista Canadian Family Phisician com os dizeres em epiacutegrafe Conforme

Herrera (2015) esse eacute um dentre vaacuterios anuacutencios publicados em revistas meacutedicas canadenses

85

e norte-americanas para a promoccedilatildeo da Ritalina como um medicamento para crianccedilas com

problemas tanto em casa quanto na escola

Qual a validade do saber da famiacutelia e da escola nessa propaganda Parece que o saber

meacutedico que visa um diagnoacutestico ganha um valor sobredeterminante na conduta com a crianccedila

que apresenta tais caracteriacutesticas com os pais e na sala de aula jaacute que eacute com uma das opccedilotildees

diagnoacutesticas apresentadas que o caminho do medicamento eacute indicado A Ritalina eacute oferecida

como aquilo que vai tornar a crianccedila com problema uma crianccedila amaacutevel como uma ponte entre

uma crianccedila indesejaacutevel porque hiperativa impulsiva desatenta e uma crianccedila amaacutevel digna

de amor pela famiacutelia e pela escola

O anuacutencio cita diferentes diagnoacutesticos jaacute conhecidos pela classe meacutedica na eacutepoca como

a lesatildeo cerebral miacutenima e cita tambeacutem novas nomenclaturas como a disfunccedilatildeo cerebral

miacutenima Dessa forma acaba convocando meacutedicos que nomeiam de formas diferentes a mesma

questatildeo que desejam promover

De acordo com a anaacutelise de Herrera (2015) a CIBA promoveu a Ritalina e o transtorno

receacutem-nomeado de DCM de forma conjunta Se dos anos 1950 ateacute iniacutecio de 1970 o

medicamento era voltado para o puacuteblico adulto conforme mostravam comerciais da eacutepoca a

partir dos anos 1970 o puacuteblico-alvo da induacutestria farmacecircutica mudou para os meninos com

problemas escolares devido agrave impulsividade e agrave inquietaccedilatildeo identificadas tambeacutem em casa

Segundo o autor ldquoo material publicitaacuterio desenvolvido na deacutecada de 1970 reforccedila a associaccedilatildeo

do comportamento inquieto e impulsivo com o gecircnero masculino e consolida efetivamente a

Ritalina como a droga de escolha para o tratamento do comportamento impulsivo em meninosrdquo

(HERRERA 2015 p 123)

No Brasil a Ritalina produzida pela Novartis chegou nos anos 1990 periacuteodo em que

a palavra ldquohiperativordquo tambeacutem passou a ser frequente no discurso social da escola Importante

lembrar que o termo ldquocrianccedila problemardquo citado na propaganda da CIBA foi veiculado no

Brasil nos anos 1930 atraveacutes do livro de mesmo nome do meacutedico alagoano Arthur Ramos no

qual aborda os serviccedilos de higiene mental no estado do Rio de Janeiro e propotildee uma diferenccedila

entre anormalidade da crianccedila e o problema que vive em seu contexto social e cultural O

meacutedico propotildee chamar de ldquocrianccedila problemardquo aquela que experimenta dificuldades de

aprendizagem e de adaptaccedilatildeo agrave escola que natildeo se devem a um problema orgacircnico ou a uma

anomalia jaacute que essas constituem realmente um impedimento uma barreira a uma educaccedilatildeo

comum como eacute o caso nos dias de hoje dos alunos com necessidades educativas especiais A

86

crianccedila problema corresponde agravequela produzida pelo discurso dos pais e educadores Para o

autor

[] as crianccedilas ldquocaudas de classerdquo nas Escolas insubordinadas desobedientes instaacuteveis mentirosas fujonas [] na sua grande maioria natildeo satildeo portadoras de nenhuma ldquoanomaliardquo moral no sentido constitucional do termo Elas foram ldquoanormalizadasrdquo pelo meio Como o homem primitivo cuja ldquoselvageriardquo foi uma criaccedilatildeo de civilizados tambeacutem na crianccedila o conceito de ldquoanormalrdquo foi antes de tudo o ponto de vista adulto a consequumlecircncia de um enorme sadismo inconsciente de pais e educadores (RAMOS 1950 p 18)

Compreendendo o sentido de ldquomeiordquo menos pelo vieacutes behaviorista e mais atrelado agrave

teoria da psicanaacutelise e da antropologia Ramos buscou mostrar o quanto noacutes educadores pais

psicoacutelogos meacutedicos podemos fazer com que alunos respondam a uma expectativa de

anormalidade com sintomas que cabem agrave forma de organizaccedilatildeo social da escola Nesse sentido

busca desconstruir o discurso que patologiza a crianccedila escolar e fala dos problemas vividos no

contexto social brasileiro daquela eacutepoca

No entanto a partir da propaganda da CIBA e da apropriaccedilatildeo que fazemos dos

significantes que designam os transtornos eacute possiacutevel dizer que o conceito utilizado por Ramos

(1950) de ldquocrianccedila problemardquo acabou engolfado pelo processo de medicalizaccedilatildeo da escola

brasileira e ressignificado como um problema individual Agrave diferenccedila de Ramos (1950) que

faz uma criacutetica agrave conduta anormalizadora na escola o anuacutencio da Ritalina propotildee uma

alternativa teacutecnica agrave fala de pais e educadores aleacutem de apresentar a soluccedilatildeo para a ldquodoenccedilardquo da

crianccedila

Nesse sentido hoje o metilfenidato eacute tanto importado quanto produzido no Brasil e

vendido sob o nome comercial Ritalina e Concerta Haacute tambeacutem a opccedilatildeo de medicamento

geneacuterico

Segundo Bianchi e outros (2017) entre 1996 e 2012 a quantidade de metilfenidato

produzido aqui e importado passou de 9 para 578 kg o que representa um aumento de 6322

comparando com a fabricaccedilatildeo mundial de metilfenidato entre 1998 e 2012 a qual variou de

13493 kg a 63236 kg representando um aumento de 369 O relatoacuterio teacutecnico de fabricaccedilatildeo

de substacircncias psicotroacutepicas feito pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e publicado em 2017

ressalta que em 2016 ocorreu o maior registro de fabricaccedilatildeo mundial de metilfenidato no

mundo ou seja 74 toneladas Em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de 2012 haacute um aumento de 17 Ainda

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que seja possiacutevel perceber uma certa estabilidade registra-se um crescimento na produccedilatildeo do

medicamento

Se a fabricaccedilatildeo mundial tem aumentado cada vez mais isso pode indicar que a

necessidade de consumo pode estar aumentando Em 2018 registrou-se no Brasil uma procura

maior do que a oferta O jornal mineiro O Tempo publicou uma reportagem em outubro sobre

a falta do medicamento que atingiu todo o Paiacutes desde maio A justificativa da Novartis

fabricante da Ritalina para o desabastecimento foi a burocracia para importaccedilatildeo da mateacuteria-

prima o que gerou um atraso na produccedilatildeo aleacutem disso houve uma procura maior que a prevista

De acordo com a repoacuterter Thuanny Motta como forma de garantir o acesso ao

medicamento nas farmaacutecias brasileiras a empresa resolveu duplicar a produccedilatildeo nacional de

150 mil caixas para 300 mil por mecircs pelo menos durante um periacuteodo de trecircs meses aleacutem de

otimizar a via de distribuiccedilatildeo Lembramos que o metilfenidato natildeo eacute vendido apenas para

pessoas diagnosticadas com o TDAH Como discutido o consumo tambeacutem ocorre entre aqueles

que desejam aprimorar seu desempenho em atividades acadecircmicas e profissionais No entanto

eacute preciso considerar que de acordo com Bianchi e outros (2017) o metilfenidato eacute o estimulante

mais vendido no Brasil para o tratamento do TDAH entre crianccedilas jovens e adultos

A Agecircncia Nacional de Vigilacircncia Sanitaacuteria (Anvisa) preocupada com o aumento do

consumo de Ritalina nos anos 2000 divulgou um boletim informativo sobre o puacuteblico

consumidor do metilfenidato O oacutergatildeo constatou um aumento do consumo de Ritalina por

crianccedilas de 6 a 16 anos no Brasil entre os anos de 2009 a 2011 Natildeo haacute divulgaccedilatildeo de um

boletim com dados mais recentes

No entanto a partir da reportagem do jornal O Tempo eacute possiacutevel fazer uma constataccedilatildeo

Se no boletim divulgado em 2012 o maior consumo mensal de metilfenidato considerando a

Ritalina a Ritalina de longa duraccedilatildeo e o Concerta foi de aproximadamente 140 mil caixas no

mecircs de agosto de 2011 (Figura 1) parece que hoje a produccedilatildeo normal apenas de Ritalina e

Ritalina de longa duraccedilatildeo tem sido de 150 mil caixas por mecircs

Para ter dados mais representativos da real produccedilatildeo do metilfenidato seria necessaacuterio

estimar a produccedilatildeo de Concerta e do geneacuterico fabricado pelo laboratoacuterio EMS aleacutem de

relacionar os dados da produccedilatildeo com os dados do consumo Sobre esta relaccedilatildeo no mecircs de

novembro de 2018 a empresa Novartis revelou a pedido do jornal baiano Correio que a

demanda meacutedia de Ritalina eacute de 150 a 160 mil unidades por ano A cada ano haacute aumento de

15 na procura

88

Eacute interessante levar em consideraccedilatildeo a periodicidade da dispensa do metilfenidato no

Brasil conforme o Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC)

Segundo Bianchi e outros (2017) a comercializaccedilatildeo do metilfenidato diminui com o fim do

ano letivo o que pode ser interpretado como uma diminuiccedilatildeo da prescriccedilatildeo meacutedica durante as

feacuterias escolares Podemos observar essa constataccedilatildeo no graacutefico a seguir divulgado no boletim

farmacoepidemioloacutegico do SNGPC (2012)

Figura 1ndash Consumo mensal de metilfenidato industrializado no Brasil entre 2009 e 2011

Fonte SNGPCCSGPCNUVIGAnvisa

A relaccedilatildeo do consumo de metilfenidato ao longo do ano letivo pode ficar um pouco mais

clara se olharmos o graacutefico que informa as caixas de medicamentos consumidas por crianccedilas e

jovens em idade escolar na cidade de Porto Alegre que de acordo com o SNGPC (2012) eacute a

cidade brasileira que registrou o maior consumo desse medicamento no triecircnio

89

Figura 2 ndash Consumo mensal de metilfenidato em Porto Alegre entre 2009 e 2011

Fontes SNGPCCSGPCNUVIGAnvisa DATASUSMinisteacuterio da Sauacutede

Podemos verificar com o graacutefico que existe um aumento no consumo de metilfenidato

com o iniacutecio das aulas e salvo algumas variaccedilotildees haacute uma tendecircncia de crescimento ao longo

do ano Os meses de maior consumo parecem ser outubro e novembro eacutepoca em que os alunos

podem estar realizando as avaliaccedilotildees finais Nos trecircs anos haacute uma ligeira queda no mecircs de julho

mecircs das feacuterias de inverno e logo em seguida um aumento de consumo com o iniacutecio do segundo

semestre

Tais interpretaccedilotildees satildeo confirmadas pelo SNGPC ao analisar um conjunto de dados do

consumo e prescriccedilatildeo meacutedica em todo o paiacutes A agecircncia conclui que ldquotem havido um aumento

no consumo de metilfenidato no paiacutes com um comportamento aparentemente variaacutevel com

destaque para reduccedilatildeo do consumo nos meses de feacuterias e aumento no segundo semestre dos

anos estudadosrdquo (SISTEMA NASCIONAL 2012 p 13)

Aleacutem disso outro importante dado informado pela agecircncia foi o de que a maioria dos

meacutedicos que prescrevem o faacutermaco tem especialidade no atendimento de crianccedilas e jovens

como neurologia pediaacutetrica e pediatria ldquoEntre as especialidades meacutedicas informadas houve

um predomiacutenio daquelas relacionadas com assistecircncia agrave crianccedila e ao adolescente e que tratam

de problemas do sistema nervoso centralrdquo (SISTEMA NACIONAL 2012 p 13) Dessa

90

forma a maior parte das prescriccedilotildees controladas do faacutermaco tem sido realizada para o puacuteblico

infantil e juvenil provavelmente em funccedilatildeo de um diagnoacutestico de TDAH

O consumo de metilfenidato associado agrave escolarizaccedilatildeo eacute um fato que descobrimos pela

anaacutelise dos graacuteficos O medicamento estaria ganhando o espaccedilo escolar de forma a se tornar

condiccedilatildeo para a educaccedilatildeo No final do boletim farmacoepidemioloacutegico o SNGPC nos alerta

para o fato de que o uso do medicamento metilfenidato tem sido feito de forma equivocada

divulgado como a ldquodroga da obediecircnciardquo e que em paiacuteses como os Estados Unidos utiliza-se o

medicamento ldquopara moldar as crianccedilas afinal eacute mais faacutecil modificaacute-las que ao ambienterdquo

(SISTEMA NACIONAL 2012 p 13) Recomenda que o metilfenidato seja utilizado como

mais uma estrateacutegia ldquoaliado a outras medidas como educacionais sociais e psicoloacutegicasrdquo

(SISTEMA NACIONAL 2012 p 13)

Nesse sentido contamos a histoacuteria do diagnoacutestico de TDAH e do consumo de

metilfenidato para aleacutem da questatildeo singular pela qual fomos convocados na cliacutenica

Conhecemos um pouco de seu caraacuteter epidecircmico e das proporccedilotildees que a medicalizaccedilatildeo tomou

em nossa vida como modo de regular nossas relaccedilotildees uns com os outros

Nas paacuteginas seguintes iremos pensar a questatildeo a partir de outra perspectiva a qual traz

agrave tona os embaraccedilos que aparecem na histoacuteria contada no proacutelogo formados quando

interrogamos as escolhas que tomamos junto a crianccedilas com problemas de comportamento na

escola Essa perspectiva eacute a da relaccedilatildeo entre o traacutegico e a psicanaacutelise como formas discursivas

que nos possibilitam enunciar uma questatildeo de modo a criar bordas ao impossiacutevel de nosso

fazer

91

2 A TRAGEacuteDIA ANTIGA E CONSTITUICcedilAtildeO DA PSICANAacuteLISE

Flectere si nequeo superos Acheronta movebo

Virgiacutelio Eneida

Em 1900 Freud publica a obra inaugural da psicanaacutelise chamada A interpretaccedilatildeo dos

sonhos com essa frase de apresentaccedilatildeo a qual significa ldquoSe natildeo posso mover os ceacuteus moverei

o infernordquo ou ainda ldquoSe natildeo puder dobrar os deuses de cima moverei o Aqueronterdquo

Encontramos tal citaccedilatildeo no livro VII verso 312 do poema eacutepico Eneida do poeta romano

Virgiacutelio O Aqueronte referido por Freud eacute o um rio subterracircneo que representa os deuses que

habitam a parte de baixo da terra Deuses que muitas vezes pisaram o palco das trageacutedias

antigas por meio de uma escada situada sob um alccedilapatildeo conhecida por escada de Caronte ou

de Aqueronte

Pensamos o que faz com que Freud escolha tal frase como podemos dizer um oraacuteculo

de abertura agrave sua ciecircncia Preserva o latim liacutengua enigmaacutetica aos falantes das liacutenguas que dela

derivam Os sonhos satildeo justamente isso enigmas aos seus sonhadores figuraccedilotildees que brotam

na consciecircncia e causam surpresa e inquietaccedilatildeo a quem as produz O que Freud mostra na obra

que introduz o seu meacutetodo de escuta dos sonhos eacute o trabalho psiacutequico de encenar o desejo

inconsciente e o trabalho de interpretaccedilatildeo das cenas tornando o desconhecido conhecido o

estranho familiar o conteuacutedo inconsciente consciente

Em vez de incidir sobre o que aparece conscientemente no discurso ndash ou seja o

significado corrente do que o paciente diz ndash situando o falante numa rede discursiva

distanciada sem que se construa um percurso ateacute ela uma rede que o identifica como mais um

indiviacuteduo que sofre de mesmos sintomas Freud escuta o como como o paciente diz o que diz

a dimensatildeo invisiacutevel presente em seu discurso e nesse sentido aproxima-se de um discurso

outro que daacute voz ao sujeito que cinde o indiviacuteduo que o atravessa que mostra como um aspecto

sintomaacutetico compartilhado por muitos o toca singularmente Freud chega ao rio subterracircneo

move o Aqueronte constroacutei a travessia com o sujeito que lhe fala de um modo de dizer a outro

Nesse sentido traz agrave cena o inconsciente comprova sua existecircncia para aleacutem dos sintomas

neuroacuteticos ou seja apresenta os sonhos como manifestaccedilotildees dessa instacircncia alienante

92

21 A trilogia tebana de Soacutefocles Eacutedipo Rei e o inconsciente

Falando de sonhos infantis que retratam o desejo por um dos progenitores e a aversatildeo

ao outro Freud se aproxima de outra histoacuteria claacutessica grega desta vez que se torna emblemaacutetica

da proacutepria psicanaacutelise

Essa descoberta eacute confirmada por uma lenda da Antiguidade claacutessica que chegou ateacute noacutes uma lenda cujo poder profundo e universal de comover soacute pode ser compreendido se a hipoacutetese que propus com respeito agrave psicologia infantil tiver validade igualmente universal O que tenho em mente eacute a lenda do Rei Eacutedipo e a trageacutedia de Soacutefocles que traz o seu nome (FREUD 19002015 p 178)

A histoacuteria de Soacutefocles Oedipus Tiranus tem iniacutecio com a peste que toma conta de

Tebas terra de Cadmo antigo cidade que jaacute conheceu seus momentos de gloacuteria O oraacuteculo do

deus Apolo revela que a terra poderaacute ser purificada quando o assassino do rei antecessor Laio

for descoberto e punido O rei Eacutedipo que assumira o trono de Tebas e se casara com a rainha

Jocasta como recompensa apoacutes desvendar o enigma da Esfinge lanccedila-se na empreitada de

descobrir e combater o assassino de Laio Eacutedipo que chegara agrave terra de Tebas por fugir de seu

destino uma profecia de que seria o assassino de seu pai e desposaria a proacutepria matildee acaba por

se descobrir filho e algoz do antigo rei Ao fugir de seu destino cumpre-o sem sabecirc-lo Aiacute reside

a dimensatildeo do inconsciente

A accedilatildeo da peccedila natildeo consiste em nada aleacutem do processo de revelaccedilatildeo com engenhosos adiamentos e sensaccedilatildeo sempre crescente - um processo que pode ser comparado ao trabalho de uma psicanaacutelise - de que o proacuteprio Eacutedipo eacute o assassino de Laio mas tambeacutem de que eacute o filho do homem assassinado e de Jocasta Estarrecido ante o ato abominaacutevel que inadvertidamente perpetrara Eacutedipo cega a si proacuteprio e abandona o lar A prediccedilatildeo do oraacuteculo fora cumprida (FREUD 19002015 p 179)

O que Freud nos mostra ao apresentar a trageacutedia de Soacutefocles eacute que se essa peccedila nos

comove incomparavelmente em relaccedilatildeo a outras peccedilas mesmo de dramaturgos modernos aleacutem

do amor e da hostilidade em relaccedilatildeo agraves figuras parentais a razatildeo disso reside no fato de que noacutes

somos alheios ao discurso do qual somos feitos e quanto mais tentarmos escapar de nosso

destino buscando culpados ou responsabilizando outrem pelos rumos de nossa vida tanto mais

cairemos na armadilha que noacutes mesmos nos arranjamos

93

O saacutebio e cego Tireacutesias personagem da peccedila declara a Eacutedipo o grande decifrador de

enigmas ldquoVeraacutes num mesmo dia teu princiacutepio e teu fimrdquo (Eacutedipo Rei v 528) Esta profecia se

refere ao momento da peccedila quando o infeliz Eacutedipo descobre ser casado com sua matildee e ter

gerado frutos do incesto concluindo assim a terriacutevel descoberta de sua origem Em suas

palavras ldquoos deuses desprezam-me agora por ser filho de seres impuros e porque fecundei ndash

miseraacutevel ndash as entranhas de onde saiacuterdquo (Eacutedipo Rei vv 1610-1613) Ao natildeo suportar ver a

verdade fura os proacuteprios olhos A frase de Tireacutesias o horror descoberto por Eacutedipo pode ter um

importante sentido para a noccedilatildeo do traacutegico Por ora podemos dizer que de acordo com Tireacutesias

Eacutedipo natildeo eacute um estrangeiro salvador que apareceu em Tebas para livrar a cidade do mal ao

contraacuterio eacute um filho da terra sucessor legiacutetimo do trono que toma o lugar que lhe cabe e se

torna o responsaacutevel pela desgraccedila da cidade

Nesse sentido a psicanaacutelise se aproxima da trageacutedia grega para de certa forma dizer

do seu modo de operar Se Freud recorreu a Eacutedipo Rei e com ele conseguimos nos aproximar

da noccedilatildeo de inconsciente o freudiano Lacan elege Antiacutegona e com ela nos apresenta a eacutetica da

psicanaacutelise O que podemos compreender de pensamento em comum entre os dois psicanalistas

eacute que ainda que sejamos inconscientes de nosso desejo e de nosso destino somos responsaacuteveis

por ele Ao fim da peccedila Eacutedipo diz que jamais teria voluntariamente feito o que fez No entanto

deve arcar com as consequecircncias do destino determinado pelos deuses Ainda iremos conversar

sobre a funccedilatildeo dos deuses na trageacutedia ao que ela corresponde do que ela participa

Gostariacuteamos antes de prosseguirmos com a apreciaccedilatildeo de Lacan da trageacutedia de

apresentar algumas passagens que sucedem Eacutedipo Rei e antecedem Antiacutegona na composiccedilatildeo da

trilogia tebana de Soacutefocles

22 Eacutedipo (e Antiacutegona) em Colono

Na trageacutedia Eacutedipo em Colono2 vemos Eacutedipo sair de Tebas sem rumo Sem a garantia

dos deuses sobre qual o melhor destino a um parricida incestuoso (mataacute-lo por seus crimes

2 Eacutedipo e Antiacutegona apoacutes caminharem por muito tempo chegam a Colono pequeno povoado perto de Atenas onde governa o rei Teseu Ismene chega ao lugar para dar notiacutecias da cidade de Tebas Os irmatildeos Polinices e Eteacuteocles em vez de aceitarem o reinado de Creonte irmatildeo de Jocasta para livrar os tebanos das desgraccedilas dos Labdaacutecidas decidem disputar entre si o trono Ao mesmo tempo o oraacuteculo havia previsto infortuacutenios para a cidade caso o corpo de Eacutedipo fosse violado Dessa forma Creonte parte agrave sua procura para conferir o tuacutemulo nas fronteiras de Tebas e zelar por seu cadaacutever Em solo tebano Eacutedipo natildeo poderia ser enterrado por ter cometido assassinato de um rei crime tambeacutem de parriciacutedio Eacutedipo fica muito decepcionado com os dois filhos por estarem mais preocupados com o poder do que com o destino do pai e lanccedila sobre os dois uma praga a de que morreriam nas

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Enterrar seu corpo Expulsaacute-lo de Tebas) o que Creonte seu cunhado decide eacute libertar a

cidade de sua maldiccedilatildeo contrariando o pedido de Eacutedipo para que Creonte ponha fim agrave sua vida

No entanto como o corpo de Eacutedipo pode vir a desgraccedilar ainda mais a cidade de Tebas a soluccedilatildeo

encontrada eacute mandaacute-lo embora Dessa maneira Eacutedipo vaga ateacute encontrar um lugar que aceite

acolhecirc-lo

Antiacutegona uma de suas filhas com Jocasta escolhe acompanhar o pai na difiacutecil jornada

em busca de uma terra que possa refugiar o cadaacutever de um homem jaacute assolado pela desgraccedila

Antiacutegona parece ocupar o lugar dos olhos furados do pai pois ao longo da caminhada ela lhe

narra tudo o que vecirc tornando-se os proacuteprios olhos do pai Nas palavras de Eacutedipo falando da

coragem da filha Antiacutegona

[] ainda crianccedila sentindo seus membros mais firmes decidiu guiar um anciatildeo em suas longas caminhadas sempre errante descalccedila percorrendo os bosques perigosos faminta atormentada repetidamente pelas aacuteguas das chuvas pelo sol ardente jaacute esquecida do conforto de seu lar cuidando apenas de dar alimento ao pai (Eacutedipo em Colono vv 366-373)

Eacutedipo tambeacutem elogia a atitude de Ismene de ter saiacutedo da proteccedilatildeo de Tebas para ir a seu

encontro e com isso compara as duas filhas aos dois filhos Apesar do lugar desigual que

ocupam na Greacutecia Antiga ou seja o de ser mulher ambas satildeo mais corajosas desafiam-se em

terras distantes enquanto os outros esquecem do pai e se resguardam ao lar e objetivam ocupar

o trono de Tebas Somente apoacutes um tempo em outro episoacutedio da peccedila aparece Polinices para

matildeos um do outro maldiccedilatildeo que se concretiza e antecede a trageacutedia Antiacutegona Com essa decisatildeo Eacutedipo se coloca ao lado de Teseu e promete a ele que sua terra seraacute bendita e protegida pelos deuses se sepultar o seu corpo Isso havia sido pronunciado tambeacutem pelo oraacuteculo de acordo com Ismene Mesmo sabendo a origem desgraccedilada de Eacutedipo Teseu se interessa pela notiacutecia do oraacuteculo e manda edificar uma sepultura a Eacutedipo Numa tentativa frustrada Creonte aparece em Colono com seus soldados captura Ismene e Antiacutegona que satildeo salvas pelos homens de Teseu Depois disso quem aparece eacute Polinices pedindo piedade ao pai em sua retomada do trono Ele conta que Eteacuteocles o irmatildeo mais jovem banira-o de Tebas apoacutes ter convencido os cidadatildeos de que ele deveria ser o novo rei Em Argos Polinices organizara um grupo de guerreiros para invadir Tebas e tomar o trono usurpado pelo irmatildeo No entanto Eacutedipo conta que fora ele proacuteprio banido por Polinices quando lhe entregou o trono e agora que este estava em situaccedilatildeo de anguacutestia ameaccedilado pela maldiccedilatildeo e pelos oraacuteculos lembrou-se da existecircncia do pai Dessa forma Eacutedipo natildeo perdoa o filho e o manda embora assombrado com maldiccedilotildees Polinices retorna em direccedilatildeo a seu fim traacutegico Eacutedipo ao sentir que seu fim se aproxima pede para Teseu segui-lo a um local oculto de sua escolha Apoacutes encontrar o local Eacutedipo eacute chamado pelos deuses e morre misteriosamente Teseu ficara encarregado de natildeo permitir jamais que qualquer mortal mesmo as filhas se aproximasse do misterioso tuacutemulo (SOacuteFOCLES 441aC2014)

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pedir ao pai que volte atraacutes na maldiccedilatildeo do duplo assassinato que havia proclamado aos filhos

pedido este imediatamente negado por Eacutedipo Certo de sua desgraccedila futura Polinices suplica

agraves irmatildes

[] Ah Minhas queridas irmatildes Ao menos voacutes que ouvistes as imprecaccedilotildees impiedosas deste pai natildeo me afronteis Em nome de todos os deuses vos suplico se um dia sua maldiccedilatildeo se consumar e se tiverdes meios de voltar a Tebas dai-me sepultura e oferendas fuacutenebres Assim aos elogios que hoje recebeis por vossa caridosa ajuda a este homem somar-se-atildeo outros louvores natildeo menores pelos cuidados que me houverdes dispensado (Eacutedipo em Colono vv 1661-1671)

Apoacutes Antiacutegona ter sugerido ao irmatildeo Polinices que desistisse de enfrentar o reino de

Tebas com seu exeacutercito ele afirma que natildeo haacute mais como voltar atraacutes acovardar-se pois se

contasse aos seus homens a maldiccedilatildeo do pai natildeo lutariam mais com ele e seu dever era assumir

o comando das tropas seguir seu caminho e enfrentar a realizaccedilatildeo da profecia do pai caso esta

de fato se cumprisse Por fim diz para as irmatildes esquivando-se de seus abraccedilos ldquoqueira Zeus

conduzir-vos por caminhos bons se apoacutes a minha morte me proporcionardes os funerais

pedidos jaacute que natildeo podeis fazer por mim ainda em vida coisa algumardquo (Eacutedipo em Colono vv

1701-1704) E entatildeo Antiacutegona se lamenta por antever o final traacutegico de seu irmatildeo por jaacute vecirc-

lo caminhar em direccedilatildeo ao outro mundo

Eacutedipo sofre uma morte carregada de misteacuterio Recebe um aviso dos deuses de que sua

morte estaria proacutexima Sua sepultura natildeo eacute apresentada na accedilatildeo cecircnica mas eacute narrada Antiacutegona

e Ismene participam das honras fuacutenebres conferem um ritual de sepultamento ao pai No

entanto o lugar onde Eacutedipo eacute enterrado fica sob os cuidados de Teseu apenas dele Eacutedipo

oferece seu corpo a Teseu com a promessa divina de proteccedilatildeo agrave sua terra

A princesa tebana se desespera por natildeo saber o que fazer manifesta o desejo de ir ao

encontro do pai de conhecer sua morada de perder sua vida Suas lamentaccedilotildees recebem o

consolo do coro ateacute a chegada de Teseu para quem solicita ver o sepulcro do pai Ao saber que

Eacutedipo havia interditado qualquer pessoa de visitaacute-lo e tirar-lhe a paz a filha respeita sua decisatildeo

e diz ao rei do lugar ldquoSe eacute este o seu desejo que assim seja Manda-nos logo de retorno a

96

Tebas nossa antiga cidade para que se for possiacutevel consigamos ambas [Antiacutegona e Ismene]

deter a marcha da carnificina funesta para nossos dois irmatildeosrdquo (Eacutedipo em Colono vv 2084-

2089)

Dessa forma as duas conseguem retornar a Tebas No entanto como narra o iniacutecio da

trageacutedia Antiacutegona natildeo conseguem impedir que a maldiccedilatildeo de Eacutedipo se concretize e Eteacuteocles

e Polinices morrem pelas matildeos um do outro Eacute aiacute que o desejo de Antiacutegona segue seu caminho

no dever para com o irmatildeo de conferir-lhe o sepultamento devido conforme por ele suplicado

Assim Antiacutegona que acompanhou os uacuteltimos passos de Eacutedipo como uma testemunha

de seus uacuteltimos feitos nesse mundo que partiu com ele em busca de um lugar que abrigasse o

corpo eacute impedida de ver o local onde jaz seu pai e tambeacutem irmatildeo algo indispensaacutevel para que

se imponha uma diferenccedila entre os que ainda vivem e os que jaacute morreram De acordo com

Guyomard (1996 p 21) ldquoos funerais separam os vivos dos mortos e permitem aos vivos viver

sem ser assombrados por seus fantasmasrdquo Com isso o que resulta da morte de Eacutedipo para

Antiacutegona eacute uma indiferenciaccedilatildeo entre a vida e a morte e eacute com a urgecircncia de impor uma

separaccedilatildeo entre os dois termos que ela inicia a peccedila intitulada com o seu nome

Interessante visitar a histoacuteria pregressa da famiacutelia de Antiacutegona ver de certo modo a

reincidecircncia de questotildees de seus antepassados em sua vida o que a relaciona ao avocirc Laio ao

seu irmatildeo e ao mesmo tempo pai Eacutedipo Aleacutem disso o destino dos personagens da trilogia

tebana estaacute de certo modo ligada ao mito de fundaccedilatildeo da cidade de Tebas por seu primeiro

rei Cadmo Na proacutexima seccedilatildeo visitamos algumas partes que compotildeem a histoacuteria em que se

inscreve a trilogia tebana

221 O mito de fundaccedilatildeo de Tebas

O helenista Francis Vian realizou uma pesquisa cuidadosa sobre a histoacuteria da fundaccedilatildeo

de Tebas em sua obra As origens de Tebas Cadmo e os espartos Segundo Vian (1963) uma

das referecircncias mais completas sobre a histoacuteria do personagem Cadmo se encontra na Biblioteca

de Apolodoro uma importante fonte de pesquisa sobre mitologia grega datada do seacuteculo I

Dessa maneira um dos livros se dedica a contar as aventuras dos descendentes de Agenor pai

de Cadmo Fecircnix e Europa Segundo o livro Cadmo consulta o oraacuteculo de Delfos para saber o

paradeiro de sua irmatilde Europa que havia sido raptada por Zeus O oraacuteculo lhe diz que natildeo eacute

preciso se preocupar com ela e lhe atribui uma importante tarefa Cadmo deve encontrar uma

97

vaca e segui-la ateacute o ponto onde ela cairia de cansaccedilo Neste ponto da queda ele fundaria uma

cidade

Desse modo Cadmo caminha ateacute encontrar a vaca e faz o que o oraacuteculo havia solicitado

A vaca caminha ele a segue ateacute que ela se deita num lugar apoacutes atravessar a Beoacutecia Cadmo

pede para que um de seus companheiros procure aacutegua na fonte de Ares No entanto cada

homem que ele envia para buscar aacutegua acaba morto pelo guardiatildeo da fonte um dragatildeo Furioso

Cadmo vai ateacute a fonte e mata o dragatildeo A deusa Atena lhe diz para arrancar seus dentes e semeaacute-

los Assim que Cadmo cumpre o que a deusa lhe pede guerreiros armados surgem da terra os

semeados ou espartos Cadmo joga pedras nos guerreiros os quais acreditam terem sido

atacados pelos proacuteprios companheiros Assim eles acabam guerreando uns com os outros ateacute

restarem apenas cinco Para expiar o que havia feito Cadmo eacute obrigado a servir o deus Ares

por um ano o que equivale a oito anos dos nossos atuais Haacute uma variaccedilatildeo nessa histoacuteria

segundo Vian (1963) que suprime a parte do surgimento dos guerreiros e no lugar conta que

nasceram os filhos da terra Ares teria punido Cadmo natildeo pelo massacre mas pela morte do

dragatildeo

De acordo com a Biblioteca de Apolodoro apoacutes a servidatildeo por um ano a deusa Atena

torna Cadmo rei e Zeus lhe concede a matildeo de Harmonia filha de Afrodite e de Ares Todos os

deuses celebram o casamento

Segundo fragmento de texto do helecircnico Fereacutecides (VIAN 1963) o episoacutedio dos

guerreiros espartos ocorre apoacutes a fundaccedilatildeo da cidade de Tebas e do casamento de Cadmo com

Harmonia e natildeo antes Cadmo estabelecido em Tebas teria recebido de Ares e Atena metade

dos dentes do dragatildeo e os teria semeado por ordem dos deuses De acordo com Vian (1963)

uma importante contribuiccedilatildeo deixada por Fereacutecides eacute oferecer uma relaccedilatildeo entre o mito de

Cadmo e o mito de Jasatildeo visto que a outra metade dos dentes do dragatildeo eacute dada ao rei Eetes da

Coacutelquida Retomaremos esse episoacutedio quando nos ocuparmos da histoacuteria de Medeia

De acordo com Vian (1963) a princiacutepio Eacutedipo e Cadmo natildeo tinham ligaccedilatildeo alguma

entre eles Eacute num tempo posterior que inserimos os dois numa genealogia comum Uma ligaccedilatildeo

possiacutevel indica o parentesco de Cadmo agrave famiacutelia de Eacutedipo da seguinte forma Cadmo teve

Polidoro que governou Tebas e foi morto pelas Bacantes Polidoro teve Laacutebdaco tambeacutem

morto pelas Bacantes este era pai de Laio morto pelo proacuteprio filho Eacutedipo Todos foram reis

de Tebas

98

Nossa principal fonte de informaccedilatildeo satildeo as trageacutedia com Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides

as quais no entanto apresentam versotildees diferentes de filiaccedilatildeo entre os descendentes de Cadmo

e dos guerreiros filhos do dragatildeo e da terra Construir uma genealogia lendaacuteria eacute uma tarefa que

implica artificialidade Ou ainda ficccedilatildeo Sobretudo no que se refere aos espartos que muito

mais do que pertencerem a uma mesma famiacutelia pertencem a uma mesma classe social militar

Eacute dessa classe espartana dos filhos da terra de Tebas que parece descender Creonte

personagem recorrente nas trageacutedias De acordo com Vian (1963) a rivalidade existente entre

Creonte e a famiacutelia de Eacutedipo que podemos averiguar sobretudo na trilogia tebana deve-se a

uma antiga rivalidade entre um Creonte primeiro filho de um dos cinco espartanos que

restaram da batalha lendaacuteria e Cadmo que provocou o massacre e fundou a cidade de Tebas

Sem ser filho da terra torna-se seu primeiro rei Nesse ponto podemos supor uma relaccedilatildeo de

Cadmo com Eacutedipo Ao assumirem o trono de Tebas ambos satildeo considerados estrangeiros

Cadmo era filho de Agenor da Feniacutecia Jaacute Eacutedipo era tebano mas esse fato era desconhecido

por ele e pelos cidadatildeos de Tebas quando assumira o trono

Nas trageacutedias de Soacutefocles a relaccedilatildeo entre Creonte e Eacutedipo parece cordial no entanto o

tragedioacutegrafo se recusa a chamar Creonte de rei nas duas primeiras peccedilas da trilogia tebana Em

vez disso toma-o como tutor dos filhos de Eacutedipo Em Eacutedipo em Colono Creonte eacute citado como

regente natildeo como rei legiacutetimo Eacute tido como rei apenas em Antiacutegona em funccedilatildeo de seu laccedilo de

sangue com os filhos mortos de Eacutedipo Contudo ningueacutem o considera um rei legiacutetimo em

funccedilatildeo da tirania com a qual governa nem seu proacuteprio filho Hecircmon Na trageacutedia de Eacutedipo da

versatildeo contada por Euriacutepides a rivalidade se torna mais evidente visto que eacute Creonte quem

investiga o assassino de Laio e ordena seus seguidores a ferirem os olhos do assassino Eacutedipo

(VIAN 1963)

Francis Vian capta uma estrutura clara das aventuras de Cadmo que faz dele um heroacutei

Tal estrutura parece ter um caraacuteter religioso Para ele o heroacutei estaacute em busca de um lugar para

fundar ex nihilo uma nova cidade Ele eacute guiado por um animal encarnado por uma divindade

e se sacrifica para tornar a nova terra um solo sagrado Em seguida ele luta bravamente com o

dragatildeo Assim temos na histoacuteria de Cadmo um mito de criaccedilatildeo com trecircs atos principais ldquoo

combate vitorioso com o monstro primordial a expiaccedilatildeo ritual do assassinato e o triunfo final

marcado por uma hierogamiardquo (VIAN 1963 p 232)

Podemos observar tal estrutura ou ao menos os trecircs atos heroicos na histoacuteria de Eacutedipo

O heroacutei mata a esfinge que assolava Tebas Com isso ganha a matildeo natildeo de uma deusa mas da

99

rainha Jocasta Ao final de Eacutedipo Rei na versatildeo de Soacutefocles expia sua culpa furando seus olhos

e exilando-se de Tebas Outra relaccedilatildeo que podemos identificar entre Cadmo e Eacutedipo se daacute em

Eacutedipo em Colono A relaccedilatildeo que fazemos ocorre na verdade mais especificamente entre Eacutedipo

e a vaca Tal como o animal sagrado Eacutedipo caminha errante acompanhado de Antiacutegona ateacute

cansar e encontrar um lugarejo colonizado por Atenas O ponto onde a vaca cai e falece se torna

o comeccedilo ex nihilo de toda histoacuteria de Tebas Jaacute o local onde Eacutedipo morre misteriosamente

nas fronteiras de Atenas parece tornar-se siacutembolo do fechamento de um ciclo iniciado haacute

muitas geraccedilotildees

222 O destino dos Labdaacutecidas

No livro Eacutedipo ao peacute da letra Antonio Quinet (2015) nos conta uma histoacuteria anterior agrave

trageacutedia de Eacutedipo e de Antiacutegona buscando se aproximar da origem da maldiccedilatildeo dos

Labdaacutecidas aquela que fez gerar o terriacutevel oraacuteculo que assolou a famiacutelia ou seja o oraacuteculo que

proferiu que o filho de Laio o mataria e se casaria com sua esposa Tal histoacuteria pertence agrave

mitologia grega e narra circunstacircncias da vida de Laio

Labdaco rei de Tebas reprimiu o culto ao deus Dioniso que vinha ganhando cada vez

mais forccedila na cidade Em funccedilatildeo disso foi morto pelas bacantes mulheres que honravam o

deus em rituais Laio filho de Labdaco era ainda muito jovem para assumir o trono o qual

ficou sob regecircncia de Lico cunhado de Labdaco Poreacutem tiranos tomaram o reino e mataram o

novo rei Para proteger o pequeno Laio dos ataques seu avocirc Nicteu o enviou para a corte do

reino da Friacutegia e o deixou aos cuidados do rei Peacutelops

Com o passar dos anos Laio se apaixonou por Criacutesipo filho do rei e herdeiro do trono

Quinet (2015) conta que o jovem filho de Labdaco planejou uma fuga resolveu raptar seu

amado e retornar com ele para Tebas com a intenccedilatildeo de assumir o reinado deixado por seu pai

Peacutelops tentou recuperar o filho mas sem sucesso culpou Laio por tecirc-lo sequestrado e lanccedilou

uma maldiccedilatildeo parte da que jaacute conhecemos Laio seria assassinado pelo proacuteprio filho

Os deuses do Olimpo reconheceram a legitimidade das palavras proferidas pelo rei

friacutegio jaacute que Laio desonrou a lei da hospitalidade de grande valor entre os gregos Embora

tenha encontrado um lugar seguro para viver na corte de Peacutelops Laio raptou e fugiu com

Criacutesipo traindo o reino da Friacutegia importante aliado do reino de Tebas Sobre o destino de

100

Criacutesipo as histoacuterias divergem uns dizem que ele teria sido morto ou que teria se matado

Outros dizem que teria chegado em Tebas com Laio

Ainda que natildeo se saiba ao certo o que acontecera ao amado de Laio o priacutencipe tebano

casa-se com Jocasta e com a morte do rei tirano reassume o trono de Tebas e daacute seguimento agrave

linhagem real de sua famiacutelia Poreacutem segundo Quinet (2015) como puniccedilatildeo pelo crime de

sequestro a deusa Hera envia a Tebas a Esfinge criatura mitoloacutegica constituiacuteda por um corpo

de leatildeo asas de paacutessaro e cabeccedila de mulher Como diria a crianccedila de nosso Proacutelogo um hiacutebrido

Misterioso hiacutebrido que lanccedila ao outro uma pergunta sobre o ser Liberta somente o cidadatildeo que

decifrar seu enigma devorando aquele que natildeo resolvecirc-lo O rei Laio consulta o oraacuteculo de

Delfos para saber o que fazer diante da terriacutevel ameaccedila e eacute orientado a natildeo ter filhos caso

quisesse salvar a cidade Sabemos o desfecho dessa histoacuteria e curiosamente aquele que eacute capaz

de desvendar o enigma da esfinge eacute Eacutedipo filho de Laio e Jocasta

Natildeo ter filhos significaria dar um fim em sua proacutepria geraccedilatildeo agrave maldiccedilatildeo apregoada

por Peacutelops e reconhecida pelos deuses libertando Tebas de uma dinastia condenada ao

sofrimento No entanto para um rei natildeo ter filhos eacute renunciar ao poder entregaacute-lo a outra

famiacutelia

Laio bem que tentou natildeo ter filhos de acordo com Quinet (2015) Ainda assim Eacutedipo

foi concebido num dia em que cedeu aos prazeres de Dioniso mesmo deus combatido pelo seu

pai Dessa maneira quando o bebecirc nasceu Laio mandou que lhe furassem o peacute e que o

abandonassem no monte Citeron Eacutedipo nome que significa ldquopeacute inchadordquo foi encontrado por

um pastor que o entregou para ser adotado pelos reis de Corinto Poacutelibo e Meacuterope

Assim a maldiccedilatildeo lanccedilada a Laio se torna a maldiccedilatildeo das geraccedilotildees seguintes dos

Labdaacutecidas porque agrave medida que foi sendo concretizada ainda que sua realizaccedilatildeo tenha

ocorrido na tentativa de evitaacute-la mais o fado foi sendo relanccedilado para as geraccedilotildees seguintes

Laio cometeu um crime contra a hospitalidade e foi amaldiccediloado Seu filho Eacutedipo consumou a

maldiccedilatildeo cometendo o parriciacutedio e por consequecircncia o incesto Os dois netos homens gerados

pelo crime de incesto carregaram a maldiccedilatildeo ateacute se destruiacuterem um ao outro O que resta a

Antiacutegona envolvida nesse imbroacuteglio familiar Com Ismene ela eacute a uacuteltima da terriacutevel linhagem

dos Labdaacutecidas

A maldiccedilatildeo se encerra com ela Talvez sim pois o que conhecemos da histoacuteria de

Antiacutegona contada por Soacutefocles na terceira parte da trilogia tebana eacute que ela acolhe a sina dos

Labdaacutecidas em vez de fugir lutar contra ela assim como faz seu pai no fim da vida Eacutedipo

101

como o pai Laio fora acolhido em solo estrangeiro recebido por Teseu sem receio de que o

amaldiccediloado labdaacutecida pudesse trazer a sua terra algum mal Grato por sua acolhida escolhe

um lugar incerto uma regiatildeo sem limites definidos prometendo a Teseu que o ato do enterro

traria proteccedilatildeo a seu reino Aleacutem disso Eacutedipo renega seus filhos homens os quais como o avocirc

Laio tinham como preocupaccedilatildeo reinar sobre Tebas perpetuando o poder da famiacutelia

O nome Antiacutegona de acordo com o Dicionaacuterio etimoloacutegico da mitologia grega (2013

p 36) eacute composto pela preposiccedilatildeo ἀντί que pode significar ldquode frenterdquo ldquoem frente derdquo e γονή

que indica a descendecircncia O segundo termo corresponde ainda ao tema verbal γεν- ldquonascerrdquo

A primeira parte do composto poderia remontar ao sacircnscrito aacutenti no latim ante cuja raiz ant

teria tido como significado original ldquode frenterdquo para passar ao grego com o sentido de ldquoopor-

se encontrar-serdquo

Conforme o dicionaacuterio ainda que apareccedilam interpretaccedilotildees como ldquocontra o nascimentordquo

ou ldquocontra o uacuteterordquo ou tentativas de relacionar o nome com a ldquooposiccedilatildeo ao nascimentordquo pelo

fato de a heroiacutena ter sido fruto de um incesto Antiacutegona significa ldquonascida no lugar derdquo ldquopara

tomar o lugar derdquo algum antepassado algum familiar

Nesse sentido o proacuteprio nome jaacute apresenta a implicaccedilatildeo da princesa na sina da famiacutelia

ou seja ela nasceu para ocupar o lugar de um familiar ou para velar um familiar De que lugar

se fala aqui O lugar da morte

Eacutedipo natildeo deveria ter nascido pois foi recomendado a Laio que natildeo tivesse filhos

Mesmo assim ainda que soubessem da recomendaccedilatildeo do oraacuteculo Laio e Jocasta o

desobedeceram e Eacutedipo foi originado na transgressatildeo de um interdito Toda a famiacutelia carrega

esse signo de negaccedilatildeo da lei pois cada um de seus frutos natildeo deveria ter nascido Mas que lei

eacute esta que a famiacutelia tenta burlar ao longo das geraccedilotildees Talvez a lei divina que Antiacutegona honra

Dessa forma tambeacutem Antiacutegona natildeo deveria ter nascido mas nasceu Ela cumpre o conselho

que o oraacuteculo de Delfos deu ao avocirc pois natildeo se casou e natildeo teve filhos e enfatiza tal sacrifiacutecio

em seus lamentos finais Aleacutem disso o que se pode dizer Como isso ressoa em sua histoacuteria

23 Antiacutegona heroiacutena traacutegica da eacutetica da psicanaacutelise

[] um leito nupcial jamais terei nem ouvirei hinos de bodas nem sentirei as alegrias conjugais nem filhos amamentarei hoje sozinha

102

sem nenhum amigo parto ndash ai infeliz de mim ndash ainda viva para onde os mortos moram (Antiacutegona vv 1021-1026)

Em seu seminaacuterio A eacutetica da psicanaacutelise Lacan (1959-19601997) a exemplo de Freud

recorre agrave trageacutedia grega para enunciar o que se articula como eacutetica psicanaliacutetica a qual estaacute

sustentada pela noccedilatildeo de que o sujeito para viver sua vida com suas escolhas pode ceder de

qualquer fonte de que dispor soacute natildeo pode ceder de seu proacuteprio desejo

Nesse sentido Lacan elege Antiacutegona filha de Eacutedipo a heroiacutena da eacutetica cuja histoacuteria

visita na versatildeo homocircnima de Soacutefocles Patrick Guyomard (1996) em seu livro O gozo do

traacutegico realiza uma leitura do seminaacuterio de Lacan sobre a eacutetica e oferece tambeacutem a dimensatildeo

do desejo em Antiacutegona em que aponta as caracteriacutesticas que fazem com que a heroiacutena adentre

o universo do traacutegico

Sua irredutibilidade sua coragem diante da morte seu desafio em favor de uma causa que lhe eacute vital sua lucidez diante das condiccedilotildees de sua vida que ela natildeo pode salvar ao preccedilo da perda de suas razotildees de viver tudo isso satildeo traccedilos essenciais a qualquer eacutetica do desejo (GUYOMARD 1996 p 21)

A fim de buscar elementos que nos ajudem a pensar a questatildeo dos limites e

possibilidades no cenaacuterio da educaccedilatildeo escolar vamos conhecer a histoacuteria de Antiacutegona heroiacutena

que inspira o trabalho de Lacan sobre a eacutetica da psicanaacutelise

Soacutefocles em Antiacutegona uacuteltima parte da trilogia tebana apresenta inicialmente um

diaacutelogo entre Antiacutegona e Ismene filhas de Eacutedipo e Jocasta em que narram os uacuteltimos

acontecimentos Seus dois irmatildeos Eteacuteocles e Polinices acabam por matar um ao outro na

disputa pelo trono de Tebas Com a morte dos dois eacute o seu tio Creonte que assume o reinado

Creonte confere um sepultamento digno a Eteacuteocles pois ele era o rei de Tebas mas proiacutebe sob

pena de morte o enterro de Polinices pois ele cometeu um atentado contra o governo ao matar

o rei seu proacuteprio irmatildeo Proclama Creonte

[] fique insepulto o seu cadaacutever e o devorem catildees e aves carniceiras em nojenta cena Satildeo estes os meus sentimentos e jamais concederei aos homens vis maiores honras que as merecidas tatildeo somente pelos justos Soacute quem quiser o bem de Tebas haacute de ter a minha estima em vida e mesmo apoacutes a morte

103

(Antiacutegona vv 235-241)

Ao edito de Creonte o corifeu responde ldquo[] tens o poder ndash eu reconheccedilo ndash para impor

a lei de tua escolha seja em relaccedilatildeo aos mortos seja a noacutes que ainda estamos vivosrdquo (Antiacutegona

vv 244-246)

Antiacutegona se recusa a se submeter agraves leis do Estado pois vatildeo contra as leis divinas

Sabendo que iraacute pagar com a proacutepria vida enterra seu irmatildeo Polinices com as proacuteprias matildeos e

natildeo nega sua accedilatildeo quando descoberta Em diaacutelogo com Creonte lembra a ele das leis natildeo

escritas aquelas que os regem desde os tempos mais remotos ou seja natildeo se deve negar enterro

a um corpo natildeo importando quem seja Desafiado por Antiacutegona sua sobrinha questionado

pelo coro enfrentado pelo filho Hecircmon Creonte insiste em imprimir agrave princesa um destino

terriacutevel o emparedamento ainda viva numa caverna fora da cidade

Tireacutesias o saacutebio cego diz a Creonte que a cidade de Tebas estaacute amaldiccediloada pela carniccedila

espalhada por catildees e aves e pode perder a proteccedilatildeo dos deuses caso o rei natildeo volte atraacutes de sua

decisatildeo Dessa forma Creonte vai com seus guardas soltar Antiacutegona Um mensageiro anuncia

ao coro o suiciacutedio de Hecircmon noivo de Antiacutegona que jazia abraccedilado ao corpo pendente da

princesa estrangulada com um laccedilo de seu vestido Ao saber do filho morto Euriacutedice retorna

ao palaacutecio para cometer sua morte

Ao fim Creonte carrega o corpo do filho e vecirc o corpo da mulher Deseja a proacutepria

morte mas natildeo eacute esse seu destino A fala que encerra a trageacutedia eacute do coro que ensina sobre a

prudecircncia das palavras

231 Aacutetē Omos Mecircrima

Lacan aponta que Antiacutegona eacute levada por uma paixatildeo pois sua accedilatildeo natildeo eacute simplesmente

defender o direito sagrado do morto e de sua famiacutelia e muito menos se justifica por uma suposta

santidade De acordo com o autor existe uma palavra no texto da trageacutedia que se repete vinte

vezes aacutetē ou ldquoo limite que a vida humana natildeo poderia transpor por muito tempordquo (LACAN

1959-19601997 p 318) e eacute justamente onde Antiacutegona deseja estar ou seja o lugar que deve

ocupar por destino desde o seu nascimento

Ela natildeo suporta viver sob as leis de Creonte sob as leis do homem pois tem algo de

desumano em sua conduta Para Lacan esse caraacuteter desumano fica claro toma forma no

104

tratamento que dirige agrave irmatilde Ismene que interroga a decisatildeo de Antiacutegona de enterrar o irmatildeo

das duas jaacute que a conduta da heroiacutena eacute romper a ligaccedilatildeo com a irmatilde tomaacute-la por inimiga e natildeo

a querer mais ainda que volte atraacutes no que disse Mesmo quando Ismene quer acompanhar o

destino de Antiacutegona esse rompimento se manteacutem pois esta a trata com desprezo O coro utiliza

a palavra omos para referir-se agrave heroiacutena que pode significar inflexiacutevel e que Lacan diz ser

literalmente cru ou natildeo civilizado ldquoQue Antiacutegona saia deste modo dos limites humanos o que

isso quer dizer para noacutes ndash senatildeo que seu desejo visa precisamente isto ndash para aleacutem da Ateacuterdquo3

(LACAN 1959-19601997 p 319)

Oliveira (2007 p 63) se ocupa em investigar a palavra aacutetē repetida tantas vezes na

trageacutedia de Antiacutegona

Como traduzir essa palavra intraduziacutevel O dicionaacuterio diz ldquoflagelo enviado pelos deuses particularmente cegueira do espiacuterito desvario loucura ruiacutena infelicidade pesterdquo Como nome proacuteprio Aacutete eacute a Fatalidade a deusa do infortuacutenio O substantivo aacutete estaacute por sua vez relacionado ao verbo aaacuteo que quer dizer ldquoperturbar o espiacuterito abater de vertigem e de loucura ter o espiacuterito desvairado e abater com uma calamidade causar um infortuacuteniordquo

Parece existir uma tendecircncia a relacionar a palavra aacutetē com erro ou hamartia cometido

quando a pessoa estaacute tomada pela loucura ou como resultado do erro levando o indiviacuteduo agrave

ruiacutena e ao infortuacutenio Essa eacute a visatildeo que Aristoacuteteles aponta de acordo com Oliveira (2007) No

entanto segundo o autor Lacan natildeo toma a aacutetē como hamartia e discorda do argumento de

Aristoacuteteles

Para Lacan (1959-19601997) a aacutetē natildeo pode se referir a um erro cometido por um

sujeito jaacute que se encontra num campo aleacutem de suas possibilidades no que concerne ao campo

do Outro A aacutetē eacute um vazio que resta no sujeito de sua relaccedilatildeo com o Outro ou seja refere-se

ao que resta do Outro na emergecircncia do sujeito Hamartia para o autor eacute o que ocorre a

Creonte que natildeo eacute o heroacutei da peccedila ao querer fazer valer uma lei para todos a lei da cidade

Com seu erro traacutegico comete um transbordamento de limites de outro tipo A aacutetē diz respeito

a um limite que separa o sujeito do Outro

3 A ediccedilatildeo brasileira do seminaacuterio A eacutetica da psicanaacutelise traz a forma Ateacute para referir-se ao termo grego Ἄτη (Aacutetē) Trata-se de uma variaccedilatildeo de ἄτη (aacutetē) que consta no texto original de Soacutefocles (fonte httpwwwperseustuftsedu) Ver na sequecircncia o comentaacuterio de Oliveira (2007) sobre a traduccedilatildeo dessas palavras

105

Ao se aproximar da aacutetē do limite deste lugar aleacutem do humano Antiacutegona entra numa

cadeia que corre em cascata e o que estaacute no fundo eacute um meacuterimna uma palavra designada por

Lacan (1959-19601997) como algo ambiacuteguo que estaacute entre o objetivo e o subjetivo o que

permite pensar no meacuterimna como significante da cadeia como a desgraccedila da famiacutelia de

Antiacutegona como a maldiccedilatildeo dos Labdaacutecidas lanccedilada e relanccedilada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo

Dessa maneia o que impulsiona a heroiacutena para as fronteiras da aacutetē eacute o meacuterimna de sua

famiacutelia Antiacutegona toma o lugar de seus antepassados sendo esse lugar a proacutepria aacutetē o limite

humano que deseja ultrapassar fronteira entre a vida e a morte Seu desejo de morrer eacute

impulsionado pelo meacuterimna que a conduz agrave morte ao destino de seus familiares com exceccedilatildeo

da traidora Ismene Para ela a interpretaccedilatildeo do meacuterimna familiar parece ser menos fatal

Sobre a etimologia do nome Antiacutegona que podemos designar como ldquonascida no lugar

derdquo ainda questionamos Antiacutegona veio ao mundo substituindo o quecirc Nasceu no lugar de

quem Ela parece carregar a proacutepria condiccedilatildeo de nascer no lugar de algo de substituir algueacutem

de ocupar um lugar Eacute como se em suas accedilotildees ela tomasse para si a responsabilidade do meacuterimna

de sua famiacutelia como se a sua funccedilatildeo no mundo fosse essa a de promover o desenlace do

meacuterimna conforme demonstra em seus lamentos finais

[] Ah Horrores do taacutelamo materno Ah Teus abraccedilos incestuosos minha matildee com o pai de quem nasci Como sou infeliz E para eles vou assim maldita sem ter chegado agraves bodas Meu irmatildeo infortunado Que uniatildeo a nossa Transformas-me morrendo em morta viva (Antiacutegona vv 961-961)

Prestes a morrer no lugar intransponiacutevel ao qual ela se prende a aacutetē Antiacutegona se lembra

de sua origem incestuosa e sugere ir para o mesmo caminho dos pais ao sugerir uma uniatildeo

incestuosa com o irmatildeo Torna-se uma morta-viva ao ocupar este lugar entre vida e morte ao

doar-se como o limite que pode promover essa separaccedilatildeo entre vida e morte Justamente essa

barreira que foi negada desde o princiacutepio aos Labdaacutecidas Nasceram sob o interdito de jamais

existirem Eacutedipo que natildeo deveria ter nascido simplesmente desaparece Natildeo ter sepultura eacute

uma forma de apagar o seu nascimento Polinices natildeo ganha o direito de ser enterrado Ao

106

contraacuterio do corpo de Eacutedipo objeto miacutestico o corpo de Polinices fica exposto em sua crueza

de carne abjeto

Dessa forma o limite entre vida e morte fica confuso e eacute essa barreira que Antiacutegona

busca fazer com o miacutenimo que lhe resta com a univocidade de sua metaacutefora com seu corpo e

com sua morte Garantir o passado a histoacuteria da famiacutelia com um presente fatal Garantir o

direito de existecircncia da famiacutelia mesmo em sua negatividade Garantir a vida da famiacutelia com a

sua morte

Em que Antiacutegona se diferencia de seus familiares ao mesmo passo que se alia a eles

Em vez de fugir de seu destino das profecias do oraacuteculo do mandamento das divindades

Antiacutegona encara sua sina deseja-a Confere sepultamento ao irmatildeo criminoso selando natildeo

apenas o fim deste mas o fim do proacuteprio Eacutedipo a quem foi negada num primeiro momento a

sepultura em Tebas Assume o enterro do irmatildeo como de sua responsabilidade acolhendo

dando um lugar em sua existecircncia ao fado familiar

Nesse sentido entendemos que Lacan (1959-19601997) situa Antiacutegona no lugar ex

nihilo zona limite da linguagem a partir da qual acontece a criaccedilatildeo A expressatildeo atribui-se a

ldquodo nadardquo vazio e para o psicanalista haacute uma correspondecircncia entre a modelaccedilatildeo significante

o que fazemos com os significantes que nos marcam como sujeitos e a criaccedilatildeo ex nihilo ldquoa

introduccedilatildeo no real de uma hiacircncia de um furordquo (LACAN 1959-19601997 p 153)

Antiacutegona se apresenta como autocircnomos pura e simples relaccedilatildeo do ser humano com

aquilo que ocorre de ele ser miraculosamente portador ou seja do corte significante que lhe

confere o poder intransponiacutevel de ser o que eacute contra tudo e contra todos (LACAN 1959-

19601997)

Guyomard (1996 p 31) aponta que ela ldquoeacute autoacutenomos ela que daacute a si mesma a lei de

sua fidelidade agrave famiacutelia e aceita sofrer-lhe os efeitosrdquo De acordo com Vieira (2010) Antiacutegona

natildeo tem pretensatildeo alguma de se manter viva mas de sustentar a sobrevida de seu ideal de

conduta de sua eacutetica ldquo[] a morte natildeo significa impossibilidade mas necessidade natildeo

simboliza o final da vida mas seu coroamentordquo (VIEIRA 2010 p 157) Ou seja Antiacutegona

preserva o significante uacuteltimo de sua eacutetica que faz valer sua proacutepria passagem pelo mundo

nem que para isso precise morrer A morte para ela natildeo eacute o limite mas seu limite eacute o seu

significante eacutetico

107

Sem fugir agraves consequecircncias de seu ato de enterrar o irmatildeo (diga-se de passagem duas

vezes) Antiacutegona assume a Creonte increacutedulo da desobediecircncia da sobrinha ser a criminosa

desafiadora da lei ldquoFui eu a autora Digo e nunca negariardquo (Antiacutegona v 503)

232 Desejo do Outro primordial e castraccedilatildeo

O desejo da matildee o texto faz a ele alusatildeo eacute a origem de tudo O desejo da matildee eacute o desejo fundador de toda a estrutura aquele que fez vir agrave luz seus rebentos uacutenicos Eteocleacutes Polinices Antiacutegona e Ismene mas ao mesmo tempo eacute um desejo criminoso [] Nenhuma mediccedilatildeo eacute aqui possiacutevel a natildeo ser esse desejo seu caraacuteter radicalmente destruidor A descendecircncia da uniatildeo incestuosa se desdobrou em dois irmatildeos um que representa o poderio o outro que representa o crime Natildeo haacute ningueacutem para assumir o crime e a validade do crime senatildeo Antiacutegona Entre os dois Antiacutegona escolhe ser pura e simplesmente a guardiatilde do ser criminoso como tal [] Eacute na medida em que a comunidade se recusa a isso [perdoar] que Antiacutegona deve fazer o sacrifiacutecio de seu ser para a manutenccedilatildeo desse ser essencial que eacute a Ateacute familiar ndash motivo eixo verdadeiro em torno do qual gira toda essa trageacutedia Antiacutegona perpetua eterniza imortaliza essa Ateacute (LACAN 1959-19601997 p 342)

A condiccedilatildeo de Antiacutegona ser como eacute o lugar que lhe cabe na linhagem familiar deve-se

ao desejo destruidor do Outro primordial Jocasta Parece ser isso que Lacan tenta propor jaacute

que entende que o desejo da matildee eacute criminoso e destrutivo responsaacutevel por ter gerado filhos

criminosos cabendo ao desejo puro de Antiacutegona a condiccedilatildeo de zelar fielmente a aacutetē familiar

Eacute Guyomard (1996) quem constroacutei uma criacutetica ao argumento de Lacan pois acredita

que Jocasta natildeo pode carregar em seus ombros sozinha a culpa do desejo desmedido de seus

filhos soacute pelo fato de ser a matildee o Outro primordial Como se os pais Laio e Eacutedipo natildeo tivessem

nada a ver com os crimes da famiacutelia e fossem apenas viacutetimas de uma mulher-matildee terriacutevel De

acordo com a tese de Lacan supomos que Antiacutegona sacrifica-se morre em decorrecircncia do

desejo materno incestuoso ao qual se alia purificando seu ser num eterno zelo pelo corpo do

irmatildeo

Acreditamos que haacute outro aspecto a ser pensado nessa passagem de Lacan que diz

respeito agraves inscriccedilotildees significantes que possibilitariam Antiacutegona construir um caminho outro

para a sua vida uma medida uma inflexatildeo ao desejo do Outro primordial Natildeo haacute realmente

nada em seu ato que possa vir a constituir uma medida uma funccedilatildeo simboacutelica ao puro desejo

materno por meio da constituiccedilatildeo da falta

108

Guyomard (1996) aborda essa questatildeo ao propor pensarmos na diferenccedila entre o desejo

de Antiacutegona (o qual para Lacan eacute puro desejo materno) e a operaccedilatildeo de castraccedilatildeo operaccedilatildeo esta

que junto agrave frustraccedilatildeo e agrave privaccedilatildeo concede ao sujeito uma condiccedilatildeo desejante marcada pela

falta Para o autor eacute fundamental

[] saber se se trata de seu desejo ou de sua castraccedilatildeo da afirmaccedilatildeo de sua onipotecircncia aleacutem da morte ou do reconhecimento de seus limites Essa diferenccedila eacute essencial O desejo puro realmente remete agrave castraccedilatildeo pensada como puro corte o puro poder de dizer natildeo de Antiacutegona [] como saber se o poder da recusa o natildeo do sujeito eacute ele mesmo aceitaccedilatildeo ou recusa da castraccedilatildeo (de um limite para seus desejos) Seraacute que Antiacutegona apoia sua recusa na aceitaccedilatildeo ou na recusa de sua castraccedilatildeo (GUYOMARD 1996 p 16-17)

A recusa de que Guyomard fala eacute a recusa do interdito de Creonte Sendo assim sua

questatildeo eacute provavelmente quanto ao valor da lei proposta pelo rei para Antiacutegona como tal

interdito se compotildee no ato de Antiacutegona Pensamos que se trata de uma aceitaccedilatildeo de algo que

poderia cumprir a funccedilatildeo da castraccedilatildeo na medida em que no ato de recusar a lei de Creonte

enterrando o irmatildeo Antiacutegona estipula qual a lei que ela segue a lei divina anterior agrave proibiccedilatildeo

de Creonte Eacute essa lei que a constitui como sujeito de desejo e sujeito de linguagem na tentativa

de demarcar a diferenccedila entre vida e morte o traccedilado entre a vida e a morte Eacute a essa lei que ela

se dobra No entanto acreditamos que natildeo haacute limite para seu desejo em seu ato ela se lanccedila a

um destino mortiacutefero de reencontro com o vazio de sua constituiccedilatildeo de reencontro com seus

familiares Deseja esse destino natildeo recua diante dele mas ainda assim experimenta anguacutestia

Ao final acaba por lamentar sua proacutepria morte mas a aceita natildeo foge dela Toma-a como uma

vantagem Desse modo diz a Creonte

[] Eu jaacute sabia que teria de morrer (e como natildeo) antes ateacute de o proclamares Mas se me leva a morte prematuramente Digo que para mim soacute haacute vantagem nisso Assim cercada de infortuacutenios como vivo A morte natildeo seria entatildeo uma vantagem (Antiacutegona vv 524-530)

109

Sabe que um dia iraacute morrer sabe que sua vida e de seus familiares estaacute desgraccedilada para

sempre e nesse sentido escolhe um motivo para morrer Faz de seu ato um ato simboacutelico ao

escolher morrer por algo por alguma coisa Doa-se completamente a isso

No seminaacuterio 10 chamado A anguacutestia em que Lacan (1962-19632005) trabalha esse

conceito fundamental motor da cliacutenica psicanaliacutetica o psicanalista fala da relaccedilatildeo do sujeito

neuroacutetico com a anguacutestia de castraccedilatildeo Ele nos diz que aquilo do qual o neuroacutetico recua natildeo eacute

a castraccedilatildeo mas fazer de sua castraccedilatildeo aquilo que preencheria a falta do Outro ceder uma parte

positivada de si como forma de garantir o Outro Chega a esta formulaccedilatildeo a partir do que Freud

diz sobre a cliacutenica que o ponto intransponiacutevel o ponto de chegada da elaboraccedilatildeo da experiecircncia

do neuroacutetico eacute a anguacutestia de castraccedilatildeo

No entanto Lacan acredita que o limite eacute mais aleacutem do ponto situado por Freud

Dedicar sua castraccedilatildeo agrave garantia do Outro eacute diante disso que o neuroacutetico se deteacutem Ele se deteacutem aiacute por uma razatildeo como que interna agrave anaacutelise e que decorre de que eacute a anaacutelise que o leva a esse encontro A castraccedilatildeo no fim das contas nada mais eacute que o momento da interpretaccedilatildeo da castraccedilatildeo (LACAN 1962-19632005 p 56)

Lembramos aqui que a castraccedilatildeo eacute uma das operaccedilotildees que constituem o sujeito como

ldquoem-faltardquo sendo uma operaccedilatildeo que implica uma perda de uma parte de si para o Outro O que

o sujeito perde eacute a miragem de uma relaccedilatildeo totalizada com a dimensatildeo primordial do Outro

representada por quem exerce a funccedilatildeo materna ou seja o que ele perde eacute justamente ser aquilo

capaz de preencher a falta deste Outro

Na castraccedilatildeo pode-se dizer ele perde a identificaccedilatildeo a uma dimensatildeo objetal

assumindo uma dimensatildeo subjetiva Isso ocorre porque resta uma potecircncia que lanccedila o sujeito

para fora dessa relaccedilatildeo o significante da falta que ele passa a situar numa alteridade simboacutelica

natildeo mais ocupada pela matildee mas pela linguagem pela cultura O sujeito neuroacutetico natildeo deseja

mais ser o objeto que pode completar o Outro mas ter ou natildeo ter esse objeto capaz de

causarcompletar a falta no Outro A dimensatildeo da alteridade precisa permanecer faltante falta

esta realizada pelo sujeito que busca completaacute-la de alguma forma nunca totalmente com os

objetos de que dispotildee ou de que natildeo dispotildee Se a falta for totalmente preenchida o sujeito se

flagra a si mesmo como fixado em uma dimensatildeo totalmente objetal Em vez de doar uma parte

de si uma cessatildeo de objeto ele doa-se por inteiro e da relaccedilatildeo com a alteridade nada resta para

que ele siga desejante percorrendo e produzindo-se em uma cadeia simboacutelica

110

O sujeito para desejar precisa manter o falo como significante da falta do Outro com

o qual pode inventar uma diversidade de representaccedilotildees Nesse sentido seu limite estaacute para

aleacutem da operaccedilatildeo da castraccedilatildeo na medida em que desta operaccedilatildeo natildeo decorra advir como puro

objeto que obtura a falta do Outro o que colocaria em questatildeo ateacute mesmo a sustentaccedilatildeo da

diferenccedila mas advir sempre como sujeito desejante para aleacutem do gozo do Outro

Dessa maneira questionamos o que faz com que Antiacutegona seja a heroiacutena traacutegica que a

psicanaacutelise recupera ao pensar a eacutetica considerando que ela doa seu corpo sua proacutepria vida

falece em nome da garantia do Outro um lugar ocupado pelos deuses gregos O trabalho da

cliacutenica psicanaliacutetica pode ocorrer no sentido de conduzir o sujeito a esse enfrentamento

experimentado natildeo sem anguacutestia de averiguar quais satildeo os contornos que conformam seu

desejo ao que responde sua castraccedilatildeo com o que ou como ele paga a diacutevida simboacutelica de sua

existecircncia Para Lacan o sujeito pode pagar com o que for uma cessatildeo de si de algo de si de

seu gozo soacute natildeo pode pagar com o seu proacuteprio desejo ldquoA uacutenica coisa da qual se pode ser

culpado eacute de ter cedido de seu desejordquo (LACAN 1959-19601997 p 385) Pois pensamos que

a sua condiccedilatildeo desejante eacute a uacutenica coisa que o sujeito realmente pode ter Desse modo o puro

desejo de Antiacutegona eacute a uacutenica coisa que permanece com ela ateacute o fim Ela perde sua vida seu

futuro um casamento alegrias conjugais os filhos e Ismene sua irmatilde mas natildeo perde tudo

pois sustenta seu desejo e com ele vai ateacute a morte atravessa a fronteira entre vida e morte a

aacutetē

Talvez a personagem Antiacutegona mostre para noacutes a dimensatildeo paradoxal inerente a essa

relaccedilatildeo do sujeito com o Outro O que eacute da ordem subjetiva o que eacute da ordem objetal na medida

em que em verdade inventamos o que o Outro supostamente desejaria de noacutes e decidimos o

quanto respondemos ou natildeo a tal demanda Antiacutegona nos diz que natildeo tem nada a perder pois

em sua vida cheia de infortuacutenios a morte se inscreveria como vantagem A morte para noacutes

meros leitores espectadores da cena eacute a perda de tudo eacute mergulho na radicalidade do ser

objetal Talvez para Ismene para Creonte para os demais cidadatildeos tebanos tambeacutem Para

Antiacutegona morte eacute ganho torna-se radicalmente um ganho subjetivo

111

233 Antiacutegona ex nihilo e as leis natildeo escritas

A accedilatildeo traacutegica de Antiacutegona para Lacan (1959-19601997) ocupa um lugar limite lugar

de antecipaccedilatildeo da morte da experiecircncia da proacutepria morte em vida O espectador testemunha ao

mesmo tempo que eacute conduzido a uma travessia neste lugar que situa os limites do simboacutelico

Dessa maneira Antiacutegona situa-se num lugar ex nihilo ou seja com sua accedilatildeo de enterrar

Polinices a heroiacutena vai ao limite da linguagem atribuindo ateacute as uacuteltimas consequecircncias valor

ao significante irmatildeo que impera sobre tudo o que ele possa ter feito pelo bem ou pelo mal E

desse lugar no belo enfrentamento de Antiacutegona contra as leis de Creonte ela diz

Mas Zeus natildeo foi o arauto delas para mim nem essas leis satildeo as ditadas entre os homens pela Justiccedila companheira de morada dos deuses infernais e natildeo me pareceu que tuas determinaccedilotildees tivessem forccedila para impor aos mortais ateacute a obrigaccedilatildeo de transgredir normas divinas natildeo escritas inevitaacuteveis natildeo eacute de hoje natildeo eacute de ontem eacute desde os tempos mais remotos que elas vigem sem que ningueacutem possa dizer quando surgiram (Antiacutegona 511-520)

De que leis Antiacutegona fala aqui construindo uma arguiccedilatildeo alternativa agrave imposiccedilatildeo de

Creonte Satildeo leis de tempos remotos anteriores ao bem que o rei quer para a cidade Satildeo leis

aleacutem do bem natildeo escritas mas que se fazem presentes entre os cidadatildeos Em seu livro Antiacutegona

e a eacutetica traacutegica da psicanaacutelise Ingrid Vorsatz (2013) nos diz que as leis natildeo escritas nomina

diferenciavam-se da lei escrita nomos As nomina dependem da accedilatildeo de cada indiviacuteduo do

quanto cada um consegue inscrever em ato as leis natildeo escritas que segue Apenas por adesatildeo

singular as nomina podem ter validade Isso vale tambeacutem para as imposiccedilotildees divinas As

verdades dos deuses gregos soacute tecircm valor no momento em que um cidadatildeo escolher segui-las

em ato

As leis natildeo escritas nomina satildeo aquelas que vigem desde os tempos imemoriais e sua validade reside exclusivamente na forccedila de sua enunciaccedilatildeo a despeito de sua origem divina Sua incidecircncia eacute real ela ex-siste eacute exterior ao mundo humano que por sua vez se constitui na e atraveacutes da submissatildeo a essas leis Para que tenha validade a lei natildeo escrita convoca o ato singular

112

de cada um ndash no caso da heroiacutena traacutegica ndash a cada vez (VORSATZ 2013 p 114)

Jaacute o nomos a escrita da lei surge de uma necessidade de organizaccedilatildeo da poacutelis numa

tentativa de registrar a legislaccedilatildeo divina Uma vez escrita a lei dispensaria a escolha individual

para adquirir validade e deveria ser respeitada por todos sem exceccedilatildeo pelo bem comum

Vorsatz (2013) argumenta que o universo em que a trageacutedia se estabelece natildeo eacute ainda

o conhecido acircmbito da filosofia acessiacutevel ao nosso modo de organizaccedilatildeo contemporacircneo que

se faz com a razatildeo e o conhecimento em que o indiviacuteduo eacute senhor em sua proacutepria casa Esse

modo de vida comeccedila a se desenvolver na histoacuteria da humanidade no seacuteculo IV antes de Cristo

que corresponde ao surgimento da democracia com o ideal de bem para todos Na trageacutedia natildeo

satildeo motivaccedilotildees racionais e de algum sistema de conhecimento que sustentam a vida dos

homens

A trageacutedia antiga que surgiu e se dissipou ao longo do seacuteculo V antes de Cristo situa-

se no mundo dos deuses gregos e sendo assim a palavra tomada pelo heroacutei traacutegico leva em

consideraccedilatildeo a alteridade divina Para Vorsatz (2013 p 22) ldquoo heroacutei traacutegico determinado pelo

campo real dos deuses dele se extrai por intermeacutedio de seu atordquo Assim o heroacutei surge no

momento em que com sua accedilatildeo garante a presenccedila e a ordem divina Poreacutem sua accedilatildeo implica

sua proacutepria perda

Antiacutegona garante no ato de enterrar Polinices com suas proacuteprias matildeos o lugar das leis

natildeo escritas da Justiccedila companheira dos deuses de baixo da terra como se estivessem na origem

de sua escolha Em seguida mostra-se responsaacutevel pelas consequecircncias de seu ato que implica

a proacutepria morte Com seu ato e com suas palavras Antiacutegona move o Aqueronte

Eacute importante entender que o ato de Antiacutegona aleacutem de corresponder ao seu desejo

inscreve-se numa tradiccedilatildeo grega de entregar os corpos ao mundo dos deuses de baixo Para

fazecirc-lo em respeito e honra aos deuses os corpos passam por um ritual de purificaccedilatildeo as

libaccedilotildees fuacutenebres Aleacutem disso os corpos precisam de sepultura para que possa ocorrer um

esquecimento jaacute que ldquoas almas errantes se transformariam em fantasmas que perseguiriam os

vivosrdquo (VORSATZ 2013 p 64)

Natildeo permitir as honras fuacutenebres e o sepultamento de Polinices eacute uma desmedida de

Creonte ldquoA mutilaccedilatildeo do corpo aleacutem de enfraquecer o espiacuterito do morto atinge gravemente a

honra da estirpe O sepultamento eacute um dever sagrado que faz o morto descer ao Hades onde

ele se torna um numen (espiacuterito ou gecircnio) protetor da linhagemrdquo (VORSATZ 2013 p 64)

113

A purificaccedilatildeo do corpo e o seu enterro correspondem desse modo a uma operaccedilatildeo

simboacutelica que permite estabelecer uma separaccedilatildeo entre os vivos e os mortos Antiacutegona age em

funccedilatildeo da morte simboacutelica de Polinices no entanto as honras fuacutenebres que concede a ele

levam-na agrave sua proacutepria morte simboacutelica ao ponto extremo onde a vida alcanccedila a morte Presa

entre duas mortes conforme define Lacan

Vorsatz (2013 p 67) aponta que Creonte

em seu afatilde legiferante faz com que as funccedilotildees e os lugares sejam subvertidos os vivos satildeo enterrados os mortos jazem insepultos A situaccedilatildeo resulta no chaos a proacutepria natureza desordenou-se e a ordem coacutesmica tatildeo cara ao grego antigo foi revirada pelo avesso A sentenccedila do soberano sobre o ato de Antiacutegona apenas redobra a anterior a proibiccedilatildeo do sepultamento de Polinices este condenado a apodrecer entre os vivos aquela a viver entre os mortos

De acordo com a autora Creonte natildeo ordena a morte de Antiacutegona conforme havia

prometido ao traidor do decreto Natildeo esperava ele que a pessoa a trair seria ela sua sobrinha

sangue de seu sangue Temendo a revolta dos deuses decide pelo seu emparedamento viva A

morte seria uma consequecircncia pela qual ele natildeo quer se responsabilizar

O destino traacutegico de Antiacutegona eacute o de seu corpo no lugar do corpo do irmatildeo Ela aparece

como carne como morta embora viva O que mais ela consegue realizar ainda que

simbolicamente Como jaacute mencionado em Eacutedipo em Colono trageacutedia que antecede Antiacutegona

Eacutedipo eacute enterrado por Teseu em lugar desconhecido seu corpo natildeo pertence a lugar nenhum

natildeo protege a sua linhagem Antiacutegona e a irmatilde Ismene fazem os rituais de purificaccedilatildeo poreacutem

satildeo impedidas de ver e de saber sobre o local da sepultura

Antiacutegona ao dizer os motivos pelos quais enterra Polinices afirma

[] Se houvera sido matildee de filhos ou se o esposo morto apodrecesse exposto jamais enfrentaria eu tamanhas penas tendo de opor-me a todos os concidadatildeos Que leis me fazem pronunciar estas palavras Fosse eu casada e meu esposo falecesse bem poderia encontrar outro e de outro esposo teria um filho se antes perdesse algum mas morta minha matildee morto meu pai jamais outro irmatildeo meu viria ao mundo (Antiacutegona vv 1008-1017)

114

Para Guyomard (1996) Antiacutegona ao enterrar o irmatildeo o uacutenico que lhe resta estaacute

honrando tambeacutem algo que diz respeito agrave sua proacutepria condiccedilatildeo de ter nascido do incesto ldquoA

questatildeo de Antiacutegona eacute que essa unicidade inclui o incesto Um incesto que a fez nascer ndash sem

metaacutefora ndash e que a faz morrer Ela coloca tragicamente a questatildeo da confusatildeo entre a vida e a

morte como entre a lei e o incestordquo (GUYOMARD 1996 p 32)

Como o autor aponta Antiacutegona conhece apenas uma metaacutefora pura que a conduz agrave

morte Eacute tambeacutem o que a faz ver em Polinices a unicidade de ser um irmatildeo o que a faz por

outro lado tomar-se na unicidade de ser uma irmatilde De acordo com Guyomard (1996 p 31)

[] a unicidade do irmatildeo morto converte-se na relaccedilatildeo pura (isto eacute esvaziada de qualquer outro interesse) de Antiacutegona com o que faz dela um sujeito falante ela se identifica com o corte da linguagem ndash a partir desse nada para onde retorna ndash sendo apenas a irmatilde de seu irmatildeo

Dessa maneira podemos depreender disso que o lugar do irmatildeo morto eacute o lugar do

desejo de Antiacutegona O desejo que se revela no cadaacutever de Polinices De acordo com Lacan

(1959-19601997) o valor do ser irmatildeo se torna um valor de linguagem que acaba por mostrar

o corte instaurado em Antiacutegona o corte de linguagem o limite o ex nihilo em que ela fica

presa

Jamais outro irmatildeo de Antiacutegona viria ao mundo estando seu pai Eacutedipo e sua matildee Jocasta

mortos Eacute importante lembrar que Eacutedipo aleacutem de pai eacute tambeacutem irmatildeo de Antiacutegona e nessa

medida ao enterrar Polinices podemos entender que ela enterra tambeacutem o que resta de irmatildeo

em Eacutedipo

Nesse sentido Eacutedipo e Polinices parecem estar ligados por um significado oculto que

diz respeito a ambos serem irmatildeos de Antiacutegona Outra ligaccedilatildeo possiacutevel eacute o dever de enterrar

Eacutedipo (corpo que some subtraiacutedo) deslocado ao dever de enterrar Polinices (corpo exposto

que aparece em demasia) Nessa relaccedilatildeo ela manteacutem a metoniacutemia de seu desejo ateacute as uacuteltimas

consequecircncias apontando o que sustenta essa relaccedilatildeo as leis divinas Os termos morfoloacutegicos

que constituem o nome Antiacutegona em grego ἀντί e γονή aludem agrave funccedilatildeo da metaacutefora a

condiccedilatildeo de substituir uma coisa por outra tomar o lugar de algum familiar nascer no lugar de

algo ou alguma coisa O ato com o qual se afirma como sujeito ao mesmo tempo que se coloca

em perda ou seja o ato de enterrar o irmatildeo ao lembrar das leis natildeo escritas como dissemos

ocorre por meio da tentativa de garantir simbolicamente o enterro de Eacutedipo pelo enterro de

Polinices

115

Contudo como consequecircncia de seu ato Antiacutegona se torna a proacutepria coisa que substitui

o irmatildeo morto eacute enterrada como cadaacutever sem secirc-lo eacute tomada como morta sem secirc-lo sem que

nada reste como diferenccedila como qualquer outra coisa torna-se totalmente metaacutefora Puro corte

significante pura metaacutefora Doa-se como parte fundamental da constituiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo

simboacutelica capaz de marcar a diferenccedila entre dois mundos o mundo dos vivos e o mundo dos

mortos o mundo dos humanos e o mundo dos deuses No entanto Creonte provoca nova

confusatildeo ao natildeo permitir o enterro de um morto e ao ordenar o enterro de uma pessoa viva

A proacutepria trageacutedia grega para Kathrin Rosenfield (2000) eacute uma arte que se apresenta

como metaacutefora quer dizer representaccedilatildeo Eacute um lugar de passagem entre lugares irredutiacuteveis

um ao outro a natureza e a cultura

Enquanto metaacutefora de uma intuiccedilatildeo intelectual a trageacutedia potildee em cena a passagem ndash o meio (termo) indefinido e insuperaacutevel ndash entre mundo estranhos entre si e que satildeo ao mesmo tempo figuras de niacuteveis distintos do entendimento e da razatildeo Nesta perspectiva a trageacutedia eacute inteiramente no momento no instante da representaccedilatildeo transporte infinitamente prolongado entre niacuteveis irredutiacuteveis um ao outro (ROSENFIELD 2000 p 168)

A trageacutedia Antiacutegona permite a realizaccedilatildeo dessa passagem dessa travessia que conduz

de um plano a outro sem que nenhum possa prevalecer sobre o outro Para fazer tal travessia

a qual se prolonga em metoniacutemia desejante faz-se necessaacuteria a construccedilatildeo de uma metaacutefora

nem que para sua garantia o preccedilo a pagar a libra de carne seja a proacutepria existecircncia

Nessa linha de pensamento Vorsatz (2013) nos mostra que aleacutem da temaacutetica proposta

na trageacutedia Antiacutegona a proacutepria esteacutetica traacutegica sua forma de apresentaccedilatildeo linguiacutestica compotildee-

se de modo a trabalhar a linha de tensatildeo entre planos distintos e nesse sentido favorece o

pensamento poeacutetico justamente esse que natildeo visa um argumento racional e loacutegico mas uma

forma de pensamento alargada em que os sentidos vatildeo sendo produzidos em decorrecircncia das

passagens de um termo a outro

Vemos que a proacutepria estrutura de linguagem poeacutetica da trageacutedia caracteriza uma forma de pensamento singular distinta e anterior ao pensamento logico-conceitual em que as contradiccedilotildees natildeo se anulam reciprocamente e diferentes patamares de temporalidade coexistem sem que haja primazia de uns sobre outros A linguagem poeacutetica natildeo subsumida ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo seria aparentada ao funcionamento inconsciente Talvez seja possiacutevel supor que em seu funcionamento o inconsciente tem uma forma poeacutetica de proceder de acordo com sua estrutura de linguagem assinalada por Lacan ndash metaacutefora e

116

metoniacutemia satildeo mecanismos anaacutelogos agrave condensaccedilatildeo e ao deslocamento postulados por Freud (VORSATZ 2013 p 41)

Condensaccedilatildeo e deslocamento satildeo mecanismos que Freud descobre operarem na

deformaccedilatildeo que conteuacutedos inconscientes sofrem na tentativa de figurar o sonho a linguagem

o sintoma O trabalho de interpretar os sonhos vai nesse sentido de averiguar essas operaccedilotildees

com o paciente que captam traccedilos aspectos em comum de diferentes objetos pessoas espaccedilos

e tempos e os fazem participar de uma mesma cena sem que haja uma anulaccedilatildeo ou contradiccedilatildeo

entre eles A condensaccedilatildeo tomada por Lacan como metaacutefora eacute uma operaccedilatildeo simboacutelica que

permite ao sujeito a construccedilatildeo de um novo sentido pela substituiccedilatildeo de um significante por

outro Ele trabalha com essa questatildeo no seminaacuterio As formaccedilotildees do inconsciente (LACAN

1957-19581998)

Nesse sentido na constituiccedilatildeo do sujeito como ser de linguagem Lacan propotildee a

ocorrecircncia de metaacutefora paterna que teria por funccedilatildeo a substituiccedilatildeo do significante do desejo da

matildee pelo significante do nome do pai Isso implicaria uma alienaccedilatildeo ao desejo do Outro uma

pergunta necessaacuteria e fundante sobre o que o Outro quer de mim sendo este uma alusatildeo agrave matildee

como Outro primordial Nesse sentido Antiacutegona desliza a uma rede significante com a qual

interpela esse Outro como metaacutefora o qual corresponde aos deuses gregos ldquoQue mandamentos

transgredi das divindadesrdquo (Antiacutegona v 1027)

Pensamos se na trageacutedia grega natildeo haveria uma intenccedilatildeo nesse sentido uma tentativa

conjunta de criar um dispositivo uma operaccedilatildeo cultural uma metaacutefora que pudesse representar

o desejo humano na cultura Uma tentativa de fundar um saber da civilizaccedilatildeo sempre falha

sempre traacutegica jaacute que por ela todos morrem no final em cadeia Seria uma tentativa de que a

representaccedilatildeo alcanccedilasse um ponto impossiacutevel Como aponta Vorsatz (2013) fazer o simboacutelico

cortar o real

Lacan no complemento ao seu comentaacuterio sobre a trageacutedia Antiacutegona fala que

ldquoAntiacutegona diante de Creonte se situa como a sincronia oposta agrave diacroniardquo (LACAN 1959-

19601997 p 344) Com seu ato de enfrentar Creonte Antiacutegona faz um corte sincrocircnico na

lei proferida pelo rei Ao nomear Polinices como inimigo criminoso escravo o que resulta no

edito de deixar seu corpo exposto a princesa mostra o que ele eacute para ela um irmatildeo antes de

tudo O que o rei faz com isso Natildeo mata o traidor pois eacute sua sobrinha mas a enterra viva para

manter em parte sua palavra Ao ouvir o adivinho Tireacutesias muda de ideia ordena que

desenterrem Antiacutegona Poreacutem jaacute estava morta enforcada com um laccedilo de linho de seu vestido

117

Ao vecirc-la o filho de Creonte noivo da princesa mata-se com uma espada Ao saber da morte

do filho a mulher de Creonte tambeacutem comete suiciacutedio

O rei desesperado implora para que a morte chegue ateacute ele jaacute que ele mesmo natildeo

consegue fazecirc-lo ldquoVenha Aconteccedila a uacuteltima das mortes ndash a minha ndash e traga o meu dia final

o mais feliz de todos Venha Venha pois natildeo quero viver nem mais um diardquo (Antiacutegona vv

1468-1471)

Agrave suacuteplica de Creonte o corifeu diz ldquoisto eacute o futuro antes cuidemos do presenterdquo

(Antiacutegona v 1472) Entendemos que haacute na trageacutedia uma invenccedilatildeo um fazer com a linguagem

e a relaccedilatildeo da temporalidade com a linguagem O saber na trageacutedia um saber que natildeo se revela

a priori que se faz com o ato um saber insabido pode ser transmitido com esses termos

234 A dimensatildeo do belo

No lugar em que Antiacutegona sustenta seu desejo ex nihilo Lacan (1959-19601997) fala

de seu brilho de sua luz que em parte se reflete causando um cegamento no espectador e em

parte se reteacutem e se prolonga O psicanalista menciona especialmente uma imagem de Antiacutegona

que se destaca dentre as outras imagem de sua lamentaccedilatildeo ao entrar viva no tuacutemulo de sua

morte

Pois bem sabemos que para aleacutem dos diaacutelogos para aleacutem da famiacutelia e da paacutetria para aleacutem dos desenvolvimentos moralizadores eacute ela que nos fascina em seu brilho insuportaacutevel naquilo que ela tem que nos reteacutem e ao mesmo tempo nos interdita no sentido em que isso nos intimida no que ela tem de desnorteante ndash essa viacutetima tatildeo terrivelmente voluntaacuteria (LACAN 1959-19601997 p 300)

Nesse sentido para aleacutem da discussatildeo que compreende as leis do Estado opostas agraves leis

familiares no que diz respeito aos deveres para com os mortos que por si soacute jaacute nos coloca numa

dimensatildeo de tensionamento o ato de Antiacutegona nos atravessa ao problematizar a via desejante

que em seu caso sobrevive mesmo ao conduzi-la agrave morte Haacute aiacute um lugar para aleacutem dos limites

eacuteticos que nossa consciecircncia atinge alccedilamos uma experiecircncia esteacutetica compreendida como a

zona do belo que estaacute num ponto aleacutem da zona do bem

O belo diz Lacan pode dar forma ao desejo inconsciente poreacutem haacute uma relaccedilatildeo

ambiacutegua entre os termos ldquodesejordquo e ldquobelordquo Uma vez que o nosso desejo tome forma bela a

partir de um certo arranjo de elementos miacutenimos chegamos a um ponto de suspensatildeo do

118

horizonte do desejo pois ele encontra no belo uma experiecircncia esteacutetica tal que favorece a

satisfaccedilatildeo desejante e natildeo a relanccedila Nesse sentido o belo guarda a condiccedilatildeo tanto de expressatildeo

do desejo quanto de suspendecirc-lo

A verdadeira barreira que deteacutem o sujeito diante do campo inominaacutevel do desejo radical uma vez que eacute o campo da destruiccedilatildeo absoluta [] eacute o fenocircmeno esteacutetico propriamente dito uma vez que eacute identificaacutevel com a experiecircncia do belo (LACAN 1959-19602007 p 265)

A uacutenica maneira possiacutevel de transmitir a experiecircncia do ex nihilo de onde Antiacutegona

situa seu ato simboacutelico eacute a via do belo que para Lacan eacute o verdadeiro limite do desejo para

aleacutem dele nada resta a natildeo ser destruiccedilatildeo Esse limite Antiacutegona o toca e nos comove

Talvez aqui seja interessante fazer um esboccedilo da diferenccedila proposta por Lacan (1959-

19602007) entre o bem e o belo jaacute que o psicanalista compara a barreira do bem com a barreira

do belo O limite do belo situa-se num ponto aleacutem do limite do bem embora por sermos

constantemente iludidos na dimensatildeo do bem por muitas vezes em nossas relaccedilotildees cotidianas

em nossas escolhas de vida paralisamos diante da barreira do bem enganando-nos de que aiacute

reside o que eacute da ordem do nosso desejo ou entatildeo ao menos o que eacute da ordem do justo

Lacan aponta que no fazer do psicanalista eacute preciso pensar sobre como o desejo e o bem

se articulam O desejo de curar em psicanaacutelise seria um desejo de libertar o sujeito das ilusotildees

do bem e dessa forma ir na via contraacuteria da ldquofalcatrua beneacutefica do querer-o-bem-do-sujeitordquo

(LACAN1959-19602007 p 267) Para o psicanalista francecircs o bem eacute o que reteacutem o desejo

ilude o sujeito na realizaccedilatildeo de seu desejo quando na verdade o silencia

Lacan nos aponta que o bem estaacute sempre em referecircncia agrave noccedilatildeo freudiana de princiacutepio

do prazer atraveacutes do qual buscamos satisfaccedilatildeo e com o princiacutepio de realidade que faz com

que nos deparemos com os caminhos equivocados para onde o prazer nos conduz Nesse

sentido o bem estaacute relacionado a um conflito fruto do embate entre esses dois princiacutepios Entre

o prazer e a realidade sabemos que como neuroacuteticos tendemos a entrar num acordo atraveacutes

do qual conseguimos adquirir satisfaccedilatildeo atraveacutes dos compromissos que a realidade nos coloca

sem precisarmos muitas vezes escolher e bancar o que eacute da ordem de nosso desejo Tendemos

a buscar uma parcela de prazer atraveacutes do investimento nos objetos do mundo enganando-nos

na via da realizaccedilatildeo de nosso desejo Isso nos livra da responsabilidade de arcar com a

consequecircncia de seguirmos a via desejante jaacute que esse caminho natildeo nos traz satisfaccedilatildeo da

119

ordem do principio do prazer ou da articulaccedilatildeo deste com o princiacutepio de realidade A satisfaccedilatildeo

seria de outra ordem difiacutecil de bancar aliada agrave pulsatildeo de morte

Dessa maneira o psicanalista apresenta a noccedilatildeo de praacutexis no duplo sentido que ela

evoca a dimensatildeo eacutetica a nossa accedilatildeo como agimos de acordo com nosso lugar na linguagem

e a dimensatildeo ex nihilo a fabricaccedilatildeo o que produzimos com os significantes que nos posicionam

como sujeitos de desejo Antes do surgimento da noccedilatildeo de necessidade do que realmente

precisamos para viver e para realizar nossos desejos antes de qualquer intenccedilatildeo de suprir uma

necessidade no princiacutepio eacute como significante que qualquer coisa se articula Nesse sentido que

Lacan traz a ideia da necessidade de sermos seres vestidos Antes de se pensar na funccedilatildeo do

encobrimento do corpo ou de alguma coisa no iniacutecio estaacute a invenccedilatildeo produtora ex nihilo com

a qual o ser humano organiza-se ao longo dos seacuteculos como um ser vestido Dessa maneira

primeiramente ele cria a roupa (ex nihilo) e com isso surge a necessidade de cobrir-se bem

como o direito de ter suas necessidades satisfeitas as quais tem um valor uacutetil Sendo assim a

praacutexis do homem o coloca a fabricar com alguma coisa que tem valor significante e com isso

o homem descobre a utilidade do que criou numa perspectiva coletiva

De acordo com Lacan (1959-19602007 p 280) ldquoA dimensatildeo do bem levanta uma

muralha poderosa na via do nosso desejordquo Eacute nessa perspectiva que ele apresenta a dimensatildeo

do belo para aleacutem da barreira do bem O belo diferente do bem natildeo nos engana sobre o desejo

natildeo nos oferece uma ilusatildeo de fazer o bem com nossos bens Eacute uma funccedilatildeo que nos abre os

olhos

Se o bem estaacute em relaccedilatildeo ao que nos satisfaz com o princiacutepio do prazer o belo se refere

a algo mais aleacutem desse princiacutepio a pulsatildeo de morte e nesse sentido embora seja o verdadeiro

limite do desejo o mais aleacutem pode de certo modo se conjugar ao desejo Eacute isso que Antiacutegona

realiza

Pensamos nessas contribuiccedilotildees do pensamento psicanaliacutetico para a aacuterea da educaccedilatildeo ou

sobre como podem se articular A experiecircncia educativa parece se aliar melhor a uma ideia de

laccedilo social de construccedilatildeo do conhecimento de tradiccedilatildeo cultural o que podemos prontamente

relacionar ao que produz vida ao que manteacutem o desejo vivo ao que visa preservar o laccedilo as

relaccedilotildees com o outro Contudo Lacan nos fala que se a pulsatildeo de morte para aleacutem de uma

perspectiva que remete a algo da destruiccedilatildeo potildee em causa tudo o que existe ldquoeacute igualmente

vontade de criaccedilatildeo a partir de nada vontade de recomeccedilarrdquo (LACAN 1959-19602007 p 260)

120

Somos impelidos assim a adotar uma atitude questionadora a pensar que as relaccedilotildees

que se cristalizam no cenaacuterio educativo embora possam mobilizar algo da satisfaccedilatildeo de uma

necessidade manter nossas relaccedilotildees aparentemente coesas natildeo satildeo relaccedilotildees estanques ou

necessaacuterias mas podem ser desmontadas e rearranjadas na medida em que modelamos

elementos que significam na cena o que nos coloca no lugar de criadores produtores de uma

outra coisa que pode gerar um novo laccedilo como efeito

Estou-lhes mostrando a necessidade de um ponto de criaccedilatildeo ex nihilo do qual nasce o que eacute histoacuterico na pulsatildeo No comeccedilo era o Verbo o que quer dizer o significante Sem o significante no comeccedilo eacute impossiacutevel articular a pulsatildeo como histoacuterica E isso basta para introduzir a dimensatildeo ex nihilo na estrutura do campo analiacutetico (LACAN 1959-19601997 p 261)

Dessa maneira a pulsatildeo que nos move remonta agrave ideia de fazer com o significante o

que fabricamos com ele

O belo permite alcanccedilar uma zona aleacutem do limite do bem aborda nossas tendecircncias

disjuntivas e de modo misterioso une-se ao nosso desejo Desse modo entendemos que a funccedilatildeo

do belo eacute um tanto paradoxal Diz respeito agrave relaccedilatildeo fundamental do sujeito com seus proacuteprios

limites com a proacutepria morte ao mesmo tempo que figura o desejo Conforme comenta Lacan

remetendo-nos agrave funccedilatildeo do vestir do encobrir-se o uacuteltimo veacuteu antes do horror eacute o belo

Trabalhando significantes soacute conseguimos nos aproximar do horror do vazio de nossa

constituiccedilatildeo com o belo e com ele retirarmos uma dose de satisfaccedilatildeo Para aleacutem disso temos

a dimensatildeo destrutiva que nos faz sofrer que nos retira a possibilidade de fazer com o

significante que nos retira a proacutepria condiccedilatildeo desejante Eacute a esse lugar paradoxal aleacutem do bem

e aleacutem do belo que Antiacutegona se encaminha e em funccedilatildeo disso de passar totalmente dos limites

confundindo o lugar de sujeito com o lugar de objeto ela encontra a proacutepria morte Noacutes leitores

e espectadores atravessamos os limites com ela salvaguardados pelo veacuteu da cena que nos diz

que natildeo passa de ficccedilatildeo o que nos ajuda a colher os efeitos cecircnicos de horror e piedade

O filoacutesofo Eugenio Triacuteas em seu livro El bello y lo siniestro nos fala da relaccedilatildeo

existente entre o horror e o belo fazendo um comentaacuterio especial sobre o belo na trageacutedia grega

Para o autor a trageacutedia formalizou uma esteacutetica tal que nos fez e nos faz admiraacute-la e trabalhaacute-

la ateacute hoje Eacute um modelo artiacutestico indiscutiacutevel A resposta para isso pode ter sido levantada por

Freud quando adotou Eacutedipo como figura exemplar de sua teorizaccedilatildeo no que tange ao desejo

inconsciente No entendimento de Triacuteas haacute para Freud uma estrutura antropoloacutegica

121

inconsciente sustentada e revelada pela trageacutedia especialmente a de Eacutedipo e eacute decorrente do

que a trageacutedia mobiliza do inconsciente humano que sentimos os efeitos esteacuteticos do belo

A antiguidade grega engendrou uma esteacutetica enigmaacutetica que os padrotildees de beleza que

foram sendo estabelecidos nos seacuteculos posteriores natildeo conseguem alccedilar Nesses ideais haacute uma

noccedilatildeo de proporccedilatildeo simplicidade contraste e familiaridade os quais nosso entendimento

racional eacute capaz de captar e reproduzir No entanto a trageacutedia pode abarcar esses ideias e ir

aleacutem deles a um ponto um limite que escapa agrave nossa racionalidade Justamente nesse ponto

aleacutem que toca no inconsciente ponto captado por Freud eacute que reside o belo da trageacutedia Para

Triacuteas (2010) pode-se atingir um ponto tal de familiaridade que sugere um tom de

estranhamento Nesse sentido o filoacutesofo se interessa em estudar o artigo freudiano Das

Unheimliche (1919) para com ele buscar transmitir algo da potecircncia da obra de arte

Para Triacuteas (2010) o unheimlich nomeado na liacutengua espanhola de siniestro pode ser

suscitado pelo reconhecimento de algo familiar na beleza um objeto do mundo reconheciacutevel

pertencente ao nosso meio um rosto de algueacutem conhecido O autor nos diz que esse algo

familiar e harmonioso que identificamos de repente se apresenta como revelador de conteuacutedos

pertencentes a noacutes mesmos portador de misteacuterios que esquecemos e desejamos que

permaneccedilam esquecidos e que pertencem a fantasias forjadas por nosso desejo inconsciente A

forccedila da obra de arte seu efeito de belo reside nessa conjunccedilatildeo do familiar com o siniestro em

sua representaccedilatildeo sensiacutevel e real sendo entatildeo que careceria de forccedila a obra que natildeo contivesse

essa hiacircncia familiarestranho

Por meio do conceito de siniestro Triacuteas buscou comprovar sua hipoacutetese de que o efeito

de belo numa obra de arte depende do jogo entre o familiar e o estranho ao mesmo tempo que

o estranho tambeacutem faz com que a obra perca o efeito do belo Em outras palavras o autor afirma

que o estranho eacute condiccedilatildeo e limite do belo Sendo assim natildeo poderia haver belo sem que o

estranho estivesse presente na obra artiacutestica No entendimento de Triacuteas o estranho deve estar

presente sob forma de ausecircncia velado sob a forma de familiaridade e harmonia natildeo podendo

ser desvelado Com isso o autor presume que o estranho eacute o poder da obra sua magia seu

misteacuterio a fascinaccedilatildeo que causa Nesse sentido a revelaccedilatildeo do estranho implicaria natildeo

obstante a destruiccedilatildeo do efeito esteacutetico (TRIacuteAS 2010)

Assim podemos entender que o belo se transmite pela via da experiecircncia esteacutetica ou

entatildeo que somente por essa vida atingimos o efeito do belo capaz de tocar de tal modo a nos

transformar a nos colocar na via desejante Se o nosso entendimento racional se a nossa

122

consciecircncia tomar o lugar de domiacutenio da compreensatildeo de uma obra corre-se o risco de natildeo

sermos atingidos por ela transformados ela se torna mais um conteuacutedo objetivo que passa pelo

crivo do racional

O arranjo cecircnico que favorece o estranhamento se revela o estranho jaacute natildeo eacute mais

estranho tampouco familiar eacute compreensiacutevel dele nos distanciamos e ele natildeo nos diz mais

respeito como seres humanos Isso depende tambeacutem pensamos da atitude que assumimos

diante de uma obra de arte do quatildeo disponiacuteveis estamos se nos defendemos do que ela suscita

se ela toma parte da nossa vida como bem de consumo se buscamos com ela uma completude

imaginaacuteria enfim Mas haacute tambeacutem obras de arte como Antiacutegona que nos tomam

desprevenidos que nos fazem falar e seguir falando seacuteculos e seacuteculos depois de sua criaccedilatildeo

como supomos a um claacutessico (na concepccedilatildeo de Italo Calvino) que ainda natildeo terminou de dizer

o que tinha para dizer

235 A mulher Antiacutegona

Em muitos momentos Creonte se refere a Antiacutegona como uma mulher num tom

depreciativo Diz que ele nunca obedeceria a uma mulher Acusa Hecircmon seu filho de estar

submetido a uma mulher Fala a Antiacutegona que ela eacute uma mulher que quer fazer o papel de

homem ao enfrentaacute-lo O que quer dizer isso

O lugar da mulher na Greacutecia Antiga era resguardado ao lar a ser esposa gerar filhos e

cuidar da casa Natildeo participavam da vida poliacutetica natildeo estudavam Natildeo participavam da

encenaccedilatildeo das trageacutedias os papeis de mulheres eram realizados por homens jovens com

maacutescaras femininas O papel da corajosa Antiacutegona foi interpretado por um homem

Assim de modo diferente ao que esperavam dela por ser mulher a personagem

Antiacutegona enfrentou a decisatildeo do rei provocando um questionamento sobre sua poliacutetica e

justiccedila Aleacutem disso natildeo se casou e natildeo teve filhos Esse fato eacute algo marcado por ela em sua

fala quando lamenta sua morte precoce

[] Se houvera sido matildee de filhos ou se o esposo morto apodrecesse exposto jamais enfrentaria eu tamanhas penas tendo de opor-me a todos os concidadatildeos Que leis me fazem pronunciar estas palavras Fosse eu casada e meu esposo falecesse bem poderia encontrar outro e de outro esposo

123

teria um filho se antes perdesse algum [] um leito nupcial jamais terei nem ouvirei hinos de bodas nem sentirei as alegrias conjugais nem filhos amamentarei [] (Antiacutegona vv 1008-1015 1021-1024)

Entendemos com essa passagem que se Antiacutegona se tornasse esposa e matildee o laccedilo

existente com marido e possiacuteveis filhos natildeo seria um laccedilo tatildeo fundamental como o que a prende

aos seus antecessores familiares especialmente ao seu irmatildeo Natildeo morreria para sustentar a

existecircncia de um esposo pois arranjaria outro com o qual teria outros filhos O lugar de marido

e descendentes para ela parece ser mais um compromisso social uma obrigaccedilatildeo facilmente

restituiacuteda Um destino certo para qualquer mulher sem escolhas que faccedilam aparecer o desejo

Parece-nos haver para Antiacutegona uma separaccedilatildeo da ideia de ser esposa e matildee da ideia de

ser um sujeito Esse lugar estaacute mais aleacutem dos deveres sociais Sua eacutetica natildeo eacute uma moral social

eacute a eacutetica de seu desejo Isso eacute o que Creonte natildeo admite ver em Antiacutegona Ele a vecirc sair do lugar

circunscrito a uma mulher e chamando-a de mulher tenta evocar essas obrigaccedilotildees

Assim Antiacutegona provoca um corte nas accedilotildees de Creonte especialmente quando ao

morrer faz com que ele perca filho e esposa mortes pelas quais ele se responsabiliza ao final

da peccedila Acreditamos que esse aspecto da relaccedilatildeo entre Creonte e Antiacutegona da diferenccedila entre

o lugar de homem e o lugar de mulher na sociedade tebana eacute um ponto importante a ser

mencionado ainda que seja num trabalho em que o tema central natildeo eacute esse Natildeo podemos

ignoraacute-lo como temaacutetica capaz de dialogar com discursos vivos correntes de nossa atualidade

acerca do feminismo Eacute disso que se trata em um claacutessico haacute sempre um aspecto capaz de falar

diretamente ao contemporacircneo

Dissemos no iniacutecio da seccedilatildeo sobre a trageacutedia Antiacutegona que gostariacuteamos de abordaacute-la

para entender a questatildeo dos limites e das possibilidades na cena educativa Pois bem o que

podemos dizer para o momento eacute que a crianccedila que apresenta sintomas relativos agrave escola como

hiperatividade dificuldades de atenccedilatildeo e de aprendizagem talvez precise realizar uma operaccedilatildeo

simboacutelica que se decirc ao niacutevel de uma invenccedilatildeo para aleacutem das obrigaccedilotildees e medidas

preestabelecidas de bom comportamento no ciacuterculo social da qual participa Com Antiacutegona

entendemos que haacute um laccedilo que nos sustenta para aleacutem de discursos que se impotildeem sobre a

cena no intuito de organizaacute-la um laccedilo mais proacuteximo agraves nossas condiccedilotildees inventivas agraves

possibilidades de rearranjo da cena Mas como satildeo ldquoleis natildeo escritasrdquo escrevemos e criamos a

124

cada vez pela modelaccedilatildeo dos significantes presentes na cena escolar os quais ao serem

trabalhados bordejam um vazio circunscrito por fronteiras que natildeo excluem o outro mas se

formam com ele

Nas proacuteximas paacuteginas discutiremos como algumas questotildees identificadas pela

psicanaacutelise na trageacutedia grega participam de noccedilotildees e conceitos do traacutegico e da trageacutedia trazendo

novos elementos para a conversa

125

3 O TRAacuteGICO

Como sondar o traacutegico o que lhe eacute proacuteprio Elegemos como uma primeira aproximaccedilatildeo

sua definiccedilatildeo no dicionaacuterio afinal haacute de se comeccedilar por algum caminho Buscamos logo um

dicionaacuterio de teatro e seguimos com ele Patrice Pavis indica em seu Dicionaacuterio de teatro que

quanto ao traacutegico eacute preciso estabelecer uma diferenccedila entre o gecircnero literaacuterio da trageacutedia e o

traacutegico como aquilo que se refere a um ldquoprinciacutepio antropoloacutegico e filosoacutefico que se encontra

em vaacuterias outras formas artiacutesticas e mesmo na existecircncia humanardquo (PAVIS 2015 p 416)

Haacute dessa forma o gecircnero chamado trageacutedia nascido no seacuteculo V aC e sistematizado

pelo filoacutesofo Aristoacuteteles em sua obra Poeacutetica no seacuteculo IV aC Como exemplos podemos citar

as trageacutedias antigas dos claacutessicos Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides as quais foram propostas no

seacuteculo V aC Tambeacutem fazem parte do gecircnero traacutegico as trageacutedias modernas de poetas como

Shakespeare Corneille e Racine

Jaacute o traacutegico deriva de uma apreciaccedilatildeo filosoacutefica da existecircncia humana a qual pode ter

uma essecircncia traacutegica Tal concepccedilatildeo aparece a partir do seacuteculo XIX atraveacutes das filosofias de

Hegel Schopenhauer Nietzsche entre outros No entanto eacute preciso considerar segundo Pavis

(2015) que a essecircncia do traacutegico apresentada por filoacutesofos soacute eacute possiacutevel a partir do que foi

capturado por eles na trageacutedia em forma de poesia e representaccedilatildeo Dentre os filoacutesofos vamos

abordar um pouco da apreciaccedilatildeo que Nietzsche faz da trageacutedia por considerar que sua

contribuiccedilatildeo traz agrave tona o tensionamento essencial para compreender a forma do traacutegico

31 Noccedilotildees do traacutegico e da trageacutedia antiga

311 O conflito insoluacutevel

A partir de Pavis (2015) podemos entender que o conflito inevitaacutevel e insoluacutevel

proposto pela trageacutedia antiga se transforma ao longo da histoacuteria possibilitando dramas soluacuteveis

reflexotildees filosoacuteficas e o sentimento do absurdo da existecircncia temas propostos em outros

gecircneros teatrais Talvez o que a trageacutedia antiga tenha inaugurado no cenaacuterio teatral como

essecircncia do traacutegico que se relanccedila e se renova seja uma relaccedilatildeo intriacutenseca agrave fatalidade da

experiecircncia humana O traacutegico nos coloca diante da condiccedilatildeo humana dos limites de nossa

126

existecircncia da falta de garantia sobre o sucesso de nossas escolhas da dimensatildeo da fragilidade

e vulnerabilidade do humano

Diante da dimensatildeo insoluacutevel da existecircncia eacute possiacutevel adotar diferentes formas de se

posicionar Com as noccedilotildees do traacutegico podemos ler a vida cotidiana as relaccedilotildees humanas que

estabelecemos nos mais diferentes espaccedilos de conviacutevio que por muitas vezes resultam em

conflitos Tais conflitos bem poderiam ser tomados como insoluacuteveis mostrarem-se verdadeiros

impasses pois as pessoas que os formam podem ter propoacutesitos legiacutetimos No entanto o quanto

estamos comprometidos com nossas escolhas com os efeitos de nosso fazer sobre o outro

O cenaacuterio escolar eacute uma arena rica em conflitos e impasses ndash lhe eacute inerente como locus

da vida a presenccedila de choques embaraccedilos empecilhos subversotildees Nesse sentido com a

aproximaccedilatildeo do traacutegico queremos destacar elementos que possibilitem compor diferentes

equaccedilotildees para o desdobramento possiacutevel a partir do encontro com a dimensatildeo insoluacutevel da

(ex)sistecircncia refletindo sobre suas consequecircncias para a relaccedilatildeo dos atores escolares com a

praacutexis educativa

Segundo Rosenfield (2000) a trageacutedia antiga coloca em cena o impasse dando enredo

a situaccedilotildees em que natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel entre as posiccedilotildees dos personagens jaacute que suas

escolhas mesmo quando antagocircnicas podem se sustentar como legiacutetimas Nos enredos

traacutegicos assistimos aos percalccedilos de um heroacutei ou de uma heroiacutena cujo destino aparece como

cifrado jaacute desde o iniacutecio da peccedila Trata-se dos desdobramentos de um percurso de vida que

encerra opccedilotildees que bem poderiam ser nomeadas de ldquoescolha forccediladardquo tal como indicou Lacan

(19642008) ao renomear a ldquoescolha pela neuroserdquo proposta por Freud (19132014) como uma

escolha forccedilada entre a ldquobolsa ou a vidardquo Assim os impasses impostos pelo traacutegico colocaratildeo

o sujeito diante de embaraccedilos eacuteticos o que observou muito bem Lacan (1959-19601997) ao

retomar a Antiacutegona de Soacutefocles

Eacute a Antiacutegona que Lacan recorreraacute quando se ocupa da eacutetica da psicanaacutelise

estabelecendo-a sustentada em preceitos que de forma alguma respondem a uma obrigaccedilatildeo a

um ordenamento preacutevio ou a uma moral social Da eacutetica da psicanaacutelise decanta um uacutenico

princiacutepio que indica a necessidade do sujeito natildeo ceder de seu desejo Natildeo eacute demais relembrar

que a dimensatildeo do desejo pode um sem nuacutemero de vezes impelir o sujeito a atos que natildeo se

coadunam com sua vontade Nem sempre desejamos aquilo do que podemos dizer que temos

vontade E justo aiacute reside a complexidade desse preceito eacutetico Respondendo ao ditame

inconsciente o desejo natildeo eacute algo passiacutevel de controle ou antecipaccedilatildeo mas ainda assim de

127

acordo com os caminhos abertos pela psicanaacutelise requer que o sujeito natildeo recue diante de sua

emergecircncia e que possa se responsabilizar por suas consequecircncias

Lacan se interessaraacute por esquadrinhar o percurso de Antiacutegona que escolhe agrave revelia de

sua morte alinhar-se aos preceitos dos deuses em oposiccedilatildeo agrave lei da cidade da qual Creonte se

apresenta como guardiatildeo Como nos lembra Vorsatz (2013) a posiccedilatildeo tomada pelo heroacutei

traacutegico leva em consideraccedilatildeo a alteridade divina ldquoo heroacutei traacutegico determinado pelo campo real

dos deuses dele se extrai por intermeacutedio de seu atordquo (VORSATZ 2013 p 22) O heroacutei se

inscreve como tal atraveacutes de uma accedilatildeo que garante a presenccedila e a ordem divina Poreacutem sua

accedilatildeo implica sua proacutepria perda

O heroacutei alccedila uma posiccedilatildeo digna comovente admiraacutevel bela pois mesmo sabendo de

sua mortalidade de sua infelicidade de seu destino traacutegico natildeo cede de sua decisatildeo e eacute nesse

instante de natildeo ceder que ele atinge a potecircncia possiacutevel a um ser humano a responsabilidade

sobre suas escolhas pelas perdas que derivam dessas escolhas Tatildeo humano que parece divino

O Coro em Antiacutegona de Soacutefocles nos diz que ldquoHaacute muitas maravilhas mas nenhuma eacute tatildeo

maravilhosa quanto o homemrdquo (Antiacutegona vv 384-385)

As accedilotildees do heroacutei satildeo definidas por Aristoacuteteles ndash quem primeiro propocircs uma

sistematizaccedilatildeo da trageacutedia ndash como de caraacuteter elevado superiores agraves dos homens comuns Para

ele a trageacutedia eacute uma representaccedilatildeo dessas belas accedilotildees que suscitam no espectador o terror e a

piedade tendo como efeito a purificaccedilatildeo dessas emoccedilotildees Nesse sentido ao final do drama o

espectador experimenta um apaziguamento uma sensaccedilatildeo de que tudo retornou a uma suposta

ordem inicial ainda que o impasse tenha conduzido o heroacutei a um destino traacutegico sem

conciliaccedilatildeo possiacutevel entre as partes que formam o conflito

Aleacutem dos efeitos destacados por Aristoacuteteles o heroacutei traacutegico tem a funccedilatildeo de convidar o

expectador a habitar uma arena conflituosa em que os personagens se situam entre dois mundos

distintos o ritual antigo e o poliacutetico novo De acordo com Melo (2014) a qualidade desse

conflito eacute poliacutetica e coletiva e natildeo moralista e individual como podem se caracterizar muitos

conflitos que vivenciamos no mundo contemporacircneo Isso caracterizaria para ela um desafio

na representaccedilatildeo de trageacutedias antigas ao puacuteblico de hoje jaacute que o heroacutei natildeo tornaria seu impasse

como se pretende o impasse tambeacutem do outro mas seria simplesmente julgado como algueacutem

que tomou uma decisatildeo errada

A tensatildeo do conflito o compartilhamento da questatildeo eacutetica inerentes ao efeito traacutegico

da trageacutedia antiga tornam-se dificuldades para quem propotildee essa forma artiacutestica Para Melo

128

(2014) muito aleacutem dos afetos que a trageacutedia pretende suscitar segundo paracircmetros

aristoteacutelicos o que se impotildee como essencial eacute a dimensatildeo eacutetica na qual o heroacutei estaacute envolvido

a qual o dilacera e o transforma A funccedilatildeo da trageacutedia seria essa possibilitar um pensamento

eacutetico ao puacuteblico natildeo moral o que conduziria ao refinamento e agrave responsabilidade sobre as

escolhas eacuteticas em suas vivecircncias

De acordo com Rosenfield (2000) o paradoxo para onde o destino traacutegico conduz

desencadeia uma experiecircncia que natildeo cabe em qualquer polaridade ou dualismo A escolha que

os personagens estatildeo em vias de fazer natildeo eacute equacionaacutevel por um isso ou aquilo mas distende-

se com mais precisatildeo no diapasatildeo do ldquoisso e aquilordquo Na trageacutedia antiga vemos se desdobrar

uma narrativa que localiza um veacutertice impossiacutevel desenhando uma terceira margem para a

travessia do heroacutei

Dessa terceira margem partimos para outra palavra para um nome Sondamos um

conceito apresentado por Platatildeo em seu diaacutelogo Timeu trabalhado por Jacques Derrida Esta

palavra se chama khocircra

312 Khocircra

Na referida obra Platatildeo apresenta discussotildees sobre a origem do mundo a criaccedilatildeo da

natureza e dos seres humanos Entre as possibilidades um princiacutepio divino e um processo de

transformaccedilatildeo das coisas Platatildeo apresenta o conceito de khocircra importante para pensarmos a

respeito do traacutegico Jacques Derrida (1995) dedica um livro para discutir o diaacutelogo platocircnico e

amplia o entendimento acerca de khocircra para aleacutem das definiccedilotildees que a localizam e a

essencializam Enfatiza seu aspecto de indefiniccedilatildeo e as condiccedilotildees que a tornam uma terceira

via possiacutevel natildeo apenas um espaccedilo localizado entre dois pontos

De acordo com Derrida (1995) khocircra desafia a loacutegica de natildeo contradiccedilatildeo da filosofia

que precisa definir o que eacute e o que natildeo eacute um conceito justamente porque ela pode satisfazer

ambas as condiccedilotildees e nenhuma Sabe-se que khocircra estaacute entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel entre o

mito e o logos e eacute desta condiccedilatildeo de ocupar um entrelugar ou de vir a ser um entrelugar que

traccedilamos uma relaccedilatildeo com o traacutegico

No entanto com Derrida (1995) temos que khocircra acaba por situar embora natildeo se situe

entre esses dois lugares num movimento de oscilaccedilatildeo em que sua conceituaccedilatildeo escapa Derrida

nos diz que natildeo se trata de uma oscilaccedilatildeo como qualquer outra entre polos opostos jaacute que na

129

verdade khocircra natildeo eacute nem sensiacutevel nem inteligiacutevel ou pode ser ao mesmo tempo as duas

coisas isto e aquilo

Platatildeo apresenta a khocircra palavra feminina como lugar de passagem como regiatildeo e

apresenta metaacuteforas que descrevem o conceito como receptaacuteculo como matildee ama capaz de

acolher e transformar as coisas Entendemos com a criacutetica de Derrida que a diferenccedila que ele

busca acentuar estaacute na ideia de devir relacionada ao deslocamento metoniacutemico agrave condiccedilatildeo de

transformaccedilatildeo pela qual algo passa e natildeo o lugar em que isso eacute transformado natildeo o molde

mas a condiccedilatildeo de moldar

Khocircra natildeo eacute sobretudo natildeo eacute um suporte ou um sujeito que daria lugar recebendo ou concebendo ou ateacute mesmo se deixando conceber Como lhe denegar essa significaccedilatildeo essencial de receptaacuteculo jaacute que esse mesmo nome eacute dado por Platatildeo Eacute difiacutecil [] Talvez seja a partir de khocircra que comeccedilaremos a aprendecirc-lo ndash a recebecirc-lo a receber dela o que seu nome denomina A recebecirc-lo senatildeo a compreendecirc-lo a concebecirc-lo (DERRIDA 1995 p 20)

A relaccedilatildeo que se molda nesta breve paacutegina entre trageacutedia e khocircra ocorre no sentido de

construir as bordas tomar o traacutegico como efeito como um desenrolar ou entatildeo um devir de um

gesto de criaccedilatildeo

313 A funccedilatildeo do logos

Segundo Vorsatz (2013) a trageacutedia se desenvolve durante o seacuteculo V aC e se situa

num lugar entre tempo de transiccedilatildeo da histoacuteria da humanidade do mundo mitoloacutegico ao mundo

poliacutetico Diante disso os mitos misturam-se a uma tentativa de constituiccedilatildeo das leis na polis

grega

Com o surgimento da democracia e da filosofia no seacuteculo IV aC a relaccedilatildeo do ser

humano com a palavra sofre uma mudanccedila Em vez de estar referenciada a um saber outro

inacessiacutevel e intuitivo como na trageacutedia a funccedilatildeo do logos passa a se atribuir agrave razatildeo e ao

conhecimento acessiacuteveis agrave consciecircncia humana O ser humano sai de uma posiccedilatildeo de

imprevisibilidade de falta de garantia e alcanccedila uma posiccedilatildeo de domiacutenio com sua linguagem

A trageacutedia propotildee um modo singular de incidecircncia da palavra jaacute que esta acontece eacute

colocada em ato Tem um encontro com a accedilatildeo um acontecimento Para Vorsatz (2013) a

130

palavra aqui natildeo quer demonstrar alguma coisa ela mostra Nesse sentido os atos da trageacutedia

satildeo atos de linguagem

O que precisamente a palavra mostra em ato Ela mostra que haacute uma tentativa de unir

costurar linguagem e accedilatildeo pois haacute uma cisatildeo entre nossos desejos com as accedilotildees que tomamos

uma cisatildeo que hoje natildeo queremos ver os impasses eacuteticos entre o fazer e o falar na tentativa

traacutegica de coincidir a palavra e a accedilatildeo Desse modo Vorsatz (2013 p 40) afirma que ldquoa arte

traacutegica consistiria propriamente em tornar simultacircneo o que eacute sucessivo [] O resultado seria

uma accedilatildeo cuja causa eacute exterior ao heroacutei traacutegico mas em relaccedilatildeo agrave qual ele eacute inteiramente

responsaacutevelrdquo

Antiacutegona realiza suas accedilotildees a partir desse lugar onde os tempos se cruzam a aacutetē atraveacutes

da sua criaccedilatildeo com o significante ex nihilo Nesse sentido ela provoca um corte nas accedilotildees de

Creonte que se tecem numa sucessatildeo de fatos numa linha que natildeo consegue que natildeo pode

alccedilar o eixo onde se situa Antiacutegona sendo que para ele um traidor da paacutetria merece castigo e

quem ajudaacute-lo natildeo importando o motivo sofreraacute tambeacutem as consequecircncias Ao fim da peccedila

quando Creonte sofre tantas perdas aquilo que era mais importante para ele ele implora para

que aconteccedila sua morte buscando com suas palavras dominar a simultaneidade dominar o

ponto onde os tempos se cruzam e a resposta que ouve do corifeu eacute que sua morte eacute o futuro

cabe a ele cuidar do presente O que isso pode significar Natildeo haacute como querer controlar a

simultaneidade nem mesmo um rei como Creonte pode fazer isso Noacutes podemos traccedilar a linha

das sucessotildees apenas com nosso desejo Poreacutem o que podemos fazer como Antiacutegona eacute nos

responsabilizarmos pela causa de nossos atos e de nossa fala ainda que sobre ela natildeo possamos

exercer domiacutenio

Podemos entender a relaccedilatildeo disso com o conflito insoluacutevel que caracteriza a trageacutedia

natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel justamente porque natildeo podemos exercer domiacutenio sobre todos os

eventos e dele retirar uma verdade uma resposta ou uma moral da histoacuteria Podemos apenas

dizer enunciar que haacute e sempre haveraacute um aspecto do qual natildeo podemos saber sobre o qual

natildeo temos controle pois somos apenas mais um elemento de cena somos controlados por uma

forccedila inconsciente e nos cabe apenas estar cientes disso Assim natildeo haacute uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

entre Antiacutegona e Creonte mas a enunciaccedilatildeo de um jogo de forccedilas e de um conflito irresoluacutevel

Haacute outro importante aspecto que podemos abordar no que tange agrave simultaneidade de

eventos no tempo Eacute o que esse encontro de elementos que geram um acontecimento e

131

suspendem a cronologia pode suscitar a quem o vivencia ou a quem assiste a isso Trata-se do

Unheimliche

314 O estranho-familiar e a trageacutedia

O que pode causar um efeito de estranhamento a uma pessoa eacute a simultaneidade de fatos

de modo que se flagra envolvida numa trama de acontecimentos que natildeo eacute capaz de controlar

ou prever No andamento ndash sucessivo ndash da vida o sujeito pode se ver surpreendido pela

atualizaccedilatildeo de sentidos sobrepostos em camadas ndash simultacircneas ndash de tal forma com tal arranjo

cecircnico que isso faz com que ele experimente uma sensaccedilatildeo de unheimlich ao perceber por um

momento que algo estranho e tambeacutem familiar lhe ocorre interrompendo suas associaccedilotildees e

suas certezas Eacute o que pode ter sucedido a Creonte ao deparar-se com a morte de Hecircmon e

Euriacutedice seus preciosos bens ao se dar conta de que escolheu inconscientemente colocaacute-los

em perda Eacute o que pode ter ocorrido a Eacutedipo apoacutes buscar incansavelmente o assassino de Laio

e descobrir que fora ele mesmo ao desvelar seu terriacutevel destino de matar o pai e casar com a

matildee na tentativa de justamente fugir do que o oraacuteculo pregara

Pois bem o que eacute unheimlich Eacute um termo que qualifica alguma coisa ao mesmo tempo

como assustadora e familiar Em seu artigo de 1919 Das Unheimliche Freud se propotildee a

investigar essa temaacutetica que atribui ao campo da esteacutetica a partir do olhar da teoria

psicanaliacutetica e das contribuiccedilotildees da literatura Apresenta ao leitor uma investigaccedilatildeo em

dicionaacuterios em que busca o sentido da palavra no alematildeo e em outros idiomas Descobre que o

verbete unheimlich refere algo misterioso sobrenatural que desperta horriacutevel temor Para

Freud referindo-se a Schelling o estranho diz respeito a tudo aquilo que deveria permanecer

secreto oculto mas veio agrave luz (FREUD 19191969)

Freud acaba por descobrir em sua investigaccedilatildeo um encontro do unheimlich (estranho

assustador) com o heimlich (familiar) chegando a um ponto em que as palavras que num

primeiro momento parecem opostas antocircnimas tornam-se coincidentes sinocircnimas O

dicionaacuterio Wortebuch der Deutschen Sprache escrito por Daniel Sanders (1860) traz como

primeira definiccedilatildeo de heimlich familiar domeacutestico iacutentimo amistoso obsoleto alegre

disposto Na segunda definiccedilatildeo o termo eacute designado como oculto escondido dos outros dos

olhares dos outros encontro ou caso de amor lugar ou comportamento estranho No dicionaacuterio

de Grimm (1877) Freud encontra heimlich como aleacutem do tradicional significado de ldquofamiliarrdquo

132

definiccedilotildees como afastado dos olhos de estranhos secreto miacutestico alegoacuterico e por fim

inconsciente

Nesse sentido Freud (19191969) entende que a palavra que investigava unheimlich

podia ser uma subespeacutecie de heimlich colocando em questatildeo a concepccedilatildeo dos opostos Ou seja

elas podem ser compreendidas como termos e situaccedilotildees opostas uma a outra mas haveria um

ponto original de encontro ou reencontro entre as duas e eacute isso que o motivava a investigar ou

trazer agrave luz Acreditamos que isso pode ter relaccedilatildeo com a simultaneidade que a trageacutedia

apresenta

Freud recorre agrave literatura fantaacutestica para tentar entender em que circunstacircncia o familiar

e o assustador coincidem Visita o conto O Homem de Areia de E T A Hoffmann autor que

possui na visatildeo de Freud (19191969) grande criatividade para inventar situaccedilotildees e descobrir

elementos que fazem surgir a sensaccedilatildeo de estranheza No referido conto eacute o que acontece com

o aparecimento da personagem Oliacutempia (que na verdade eacute um autocircmato) pela qual o

protagonista Nathanael se apaixona O autor escreve seu conto de maneira que os leitores se

questionem sobre a humanidade de Oliacutempia fazendo-os sentir um estranhamento Contudo

Freud retira do mesmo texto outro fragmento que eacute tomado por ele como algo que merece mais

atenccedilatildeo do que a duacutevida em relaccedilatildeo agrave vida de Oliacutempia Esse fragmento se refere agrave ideia de ter

os olhos roubados que aparece ligada agrave figura do Homem de Areia

A fantasia que ocorre a Nathanael eacute para Freud o que realmente torna o conto estranho

A tese freudiana eacute pautada em sua teoria psicanaliacutetica do medo ou ameaccedila de castraccedilatildeo O medo

de ficar cego de perder os olhos eacute para Freud um substituto do medo de ser castrado medo este

recalcado mas que veio agrave luz por meio de um substituto metafoacuterico ndash medo de cegar

Nesse sentido o Homem de Areia eacute uma das figuraccedilotildees da castraccedilatildeo criatura de quem

se teme uma terriacutevel accedilatildeo A figura do Homem de Areia eacute temida porque este deseja arrancar

os olhos dos meninos que natildeo dormem dos meninos vigilantes que desejam ter o controle de

tudo para alimentar seus filhos que moram na Lua

Como dissemos na seccedilatildeo anterior para Lacan o neuroacutetico recua natildeo da castraccedilatildeo em si

mas da ameaccedila de castraccedilatildeo da ameaccedila de dispor de uma parte de si para propiciar a completude

do Outro Essa proposiccedilatildeo nos abre caminho para articular a sensaccedilatildeo terriacutevel do unheimlich agrave

anguacutestia tal como delineada por Lacan

O desejo que nos conduz a buscar objetos do mundo de modo a retirar deles uma parcela

de satisfaccedilatildeo estaacute velado e marcado por uma falta No entanto em certas circunstacircncias eacute

133

possiacutevel que algo venha a ocupar esse lugar da falta sem que o sujeito possa saber jaacute que se

trata de algo que estaacute em um lugar inapreensiacutevel

Nesse lugar da falta onde algo pode aparecer [] aqui se perfila uma relaccedilatildeo com a reserva libidinal ou seja com esse algo que natildeo se projeta natildeo se investe no niacutevel da imagem especular que eacute irredutiacutevel a ela em razatildeo de permanecer profundamente investido no niacutevel do proacuteprio corpo do narcisismo primaacuterio daquilo a que chamamos de auto-erotismo de um gozo autista (LACAN 1962-19632005 p 55)

Quando algo efetivamente aparece no lugar da falta irrompe a anguacutestia

[] a anguacutestia surge quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar que chamarei para me fazer entender de natural ou seja o lugar (-phi) que corresponde [] ao lugar ocupado [] pelo a do objeto do desejo Eu disse alguma coisa ndash entendam uma coisa qualquer (LACAN 1962-19632005 p 51)

Lacan nomeia essa alguma coisa que pode produzir anguacutestia do seguinte modo ldquoa

Unheimlichkeit eacute aquilo que aparece no lugar em que deveria estar o menos -phirdquo (LACAN

1962-19632005 p 51) No lugar em que a falta que possibilita a condiccedilatildeo desejante deveria

estar resguardada percebemos irromper alguma coisa seja qual for Qualquer coisa que ao

lugar assinalado pela falta venha lhe conferir uma imagem eacute inquietante Quando a proacutepria falta

falta o que resta a desejar A falta da falta desencadeia a anguacutestia

Retornando agraves contribuiccedilotildees freudianas o personagem que inspira a versatildeo do

complexo de Eacutedipo da peccedila Eacutedipo Rei de Soacutefocles cega-se para expiar sua culpa por ter se

casado com a matildee (FREUD 19001969) Nesse sentido a castraccedilatildeo que Eacutedipo se impotildee eacute no

olhar uma vez que eacute no niacutevel da imagem que algo lhe causa perturbaccedilatildeo O unheimlich parece

estar invariavelmente relacionado a uma questatildeo do olhar Nesse sentido o elemento que causa

estranhamento surge sempre enquadrado numa cena numa janela ou numa cortina que se abre

no recorte de visatildeo de onde vemos e somos vistos

Como comenta Lacan natildeo pode ser dito aparece de repente de suacutebito ldquoapresenta-se

atraveacutes de claraboiasrdquo (LACAN 1962-19632005 p 86) Eacute interessante pensar a partir desse

comentaacuterio de Lacan a relaccedilatildeo que se estabelece entre o heroacutei traacutegico e os deuses gregos

supondo que um vecirc o outro pela claraboia celeste O ato de Eacutedipo de se privar da visatildeo furando

os olhos cortando o eixo da relaccedilatildeo de ver-e-ser-visto eacute uma representaccedilatildeo do limite a que

chegou em sua vida da impossibilidade de seguir vivendo do mesmo modo apoacutes descobrir a

134

terriacutevel verdade Precisaria transformar alguma coisa perder uma parte de si para garantir da

ordem do mundo a supremacia divina

Haacute uma relaccedilatildeo que podemos averiguar entre a trilogia traacutegica de Soacutefocles e o conto

fantaacutestico comentado por Freud no ensaio sobre o estranho Embora de estilos narrativos e

eacutepocas bem diferentes e distantes haacute uma peculiar semelhanccedila A boneca Oliacutempia surge no

quadro ou ainda o estudante Nathanael a vecirc atraveacutes da janela e se apaixona por ela sem saber

que se trata de um autocircmato Quem teve a oportunidade de ler a histoacuteria sabe que o estudante

cai em estado de loucura quando descobre que misteriosamente seus olhos foram roubados e

estatildeo na boneca Oliacutempia Eacutedipo por sua vez apoacutes furar os olhos e sair dos limites de Tebas eacute

acompanhado por Antiacutegona que ocupa o lugar de seus olhos ou seja vecirc o mundo atraveacutes dela

A semelhanccedila que notamos eacute o fato de as duas figuras femininas estarem de certa forma cada

uma a seu modo com os olhos ou com o olhar das figuras masculinas de quem os olhos foram

arrancados ndash de forma metafoacuterica ou em realidade Ocupam esse ponto esse objeto olhar que

eacute compreendido por Lacan como uma das formas do objeto a que vinculam o sujeito ao Outro

Como vimos Freud (19001969) apresenta a teoria sobre Eacutedipo tomando a trageacutedia de

Soacutefocles como uma forma de simbolizaccedilatildeo dos desejos fundamentais de incesto e parriciacutedio

realizados por Eacutedipo que recebe de si mesmo o seu devido castigo Para ele o desejo humano

desdobra-se em diferentes vertentes chegando a um ponto de ambivalecircncia amor-oacutedio A forccedila

da proibiccedilatildeo universal que percorre diferentes culturas em relaccedilatildeo ao duplo desejo incestuoso

e parricida demonstra a forccedila tambeacutem existente nesses desejos Freud reconhece em Eacutedipo a

realizaccedilatildeo daquilo que supotildee a todos noacutes em fantasia o drama que vivenciamos em nossas

vidas na relaccedilatildeo com nossos pais e por isso essa trageacutedia em especiacutefico possui uma forccedila tatildeo

grande Apesar das diferenccedilas culturais entre o povo grego e noacutes as barreiras sociais e histoacutericas

satildeo ultrapassadas e com isso a trageacutedia Eacutedipo Rei apresenta uma estrutura antropoloacutegica

Pois bem de acordo com a teoria freudiana ao assistir agrave peccedila tomamos conhecimento

do conflito que guardamos no inconsciente o qual conseguimos atingir em uma experiecircncia de

reconhecimento por meio da arte No decorrer da trageacutedia nos identificamos com o heroacutei (no

caso Eacutedipo) que padece de um drama muito familiar mas ao realizar o desejo suscita em noacutes

o sentimento de temor por desvendar estranhamente nossas fantasias inconscientes Em funccedilatildeo

da experiecircncia de reconhecimento e estranheza do caraacuteter fictiacutecio da representaccedilatildeo traacutegica que

torna possiacutevel uma accedilatildeo impossiacutevel chegamos agrave purificaccedilatildeo das paixotildees que eacute tomada tambeacutem

como conhecimento sobre noacutes mesmos sobre a direccedilatildeo de nossos desejos

135

Rosenfield (2000) faz uma leitura da obra de Soacutefocles a partir do poeta Houmllderlin que

realiza uma traduccedilatildeo que manteacutem a densidade da letra sofocliana o que pode contribuir para o

entendimento do unheimlich implicado na arte traacutegica De acordo com Rosenfield (2000) a

abordagem houmllderliniana de Eacutedipo Rei ressalta o conflito entre duas diferentes formas de saber

Um saber que se mostra atraveacutes da investigaccedilatildeo do exame racional e do conhecimento que ele

gera e um saber de outra ordem profeacutetico oracular inacessiacutevel agrave razatildeo falho quando utilizado

na praacutetica

A trageacutedia de Eacutedipo comeccedila justamente aiacute ao natildeo diferenciar as formas de saber jaacute que

o heroacutei aspira agrave revelaccedilatildeo desse saber outro ao domiacutenio do saber profeacutetico que estaacute no limite

da existecircncia humana natildeo lhe pertence assim como o saber sobre o proacuteprio destino natildeo lhe

pertence Eacutedipo ao desconhecer a proacutepria origem eacute tomado pelo intenso desejo de alcanccedilar o

domiacutenio absoluto da proacutepria existecircncia o que se refere agrave ldquometaacutefora do desejo fundamentalmente

desmedido que caracteriza a condiccedilatildeo humanardquo (ROSENFIELD 2000 p 102)

Na tentativa de dominar e ao mesmo tempo negar aquilo que de alguma forma

(inconsciente) jaacute sabia o saber profeacutetico da existecircncia Eacutedipo deseja um saber racional e

consciente Eacute este iacutempeto por querer conhecer o assassino de Laio por promover uma busca

incessante atraacutes do culpado para impor-lhe as devidas penas devorando todo o conteuacutedo

profeacutetico como a Esfinge devora quem ignora a resposta para seu enigma que acaba por tornar

Eacutedipo presa objeto no quadro da anguacutestia da trageacutedia Ele se vecirc vendo ele se sabe sabendo

cena perturbadora e insuportaacutevel que o leva a se automutilar

A exatidatildeo a verdade a ciecircncia desautorizam o saber profeacutetico sobre o sujeito e ao fim

resta o estranhamento Na perspectiva de Houmllderlin supotildee Rosenfield (2000) Soacutefocles

apresenta a linguagem como dimensatildeo autocircnoma responsaacutevel por fazer brotar sentidos

independentes do domiacutenio racional de seus agentes O heroacutei se apresenta como errante que

perambula entre sentidos distantes do que a inteligecircncia ediacutepica pode identificar e pretender

Portanto o que visa compreender pelo vieacutes do racional natildeo eacute alcanccedilado pois o sentido eacute apenas

total e ateacute mesmo excessivo quando na aceitaccedilatildeo e no jogo com o saber das premoniccedilotildees e

oraacuteculos inacessiacuteveis a noacutes (ROSENFIELD 2000)

Os personagens da trageacutedia Eacutedipo Rei satildeo desse modo assombrados pela antecipaccedilatildeo

de algo terriacutevel que natildeo pode ser representado que natildeo cabe agrave simbolizaccedilatildeo Haacute algo inquietante

que se pronuncia atraveacutes de suas accedilotildees e de sua linguagem para aleacutem de suas intenccedilotildees

voluntaacuterias (ROSENFIELD 2000)

136

Feita esta apreciaccedilatildeo do unheimlich freudiano na trageacutedia seguimos com a esteacutetica de

Aristoacuteteles

32 A trageacutedia na Poeacutetica de Aristoacuteteles

Na Poeacutetica Aristoacuteteles apresenta o gecircnero traacutegico seu contexto de nascimento os

elementos que o compotildee suas caracteriacutesticas explanando o que seria em sua visatildeo o ideal de

trageacutedia Para o filoacutesofo grego esta arte eacute superior agrave epopeia ou seja aos poemas eacutepicos que

narram mitos e feitos heroicos como eacute o caso da Iliacuteada e da Odisseia atribuiacutedas ao poeta

Homero Aleacutem de contemplar todos os aspectos das narrativas eacutepicas como a meacutetrica o ritmo

o mito a trageacutedia consegue reunir ainda o espetaacuteculo e a muacutesica Nesse sentido conseguimos

entender a ecircnfase que atribui agrave trageacutedia em sua apreciaccedilatildeo de uma forma praacutetica do pensamento

humano uma forma poeacutetica Natildeo podemos contudo desconsiderar o fato consabido da perda

de uma importante parte do texto aristoteacutelico em que ele supostamente trabalharia as

especificidades da comeacutedia e sua relaccedilatildeo com a catarse

Ao fim do texto Aristoacuteteles justifica a superioridade da trageacutedia em relaccedilatildeo agrave epopeia

tambeacutem em funccedilatildeo da finalidade a trageacutedia seria a arte que melhor consegue atingir o propoacutesito

artiacutestico Na sexta parte da Poeacutetica o filoacutesofo define o gecircnero traacutegico e fala de sua finalidade

a qual seria a imitaccedilatildeo ou a representaccedilatildeo de accedilotildees

[] o elemento mais importante eacute a trama dos fatos pois a trageacutedia natildeo eacute imitaccedilatildeo dos homens mas de accedilotildees e de vida de felicidade [e infelicidade mas felicidade] e infelicidade reside na accedilatildeo e a proacutepria finalidade da vida eacute uma accedilatildeo natildeo uma qualidade Ora os homens possuem tal ou tal qualidade conformemente ao caraacuteter mas satildeo bem ou mal-aventurados pelas accedilotildees que praticam Daqui se segue que na trageacutedia natildeo agem as personagens para imitar caracteres mas assumem caracteres para efetuar certas accedilotildees por isso as accedilotildees e o mito constituem a finalidade da trageacutedia e a finalidade eacute de tudo o que mais importa (Poeacutetica VI 1450a 16-22)

A partir do que Aristoacuteteles define como finalidade da trageacutedia ou seja a representaccedilatildeo

de accedilotildees podemos tentar entender qual o seu interesse por essa temaacutetica no contexto de sua

obra Lacan (1959-19601997) ao apresentar seu programa da eacutetica da psicanaacutelise reporta-se

agrave eacutetica aristoteacutelica as accedilotildees do ser humano tendem a um bem e o bem uacuteltimo eacute a felicidade a

qual pode ser entendida como um bem supremo A essecircncia humana se expressa nessa busca

pela felicidade embora de acordo com Freud (19302012) natildeo haja nada na civilizaccedilatildeo que

137

garanta ao ser humano a realizaccedilatildeo do desejo de ser feliz Por sua vez Aristoacuteteles parecia

preocupar-se com isso de que modo o homem poderia encontrar o caminho para a felicidade

que garantia poderia a poacutelis grega dar agrave felicidade dos cidadatildeos Nesse sentido a trageacutedia

poderia cumprir uma funccedilatildeo social numa educaccedilatildeo para a vida feliz ao retratar accedilotildees que

conduzem da felicidade agrave infelicidade ou vice-versa Lembrando que se a finalidade da accedilatildeo

humana eacute um bem eacute a felicidade a finalidade da trageacutedia eacute tatildeo somente a accedilatildeo

Na Poliacutetica Aristoacuteteles fala de um ideal de vida em sociedade de uma educaccedilatildeo moral

para se atingir a felicidade Haacute uma retomada do efeito cataacutertico mas dessa vez o filoacutesofo o

menciona como suscitado pela muacutesica Essa arte eacute capaz de provocar emoccedilotildees distintas eacute capaz

de apaixonar comover e acalmar dependendo do modo como nos aproximamos dela Fala de

estilos e harmonias diferentes e de tipos de instrumentos

Como lembra Lacan a muacutesica assume um papel na trageacutedia o efeito cataacutertico de

purificar temor e piedade provocando um certo prazer e permitindo o retorno a um certo estado

normal um apaziguamento interno

Qual eacute entatildeo esse prazer ao qual se retorna depois de uma crise que se desenvolve numa outra dimensatildeo que num dado momento o ameaccedila pois sabe-se a que extremos uma muacutesica entusiasmadora pode levar Eacute aqui que a topologia que definimos do prazer como sendo a lei do que se desenrola aqueacutem do aparelho onde o temiacutevel centro de aspiraccedilotildees do desejo nos atrai permite-nos talvez convergir melhor do que se fez ateacute aqui com a intuiccedilatildeo aristoteacutelica (LACAN 1959-19601997 p 298)

Podemos entender que embora o desejo inconsciente do qual fala Freud o mesmo que

participa da formulaccedilatildeo da eacutetica da psicanaacutelise segundo Lacan natildeo faccedila parte do que Aristoacuteteles

pretendeu definir como eacutetica eacute possiacutevel encontraacute-lo no que o filoacutesofo chamou de prazer obtido

na experiecircncia da trageacutedia sistematizada na Poeacutetica Isso porque o que importa para Lacan na

eacutetica eacute a conformidade das accedilotildees com o desejo inconsciente a quem age ou seja o desejo

aparece em accedilatildeo mas dele o indiviacuteduo nada sabe

Da mesma forma para Aristoacuteteles o que importa na bela arte traacutegica eacute a accedilatildeo e ela eacute

quem define as caracteriacutesticas do heroacutei ou seja podemos entender com isso que a accedilatildeo antecipa

a posiccedilatildeo subjetiva natildeo o contraacuterio e essa noccedilatildeo estaacute em conformidade com a eacutetica da

psicanaacutelise No entanto se formos analisar o entendimento de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave sua

noccedilatildeo de eacutetica haacute um distanciamento do que fala sobre a trageacutedia pois o foco estaacute na moral e

nos bons costumes dos cidadatildeos conscientes de seus atos

138

Quanto agrave catarse ou seja agrave purificaccedilatildeo do temor e da piedade efeitos da trageacutedia cabem

algumas colocaccedilotildees De acordo com Aristoacuteteles ldquosuscitando o terror e a piedade [a trageacutedia]

tem por efeito a purificaccedilatildeo dessas emoccedilotildeesrdquo (Poeacutetica VI 1449b 25-28) Lacan nos fornece o

termo no original grego ldquodirsquo eleou kai phobou perainousa ten ton toiouton pathematon

kaacutetharsinrdquo (LACAN 1959-19601997 p 297) O psicanalista designa o termo kaacutetharsin ou

catarse como purificaccedilatildeo ou purgaccedilatildeo Na eacutepoca em que foi sugerida por Aristoacuteteles tal

expressatildeo era conhecida no campo meacutedico e se referia a eliminaccedilotildees do organismo com o

objetivo de retorno a um estado normal

No entanto Lacan reconhece que tal forma de nomear a meta da trageacutedia natildeo era

exclusiva do campo meacutedico jaacute que haacute estudiosos que a relacionam a uma purificaccedilatildeo ritual o

que teria mais proximidade com o proacuteprio surgimento da arte Qualquer conclusatildeo no sentido

de conhecer a origem do termo empregado por Aristoacuteteles eacute precipitada na medida em que haacute

uma parte da Poeacutetica perdida na qual se supotildee que o filoacutesofo teria trabalhado mais

detalhadamente sobre esse conceito

Destacamos a lembranccedila de Lacan da catarse na tradiccedilatildeo meacutedica termo utilizado

seacuteculos mais tarde na experiecircncia psicanaliacutetica com Freud e Breuer A catarse teria a funccedilatildeo

de uma descarga motora em ato de afetos que ficariam em suspensatildeo no aparelho psiacutequico

desligados do evento que os teria originado

Triacuteas (2010) nos ajuda a ampliar o entendimento do que seriam tais paixotildees humanas

O temor fobos em alguns casos traduzido para o portuguecircs como ldquoterrorrdquo designa um

sentimento de medo do espectador em relaccedilatildeo ao heroacutei traacutegico agraves suas accedilotildees e ao destino que

jaacute pode ser entrevisto agrave medida que se acompanha a linha de accedilatildeo O espectador sente um

impulso por se afastar da cena Ao mesmo tempo sente tambeacutem compaixatildeo piedade o eacuteleos

ao se identificar com o desejo do heroacutei ao admirar sua coragem seu iacutempeto sua forccedila

qualidades que pode ter como ideais das quais deseja se aproximar

Nesse sentido o jogo de tensotildees a ambiguidade de paixotildees que o percurso heroico

provoca nos espectadores lembra a duplicidade afetiva do unheimlich estranho e familiar

Ainda que a cena desperte inquietaccedilatildeo perturbaccedilatildeo afastamento haacute alguma trama

acontecendo aos poucos de cena a cena que prende que costura com a histoacuteria de vida de

cada um que assiste agrave trageacutedia que lecirc o que favorece a transmissatildeo da experiecircncia traacutegica o

reconhecimento do outro a noccedilatildeo de alteridade o entendimento de que aquele drama poderia

ocorrer a qualquer um de noacutes Assim se constroacutei uma forma de saber sobre a vida

139

Lacan (1959-19601997 p 300) ao estudar a peccedila Antiacutegona nos diz que ldquopelo

intermeacutedio da piedade e do temor somos purgados purificados de tudo o que eacute dessa ordem

Essa ordem podemos entatildeo reconhececirc-la ndash eacute a seacuterie do imaginaacuterio propriamente dita E somos

dela purgados pelo intermeacutedio de uma imagem dentre outrasrdquo Lacan nos explica que essa

imagem eacute a da beleza de Antiacutegona no lugar entre a vida e a morte A sua contribuiccedilatildeo a esse

entendimento da purgaccedilatildeo das paixotildees eacute quanto ao desejo articulado a elas Diz ele que na

travessia do lugar onde a heroiacutena fica presa ldquoo raio do desejo se reflete e ao mesmo tempo se

retrai chegando a nos dar esse efeito tatildeo singular o mais profundo que eacute o efeito do belo no

desejordquo (LACAN 1959-19601997 p 302) Nesse sentido eacute o desejo humano que estaacute

implicado nos efeitos de temor e piedade da trageacutedia

Aristoacuteteles define o desenlace como o periacuteodo da trageacutedia que se inicia com a ocorrecircncia

de uma mudanccedila de sorte e termina com o final da peccedila Para o filoacutesofo o desenlace traacutegico eacute

fruto do jogo entre os elementos presentes na histoacuteria desde o iniacutecio dispensando o uso de

novos recursos cecircnicos para propor o final da cena traacutegica O desenlace assim decorre emana

da trama traacutegica

Um dos recursos cecircnicos propostos na trageacutedia antiga era o deus ex machina Para

Aristoacuteteles sua intervenccedilatildeo natildeo deveria fazer parte da cena traacutegica pois as accedilotildees dos

personagens eram de certa forma alheias a esse recurso bem como o modo como

encaminhavam o desenlace do drama Acerca do deus ex machina Aristoacuteteles propotildee

Ao deus ex machina [] natildeo se deve recorrer senatildeo em acontecimentos que se passam fora do drama ou nos do passado anteriores aos que se desenrolam em cena ou nos que ao homem eacute vedado conhecer ou nos futuros que necessitam ser preditos ou prenunciados ndash pois que aos deuses atribuiacutemos noacutes o poder de tudo verem (Poeacutetica XV 1454b 1-7 grifos nossos)4

No entanto algumas peccedilas da trageacutedia antiga contrariando a esteacutetica aristoteacutelica

apresentada no seacuteculo IV aC apresentavam o deus ex machina como artifiacutecio para conferir

uma soluccedilatildeo aos conflitos traacutegicos um deus grego descia ao centro da accedilatildeo atraveacutes de uma

maquinaria a fim de dar um encaminhamento definitivo aos impasses do drama O recurso ao

deus ex machina proposto como elemento exterior ao enredo capaz de nele ingressar para

desenhar uma soluccedilatildeo derradeira aos conflitos contraria o que no dizer de Aristoacuteteles

caracteriza a trageacutedia

4 A referecircncia do texto de Aristoacuteteles segue a numeraccedilatildeo Bekker estabelecida pela Revised Oxford Translation

140

Entrevemos o nascedouro do decliacutenio da dimensatildeo traacutegica da experiecircncia humana

localizada em sua forma narrativa na esteacutetica da trageacutedia grega no surgimento de peccedilas que

apresentavam o deus ex machina como forma intervir sobre os impasses como foi o caso de

peccedilas do tragedioacutegrafo Euriacutepides Nietzsche (18721992) em seu trabalho O nascimento da

trageacutedia situa nesse dramaturgo o fim da trageacutedia antiga e elenca como um de seus motivos

a forma como propunha esse dispositivo cenograacutefico

Mas como um recurso cecircnico pode ser capaz de modificar a esteacutetica dramaacutetica o modo

de o humano representar o traacutegico De que forma um autor pode ser responsaacutevel pelo fim de

um gecircnero tatildeo aclamado em seu tempo Eacute importante questionar o contexto social grego quais

laccedilos sustentavam as relaccedilotildees entre os cidadatildeos quais mudanccedilas poliacuteticas e de pensamento

vivenciavam jaacute que isso pode ter contribuiacutedo para que Euriacutepides inovasse em sua forma de

interpretar os mitos de apresentar o que considerava essencial nas histoacuterias que escolhia colocar

em cena Ainda assim eacute importante considerar que se para Nietzsche Euriacutepides eacute responsaacutevel

pelo fim da trageacutedia claacutessica para Aristoacuteteles ele eacute o mais traacutegico dos poetas

Nesse sentido nas linhas que se seguem vamos conhecer como o filoacutesofo Nietzsche

compreende a trageacutedia de que modo em sua visatildeo o drama euripidiano acaba com esse gecircnero

traacutegico e como o uso deus ex machina estaacute implicado nessa mudanccedila Interessa a este trabalho

fazer tal apreciaccedilatildeo a fim de tentar compreender o modo como noacutes hoje lidamos com a

dimensatildeo do traacutegico no laccedilo social educativo visto que muitas vezes apelamos a uma soluccedilatildeo

desta natureza para intervir na escolarizaccedilatildeo de crianccedilas

33 A morte da trageacutedia

Em seu livro O nascimento da trageacutedia Nietzsche apresenta a origem desse gecircnero

dramaacutetico sua ascensatildeo e seu decliacutenio Chamamos esta parte da escrita de ldquomorte da trageacutediardquo

porque desejamos destacar de que modo o filoacutesofo entende a transiccedilatildeo da representaccedilatildeo claacutessica

para outras formas de representar a arte da cena Mas antes elencamos alguns pontos do texto

de Nietzsche que abordam a trageacutedia em vida

141

331 Apoliacutenio-dionisiacuteaco

O desenvolvimento da arte da trageacutedia depende da tensatildeo entre os opostos apoliacuteneo e

dionisiacuteaco os quais raramente encontram uma conciliaccedilatildeo O universo artiacutestico apoliacuteneo se

refere ao deus grego Apolo e representa o sonho humano projetado pela arte plaacutestica e o

universo artiacutestico dionisiacuteaco do deus grego Dioniacutesio refere-se agrave embriaguez da arte natildeo

figurada da muacutesica (NIETZSCHE 18721992)

Segundo o filoacutesofo alematildeo ldquoApolo na qualidade de deus dos poderes configuradores

eacute ao mesmo tempo o deus divinatoacuterio Ele segundo a raiz do nome o lsquoresplendentersquo a divindade

da luz reina tambeacutem sobre a bela aparecircncia do mundo interior da fantasiardquo (NIETZSCHE

18721992 p 29) A forccedila do deus da luz caracteriza o impulso apoliacuteneo ou seja a beleza da

aparecircncia das coisas a confianccedila e a tranquilidade diante de um mundo de tormentos a partir

do princiacutepio de individuaccedilatildeo Esse princiacutepio o autor o retira da filosofia de Schopenhauer e

pode se referir agrave crenccedila numa essecircncia uacutenica e indivisiacutevel que natildeo se deixa abalar Assim

[] tampouco deve faltar agrave imagem de Apolo aquela linha delicada que a imagem oniacuterica natildeo pode ultrapassar a fim de natildeo atuar de um modo patoloacutegico pois do contraacuterio a aparecircncia nos enganaria como realidade grosseira isto eacute aquela limitaccedilatildeo mensurada aquela liberdade em face das emoccedilotildees mais selvagens aquela sapiente tranquilidade do deus plasmador (NIETZSCHE 18721992 p 30)

Natildeo obstante quando a delicada linha se rompe cedendo ao oniacuterico um lugar para o

patoloacutegico para o abjeto ou seja quando o terror atinge o homem rompendo esse princiacutepio de

individuaccedilatildeo e um poderoso ecircxtase adveacutem com essa quebra eacute o impulso dionisiacuteaco que se

apodera do humano anaacutelogo a uma sensaccedilatildeo de embriaguez A forccedila de Dioniacutesio potildee o humano

a cantar e danccedilar a conciliar-se com os outros de forma a romper com os limites que

diferenciam os homens unindo-os num soacute O ser humano sente-se parte da natureza funde-se

a ela aos animais e plantas sente-se como um deus enlevado extasiado Como aponta

Nietzsche (18721992 p 31) no impulso dionisiacuteaco

O homem natildeo eacute mais artista tornou-se obra de arte a forccedila artiacutestica de toda a natureza para a deliciosa satisfaccedilatildeo do Uno-primordial revela-se aqui sob o frecircmito da embriaguez A argila mais nobre a mais preciosa pedra de maacutermore eacute aqui amassada e moldada []

142

Dessa forma habita no homem duas tendecircncias opostas regidas pelas forccedilas de Apolo e

Dioniacutesio do mesmo modo que o humano se sente impelido por criar coisas belas por afirmar

sua essecircncia como indiviacuteduo uacutenico lutando contra os tormentos da vida ele tambeacutem se deixa

moldar pelas matildeos do mundo chegando ao seu estado de argila pronto a ser fundido com a

natureza pronto a fazer-se obra de arte

De acordo com Nietzsche (18721992) a trageacutedia grega originou-se da conciliaccedilatildeo

desses dois impulsos A sua tese compartilhada por outros pensadores da eacutepoca eacute a de que suas

primeiras formas de expressatildeo apareceram com o coro do ditirambo um coro que se

diferenciava de qualquer outro pois as pessoas que cantavam e danccedilavam em honra a Dioniacutesio

suspendiam qualquer marca civilizatoacuteria qualquer funccedilatildeo social e encarnavam saacutetiros seres

sublimes e divinos que tinham a forma hiacutebrida homem-bode e que possuiacuteam uma visatildeo

desvelada da natureza por serem a representaccedilatildeo da forccedila do impulso do deus Dioniacutesio A forma

final do coro da trageacutedia eacute a imitaccedilatildeo artiacutestica desse protoacutetipo do qual surgiu tambeacutem a figura

do ator No periacuteodo mais antigo da trageacutedia Dioniacutesio natildeo estava presente em cena

verdadeiramente mas era representado pelo coro que deu origem agrave proacutepria trageacutedia

Esse coro contempla em sua visatildeo o seu senhor e mestre Dioniacutesio e eacute por isso eternamente o coro servente ele vecirc como este o deus padece e se glorifica e por isso ele proacuteprio natildeo atua Nessa posiccedilatildeo de absoluto servimento em face do deus o coro eacute pois literalmente a mais alta expressatildeo da natureza e profere como esta em seu entusiasmo sentenccedilas de oraacuteculo e de sabedoria como compadecente ele eacute ao mesmo tempo o saacutebio que do coraccedilatildeo do mundo enuncia a verdade (NIETZSCHE 18721992 p 61)

Nietzsche (18721992) aponta o quanto o coro dos primoacuterdios da arte traacutegica chamado

de espectador ideal difere-se dos espectadores de sua eacutepoca jaacute que esses natildeo habitam a cena

traacutegica tal como o coro apesar de este representar a multidatildeo o homem comum e simples O

coro sofre com o heroacutei traacutegico pois antevecirc e profere a sua ruiacutena Lacan (1959-19601997 p

305) aborda o papel do coro no seu comentaacuterio sobre Antiacutegona afirmando que ldquoo Coro satildeo as

pessoas que se emocionamrdquo O espectador comum para ele estaacute livre de qualquer preocupaccedilatildeo

ou comprometimento em se emocionar Eacute o coro quem assume o papel da emoccedilatildeo que se supotildee

ser expressa pelo povo que assiste agrave cena

A partir de Schiller Nietzsche afirma que o coro eacute como uma muralha viva que se coloca

sobre a realidade atroz jaacute que entrevecirc a vida de forma mais crua e real ldquomais completa do que

o homem civilizado que comumente julga ser a uacutenica realidaderdquo (NIETZSCHE 18721992 p

143

57) Ou seja eacute como se o coro formasse uma barreira de proteccedilatildeo aos olhos do homem

civilizado que natildeo pode sentir ou ver a olho nu a crueza de um mundo miacutetico que o antecedeu

E com isso as pessoas do coro conhecem uma verdade inacessiacutevel ao espectador comum talvez

porque tal acesso seja simplesmente impossiacutevel

Todos os elementos cecircnicos que surgem posteriormente ao coro revelando sua

diferenciaccedilatildeo e seus contrastes expressam a dimensatildeo apoliacutenea da aparecircncia das coisas O

apoliacuteneo aparece no diaacutelogo da trageacutedia de forma clara e bela E assim o coro tambeacutem participa

de um diaacutelogo a partir do qual pode transmitir ao puacuteblico aquilo que o vento sopra em seus

ouvidos aquilo que a luz irradia em seus olhos

Nietzsche faz especial alusatildeo agrave dimensatildeo apoliacutenea na trageacutedia de Soacutefocles pois a

linguagem do heroacutei eacute tatildeo clara e precisa que acaba por conduzir o espectador por um caminho

surpreendentemente curto ao mais iacutentimo e ao mais fundo do heroacutei O que isso significa Que

o heroacutei traacutegico consegue aproximar o espectador de seu desejo por meio do arranjo de suas

palavras sem dizecirc-lo Aquilo que surge na superfiacutecie a aparecircncia a imagem luminosa do heroacutei

pode se revelar como resultante de um olhar que mira o mais fundo do ser como o autor mostra

na seguinte passagem

Quando numa tentativa eneacutergica de fitar de frente o Sol nos desviamos ofuscados surgem diante dos olhos como uma espeacutecie de remeacutedio manchas escuras inversamente as luminosas apariccedilotildees dos heroacuteis de Soacutefocles em suma o apoliacuteneo da maacutescara satildeo produtos necessaacuterios de um olhar no que haacute de mais iacutentimo e horroroso na natureza como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite medonha (NIETZSCHE 18721992 p 63)

A noite medonha a dimensatildeo dionisiacuteaca da trageacutedia eacute revestida pela luz apoliacutenea

Soacutefocles parece oferecer no apoliacuteneo de sua trageacutedia a beleza de sua obra Bela agrave medida do

horror que ela oculta

E o que ela oculta eacute o proacuteprio deus Dioniacutesio sob a maacutescara de tantos outros heroacuteis que

representam o seu sofrimento E de que sofrem os heroacuteis Nietzsche fala sobre Eacutedipo Em Eacutedipo

Rei em que busca investigar o assassino de Laio seu pai bioloacutegico Eacutedipo ignora que ele mesmo

o fizera e que se casara com Jocasta sua matildee ele atenta contra a natureza ao decifrar o enigma

da Esfinge ao ousar conhecer segredos da natureza Em funccedilatildeo disso destroacutei aquilo que deve

ser sua proacutepria natureza revelando que havia cometido os crimes de parriciacutedio e incesto

144

Haacute uma antiquiacutessima crenccedila popular persa sobretudo segundo a qual um saacutebio mago soacute podia nascer do incesto o que noacutes em relaccedilatildeo a Eacutedipo o decifrador do enigma e desposante de sua matildee devemos interpretar imediatamente no sentido de que laacute onde por meio das forccedilas divinatoacuterias e maacutegicas foi quebrado o sortileacutegio do presente e do futuro a riacutegida lei da individuaccedilatildeo e mesmo o encanto proacuteprio da natureza laacute deve ter-se antecipado como causa primordial uma monstruosa transgressatildeo da natureza ndash como era ali o incesto pois como se poderia forccedilar a natureza a entregar seus segredos senatildeo resistindo-lhe vitoriosamente isto eacute atraveacutes do inatural Este conhecimento eu o vejo cunhado naquela espantosa triacuteade do destino edipiano aquele que decifra o enigma da natureza ndash essa esfinge biforme ndash ele mesmo tem de romper tambeacutem como assassino do pai e esposo da matildee as mais sagradas ordens da natureza (NIETZSCHE 18721992 p 65)

Eacute possiacutevel dizer que desse rompimento adveacutem o dionisiacuteaco o saber dionisiacuteaco A partir

do que Nietzsche propotildee sobre Eacutedipo o que podemos pensar sobre outra trageacutedia de Soacutefocles

que compotildee a trilogia tebana Antiacutegona em tal armadilha do inatural

A princesa de Tebas eacute filha de Eacutedipo e de Jocasta filha de seu proacuteprio irmatildeo materno

filha de sua proacutepria avoacute paterna ou seja fruto de uma monstruosa genealogia que deve honrar

com sua proacutepria morte Sua destruiccedilatildeo eacute o preccedilo que escolhe pagar por ser ela mesma

transgressatildeo da natureza Parece-nos que viver em seu caso eacute violar o natural Paradoxalmente

ao escolher quando morrer ou seja ao natildeo deixar que sua vida flua em direccedilatildeo ao matrimocircnio

e agrave maternidade a jovem Antiacutegona pode tambeacutem transgredir a natureza

Antiacutegona porta em si mesma um antinatural e natildeo um princiacutepio natural suposto pelos

gregos O fato de ter nascido de existir resistir eacute ultrapassar um limite humano a aacutetē lugar de

seu destino final para onde caminha seu desejo Origem e destino convergem em Antiacutegona Ao

mesmo tempo que paga o preccedilo de ser um crime ela o comete

Qual o crime contra a natureza que ela mesma comete para aleacutem do crime contra o

interdito de enterrar o irmatildeo Talvez o de saber ser uma morta-viva Rumo agrave sua morte a

proacutepria Antiacutegona questiona ldquoQue mandamentos transgredi das divindadesrdquo (Antiacutegona v

1027) Talvez o mandamento de preservar a ignoracircncia sobre o proacuteprio destino pois a heroiacutena

o sabe opta por morrer de causas natildeo naturais impede que a natureza haja em seu corpo

permitindo casar ter filhos envelhecer Antiacutegona antecipa sua morte morada final de todos

noacutes De acordo com Nietzsche (18721992 p 65) ldquoa sabedoria e precisamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute um horror antinatural que aquele que por seu saber precipita a natureza no abismo

da destruiccedilatildeo haacute de experimentar tambeacutem em si proacuteprio a desintegraccedilatildeo da naturezardquo

145

O saber sobre a proacutepria natureza deve permanecer intacto como um eterno misteacuterio

enigma a ser desvendado durante uma vida mas que de fato nunca pode ser

Assim Antiacutegona natildeo age de acordo com a mesma natureza suposta nos demais cidadatildeos

tebanos O rei Creonte a acusa de agir de modo diferente do povo ao recusar seguir a lei que

impocircs agrave cidade ou seja as palavras de interdito contra aquele que ousar enterrar o traidor do

reino Polinices Antiacutegona eacute chamada de desumana Para o povo de Tebas natureza e

humanidade satildeo valores ausentes na heroiacutena

Uma questatildeo que se coloca agora e que vale uma breve discussatildeo eacute sobre o natural no

homem Existe uma natureza especificamente humana que se violada torna o homem

antinatural digno de destruiccedilatildeo Estaacute na natureza a humanidade do homem O que torna o

homem ser humano A filosofia desde a Antiguidade buscou responder qual seria o proacuteprio

do humano Natildeo eacute o propoacutesito deste trabalho discorrer sobre as mais variadas teorias que

buscam dar conta dessa inquietante questatildeo que por si soacute nos mobiliza Mas buscamos olhaacute-la

a partir do entendimento da psicanaacutelise A escolha por pensar a partir desse campo eacute em funccedilatildeo

da abertura que este saber oferece ao conhecimento que concerne agrave trageacutedia antiga ou seja agrave

sua relaccedilatildeo com a palavra e com o fazer

Num artigo em que aborda o brincar no iniacutecio da escolarizaccedilatildeo como um exerciacutecio que

permite agrave crianccedila a entrada no universo do simboacutelico Moschen (2011) argumenta que o que

podemos chamar de humano dificilmente encontra suas bases na natureza A autora explica que

Qualquer raciociacutenio que se desdobre reivindicando sua legitimidade numa suposta Natureza dos homens seraacute facilmente derrubado por uma simples reflexatildeo histoacuterica capaz de nos mostrar que os homens se produzem como homens quando satildeo assujeitados agraves condiccedilotildees de uma ancestralidade que configura um campo de possibilidades e de limitaccedilotildees para a sua realizaccedilatildeo (MOSCHEN 2011 p 91)

O ser humano natildeo parece ter em si um coacutedigo de conduta natural para ser o que eacute Sua

fisiologia e sua geneacutetica podem importar para determinar questotildees condizentes ao organismo

mas natildeo agrave humanidade Ele se torna humano ao se submeter agravequilo que o precede aos seus

ancestrais e a uma linha que separa seus limites e possibilidades Mas como o homem pode

acessar esse legado Como ele se sujeita a uma ancestralidade De acordo com Moschen

(2011) os homens se tornam humanos quando satildeo assim chamados por outros seres humanos

antecessores Somente eacute possiacutevel a estes dar as boas-vindas aos pequenos homens que chegam

ao mundo nomeando seus iguais porque eles mesmos se submetem agrave linguagem Com efeito

146

A humanizaccedilatildeo do organismo vai se dar no entre-lugares de um assujeitamento agraves condiccedilotildees histoacutericas transmitidas pelos adultos proacuteximos agraves crianccedilas e da tomada de posiccedilatildeo do pequeno frente a esses determinantes que lhe chegam vindos de uma ancestralidade que ele natildeo domina (MOSCHEN 2011 p 91)

Ser humano eacute a possibilidade de ir aleacutem da condiccedilatildeo de organismo atraveacutes da

transmissatildeo da ancestralidade feita pelos adultos ou seja por aqueles jaacute submetidos agrave

linguagem e atraveacutes da postura diante de tal transmissatildeo o que ocorre no entre-lugar onde

emerge o sujeito Parece natildeo haver nada na natureza que defenda o caraacuteter humano do homem

A humanidade se encontra nos contornos simboacutelicos que a definem que para Antiacutegona

estatildeo num ponto mais aleacutem em relaccedilatildeo agraves leis compartilhadas pelos tebanos Ela o ultrapassa

com o seu desejo de morte sustentando as origens de sua famiacutelia a aacutetē familiar

Eacute nesse sentido que a princesa de Tebas sofre o julgamento dos cidadatildeos tebanos pois

como seres humanos que satildeo natildeo a reconhecem como parte de um legado compartilhado entre

eles Para os tebanos Antiacutegona eacute cruel e inflexiacutevel caracteriacutesticas que situam uma

impossibilidade de tomaacute-la como pertencente ao que os humaniza Mas eacute justamente aiacute que

Antiacutegona parece fundar uma humanidade a sua no firme terreno de sua eacutetica que a faz honrar

a ancestralidade que lhe foi transmitida ao enterrar o irmatildeo ao mesmo tempo que torna

manifesta sua posiccedilatildeo subjetiva a de ser uma morta-viva a de querer morrer

O que assombra a cidade de Tebas talvez seja o pano de fundo de suas accedilotildees a dimensatildeo

dionisiacuteaca escondida em sua linguagem apoliacutenea a sua plena convicccedilatildeo do que deseja morrer

sem desvios sem enganos ou ilusotildees uma linha reta traccedilada de seus peacutes ateacute o tuacutemulo ou seja

manifestaccedilatildeo plena da pulsatildeo de morte Assusta a sua plena ldquoconsciecircnciardquo demonstrada em

accedilatildeo sobre seu proacuteprio destino tanto que a chamam de desumana Talvez seja mesmo

desumana por sustentar seu desejo para aleacutem dos limites simboacutelicos que contornam a vida na

polis grega a vida compartilhada com os outros inscritos em uma cultura Talvez seja ldquohumana

demaisrdquo atribuiccedilatildeo dos heroacuteis e heroiacutenas caracterizados com as melhores disposiccedilotildees dos

homens e mulheres conforme Aristoacuteteles considerando que dentre tais disposiccedilotildees esteja a

fidelidade a seu proacuteprio desejo e agrave luta para sua realizaccedilatildeo

Nos entrelugares da servidatildeo agrave ancestralidade e da posiccedilatildeo diante do legado rumo ao

leito de morte viva e humana o que ela faz eacute se lamentar Um lamento apoliacuteneo que expressa

147

sorrateiramente o horror dionisiacuteaco Antiacutegona nasce como sujeito autocircnomos num espaccedilo curto

de tempo na trageacutedia encabeccedilada por seu nome proacuteprio

[] um leito nupcial jamais terei nem ouvirei hinos de bodas nem sentirei as alegrias conjugais nem filhos amamentarei hoje sozinha sem nenhum amigo parto ndash ai infeliz de mim ndash ainda viva para onde os mortos moram (Antiacutegona vv 1021-1026)

Tecendo em belo discurso apoliacuteneo Antiacutegona expressa o dionisiacuteaco colocando em cena

o tensionamento das duas forccedilas que formam o que eacute essencial na trageacutedia na visatildeo de

Nietzsche como heroiacutena legiacutetima do aclamado Soacutefocles Faccedilamos agora algumas

consideraccedilotildees sobre Euriacutepides no que tange agraves duas dimensotildees traacutegicas

332 Euriacutepides por Nietzsche

Nietzsche (18721992) aponta que Euriacutepides foi responsaacutevel por excluir o dionisiacuteaco da

trageacutedia grega e com isso responsaacutevel tambeacutem pela morte do gecircnero que dependia de uma

conciliaccedilatildeo possiacutevel entre os impulsos de Apolo e os de Dioniacutesio Em suas palavras

Excisar da trageacutedia aquele elemento dionisiacuteaco originaacuterio e onipotente e voltar a construiacute-la de novo puramente sobre uma arte uma moral e uma visatildeo do mundo natildeo dionisiacuteacas ndash tal eacute a tendecircncia de Euriacutepides que agora se nos revela em luz meridiana (NIETZSCHE 18721992 p 78)

Como seria uma arte uma moral e uma visatildeo de mundo natildeo dionisiacuteacas Um aspecto

apontado por Nietzsche (18721992) diz respeito ao lugar conferido por Euriacutepides ao homem

comum em suas trageacutedias ele que colocou no centro da cena a imitaccedilatildeo do cotidiano com todas

as caracteriacutesticas e psicologismos dos personagens o que foi muito caro ao surgimento da

comeacutedia nova Poreacutem isso demarcou o fim da trageacutedia antiga De acordo com Nietzsche pelo

intermeacutedio de Euriacutepides

[] o homem da vida cotidiana deixou o acircmbito dos espectadores e abriu caminho ateacute o palco o espelho em que antes apenas os traccedilos grandes e audazes chegavam agrave expressatildeo mostrou agora aquela desagradaacutevel exatidatildeo

148

que tambeacutem reproduz conscienciosamente as linhas mal traccediladas na natureza (NIETZSCHE 18721992 p 73-74)

Para sustentar a realidade dionisiacuteaca na trageacutedia eacute preciso manter uma certa imprecisatildeo

uma atmosfera enigmaacutetica uma inexatidatildeo da imitaccedilatildeo dos personagens e natildeo expor na

superfiacutecie da fala e das accedilotildees um personagem comum que poderia ser visto todos os dias por

qualquer um desvelado na vida cotidiana

Um certo enigma um inatingiacutevel um natildeo clarificaacutevel do homem deveria ser mantido

como a forccedila do drama decorrente da sua origem em Dioniacutesio ou seja num mundo que natildeo

conhece fronteiras entre os seres Era justamente aiacute que residia a potecircncia dos dramas

inventados pelos tragedioacutegrafos antigos

O filoacutesofo alematildeo alega que Euriacutepides como um pensador buscou estudar e

compreender a estrutura das obras-primas da trageacutedia de seus antecessores Eacutesquilo e Soacutefocles

mas se deparou com muitas incertezas ldquo[] percebeu alguma coisa de incomensuraacutevel em cada

traccedilo e em cada linha uma certa precisatildeo enganadora e ao mesmo tempo uma profundidade

enigmaacutetica sim uma infinitude do fundordquo (NIETZSCHE 18721992 p 77)

Ora o que eacute essa coisa incomensuraacutevel essa infinitude essa profundidade intrigante a

Euriacutepides senatildeo a percepccedilatildeo da proacutepria dimensatildeo dionisiacuteaca O autor buscou dar forma

controlar domesticar algo que resiste agrave domesticaccedilatildeo que deve permanecer ali borrado no

desenho do quadro da cena traacutegica Como ele natildeo pocircde explicar racionalmente tal sensaccedilatildeo

tratou-a como exagerada como desnecessaacuteria como inimiga da criaccedilatildeo e resolveu eliminar de

suas obras traacutegicas os arranjos atraveacutes dos quais o dionisiacuteaco parecia ganhar expressatildeo

Ao abordar o espiacuterito traacutegico presente na traduccedilatildeo de Antiacutegona de Soacutefocles feita pelo

poeta alematildeo Holderlin Rosenfield (2000) enfatiza essa dupla dimensatildeo com a qual a trageacutedia

se fazia A poesia se articula com a dimensatildeo do cognosciacutevel da experiecircncia empiacuterica e com

a apresentaccedilatildeo poeacutetica ela mesma o que faz surgir ldquoum movimento cujo ponto de fuga reside

aleacutem das determinaccedilotildees numa dimensatildeo radicalmente irredutiacutevel aos conceitos do

entendimentordquo (ROSENFIELD 2000 p 167)

Segundo a autora o que resulta desse jogo do cognosciacutevel com o poeacutetico eacute uma

sabedoria de outra ordem que faz marcas ao conhecimento comum situando um limite do nosso

discurso em poder transpor essa sabedoria a um dizer Ela permanece como um misteacuterio que

encanta e inquieta que natildeo se deixa dominar pela compreensatildeo Talvez seja justamente esse

149

ponto inalcanccedilaacutevel pela razatildeo essa sabedoria obscura causa do belo da experiecircncia que

Euriacutepides desejou excluir de seus dramas

Assim Nietzsche (18721992 p 77) nos revela os incocircmodos de Euriacutepides em relaccedilatildeo

agrave trageacutedia dos consagrados Eacutesquilo e Soacutefocles

[] quatildeo duvidosa permanecia para ele a soluccedilatildeo dos problemas eacuteticos Quatildeo questionaacutevel o tratamento dos mitos Quatildeo desigual a reparticcedilatildeo de ventura e desventura Mesmo na linguagem da trageacutedia antiga havia para ele muita coisa de ofensiva ao menos enigmaacutetica em especial achava haver demasiada pompa para relaccedilotildees muito comuns demasiados tropos e monstruosidades para a simplicidade dos caracteres Assim cismando intranquilo ficava sentado no teatro e ele o espectador confessava a si mesmo que natildeo entendia seus grandes predecessores

A trageacutedia de Euriacutepides Medeia talvez uma de suas obras mais instigantes que nos

propomos a estudar na sequecircncia deste trabalho contempla as caracteriacutesticas citadas pelo

filoacutesofo alematildeo Podemos nos perguntar antes de uma apreciaccedilatildeo mais pontual de sua Medeia

por que Euriacutepides natildeo compartilhava da esteacutetica de seus predecessores Podemos

responsabilizaacute-lo pela derrocada da trageacutedia antiga pelo fim da representaccedilatildeo dos mitos ou

entatildeo tentar entender que talvez expressasse atraveacutes da arte as mudanccedilas poliacuteticas e filosoacuteficas

de seu tempo numa Atenas que abrigava o movimento sofista e as condiccedilotildees para a constituiccedilatildeo

da democracia numa cidade ideal

De acordo com Vorsatz (2013) a trageacutedia antiga situa-se entre dois momentos histoacutericos

fundamentais ou seja divide um tempo miacutetico e um tempo poliacutetico sucede o tempo do ideal

homeacuterico e antecede o tempo do ideal filosoacutefico A trageacutedia claacutessica eacute expressatildeo de um mundo

em transformaccedilatildeo encenaccedilatildeo da genuiacutena experiecircncia humana num mundo agrave mercecirc da vontade

divina recortado com a insuficiecircncia da palavra do heroacutei no jogo cantado e contado pelo coro

Nesse sentido Euriacutepides ao viver em tal periacuteodo de transiccedilatildeo pode ter pertencido ao

grupo dos que aspiravam a uma inovaccedilatildeo das ideias uma nova forma de interpretar os mitos a

escuta de questotildees humanas sob um acircngulo diferente da estrutura enigmaacutetica dos poemas

homeacutericos e da tradiccedilatildeo oral Talvez mais interessado em explorar as pequenezas dos

sentimentos e as sutilezas do pensamento como um contraponto a feitos admiraacuteveis e

grandiosos Hoje Euriacutepides eacute considerado junto com Eacutesquilo e Soacutefocles um dos principais

tragedioacutegrafos da Greacutecia Antiga e ainda que sua esteacutetica seja questionada pelos ideais de beleza

aristoteacutelicos eacute considerado por Aristoacuteteles o mais traacutegico dos poetas traacutegicos

150

Dessa forma indagamos sem buscar suas bases no terreno dionisiacuteaco onde se funda o

drama de Euriacutepides Como pode restar o elemento apoliacuteneo sem o seu contraponto Para

Nietzsche (18721992) o tragedioacutegrafo propotildee uma nova tensatildeo entre dimensotildees opostas uma

tensatildeo natildeo artiacutestica mas realista no lugar do apoliacuteneo versus dionisiacuteaco Euriacutepides parece

inaugurar a frieza do pensamento versus o fervor do afeto conflito que encontramos em

Medeia

Outro modo de ver a proposta de Euriacutepides segundo o filoacutesofo alematildeo refere-se ao que

ele chamou de ldquosocratismo esteacuteticordquo (NIETZSCHE 18721992 p 81) Na luta pela expulsatildeo

do inquietante impulso dionisiacuteaco da trageacutedia o que se ergue contra ele eacute o pensamento

socraacutetico que visa colocar tudo o que existe sob o exame do racional do inteligiacutevel Aquilo

que passar por tal provaccedilatildeo eacute considerado bom Do mesmo modo Euriacutepides acreditou que a

trageacutedia deveria passar por um exame da inteligecircncia O que resultasse desse crivo da razatildeo

seria belo Ou seja para ele o que natildeo era compreensiacutevel justificaacutevel pela racionalidade

tampouco tinha beleza

O filoacutesofo alematildeo aborda a relaccedilatildeo entre Soacutecrates e Euriacutepides e a importacircncia dessa

relaccedilatildeo para a esteacutetica proposta pelo tragedioacutegrafo Em Atenas circulava a ideia de que Soacutecrates

ajudava Euriacutepides na escrita uma lenda contada por aqueles mais saudosos de tempos passados

que sentiam os valores tradicionais ruiacuterem pelos sofistas que eram os representantes de um

pensamento racional que buscavam destituir os mitos do discurso dos cidadatildeos Na visatildeo

desses cidadatildeos Soacutecrates poderia sustentar uma linha filosoacutefica que preservava as tradiccedilotildees e

utilizava a razatildeo pelo bem em nome do saber e da consciecircncia Sem eliminar os mitos buscava

apenas trazecirc-los agrave luz da razatildeo e do conhecimento Nesse sentido Soacutecrates que natildeo apreciava

a arte traacutegica costumava assistir apenas agraves peccedilas de Euriacutepides em funccedilatildeo do questionamento e

tratamento racional que imprimia aos mitos

Nietzsche (18721992) destaca uma importante passagem da vida de Soacutecrates

fundamental para o surgimento de sua filosofia para sua circulaccedilatildeo pela via puacuteblica O oraacuteculo

de Delfos oraacuteculo do deus Apolo diz a um amigo de Soacutecrates que ele eacute o mais saacutebio dentre os

saacutebios Quando o amigo conta as palavras do oraacuteculo o filoacutesofo volta sua vida agrave busca de

algueacutem mais dotado de sabedoria questionando conceitos e valores construiacutedos por saacutebios

reconhecidos na cidade professores e sofistas No entanto a cada encontro que tecia no intuito

de refutar tal prenuacutencio Soacutecrates colocava seu interlocutor diante da contradiccedilatildeo de seus

pensamentos provando a si mesmo o acerto do oraacuteculo Passou a buscar a verdade desejava

151

fazecirc-la brotar vir ao mundo atraveacutes dos diaacutelogos que tecia com os outros Assim tornou-se ele

mesmo um saacutebio admirado por muitos desprezado por outros tantos

Tal ocasiatildeo da vida de Soacutecrates eacute relatada num texto de Platatildeo Apologia de Soacutecrates o

qual apresenta a defesa do enigmaacutetico saacutebio condenado agrave morte hoje considerado um dos

fundadores da filosofia ocidental Mas Nietzsche conta ainda e eacute isso que desejamos frisar que

se o primeiro saacutebio eacute Soacutecrates o segundo eacute Euriacutepides No entanto Euriacutepides natildeo alcanccedilou a

notoriedade de seu suposto mestre

Do mesmo modo Lacan (1960-19611992) menciona Euriacutepides no seminaacuterio A

transferecircncia Numa das passagens situa o tragedioacutegrafo como um saacutebio nada mal lembrando

tambeacutem as prediccedilotildees do oraacuteculo poreacutem Soacutecrates eacute o mais saacutebio dentre todos Essa questatildeo (a

de Soacutecrates ser o mais saacutebio) Lacan comenta logo na apresentaccedilatildeo de seu seminaacuterio como a

questatildeo que Soacutecrates sustentou durante toda sua vida colocando o filoacutesofo na origem da mais

longa transferecircncia da histoacuteria jaacute que a sustentou como verdade ateacute o fim da vida

Soacutecrates antes de morrer concorda com deus Apolo sim ele era o mais saacutebio por

duvidar de sua sabedoria por saber que nada sabia o que o diferenciava de outros sofistas que

se julgavam saacutebios a priori Isso fazia com que defendessem qualquer ideia como verdade

buscando argumentos racionais para isso Faziam mal-uso da razatildeo Ao ser julgado como

destruidor dos mitos por desprezar os deuses Soacutecrates diz que o proacuteprio deus Apolo o

considerava o mais saacutebio e que apenas ele Apolo saberia se sua condenaccedilatildeo agrave morte era justa

ou injusta

Em decorrecircncia da influecircncia socraacutetica em suas obras os mitos histoacuterias compartilhadas

entre o povo grego que davam origem aos dramas traacutegicos para Euriacutepides deveriam ser bem

justificados sem deixar espaccedilos vazios ou margem para duacutevidas Nesse sentido natildeo havia uma

supressatildeo dos mitos ou uma supressatildeo da presenccedila divina em favor da razatildeo humana A

diferenccedila consistia em integrar a mitologia agrave racionalidade engolfaacute-la Para Vieira (2010) eacute

feitio de Euriacutepides construir accedilotildees com propoacutesitos inovadores que para ele beiram o absurdo

em vez de tomar tais accedilotildees como decorrentes do mito em que os deuses interferem de modo

enigmaacutetico sobre o ser humano Sobre a diferenccedila de Euriacutepides na trageacutedia Nietzsche

(18721992 p 72) o critica por tecirc-la eliminado e o indaga pessoalmente

E assim como o mito morreu para ti tambeacutem morreu para ti o gecircnio da muacutesica e mesmo se saqueaste com presas aacutevidas todos os jardins da muacutesica ainda assim soacute pudeste chegar a uma arremedada muacutesica mascarada E porque abandonaste Dioniacutesio por isso Apolo tambeacutem te abandonou afugenta todas

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as paixotildees de seu covil e as conjura em teu ciacuterculo afila e aguccedila como se deve uma dialeacutetica sofiacutestica para as falas de teus heroacuteis ndash tambeacutem os teus heroacuteis tecircm paixotildees arremedadas e mascaradas e proferem apenas falas arremedadas e mascaradas

Por ignorar o dionisiacuteaco Euriacutepides natildeo compreende o mito Em consequecircncia desse

abandono ignora tambeacutem o apoliacuteneo O que eacute a figura sem o que lhe faz pano de fundo

Subjugar a arte da trageacutedia a questionamentos filosoacuteficos acarretou numa montagem de heroacuteis

e heroiacutenas que apenas imitam accedilotildees e falas de heroacuteis e heroiacutenas sem secirc-los A dialeacutetica

socraacutetica que busca trazer a verdade agrave luz tem lugar no teatro euripidiano o que tem por efeito

uma nova forma de apresentar a palavra em cena

De acordo com Vorsatz (2013) haacute uma diferenccedila fundamental na forma de trabalhar

com a palavra na trageacutedia antiga e na filosofia Os tragedioacutegrafos colocam a palavra em cena

de modo a circunscrever um lugar subjetivo uma zona onde o dizer do heroacutei e da heroiacutena muito

mais que significar alguma coisa eacute um ato aparece em accedilatildeo Segundo a autora eacute desta palavra

como accedilatildeo que deriva a posiccedilatildeo subjetiva O heroacutei e a heroiacutena garantem com seu ato a presenccedila

divina sujeitam-se a ela e ao mesmo tempo satildeo responsaacuteveis pelo destino traacutegico a eles

imposto ainda que dele nada saibam Eacute justamente essa condiccedilatildeo subjetiva apresentada pela

heroiacutena Antiacutegona na peccedila de Soacutefocles que inspira Lacan (1959-19601997) a trabalhar sobre

a eacutetica da psicanaacutelise uma eacutetica essencialmente traacutegica pois se configura numa travessia em

que o sujeito natildeo cede de seu desejo desejo inconsciente ao qual eacute alienado

Jaacute na filosofia encontramos a tendecircncia de colocar a palavra na eterna busca de uma

verdade uacutenica e universal passiacutevel de ser dominada pela consciecircncia do indiviacuteduo

[] a filosofia grega eleva o homem agrave categoria de ser de razatildeo atraveacutes da constituiccedilatildeo de um saber sobre ele e sobre o mundo que o cerca Por sua vez a trageacutedia antiga parece colher aquilo mesmo que escaparaacute ao domiacutenio filosoacutefico o fato de que o homem natildeo eacute senhor em sua proacutepria casa pois haacute um campo imperscrutaacutevel domiacutenio dos deuses a cujas injunccedilotildees ele deveraacute responder por meio da libra de carne que lhe cabe pagar cessatildeo de uma parte de si (VORSATZ 2013 p 24)

Nos dramas de Euriacutepides com o surgimento de uma filosofia que comeccedilava a atravessar

o espaccedilo puacuteblico a tomar parte da organizaccedilatildeo poliacutetica da cotidianidade das pessoas que

passava a permear o campo das artes com seus atributos de tomar o indiviacuteduo como ser dotado

de razatildeo com o uso da ironia da busca pela verdade encontramos a mudanccedila de relaccedilatildeo com

a palavra que aparece nos textos do coro e dos personagens

153

333 Deus ex machina euripidiano

A mudanccedila na trageacutedia a partir de Euriacutepides se expressa de modo mais evidente no

desenlace do drama de acordo com Nietzsche (18721992) a partir do recurso deus ex machina

utilizado como forma de resolver impasses e ldquopontas soltasrdquo da trama Eacutesquilo Soacutefocles e

outros tragedioacutegrafos tambeacutem apresentaram o deus ex machina em algumas de suas trageacutedias

A diferenccedila estaacute na intervenccedilatildeo dos deuses trazidos pela maacutequina nos rumos da cena traacutegica

Nesse sentido ao final das trageacutedias de Eacutesquilo e Soacutefocles o espectador poderia se

confortar com um prazer inerente ao traacutegico uma sensaccedilatildeo de conciliaccedilatildeo com o mundo que

apresenta um equiliacutebrio do dionisiacuteaco e do apoliacuteneo Lembramos que a conciliaccedilatildeo eacute uma

experiecircncia esteacutetica que emana da trama traacutegica no entanto natildeo haacute um acordo entre os

personagens da cena

No Dicionaacuterio de teatro Pavis (2015 p 21) nomeia este prazer de ldquoapaziguamento

finalrdquo e o toma como um produto da estrutura narrativa que indica o final da peccedila a impressatildeo

de que o heroacutei resolveu de algum modo seus conflitos e de que tudo retornou a uma suposta

ordem inicial No caso da trageacutedia a sensaccedilatildeo experimentada pelo espectador eacute a de uma

ldquojusticcedila transcendente do universo traacutegicordquo (PAVIS 2015 p 22)

Poreacutem com as modificaccedilotildees euripidianas que produzem uma intervenccedilatildeo divina

derradeira sobre a cena haacute apaziguamento final

De acordo com Nietzsche (18721992 p 107)

[] o heroacutei depois de bastante martirizado pelo destino colhia uma bem merecida recompensa em um magniacutefico casamento em algumas homenagens divinas O heroacutei se tornara um gladiador a quem apoacutes ter sido bastante maltratado e estar coberto de ferimentos era ocasionalmente doada a liberdade O deus ex machina tomou o lugar do reconforto metafiacutesico Natildeo quero dizer que a consideraccedilatildeo traacutegica do mundo tenha sido destruiacuteda em toda parte e por completo pelo acossante espiacuterito natildeo dionisiacuteaco sabemos apenas que precisou fugir da arte para refugiar-se por assim dizer no mundo iacutenfero numa degeneraccedilatildeo em culto secreto

Deus ex machina entra como substituto do ldquoreconforto metafiacutesicordquo mas sem provocar

tal sensaccedilatildeo Ele eacute uma presenccedila que dita o futuro dos heroacuteis

154

[] uma consonacircncia terrena [] o deus das maacutequinas e crisoacuteis vale dizer as forccedilas dos espiacuteritos naturais conhecidas e empregadas a serviccedilo do egoiacutesmo superior que acredita em uma correccedilatildeo do mundo pelo saber em uma vida guiada pela ciecircncia [] (NIETZSCHE 18721992 p 108)

Dessa forma o deus ex machina proposto inicialmente por Eacutesquilo torna-se em

Euriacutepides a marca mais visiacutevel da mudanccedila de sua trageacutedia que se coloca no lugar da sensaccedilatildeo

de um conforto transcendente tiacutepico das trageacutedias antigas que dependiam da tensatildeo apoliacuteneo-

dionisiacuteaco A entrada do deus ex machina se torna signo de um desenlace que natildeo se constroacutei

ao longo do drama que natildeo emana das relaccedilotildees entre os personagens da histoacuteria de acordo

com a criacutetica nietzschiana Eacute um recurso que por carregar a funccedilatildeo de fazer justiccedila de conhecer

a verdade e a razatildeo sobre o mundo justifica-se por si mesmo Encontra em sua funccedilatildeo de

correccedilatildeo e julgamento do certo e do errado do bem e do mal seu direito de intervir e impor o

desenlace da histoacuteria (NIETZSCHE 18721992)

Eacute possiacutevel dizer desse modo que a entrada do deus ex machina na trageacutedia de Euriacutepides

tem o intuito de encaminhar o impasse traacutegico produzido entre os personagens para a soluccedilatildeo

que defenda o justo a razatildeo o correto e conforme apontado por Nietzsche (18721992) a

ciecircncia Tais finalidades estatildeo em consonacircncia com os objetivos da filosofia que se expandia

cada vez mais na via puacuteblica encontrando lugar na cena traacutegica

Entendemos esse dispositivo teatral como uma soluccedilatildeo a partir da qual uma atitude de

autoria fica suspensaA impressatildeo da suspensatildeo do lugar de autor pode ser decorrente da

suspensatildeo da criaccedilatildeo incitada pelo proacuteprio desfecho da cena Quando entra em cena um deus

ex machina para impor um fim a sensaccedilatildeo eacute de que os conflitos produzidos entre os

personagens natildeo satildeo realmente solucionados Parecem em vez disso suspensos silenciados

amortecidos por uma imposiccedilatildeo moral

De acordo com Antonio Rebelo (1995) em artigo sobre a peccedila euripidiana Ifigecircnia em

Tauris o deus ex machina eacute comparado aos ensinamentos filosoacuteficos de Soacutecrates no diaacutelogo

Clitofonte atribuiacutedo a Platatildeo e nesse sentido o dispositivo assumiria uma funccedilatildeo moralizante

O autor nos ajuda a pensar a funccedilatildeo do deus ex machina para aleacutem das concepccedilotildees

criacuteticas de Aristoacuteteles e de Nietzsche

A anaacutelise aristoteacutelica foi determinante para conferir uma carga depreciativa agrave utilizaccedilatildeo do deus ex machina Toda a criacutetica posterior ateacute os nossos dias foi fortemente influenciada pelas normas que o Estagirita estabeleceu para a trageacutedia Do ponto de vista teoacuterico o deus ex machina passou a ser

155

considerado uma violaccedilatildeo do princiacutepio aristoteacutelico da verossimilhanccedila e coerecircncia entre o desenvolvimento da intriga e o seu desenlace Soacute recentemente o deus ex machina tem vindo a ser reabilitado e revalorizado apoacutes a rejeiccedilatildeo de antigos preconceitos (REBELO 1995 p 170-171)

Nesse sentido o autor diz que na anaacutelise de Aristoacuteteles em que o filoacutesofo deprecia o

uso do deus ex machina haacute tambeacutem recomendaccedilatildeo de como usar o recurso sem que a accedilatildeo

dramaacutetica seja prejudicada A presenccedila dos deuses funciona na cena para situar certos

acontecimentos sobre o passado eou sobre o futuro simplesmente porque os heroacuteis ou outros

personagens os desconhecem

No entanto quem deve desenhar um destino em cena ateacute o momento de desenlace da

accedilatildeo ainda que fracassem ainda que o fim seja traacutegico satildeo os personagens Natildeo eacute o fato de

uma trageacutedia apresentar ou natildeo apresentar o deus ex machina que necessariamente a accedilatildeo dos

heroacuteis estaraacute em prejuiacutezo Deuses situam o tempo o lugar as circunstacircncias da accedilatildeo Quando

uma trageacutedia atribui aos deuses um papel que natildeo este como por exemplo decidir sobre o

destino das personagens pode haver uma mudanccedila abrupta de rumo desnecessaacuteria eou

inverossiacutemil que vai contra um caminho tecido pelo drama

De acordo com Rebelo (1995) eacute esta a criacutetica que costumamos encontrar aos dramas de

Euriacutepides Poreacutem para o autor das trageacutedias de Euriacutepides agraves quais temos acesso duas se

encerram com um deus ex machina que encaminha o desenlace de modo a resolver o conflito

insoluacutevel que satildeo Orestes e Hipoacutelito Nas trageacutedias Medeia Heacutecuba Heacuteracles e Os

Heraclidas satildeo mortais que surgem ex machina impondo o desenlace e assim natildeo satildeo

comparaacuteveis aos deuses quando estatildeo nesse lugar Dessa maneira as peccedilas Androcircmaca As

Suplicantes Electra Ifigecircnia entre os Tauros Ion Helena As Bacantes e Ifigecircnia em Aulide

ainda que apresentem deuses num plano exterior ao da cena ou que entram em cena por meio

de uma maquinaria sua intervenccedilatildeo natildeo modifica os rumos da trama pois o desenlace ocorre

como um fruto da trama e a funccedilatildeo divina consiste em dar uma palavra final uma costura

O entendimento de Lacan (1959-19601997) a respeito desse recurso cecircnico vai ao

encontro dessa definiccedilatildeo pois para o psicanalista o deus ex machina ldquoserve somente de

enquadramento e de limite da trageacutediardquo (LACAN 1959-19601997 p 384) e natildeo devemos

levar em conta esse recurso mais do que as vigas que estatildeo na volta do que sustenta realmente

o palco

O psicanalista faz esse comentaacuterio ao citar a peccedila de Soacutefocles Filoctetes em que o heroacutei

eacute salvo por Heacutercules ex machina de uma ilha onde o haviam abandonado Poreacutem para Rebelo

156

(1995) justamente nessa peccedila haacute uma diferenccedila no uso do recurso pois assume funccedilatildeo de

intervir de modo inesperado e definitivo Eacute importante esse apontamento de Rebelo (1995) pois

ele mostra que o dispositivo cecircnico em questatildeo tambeacutem aparece em peccedilas de Soacutefocles de

maneira a mudar os rumos da histoacuteria Tambeacutem podemos destacar a peccedila de Eacutesquilo Orestes

cujo desfecho ocorre com a intervenccedilatildeo divina de Apolo o qual interrompe um final traacutegico

Orestes mata a proacutepria matildee para vingar a morte do pai arranjada por ela Como provavelmente

ele seraacute condenado agrave morte pede a seu tio Menelau que interceda por ele em seu julgamento

Quem acaba por ajudaacute-lo eacute o proacuteprio deus Apolo que entra em cena no carro do Sol e confere

um novo ordenamento agraves accedilotildees dos homens Essa eacute a primeira vez que o recurso ex machina eacute

utilizado na trageacutedia grega Desse modo Rebelo (1995) esclarece que o sentido de atribuir o

uso desse recurso por Euriacutepides se justifica apenas por sua escolha na maioria de suas peccedilas

mas natildeo pela vinculaccedilatildeo do desenlace das peccedilas do tragedioacutegrafo ao dispositivo

Para Otto Maria Carpeaux (2010) haacute uma diferenccedila crucial entre Eacutesquilo e Euriacutepides

decorrente das transformaccedilotildees sociais e espirituais que os separam que eacute o modo como

apresentam o mito e a divindade pois enquanto ldquoEacutesquilo parecia ser representante do

conservadorismo religioso Euriacutepides eacute representante do individualismo filosoacutefico [] Eacutesquilo

eacute coletivista Euriacutepides individualistardquo (CARPEAUX 2010 p 188) Talvez essas diferenccedilas

caracterizem de modo mais sutil o que os autores desejavam transmitir com o uso do deus ex

machina pois ldquoem Eacutesquilo falam montanhas em Euriacutepides almasrdquo (CARPEAUX 2010 p

190)

Para Rebelo (1995 p 167) ldquouma das finalidades se natildeo uacutenica do deus ex machina

seria a parecircnese a exortaccedilatildeo aos espectadores para agirem de acordo com os preceitos divinosrdquo

Dessa maneira a funccedilatildeo do dispositivo teria como propoacutesito uma expansatildeo de sua intervenccedilatildeo

para aleacutem dos limites da cena Entendemos que o alvo do deus ex machina satildeo os espectadores

natildeo os personagens de forma a impor se o final da histoacuteria ldquoa moral da histoacuteriardquo

Eacute nesse sentido que o desenlace da histoacuteria adquire uma marca diferente na maioria das

peccedilas de Euriacutepides conforme comenta Nietzsche (18721992) pois a transmissatildeo da

experiecircncia do traacutegico daacute lugar agrave imposiccedilatildeo moral atraveacutes da presenccedila e da palavra divina que

encerram a trama Ainda que Soacutefocles e Eacutesquilo tenham utilizado esse recurso algumas vezes

tendo como consequecircncia o efeito moralizador para o filoacutesofo alematildeo satildeo as trageacutedias de

Euriacutepides que marcam o fim do gecircnero O tradutor de O nascimento da trageacutedia Jacoacute

Guinsburg ajuda-nos a entender o motivo

157

No teatro de Euriacutepides Nietzsche identifica o ponto de inflexatildeo do processo que conduziu ao esvaziamento da trageacutedia grega e ao advento da Comeacutedia Nova Muito embora consigne um tardio arrependimento ao gecircnio criador de As bacantes atribui-lhe em face das dramatizaccedilotildees tidas como as mais expressivas do tragicismo helecircnico pelo menos quatro pecados capitais a eacutepica desmitificada o realismo mimeacutetico o socratismo criacutetico e o otimismo cientifista (GUINSBURG 1992 p 163)

O abandono do dionisiacuteaco jaacute dava notiacutecias antes mesmo da reinvenccedilatildeo dos mitos feita

por Euriacutepides pois jaacute com Soacutefocles podemos ver a modificaccedilatildeo do papel do coro que passa

da musicalidade (talvez um dos uacutenicos elementos da trageacutedia que preservavam a relaccedilatildeo com o

ritual em honra a Dioniso de onde o gecircnero deriva) para a personalizaccedilatildeo caracteriacutestica que se

torna mais marcante nas peccedilas euripidianas No coro haacute um ator o corifeu que o representa em

alguns diaacutelogos

Isso pode ser compreendido como uma evoluccedilatildeo que acompanha mudanccedilas na

organizaccedilatildeo cultural Se natildeo fosse assim talvez o gecircnero traacutegico natildeo teria nascido e teriacuteamos

ainda os rituais dionisiacuteacos como forma de arte O nascimento da trageacutedia permanece como um

misteacuterio uma faacutebula miacutetica para todos noacutes como lembra Pierre-Aimeacute Touchard (1970)

Sabemos que por volta do ano 492 aC uma pessoa resolveu se separar do coro e dizer ldquoagora

sou Dionisordquo representando o bode expiatoacuterio causa dos cantos da comoccedilatildeo do temor e da

piedade O primeiro ator Theacutespis separou-se do coro e aprimorou a arte de imitar viajando

sozinho encenando suas proacuteprias peccedilas utilizando maacutescaras para diferenciar uma personagem

da outra Tornou-se o primeiro dramaturgo de teatro e criou a possibilidade do ator contracenar

com o coro inventando a figura do protagonista Desse modo as encenaccedilotildees seguiram um

processo de transformaccedilatildeo que acompanha as transformaccedilotildees da vida puacuteblica em um fluxo de

criaccedilatildeo que vai se tecendo com cada vez mais elementos cecircnicos

Contudo a partir de Guinsburg (1992) podemos dizer que satildeo as alternativas

encontradas por Euriacutepides dentro desse processo cultural de transformaccedilotildees artiacutesticas que o

localizam como grande responsaacutevel pelo fim da trageacutedia na opiniatildeo de Nietzsche O

tragedioacutegrafo encaminhou a arte traacutegica para uma criacutetica aos seus contemporacircneos que

buscavam o equiliacutebrio apoliacuteneo-dionisiacuteaco tornando-a uma forma de divulgar sua indignaccedilatildeo

e apresentar sua concepccedilatildeo iluminista do traacutegico Aleacutem disso Nietzsche acredita que Euriacutepides

em sua trageacutedia promoveu uma campanha ideoloacutegica em favorecimento de Soacutecrates

158

[] fala por sua boca o filoacutesofo racionalista que esgota no conceito e na loacutegica o conhecimento e a verdade do ser Euriacutepides e Soacutecrates satildeo pois na perspectiva de O nascimento da trageacutedia duas faces da mesma maacutescara que eacute no entanto primordialmente a do Sofista (GUINSBURG 1992 p 164)

Considerando a influecircncia de Soacutecrates na trageacutedia de Euriacutepides entendemos que o deus

ex machina euripidiano acaba por legitimar o domiacutenio do conhecimento filosoacutefico ndash jaacute que

divino verticalizado metafiacutesico ndash sobre a arte traacutegica sobre as possibilidades de criaccedilatildeo

Fizemos essa digressatildeo teoacuterica em torno do traacutegico para entender o que resta dele como

ele resta apoacutes a morte da trageacutedia grega bem como para fundamentar nossa tese de que hoje

haacute sobre noacutes outros nomes para o deus ex machina cujo ldquoforardquo e cuja ldquomaacutequinardquo noacutes mesmos

produzimos Um eacute portanto a medicalizaccedilatildeo requerida para que nossas relaccedilotildees dentro dos

mais diferentes espaccedilos de convivecircncia funcionem bem e deem um destino para o dionisiacuteaco

que haacute em noacutes o qual por mais arcaico que seja por mais distante cronologicamente natildeo eacute

passiacutevel de ser completamente recoberto pelos recursos simboacutelicos de que a cultura dispotildee a

cada tempo em cada territoacuterio Ainda que o dionisiacuteaco tenha sido aparentemente expulso

varrido da cultura ocidental ele subsiste como diz Nietzsche na sombra num mundo iacutenfero

Vimos que as alteraccedilotildees culturais que datildeo ensejo agrave filosofia socraacutetica satildeo proacuteximas agraves

que estabelecem o deus ex machina como um dispositivo a oferecer uma aprovaccedilatildeo moral dos

atos das personagens da cena que significa um juiacutezo de valor a atestaccedilatildeo de uma verdade

Entendemos que na cena escolar diante de um problema de comportamento ou de

aprendizagem apresentado por uma crianccedila muitas vezes a escola pode julgar ter a obrigaccedilatildeo

moral de chamar para a cena um personagem que representa o saber meacutedico de modo que este

costure um desenlace com uma palavra diagnosticadora sobre o mal-estar A partir de testes e

consultas cliacutenicas o especialista pode dizer se a crianccedila apresenta uma dificuldade de

aprendizagem como dislexia um transtorno mental como o TDAH ou o TOD e a partir do

diagnoacutestico muitas vezes definir os rumos da rotina escolar desse estudante como por

exemplo para crianccedilas com TDAH o horaacuterio da medicaccedilatildeo combinado ao horaacuterio de estudos

No proacuteximo capiacutetulo discutiremos os efeitos do saber meacutedico no campo escolar Antes

queremos apresentar outro argumento que leva a pensar que a medicalizaccedilatildeo pode ser acionada

como uma instacircncia moral

Haacute um comentaacuterio de Lacan no seminaacuterio A transferecircncia no qual trabalha com o texto

de Platatildeo O banquete que indica uma aproximaccedilatildeo de Soacutecrates ao saber meacutedico

159

Jaacute se observou que haacute em Soacutecrates uma referecircncia ambiente agrave medicina Com muita frequecircncia quando quer levar seu interlocutor ao plano de diaacutelogo no qual entende dirigi-lo rumo agrave percepccedilatildeo de um percurso rigoroso ele se refere a tal arte de teacutecnico Se sobre tal assunto quiserem saber a verdade pergunta frequentemente a quem se dirigiratildeo E dentre estes o meacutedico estaacute longe de ser excluiacutedo Ele eacute mesmo tratado com uma reverecircncia particular (LACAN 1960-19611992 p 73)

Lacan logo assinala que o meacutedico ao qual Soacutecrates se refere na ocasiatildeo do texto de

Platatildeo eacute Erixiacutemaco o qual toma a medicina como a maior de todas as artes Natildeo entraremos

no discurso sobre o amor do personagem de O banquete no entanto queremos apresentar alguns

pontos trabalhados por Lacan no que concerne ao discurso meacutedico Ainda que a histoacuteria da

medicina seja bastante longa dividida mesmo na antiguidade por diferentes escolas haacute um

aspecto que lhe atravessa A medicina sempre busca alcanccedilar uma precisatildeo cientiacutefica sendo

esta uma necessidade intriacutenseca agrave sua proacutepria existecircncia Para Lacan (1960-19611992) essa

busca acaba por natildeo enfrentar poreacutem assuntos elementares como a definiccedilatildeo de sauacutede

Quando haacute desejo de entender as diferenccedilas entre normal e patoloacutegico geralmente isso

eacute realizado por um saber das ciecircncias humanas por exemplo poreacutem natildeo constitui questatildeo de

pesquisa na aacuterea da medicina Ainda assim Lacan busca desvendar especialmente no discurso

de Erixiacutemaco a noccedilatildeo de sauacutede para o discurso meacutedico no qual se inclui como psiquiatra e

psicanalista

[] qualquer que seja a natureza da sauacutede e a boa forma que seria a da sauacutede somos levados a postular no seio desta boa forma estados paradoxais ndash e o miacutenimo que se pode dizer ndash estes mesmos cuja manipulaccedilatildeo em nossas terapecircuticas eacute responsaacutevel pelo retorno a um equiliacutebrio que permanece no conjunto muito pouco criticado enquanto tal Aiacute estaacute portanto o que encontramos no niacutevel dos postulados menos acessiacuteveis a demonstraccedilatildeo sobre a posiccedilatildeo meacutedica E justamente esta que seraacute consagrada aqui no discurso de Erixiacutemaco sob o nome de harmonia Natildeo sabemos de que harmonia se trata mas a noccedilatildeo eacute bastante fundamental para toda a posiccedilatildeo meacutedica como tal (LACAN 1960-19611992 p 75)

Nesse sentido ao contextualizar o discurso do personagem meacutedico com o pensamento

de Heraacuteclito e de Soacutecrates Lacan entende que a ideia da sauacutede como harmonia meacutedica estaacute

ligada ao saber da fiacutesica agrave metaacutefora da comunicaccedilatildeo entre um vaso cheio com um vazio por

um fio de latilde e agrave arte da muacutesica no que diz respeito aos acordes

O que podemos destacar aqui eacute a criacutetica de Lacan agrave definiccedilatildeo de Erixiacutemaco sobre o que

eacute a ciecircncia meacutedica

160

Existe ali uma parcialidade de que natildeo partilhamos Todas as espeacutecies de modelos da fiacutesica nos trouxeram a ideia de uma fecundidade dos contraacuterios dos contrastes das oposiccedilotildees e de uma natildeo-contradiccedilatildeo absoluta do fenocircmeno com seu princiacutepio conflitual Toda a fiacutesica tende muito mais para o lado da imagem da onda do que para o lado da forma da Gestalt da boa forma natildeo importa o que disso tenha feito a psicologia moderna Natildeo podemos deixar de nos surpreender digo eu tanto nessa passagem quanto em vaacuterias outras de Platatildeo ao ver sustentada a ideia de natildeo sei que impasse que aporia de natildeo sei que preferecircncia a ser dada ao lado do caraacuteter forccedilosamente fundamental do acorde com o acorde da harmonia com a harmonia (LACAN 1960-19611992 p 79)

Entrever a potecircncia das contrariedades dos impasses eacuteticos que surgem em cena eacute o que

o traacutegico tem a transmitir visando natildeo agrave harmonia agrave boa forma mas daando lugar agrave dimensatildeo

da anguacutestia em cena dos limites humanos do que perdemos em nossa posiccedilatildeo desejante

subjetiva Haacute uma distacircncia talvez uma antinomia entre o que se busca transmitir com o

discurso socraacutetico ndash aparentado em certo ponto ao discurso meacutedico ndash presente em trageacutedias de

Euriacutepides e o traacutegico que se transmite em trageacutedias sofocleanas como Antiacutegona cuja eacutetica eacute

partilhada com a psicanaacutelise

Natildeo que natildeo haja nas noccedilotildees visitadas do traacutegico uma tendecircncia de encaminhar uma

transformaccedilatildeo um retorno a um suposto equiliacutebrio ou estado anterior Como vimos esta noccedilatildeo

cataacutertica aparece em textos meacutedicos como expurgaccedilatildeo das impurezas do corpo assim como na

noccedilatildeo de harmonia meacutedica haacute o entendimento de evacuar alguma coisa do corpo ou preencher

o corpo com alguma coisa Sabemos que haacute tal noccedilatildeo tambeacutem nos primoacuterdios da histoacuteria da

psicanaacutelise com Freud e Breuer no sentido de que o tratamento das histeacutericas consistia na

descarga dos afetos conforme mencionado anteriormente

Em que reside na diferenccedila de uma posiccedilatildeo para outra Da harmonia meacutedica ao

apaziguamento final das trageacutedias antigas Acreditamos que a operaccedilatildeo meacutedica tende a veicular

um ideal de corpo saudaacutevel Jaacute a conciliaccedilatildeo final das trageacutedias o equiliacutebrio entre apoliacuteneo e

dionisiacuteaco demarca um reposicionamento dos personagens em cena fruto do jogo de tensotildees

e de desacordos que ocorre num movimento contraacuterio ao da idealizaccedilatildeo Vemos heroacuteis e

heroiacutenas se deslocarem de um lugar admiraacutevel para uma posiccedilatildeo que os arruiacutena Mas haacute sempre

algo que permanece vivo a uacutenica coisa que resta para de certa forma restaurar a cena o desejo

A presenccedila de uma ilusatildeo de harmonia operada atraveacutes da liberaccedilatildeo dos afetos presente

nos primoacuterdios da psicanaacutelise vai em sua histoacuteria cedendo lugar a uma concepccedilatildeo que indica

o mal-estar como inerente agrave condiccedilatildeo humana O sujeito elabora certos eventos de sua vida

161

numa perspectiva inventiva junto com seu analista ldquorecriandordquo memoacuterias com as quais produz

novos sentidos Isso eacute o que nos aponta Freud (19371975) no texto Construccedilotildees em anaacutelise

Nesse sentido entendemos que a eacutetica da psicanaacutelise sendo uma eacutetica do desejo que situa os

limites do sujeito encontra ressonacircncia na eacutetica transmitida com o traacutegico em trageacutedias gregas

do seacuteculo IV aC anteriores agrave virada proposta por Euriacutepides que de acordo com Nietzsche

(18721992) calca sua dramaturgia na moral socraacutetica moral que acaba por servir ao saber

meacutedico conforme exposiccedilatildeo de Lacan (1960-19611992)

Na equaccedilatildeo por noacutes proposta a medicalizaccedilatildeo estaacute para o deus ex machina assim como

a cena escolar estaacute para a cena traacutegica respeitando as devidas temporalidades Na cena traacutegica

os heroacuteis e heroiacutenas em sua relaccedilatildeo traacutegica com o desejo situam os limites entre a vida e a

morte os limites desejantes em si mesmos abrem outras vias de criaccedilatildeo para e por noacutes nos

comovem nos fazem sentir um plano mais aleacutem que ocorre na horizontalidade metoniacutemica do

desejo dando expressatildeo ao dionisiacuteaco este que pode ser subjugado na cena euripidiana por

um modo de conhecimento moralizante que surge ex machina

Sendo assim podemos aprender sobre a cena escolar com a anaacutelise da cena traacutegica onde

ocorrem encontros e desencontros onde se travam as relaccedilotildees que abrem ou natildeo espaccedilo ao

exerciacutecio do desejo conflitos entre seus agentes professores alunos funcionaacuterios Entendemos

que a medicalizaccedilatildeo eacute muito frequentemente um saber que se impotildee sobre a escola tal qual um

deus ex machina nas circunstacircncias em que seus agentes se esbarram com o limite de seu fazer

e delegam seu posto a um outro saber ndash reconhecido cientiacutefico justificado bem-vindo ndash o

saber meacutedico Cabe agrave medicalizaccedilatildeo confirmar que seu saber fala a partir desse lugar divino

legitimado para que uma moral se instaure uma moral sobre corpos inquietos e dispersos que

satildeo os corpos das crianccedilas com TDAH No proacuteximo capiacutetulo nos aproximamos da forma como

autores da interface educaccedilatildeo e psicanaacutelise transmitem essa questatildeo e tentamos entender os

efeitos de um discurso medicalizante a partir do lugar do deus ex machina na cena escolar

Queremos destacar aqui o meacutetodo que utilizamos na escrita deste trabalho que consiste

em tomar elementos estruturais de um campo outro para ler uma questatildeo inquietante de nosso

tempo Haacute uma transiccedilatildeo do mundo traacutegico ao ensinamento moral Dessa passagem que ocorreu

com os gregos pensamos que haacute uma estrutura possiacutevel de ser tomada para ler o que opera

162

nesse apelo ao saber meacutedico na escola Percorremos nosso caminho de pesquisa tomando um

acontecimento para ao analisaacute-lo destacar dele elementos estruturais que permitem fazer

emergir novos sentidos em um outro acontecimento

163

4 EDUCAR E SEUS IMPASSES

No primeiro capiacutetulo deste trabalho mostramos que o mal-estar que atinge as crianccedilas

em idade escolar nomeado de TDAH chegou a patamares epidecircmicos Diante disso haacute muitas

prescriccedilotildees de metilfenidato para esse problema que localizamos no corpo Nesse sentido a

alternativa que parecemos buscar para educar as crianccedilas desatentas e hiperativas de nosso

discurso eacute a medicalizaccedilatildeo diagnosticando e medicando os alunos reais considerando que haacute

segundo Mannoni (2003) as crianccedilas faladas e as crianccedilas em carne e osso A intervenccedilatildeo

medicamentosa sobre o aluno em pessoa produz efeitos sobre o aluno falado

Como dissemos este trabalho pretende se guiar pela psicanaacutelise com o que atraveacutes dela

tambeacutem portamos de limites Haacute para essa teoria um limite insuperaacutevel na educaccedilatildeo um

impossiacutevel do educar De acordo com Freud (19251996b) educar eacute uma profissatildeo como

psicanalisar e governar impossiacutevel Os trecircs fazeres se datildeo por meio da linguagem de palavras

que guardam em si contradiccedilotildees jaacute que podem constituir sentidos diversos na medida em que

vatildeo sendo encadeadas de acordo com quem fala e quem escuta

No entanto ainda que haja uma impossibilidade como lembra Leandro de Lajonquiegravere

soacute eacute possiacutevel educar com as palavras

[] natildeo haacute educaccedilatildeo que natildeo se sirva de uma liacutengua e portanto que natildeo pressuponha a linguagem Mais ainda como a estrutura da linguagem eacute de natureza remissiva ou seja trata-se de uma rede de diferenccedilas o transmitido via uma liacutengua estaacute condenado tanto a se repetir quanto a diferir [] Com efeito essa contradiccedilatildeo insuperaacutevel inviabiliza o fato do aprendiz vir a ser uma reacuteplica do mestre e natildeo como agraves vezes se pensa a mesmiacutessima transmissatildeo educativa [] Assim agrave medida que essa tensatildeo contraditoacuteria eacute equacionada a educaccedilatildeo vira um fato ou em outras palavras o equacionamento da impossibilidade de fabricar replicantes torna a priori possiacutevel que a educaccedilatildeo venha de fato a acontecer (LAJONQUIEgraveRE 1997 p 39)

O reconhecimento do limite das nossas palavras em direccedilatildeo ao outro pode permitir a

elaboraccedilatildeo de uma equaccedilatildeo para o educar na qual estaraacute contida a impossibilidade da educaccedilatildeo

O ponto em que se situa a crianccedila com TDAH eacute o ponto em que justamente se encontra um

limite ao fazer do professor pois a crianccedila natildeo se comporta do modo como o professor lhe

pede e eacute muitas vezes natildeo se comportando da forma esperada que ela busca de algum modo

atender inconscientemente agraves demandas do Outro agrave linguagem agrave qual estaacute submetida na

tentativa de articular seu lugar subjetivo em diferentes espaccedilos em casa e na escola No entanto

164

na medida em que sua forma de interpretar o que dela desejam estiver distante da conduta

compartilhada entre seus pares na escola ndash que ainda que de modos diferentes conseguem

acompanhar a rotina cumprir tarefas ndash ela assume uma posiccedilatildeo tal que potildee em evidecircncia o

limite do educar

A resistecircncia aos moldes que nossa cultura arranja representada pela crianccedila hiperativa

eou desatenta pode fazer alguns professores ou professoras chegarem ao ponto de fracasso de

sua profissatildeo A professora do caso apresentado poderia ter pensado ldquoSe com todo arranjo

escolar e com minhas palavras em lugar de autoridade a crianccedila natildeo se ordena haacute um limite

meu mas porque certamente haacute um impossibilidade nela o TDAHrdquo E com isso a professora

renunciaria a seu papel encaminharia a crianccedila para a coordenaccedilatildeo acionaria matildee e psicoacuteloga

O fracasso portanto para a escola tomada pelo discurso medicalizante parece estar no

organismo do aluno O aluno com TDAH eacute causa do fracasso do professor e se natildeo fosse por

ele tudo correria bem (assim como pensou inicialmente a psicoacuteloga da histoacuteria ldquose natildeo fosse

pela escola e sua parceira teria dado tudo certordquo)

Tomando por referecircncia uma anaacutelise sobre o fenocircmeno do fracasso escolar realizada

por Lajonquiegravere (1997) para quem o fracasso eacute fruto de uma tentativa sintomaacutetica de situar o

impossiacutevel da fala entendemos que no caso da crianccedila com TDAH acontece algo semelhante

ela eacute tomada como causa do impossiacutevel do fazer do professor e nesse sentido haacute um

impedimento agrave sua presenccedila em sala de aula e por consequecircncia agraves palavras norteadoras do

educador que podem ingressaacute-la na educaccedilatildeo escolar Se pedir para o aluno sair da sala

encaminhaacute-lo para coordenaccedilatildeo e por fim medicaacute-lo fosse o modo de equacionar a educaccedilatildeo

escolar ou ainda se esse transtorno fosse realmente o impossiacutevel da educaccedilatildeo com o qual

devemos lidar talvez hoje trabalhariacuteamos melhor com o mal-estar natildeo haveria educadores

adoecidos por conta disso e o mal-estar gerado pelas crianccedilas com TDAH natildeo existiria O

sintoma quando natildeo escutado tende a se repetir

O ponto de limite enunciado pela escola o que faz com que peccedila ajuda eacute produzido por

um discurso que se trama com o discurso medicalizante Natildeo eacute o mesmo lugar em que estaacute a

impossibilidade da educaccedilatildeo da qual fala a psicanaacutelise Entendemos que as coisas se formam

da seguinte maneira atraveacutes da psicanaacutelise Freud diz que o ato educativo se faz com o

impossiacutevel intriacutenseco ao educar A escola com o discurso medicalizante parece querer educar

sem o impossiacutevel Mas como natildeo se educa sem a impossibilidade intriacutenseca ao educar ndash

165

lembrando que se educa com palavras ndash a escola parece renunciar agrave sua tarefa com aquelas

crianccedilas que representam para ela um limite

Produzimos um impedimento que toma o lugar do impossiacutevel da linguagem justamente

porque natildeo podemos com ele O limite produzido em nosso discurso ou seja a

psicopatologizaccedilatildeo eacute um limite sanado pela medicaccedilatildeo que dispensa a implicaccedilatildeo com o ato

educativo

Natildeo eacute tarefa faacutecil se fazer suporte dos limites da linguagem pois disso depende que

reconheccedilamos os limites de nosso proacuteprio acontecer como sujeito De certo modo em casos

que natildeo se bastam com os dispositivos educativos que criamos que precisam de uma funccedilatildeo a

mais temos que como educadores reviver a cena da imposiccedilatildeo de nossos limites tomar o lugar

do mestre que sabe por delegaccedilatildeo e de certa forma pagar a diacutevida simboacutelica de nossa filiaccedilatildeo

a uma cultura (LAJONQUIEgraveRE 1997)

No entanto se natildeo conseguimos reconhecer na crianccedila um pertencimento a uma tradiccedilatildeo

cultural eacute possiacutevel que estejamos presos a um certo ideal Haacute crianccedilas que conseguem

comportar-se como alunos idealizados pela escola jaacute que conseguem controlar seus corpos

ficam quietas quando lhe pedem fazem as tarefas quando lhe pedem sem deixar eacute claro de

ter seus momentos de espontaneidade Mas haacute crianccedilas como as diagnosticadas com TDAH

que satildeo tomadas pelo vieacutes psicopatoloacutegico jaacute que natildeo correspondem ao padratildeo Eacute verdade que

noacutes estamos sempre em certa medida distantes de um ideal Nessa medida que se vecirc a

necessidade da medicaccedilatildeo ou natildeo Mas nunca eacute questionado o padratildeo ele eacute dado a priori

Parece-nos que a medicaccedilatildeo poderia fazer o esforccedilo de igualar ou pelo menos aproximar

a crianccedila hiperativa e desatenta ao ideal de comportamento tomando o lugar das palavras Que

sujeitos formamos assim Lajonquiegravere (1997) comenta que haacute em cada adulto uma fantasia que

se realiza ao ver sua infacircncia projetada em uma crianccedila de seu conviacutevio com a esperanccedila de

que ela escape das proibiccedilotildees e obrigaccedilotildees impostas pela realidade

[] cada vez que um adulto se endereccedila a uma crianccedila natildeo eacute improvaacutevel que experimente a queda de vir a poupaacute-la de todo tipo de restriccedilotildees Infelizmente se porventura assim o for a legalidade educativa natildeo pode menos do que acabar sendo embaralhada (LAJONQUIEgraveRE 1997 p 40)

No caso das crianccedilas medicadas haacute de certo modo uma suspensatildeo do dever do adulto

para com a crianccedila em transmitir-lhe palavras ordenadoras capazes de ajudaacute-la a articular seu

desejo agrave realidade agrave cultura compartilhada Eacute como se os adultos delegassem tal tarefa ao

166

especialista ou ao medicamento esperando que ele cumpra a funccedilatildeo da legalidade educativa

Tal forma de conduta livra o adulto de ter que reviver a sua proacutepria histoacuteria com a crianccedila e de

pagar a diacutevida simboacutelica de sua existecircncia

Como o ato educativo eacute possiacutevel na medida do equacionamento de uma diacutevida simboacutelica ou seja do reconhecimento de uma obrigaccedilatildeo por parte do adulto em posiccedilatildeo de mestre entatildeo constitui um paradoxo mortal pretender educar e ao mesmo tempo almejar que as leis percam sua validade perante as crianccedilas Em outras palavras todo ato educativo alimentado pela ilusatildeo de que a crianccedila possa de direito vir a driblar a lei estaacute a priori condenado ao fracasso uma vez que se auto-esvazia Isso eacute inevitaacutevel pois quando o adulto almeja poupar agrave crianccedila das restriccedilotildees inerentes em uacuteltima instacircncia agrave lei da vida humana abre a possibilidade de uma exceccedilatildeo que mina os proacuteprios fundamentos do ato educativo ndash o fato de o adulto estar engajado no mesmo apenas em cumprimento de um dever-ser existencial Natildeo haacute do que nos surpreender ou todos estamos obrigados por igual ou natildeo haacute lei (LAJONQUIEgraveRE 1997 p 40)

41 A medicalizaccedilatildeo como deus ex machina na escola e seus efeitos

O discurso medicalizante participa de nosso laccedilo social e portanto estaacute presente na

escola e em outros ambientes sociais e educacionais Nesse sentido produzimos deus ex

machina na escola a fim de encontrar uma soluccedilatildeo medicalizante para um problema escolar

que venha de um fora de uma exterioridade Para ocupar esse lugar chamamos para a cena

escolar profissionais alheios a ela a fim de resolver problemas que os estudantes manifestam

em seu percurso de aprendizagem No momento em que agentes da educaccedilatildeo como professores

e pedagogos importam para o centro da accedilatildeo uma figura que teraacute como incumbecircncia a resoluccedilatildeo

de um problema que os paralisa que interrompe o fluxo da rotina escolar portam-se como o

autor da trageacutedia que diante de um impasse apela ao deus ex machina eximindo-se da

responsabilidade sobre o uacuteltimo ato

Diante de quais impasses os educadores sentem-se impotentes sentem que chegaram a

um limite intransponiacutevel precisam ldquosair de cenardquo e dar lugar a algueacutem de fora Eacute possiacutevel dizer

que os mais comuns envolvem problemas de aprendizagem e disciplina apresentados pelos

estudantes que frequentemente satildeo nomeados com transtornos disfuncionais a partir de uma

linguagem meacutedica que adentra o discurso de alguns educadores Dessa maneira acreditamos

ser o saber psicopatologizante a figura que frequentemente assume a funccedilatildeo de deus ex machina

na escola instalando-se de tal forma que impossibilita a accedilatildeo e o saber dos educadores

167

Stolzmann e Rickes (1999) confirmam esse argumento ao dizerem que eacute bastante

frequente o encaminhamento de crianccedilas para consultoacuterios da aacuterea ldquopsirdquo por uma iniciativa da

escola As queixas satildeo geralmente em torno de problemas de aprendizagem e de

comportamento forma que alguns entraves da constituiccedilatildeo subjetiva tomam na vivecircncia

escolar e sobre os quais os pais dos alunos ateacute entatildeo natildeo haviam produzido uma questatildeo Dessa

maneira para as autoras ldquoas dificuldades de aprendizagem entraram na ordem do dia

Tornaram-se as vilatildes de todas as mazelas que assolam o cotidiano escolar bem como o das

famiacutelias aiacute envolvidasrdquo (STOLZMANN RICKES 1999 p 40)

Podemos entender que ao longo do seacuteculo XX a medicina desenvolveu-se de forma a

garantir maior longevidade agrave populaccedilatildeo e a diminuir o sofrimento fiacutesico as dores e riscos de

vida em procedimentos meacutedicos graccedilas ao aprimoramento de teacutecnicas e ao avanccedilo da produccedilatildeo

de novos medicamentos para doenccedilas orgacircnicas especiacuteficas No entanto Moyseacutes e Collares

(2015) apontam que esse progresso cientiacutefico do uacuteltimo seacuteculo trouxe tambeacutem uma outra

vertente (que desemboca na escola) responsaacutevel pela exacerbaccedilatildeo diagnoacutestica de doenccedilas

consideradas orgacircnicas e pela consequente prescriccedilatildeo indiscriminada de medicamentos

avalizada pelo crescimento da induacutestria farmacecircutica conforme discutimos no iniacutecio deste

trabalho As autoras datildeo destaque agrave descriccedilatildeo de doenccedilas neuroloacutegicas que ao longo de cem

anos tornaram-se tatildeo especiacuteficas que hoje encontramos na literatura meacutedica transtornos que

envolvem apenas a aprendizagem e o comportamento para os quais haacute um tratamento

medicamentoso previsto

De acordo com Moyseacutes e Collares (2015) o espaccedilo escolar brasileiro jaacute retratado pelo

saber meacutedico desde o iniacutecio do seacuteculo XX ainda recebe atenccedilatildeo dessa aacuterea por ser um campo

de investigaccedilatildeo de ldquopretensas disfunccedilotildees neuroloacutegicasrdquo e nesse sentido atualmente ldquoa quase

totalidade dos discursos medicalizantes referem-se agrave dislexia TDAH (transtorno do deacuteficit de

atenccedilatildeohiperatividade) TOD (transtorno de oposiccedilatildeo desafiadora) e outros supostos

transtornos inventados a cada dia pela Associaccedilatildeo Psiquiaacutetrica Americanardquo (MOYSEacuteS

COLLARES 2015 p 68)

Na medida em que o Manual Diagnoacutestico e Estatiacutestico de Transtornos Mentais o DSM

manual de referecircncia internacional que se encontra em sua quinta ediccedilatildeo recolhe sintomas

presentes no cenaacuterio educativo e os distribui em transtornos mentais eacute compreensiacutevel que tais

classificaccedilotildees despertem o interesse de educadores que observam seus alunos diariamente O

que parece erguer-se como efeito colateral da curiosidade docente eacute com frequecircncia uma

168

desautorizaccedilatildeo do saber proacuteprio aos professores perante um campo do conhecimento

consolidado e criterioso que se propotildee na condiccedilatildeo de saber exatamente o que se passa com o

aluno que apresenta dificuldades em seu percurso escolar Natildeo eacute raro que diante do saber

meacutedico o professor veja minguar o que pode seu saber pedagoacutegico e acabe por recorrer a um

recurso externo ao cenaacuterio educativo como forma de desdobrar os impasses proacuteprios a esse

cenaacuterio ndash qualquer semelhanccedila com o papel desempenhado pelo deus ex machina na trageacutedia a

partir de Euriacutepedes natildeo nos parece mera coincidecircncia

Entendemos que seja assim que expressotildees como ldquohiperativordquo ldquodesatentordquo ldquodisleacutexicordquo

entre outras adentram a cena escolar na tentativa de nomear o sintoma desconhecido que

irrompe no comportamento de dar conta e de entender o que acontece com o estudante que natildeo

aprende Fazem parte de um discurso social patologizante do espaccedilo educativo de nosso tempo

O diagnoacutestico no campo meacutedico pode servir de buacutessola a apontar o norte para

tratamentos e intervenccedilotildees medicamentosas visando agrave sauacutede do paciente No lugar de doentes

tendemos a confiar nos caminhos apontados pelo especialista pois sendo ele delegado do saber

da medicina conhece as causas de nosso padecimento orgacircnico e eacute capaz de indicar as melhores

alternativas para atenuar os sintomas e promover a cura da doenccedila A posiccedilatildeo que meacutedicos

assumem em nossa cultura geralmente eacute a de detentores do saber sobre o que causa nosso

sofrimento Eacute possiacutevel que a presenccedila do especialista na escola se decirc no mesmo arranjo talvez

ele natildeo assuma um novo lugar no jogo de relaccedilotildees entre os agentes da educaccedilatildeo lembrando

que ele eacute convocado na cena escolar a falar a partir desse lugar ou seja de saber sobre o outro

de legislador das accedilotildees educativas Sendo assim ao tomar os sintomas da educaccedilatildeo como

sintomas meacutedicos o discurso psicopatologizante pode nublar o horizonte e paralisar a

caminhada Por quecirc Porque o modo como se organiza o campo meacutedico natildeo eacute o modo como se

arranja o campo educativo

O ofiacutecio de educar eacute um ofiacutecio que depende da fala e das marcas que a palavra pode

produzir sobre quem fala e quem escuta e nesse sentido a educaccedilatildeo constitui um cenaacuterio em

que circulam afetos e significantes abertos a novos sentidos Significantes que emergem num

jogo de relaccedilotildees entre eu e o outro num espaccedilo em que surgem impasses que podem

paradoxalmente carregar em seu enunciado as pistas para o desenho de uma saiacuteda Mas para

que essa saiacuteda seja desenhada seraacute necessaacuterio apostar na dimensatildeo produtiva do conflito que

se natildeo pode ser resolvido de forma integral pode em sua dimensatildeo de impossiacutevel

apaziguamento absoluto relanccedilar o caminho e ver surgir prosseguimentos criativos para a

169

empreitada educativa Eacute desse modo que a arte traacutegica pode nos inspirar a tomarmos caminhos

desejantes

Maria Cristina Kupfer (1999) atenta para a relaccedilatildeo existente entre o sintoma e o discurso

social Eacute possiacutevel considerar o problema de aprendizagem como um sintoma social pois para

a autora ele estaacute inscrito no discurso social dominante do campo da educaccedilatildeo Ou seja os

sintomas manifestados pelos estudantes satildeo produzidos no interior das relaccedilotildees escolares a

partir dos significantes presentes no discurso social da escola e se devem propriamente agraves

interaccedilotildees entre os sujeitos nesse campo Desse modo o aluno natildeo pode ser o uacutenico responsaacutevel

por seu sintoma como se ele portasse individualmente uma doenccedila Eacute preciso entender o

sintoma como produto da cena escolar como um impasse que toca o fazer de todos que

constituem essa rede de relaccedilotildees Considerar o sintoma de aprendizagem escolar como uma

questatildeo individual eacute recalcar o sujeito ndash que se estrutura no laccedilo ao outroOutro ndash como

elemento crucial da equaccedilatildeo que pensa os avatares da relaccedilatildeo ensino-aprendizagem

Na esteira de uma perspectiva que toma o sintoma de aprendizagem como produccedilatildeo de

um indiviacuteduo vemos se instalar no cotidiano escolar uma verdadeira epidemia de diagnoacutesticos

de Transtornos de Hiperatividade com Deacuteficit de Atenccedilatildeo Bernardino (2015) atenta para o

efeito iatrogecircnico da atribuiccedilatildeo de um diagnoacutestico fechado para uma crianccedila que se encontra

num processo de construccedilatildeo de sua identidade jaacute que ela pode se agarrar a um traccedilo

identificatoacuterio que proveacutem de um saber anocircnimo cientiacutefico e imperativo e com isso natildeo

encontrar um lugar de filiaccedilatildeo na rede simboacutelica Dessa forma dizer para a crianccedila que

apresenta dificuldades na escola que ela eacute ou porta um transtorno de aprendizagem eacute contribuir

para a cristalizaccedilatildeo de seu problema jaacute que ldquoo sujeito sofre justamente dessa ausecircncia de

significantes familiares que lhe possam indicar um lugar na filiaccedilatildeordquo (BERNARDINO 2015

p 54)

De acordo com Kupfer (1999) os problemas de aprendizagem vivenciados pelos

estudantes no acircmbito da educaccedilatildeo escolar satildeo produzidos por um conflito um impasse a forma

de aprender do sujeito aluno a qual a autora nomeia de ldquoestilo cognitivordquo choca-se com o

discurso social dominante da escola o qual circunscreve o estilo do aluno em ideais de bom ou

mau desempenho ou comportamento Por exemplo um aluno que se demora na apreciaccedilatildeo de

uma leitura pode ser considerado um aluno lento que natildeo segue um ritmo de aprendizagem

idealizado pela escola pois este se pauta no discurso social da rapidez da prontidatildeo Na

170

tentativa de responder a esse ideal o estudante pode vir a fracassar jaacute que o seu estilo de

aprender natildeo encontra valor no acircmbito da escola

A epidemia diagnoacutestica eacute muitas vezes acompanhada de uma prescriccedilatildeo maciccedila do

metilfenidato mais conhecido pelo seu nome comercial Ritalina conforme discutido na

primeira parte deste trabalho Por se tratar de um psicotroacutepico atua no sistema nervoso central

e seus efeitos aparecem no comportamento do aluno que se modifica enquanto o remeacutedio agir

sobre o organismo

A prescriccedilatildeo maciccedila dessa medicaccedilatildeo acaba por desembocar em chistes entre os

professores que solicitam a adiccedilatildeo de Ritalina agrave caixa drsquoaacutegua da escola Essa forma jocosa de

se referir agrave entrada da medicaccedilatildeo na cena escolar imiscuiacuteda na aacutegua de forma anocircnima sem

estar incluiacuteda em qualquer relaccedilatildeo transferencial chama atenccedilatildeo Eacute a essa indicaccedilatildeo sem rosto

que recalca a dimensatildeo transferencial ndash e com ela o sujeito ndash em causa na prescriccedilatildeo de uma

soluccedilatildeo a um conflito que acaba por corresponder uma suspensatildeo da responsabilidade dos

atores escolares pela construccedilatildeo de uma saiacuteda aos conflitos que emergem no transcurso das

relaccedilotildees de ensino-aprendizagem

Assim o que importa atentar eacute para a posiccedilatildeo que o medicamento vem ocupar no

cotidiano escolar A medicaccedilatildeo entra na cena como a promessa de uma resoluccedilatildeo para o impasse

e acaba desresponsabilizando seus atores a crianccedila que estaacute aprendendo a suspender o interesse

em seu entorno para focar sua atenccedilatildeo na resoluccedilatildeo de uma tarefa de forma a manter-se atenta

mesmo quando algo curioso atravessa seu caminho ou ainda quando se frustra por natildeo conseguir

chegar a bom termo nas primeiras tentativas o professor que estaacute construindo alternativas para

fisgar o desejo de aprender da crianccedila a escola que estaacute elaborando as vias de servir de suporte

para ambos mantendo a aposta em que com o tempo se chegaraacute a um bom termo na empreitada

educativa mesmo quando o avanccedilo tropeccedila nos desequiliacutebrios proacuteprios agrave aprendizagem e

parece patinar sem sair do lugar A reflexatildeo deve recair sobre a forma como a medicaccedilatildeo pode

entrar no jogo de relaccedilotildees entre os atores escolares como um deus ex machina que economiza

o tempo necessaacuterio para que nas idas e vindas por uma arena conflituosa chegue-se a uma

ldquosoluccedilatildeordquo

Outro risco que se acaba por correr eacute de que o estudante se torne condicionado ao uso

do metilfenidato para conseguir ter um miacutenimo de controle sobre o seu corpo e sobre seu objeto

de atenccedilatildeo Ou seja a quietude e a atenccedilatildeo demandadas pela escola natildeo decantam do que se

vive na cena escolar mas satildeo artificialmente produzidas pelo organismo de um indiviacuteduo que

171

pode estar denunciando com seus sintomas a imperfeiccedilatildeo do sistema de ensino (MOYSEacuteS

COLLARES 2015)

Dany-Robert Dufour (2005) fala que quando haacute um fracasso da autoridade da palavra

na arte de educar a alternativa que surge eacute a da prescriccedilatildeo medicamentosa Eacute o que ocorre

quando a escola se abre ao discurso medicalizante a partir do qual pensa que se natildeo

conseguimos educar os alunos a saiacuteda eacute medicaacute-los Para o autor isso faria parte de uma

negaccedilatildeo geracional em que natildeo haacute responsabilidade pela transmissatildeo da cultura que pode

ocorrer pela via da palavra

Maneiro e Minnicelli (2013) chamam atenccedilatildeo para a tendecircncia que existe hoje nos

espaccedilos onde circulam crianccedilas e adolescentes de transmissatildeo pela via do orgacircnico e geneacutetico

ou seja do palpaacutevel e material jaacute que esse modo de transmitir alcanccedila uma melhor compreensatildeo

das pessoas Assim a infacircncia vai se enclausurando em diagnoacutesticos e tratamentos que a

excluem

Monteiro (2013) considera fundamental o jogo de relaccedilotildees formado no espaccedilo escolar

para pensarmos a indicaccedilatildeo de problemas de aprendizagem A autora nos ajuda a problematizar

o encontro do aluno com seu educador atribuindo grande importacircncia agrave posiccedilatildeo ocupada pelo

professor em sua funccedilatildeo de educar Se o professor se apresentar como algueacutem que deteacutem um

saber absoluto fechado que tem o intuito de transmitir apenas certezas e garantias o aluno

pode natildeo encontrar espaccedilo para duacutevidas uma brecha para produzir suas questotildees e assim a

educaccedilatildeo pode natildeo fazer sentido para ele Da mesma forma o aprender na escola pode natildeo ter

sentido pode natildeo propiciar uma experiecircncia de aprendizagem ao aluno quando o educador se

apresentar como algueacutem que natildeo sustenta o lugar de fala que se desautoriza e se sente impotente

em sua funccedilatildeo de transmissatildeo Assim de acordo com Monteiro (2013) muitos sintomas que

constituem o chamado fracasso escolar satildeo decorrentes do modo como o professor se relaciona

com o lugar de saber e de como ele o apresenta aos seus alunos

Talvez os sintomas do TDAH desatenccedilatildeo e hiperatividade deixem de causar

preocupaccedilatildeo quando o educador puder supor que haacute ocasiotildees em que algo de sua fala pode

fisgar os alunos em seu desejo de aprender produzindo como efeito a atenccedilatildeo dos estudantes agrave

sua aula mas que tambeacutem as crianccedilas podem aprender fora dos contornos de sua intervenccedilatildeo

em momentos em que estiverem desatentas agrave aula circulando pela sala ou conversando Ou

seja a escola pode ser rica em momentos nos quais o que desperta o interesse das crianccedilas estaacute

172

para aleacutem da sala de aula e dos conteuacutedos curriculares e tambeacutem nesses momentos eacute possiacutevel

aprender alguma coisa

Ainda que aqui estejamos tomando a figura do professor como equivalente agrave figura do

educador entendemos que o professor eacute um educador na medida em que sua funccedilatildeo social eacute

educar da mesma forma que qualquer adulto que se dirigir a uma crianccedila no intuito de educaacute-

la filiaacute-la a uma tradiccedilatildeo cultural tambeacutem poderaacute ser considerado educador jaacute que seu ato

poderaacute inscrevecirc-la num mundo de coacutedigos compartilhados

Acreditamos que eacute com a trama das relaccedilotildees escolares e das produccedilotildees do estudante no

espaccedilo educativo que ele pode encontrar uma forma de desenlace para os conflitos que

experimenta um desenlace que tambeacutem daacute lugar ao dionisiacuteaco na educaccedilatildeo o qual emana do

jogo entre agentes escolares Eacute possiacutevel pensar um desenlace criado com os personagens que

fazem o enredo sem que seja necessaacuteria a produccedilatildeo de um fora o qual denominamos deus ex

machina e que a medicalizaccedilatildeo vem a ocupar Como a histoacuteria poderia seguir para que o

desenlace se torne ldquoreenlacerdquo

42 A falta como operadora da criaccedilatildeo

Da apreciaccedilatildeo do traacutegico na trageacutedia antiga e do comentaacuterio de Lacan sobre a Antiacutegona

de Soacutefocles apresentados na segunda parte deste trabalho recolhemos a eacutetica psicanaliacutetica e o

operar significante que conduz agrave criaccedilatildeo ex nihilo Para situar este fabricar com o vazio Lacan

toma por metaacutefora a atividade do oleiro ao produzir o vaso talvez o significante mais antigo

modelado pelo humano Na accedilatildeo de fazer esse objeto material o oleiro acaba por criar um

vazio e a perspectiva de preenchecirc-lo o que lhe eacute inerente Nesse sentido o vaso eacute um lugar

vazio de significante que permite que se deslindem outros significantes A partir dessa

representaccedilatildeo entendemos que uma rede simboacutelica se sustenta com um nihilo criado por noacutes

contornado pelo nosso fazer pela nossa accedilatildeo

Lembramos aqui a noccedilatildeo grega de Khocircra apresentada do segundo capiacutetulo entendida

como lugar de passagem onde as coisas tomam forma e se transformam em outras receptaacuteculo

molde Derrida (1995) enfatiza sobretudo o vir a ser o vir a se tornar que tal conceito filosoacutefico

provoca observando a condiccedilatildeo de operar de moldar significantes as potencialidades de criar

uma terceira via um terceiro gecircnero um entrelugar sem secirc-lo

173

Conforme a trageacutedia Antiacutegona tomada como exemplo por Lacan (1959-19601997) ateacute

mesmo o lugar da intervenccedilatildeo divina pode ser situado de acordo com a perspectiva ex nihilo

lugar este situado na fala da personagem como lei simboacutelica que a governa Assim podemos

questionar a presenccedila de um deus ex machina como princiacutepio ordenador na medida em que natildeo

for fruto de nosso fazer e na medida em que natildeo entrar como significante na cadeia mas como

uma significaccedilatildeo total fechada

De acordo com Lacan a criaccedilatildeo ex nihilo remonta agrave criaccedilatildeo de um vazio como o que

decanta da trama significante que o sujeito mobiliza em sua emergecircncia Eacute justo esse vazio que

a resposta medicamentosa procura obturar sem considerar poreacutem que o funcionamento

simboacutelico depende de que esse vazio continue operativo para colocar a maacutequina da vida a girar

Manter a casa do enigma vazia natildeo preenchecirc-la com a resposta medicamentosa

depende da condiccedilatildeo construiacuteda pelo coletivo da escola ndash certamente natildeo se trata de uma

construccedilatildeo de responsabilidade individual do professor ndash de suportar por um periacuteodo de tempo

o impasse que a educaccedilatildeo de certo aluno inscreve e buscar constituir com ele um desenlace A

ldquosoluccedilatildeordquo certamente seraacute fruto de uma invenccedilatildeo e por conta disso por mais que possa orientar

novas invenccedilotildees natildeo teraacute o atributo de poder ser ofertada a todo e qualquer aluno

Por meio de um trabalhar conjuntamente na escola que se faz ex nihilo do nada que

considera os sintomas do TDAH como significantes de outra coisa que bordejam um vazio em

nossa fala que limita um campo possiacutevel e impossiacutevel do nosso dever podemos talvez ir mais

longe mais aleacutem do diagnoacutestico com nossas alternativas educacionais Assim conscientes da

nossa constituiccedilatildeo subjetiva em torno da falta encontramo-nos numa travessia desejante que

pode operar pela via da criaccedilatildeo Uma invenccedilatildeo ocorre pelo operar significante pela produccedilatildeo

de um vazio onde se assenta a condiccedilatildeo de uma experiecircncia subjetiva e o desejo de criar Se no

lugar do vazio o que resultar de nosso fazer eacute uma soluccedilatildeo sob a forma de um deus ex machina

representado por especialistas da sauacutede remeacutedios diagnoacutesticos roacutetulos enfim o que restaria

de condiccedilotildees para a emergecircncia do sujeito no campo escolar

Dissemos que o professor ao se relacionar com o saber de determinada maneira ao

endereccedilar suas palavras aos estudantes iraacute refletir no seu aprendizado no seu desejo pelos

estudos ou em sua dispersatildeo e desrespeito Natildeo queremos contudo responsabilizar

unilateralmente o professor por tudo o que se passa com seus alunos Apenas lembrar que seu

modo de se posicionar ndash do professor e dos outros agentes escolares ndash guarda a potecircncia de

incidir de forma consequente sobre seus alunos

174

Se em seu fazer no endereccedilamento de suas palavras ao aluno ele considerar a forma

como o estudante se apresenta na escola seja atraveacutes da atenccedilatildeo seja atraveacutes da dispersatildeo o

professor se coloca como responsaacutevel sobre os efeitos de seu ensino ainda que os efeitos natildeo

tenham sido necessariamente provocados por ele a princiacutepio Eacute possiacutevel que um estudante com

sintomas de TDAH natildeo esteja ainda fazendo parte do laccedilo social proporcionado pela escola e

isso pode ser em decorrecircncia das questotildees mais diversas No entanto se o professor em seu

fazer agir com o aluno de modo a tomar os sintomas como efeito de sua fala ele pode estar

oferecendo uma possibilidade de laccedilo dando lugar ao sintoma O estudante por sua vez

encontra um outro a quem endereccedilar seu sofrimento e pode com isso sentir-se acolhido

escutado

Sabemos que um educador autorizado em seu saber e em seu fazer natildeo conquista tal

tarefa sozinho precisa de suporte da instituiccedilatildeo de ensino onde trabalha precisa de respaldo e

respeito da comunidade e das poliacuteticas puacuteblicas em educaccedilatildeo A questatildeo natildeo se resolve

facilmente Justamente por conta disso precisamos estar atentos aos deī ex māchinīs que se

instalam na cena escolar com a promessa de resoluccedilatildeo das dificuldades de aprendizagem

quando na verdade privam a possibilidade dos educadores e dos estudantes de descobrirem

juntos uma forma de desenlace ao impasse o que corresponderia no cenaacuterio educativo a uma

forma de laccedilo social na escola

O que nos resta o que a psicanaacutelise nos autoriza a fazer ndash o que atraveacutes da arte de seu

curvar(-se) agrave criaccedilatildeo do poeta como Freud e Lacan fazem diante dos tragedioacutegrafos gregos a

psicanaacutelise nos ensina a fazer ndash eacute construir um saber natildeo sobre o outro mas com o outro e

assim jaacute que Euriacutepides natildeo eacute o mais saacutebio dos poetas mas o segundo mais saacutebio haacute

possibilidade de encontramos as brechas os furos as vias abertas de criaccedilatildeo desejante em suas

peccedilas E nos desafiamos a pensar uma em especial que natildeo eacute qualquer uma mas aquela citada

por Aristoacuteteles aquela que apresenta uma exceccedilatildeo na apariccedilatildeo do deus ex machina quando agrave

espera da puniccedilatildeo divina somos surpreendidos pela divinaccedilatildeo de um ser humano uma mulher

onde talvez podemos encontrar um resiacuteduo do dionisiacuteaco entre elucubraccedilotildees filosoacuteficas

Estamos falando de Medeia

175

5 MEDEIA

51 ldquoAndarilha de incertas geografiasrdquo

De morada e cidade filhos natildeo careceraacute nenhum dos dois ausente a matildee apoacutes o adeus carpido Vou-me andarilha de incertas geografias frustracircnea na visatildeo do regozijo sem lhes doar adorno para o leito nupcial sem soerguer a tocha ao ceacuteu (Medeia vv 1021-1027)

Os estrangeiros deve-se sempre acolhecirc-los Eacute o que dizia a lei da hospitalidade

compartilhada entre gregos Tal lei eacute narrada no episoacutedio da Odisseia em que criados perguntam

ao rei Menelau se devem receber estrangeiros receacutem-chegados ou indicar a casa de algum

vizinho Indignado com a interrogaccedilatildeo o rei ordena que abram as portas sem nem mesmo

perguntar quem eram ou o que queriam os visitantes Um estrangeiro explica Menelau pode

ser um deus disfarccedilado e nesse sentido oferecer hospitalidade eacute tambeacutem respeitar os deuses

Jeanne Marie Gagnebin (2010) nos ajuda a estender a compreensatildeo da hospitalidade

grega Os estrangeiros acolhidos pelos gregos como os de que trata o episoacutedio da Odisseia

pertenciam aos limites geograacuteficos dominados pelos mesmos deuses falavam idioma

semelhante e se submetiam agrave liacutengua e agrave bondade do rei que lhes oferecia abrigo o que contribuiacutea

para reforccedilar seu poder e suas melhores qualidades Nesse sentido o acolhimento do estrangeiro

eacute possiacutevel na medida em que a identidade dos gregos natildeo estiver ameaccedilada pelo outro O que

poderia abalar as estruturas do mundo grego A descoberta de povos regidos por outras crenccedilas

outra liacutengua e cultura tatildeo desenvolvida quanto a grega como eacute o caso dos egiacutepcios Deparar-

se com algueacutem de lugar e de costumes diferentes dignos e vaacutelidos para seu mundo pode causar

no indiviacuteduo a experiecircncia de tambeacutem ver-se como outro estrangeiro para si Afinal o que eacute

mesmo e comum para o outro natildeo o eacute para mim e vice-versa Como restituir os limites e

contornos de minha identidade abalados pela presenccedila do outro

O filoacutesofo Soacutecrates jaacute mencionado neste trabalho como importante influecircncia na

trageacutedia de Euriacutepides eacute condenado agrave morte por sua habilidade em questionar preceitos morais

e costumes Define-se a si mesmo em Apologia de Soacutecrates como um estrangeiro em Atenas

176

ainda que fosse seu fiel cidadatildeo O que podemos entender desse duplo sentimento Eacute possiacutevel

sentir-se um outro em sua proacutepria casa Eacutedipo eacute um homem que preenche essas condiccedilotildees

A heroiacutena Medeia da trageacutedia de Euriacutepides de mesmo nome vive a radicalidade desta

dupla posiccedilatildeo estrangeira em Corinto geograacutefica e culturalmente persona non grata em sua

paacutetria Coacutelquida por ter traiacutedo o rei seu proacuteprio pai Na cidade grega para onde se mudara com

Jasatildeo vive a amargura da traiccedilatildeo do marido e se depara com o conflito de tornar-se uma cidadatilde

grega ou ser uma baacuterbara no sentido mais temido para os coriacutentios Quem eacute Medeia

Gagnebin (2010) lembra o socioacutelogo Georg Simmel para quem um estrangeiro eacute um

andarilho potencial ldquoo que introduz assim uma potencialidade viajante no seio da fixidez

justamente porque ele natildeo se contenta mais em passar mas se estabelece em um lugar que

como se diz natildeo eacute o seu abalando a estabilidade desse proacuteprio lugarrdquo (Gagnebin 2010 p 42)

A estrangeira Medeia perturbava a paz de Corinto pelas notiacutecias que circulavam sobre seu

passado pelo medo de que ela viesse a causar o mal novamente Nesse sentido apoacutes o abandono

de Jasatildeo ela eacute convidada a se retirar ou seja exilada com a cordialidade grega Entre o luto de

ser uma boa esposa e os pensamentos de vinganccedila decorrentes da fuacuteria pela traiccedilatildeo Medeia

coloca em evidecircncia sua estrangeiridade Percebe o quanto se deixou enganar por Jasatildeo e pelos

coriacutentios percebe em si uma cidadatilde quase grega oscila entre desejar a proacutepria morte e realizar

a mais terriacutevel das vinganccedilas Como sustentar sua pertenccedila sem corresponder ao que desejam

dela

Por um momento Medeia pensa em ir embora deixar os filhos na esperanccedila de que

sejam aceitos em Corinto e profere os versos que destacamos na epiacutegrafe O lugar de Medeia

talvez seja esse de ser andarilha potencial andarilha de incertas geografias sem paacutetria na

radicalidade de ser uma outra

De acordo com o tradutor da versatildeo biliacutengue consultada neste trabalho Trajano Vieira

(2010) a personagem Medeia aparece na mitologia grega nas Argonaacuteuticas que contam sobre

expediccedilotildees gregas no mar Negro Eacute atraveacutes do escritor alexandrino Apolocircnio de Rodes que

viveu no seacuteculo III aC que conhecemos a narrativa do mito de Medeia e dos feitos heroicos

de Jasatildeo

Segundo o mito Jasatildeo filho do rei da Tessaacutelia tem seu trono usurpado pelo tio quando

seu pai adoece Seu tio Peacutelias lhe confere uma importante tarefa como condiccedilatildeo de lhe entregar

o reinado recuperar uma reliacutequia de sua famiacutelia que estava sob a posse do rei Eeta da Coacutelquida

Tratava-se do tosatildeo velocino ou velo de ouro pelagem de um carneiro que tem propriedades

177

maacutegicas Quando Jasatildeo chega agrave terra estrangeira o rei Eeta filho do Sol e pai de Medeia

promete devolver a Jasatildeo o velo de ouro se o heroacutei cumprir trecircs difiacuteceis tarefas lavrar um campo

com dois touros monstruosos e semear no campo lavrado os dentes de um dragatildeo Desse plantio

nasceriam guerreiros os quais deveria derrotar Medeia apaixonada ajuda Jasatildeo no

cumprimento das tarefas atraveacutes de sua misteriosa sabedoria na produccedilatildeo de venenos

O rei da Coacutelquida furioso natildeo quer entregar o precircmio mas Medeia consegue mais uma

vez atrapalhar os planos do pai Oferece ao dragatildeo que guardava o velo de ouro uma substacircncia

que o faz dormir Jasatildeo e Medeia conseguem assim fugir para a Tessaacutelia depois de o viajante

ter pedido a princesa em casamento As nuacutepcias ocorrem durante a viagem Apsirto o irmatildeo da

moccedila persegue o casal pelo mar e eacute assassinado pelos argonautas com a ajuda de Medeia Ela

joga o corpo do irmatildeo ao mar para que seu pai se ocupe de buscaacute-lo em vez de persegui-la Na

terra de Jasatildeo Medeia faz com que as filhas do rei na esperanccedila de rejuvenescer o pai matem-

no envenenado Com isso os dois partem e encontram refuacutegio na cidade de Corinto Eacute nesse

lugar que se inicia a accedilatildeo cecircnica da trageacutedia de Euriacutepides Medeia cujo desenrolar conduz

Medeia a assassinar seus proacuteprios filhos o que faz com que fique conhecida como a terriacutevel

matildee infanticida Aleacutem da trageacutedia de Euriacutepides haacute outras versotildees contemporacircneas que

apresentam outras Medeias

Na trageacutedia musical de Chico Buarque Gota drsquoaacutegua haacute a adoccedilatildeo da invenccedilatildeo de

Euriacutepides cometida pela personagem Joana referecircncia clara agrave mulher traiacuteda Medeia Haacute

tambeacutem uma importante versatildeo cinematograacutefica de Pier Paolo Pasolini que se passa na mesma

eacutepoca da peccedila de Euriacutepides e traz o contraste entre o mundo miacutetico de Medeia e o mundo

pragmaacutetico de Jasatildeo

As duas obras citadas satildeo bastante conhecidas mas sabemos que existem outras

encenaccedilotildees propostas de tempos em tempos que optam ou natildeo pelo filiciacutedio O espetaacuteculo

Medeia Vozes da Tribo de Atuadores Oacutei Noacuteis Aqui Traveiz opta por apresentar uma versatildeo

do mito em que Medeia natildeo comete o filiciacutedio Enfatiza as diferenccedilas culturais entre a Coacutelquida

oriental e a Greacutecia ocidental aleacutem de questionar as relaccedilotildees de poder implicadas na

transmissatildeo do mito por Euriacutepides que coloca Medeia como a baacuterbara infanticida a ser banida

Em contraponto a outras versotildees o espetaacuteculo a toma como o bode expiatoacuterio perseguido por

aqueles que detecircm o poder

Na peccedila Medeia diante dos filhos mortos apedrejados pelos cidadatildeos de Corinto fala

que os coriacutentios a acusam de ela mesma ter matado os filhos ldquoQuem acreditaraacute em mimrdquo

178

pergunta ao puacuteblico que passa repensar sobre o mito que conhece Vale dizer que o grupo

teatral inspirou-se no livro homocircnimo da escritora alematilde Christa Wolf para criar a encenaccedilatildeo

Wolf rejeita que Medeia tenha cometido qualquer um dos crimes de que eacute acusada parriciacutedio

fratriciacutedio filiciacutedio entre outros A escritora sustenta que a imagem de uma mulher vingativa

e cruel foi mantida durante milecircnios como forma de apagar a imagem de uma feiticeira poderosa

(MELO 2014)

A encenaccedilatildeo da Tribo de Atuadores Oacutei Noacuteis Aqui Traveiz inova natildeo apenas por livrar

Medeia dos crimes mas tambeacutem na forma como propotildee o desenlace Em vez de sair de cena ex

machina conforme a versatildeo euripidiana protegida por Heacutelios solar Medeia eacute condenada a

vagar sem rumo sem louvores a seu caraacuteter sem aplausos do puacuteblico (pois natildeo retorna para

recebecirc-los) Sai de cena como andarilha errante num lugar de exiacutelio eterno ou como propotildee

Melo (2014) condenada ao natildeo lugar Mesmo destino sem registro de Eacutedipo

52 Medeia de Euriacutepides

A peccedila do tragedioacutegrafo se passa em Corinto A princesa estrangeira e Jasatildeo satildeo casados

e tecircm dois filhos Contudo Jasatildeo trai o laccedilo que tinha com Medeia ao noivar com Glauce filha

do rei Creonte Medeia eacute expulsa pelo rei pois ele a considera uma grande ameaccedila

principalmente agrave sua filha Apesar de ter chegado a Corinto como esposa de Jasatildeo um grego

ela natildeo havia deixado de ser estrangeira O rei reconhece que haacute nela uma cultura diferente

daquela compartilhada entre as pessoas do lugar Haacute um receio de que ela venha causar um mal

jaacute que tem um saber de uma ordem desconhecida conhece o poder das plantas e com elas sabe

produzir remeacutedios e venenos Aleacutem disso no passado foi uma pessoa destrutiva Justificado por

tais ameaccedilas Creonte a manda embora

De acordo com o Dicionaacuterio etimoloacutegico da mitologia grega (2013 p 208) o termo

ldquoMedeiardquo deriva do verbo μήδομαι ldquomeditar um projeto prepararrdquo e significa portanto ldquoa que

medita (um projeto)rdquo De acordo com Trajano Vieira (2010) Medeia deriva de ldquoimaginarrdquo

ldquotramarrdquo ldquoprepararrdquo e tambeacutem de ldquodesiacutegniordquo e ldquopensamentordquo

O que se sucede na histoacuteria Medeia solicita a Creonte apenas mais um dia para

organizar sua partida e pedir a Jasatildeo que aceite ficar com os filhos Apela a Creonte no lugar

de pai para que tenha compaixatildeo Com isso o rei concede mais um dia e Medeia ldquoaquela que

medita que arma um planordquo arranja sua saiacuteda Consegue exiacutelio com o rei Egeu com uma troca

179

que lhe propotildee ldquomeus faacutermacos daratildeo agrave luz os filhos de um sem-filhosrdquo Envenena Glauce e

Creonte que morrem mata os seus dois filhos anuncia a Jasatildeo seu triste fim e sai de cena ex

machina

De acordo com Guinsburg (1992) haacute pelo menos dois erros capitais cometidos por

Euriacutepides em sua trageacutedia Medeia Um quanto agrave forma como nos aponta Aristoacuteteles O outro

aceito pelo filoacutesofo grego mas criticado por Nietzsche eacute uma afronta agrave tradiccedilatildeo miacutetica O

primeiro diz respeito ao desenlace O segundo eacute quanto ao filiciacutedio

Quanto ao desenlace da accedilatildeo Aristoacuteteles comenta o seguinte ldquoEacute pois evidente que

tambeacutem os desenlaces devem resultar da proacutepria estrutura do mito e natildeo do deus ex machina

como acontece em Medeia []rdquo (Poeacutetica XV 1454a 33-36) Acreditamos no entanto com

base em Rebelo (1995) que existe uma diferenccedila importante nesse desenlace quando quem

ocupa o lugar do deus moralizador eacute uma pessoa justamente a heroiacutena do drama Quem entra

em cena atraveacutes da maacutequina eacute a proacutepria Medeia que embora presente desde a primeira cena

(res)surge ao fim na carruagem do Sol com os corpos dos filhos O ex-marido Jasatildeo a

abandonara com a prole para casar com a filha do rei Apesar de ter cometido um ato repulsivo

e impensaacutevel entre as mulheres de Corinto como diz Jasatildeo Medeia consegue ir embora sem

ser atingida por seus inimigos e na posiccedilatildeo divina que ocupa dita acontecimentos futuros

Quanto ao segundo erro natildeo existe referecircncia no mito de Medeia de origem bastante

remota sobre o assassinato dos proacuteprios filhos cometido por ela De acordo com Trajano Vieira

(2010) tradutor de Medeia o filiciacutedio foi uma criaccedilatildeo do tragedioacutegrafo Ou seja por alguma

razatildeo Euriacutepides considerou que seria cabiacutevel que Medeia matasse os filhos que teve com Jasatildeo

Trajano Vieira (2010) conta que eacute muito provaacutevel que Euriacutepides tenha proposto o

filiciacutedio inovando em sua concepccedilatildeo da histoacuteria No mito compartilhado entre os gregos antes

da apresentaccedilatildeo da peccedila euripidiana em 431 aC Medeia fugia de Corinto apoacutes assassinar a

princesa prometida a Jasatildeo e o rei Creonte Assim como apresenta a peccedila Medeia Vozes os

cidadatildeos eacute que matavam as crianccedilas e natildeo a matildee Aristoacuteteles menciona que Euriacutepides

modificava o mito o que eacute uma escolha que fere os preceitos de uma trageacutedia ideal a qual deve

ser fiel ao mito mas ainda assim trata-o como o mais traacutegico dos poetas provavelmente por

ousar trazer agrave cena os limites aos quais os heroacuteis podem chegar com suas accedilotildees Desse modo

na versatildeo apresentada por Euriacutepides o assassinato cometido pela protagonista aparece

superficialmente como uma vinganccedila decorrente da traiccedilatildeo do marido

180

521 Hoacuterkos

De acordo com Vieira (2010) natildeo haacute uma justificativa passional no crime natildeo haacute ciuacuteme

de Medeia em relaccedilatildeo a Jasatildeo pois natildeo fica expliacutecita uma ligaccedilatildeo afetiva forte entre os dois

pelo menos na peccedila euripidiana Medeia mata as crianccedilas assim como comete outros

assassinatos porque Jasatildeo quebra um acordo um comprometimento que os dois tinham

firmado desde a conquista do velo de ouro ldquoNatildeo eacute da manifestaccedilatildeo afetiva que Medeia sente

falta mas da manutenccedilatildeo do compromisso A traiccedilatildeo decorre do fato de o ex-esposo natildeo

preservar o conjunto de favores proporcionados por ela em seu peacuteriplo bem-sucedidordquo

(VIEIRA 2010 p 158) O peacuteriplo bem-sucedido eacute relembrado por Medeia em seu primeiro

diaacutelogo com Jasatildeo apoacutes o edito de expulsatildeo realizado por Creonte

[] quem salvou tua vida os gregos sabem todos os nautas de Argo quando em touros fogo- -arfantes impuseste o jugo quando semeaste o campo que abrigava a morte E a serpente-vigia que abraccedilava com a rosca de aneacuteis o velo de ouro assassinei e fiz jorrar a luz Traiacute morada e pai ao vir contigo [] Homuacutenculo me pagas como Enganando-me ao leito ainda virgem depois que procriei (Medeia vv 475-490)

Qual o motivo da fuacuteria de Medeia com Jasatildeo O fato de ele natildeo ter cumprido a sua

promessa natildeo ter feito exatamente o que Medeia esperava dele Medeia queria que Jasatildeo tivesse

domiacutenio absoluto sobre as suas palavras e accedilotildees Natildeo fica expliacutecito na peccedila precisamente o que

se passou entre os dois na Coacutelquida natildeo haacute uma prova de Jasatildeo dizendo que ficaraacute com Medeia

para sempre que a assumiraacute como digna esposa na Greacutecia e honraraacute eternamente o leito

matrimonial se ela o ajudar em sua difiacutecil jornada Mas eacute assim que Medeia toma a proposta

de Jasatildeo e eacute assim que ela lhe cobra Rompe seus viacutenculos com sua terra e com sua famiacutelia para

constituir novos laccedilos com Jasatildeo em um novo lugar Lembramos Antiacutegona que cumpre com

seu juramento em relaccedilatildeo ao pedido do irmatildeo Polinices o de ser enterrado agrave custa de sua

proacutepria vida honrando as leis natildeo escritas

181

Como Jasatildeo natildeo cumpre a promessa da forma como ela espera ou seja um acolhimento

em solo estrangeiro e o lugar de esposa Medeia se volta para os filhos com uma forccedila destrutiva

vislumbrando neles o que tem que suportar como resto de suas escolhas e de seus planos

ldquoDobrou-me o mal mirar os dois natildeo eacute possiacutevelrdquo ela diz (Medeia vv 1076-1077) Essa eacute uma

maneira de entender o infanticiacutedio

De acordo com Oliveira (2007) o significante principal do drama de Euriacutepides que

amarra todos os outros da peccedila eacute hoacuterkos cujo significado eacute ldquojuramentordquo ou ldquoaquilo que

prenderdquo Ou seja eacute um significante que exerce na obra a funccedilatildeo de amarraccedilatildeo da mesma forma

que isso se refere ao seu significado Para Oliveira o campo do hoacuterkos estaacute fora dos domiacutenios

da Lei que organiza o mundo mitoloacutegico sob o ordenamento do grande Zeus Ou seja dentro

da dimensatildeo do juramento todos os acordos satildeo ainda precaacuterios pois estatildeo na iminecircncia de

natildeo serem cumpridos Com isso

[] a jura ou juramento pertence a um campo onde a Lei ainda natildeo estaacute propriamente instituiacuteda um campo onde ainda natildeo haacute o bem e o mal um campo para aqueacutem ou para aleacutem do bem e do mal e por conseguinte para aqueacutem ou para aleacutem da proacutepria Lei [] Eacute nesse contexto que temos que entender a posiccedilatildeo de Medeia Ela natildeo conhece propriamente o campo da Lei Ela jaacute tinha dado muitas provas disso antes de chegar a Corinto e continuaraacute dando provas disso mesmo quando de laacute partir A uacutenica coisa que organiza sua existecircncia e que lhe daacute um lugar na cidade ela que eacute sem cidade eacute a jura que Jasatildeo lhe fez (OLIVEIRA 2007 p 66)

Dessa forma na medida em que Jasatildeo natildeo honra a jura que tem com Medeia ou seja o

compromisso que tinha firmado por ter recebido ajuda na conquista do velo de ouro ela

experimenta um terriacutevel sentimento a destruiccedilatildeo de tudo o que havia constituiacutedo a partir da

uniatildeo com ele Medeia natildeo eacute grega eacute da Coacutelquida paiacutes baacuterbaro Ela eacute estrangeira sob o ceacuteu

grego e seu casamento com Jasatildeo eacute garantido apenas pelo hoacuterkos Quando desonrada por Jasatildeo

para Medeia natildeo resta garantia alguma a natildeo ser buscar um novo laccedilo que a sustente Oliveira

(2007) demarca os momentos da peccedila em que existe menccedilatildeo agraves juras de forma que organizam

a estrutura dramaacutetica a nutriz e o coro citam o juramento de Jasatildeo chamam Medeia de

desonrada Medeia acusa Jasatildeo de desonrar a diacutevida que deve a ela Medeia clama agrave deusa

Tecircmis guardiatilde das juras para interceder pelo seu destino o que tambeacutem eacute frisado pelo coro e

pela nutriz A respeito disso Oliveira (2007) argumenta que Medeia soacute pode reclamar aos

deuses e natildeo aos homens por seu compromisso desonrado Segundo ele como a jura natildeo

pertence ao campo simboacutelico da Lei a mulher precisa exigir o cumprimento da promessa no

182

campo do real o campo de onde os deuses podem intervir de modo inesperado tatildeo inesperado

quanto o seu ato de matar os proacuteprios filhos

Podemos entender que as accedilotildees de Medeia de matar seus filhos e em seguida fugir na

carruagem de Apolo estatildeo interligadas tomar ambas como inovaccedilotildees do mito O que nos

parece como leitores da peccedila eacute que fazia parte do jogo de relaccedilotildees entre os personagens que

Medeia cometesse sim uma accedilatildeo contra o descumprimento do hoacuterkos por parte de Jasatildeo visto

que ela abandona sua paacutetria ajuda-o na captura da pele dourada do carneiro alado escondida

pelo seu pai ajuda-o tambeacutem a vingar-se do tio tirano ndash todos esses satildeo acontecimentos

anteriores agrave peccedila e aqui caberia caso o autor assim desejasse o recurso deus ex machina de

acordo com a esteacutetica aristoteacutelica jaacute que isso natildeo eacute capaz de modificar o rumo da histoacuteria Mas

quem introduz a peccedila eacute a nutriz mulher cuidadora das crianccedilas registrando outra marca da

inovaccedilatildeo de Euriacutepides ou seja dar voz agraves pessoas sem prestiacutegio social

Aleacutem disso Medeia eacute expulsa de Corinto pelo rei No primeiro diaacutelogo que tem com

Jasatildeo eacute transparente fala de seu oacutedio e desejo de vinganccedila Em posterior conversa com o coro

de mulheres fala em matar a todos e fugir com os filhos mas sabe que natildeo seria acolhida em

lugar algum Ousamos dizer que um dos caminhos possiacuteveis para desenlace da peccedila buscando

o ideal aristoteacutelico seria aquele em que Medeia mataria noiva e pai e tentaria fugir com os

filhos As crianccedilas acabariam mortas pelos cidadatildeos conforme o mito Medeia acabaria morta

ao tentar entrar em nova cidade ou quem sabe tomaria algum veneno ao saber da morte dos

filhos e Jasatildeo sentiria grande dor e arrependimento destinado a uma vida infeliz Essa possiacutevel

versatildeo preservaria o mito e apresentaria a linha de accedilatildeo em decorrecircncia da desmedida de Jasatildeo

As accedilotildees de Medeia mostrariam seu caraacuteter vingativo e furioso e estariam de certa forma

contornadas pelos limites da trama

522 Sopheacute

A escolha de Euriacutepides eacute outra Medeia engana Jasatildeo e Creonte quanto a suas intenccedilotildees

enquanto arma o seguinte plano promete a Egeu um filho em troca de acolhimento em sua

terra Depois disso envia as crianccedilas com presentes envenenados para a princesa que

educadamente os aceita e os veste Ao ver a filha agonizar Creonte tenta tirar-lhe o veneno

mas tambeacutem morre envenenado Haacute expectativa de Medeia de que as crianccedilas tambeacutem fossem

183

acidentalmente atingidas pelo veneno No entanto o personagem que as conduz ao paccedilo real

o pedagogo frustra-a ao revelar que os meninos estatildeo a salvo

Aqui a histoacuteria poderia tomar novo rumo Bem poderia Medeia nesse ponto fugir ilesa

com os filhos Jasatildeo natildeo estaria vingado Natildeo para ela Apoacutes momentos de oscilaccedilatildeo em que

considera preservar a vida dos filhos Medeia parece despertar de repente de uma escolha que

natildeo reconhece como sua

Prejudicar crianccedilas em prejuiacutezo do pai natildeo dobra o mal Faraacute sentido Comigo natildeo adeus projetos aacuterduos O que se passa em mim Acertarei O escaacuternio de inimigos impunidos Que infacircmia ouvir de mim reclamos tiacutepicos de gente frouxa Ao rasgo de ousadia (Medeia vv 1046-1052)

Alegando atingir Jasatildeo pois supotildee que natildeo haveria dor maior do que esta a matildee decide

matar as crianccedilas Como os dois natildeo satildeo atingidos pelo veneno que levam agrave noiva do pai

Medeia acaba por mataacute-los com um punhal antes de sair de cena ex machina

Vieira (2010 p 158) comenta a raridade de tal desenlace ldquoEacute sem duacutevida impressionante

tal desfecho imagem que sugere antes a luminosidade e o futuro alvissareiro do que o pesar e

a puniccedilatildeo pelo ato macabro que estamos acostumados a ler nos epiacutelogos traacutegicosrdquo

Numa outra passagem Vieira (2010) comenta o quatildeo inusitado eacute o recurso do deus ex

machina em tal peccedila pois natildeo eacute propriamente um deus que desce do ceacuteu para exercer o

julgamento final e a puniccedilatildeo sobre os personagens como ocorria costumeiramente em trageacutedias

que terminavam com esse recurso ldquoComo interpretar esse final surpreendente de que estaacute

ausente o mecanismo de puniccedilatildeo divina [] A autonomia humana nos sugere um universo

novo em que a puniccedilatildeo natildeo eacute decorrecircncia necessaacuteria da accedilatildeo desmedidardquo (VIEIRA 2010 p

170)

Estaria mesmo ausente o mecanismo da puniccedilatildeo divina A accedilatildeo impune de Medeia eacute

desmedida ou fora muito bem arquitetada O assassinato dos filhos natildeo foi cometido num

momento de fuacuteria de descontrole das paixotildees mas executado num momento propiacutecio apoacutes o

envenenamento de Glauce apoacutes Medeia ter encontrado um lugar de exiacutelio junto a Egeu no seu

uacuteltimo dia em Corinto Eacute Medeia que encarna tal mecanismo divino ela eacute o deus ex machina

que age muito antes de subir agrave carruagem de Apolo Vieira (2010) parece concordar ao

184

compreender que Euriacutepides o proacuteprio autor eacute quem age atraveacutes de Medeia Tem-se a impressatildeo

de que ela eacute o ponto de articulaccedilatildeo de toda a peccedila pois os personagens agem conforme suas

vontades e sofrem de acordo com suas decisotildees Medeia tem um caraacuteter farsesco em que a

protagonista consegue manipular todos agrave sua volta iludi-los com intenccedilotildees falsas e ser bem-

sucedida em seus planos escapando ilesa

Vieira (2010) aponta que a ciecircncia de Medeia coincide com a ciecircncia de Euriacutepides Isso

aparece atraveacutes do significante sopheacute cujo radical estaacute presente 23 vezes no texto A

protagonista eacute assim denominada pelos outros personagens e por si mesma jaacute que reivindica a

si esse significante e por ele comete seus atos macabros Sopheacute de acordo com Vieira (2010)

eacute tambeacutem utilizado para designar caracteriacutesticas que apontam o autocontrole e a ponderaccedilatildeo de

Medeia aleacutem de indicar criaccedilatildeo e inovaccedilatildeo Eacute nesse ponto que a sua sophiacutea estaacute atrelada agrave de

Euriacutepides pois o ato ldquoinovadorrdquo de Medeia eacute tambeacutem o ato inovador do tragedioacutegrafo O

filiciacutedio ato destrutivo eacute um ato inaugurador inconcebiacutevel e impraticaacutevel pelos demais

cidadatildeos Assim aponta Vieira (2010)

Natildeo haacute nada de heroico em apunhalar crianccedilas indefesas mas natildeo eacute isso que Medeia reivindica O ineditismo de sua accedilatildeo passional confunde-se com o argumento dramaacutetico De certo modo Euriacutepides fala pela voz de sua personagem ao imaginar um enredo que se destaca pela novidade Nesse sentido o autor pode ser considerado um escritor moderno O ineditismo do ato que estaacute para praticar pelo qual Medeia se eterniza confunde-se com a originalidade do tema imaginado pelo autor Que o novo seja o horror eacute um aspecto secundaacuterio para um poeta que inventa uma personagem que insiste no caraacuteter novo da ldquosabedoriardquo implicada na accedilatildeo que estaacute por ocorrer [] (VIEIRA 2010 p 159)

O interesse de Euriacutepides em propor o filiciacutedio em sua obra pode ser motivado mais pela

tentativa de alccedilar uma originalidade do que problematizar o horror No entanto ao natildeo permitir

em sua Medeia que o horror do filiciacutedio seja elaborado em accedilatildeo ao natildeo inscrever um desenlace

que convoque o consolo metafiacutesico Euriacutepides acaba por sugerir outra coisa que a racionalidade

e a ciecircncia expandam seus limites de modo a engolfar dominar justificar legitimar o ato

destrutivo desembocando tal ato num ato criativo Lembremos que aqui o que natildeo tem

reconhecimento ou legitimidade eacute o dionisiacuteaco esse aspecto da trageacutedia que natildeo se define que

transborda lugar de gozo que natildeo tem nome

De acordo com uma leitura nietzschiana de uma obra de Euriacutepides eacute possiacutevel dizer que

Medeia vence sua pura afetaccedilatildeo natildeo permitindo a derrota do raciociacutenio arquitetando e

185

executando o assassinato Isso eacute o novo o moderno O ato de Medeia de matar os filhos motivo

que faz Jasatildeo chamaacute-la de natildeo humana eacute o mesmo que a faz ser racional Assim como

Antiacutegona considerada desumana por acessar um saber inatingiacutevel por uma pessoa comum

Medeia provoca assombro por ter uma sabedoria ou ainda um domiacutenio de conhecimento de

outra ordem Em Antiacutegona haacute lugar para o dionisiacuteaco articulado a um saber que se sabe em

accedilatildeo quando a heroiacutena revela seu iacutempeto sua inflexibilidade sua crueza E o ldquosaberrdquo de

Medeia como eacute

Em Nietzsche (18721992 p 108) como jaacute mencionado o deus ex machina estaacute a

serviccedilo da razatildeo que se impotildee para corrigir o mundo a serviccedilo de ldquouma vida guiada pela

ciecircnciardquo Como tambeacutem jaacute discutido a partir de Vieira (2010) em Medeia o significante sopheacute

ldquosaacutebiardquo eacute atribuiacutedo de igual modo a ldquoponderadardquo ldquoautocontroladardquo No desenvolvimento das

cenas da trageacutedia apoacutes Medeia ser expulsa de Corinto com seus filhos os diaacutelogos que ela

manteacutem com os demais personagens demonstram que estaacute tramando um plano enquanto tenta

convencer seus inimigos que seguiraacute as ordens de Creonte O ldquosaberrdquo de Medeia parece ser algo

que se revela em sua fala ao mesmo tempo que suas palavras mascaram o que estaacute por traacutes das

suas verdadeiras intenccedilotildees Eacute uma consciecircncia enganadora Diferentemente de Antiacutegona que

com sua fala conduz o espectador e os outros personagens para o buraco de sua cova sua eterna

morada

523 Aacutetē

Sabemos que existem outras versotildees para o mito de Medeia em que ela natildeo comete

filiciacutedio ou qualquer outro crime violento No entanto buscamos pensar a estrutura proposta

por Euriacutepides como paradigmaacutetica de uma transiccedilatildeo em que as mudanccedilas de um mundo miacutetico

para um mundo filosoacutefico e poliacutetico passam a aparecer Nesse sentido como entender o ato

filicida de Medeia Parece ser um excesso um ato que natildeo se encontra no jogo formado pela

trama tatildeo bem articulada pela saacutebia mulher mas algo que transborda agrave cena Quando dizemos

excesso natildeo estamos nos referindo agrave hybris grega agrave desmedida do personagem a arrogacircncia de

seu caraacuteter que o leva ao erro de julgamento ou agrave hamartia como comete Creonte em Antiacutegona

de Soacutefocles O caso de Medeia em nossa visatildeo eacute de um excesso natildeo estipulaacutevel nos contornos

da encenaccedilatildeo traacutegica ao menos natildeo haacute nada na histoacuteria contada por Euriacutepides no argumento

do coro que situe o ato final como erro de julgamento ou como falha do caraacuteter Ela sabia o

186

que estava fazendo Diz ldquoNatildeo eacute que ignore a horripilacircncia do que perfarei mas a emoccedilatildeo

derrota raciociacutenios e eacute causa dos mais graves malefiacuteciosrdquo (Medeia vv 1077-1080)

Em nota de rodapeacute Vieira (2010) afirma que nesse trecho existe na opiniatildeo de alguns

comentadores uma menccedilatildeo ao socratismo agrave impossibilidade do homem praticar o mal

conscientemente Isso parece curioso pois Medeia afirma ter consciecircncia do mal que iraacute fazer

ainda que admita que esse mal esteja dominado por um impulso irracional Mas admiti-lo natildeo

freia seu ato O que estaacute aiacute em questatildeo

Sobre a accedilatildeo humana defendida por Soacutecrates Zingano (2009) afirma que

O agente pode ter uma opiniatildeo errada e assim buscar um fim que no fundo eacute para ele um grande mal mas para explicar o seu erro moral basta apelar ao tipo de crenccedila que possuiacutea sem precisar lanccedilar matildeo de qualquer conflito entre o que pensa e emoccedilotildees ou paixotildees que sente A accedilatildeo pode ser acompanhada de emoccedilotildees e paixotildees mas estas em nenhum momento a guiam pois seu elemento determinante eacute a crenccedila que o agente tem no momento em que age Se o agente tiver um saber do fim visto que o saber eacute sempre verdadeiro natildeo haacute como deixar de buscar seu verdadeiro bem (ZINGANO 2009 p 20-21)

Para concluir seu plano para que ele se torne perfeito Medeia precisa matar os filhos

enfrentando a dor e o sofrimento desse terriacutevel ato

Contudo podemos pensar o ato de Medeia por outra via Parece se tratar da aacutetē limite para

onde Antiacutegona se dirige interpretado por Aristoacuteteles como mais uma forma da hamartia e por

Lacan (1959-19601997) como a fronteira que delimita as accedilotildees possiacuteveis agrave vida humana

estando nesse sentido para aleacutem do erro Aleacutem do campo da aacutetē eacute o lugar em que Antiacutegona se

situa para onde se direciona seu desejo Eacute o lugar para onde Medeia acaba por nos conduzir

surpreendentemente com sua accedilatildeo

Atribui-se o horror a Medeia individualmente em seu caraacuteter terriacutevel em sua ldquoacircnima

megaintumescida antidelimitaacutevelrdquo (Medeia vv 108-109) Interessa ao autor justamente a

complexidade dos sentimentos a individualidade dos personagens O que diferencia Medeia

dos demais para que esteja tatildeo soacute em seu ato terriacutevel Ora ela eacute baacuterbara saacutebia e mulher de

caraacuteter furioso (o que Aristoacuteteles natildeo recomendava agraves personagens mulheres) Representa um

estrangeirismo uma alteridade radical em relaccedilatildeo agrave poacutelis grega agrave sua moral e a seus bons

costumes Em nada o espectador grego se identifica com ela No entanto possui uma das

virtudes mais admiraacuteveis e desejaacuteveis do helenismo o discurso Nesse sentido haacute uma

complexidade em seu caraacuteter que divide o espectador mais disponiacutevel Se haacute em Antiacutegona a

187

tensatildeo entre o horror e a beleza que seu ato produz ao atravessar as fronteiras da aacutetē talvez em

Medeia haja tensatildeo entre o horror ao seu ato e admiraccedilatildeo por sua inteligecircncia o desejo de ver

ateacute onde sua armaccedilatildeo nos conduziraacute

O drama euripidiano permanece como o mais conhecido sobrepondo-se ateacute mesmo ao

mito ainda que cause efeitos distintos daqueles imaginados por Aristoacuteteles ou seja de piedade

e temor Natildeo que esses sentimentos natildeo possam ocorrer ao assistir a peccedila mas cabe indagar

de que modo a encenaccedilatildeo fora arranjada para que o puacuteblico grego pudesse sentir piedade da

matildee assassina O que temer se uma mulher terriacutevel como ela escapa agrave puniccedilatildeo divina por um

recurso cecircnico que representa o justo e correto Quais inquietaccedilotildees teratildeo sido provocadas aos

espectadores de uma peccedila que ficou em uacuteltimo lugar no concurso de trageacutedias Satildeo muitas as

inovaccedilotildees e complexidades de Euriacutepides com a trama de Medeia

524 Medeia ex machina como desenlace

Pensemos agora na seguinte fala da nutriz

Acerta quem registre a obtusidade o saber vazio dos antigos inventores de poesia som em que germina a vida no afago do festim Natildeo houve musa que desvendasse em cantos pluricordes a arte de estancar o luto luacutegubre dizimador de moradias com o reveacutes atroz de Tacircnatos Que lucro logro em curar musicalmente o luto Por que a inutilidade da voz no sobretom no acircmbito da festa farta Na plenitude do cardaacutepio disponiacutevel vigora o regozijo (Medeia vv 190-202)

Para Vieira (2010) a criacutetica da nutriz eacute em relaccedilatildeo agrave impossibilidade dos efeitos

prazerosos da poesia prevalecerem sobre a dor do luto De acordo com o autor Euriacutepides fala

aqui atraveacutes de uma personagem com o intuito de criticar a trageacutedia de seus antecessores que

tornavam a morte um ato nobre e admiraacutevel ao passo que deveria ser apresentada com sua

crueza e horror O respeito ao mito a valorizaccedilatildeo do coro elementos fraacutegeis nos dramas

188

euripidianos natildeo satildeo caracteriacutesticas que tornam o luto mais faacutecil em obras de outros

tragedioacutegrafos

Atraveacutes da fala da nutriz Euriacutepides parece criticar os poetas antigos na sua impotecircncia

e irresponsabilidade diante da pulsatildeo destrutiva a pulsatildeo de morte Talvez na leitura de

Euriacutepides a arte traacutegica de seus antecessores buscasse derrotar a anguacutestia e a destrutividade

quando na verdade a trageacutedia operava com a tensatildeo com o jogo de forccedilas apoliacuteneo-donisiacuteaco

sem que um impulso se supervalorize em detrimento do outro Afinal eacute com essa tensatildeo que a

trageacutedia se torna bela No entanto para Euriacutepides atraveacutes de sua Medeia haacute um resto um

excesso que transborda o qual natildeo haacute musa capaz de contornar

Euriacutepides pode expressar a tocircnica de um tempo de transiccedilatildeo de um tempo miacutetico ao

mundo filosoacutefico como aponta Vorsatz (2013) ao reivindicar uma nova forma de lidar com

isso que natildeo se inscreve E ao natildeo se inscrever repete-se como acontece a Medeia em seu ato

de matar filhos que se inscreve em repeticcedilatildeo Eacute possiacutevel que Medeia tenha se eternizado na

radicalidade desse ato mata o filho de seu pai seu irmatildeo mata a filha de Creonte a princesa

por fim mata os filhos de Jasatildeo que satildeo tambeacutem seus

Podemos tambeacutem pensar a partir da fala da nutriz que haacute uma criacutetica ao consolo

metafiacutesico apontado por Nietzsche (18721992) ao apaziguamento final decorrente da tensatildeo

entre a dimensatildeo apoliacutenea e a dionisiacuteaca com a qual Euriacutepides natildeo se conforma Mais um

indiacutecio que justifica a escolha de deus ex machina ao fim do drama Como natildeo eacute possiacutevel agraves

encenaccedilotildees traacutegicas uma cura do luto tambeacutem natildeo eacute possiacutevel uma sensaccedilatildeo de apaziguamento

a catarse decorrente do encadeamento de accedilotildees que formam o drama Embora esse

encadeamento natildeo produza uma soluccedilatildeo final para os conflitos entre os personagens

(ROSENFIELD 2000) o proacuteprio ato de encenar de repetir suscita uma experiecircncia esteacutetica

que produz um saber sobre a vida O deus ex machina teria a funccedilatildeo de solucionar os conflitos

Como a maquinaria trabalha com esse resto com esse gozo que Euriacutepides propotildee

destacar do arranjo cecircnico e transbordar para aleacutem dos fins esteacuteticos No carro alado do deus

Sol Medeia anuncia que iraacute viver em outra terra sob a proteccedilatildeo dos deuses fora do alcance

dos inimigos e que Jasatildeo morreraacute tragicamente Escapa impune por ser sopheacute termo a ela

atribuiacutedo nos diaacutelogos da peccedila (VIEIRA 2010) o qual podemos entender por ldquosaacutebiardquo Em

funccedilatildeo de ter planejado sua fuga e ter sabiamente enganado todos quanto agraves suas intenccedilotildees ela

consegue fugir Utiliza bons argumentos destaca-se pelo bom uso da retoacuterica pelo qual eacute

189

elogiada e temida e com isso conquista tudo o que precisa para permanecer viva e comeccedilar

nova vida com Egeu Nesse sentido a soluccedilatildeo estaacute no discurso no uso que faz do logos

Eacute um novo uso da palavra que Euriacutepides sugere natildeo apenas como palavra posta em accedilatildeo

para garantir a existecircncia divina da qual o heroacutei deriva como sujeito mas palavra que utiliza

seu poder de persuasatildeo e argumentaccedilatildeo para enganar o outro oferecendo aquilo que o outro

deseja ouvir Apoacutes articular com Egeu seu acolhimento em outra terra diz a Jasatildeo iludindo-o

quanto a suas verdadeiras intenccedilotildees ldquoVislumbrei no automergulho a estupidez de meu

ressentimento Me apercebo do quanto te preocupas em nos propiciar parentes nobres Errei

ao me excluir do plano ao natildeocolaborar ao natildeo servir a noiva sorrindo agrave beira-leitordquo

(Medeia vv 882-888)

Podemos tambeacutem tentar entender a problemaacutetica colocada por Euriacutepides em seu drama

sob outra luz Natildeo haacute como natildeo captar a ironia de Medeia ao dizer que errou ao se excluir do

plano proposto por Jasatildeo Quem a excluiu na verdade foi o povo de Corinto O rei ao mandaacute-

la embora Jasatildeo ao natildeo considerar o casamento com ela e noivar com a princesa O motivo eacute

o fato de ser aleacutem de estrangeira e mulher sagaz pessoa terriacutevel No entanto se natildeo coubesse

a ela o caraacuteter furioso a tarefa de matar a quem caberia Se ela natildeo tivesse ajudado Jasatildeo natildeo

teria alcanccedilado seus objetivos podendo ter morrido Nesse sentido ela se vecirc usada e descartada

natildeo acolhida em terra estrangeira Quem a exclui do jogo cecircnico dessa forma desde o princiacutepio

da peccedila satildeo os cidadatildeos que natildeo querem hospedar em sua terra algueacutem como ela

Assim a trageacutedia segue um novo rumo que natildeo se daacute no sentimento do traacutegico que

transcende a polaridade que resulta de um conflito insoluacutevel quando cada um dos polos ocupa

uma posiccedilatildeo legiacutetima O novo drama se daacute pela manipulaccedilatildeo exclusatildeo uso do outro Nesse

sentido natildeo haacute apaziguamento ou consolo final sentimento que emana da experiecircncia traacutegica

da experiecircncia esteacutetica do belo O que haacute eacute vitoacuteria da razatildeo da nova funccedilatildeo da palavra na cena

da trageacutedia

Percebemos a sagacidade de Euriacutepides em propor sua versatildeo em solo ateniense terra

onde crescia o sofismo a arte capaz de argumentar em defesa de uma verdade cientiacutefica contra

as crenccedilas mitoloacutegicas Podemos dizer que sua proposta tem matildeo dupla em primeiro lugar de

certa forma ele mostra a deficiecircncia dos valores e leis da poacutelis grega que ainda que em

referecircncia aos deuses e aos mitos mostram-se insuficientes ao tratar de questotildees que tocam a

alteridade como o estrangeiro a mulher formas outras de saber Em segundo lugar se haacute

exclusatildeo produccedilatildeo de um fora em relaccedilatildeo a Medeia ele torna esse fora a fronteira mais

190

evidente com o deus ex machina com a proteccedilatildeo dos deuses Nesse sentido ele tambeacutem faz

uso do sofismo para combater o sofismo ateniense

O que deus ex machina pode vir a cumprir no fim da peccedila Podemos tentar compreender

isso com a uacuteltima fala do coro a que encerra a trama ldquoDe inuacutemeras accedilotildees Zeus eacute ecocircnomo

deuses forjam inuacutemeras surpresas O previsiacutevel natildeo se concretiza o deus descobre a via do

imprevisto E assim esta performance terminardquo (Medeia vv 1415-1419) Zeus eacute o deus

supremo da mitologia grega que domina a vida humana comanda as demais divindades e

estende seu poder para aleacutem daquilo que podemos prever O previsiacutevel que natildeo se concretiza o

interpretamos como a puniccedilatildeo de Medeia que natildeo acontece Nesse sentido a mensagem final

do coro eacute para Jasatildeo e demais cidadatildeos coriacutentios A via do imprevisto eacute aquilo que nossa

compreensatildeo natildeo alcanccedila que nossa consciecircncia natildeo atinge Nesse sentido somos

surpreendidos por isso que natildeo conseguimos controlar que natildeo dominamos

Conforme Lacan (1960-19611992) os deuses gregos pertencem ao campo do real

compreendido pela psicanaacutelise como o limite da articulaccedilatildeo significante O que essa mensagem

pode nos dizer sobre a eacutetica da psicanaacutelise Apesar de natildeo prevermos e natildeo controlarmos o que

pode nos acontecer uma postura eacutetica condiz com aquela de quem se responsabiliza pelos

efeitos de seus atos ainda que imprevistos Do mal da exclusatildeo que desejavam de Medeia a

cidade de Corinto sofreu os efeitos no entanto dificilmente aceitariam as surpresas forjadas

pelos deuses como resposta ao seu erro de julgamento

A trama de Medeia em vez de ser formada com o outro faz do outro seu oponente

Deseja-se excluir Medeia e o que ela faz eacute excluir de si o que restava de laccedilo com Jasatildeo ou

seja ser matildee de seus filhos quando os assassina Haacute nesse ato uma nova forma de lidar com o

traacutegico o qual ficou sob a incumbecircncia individualizada de Medeia que representa a alteridade

radical Haacute uma transiccedilatildeo de um desenlace traacutegico que deriva da trama para um desfecho que

resulta da exclusatildeo do outro como reduto do horror que natildeo queremos lidar o qual aparece

quando se tenta excluir Medeia ou quando Medeia se exclui levando o que restava de sua

relaccedilatildeo com Jasatildeo

Haacute outro ponto importante a pensar aqui Ainda que a terriacutevel matildee pareccedila sair vitoriosa

da cena protegida pelos deuses gregos ganhando uma nova chance de recomeccedilar a vida

entendemos que haacute uma derrota do domiacutenio do saber racional mesmo que ele parece ter saiacutedo

vitorioso A necessidade de expulsar aquele que representa algo com o qual natildeo consigo lidar

191

conviver eacute a prova disso Os conflitos natildeo se resolvem negando ou excluindo o que os provoca

A tendecircncia eacute que ele retorne sob nova forma talvez mais destruidora

525 Phaacutermakon e pharmakoacutes

Medeia quando solicita exiacutelio em Atenas a Egeu propotildee o seguinte ao pai que natildeo

consegue gerar descendentes ldquoEacute um achado o que achas pois meus faacutermacos daratildeo agrave luz os

filhos de um sem-filhordquo (Medeia vv 717-718) A palavra grega correspondente a ldquofaacutermacosrdquo

traduzida diretamente do grego por Trajano Vieira eacute ϕαρmicroακα relativa a phaacutermakon De

acordo com Fernandes (2001) uma palavra muito semelhante ϕαρmicroακος apenas de sufixo

diferente corresponde a pharmakoacutes ou bode expiatoacuterio pessoa sacrificada em rituais em honra

aos deuses com o intuito de livrar a comunidade de impurezas e malefiacutecios Com isso eacute possiacutevel

pensar que Medeia de certo modo tenha articulado uma troca sinistra oferece faacutermacos em

troca de filhos De quais filhos estaria falando Embora refira-se a futuros filhos de Egeu

parece remeter-se aos seus proacuteprios como bodes expiatoacuterios pagamento de sua saiacuteda da cena

onde eacute hostilizada para entrar numa cena em que encontra hospitalidade Parece haver aqui um

deslizamento significante de phaacutermakon para pharmakoacutes pois ao final Medeia sustenta o

deslocamento que a palavra pode ter lhe produzido no momento do pacto com Egeu antes de

ir embora para Atenas mata os filhos

Os termos phaacutermakon e pharmakoacutes satildeo apresentados por Jacques Derrida (2005) em

seu livro A farmaacutecia de Platatildeo para pensar a ambiguidade e as oscilaccedilotildees da escritura A

segunda palavra vem no fio condutor da primeira o que corrobora a ideia de que o texto escrito

eacute feito de diversas camadas de significaccedilatildeo e abre uma multiplicidade de caminhos Derrida

(2005) toma o texto como tecido pano que oculta as leis da composiccedilatildeo das quais eacute efeito Para

ele um texto eacute somente um texto quando algo nele permanece imperceptiacutevel quando jamais

temos acesso agraves regras de seu jogo Reporta-se assim a Fedro obra de Platatildeo em que Soacutecrates

dialoga com seu interlocutor Fedro sobre a dececircncia ou indececircncia de escrever

Na obra claacutessica de Platatildeo o filoacutesofo Soacutecrates se refere aos escritos que Fedro traz

consigo como uma droga um phaacutermakon que toma e faz com que ele saia de seu lugar

Segundo Derrida (2005 p 14)

Esse Phaacutermakon essa medicina esse filtro ao mesmo tempo remeacutedio e veneno jaacute se introduz no corpo do discurso com toda sua ambivalecircncia Esse

192

encanto essa virtude de fascinaccedilatildeo essa potecircncia de feiticcedilo podem ser alternada ou simultaneamene ndash beneacuteficas ou maleacuteficas [] Operando por seduccedilatildeo o phaacutermakon faz sair dos rumos e das leis gerais naturais ou habituais Aqui ele faz Soacutecrates sair de seu lugar habitual e de seus caminhos costumeiros Estes sempre o retinham no interior da cidade As folhas da escritura agem como um phaacutermakon []

Dessa forma Soacutecrates tem a experiecircncia de sair da cidade do lugar onde gosta de

ensinar e aprender para ler com Fedro Ler textos que fazem efeito agrave medida da leitura na

temporalidade do escrito textos que se guardam em suas letras ocultas diferidos em que a

presenccedila do autor eacute barrada Eacute justamente a equivocidade provocada pela palavra escrita que

seduz o leitor que age sobre ele como um phaacutermakon e o faz sair do lugar se desacomodar

No entanto segundo Derrida (2005) Soacutecrates lembra Fedro que na origem da escrita

havia uma intenccedilatildeo benevolente Um deus oferecera a gramaacutetica de presente ao rei do Egito

como um phaacutermakon no sentido de remeacutedio como modo de preservar e favorecer a memoacuteria

e a instruccedilatildeo do povo egiacutepcio O rei por sua vez contesta a escrita avalia-a para aleacutem do

remeacutedio ressalta o seu aspecto maleacutefico a sua significaccedilatildeo como veneno Pois eacute justamente em

razatildeo da existecircncia do escrito que o indiviacuteduo pode se permitir esquecer Com isso o valor da

escrita eacute atribuiacutedo pelo rei ou ainda pelo pai do logos Sem a presenccedila viva do autor de um

discurso seriacuteamos meros repetidores Ao substituir a fala a escrita indicaria a morte da

memoacuteria do pai do discurso e estaria a serviccedilo desse suposto assassinato

Derrida (2005) observa que mesmo sem a presenccedila do rei que eacute capaz de julgar a escrita

a palavra phaacutermakon por si mesma jamais significaria apenas remeacutedio jaacute que remeacutedio natildeo eacute

somente beneacutefico ele pode ser maleacutefico Phaacutermakon carrega em si essa tensatildeo essa polaridade

que natildeo necessariamente precisa se decidir por uma ou por outra faceta segundo uma

problemaacutetica platocircnica

Mais adiante Derrida (2005) discorre que apesar da palavra pharmakoacutes natildeo estar

presente no texto de Platatildeo ela pode se fazer presente em cadeia associativa com phaacutermakon

Mas o que quer dizer aqui ausente ou presente Como todo texto aquele de ldquoPlatatildeordquo natildeo poderia deixar de estar em relaccedilatildeo de modo ao menos virtual dinacircmico lateral com todas as palavras que compotildeem o sistema da liacutengua grega Forccedilas de associaccedilatildeo unem agrave distacircncia com uma forccedila e segundo vias diversas as palavras ldquoefetivamente presentesrdquo num discurso com todas as outras palavras do sistema lexical quer elas apareccedilam ou natildeo como ldquopalavrasrdquo ou seja como unidades verbais relativas num tal discurso [] Por exemplo ldquophaacutermakonrdquo comunica desde jaacute mas natildeo apenas com todas as

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palavras da mesma famiacutelia com todas as significaccedilotildees construiacutedas a partir da mesma raiz (DERRIDA 2005 p 78-79)

De acordo com o autor a palavra pharmakoacutes estaacute relacionada a bode expiatoacuterio

personagem de rituais de sacrifiacutecio com ou sem morte na Greacutecia Antiga Representava o mal

e o fora o malefiacutecio que deveria ser expulso colocado para fora do corpo e fora da cidade

atraveacutes da exclusatildeo do bode O indiviacuteduo que encarnava o bode representava ldquosem duacutevida a

alteridade do mal que vem afetar e infectar o dentro irrompendo nele imprevisivelmenterdquo

(DERRIDA 2005 p 80) Mas eacute importante ressaltar que a pessoa escolhida para o sacrifiacutecio

tinha uma funccedilatildeo dentro da comunidade ou seja ele encontrava abrigo alimento sustento no

lado de dentro no seio da comunidade para no momento oportuno ser oferecido no ritual de

purificaccedilatildeo do mal

Segundo Derrida (2005 p 80) ldquoOs parasitas eram como eacute evidente domesticados pelo

organismo vivo que os hospeda a sua proacutepria custardquo Assim sendo quando a cidade era

assolada por um terriacutevel periacuteodo de seca fome e peste dois indiviacuteduos criados pela comunidade

como inuacuteteis degenerados vadios ou melhor como os bodes expiatoacuterios eram sacrificados

em honra aos deuses no intuito de livrar a cidade do mal e reestabelecer a ordem Conforme

Derrida (2005 p 80) ldquoA cerimocircnia do pharmakoacutes se passa pois no limite do dentro e do fora

que ela tem por funccedilatildeo traccedilar e retraccedilar sem cessar Intramurosextramuros Origem da

diferenccedila e da partilha o pharmakoacutes representa o mal introjetado e projetadordquo

O mal que existia em cada um dos cidadatildeos era projetado nos dois homens

representantes do bode Dois homens sacrificados dois filhos de Medeia com Jasatildeo Medeia

conhecedora do poder de ervas e plantas sobre o phaacutermakon remeacutedio e veneno Medeia

estrangeira mulher terriacutevel assassina de dois pai e irmatildeo foi tomada por Creonte como

pharmakoacutes bode expiatoacuterio No entanto em vez de entregar-se ao sacrifiacutecio da expulsatildeo a

partir do qual ficaria sem paacutetria e sem proteccedilatildeo alguma ela faz seus filhos seus dois meninos

morrerem em seu lugar Com amparo garantido por Egeu sai de cena viva com as crianccedilas

mortas No carro do Sol ex machina No limite que separa dentro e fora intramuros e

extramuros

194

526 Ananke

Haacute que se falar tambeacutem da dimensatildeo do sacrifiacutecio presente em Medeia o antigo ritual

de sacrificar indiviacuteduos em nome da proteccedilatildeo divina Medeia pode natildeo ter simplesmente matado

os filhos para se vingar de Jasatildeo mas seu ato pode significar justamente sacrificaacute-los Esta eacute

a interpretaccedilatildeo que nos propotildee o doutor em filosofia Alexandre Costa (2013) em palestra

intitulada Pasolini e a trageacutedia do homem ocidental O ato de matar os filhos eacute interpretado

pelo saber cientiacutefico filosoacutefico e racional do povo ocidental representado por Jasatildeo como um

crime de filiciacutedio No entanto Medeia pertence ao povo oriental cujo saber miacutetico e profano

toma o ato como sacrifiacutecio seguindo leis divinas ou seja respeitando os deuses Por isso

questiona Jasatildeo se ele adota leis ineacuteditas jaacute que ele traiacutera as juras o hoacuterkos

Embora da Coacutelquida os deuses que Medeia segue satildeo os mesmos dos gregos Haacute

contudo uma diferenccedila a ser observada aqui O coro de mulheres de Corinto enquanto estaacute ao

lado de Medeia fala-lhe em algumas passagens que Zeus certamente estaacute do seu lado que

Zeus eacute guardiatildeo das juras Medeia cita Zeus mas clama por Tecircmis deusa da Justiccedila por Geia

ou Gaia deusa da terra por Nike deusa da vitoacuteria por Heacutecate deusa das passagens por Heacutelios

deus do Sol do qual descende Quando fala com Egeu pede para o rei que jure pela estirpe

pandivina em vez de apelar a um deus uno regente de todos Zeus Sabemos que ao final a

fala do coro salienta a imprevisiacutevel via pela qual os deuses gregos agem ainda que Zeus seja o

deus dominante

Aleacutem disso Jasatildeo quando descobre o ato traacutegico de Medeia invoca Zeus pela puniccedilatildeo

da mulher invoca Dike a deusa da justiccedila dos homens mesma de Creonte na peccedila Antiacutegona

de Soacutefocles e natildeo Tecircmis a justiccedila dos deuses Medeia lhe interroga ldquoQue deus ou dacircimon te

daraacute escuta perjurador traidor dos proacuteprios hoacutespedesrdquo (Medeia vv 1391-1392) De acordo

com nota do tradutor haveria uma referecircncia aqui a uma versatildeo do mito em que Jasatildeo teria

raptado Medeia Seja como for Medeia chega agrave Greacutecia como sua mulher ele deve para com

ela o cumprimento da lei divina por ele esquecida da hospitalidade Mais um motivo para que

os deuses protejam Medeia e punam Jasatildeo

De acordo com Costa (2013) com a morte dos filhos Medeia restabelece a ordem

atraveacutes de uma loacutegica sacrificial que devolve resgata agrave terra (deusa Gaia) seus rebentos Se o

destino da vida dos filhos como de todos eacute a morte por que deixaacute-los vivos e fazer com que

sofram as puniccedilotildees dos cidadatildeos de Corinto

195

Nesse sentido Medeia age como Antiacutegona seguindo leis divinas atraveacutes de um ato

traacutegico Antiacutegona enterra seu irmatildeo Medeia mata seus filhos Ambos os atos podem ser

interpretados pela lei dos homens como criminosos A diferenccedila eacute que Antiacutegona presa em sua

alcova decide tirar a proacutepria vida Medeia decide ir embora

Talvez seja na dupla interpretaccedilatildeo da accedilatildeo de matar as crianccedilas ndash crimesalvaccedilatildeo ndash a

origem do sofrimento de Medeia ao menos na segunda parte da peccedila Oscila entre matar e natildeo

matar mas considera a morte dos dois a finalizaccedilatildeo de seu plano Antes dos meninos levarem

os venenos que matam princesa e rei Medeia diz ldquoEstaacute para nascer algueacutem que agrida um filho

meu Se ananke o necessaacuterioimpotildee sua lei indesviaacutevel noacutes daremos fim a quem geramosrdquo

(Medeia vv 1060-1063)

Logo depois da morte de Glauce e Creonte comunica ao coro de mulheres

Estaacute traccedilado amigas mato os filhos E apresso a fuga Natildeo existe um ser ndash um ser somente ndash que suporte ver o braccedilo bruto sobre os seus Natildeo tardo o fim dos dois se impotildee e a matildee os mata se eacute isso o que haacute de ser Oacute coraccedilatildeo- -hoplita descumprir esse ato horriacutevel Se ananke o imperativo o dita (Medeia vv 1236-1243)

Medeia se torna mais certa de sua decisatildeo de matar os filhos nessa passagem Antes a

matildee cumprir o destino do que serem submetidos agrave puniccedilatildeo de outros agrave morte por

apedrejamento No entanto ateacute o momento da morte das crianccedilas vive momentos de anguacutestia

A sua anguacutestia se daacute nesse intervalo que divide duas significaccedilotildees do assassinato a de sacrificar

os filhos para proteger seus corpos dos cidadatildeos tebanos e o filiciacutedio Ao final sentindo a

imposiccedilatildeo divina de Ananke ela se torna outra e quem se compadece somos noacutes

Ananke eacute uma divindade antiga citada por Medeia que fala da inevitabilidade do

destino da forccedila com a qual o destino traacutegico pode se impor Nesse sentido a morte dos filhos

para Medeia se torna uma necessidade um dever que ela mesma como matildee que os gerou

precisa cumprir Aiacute se encontra o paradoxo dessa trageacutedia

Em O mal-estar na cultura Freud (19302012) fala que Ananke junto com Eros satildeo os

pais da nossa civilizaccedilatildeo Eros eacute responsaacutevel pela coesatildeo dos objetos pelo amor que nutrimos

uns pelos outros pelo amor da matildee por seus filhos Jaacute Ananke eacute a imposiccedilatildeo da realidade o

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compromisso e o dever para com a cultura a necessidade de trabalhar para manter a ordem no

mundo

Em 1920 em Aleacutem do princiacutepio do prazer Freud jaacute havia falado a respeito de Ananke

Na ocasiatildeo ela eacute tomada como forccedila da natureza inevitaacutevel lei natural que se impotildee na

realidade de todos noacutes Ser submetido a esse princiacutepio da realidade significa para o ser humano

a aceitaccedilatildeo de seus limites de sua proacutepria morte Esta lei implacaacutevel eacute apresentada aqui na

articulaccedilatildeo com Eros pulsatildeo de vida e Tacircnatos pulsatildeo de morte e podemos compreendecirc-la no

sentido de entre vida e morte aceitar a proacutepria natureza e enfrentar condiccedilotildees de existecircncia

Na primeira parte da peccedila logo apoacutes Creonte expulsaacute-la de Corinto e conceder um dia

para que Medeia organize sua partida ela diz ldquoNatildeo deixes pelo meio teus projetos Medeia

Nada te demovardquo (Medeia vv 401-402)

Isso nos faz pensar na posiccedilatildeo eacutetica de Medeia Se a eacutetica da psicanaacutelise diz respeito a

uma posiccedilatildeo subjetiva em que o sujeito natildeo recua de seu desejo e para sustentaacute-lo paga com

uma parte de si com uma dose de gozo ou sofrimento se a posiccedilatildeo de Antiacutegona eacute honrar sua

ascendecircncia e por ela morrer Medeia destroacutei a descendecircncia dos outros e por fim deve

(ananke) destruir a sua Eacute possiacutevel perceber que Medeia ldquoaquela que meditardquo ou que ldquoarquiteta

um projeto um planordquo comete assassinato seja do proacuteprio irmatildeo seja dos filhos ou de Glauce

a fim de atingir uma outra pessoa Natildeo escolhe matar o pai Jasatildeo ou Creonte mas torna viacutetimas

os filhos desses adversaacuterios talvez porque a morte deles mesmos natildeo seja uma pena muito dura

natildeo destruiria suas vidas como o sofrimento de perder um filho Medeia eacute uma filicida por

excelecircncia ateacute atingir o ponto traacutegico em que os filhos satildeo dela mesma Aleacutem disso o que pode

significar o aniquilamento da descendecircncia Eacute a impossibilidade de seguir vivendo atraveacutes de

um filho a despeito da proacutepria morte Eacute saber que a vida que se viveu natildeo teraacute uma continuidade

eacute natildeo deixar um legado Talvez a forma escolhida por Medeia de atingir seus inimigos

assassinar os descendentes tenha sido mais fatal mais proacutexima do que significa matar em vez

de atentar diretamente contra a vida deles proacuteprios

Nesse sentido na peccedila de Euriacutepides que leva o seu nome Medeia acaba por pagar a

condiccedilatildeo de sua existecircncia com a morte de seus filhos que deve ser cometida por ela mesma

ao preccedilo de seu sofrimento Havia de certo modo abandonado seu iacutempeto ao chegar em Corinto

com Jasatildeo tornar-se esposa e matildee zelosa ateacute o momento em que percebe que foi traiacuteda E o

que isso significa Que de algum modo abriu matildeo de seu desejo

197

O que chamo de ceder de seu desejo acompanha-se sempre no destino do sujeito ndash observaratildeo isso em cada caso reparem em sua dimensatildeo ndash de alguma traiccedilatildeo Ou o sujeito trai sua via se trai a si mesmo e eacute sensiacutevel a si mesmo Ou mais simplesmente tolera que algueacutem com quem ele se dedicou mais ou menos a alguma coisa tenha traiacutedo sua expectativa natildeo tenha feito com respeito a ele o que o pacto comportava qualquer que seja seu pacto [] (LACAN 1959-19601997 p 384)

Nesse sentido o que o indiviacuteduo faz diante de uma traiccedilatildeo pode definir se ele eacute um heroacutei

ou uma pessoa comum A traiccedilatildeo coloca a pessoa comum na via do serviccedilo dos bens sem que

ele reconheccedila seu desejo nessa via Jaacute o heroacutei eacute ldquoaquele que pode impunemente ser traiacutedordquo

(LACAN 1959-19601997 p 385) e atraveacutes dos bens ele paga o preccedilo de seu acesso ao

desejo ele banca seu desejo Compreendemos Medeia como uma heroiacutena traacutegica que se

percebe traiacuteda por Jasatildeo no descumprimento do horkos o juramento que tinha com ela Aleacutem

de Jasatildeo tecirc-la enganado percebe que ela mesma se deixou trair A linha de accedilatildeo da peccedila eacute a que

reconduz Medeia para a via de seu desejo destruindo por completo seu laccedilo com Jasatildeo ao pagar

com a morte dos filhos

Dessa maneira encontramos a via de abertura que a peccedila Medeia nos deixa Para aleacutem

do saber socraacutetico sofista racional que Euriacutepides apresenta em sua personagem natildeo pensamos

ser essa forma de saber que impera mesmo com o uso do recurso deus ex machina

Vislumbramos uma heroiacutena traacutegica que se impotildee sua proacutepria puniccedilatildeo sofre a perda de seu lugar

de matildee paga com a perda dos filhos o seu caraacuteter terriacutevel Nesse sentido podemos entender

que natildeo escapa impune das accedilotildees terriacuteveis de seu passado do assassinato do rei e da princesa

na medida em que ela mesma deve cometer o homiciacutedio dos filhos talvez mais importante para

ela do que ao proacuteprio Jasatildeo Para feri-lo com a dor mais profunda ela tambeacutem precisa se infligir

a mesma dor suportaacute-la e recomeccedilar nova vida

53 ldquoa raccedila fecircmea ignora como haurir algo elevado saacutebia quando edifica o horror do

fadordquo

No texto ldquoJuventude de Gide ou a letra e o desejordquo em que Lacan comenta um livro do

psiquiatra Jean Delay A juventude de Andreacute Gide ele fala sobre o ato de uma ldquoverdadeira

mulherrdquo Esse ato teria como efeito a abertura de um vazio no homem

Lacan (19581998) compara Andreacute Gide a Jasatildeo personagem da trageacutedia Medeia que

abandona a protagonista para casar com outra mulher Medeia eacute personagem enigmaacutetica que

198

na versatildeo de Euriacutepides mata os filhos que teve com Jasatildeo Jaacute a esposa de Gide Madeleine

queima suas cartas cartas escritas ao longo de uma vida de uma importacircncia tal para o homem

que este chega a tomaacute-las como filhos O ato de queimar as cartas do marido eacute entendido por

Lacan como um ato de mulher

[] de uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher Esse ato foi o de queimar as cartas que eram o que Madeleine possuiacutea ldquode mais preciosordquo Que ela natildeo tenha dado outra razatildeo para isso senatildeo o ter ldquotido que fazer alguma coisardquo acrescenta ao ato o signo da fuacuteria provocada pela uacutenica traiccedilatildeo intoleraacutevel [] o gemido de Andreacute Gide o de uma fecircmea de primata ferida no ventre com o qual ele pranteia a extirpaccedilatildeo do desdobramento de si mesmo que eram suas cartas razatildeo pela qual as chamava de seu filho soacute faz parecer que preenche com exatidatildeo o vazio que o ato da mulher quis abrir em seu ser longamente escavado por uma apoacutes outra das cartas atiradas ao fogo de sua alma flamejante Andreacute Gide revolvendo no coraccedilatildeo a intenccedilatildeo redentora que atribui ao olhar que nos retrata ndash sem dar importacircncia agrave sua respiraccedilatildeo ofegante ndash agravequela passante que atravessa seu trespasse sem cruzar com ele engana-se Pobre Jasatildeo que tendo partido para a conquista do tosatildeo dourado da felicidade natildeo reconhece Medeacuteia (LACAN 19581998 p 772-773 grifos nossos)

Pensamos que Medeia assim como Madeleine eacute certeira na escolha da pior das

vinganccedilas para Jasatildeo Natildeo apenas por atingir sua descendecircncia mas por eliminar tambeacutem a

nova esposa Ao fim da peccedila Jasatildeo retorna desesperado agrave sua casa para proteger os filhos dos

cidadatildeos de Corinto jaacute que os meninos provavelmente seriam punidos por ter envenenado o

rei e a princesa embora ignorassem o que estavam fazendo A fala do coro o alerta ldquoa prole

natildeo existerdquo (Medeia vv 1311) Jasatildeo jamais poderia imaginar ou entender que o ato tinha sido

cometido por Medeia Esta justifica ldquofiz o que devia para te atingir no iacutentimordquo (Medeia vv

1359-1360)

Miller (2010) entende que Medeia quando assassina seus proacuteprios filhos para se vingar

de Jasatildeo vai aleacutem de seu lugar de matildee sustentando o seu lugar de mulher Natildeo haacute explicaccedilotildees

ou palavra alguma do ex-marido que faccedila Medeia voltar atraacutes em sua de-cisatildeo

Mata seus proacuteprios filhos que satildeo tambeacutem de Jasatildeo o que permite dizer que o que haacute de mulher nela supera o que haacute de matildee [] ela constitui o exemplo radical do que significa ser mulher mais aleacutem do que matildee Com esse ato sai de sua depressatildeo Ela estaacute toda nesse ato a partir do qual todas as palavras satildeo inuacuteteis saindo decididamente do registro do significante (MILLER 2010 p 8)

199

Uma ruptura radical entre o ser matildee e ser mulher que gera em decorrecircncia uma ruptura

com sua proacutepria prole ao servirem de bodes expiatoacuterios para que Medeia perfizesse seu plano

de exiacutelio e vinganccedila por um instante as crianccedilas satildeo de Jasatildeo natildeo dela considerando as

contribuiccedilotildees de Lacan e Miller Assim a matildee fala aos filhos em tom de despedida dessa

relaccedilatildeo primordial ldquoNada valeu meninos meu empenho nada valeu sofrer as convulsotildees

doloridiacutessimas do parto Sonhos inuacuteteis que nutri ao vislumbrar nas crias meu amparo na

velhice apuro em ritos funeraacuterios ndash aacutepice do que pode sonhar quem viverdquo (Medeia vv 1029-

1035)

Eacute com seus filhos eacute com o ser matildee que Medeia paga sua liberdade o que se confunde

com o ser puramente uma mulher inteiramente mulher como compreendem Lacan e Miller

Contudo considerando o lamento de despedida de Medeia e a versatildeo que toma seu ato como

sacrifiacutecio seria equivocado pensar que Medeia apareccedila justamente como matildee natildeo como

mulher no traacutegico desenlace Que mulher teria a coragem de sacrificar crianccedilas para salvaacute-las

senatildeo uma matildee

Ora o que significa ser mulher De acordo com Alexandre Costa (2013) natildeo por acaso

Euriacutepides escolheu uma heroiacutena mulher em sua peccedila capaz de ato tatildeo terriacutevel Ser mulher

contrasta com o ser homem que o tragedioacutegrafo deseja expor ao lado de outras polaridades

tais como oriente versus ocidente saber miacutetico versus saber racional magia versus ciecircncia

sociedades arcaicas (matriarcais) versus sociedades modernas (patriarcais) Contudo segundo

Vieira (2010) o interesse de Euriacutepides em representar o mito de Medeia decorre de suas

proacuteprias insatisfaccedilotildees da falta de acolhimento que experimenta em relaccedilatildeo agrave sua sopheacute agrave sua

forma de pensar que como discutimos tem grande influecircncia de sua amizade com o filoacutesofo

Soacutecrates

Encerramos esta seccedilatildeo sobre o mito de Medeia e sobre a Medeia de Euriacutepides com as

palavras da escritora alematilde Christa Wolf autora do livro Medeia Vozes que busca resgatar nas

entrelinhas dos textos sobre esta mulher emblemaacutetica as vozes natildeo ouvidas observando suas

ressonacircncias em tantas outras histoacuterias de mulheres fortes apagadas por um princiacutepio

moralizador

Pronunciamos um nome e como as paredes satildeo permeaacuteveis entramos no tempo que foi o seu encontro desejado Sem hesitaccedilotildees ela responde das profundezas do tempo ao nosso olhar Infanticida Pela primeira vez esta duacutevida [] Mandamos-lhe embora ela vem ao nosso encontro das profundezas do tempo noacutes mergulhamos nele [] E haacute de haver um momento

200

em que nos encontramos Somos noacutes que descemos ateacute os Antigos Satildeo eles que nos apanham Tanto faz Basta estender a matildeo Passam para o nosso mundo com a maior facilidade estranhos hoacutespedes iguais a noacutes Noacutes temos a chave que abre todas as eacutepocas por vezes a usamos sem reservas deitamos um olhar apressado pela fresta da porta aacutevidos de juiacutezos precipitados Mas tambeacutem deve haver maneira de nos aproximarmos passo a passo com um certo pudor diante do tabu dispostos a arrancar dos mortos seu segredo mas assumindo o preccedilo de algum sofrimento O reconhecimento das nossas fraquezas ndash era por aiacute que deviacuteamos comeccedilar (WOLF 1998 p 11)

201

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Com a articulaccedilatildeo entre educaccedilatildeo trageacutedia antiga e psicanaacutelise produzimos uma

extensatildeo teoacuterica para ler a histoacuteria cliacutenica dramatizada na abertura deste trabalho Agora eacute o

momento de recolher os elementos miacutenimos que sustentaram nossa argumentaccedilatildeo e

constituiacuteram uma equaccedilatildeo teoacuterica que nos permite voltar ao cenaacuterio para lecirc-lo novamente e

quiccedilaacute nos ajude a ler outros cenaacuterios

Da apreciaccedilatildeo das trageacutedias gregas de Soacutefocles e de Euriacutepides recolhemos uma

pergunta sobre a eacutetica colocada em cena atraveacutes das accedilotildees dos heroacuteis e heroiacutenas diante dos

conflitos vividos com outros personagens Por meio da leitura psicanaliacutetica da trilogia tebana

em especial Antiacutegona feita por Lacan (1959-19601997) e Vorsatz (2013) entendemos que

somos inteiramente responsaacuteveis por nossas escolhas eacuteticas pelos efeitos traacutegicos dessas

escolhas em nosso destino ainda que seu fundamento seja o desejo inconsciente portanto

inacessiacutevel a nosso comando

Nesse sentido as perdas decorrentes de uma posiccedilatildeo subjetiva em que heroacuteis e heroiacutenas

se veem tomados em accedilatildeo satildeo o preccedilo que pagam para sustentar seu desejo o que significa

afirmarem-se como sujeito de desejo perante os impasses que surgem em cena Pelo estudo das

trageacutedias sabemos que haacute uma diferenccedila substancial entre as obras sofocleanas Eacutedipo Rei e

Antiacutegona A primeira trata-se de uma trageacutedia de destino como aponta Freud (19002015) em

que o heroacutei ignora completamente as consequecircncias de sua postura investigativa e racional

Apenas no uacuteltimo ato quando Eacutedipo descobre ser o proacuteprio criminoso que buscava ser o

sucessor legiacutetimo do trono ser o marido da proacutepria matildee revelando-se o mais terriacutevel dos

homens abraccedila as duras penas pelas quais deve passar o restante de seus dias e em Eacutedipo em

Colono sustenta sua dignidade perante os deuses

Em Antiacutegona jaacute no primeiro ato a heroiacutena conhece o destino traacutegico que a espera por

ter escolhido enterrar o irmatildeo Se em Eacutedipo temos a hybris a arrogacircncia que conduz ao erro de

julgamento e ao infortuacutenio em Antiacutegona temos a aacutetē a fatalidade inevitaacutevel para onde a heroiacutena

deseja caminhar Aqui estaacute o paradoxo de Antiacutegona pois ao sustentar sua posiccedilatildeo eacutetica ela

perde sua proacutepria vida Se sustentasse sua vida obedecendo a Creonte natildeo se afirmaria como

sujeito de desejo Lacan toma dessa trageacutedia justamente a diferenccedila que quer estabelecer entre

a eacutetica da psicanaacutelise a eacutetica do desejo e a obrigaccedilatildeo moral imposta pelas convenccedilotildees sociais

que reprimem o desejo

202

Atraveacutes das criacuteticas de Nietzsche averiguamos que um dos aspectos que levam agrave morte

da trageacutedia antiga eacute o de embasar as escolhas eacuteticas em justificativas filosoacuteficas como ocorre

nas trageacutedias de Euriacutepides influenciadas pelo pensamento de Soacutecrates Nesse sentido aqui se

situa um ponto de virada importante para a nossa forma de representar os conflitos humanos no

teatro pois no lugar de enunciar um desenlace traacutegico que embora natildeo signifique uma

conciliaccedilatildeo provoca um sentimento de apaziguamento final a trageacutedia de Euriacutepides passa a

oferecer finais resolutivos na medida em que modifica os mitos e busca justificativas racionais

para solucionar impasses Uma das formas mais utilizadas por Euriacutepides nessa nova proposta

de desenlace acontece com o uso do dispositivo do deus ex machina

Com Rebelo (1995) entendemos que nem sempre as trageacutedias de Euriacutepides ao

apresentarem tal ferramenta buscam impor uma soluccedilatildeo derradeira para os conflitos sem que

estes se construam ao longo da histoacuteria No entanto conseguimos reconhecer atraveacutes do autor

que haacute no deus ex machina um imperativo moral que passa a participar da cena que pode

influenciar as decisotildees tomadas entre os personagens Assim ocorre na cena traacutegica uma virada

eacutetica importante que reflete as mudanccedilas ocorridas no modo de organizaccedilatildeo de vida na poacutelis

grega que passa de um mundo miacutetico para um mundo filosoacutefico

Entre as peccedilas de Euriacutepides que apresentam o recurso do deus ex machina trabalhamos

com a Medeia citada por Rebelo (1995) como uma exceccedilatildeo pois quem vem a ocupar tal lugar

na maquinaria natildeo eacute um deus mas um ser humano A peccedila destaca-se tambeacutem por ter sido

utilizada por Aristoacuteteles como exemplo do uso desse recurso

Na apreciaccedilatildeo que produzimos acerca da obra euripidiana entendemos que a

personagem Medeia se vale de posiccedilatildeo semelhante agrave de Antiacutegona ao lembrar as leis natildeo escritas

que firmam o laccedilo de matrimocircnio desonrado por Jasatildeo Como a filha de Eacutedipo Medeia natildeo

aceita seguir as leis do rei de mesmo nome Creonte sentindo que o que resta apoacutes a sua funesta

vinganccedila contra o rei e a princesa eacute sua obrigaccedilatildeo para com seus filhos Como podemos

qualificar essa obrigaccedilatildeo Ela remete ao seu desejo subjetivo ou a um dever moral

Medeia nomeia sua eacutetica de ananke e a partir dela coloca em cena o paradoxo traacutegico

mata seus filhos (na versatildeo de Euriacutepides) para salvaacute-los de serem mortos pelos cidadatildeos de

Corinto Ainda que Euriacutepides apresente em Medeia o saber socraacutetico sofista racional natildeo

pensamos ser essa a forma de saber que domina no desenlace da peccedila O saber que aparece em

cena eacute articulado com o dever que se impotildee atraveacutes de ananke uma necessidade que pode advir

203

de sua funccedilatildeo como matildee ainda que proteger os filhos signifique destruiacute-los e nesse sentido

destruir a matildee em Medeia

Aleacutem disso vale pontuar na peccedila de Medeia a estrangeiridade que ela representa O fato

de pertencer a outra cultura acessar um saber diferente do compartilhado no mundo grego ser

uma mulher com atribuiccedilotildees permitidas aos homens (brava saacutebia dominadora) faz com que

ela ocupe diante dos cidadatildeos de Corinto e mesmo dos leitores e dos espectadores o lugar do

estranho radical do qual se deseja distanciamento Ao revelar-se em cena como uma mulher

assassina e filicida a repulsa sentida por ela tende a aumentar e o que se espera do fim da peccedila

eacute uma puniccedilatildeo severa O fato de ter permanecido viva protegida pelos deuses e conquistado o

exiacutelio mesmo apoacutes matar as crianccedilas pode ocasionar aos espectadores uma sensaccedilatildeo muito

distante do indicado apaziguamento final das trageacutedias de Soacutefocles O desenlace em Medeia

natildeo propotildee uma costura das accedilotildees mas um rompimento abrupto de nossas convicccedilotildees um

questionamento moral Talvez esse seja o efeito da presenccedila do deus ex machina na peccedila Para

conseguir trabalhar e entender a proposta de Euriacutepides foi preciso vencer as barreiras que nos

distanciam da terriacutevel personagem e reconhecer nela traccedilos eacuteticos o que permite uma

aproximaccedilatildeo

Partindo da posiccedilatildeo eacutetica apresentada em accedilatildeo pelos heroacuteis do desenlace traacutegico do

deus ex machina como dever moral acessamos a histoacuteria dramatizada no proacutelogo

61 Natildeo definimos o lugar que ocupamos na relaccedilatildeo transferencial

Ler com a distacircncia temporal e o trabalho teoacuterico atravessado o andamento do roteiro

construiacutedo no proacutelogo permite identificar na posiccedilatildeo em que a psicoacuteloga acaba por tomar as

ressonacircncias da posiccedilatildeo ocupada por Eacutedipo ao se descobrir o criminoso que provocava a ruiacutena

de Tebas A psicoacuteloga se vecirc capturada no empenho por responder agrave demanda da escola de dar

respostas e oferecer soluccedilotildees para a crianccedila que apresentava problemas em seu percurso escolar

ainda que se coloque numa posiccedilatildeo de criacutetica dessas mesmas atitudes quando tomadas pelos

outros Nesse sentido parece-nos que a psicoacuteloga eacute capturada no efeito transferencial de

oferecer uma resoluccedilatildeo definitiva para o caso recalcando a posiccedilatildeo de escuta de trabalhar em

conjunto assim como ocorre com Eacutedipo

Embora tenha assumido responsabilidade pelo caso a psicoacuteloga natildeo encontrou as vias

de se movimentar no sentido de escutar a meacutedica ou ainda de reconhecer o esforccedilo da escola

204

Quando mais tarde se flagrou dos efeitos de sua conduta nas sessotildees com a crianccedila na fala da

matildee jaacute estava sozinha Com isso podemos entender que qualquer um pode falar a partir da

posiccedilatildeo de deus ex machina desde que haja em seu modo de conduzir um natildeo reconhecimento

ou um recalcamento do lugar do outro e uma prerrogativa moral que faz o indiviacuteduo acreditar

que sua escolha diante de uma situaccedilatildeo eacute a mais correta

62 O lobo do homem eacute o lobo no homem

A trageacutedia de Medeia evidencia as soluccedilotildees que tomamos ao nos depararmos com uma

parte natildeo domesticaacutevel que nos habita algo que insiste em escapar do projeto civilizatoacuterio Em

vez de olhar para essa porccedilatildeo que havia em si mesmo Creonte expulsa o lobo que conseguia

identificar em Medeia na certeza de que desse modo conseguiria livrar Corinto de sua

influecircncia maleacutefica Ao natildeo acolher a estrangeira Medeia Creonte provoca o efeito contraacuterio

ao que almejava ou seja abrindo caminho para a realizaccedilatildeo de uma pulsatildeo destrutiva

Como trabalhar o lugar do lobo que pode constituir o limite de nossa escuta o limite do

reconhecimento do outro a nossa resistecircncia aos coacutedigos de comportamento dentro da escola

Como dar lugar a esse lobo no seio de nossas relaccedilotildees sem que seja preciso recalcaacute-lo expulsaacute-

lo de nosso conviacutevio o que pode fazer com que ele retorne com ainda mais vigor Satildeo perguntas

que nos ajudaram a constituir um mapeamento teoacuterico de modo a tentar enunciar nosso

problema

Trabalhar com o lobo que existe na crianccedila seja aluno filho paciente exige que

saibamos trabalhar com o lobo que haacute em noacutes Nesse sentido a escuta que a psicoacuteloga conseguiu

promover ao final da histoacuteria eacute fundamental para que possamos interrogar nossa forma de

conduzir O que ela consegue ler da experiecircncia eacute que tanto a escola quanto a meacutedica e a matildee

nos desdobramentos do fazer de cada uma eram chamadas a se colocar em relaccedilatildeo com o lobo

na crianccedila representado no desenho Esse dever nos conduz a um segundo aspecto que podemos

recolher da histoacuteria o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo diante de problemas de aprendizagem e

comportamento apresentados pelos estudantes

205

63 A educaccedilatildeo agrave sombra da medicalizaccedilatildeo

Como adultos responsaacuteveis pelas crianccedilas estamos implicados com seu mal-estar Natildeo

eacute raro que o discurso medicalizante que opera na escola e toma lugar do discurso educativo faccedila

as vezes dessa implicaccedilatildeo constituindo um dever dos adultos para com as crianccedilas No entanto

o que pode resultar dessa operaccedilatildeo no fazer do educador ou seja a operaccedilatildeo de colocar a

educaccedilatildeo em funccedilatildeo do saber meacutedico eacute produzir nos professores uma desautorizaccedilatildeo de seu

lugar de saber eacute produzir na escola uma paralisia em arranjar alternativas pedagoacutegicas para

problemas educacionais como apontam Santos e Freitas (2016) Ao mesmo tempo tal operaccedilatildeo

resulta em produzir um fora em convocar um representante do saber medicalizante a partir de

um lugar de saber impositivo e resolutivo como o recurso deus ex machina que natildeo se tece

com outros saberes

Na pesquisa sobre a medicalizaccedilatildeo descobrimos que a relaccedilatildeo entre saber medicalizante

e escola participa de um processo que vem se construindo haacute muitos anos Na medida em que

coube agrave psiquiatria a autoridade para promover a diferenccedila entre normalidade e patologia e criar

meios para investigar e prevenir anormalidades a medicina foi ganhando espaccedilo no seio das

relaccedilotildees familiares e dentro das escolas para detectar ainda nas crianccedilas possiacuteveis problemas

de desenvolvimento Como ocorre a conquista dessa autoridade

64 Medicalizaccedilatildeo na escola e dever moral

A partir de Foucault (1974-19752001) entendemos que esse processo estaacute a serviccedilo da

manutenccedilatildeo da moral social e com isso justifica-se por si mesmo Os desvios de

comportamento de crianccedilas mesmo em classes consideradas normais que tocavam em alguma

moral estabelecida socialmente como por exemplo a indisciplina eram motivo suficiente para

a escola abrir as portas para o saber constituiacutedo cientificamente pela psiquiatria Entendemos

que a medicalizaccedilatildeo na escola cumpre um dever moral assim como o deus ex machina assumiu

uma funccedilatildeo moralizante na trageacutedia antiga culminando em seu fim de acordo com Nietzsche

(18721992)

Com o estudo e o desenvolvimento dos transtornos mentais chegamos ao TDAH cujo

diagnoacutestico parece ser bastante frequente em estudantes considerando a frequecircncia de

prescriccedilotildees medicamentosas para este puacuteblico (SISTEMA NACIONAL 2012) Acreditamos

206

que o transtorno apresenta sintomas que questionam uma regulaccedilatildeo social em nossos dias que

diz respeito ao modo como lidamos com o tempo A falta de atenccedilatildeo e de concentraccedilatildeo nos

estudos e atividades acadecircmicas bem como a inquietaccedilatildeo que impede o controle sobre o proacuteprio

corpo satildeo vistas como signo de um futuro fracasso escolar na medida em que podem interferir

nos ideais sociais de rendimento e de produtividade que almejamos inscrever em nossas

crianccedilas

Nesse sentido o encaminhamento por parte da escola de um aluno que apresenta

sintomas de desatenccedilatildeo e hiperatividade para um especialista acaba por constituir um dever

moral da escola de nosso tempo Servimo-nos do discurso medicalizante e psicopatologizante

para oferecer soluccedilotildees praacuteticas para problemas educativos ao percebermos a que distancia

nossas crianccedilas se encontram dos ideais de comportamento do perfil desejado na escola

O problema de nos pautarmos em tais ideais na cena escolar eacute que no lugar das palavras

que educam oferecemos diagnoacutesticos e medicamentos como soluccedilatildeo aos problemas de

aprendizagem e comportamento Tais intervenccedilotildees meacutedicas acabam por dispensar as estrateacutegias

pedagoacutegicas da escola ou ao menos colocaacute-las como alternativas temporaacuterias e secundaacuterias agraves

medidas corretas e justas oferecidas pelo saber meacutedico

Parece-nos que compartilhamos da seguinte ideia ao identificarmos em sala de aula

uma crianccedila com dificuldades para se comportar da maneira desejada temos a obrigaccedilatildeo moral

de dizer a seus pais que provavelmente ela sofre de algum transtorno e deve consultar um

especialista Se natildeo o fizermos estaremos em falta com uma moral social O que tentamos

mostrar neste trabalho eacute que tal conduta natildeo eacute dada a priori ela eacute construiacuteda ao longo dos

seacuteculos e o que nos cabe eacute questionar seus efeitos para a legitimaccedilatildeo do saber da escola

65 Solucionar o problema eacute enunciaacute-lo

Na medida em que a conduta da escola de encaminhar um aluno com problemas de

aprendizagem e comportamento para um especialista estiver respondendo a uma obrigaccedilatildeo

moral isso pode constituir uma barreira poderosa agraves alternativas que podem ser arranjadas pelo

desejo de educar considerando que haacute uma diferenccedila importante entre uma lei moralmente

imposta e uma lei que se revela em accedilatildeo sempre e a cada vez

Recuperamos dessa maneira a equaccedilatildeo teoacuterica por noacutes proposta O deus ex machina na

cena traacutegica pode produzir um desenlace de efeito moralizante Do mesmo modo a

207

medicalizaccedilatildeo pode incidir sobre a cena escolar Se num trabalho conjunto seguindo a lei de

nosso desejo conseguirmos rearranjar a disposiccedilatildeo desses elementos em cena podemos

produzir novas formas de desenlace

Se educar eacute um dever social que podemos exercer natildeo sem o desejo que nos move eacute

porque representa um modo de pagar a diacutevida simboacutelica por termos sido inscritos em uma

cultura por um mestre de ocasiatildeo (LAJONQUIEgraveRE 1997) Nesse sentido somente podemos

educar pela via da palavra que nos marcou subjetivamente o que comporta a equivocidade que

lhe eacute inerente Assim entendemos que a educaccedilatildeo se situa numa arena carregada de

potencialidades simboacutelicas e que guarda uma dimensatildeo impossiacutevel limite insuperaacutevel e

inconsciente intriacutenseco ao educar O uacutenico modo de trabalharmos o impossiacutevel eacute sabermos que

natildeo podemos jamais controlaacute-lo ou excluiacute-lo entatildeo podemos arranjar formas de trabalhar com

ele

O TDAH natildeo eacute o impossiacutevel do educar para o professor nem nenhum outro transtorno

de aprendizagem ou comportamento que a psiquiatria encontra na cena escolar Ele tem se

tornado na verdade uma dificuldade na rotina escolar para a qual o saber meacutedico apresenta

uma soluccedilatildeo farmacoloacutegica Tal conduta natildeo eacute capaz de situar ou de ressituar o lugar do

impossiacutevel na cena educativa Essa tarefa pode ser realizada a partir das palavras norteadoras

que dirigimos aos nossos alunos e dos efeitos destas no modo como eles conseguem se situar

na rotina escolar

Podemos trabalhar com o impossiacutevel inerente ao ato educativo na medida em que

tomarmos os sintomas descritos do TDAH vividos em cada histoacuteria singular de nossas crianccedilas

como efeitos da experiecircncia escolar e de outros ambientes onde os estudantes circulam

acolhendo a hiperatividade e a desatenccedilatildeo como parte de um jogo de relaccedilotildees que constituiacutemos

diariamente uns com os outros natildeo como mal individual a ser moralmente combatido

eliminado com medicamentos e exclusatildeo escolar

Aleacutem disso a agitaccedilatildeo e a dispersatildeo que as crianccedilas podem apresentar na escola natildeo

constituem em si mesmas um impedimento para a aprendizagem A tentativa de buscar um

lugar na cena educativa que muitas vezes aparece na forma de sintomas principalmente no

iniacutecio da escolarizaccedilatildeo pode abrir espaccedilo para que a aprendizagem aconteccedila Do mesmo modo

o professor pode reencontrar seu lugar a autorizaccedilatildeo de seu saber se entender que mesmo os

alunos que apresentam dificuldades de comportamento podem estar aprendendo para aleacutem dos

contornos de sua intervenccedilatildeo

208

Em nossas escolas haacute muitas crianccedilas e adolescentes diagnosticados com TDAH ou

com outros transtornos e medicados com metilfenidato alunos com os quais os professores

precisam trabalhar diariamente Embora a agitaccedilatildeo e a dispersatildeo sejam suspensas

temporariamente como efeito decorrente do remeacutedio agindo no Sistema Nervoso Central o

fato de os alunos permanecerem assintomaacuteticos durante as aulas natildeo garante por si soacute o sucesso

acadecircmico Talvez o que a intervenccedilatildeo meacutedica possa garantir eacute que esses alunos natildeo atrapalhem

a rotina escolar e o planejamento do professor

No entanto o trabalho de inscrever a crianccedila no mundo de descobertas que a escola

possibilita tomaacute-la como parte de uma cultura compartilhada com seus colegas tocaacute-la em seu

desejo de aprender constitui a indispensaacutevel e insubstituiacutevel tarefa do educador que a exerce

como desejo e dever como ananke

Acreditamos portanto que constitui tarefa importante para a escola de nosso tempo

para pais e matildees de alunos e para os profissionais meacutedicos e psicoacutelogos que satildeo chamados a

falar a partir do lugar de saber que tenhamos no horizonte de nosso fazer um trabalhar em

conjunto reconhecendo os limites e alcances de nossa atuaccedilatildeo num jogo que em vez de excluir

o outro convoca-o a falar a partir do seu lugar de saber Desejamos com este trabalho contribuir

para o campo da educaccedilatildeo valorizar o fazer dos professores e professoras a cena escolar e as

suas potencialidades na transformaccedilatildeo de vidas

209

EPIacuteLOGO

As passagens que se seguem fizeram parte do cenaacuterio de composiccedilatildeo deste trabalho

ainda que natildeo tenham ingressado nas discussotildees teoacutericas Satildeo histoacuterias vividas em diferentes

escolas narradas de diferentes lugares ocupados pela autora

Jaacute passava das 13h Por descuido de algueacutem ou quem sabe por zelo uma fresta do

portatildeo permanecia aberta por onde era possiacutevel cruzar Sem a sineta da entrada sem a

cantoria de boas-vindas sem as matildeos dos colegas na fila desajeitadamente dadas apertadas

o que fazer Comeccedilava assim um dos segundos dias na escola

Sem muito pensar apoacutes passar pelo portatildeo de entrada o menino subiu os degraus e

atravessou sozinho pelos portotildees do edifiacutecio Teve a sensaccedilatildeo de que algueacutem o vira a sensaccedilatildeo

de ser olhado Laacute de dentro natildeo tinha como sair o teto era tatildeo alto e amplo que chegava a

sufocar mas isso o fez andar os corredores eram tatildeo longos que natildeo se via o seu fim mas

por isso deveria percorrecirc-lo

Enquanto ia as portas das salas de aula proliferavam a cada passo mais e mais Todas

fechadas Ateacute que parou diante de uma que lhe pareceu especialmente familiar Havia um

barulho que vinha laacute de dentro O uacutenico a habitar aquele espaccedilo Um som de batidas leves

ritmadas o giz Comprido e seco receacutem-retirado da caixa O giz riscando o quadro De que

cor Pouco importava pensou meses depois Talvez fosse o quadro a consumir o giz

Embalado pelo som da consumaccedilatildeo agora mais apressado a chegar ao fim da escrita

o aluno perdido deu duas batidas agrave porta O barulho inicial parecia mais expressivo era o

barulho interrompido o barulho da ausecircncia do barulho O menino sentiu que existia naquele

instante A porta se abriu a professora do outro lado sorriu mas antes apertou os laacutebios

Olhou para o reloacutegio e disse estaacute atrasado Indicou uma classe e convidou o aluno a se sentar

Ele entrou olhou para os outros seus colegas que tambeacutem o olharam por um momento

O que havia acontecido Todos estavam tatildeo seacuterios enfileirados uniformizados assombrados

quietos Parecia guardarem um segredo um segredo prometido a jamais ser revelado Algueacutem

tinha falecido

210

O menino pensou que sim estavam todos na primeira seacuterie do ensino fundamental

Todos os alunos faziam o mesmo que a professora fazia com o giz e o quadro mas usando o

laacutepis e a folha respectivamente Olhavam identificavam as formas as letras e as copiavam em

seus cadernos A professora de costas terminou de escrever ao quadro sentou-se agrave sua mesa

e olhou para seu caderno Quando o aluno se sentou em seu lugar entendeu que deveria fazer

o mesmo que os outros Sentiu uma espeacutecie de aliacutevio Agora era tambeacutem um outro Estava a

salvo

Mais ou menos assim se acomodou a escuta das lembranccedilas de escola de alguns alunos

de cursos de licenciatura quando a professora de Psicologia da Educaccedilatildeo lhes pediu para

narrarem cenas vividas na escola Alguns quiseram contar sobre a transiccedilatildeo da educaccedilatildeo infantil

para o ensino fundamental Outros sobre um dia em que chegaram atrasados ou sobre a

atmosfera que sentiam na escola seus espaccedilos ares cores ritmos Outros ainda sobre

professoras especiais sobre projetos cientiacuteficos sobre amizades sobre preconceitos

ldquoPor que fica essa marca de alguma coisa como a morte como uma coisa da qual se

escapa por um trizrdquo pensa inquieta a professora Eacute E se a porta estivesse fechada e se o

aluno natildeo encontrasse a sala e se a professora natildeo o deixasse entrar e se ele se entregasse agrave

imensidatildeo abismal daquele lugar chamado escola Um lugar que paradoxalmente nos eacute

apresentado como salvaccedilatildeo como caminho digno para virarmos pessoas dignas Por que

apesar de os estudantes natildeo terem dito exatamente isso que a professora conseguiu escrever o

que resta a ela tem uma atmosfera sombria de pesar de solidatildeo Natildeo haacute como pedir para os

outros atravessarem lugares esquecidos da memoacuteria sem atravessaacute-los tambeacutem

Mas o preacutedio ndash que edifiacutecio mais excecircntrico e antigo aquele ndash para mim como era verdadeiramente um palaacutecio encantado Natildeo havia de fato fim para seus meandros ndash para suas incompreensiacuteveis subdivisotildees Era difiacutecil a qualquer dado momento dizer com certeza em qual de seus dois andares calhava de se estar De qualquer cocircmodo para qualquer outro acontecia seguramente de se topar com trecircs ou quatro degraus fosse para subir fosse para descer E ainda as passagens laterais eram inumeraacuteveis ndash inconcebiacuteveis ndash e de tal modo desembocando em si mesmas que nossas ideaccedilotildees mais exatas com respeito agrave totalidade da mansatildeo natildeo eram muito diferentes dessas com que ponderaacutevamos sobre o infinito (POE 2012 p 28)

211

O cenaacuterio embora confuso e de difiacutecil compreensatildeo passiacutevel de descriccedilatildeo na pena de

Edgar Allan Poe em seu conto ldquoWilliam Wilsonrdquo poderia ser a escola do pequeno texto

produzido pela professora na tentativa de contornar as imagens provocadas pelos relatos de seus

alunos Eacute tambeacutem uma escola no conto de Poe onde o narrador estudava o lugar onde aparece

um colega de mesmo nome e aparecircncia causador de grande sofrimento Esse cenaacuterio escolar

de possiacutevel emergecircncia da anguacutestia da estranheza eacute o mesmo local onde a crianccedila encontra

possibilidades de lidar com ela acessa um mundo aleacutem de seu lar comeccedila a participar de

relaccedilotildees aleacutem do pequeno universo de familiares vizinhos parentes Conhece outros jeitos

possiacuteveis de ser e estar no mundo conhece outras regras novos valores ganha papeis sociais

Natildeo eacute apenas filho irmatildeo sobrinho natildeo eacute somente crianccedila mas torna-se aluno e colega assume

responsabilidades pelas quais seraacute cobrado avaliado ou pelo menos assim se espera

Ao registrar a escuta a professora se reporta agrave antiga escola onde cursou os primeiros

anos do primeiro grau Parecia estar laacute mais uma vez Quantas alegrias quantas violecircncias

Adorava perambular pelos corredores espiar as outras salas flagrar outras turmas em seus

disfarces de alunos comportados Adorava ir para a cantina da escola conversar com as

cozinheiras sentir aquele cheirinho de mingau ou de caldo de feijatildeo sendo preparado Agraves vezes

apanhava de colegas mais fortes por um motivo ou outro Levou soco chute bolada que hoje

natildeo doem mais Lembra-se de que tinha medo mesmo de natildeo conseguir terminar de copiar tudo

o que estava no quadro O quadro era imenso Dividido em trecircs partes Tinha que terminar de

escrever porque era preciso apagar para escrever mais e noacutes precisaacutevamos registrar tudo

Por que as professoras eram tatildeo quietas Aguardavam pacientemente que a turma

terminasse de copiar e ficavam absortas em seus pensamentos Por observarmos as professoras

em seus jeitos calados ou entatildeo por olharmos os galhos das grandes aacutervores que nos

circundavam pelo lado de fora ou ainda por olharmos a atenccedilatildeo bonita a letra bonita de um ou

outro colega alguns de noacutes natildeo conseguiacuteamos terminar de copiar Isso deixava professoras e

matildees chateadas preocupadas com nossa evoluccedilatildeo Copiar era coisa muito importante

As matildees perguntavam para noacutes seus filhos por que ficaacutevamos olhando para as paredes

em vez de copiar Natildeo era por falta de tempo jaacute que a maioria da turma conseguia As

professoras diziam que eacuteramos dispersos e desatentos Checavam caderno por caderno para ver

se a tarefa do dia anterior havia sido feita para ver se os alunos tinham de fato copiado tudo

para ver como estava a letra para ver se tinham feito orelhas e garranchos Isso nos deixava

nervosos apreensivos achaacutevamos que nunca conseguiriacuteamos aprender

212

Alguns de noacutes passavam esse limite de uma simples falta de atenccedilatildeo ao quadro e ao

caderno Faltava um cuidado tambeacutem com os corpos Natildeo os continham eram conduzidos por

eles de um lado a outro da sala para fora da sala pelos corredores Algumas crianccedilas explodiam

seus corpos na hora do recreio depois de uma eternidade contida poderiam finalmente se

libertar daquele lugar daquele papel de aluno comportado e correr pelo paacutetio jogar-se ao chatildeo

brigar com colegas

Ateacute acalmarem os acircnimos na volta do recreio levava um bocado de tempo Alguns

tomavam advertecircncia saiacuteam da sala para a diretoria choravam gritavam As matildees diziam que

na classe parecia haver um bicho carpinteiro que os impedia de ficarem sentados As

professoras concordavam mas no fundo pensavam que essas matildees natildeo davam limite aos seus

filhos e agora elas eacute que teriam que lidar com isso Deveriam entatildeo envolvecirc-las na educaccedilatildeo

escolar Qualquer deslize dos alunos com o caderno que era disciacutepulo do quadro negro ou com

o comportamento um bilhete era enviado para os pais E naquele tempo as crianccedilas respeitavam

os pais Os pais davam razatildeo para os professores Os professores eram uma referecircncia para que

a educaccedilatildeo acontecesse Eacute o que agraves vezes pensa nostaacutelgica a professora que tem essas

memoacuterias

Lendo esse pequeno texto essa pequena lembranccedila eacute possiacutevel dizer que as professoras

faziam as coisas acontecerem Natildeo sabiam como natildeo sabiam por quecirc mas estavam sempre

referidas ao quadro ao caderno ao giz a pilares que sustentavam seus lugares de saber na sala

de aula e todos noacutes acreditaacutevamos nelas Bem ou mal nos educaacutevamos Alguns chegavam ao

fim do primeiro grau ao ensino meacutedio quando copiaacutevamos menos anotaacutevamos mais a

explicaccedilatildeo do conteuacutedo liacuteamos livros sabiacuteamos quais as mateacuterias favoritas quais as odiadas

e o que nos movia era um laccedilo de amizade um desejo de futuro vou ser artista engenheiro

advogada meacutedico jornalista Para outros a escola deixava de fazer sentido laacute pela quinta ou

sexta seacuterie ou mesmo mais tarde Talvez nunca tivesse feito sentido Por quecirc Faltavam agraves aulas

por dias semanas ateacute desistirem Comeccedilavam a trabalhar cedo formavam uma famiacutelia cedo

Cedo para mim O futuro deles era agora

Uma aluna entre noacutes buscou a sonhada formaccedilatildeo em teatro e depois de um tempo de

procura por trabalho e indecisotildees optou pela carreira acadecircmica mestrado e doutorado em

educaccedilatildeo Numa escola estadual de ensino fundamental e meacutedio um grupo de alunos do

primeiro ao quarto ano foi designado a participar de uma oficina de teatro que ocorreria

semanalmente Assim foi nomeada a atividade pela nossa colega agora proponente da oficina

213

artista e doutoranda em educaccedilatildeo As professoras chamaram de reforccedilo para alunos com

dificuldade para ler e escrever

O retorno agrave escola causou ansiedade agrave ministrante da oficina porque a escola puacuteblica

onde estudou tinha quase a mesma estrutura fiacutesica o mesmo cheiro a mesma umidade nos

corredores Passou de sala em sala para chamar os participantes e se surpreendeu ao ver as

crianccedilas copiando do quadro A professora seacuteria e sentada Haacute quantos anos havia saiacutedo da

escola Numa das turmas a professora entregava folhinhas mimeografadas cheia de atividades

para os alunos completarem O velho mimeoacutegrafo continua trabalhando Numa outra sala a

professora discutia com um aluno que natildeo queria sentar e tinha riscado no caderno de uma

colega Ao ver a oficineira a professora disse ele estaacute impossiacutevel hoje precisa ir para o reforccedilo

O objetivo era oferecer a arte teatral como um dispositivo de expressatildeo e elaboraccedilatildeo de

questotildees subjetivas que possam estar dificultando a aprendizagem e o estabelecimento de laccedilos

A psicopedagoga e a psicoacuteloga da escola adoraram a ideia ldquoTudo o que vem para nos ajudar a

gente aceita A gente precisa de ajuda com os alunos que natildeo sabem ler e escrever e que natildeo

podem repetir de ano Eles satildeo muito agitados e hiperativos Alguns tecircm laudo Natildeo obedecem

mais As matildees natildeo se preocupam mais com a educaccedilatildeo dos filhos Acham que a escola precisa

dar conta de tudo Poreacutem a escola natildeo eacute uma extensatildeo de casardquo

Numa reuniatildeo com responsaacuteveis pelas crianccedilas participantes para explicar o

funcionamento da oficina muitas queixas foram feitas sobre as professoras satildeo riacutegidas

exigentes datildeo tarefa quase todos os dias haacute conteuacutedos que os pais natildeo lembram mais e as

professoras os obrigam a fazer junto com os filhos que o filho chega machucado em casa e

ningueacutem sabe o que aconteceu que tem paacuteginas arrancadas do caderno e a professora natildeo sabe

quem fez que a professora apaga muito raacutepido do quadro e natildeo daacute tempo do filho copiar Muitas

crianccedilas tecircm laudo e natildeo tomam remeacutedio e isso pode ser perigoso porque podem bater nos

colegas e as professoras natildeo cuidam Quanto agrave proposta da oficina adoraram

Os elementos cecircnicos na escola eram praticamente os mesmos talvez as funccedilotildees fossem

ainda as mesmas o cenaacuterio os papeis Mas havia algo novo um novo arranjo um novo

discurso Ouviam-se termos como ldquolaudordquo ldquohiperatividaderdquo ldquoencaminhamento para meacutedicordquo

Havia um pedido de ajuda de algo que operasse entre pais e professores entre professores e

alunos E natildeo era um pedido pela oficina

Logo a ministrante percebeu que as crianccedilas natildeo queriam aprender fundamentos do jogo

cecircnico para que atraveacutes da representaccedilatildeo teatral apresentassem e elaborassem questotildees

214

subjetivas questotildees que ela natildeo sabia quais eram e pensava que natildeo vinham ao caso pois ali

natildeo era uma terapia Suas questotildees subjetivas deveriam aparecer apenas em jogo em cena

Encontrar um tom entre a professora de teatro e uma posiccedilatildeo de escuta era um desafio

uma busca contiacutenua Num desses dias de encontrar um tom uma das meninas respondeu a uma

pergunta oacutebvia da ministrante Ela queria saber como era ser crianccedila como sabiam que eram

crianccedilas ldquoEacute oacutebvio que somos crianccedilas natildeo estaacute vendo Acha que somos o quecirc Cococirc de

cavalordquo

No teatro cococirc de cavalo mais conhecido como merda eacute sinal de que uma encenaccedilatildeo

fez sucesso Quando essa expressatildeo surgiu os espectadores iam ao teatro de charrete puxada

por cavalos Desejava-se que os arredores do local ficassem cheios de merda Por isso que hoje

desejam merda aos atores que vatildeo entrar em cena eacute uma forma de desejar-lhes sorte

Essa foi uma forma de interpretar que a ministrante estava em busca dos resultados do

sucesso de sua proposta Aleacutem disso estava diante de crianccedilas Os alunos com dificuldades

eram antes de tudo crianccedilas Crianccedilas que brincam que pulam que correm Desejam sair desse

lugar de resto excremento constituir-se como sujeitos

Foi assim brincando experimentando de modo caoacutetico impaciente urgente destrutivo

uma atividade apoacutes a outra um livro apoacutes o outro sem tempo para pausas que criaram uma

atividade que os capturou como grupo uma brincadeira de escola Brincar de ser a professora

de ser a diretora de ser a aluna ou o aluno mais inteligente da escola ou o mais perigoso ou

um aluno adolescente do ensino meacutedio Brincar de escrever no quadro brincar de ensinar de

escrever o proacuteprio nome o nome do colega de procurar nos livros as letras do seu nome ou de

palavras que significavam algo importante para eles O faz-de-conta da sala de aula durava todo

o tempo da oficina eles mesmos regulavam criavam regras entravam num acordo de quem

seria a professora e por quanto tempo Agraves vezes retornavam ao caos novos membros entravam

no grupo outros saiacuteam porque jaacute sabiam ler e escrever ou entatildeo porque saiacuteam ou mudavam de

escola

Natildeo sei bem como as oficinas chegaram ao fim a ministrante queria muito que as

professoras vissem os alunos brincando contava para elas durante o intervalo ou na porta da

sala o que os alunos faziam nos encontros Elas sorriam agradeciam perguntavam sobre um

ou outro que lhes causava mais preocupaccedilatildeo Nunca assistiram A ministrante pensou em

formar uma oficina das professoras Propocircs para a coordenadora pedagoacutegica e para a psicoacuteloga

que se reunissem agrave tardinha mas elas jaacute avisaram que as professoras natildeo teriam interesse Natildeo

215

quis insistir Tambeacutem natildeo tinha convicccedilatildeo de que queria mesmo isso Matildees reclamaram que os

filhos estavam perdendo aula para participar das oficinas o que tambeacutem era uma preocupaccedilatildeo

da ministrante mas era o uacutenico horaacuterio possiacutevel A tentativa de marcar meia hora antes da aula

ou apoacutes a aula natildeo funcionou

Apoacutes trecircs semestres de atividades as oficinas terminaram Afinal qual era a funccedilatildeo da

ministrante naquele cenaacuterio Era um trabalho sutil uma ponte das crianccedilas com seu desejo de

aprender algo que pode acontecer de outras formas natildeo com uma oficina ldquoAs crianccedilas acabam

aprendendo de uma forma ou de outrardquo pensava

Nas brincadeiras de sala de aula que as crianccedilas inventavam muitas vezes as professoras

eram brabas furiosas xingavam os alunos por qualquer motivo mandavam sentar calar a boca

ameaccedilavam com bilhete para casa davam nota zero para a maioria mandavam copiar tudo do

quadro e natildeo aguardavam apagavam rapidamente Os alunos favoritos geralmente dois

ganhavam nota dez e eram alvo de chacota Os que faziam os alunos mais rebeldes provocavam

a professora perguntando em demasia reclamando que um colega empurrou pedindo para ir

ao banheiro

Algumas vezes as professoras eram doces inventavam algum conteuacutedo sobre qualquer

coisa explicavam pacientemente os alunos faziam as atividades com calma um desenho

respondiam as perguntas de uma folhinha que a professora entregava Depois ela passava de

classe em classe avaliando o que cada um estava fazendo Estaacute muito bom mas pode melhorar

soacute errou duas ou entatildeo acertou todas nota dez vai ser o ajudante do dia Muitas vezes isso

acontecia com aquelas crianccedilas mais difiacuteceis Havia um menino que era alvo de queixa de toda

a escola porque sempre se metia em confusatildeo Ameaccedilava colegas o tempo todo fazia

comentaacuterios preconceituosos que prontamente eram sinalizados pelos outros que o faziam se

desculpar pedindo o apoio da ministrante Muitas vezes gritava que queria matar sua matildee que

a odiava Gritava que natildeo gostava de sua professora que era brega e chata

Um dia disseram que ele seria o professor Ficou constrangido natildeo sabia como agir

mas aceitou Oscilou entre os dois papeis de um professor perverso e um professor amoroso

A turma divertiu-se muito com ele riam de seu jeito furioso e da imitaccedilatildeo que apareceu na hora

Perverso para demandar tarefas amoroso para corrigir Conferiu o caderno de cada aluno seu e

fez um certinho de laacutepis vermelho Natildeo se sentiu confortaacutevel quis interromper a encenaccedilatildeo

disse que tinha feito errado que natildeo sabia brincar de ser o professor mas a turma o aprovou eacute

216

assim mesmo que acontece as professoras agraves vezes satildeo brabas e agraves vezes satildeo queridas Agraves vezes

elogiam datildeo notas boas agraves vezes gritam e datildeo zero

Algo se passou com o menino difiacutecil e raivoso certamente natildeo uma mudanccedila definitiva

mas se mostrou mais amigo da turma emprestou materiais a quem natildeo tinha oferecia-se para

ajudar a arrumar a sala mas desestabilizava-se facilmente Fugia do grupo corria pelo paacutetio e

voltava O olhar da professora e da escola sobre ele parecia seguir o mesmo natildeo havia

diferenccedila Jaacute haviam pedido para a matildee levaacute-lo a um meacutedico levaacute-lo ao CAPS porque

certamente tinha algum problema era hiperativo com certeza soacute natildeo tinha laudo mas a matildee

pouco se importava Natildeo sabia nem quem era seu pai A psicoacuteloga da escola sabia dessa

situaccedilatildeo conhecia sua histoacuteria de vida mas dizia e defendia que haacute coisas que a escola natildeo

pode e nem deve dar conta vatildeo aleacutem do papel dela e das professoras Aleacutem de um papel de

educar ldquoEducaccedilatildeo vem do berccedilo de casa [] aqui as professoras ensinam a ler a escrever a

fazer contas Tudo o que estaacute aleacutem disso eacute um problema para os pais resolverem [] eu ajudo

escuto encaminho mas eles satildeo os responsaacuteveisrdquo

Nas brincadeiras de sala de aula as aprendizagens de leitura e escrita as contas eram

meras coadjuvantes Brincavam na imprecisatildeo dessas habilidades pouco importava se estava

realmente certo agraves vezes simulavam escritas faziam rabiscos faz de conta que sabiam escrever

O que os movia ali era o jogo de relaccedilotildees era ser algueacutem que sabia ser um aluno comportado

ser a professora

A ministrante sabia que as representaccedilotildees de mestres que apareciam em cena natildeo

correspondiam diretamente ao modo de ser ou agrave personalidade das professoras dos primeiros

anos Quem eram entatildeo essas personagens caricatas Eram produtos de suas relaccedilotildees com as

professoras era o que sustentava esse viacutenculo era um oacutedio e um amor encenados era a

transferecircncia operando para que o desejo de aprender acontecesse

Freud no texto ldquoAlgumas reflexotildees sobre a psicologia do escolarrdquo de 1914 ao discursar

no aniversaacuterio de sua escola primaacuteria fala-nos que como estudantes ele e seus colegas

poderiam tanto amar quanto odiar seus professores inventando simpatias e antipatias que natildeo

provinham dos mestres mas de projeccedilotildees do lugar de aluno em direccedilatildeo a esse lugar ocupado

por aquela figura que organiza uma sala de aula Para Freud

[] eacute difiacutecil dizer se o que exerceu mais influecircncia sobre noacutes e teve importacircncia maior foi a nossa preocupaccedilatildeo pelas ciecircncias que nos eram ensinadas ou pela personalidade de nossos mestres Eacute verdade no miacutenimo que esta segunda preocupaccedilatildeo constituiacutea uma corrente oculta e constante em

217

todos noacutes e para muitos os caminhos das ciecircncias passavam apenas atraveacutes de nossos professores Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos ndash porque natildeo admitir outros tantos ndash ela foi por causa disso definitivamente bloqueada (FREUD 19141996a p 286)

As professoras tinham na escola essa tarefa de dar um suporte de sustentar acolher

projeccedilotildees Difiacutecil oferecer-se assim de matriz a receber inscriccedilotildees demandas que natildeo satildeo suas

Mas eacute assim que a educaccedilatildeo pode acontecer Enquanto ensinam conteuacutedos satildeo suporte de

outras coisas de cada um dos alunos para que a relaccedilatildeo ensino aprendizagem opere E sobre

os alunos o que elas pensavam o que esperavam deles Falavam de um ou de outro

atravessadas por um vieacutes diagnoacutestico que estava aleacutem de sua alccedilada de sua responsabilidade

de seu fazer de seu saber

A maioria dos participantes do grupo havia sido encaminhada pelas professoras em

funccedilatildeo de seu comportamento hiperativo Para elas a dificuldade de aprender estava

relacionada agrave hiperatividade pois se conseguissem parar e prestar atenccedilatildeo certamente

aprenderiam Se pudessem ter um tempo soacute com eles individualmente sentar ao lado ajudar a

organizar o caderno acreditam que conseguiriam fazecirc-los aprender Mas com uma turma de

mais de vinte crianccedilas natildeo conseguem Por isso agradeciam a ajuda da psicoacuteloga da escola e da

ministrante das oficinas que conseguiam dar uma atenccedilatildeo mais individualizada a esses alunos

Ao ler essas passagens registros de uma oficineira parece-me que as pessoas que

trabalham na escola sabem que haacute algo novo que emerge em sala de aula uma urgecircncia que

aparece com alguns alunos e para a qual natildeo se sentem aptas a contornar Entendem que isso

estaacute para aleacutem de suas possibilidades Firmam-se ao protocolar agravequilo que funcionava quando

foram alunos ao que lhes foi transmitido em suas formaccedilotildees docentes O que natildeo se organiza

dentro dessas arestas entendem que natildeo lhes pertence A responsabilidade eacute dos pais a

educaccedilatildeo vem do berccedilo dizem Ou entatildeo a crianccedila tem um problema eacute hiperativa logo a

responsabilidade eacute do meacutedico que iraacute atendecirc-la Mas apesar disso que pode ser nomeado de

hiperatividade apesar dessa coisa que escapa agrave educaccedilatildeo formal haacute um desejo de ensinar

imaginam uma situaccedilatildeo em que sentam ao lado do aluno e lhe datildeo uma atenccedilatildeo diferenciada

Esse gesto seria potente diante da indisciplina Por que natildeo encorajaacute-lo

A posiccedilatildeo da escola de armar bem suas arestas definir seus limites dizer qual seu papel

qual seu lugar eacute digno e responsaacutevel

A proponente da oficina descobriu que os participantes eram crianccedilas ndash um lugar

investido para aleacutem de um resto de uma merda Precisou reconhecer esse lugar para que a

218

oficina ganhasse uma forma criada e inventada em grupo que fez aparecer algo em comum as

coisas que natildeo aparecem quando satildeo alunos que natildeo satildeo vistas Seus afetos seus desejos a

atualizaccedilatildeo da transferecircncia

Na sala de aula poreacutem eles satildeo alunos Devem ser alunos Assim como as professoras

em sala de aula devem ser professoras Eacute esse o papel que pais e sociedade lhes exigem

Quantas coisas invisiacuteveis gostariam tambeacutem de tornar visiacuteveis em suas falas expressar de

alguma forma o que sentem Quem as escuta As professoras resistem A escola resiste com

suas folhinhas mimeografadas cheirando a aacutelcool

219

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ZOLA I K Medicine as an institution of social control The sociological review ano 4 n 20 1972

Page 3: Desenlace e experiência educativa: o trágico e a medicalização

CIP - Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo

Bellochio Thones Ana Paula Desenlace e experiecircncia educativa o traacutegico e amedicalizaccedilatildeo Ana Paula Bellochio Thones -- 2019 224 f Orientadora Simone Zanon Moschen

Tese (Doutorado) -- Universidade Federal do RioGrande do Sul Faculdade de Educaccedilatildeo Programa dePoacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Porto Alegre BR-RS 2019 1 Cena escolar 2 Trageacutedia antiga 3Psicanaacutelise 4 Medicalizaccedilatildeo I Zanon MoschenSimone orient II Tiacutetulo

Elaborada pelo Sistema de Geraccedilatildeo Automaacutetica de Ficha Catalograacutefica da UFRGS com osdados fornecidos pelo(a) autor(a)

Nome THONES Ana Paula Bellochio

Tiacutetulo Desenlace e experiecircncia educativa o traacutegico e a medicalizaccedilatildeo

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Educaccedilatildeo

Banca examinadora

_____________________________________________________________

Dra Lucia Serrano Pereira ndash Associaccedilatildeo Psicanaliacutetica de Porto Alegre (APPOA)

_____________________________________________________________

Prof Dr Marcelo de Andrade Pereira ndash Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

______________________________________________________________

Prof Dr Gilberto Icle ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

_____________________________________________________________

Profa Dra Simone Zanon Moschen (orientadora) ndash Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (UFRGS)

Agrave Martina

vida que pulsa

AGRADECIMENTOS

A escrita de um trabalho de doutorado demanda periacuteodos solitaacuterios No entanto entendo

que o escrever se torna possiacutevel em decorrecircncia de momentos compartilhados com pessoas

acolhedoras com pessoas que instigam o pensamento que oferecem novas leituras de mundo

proporcionando agrave escrita movimentos importantes Gostaria de agradecer a algumas dessas

pessoas que estiveram comigo de algum modo durante o curso de doutorado

Ao meu amor Anderson por compreender os periacuteodos em que precisei me ausentar e

apoiar a realizaccedilatildeo deste sonho Pelo pensamento inquieto pelo coraccedilatildeo imenso

Agrave querida prima Fernanda por ter me acolhido em seu lar durante a estadia em Porto

Alegre pela companhia carinhosa pelas longas conversas

Agrave minha famiacutelia por ser a base Embora longe estatildeo sempre presentes

Agrave minha orientadora Simone pela acolhida ao curso e pelo convite inicial a me perder

A traccedilar um caminho para depois descobrir para onde aponta a buacutessola Agradeccedilo pela leitura

cuidadosa e sensiacutevel por ajudar a transformar minhas inquietaccedilotildees em questotildees de pesquisa

pelas perguntas e provocaccedilotildees que me desacomodaram e me ajudaram a encontrar um novo

tom de escrita

Agrave querida Anna Letiacutecia por inspirar delicadeza e criatividade pelo olhar atento e

cuidadoso pelo interesse sincero nas coisas e nas pessoas agrave Patriacutecia pela companhia calma e

agradaacutevel pela parceria afetuosa nas aulas de Educaccedilatildeo Terapecircutica agrave Tatianne pela amizade

de infacircncia apoacutes os 30 anos por apresentar autoras e livros fascinantes agrave Lia por sustentar ao

mesmo tempo ternura e um pensamento vivaz e criacutetico

Aos demais colegas que fazem e fizeram parte do grupo de orientaccedilatildeo agradeccedilo pelos

momentos de um escrever junto(s) Janniny Luiacutesa Pedro Sthefan Thiago Camila Luiacutes

Adriano Luiacutes Henrique Carmela e Daniel

Agraves ldquoamigas geniaisrdquo Helena Karla e mais uma vez Tati e Lia pela parceria no grupo

de leitura da obra de Elena Ferrante e pelo curso de extensatildeo que resultou desses encontros

Aos membros do Nuacutecleo de Pesquisa em Psicanaacutelise Educaccedilatildeo e Cultura (NUPPEC)

agradeccedilo pelos encontros inspiradores pela companhia em jornadas e viagens pela pergunta

sobre como viver junto(s) Agradeccedilo especialmente agrave Claacuteudia e agrave Elaine por serem educadoras

inteligentes e encantadoras agrave Liacutevia e agrave Sofia pela alegria e sensibilidade contagiantes e ao

Jeferson pela admiraacutevel dedicaccedilatildeo ao nuacutecleo de pesquisa pela revisatildeo cuidadosa deste

trabalho

Agradeccedilo ao Marcelo e agrave Luacutecia pelas preciosas contribuiccedilotildees na qualificaccedilatildeo do projeto

e por aceitarem o convite para compor a banca final Ao Gilberto por aceitar fazer parte da

banca de defesa Agrave Carla pela leitura e participaccedilatildeo da banca do projeto

Aos colegas professores e funcionaacuterios do PPGEdu

Agrave CAPES e

Aos professores e agraves professoras que me educaram

Haacute muitas maravilhas mas nenhuma

eacute tatildeo maravilhosa quanto o homem

[]

Soube aprender sozinho a usar a fala

e o pensamento mais veloz que o vento

e as leis que disciplinam as cidades

[]

ocorrem-lhe recursos para tudo

e nada o surpreende sem amparo

somente contra a morte clamaraacute

em vatildeo por um socorro embora saiba

fugir ateacute de males intrataacuteveis

(Coro em Antiacutegona de Soacutefocles)

Os poetas satildeo aliados valiosiacutessimos e seu testemunho deve ser levado

em alta conta pois conhecem muitas coisas entre o ceacuteu e a terra cuja

existecircncia nem sonha nossa sabedoria acadecircmica No conhecimento

da alma [Seele] estatildeo agrave nossa frente homens comuns pois se nutrem

em fontes que ainda natildeo tornamos acessiacuteveis agrave ciecircncia

(Sigmund Freud El delirio y los suentildeos en la Gradiva de W Jensen)

RESUMO

Este trabalho tem iniacutecio com uma narrativa que encena o encontro entre personagens implicadas

com o mal-estar que surge na escola oriundo de problemas de aprendizagem e comportamento

apresentados por uma crianccedila de seis anos O trabalho de pesquisa busca dar desdobramento

aos impasses eacuteticos indicados pela histoacuteria impasses que surgem no embate de personagens

que ocupam posiccedilotildees discursivas diferentes Constata-se que os processos de medicalizaccedilatildeo da

vida que adentram a cena escolar se apresentam como uma soluccedilatildeo possiacutevel oferecida pela

escola a crianccedilas diagnosticadas com TDAH Diante dessa constataccedilatildeo a tese avanccedila no sentido

de se perguntar quais as condiccedilotildees de autorizaccedilatildeo da escola no que se refere agraves dificuldades

com a escolarizaccedilatildeo desses alunos A leitura da situaccedilatildeo vivenciada na escola e na cliacutenica nos

remete aos modos de desenlace operados pelo traacutegico e agrave forma como eram apresentados pelas

trageacutedias claacutessicas ndash como ocorre em Eacutedipo Rei e Antiacutegona de Soacutefocles tomadas

respectivamente por Freud e Lacan ndash e como ao longo dos seacuteculos foram sendo substituiacutedos

por novas esteacuteticas teatrais causa e ao mesmo tempo consequecircncia de transformaccedilotildees

filosoacuteficas e poliacuteticas Como exemplo desse novo modelo temos as trageacutedias de Euriacutepides

autor considerado por Nietzsche como iacutecone da derrocada da arte traacutegica Dessa forma nossa

investigaccedilatildeo interroga o ponto de virada de um arranjo cecircnico para outro A passagem de um

enredo traacutegico no qual a insolubilidade do conflito organiza a trama para o ensinamento moral

como buacutessola dos desdobramentos do roteiro indica elementos que permitem pensar sobre o

que opera no apelo ao saber meacutedico feito pela escola A tese sustenta que podemos aprender

sobre a cena escolar com a anaacutelise da cena traacutegica onde ocorrem encontros e desencontros onde

se travam as relaccedilotildees que abrem ou natildeo espaccedilo ao exerciacutecio do desejo Sustenta-se que constitui

tarefa importante para a escola de nosso tempo para pais e matildees de alunos e para os

profissionais meacutedicos e psicoacutelogos que satildeo chamados a oferecer soluccedilotildees ter no horizonte de

seu fazer um trabalhar em conjunto reconhecendo os limites e alcances implicados na atuaccedilatildeo

de cada um em um jogo que em vez de excluir o outro convoca-o a falar a partir de seu lugar

de saber

Palavras-chave Cena escolar Medicalizaccedilatildeo Trageacutedia antiga Psicanaacutelise

ABSTRACT

Begining this work with a narrative that sets the meeting between characters involved in malaise

that arises at school through learning and behavioral problems presented by a 6 years old child

The research work seeks to unfold the ethical impasses indicated by history impasses that arise

in the clash of characters that occupy different discursive positions When we look at the

processes of medicalization of life that enter the school scene we understand that the appeal to

medical knowing and the consequent medication prescription of methylphenidate is a possible

solution offered by the school to children diagnosed with ADHD In view of this the thesis

advances in order to ask what are the conditions of authorization of the school regarding the

difficulties with the schooling of these students The reading of the situation experienced in the

school and in the clinic reminds us of the modes of denouement operated by the tragic and how

they were presented by classical tragedies - as in Sophocles Oedipus King and Antigone taken

respectively by Freud and Lacan- and how over the centuries it has been replaced by new

theatrical aesthetic cause and at the same time consequence of philosophical and political

transformations As an example of this new model we have the tragedies of Euripides author

considered by Nietzsche as icon of the collapse of tragic art In this way our investigation

questions the turning point of one scenic arrangement to another The transition from a tragic

plot in which the insolubility of the conflict organizes the story to a moral one as a compass

of the script unfolding indicates elements that allow to think about what operates in the appeal

to the medical knowing made by the school The thesis holds that we can learn about the school

scene by analyzing the tragic scene where encounters and mismatches occur where the relations

open or not to the exercise of desire It is argued that it is an important task for the school of

our time for parents and mothers of students and for the medical professionals and

psychologists who are called to offer solutions have in the horizon of their doing a work

together recognizing the limits and scopes implied in the agency of each one in a play that

instead of excluding the other summons it to speak from its place of knowing

Keywords School scene Medicalization Ancient tragedy Psychoanalysis

SUMAacuteRIO

PROacuteLOGO 12

INTRODUCcedilAtildeO 65

Os caminhos da pesquisa 69

1 A MEDICALIZACcedilAtildeO NA CENA EDUCATIVA E A CONSTITUICcedilAtildeO DO TDAH

72

11 MARGUERITE ou um recorte da histoacuteria da RITALINA 81

12 RITALINA e o consumo de metilfenidato por escolares 84

2 A TRAGEacuteDIA ANTIGA E A CONSTITUICcedilAtildeO DA PSICANAacuteLISE 91

21 A trilogia tebana de Soacutefocles Eacutedipo Rei e o inconsciente 92

22 Eacutedipo (e Antiacutegona) em Colono 93

221 O mito de fundaccedilatildeo de Tebas 96

222 O destino dos Labdaacutecidas 99

23 Antiacutegona heroiacutena traacutegica da eacutetica da psicanaacutelise 101

231 Aacutetē Omos Mecircrima 103

232 Desejo do Outro primordial e castraccedilatildeo 107

233 Antiacutegona ex nihilo e as leis natildeo escritas 111

234 A dimensatildeo do belo 117

235 A mulher Antiacutegona 122

3 O TRAacuteGICO 125

31 Noccedilotildees do traacutegico e da trageacutedia 125

311 O conflito insoluacutevel 125

312 Khocircra 128

313 A funccedilatildeo do logos 129

314 O estranho-familiar e a trageacutedia 131

32 A trageacutedia na Poeacutetica de Aristoacuteteles 136

33 A morte da trageacutedia 140

331 Apoliacutenio-dionisiacuteaco 141

332 Euriacutepides por Nietzsche 147

333 Deus ex machina euripidiano 153

4 EDUCAR E SEUS IMPASSES 163

41 A medicalizaccedilatildeo como deus ex machina na escola e seus efeitos 166

42 A falta como operadora da criaccedilatildeo 172

5 MEDEIA 175

51 ldquoAndarilha de incertas geografiasrdquo 175

52 Medeia de Euriacutepides 178

521 Hoacuterkos 180

522 Sopheacute 182

523 Aacutetē 185

524 Medeia ex machina como desenlace 187

525 Phaacutermakon e pharmakoacutes 191

526 Ananke 194

53 ldquoa raccedila fecircmea ignora como haurir algo elevado saacutebia quando edifica o horror do fadordquo

197

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 201

61 Natildeo definimos o lugar que ocupamos na relaccedilatildeo transferencial 203

62 O lobo do homem eacute o lobo no homem 204

63 A educaccedilatildeo agrave sombra da medicalizaccedilatildeo 205

64 Medicalizaccedilatildeo na escola e dever moral 205

65 Solucionar o problema eacute enunciaacute-lo 206

EPIacuteLOGO 209

REFEREcircNCIAS 219

12

PROacuteLOGO

Todo estudo sobre a infacircncia implica o adulto suas reaccedilotildees e preconceitos

(Mannoni 2003 p 30)

Gostariacuteamos de apresentar este estudo que envolve as dificuldades de aprendizagem de

uma crianccedila com essa consideraccedilatildeo inicial feita por Maud Mannoni em seu livro A crianccedila

sua doenccedila e os outros Para a psicanalista embora a ldquodoenccedilardquo falada pelos pais possa ser

localizada na pessoa da crianccedila afinal eacute o filho ou filha que porta os sintomas eacute pela fala dos

pais que a doenccedila se apresenta e nesse sentido eles ldquoos outrosrdquo estatildeo tambeacutem implicados no

mal-estar Mannoni fala que como adulto o psicanalista pode tambeacutem encontrar um limite na

escuta da mensagem que a crianccedila lhe transmite Dessa forma o tiacutetulo da referida obra inspira

o nome que podemos dar ao caso cliacutenico que seraacute contado

A ESCOLA sua PARCEIRA e outra crianccedila com TDAH

A histoacuteria que estaacute prestes a se desenrolar eacute tecida no encontro entre seis personagens

principais encontro no qual todas elas estatildeo implicadas no mal-estar que surge A narrativa

pode apresentaacute-las de acordo com seu papel social de acordo com sua funccedilatildeo para a histoacuteria

para que o caso se construa natildeo esquecendo tampouco o lugar a partir do qual a narramos

lugar que deslinda uma certa forma de contar e uma certa forma de resistir a contar Nesse

sentido escolhemos fazer da seguinte forma

A coordenadora pedagoacutegica da ESCOLA

A meacutedica (a PARCEIRA da escola)

A crianccedila com TDAH (aluno filho paciente)

A psicoacuteloga

A professora

A matildee

Incluiacutemos mais uma personagem Noacutes que estaacute fora de cena e assume o papel de falar

diretamente com o leitor Eacute uma posiccedilatildeo que busca fundar no jogo cecircnico um terceiro espaccedilo

13

Eacute importante tambeacutem situarmos o tempo

Deacutecada de 2010

A duraccedilatildeo da histoacuteria abrange um periacuteodo letivo em trecircs TEMPOS Outono Inverno e

Primavera

E o local

Cidade de Caxias do Sul ou outra no estado do Rio Grande do Sul

Neste instante deixamos a narrativa em primeira pessoa do plural para experimentar

contar a histoacuteria como um texto dramatuacutergico Entramos em cena

TEMPO 1

Outono

CENA 1

Casa da PSICOacuteLOGA Entardecer

O telefone toca Ela corre para atender

Pedagoga

Alocirc aqui quem fala eacute a coordenadora pedagoacutegica do primeiro ciclo da ESCOLA Tem

um aluno nosso do primeiro ano do ensino fundamental que estaacute em tratamento psicoloacutegico

contigo

Psicoacuteloga

Ah sim sei quem eacute Estaacute em atendimento desde agosto Em que posso ajudar

14

Pedagoga

Sim a matildee dele me disse Estou te ligando para falar que noacutes natildeo sabemos mais o que

fazer com ele porque natildeo para quieto natildeo presta atenccedilatildeo nas aulas natildeo estaacute seguindo o ritmo

de aprendizado da turma Desde a educaccedilatildeo infantil ele eacute assim e o mau comportamento soacute

piora

Psicoacuteloga (para si mesma)

Natildeo segue o ritmo de aprendizado Mas quanto ele deveria ter aprendido em poucas

semanas de aula

Noacutes

Eacute preciso considerar que a preocupaccedilatildeo da escola deve ser reconhecida afinal a

pedagoga estaacute dizendo que tais sintomas jaacute haviam sido observados no ano anterior

Pedagoga (continua)

Achamos que ele tem TDAH e precisa de um tratamento A matildee disse que ele jaacute estava

em acompanhamento psicoloacutegico contigo e noacutes sugerimos tambeacutem uma psiquiatra infantil que

eacute PARCEIRA DA ESCOLA

Psicoacuteloga

A meacutedica eacute parceira da escola

Pedagoga

Sim noacutes costumamos encaminhar nossas crianccedilas com TDAH para que ela faccedila uma

avaliaccedilatildeo

15

Psicoacuteloga

Estaacute certo Bom eu acredito que no momento o menino pode ficar apenas com o

atendimento psicoloacutegico jaacute que as aulas comeccedilaram haacute pouco e ele ainda estaacute passando por um

processo de adaptaccedilatildeo A mudanccedila da educaccedilatildeo infantil para o primeiro ano eacute bem marcante

na vida de uma crianccedila

Pedagoga

Claro Mas ele pode seguir os atendimentos contigo sim mas no caso de uma crianccedila

com TDAH quanto mais completo o atendimento quanto mais profissionais envolvidos

melhor Tem vaacuterias psicoacutelogas na cidade que trabalham em parceria com a psiquiatra

Noacutes

Seraacute a medicalizaccedilatildeo um caminho necessaacuterio A psicoacuteloga estaacute tatildeo segura de suas

intervenccedilotildees cliacutenicas de suas conversas com a matildee de entender as causas dos sintomas tatildeo

certa de sua abordagem cliacutenica a psicanaliacutetica Quanto agrave matildee ela tambeacutem estaacute preocupada

com o comportamento do filho pois a inquietaccedilatildeo e a dispersatildeo em sala de aula estatildeo

comeccedilando a aparecer cada vez mais em casa Sua maior preocupaccedilatildeo eacute a aprendizagem da

leitura e da escrita

Psicoacuteloga

Entendo Mas ainda que ele esteja demonstrando agitaccedilatildeo dispersatildeo isso natildeo quer dizer

que ele tenha um transtorno

Pedagoga

Entatildeo tu achas que ele natildeo eacute TDAH

16

Psicoacuteloga

Natildeo podemos afirmar isso soacute com esses dados do comportamento dele na escola

Existem outras coisas acontecendo com ele na famiacutelia na relaccedilatildeo com os pais que podem estar

ocasionando os sintomas

Pedagoga

Entatildeo noacutes vamos fazer o seguinte vou te pedir que me apresente um laudo pode ser

Um laudo bem completo bem fundamentado com revisatildeo do DSM com teste de inteligecircncia

Psicoacuteloga

Eu natildeo costumo trabalhar dessa forma com testes mas eu posso fazer uma avaliaccedilatildeo

psicoloacutegica

Pedagoga

Entatildeo eu posso indicar para a matildee umas psicoacutelogas aqui da cidade que fazem

Psicoacuteloga

Tudo bem Ele eacute meu paciente eu mesma faccedilo

Pedagoga

Eacute importante fazermos porque se ele natildeo for TDAH ele pode ser TOD entatildeo tem que

fazer um diagnoacutestico diferencial

Psicoacuteloga (para si mesma)

Toddy

17

Pedagoga

E tu podes me entregar quando Eu preciso o mais breve possiacutevel

Psicoacuteloga

Pode deixar vou fazer o quanto antes Preciso tambeacutem conversar com a professora para

ver o que ela acha Entro em contato para marcar a conversa

Pedagoga

Estaacute bem Fico no aguardo Vamos tentar resolver esse problema Tchau

Psicoacuteloga

Tchau

Ambas desligam o telefone A psicoacuteloga senta no sofaacute da sala

Psicoacuteloga (para si)

ldquoParceira da ESCOLArdquo uma psiquiatra Isso eacute muito estranho O que seraacute que ela faz

Diagnostica as crianccedilas mais agitadas com TDAH e daacute Ritalina Soacute pode ser isso Assustador

Imagina soacute se uma escola oferece como praacutetica pedagoacutegica o encaminhamento para um

tratamento psiquiaacutetrico tem alguma coisa errada com a ESCOLA Natildeo natildeo Isso natildeo eacute

possiacutevel Teste de inteligecircncia Toddy o que eacute isso Tenho muito trabalho pela frente

Noacutes

Ainda que se dedique a estudar o campo da Educaccedilatildeo a psicoacuteloga parece estar distante

dos saberes que circulam pela escola De que forma conseguiraacute escutaacute-los

18

CENA 2

Escritoacuterio da casa da psicoacuteloga Noite

Psicoacuteloga procura o DSM entre livros encaixotados

Psicoacuteloga (para si)

Por que a professora ou a coordenadora pedagoacutegica natildeo podem elas mesmas ajudar o

menino em seu processo de adaptaccedilatildeo ao ensino fundamental Existem tantas oficinas naquela

ESCOLA pra ele interagir com os colegas Eacute isso que estaacute acontecendo com ele natildeo eacute um

transtorno De resto se ele estaacute mais agitado e disperso como ela disse isso eacute fruto do lugar

que ocupa no desejo da matildee eu bem sei Bom vou escrever isso no laudo Ah achei

Finalmente

Noacutes

Muito se diz sobre o lugar que a crianccedila ocupa no desejo da matildee do investimento

narciacutesico da matildee em seu filho O menino tambeacutem vive com outra pessoa seu pai Por que natildeo

considerar tambeacutem o desejo do pai pelo filho

Psicoacuteloga abre o DSM

Psicoacuteloga

Eu achava que o trabalho da psiquiatra infantil poderia ser solicitado soacute em casos graves

como uma psicose infantil Vamos ver primeiro o TDAH Ah jaacute estaacute aqui logo no iniacutecio

ldquoTranstornos do neurodesenvolvimentordquo Vamos ver a paacutegina Aqui ldquoTranstorno de Deacuteficit

de AtenccedilatildeoHiperatividaderdquo

Psicoacuteloga lecirc os criteacuterios diagnoacutesticos e marca aquilo que mais lhe chama atenccedilatildeo

19

20

Psicoacuteloga (pensa em voz alta)

Bom pelo que conversei com a matildee dele e pelo que consigo observar na cliacutenica ele se

enquadra no subtipo hiperativoimpulsivo Ele contempla todos os criteacuterios a b c d e Mas

os sintomas estatildeo presentes nos uacuteltimos seis meses Acredito que natildeo Para o manual para

fechar o diagnoacutestico basta que a crianccedila tenha no miacutenimo 6 anos Ele acabou de fazer

aniversaacuterio posso escrever isso no laudo Realmente para esse manual o menino se enquadra

no TDAH Isso eacute inegaacutevel e indiscutiacutevel Aqui soacute existem verdades natildeo haacute discussatildeo Quem

sou eu para questionar Dos nove ldquosintomasrdquo tem que preencher no miacutenimo seis Um tatildeo

parecido com o outro Um sinal acaba levando a outro Que coisa olha soacute o sintoma ldquoerdquo acaba

levando ao sintoma ldquoardquo e ao sintoma ldquobrdquo Fazem parte do mesmo comportamento ora Por

que aparecem aqui como eventos diferentes Como uma crianccedila que se sente desconfortaacutevel

em ficar parada natildeo se mexeria na cadeira e nem se levantaria

Noacutes

Haacute sim crianccedilas que se sentem desconfortaacuteveis ao ficarem paradas e nem por isso se

movem No entanto elas acabam aprendendo a controlar seus corpos Haacute seacuteculos as classes

escolares satildeo iacutempares no exerciacutecio dessa habilidade mas nem sempre bem-sucedidas

Psicoacuteloga

Tem outra coisa muito curiosa aqui na descriccedilatildeo dos sintomas haacute uma referecircncia

constante a um outro No sintoma ldquobrdquo ldquose espera que permaneccedila sentadordquo Quem espera No

ldquoerdquo ldquooutros podem ver o indiviacuteduo como inquietordquo No ldquofrdquo ldquotermina a frase dos outrosrdquo Quem

satildeo os outros Incapaz de brincar calmamente Para quem Fala demais Para quem

ldquoInterromperdquo ldquose intrometerdquo o que quem Quem determina essa medida A famiacutelia A

ESCOLA A meacutedica Como esses outros ocupam o lugar de Outro para a crianccedila

21

CENA 3

Cliacutenica de psicoterapia Manhatilde

Psicoacuteloga e matildee conversam

Psicoacuteloga

A coordenadora pedagoacutegica da ESCOLA ligou esta semana para falar do teu filho

Matildee

Sim ela me avisou que ligaria que bom Estatildeo achando que ele eacute TDAH porque ele

anda muito inquieto na sala natildeo quer ficar sentado anda pelos corredores Lembra que eu jaacute

tinha comentado contigo que eu tambeacutem estava achando Aiacute querem uma ajuda com ele

falaram de uma psiquiatra tambeacutem mas eu disse que ele jaacute estava em acompanhamento contigo

por causa daqueles probleminhas de baixa autoestima dele

Psicoacuteloga

Eu queria falar contigo sobre um pedido que ela fez Ela sugeriu que eu faccedila um laudo

para avaliar se ele tem TDAH O que tu achas disso

Matildee

Pois eacute eu tambeacutem estou achando que ele tem alguma coisa pode ser hiperatividade

mesmo Ele estaacute realmente muito agitado principalmente quando chega em casa da escola ele

fica pulando sobe no sofaacute Eu queria que ele fizesse as tarefas mas ele natildeo faz natildeo se

concentra Eu fico com medo que ele natildeo aprenda ler e escrever

Psicoacuteloga

E tu tens observado isso desde quando Como ele estava na eacutepoca das feacuterias

22

Matildee

Natildeo durante as feacuterias ele estava bem fomos para a praia ele aproveitou bastante e aqui

na cidade ele dormia toda a manhatilde agrave tarde brincava sozinho ou com os primos Acho que ele

estaacute entrando num outro ritmo agora neacute Mas jaacute devia ter se adaptado foi o que disseram na

escola

Psicoacuteloga

Estaacute certo Entatildeo eu vou fazer um laudo conforme a coordenadora me pediu a partir das

sessotildees que jaacute tive com ele a partir das nossas conversas considerando a nova rotina dele a

idade e vou conversar com a professora dele na escola e fazer tambeacutem um teste psicoloacutegico

muito simples que consiste num desenho Antes de ficar pronto eu te digo o que escrevi e

entrego para a escola Pode ser

Matildee

Claro estaacute oacutetimo jaacute vou dizer pra ele fazer um desenho bem bonito

Psicoacuteloga

Vou tentar providenciar para semana que vem Vou te pedir agora para falar um pouco

do dia a dia dele como tem sido desde a volta das feacuterias como vocecircs se organizam como estatildeo

os horaacuterios

CENA 4

ESCOLA Periacuteodo da tarde

Na sala da coordenaccedilatildeo a psicoacuteloga aguarda a professora junto com a coordenadora

pedagoacutegica

23

Pedagoga

A professora soacute estaacute aguardando a supervisora ficar cuidando a turma para poder vir

falar contigo

Psicoacuteloga

Claro eu aguardo Preciso conversar com ela para ver o que estaacute acontecendo na sala

isso tambeacutem eacute importante para constar no laudo

Pedagoga

Sim eacute importante Mas as coisas natildeo se modificaram muito desde que eu te liguei ateacute

pioraram Ele teve uma crise esta semana

Psicoacuteloga

Uma crise

Pedagoga

Eu fiquei triste de ver porque ele estaacute sofrendo e a gente natildeo sabe o que fazer Ele queria

ir para casa gritou e chorou muito no corredor Entatildeo eu telefonei para a matildee dele vir buscar

ela veio e soacute assim ele se acalmou

Psicoacuteloga

Vou perguntar para ela depois como ele ficou Mas o que seraacute que aconteceu soube de

alguma coisa

Pedagoga

24

Ele natildeo consegue mais ficar na sala eacute muito hiperativo ele se levanta da cadeira pega

o material de algum colega conversa com outro a professora chama atenccedilatildeo pede para ele

parar quieto ele natildeo para ameaccedila tiraacute-lo da sala e acaba realmente encaminhando para caacute Isso

tem se repetido todos os dias

Noacutes

Ambos professora e aluno sabem de antematildeo o destino de uma cena que se repete todos

os dias a exclusatildeo da sala de aula Mas na repeticcedilatildeo haveria aposta em um resultado novo

Pedagoga

Ele vem ateacute aqui ficar comigo e aqui eu estou conseguindo ajeitar (A pedagoga sorri)

Enquanto eu trabalho ele faz uns desenhos faz a atividade da aula ele eacute um amor de crianccedila

muito cativante

Psicoacuteloga

Sim eacute uma crianccedila muito querida

Noacutes

Eacute acima de tudo ele eacute uma crianccedila todas sabemos disso Sabemos tambeacutem que tem um

dever a cumprir que eacute ser aluno A questatildeo que fica aqui eacute o que faz ele parar e trabalhar na

sala da coordenaccedilatildeo

Pedagoga

Mas natildeo podemos tornar isso um haacutebito Ontem eu natildeo estava na coordenaccedilatildeo quando

a professora tirou ele da sala ele natildeo quis retornar e aiacute teve a crise Noacutes estamos lidando assim

com ele por enquanto mas natildeo podemos seguir por muito tempo

25

Psicoacuteloga

Que bom que vocecircs encontraram uma forma e que ele faz atividades aqui contigo mas

entendo natildeo daacute pra seguir por muito tempo ele tem que se adaptar agrave sala

Pedagoga

Tu achas que eacute soacute uma questatildeo de adaptaccedilatildeo

Psicoacuteloga

Eu acho que essa eacute uma questatildeo importante sim mas estou fazendo o laudo Agora vou

tentar ver com a professora alguma alternativa

Professora entra na sala

Psicoacuteloga

Olaacute tudo bem professora

Professora

Tudo bem natildeo posso demorar (Para a pedagoga) Deixei uma atividade com eles a

supervisora ficou laacute mas daqui a pouco podem se dispersar

Pedagoga

Pode sentar aqui Essa aqui eacute a psicoacuteloga que veio falar da hiperatividade do teu aluno

Psicoacuteloga (para a pedagoga)

26

Eu gostaria de conversar a soacutes com a professora pode ser

Noacutes

Buscando a cumplicidade da professora a psicoacuteloga deixa de escutar a pedagoga

Conseguiria recuperar sua confianccedila

Pedagoga

Pode ser (Para a professora) Aqui estaacute o protocolo da reuniatildeo Vou ficar aqui ao lado

qualquer coisa pode me chamar

Psicoacuteloga (para a pedagoga)

Obrigada

Pedagoga sai

Professora

Noacutes temos que preencher essa folha aqui com o motivo da reuniatildeo o que foi tratado e o

encaminhamento mas eu vou fazendo ligeirinho enquanto a gente conversa

Psicoacuteloga

Certo Eu queria que tu me falasses sobre o teu aluno Como eacute ser professora dele

Professora

Olha eu vou ser bem sincera contigo Estaacute muito difiacutecil ele eacute muito hiperativo e isso

natildeo eacute de agora Ano passado ele jaacute era bastante agitado dava muito trabalho na educaccedilatildeo

infantil era agressivo com os colegas e agora no primeiro ano natildeo mudou muito Ele natildeo

27

consegue ficar quieto e eu falo para ele ficar sentado e ele natildeo fica (Fica nervosa suas matildeos

tremem) Quando eu viro para o quadro para escrever ele apronta alguma coisa mexe com

algum colega pega o material de algueacutem e diz que natildeo foi ele

Psicoacuteloga

E como satildeo as outras crianccedilas satildeo quietas

Professora

Na sala tem de tudo tem os mais quietinhos tem os mais agitados mas ele eacute diferente

ele me tira do seacuterio fica me desafiando quanto mais eu falo mais ele incomoda Estou cansada

saio daqui com dor de cabeccedila

Psicoacuteloga

E o que faz com que ele seja diferente dos outros para ti

Professora

Ele quer chamar atenccedilatildeo uma atenccedilatildeo que ele tem em casa com a matildee que tem contigo

no consultoacuterio que tem aqui com a coordenadora pedagoacutegica mas que eu natildeo posso dar afinal

tenho vinte alunos em sala

Psicoacuteloga

Sim eu entendo natildeo eacute faacutecil Deve ser muito cansativo Eu acho que ele gosta de ti jaacute

falou da professora pra mim das coisas que aprende contigo

Professora

Eu tambeacutem gosto dele Agraves vezes ele eacute carinhoso mas eacute quando ele quer natildeo eacute sempre

28

Psicoacuteloga

Nesses momentos em que ele eacute carinhoso isso eacute dito para ele de alguma forma Como

ele eacute um menino que estaacute com dificuldade de se adaptar ao ambiente escolar seria interessante

que ele tivesse alguns sinais de que as coisas estatildeo funcionando quando tu achar que estatildeo

Porque senatildeo sabe o que acontece Ele acha que estaacute sempre agindo errado e que natildeo vai

conseguir nunca se adequar agraves regras da escola

Professora

Eu tento fazer isso mas como satildeo muitos natildeo consigo dar uma atenccedilatildeo para cada um

Acredito que contigo com a matildee dele com a famiacutelia ele deve ser um amor de crianccedila sempre

porque vocecircs tecircm soacute uma crianccedila de cada vez mas comigo natildeo daacute certo comigo as coisas

funcionam de outro jeito

Psicoacuteloga

Qual jeito

Professora

Na minha aula ele tem que me obedecer respeitar as regras e isso natildeo estaacute acontecendo

Se ele natildeo obedece ele natildeo pode ficar na sala

Noacutes

E se ele natildeo fica na sala ele natildeo se educa No entanto ele soacute pode finalmente ldquoobedecerrdquo

ndash tomar para si coacutedigos de conduta presentes no ambiente ndash se for educado Entatildeo como saiacutemos

disso

Professora

29

Essa semana ele teve uma crise de choro Gritou pelos corredores todo mundo viu Eu

acho que ele estaacute muito imaturo para estar no primeiro ano Mas agora natildeo tem mais como

voltar atraacutes

Psicoacuteloga

O que noacutes podemos fazer para mudar a situaccedilatildeo entatildeo

Professora

Olha eu acho que ele vai seguir em acompanhamento contigo natildeo eacute Ele foi

encaminhado para a meacutedica tambeacutem por causa da hiperatividade

Psicoacuteloga

Pelo que entendi ele estaacute com um problema de socializaccedilatildeo ele natildeo estaacute conseguindo

seguir a rotina da escola pode ser por ser imaturo ainda ele eacute um dos mais jovens da turma

neacute Entatildeo noacutes podiacuteamos tentar ajudaacute-lo com isso a fazer um amigo pedir para ele ajudar em

alguma tarefa na sala de aula o que tu acha

Professora

Eu acho que pode ser eu vou escrever isso na folha como o que ficou combinado

Psicoacuteloga

Certo eu vou falar tambeacutem com os pais dele e com ele sobre isso Obrigada pela

conversa

Professora retorna agrave sala de aula

Pedagoga entra

30

Pedagoga

Foi tudo bem Conseguiram resolver alguma coisa

Psicoacuteloga

Sim noacutes conversamos sobre como ajudaacute-lo a se adaptar agrave escola estimular uma

atividade com um coleguinha fazer com que ele goste daqui

Pedagoga lecirc o protocolo

Pedagoga

Certo Eu conversei com a matildee dele e noacutes tomamos uma decisatildeo fazer uma readaptaccedilatildeo

curricular Ele fica na escola ateacute o horaacuterio do recreio porque no iniacutecio ele costuma estar mais

calmo mas depois do intervalo ele acaba transtornando

Psicoacuteloga

Ele natildeo vai assistir agraves aulas

Pedagoga

Eacute uma decisatildeo temporaacuteria Ele leva as atividades para casa e faz com a matildee Isso jaacute estaacute

acontecendo mas eu natildeo posso ficar cuidando dele Ele tem que entender que se ele natildeo ficar

na sala de aula natildeo vai poder ficar aqui comigo

Psicoacuteloga

Estaacute certo acho que eacute uma medida necessaacuteria para o momento Eu trago o laudo

semana que vem

31

CENA 5

Cliacutenica de psicologia Manhatilde

A psicoacuteloga apresenta o laudo psicoloacutegico agrave matildee

Psicoacuteloga

Inicialmente escrevi algumas caracteriacutesticas que observei na cliacutenica sobre ele ser uma

crianccedila ativa ao mesmo tempo observadora e criacutetica Escrevi sobre o fato de ele perceber que

seu atual modo de ser e de agir natildeo eacute bem aceito nos lugares que frequenta casa e escola

principalmente pois escuta queixas acerca de seu comportamento Ele sente que natildeo existe

outro jeito possiacutevel de ser e experimenta anguacutestia Escrevi que isso aparecia em forma de medo

de monstro de zumbi de ladratildeo e medo de morrer como ocorria com frequecircncia no ano

passado e que agora percebo que ele luta contra essa anguacutestia ao adotar um comportamento

agitado com o qual parece desafiar a professora

Bom tambeacutem escrevi sobre a hipoacutetese diagnoacutestica de TDAH levantada pela escola

Entendo que se tomarmos o DSM como base ele poderia ser classificado com TDAH de

subtipo hiperativoimpulsivo Eacute possiacutevel que haja discordacircncia em reconhecer um ou outro

sintoma dos criteacuterios pois as respostas da famiacutelia e da escola satildeo subjetivas e dizem respeito agraves

atividades que costumamos realizar com o menino e a forma de apresentaccedilatildeo dos sintomas

varia bastante levando em consideraccedilatildeo com quem ele interage e o que ele faz em cada

situaccedilatildeo Sobre o TDAH o DSM identifica reuacutene e descreve os sintomas do transtorno poreacutem

natildeo aponta o que o causa Como modificadores do curso ou seja prognoacutestico o DSM aponta

que padrotildees de interaccedilatildeo familiar podem natildeo causar o TDAH mas podem influenciar o curso

do transtorno Achei interessante essa parte pois significa que as relaccedilotildees na famiacutelia podem

constituir tanto uma resoluccedilatildeo para o transtorno quanto um agravamento Isso quer dizer que

haacute uma saiacuteda Com a ajuda da famiacutelia a crianccedila que hoje eacute considerada TDAH pode com o

tempo natildeo ser mais

32

Aleacutem disso escrevo tambeacutem sobre o diagnoacutestico infantil Eacute preciso levar em

consideraccedilatildeo que a constituiccedilatildeo psiacutequica estaacute curso e aponta tendecircncias para muitas direccedilotildees

Eacute preciso ter muita responsabilidade sobre os atos educativos dirigidos agrave crianccedila pois eles

provocam efeitos em sua formaccedilatildeo Dito isso faccedilo alguns encaminhamentos Recomendo que

seja incluiacutedo em um grupo de atividades extraclasse oferecido pela escola em que possa

conviver com seus colegas de uma outra forma buscando um novo lugar e um novo olhar das

pessoas Eu soube que a escola oferece oficinas de teatro acho que eacute uma boa alternativa Sugiro

tambeacutem passeios pela cidade com algum colega da turma convidar colegas para visitaacute-lo em

casa Conversei tambeacutem com a professora sobre estar atenta a boas iniciativas de seu aluno em

sala de aula e valorizaacute-las Por uacuteltimo recomendo a ti e a teu marido que levem o filho

regularmente a outros ambientes sociais aleacutem da escola buscando lugares em que o menino

possa ver ou entrar em contato com crianccedilas de sua idade Indico a continuidade da psicoterapia

incentivando a criatividade e formas alternativas de lidar com a anguacutestia

Satildeo estes os pontos mais importantes da avaliaccedilatildeo que fiz Quanto ao teste de

inteligecircncia que realizei com ele o desenho da figura humana o resultado apontado pela

interpretaccedilatildeo do teste eacute que ele tem uma inteligecircncia acima da meacutedia para a idade

Matildee

Eu fico muito orgulhosa do meu filho Eu vejo o quanto ele eacute inteligente tem um

raciociacutenio raacutepido eacute muito curioso parece que natildeo estaacute prestando atenccedilatildeo no que a gente diz

mas na verdade estaacute escutando tudo

Psicoacuteloga

Eacute verdade por mais que ele natildeo olhe estaacute sempre muito atento Bom sobre o laudo

tens alguma colocaccedilatildeo a fazer Alguma duacutevida Tenho uma coacutepia para ti e para o pai e hoje agrave

tarde vou levar agrave escola

33

Matildee

Estaacute certo Ele vai seguir aqui contigo sim eacute um espaccedilo em que ele se diverte

conversa e vou convidar um amiguinho dele para ir laacute em casa vamos combinar alguns

passeios juntos soacute ainda natildeo acho uma boa ideia sair para jantar ele natildeo sabe se comportar nos

restaurantes e eu fico com vergonha

Psicoacuteloga

Vamos experimentando aos poucos

Matildee

Eu posso fazer uma coacutepia para entregar para a psiquiatra Eu tenho que te contar como

meu filho natildeo estava muito bem a escola o encaminhou para a psiquiatra quanto mais

profissionais envolvidos melhor Fui conversar com ela semana passada

Psicoacuteloga (se contorce na cadeira)

Pode entregar para ela sim E como foi a consulta

Matildee

Eu falei para ela que ele estava em acompanhamento contigo ela ainda vai entrar em

contato Eacute como tu escreveu no laudo ele tem TDAH e ela disse que no caso dele precisa tomar

Ritalina Noacutes ficamos bem preocupados com a notiacutecia mas aliviados ao mesmo tempo porque

tem tratamento Hoje agrave tarde ele natildeo vai agrave escola e vai fazer uns exames para iniciar o

tratamento

34

Psicoacuteloga (inspira e expira)

Escrevi sobre o TDAH a pedido da escola mas eu acho que ele estaacute agitado em funccedilatildeo

da relaccedilatildeo dele com a professora e com os colegas em funccedilatildeo das diferenccedilas que tem entre a

casa e a escola Ele tem 6 anos estaacute amadurecendo ainda

Matildee

Sim ela falou tudo isso tambeacutem mas com 6 anos jaacute daacute para fazer o diagnoacutestico Ano

passado ele era muito novo ainda

Psicoacuteloga

E como foi o diagnoacutestico

Matildee

Ela conversou comigo e com o pai entregou um teste com umas perguntas para a escola

e para noacutes dois Eu vou pedir um para ti responder tambeacutem O resultado eacute que ele eacute TDAH dos

dois tipos desatento e hiperativo um caso claacutessico Ela tambeacutem avaliou um desenho que ele

fez Ela deu um livrinho para ele de um menino que tem TDAH que explica numa linguagem

acessiacutevel para crianccedilas sobre o problema dele

Psicoacuteloga

E ele jaacute leu

Matildee

Jaacute no mesmo dia Eacute bom para ele ir tentando entender o que ele tem porque eu vejo

que ele anda muito ansioso Para isso o remeacutedio vai ser bom

35

Psicoacuteloga

E o que tu achas do remeacutedio

Matildee

Olha eu natildeo queria mas ela me explicou que natildeo tem problema que o efeito eacute soacute por

umas horinhas soacute para ele se manter calmo enquanto estiver na sala de aula E tu o que acha

do remeacutedio

Psicoacuteloga

Ele vai fazer os exames ainda neacute Eu vou ser sincera contigo Fico preocupada com

a possibilidade da entrada do remeacutedio agora porque o uso do medicamento favorece a tese de

que ele eacute o problema e ele deve se curar quando a questatildeo dele natildeo eacute um problema individual

Esse eacute meu parecer No entanto satildeo vocecircs como pais que vatildeo escolher O que podem fazer eacute

expor para a meacutedica as duacutevidas de vocecircs perguntar para ela sobre os efeitos colaterais por

quanto tempo ele vai precisar tomar como os efeitos da medicaccedilatildeo vatildeo de fato ajudaacute-lo

Tambeacutem natildeo precisam decidir nada imediatamente eacute bom pensar bem

Noacutes

As duacutevidas cogitadas da psicoacuteloga agrave matildee natildeo seriam duacutevidas da psicoacuteloga agrave meacutedica

Matildee

Eacute eu ateacute li uns artigos na internet falando que o remeacutedio pode viciar quanto mais a

crianccedila toma mais ela vai precisar O pai dele natildeo estaacute bem seguro ainda Tu acha que ele tem

que seguir soacute com a terapia e com as recomendaccedilotildees que tu sugeriu

Psicoacuteloga

36

Eu dei minhas sugestotildees de acordo com os atendimentos do que conheccedilo da histoacuteria de

vida das conversas que tive com a pedagoga e com a professora Natildeo cabe a mim falar sobre a

medicaccedilatildeo porque sou psicoacuteloga Mas eu acho que se vocecircs natildeo estatildeo bem seguros eacute bom

pensar e conversar melhor com a meacutedica

Matildee

Eu vou conversar melhor com ela sim Mas eu natildeo sei o que faccedilo se meu filho natildeo

tomar o remeacutedio natildeo vatildeo mais aceitaacute-lo na escola

Noacutes

Seraacute mesmo que a condiccedilatildeo de permanecircncia na escola para que esta possa acolher as

crianccedilas eacute o apagamento dos sintomas efeito possiacutevel do metilfenidato

Psicoacuteloga (consternada)

Se teu filho natildeo tomar remeacutedio natildeo vatildeo mais aceitaacute-lo na escola A escola natildeo pode

obrigaacute-los a tomar essa decisatildeo Tu sentes que a escola quer impor isso como condiccedilatildeo de

permanecircncia do menino

Matildee

Eacute de certa forma estou me sentindo levada a isso sim Mas tu estaacute certa sei que tu

quer o bem do meu filho e acho que o melhor a fazer neste momento eacute pensar antes de tomar

uma decisatildeo Vou falar com a meacutedica de novo

Noacutes

A matildee consegue dizer algo da posiccedilatildeo que a psicoacuteloga ocupa ndash ela quer o bem de seu

paciente Como a psicoacuteloga orientada por uma formaccedilatildeo psicanaliacutetica eacute capturada pelo engodo

de querer o bem da crianccedila De que lugar ela escuta a demanda que lhe eacute dirigida que envolve

37

um mal-estar na escola Ficar capturada nessa ideia de querer o bem pode produzir um ruiacutedo

importante Onde se situa o limite de sua escuta

Fim do tempo 1

TEMPO 2

Inverno

CENA 1

Casa da psicoacuteloga Noite

O telefone toca Eacute a PARCEIRA da ESCOLA

Meacutedica

Boa noite Estou ligando para saber da disfunccedilatildeo

Psicoacuteloga

Boa noite Que disfunccedilatildeo

Meacutedica

Da disfunccedilatildeo do nosso paciente

A psicoacuteloga comeccedila a circular pela casa

38

Psicoacuteloga

Ele estaacute melhorando aos poucos Estaacute frequentando a oficina de teatro da escola fui

ateacute laacute para assisti-lo parece estar gostando Estaacute indo bem na nova turma a nova professora

estaacute conseguindo lidar bem com ele na sala de aula Essa foi uma boa decisatildeo da escola e da

matildee de trocaacute-lo de turma Estaacute aprendendo a ler e escrever

Meacutedica

Escutei algumas queixas da coordenaccedilatildeo da escola quanto ao comportamento dele Noacutes

tiacutenhamos combinado que eu entraria em contato contigo em trecircs meses para rever a questatildeo da

medicaccedilatildeo

Psicoacuteloga

Acho que combinamos seis meses foi o tempo que sugeri para surtir alguma mudanccedila

com a psicoterapia

Noacutes

O que quis a psicoacuteloga ao estipular um prazo para atenuaccedilatildeo dos sintomas Afastar a

meacutedica por seis meses Ou entatildeo estaria capturada pela medida proposta em manuais

psiquiaacutetricos em que encontramos com frequecircncia a enumeraccedilatildeo de um miacutenimo de seis

sintomas por um periacuteodo miacutenimo de seis meses

Meacutedica (suspira)

Natildeo noacutes conversamos sobre trecircs meses A coordenadora me falou que essa semana ele

teve uma crise de ansiedade na escola tu ficaste sabendo

Psicoacuteloga

Natildeo ningueacutem comentou nada comigo O que aconteceu

39

Meacutedica

Ele natildeo estaacute conseguindo lidar sozinho com a hiperatividade dele Soacute a psicoterapia natildeo

ajuda Pelo que vi do caso dele eacute um claacutessico TDAH eacute desatento e hiperativo Tentei falar com

a matildee mas ela natildeo retornou queria ver se noacutes poderiacuteamos marcar um encontro juntas para eu

explicar sobre a medicaccedilatildeo

Psicoacuteloga

Podemos marcar sim Soacute natildeo entendo qual seria o motivo da Ritalina sendo que ele

estaacute melhorando na escola Eu vou tentar me informar sobre essa crise que ele teve Mas na

cliacutenica os sintomas de dispersatildeo e hiperatividade que ele apresentava estatildeo muito mais brandos

Talvez poderias fazer uma reavaliaccedilatildeo

Meacutedica

Ele tem TDAH por conta disso as crises seratildeo recorrentes Mesmo que a psicologia e a

escola faccedilam o seu papel de ajudaacute-lo ele vai seguir tendo o problema natildeo vai resolver a

disfunccedilatildeo Sabe qual o prognoacutestico desses casos Sem a medicaccedilatildeo como ele estaacute agora pode

se tornar um jovem inconsequente violento e ldquodrogaditordquo Se ele comeccedilar a tomar a Ritalina

vai ficar quieto calmo os colegas vatildeo finalmente gostar dele se aproximariam para brincar

natildeo vatildeo ter medo

Psicoacuteloga

Eu aposto no seu proacuteprio potencial de se fazer gostar com seu proacuteprio jeito de ser ele

jaacute estaacute conseguindo com a colaboraccedilatildeo da escola e da famiacutelia

40

Meacutedica

Tua especialidade eacute a psicanaacutelise neacute Eu soacute acho que com a psicanaacutelise as coisas satildeo

muito demoradas Ele eacute um caso de urgecircncia estaacute sofrendo muito

Psicoacuteloga

Eu aguardo teu contato para marcarmos uma conversa com a matildee

Meacutedica

Olha se tu puderes agendar para mim eu agradeccedilo

Psicoacuteloga

Eu vou perguntar para a matildee o que ela acha se ela quiser agendar contigo eu compareccedilo

ao encontro eacute o que posso fazer

Meacutedica (suspira)

Eu lavo as minhas matildeos

Noacutes

O que faz a meacutedica suspirar A psicoacuteloga escuta seu suspiro

CENA 2

Escola Periacuteodo da tarde

Pedagoga e psicoacuteloga conversam

41

Pedagoga

A meacutedica gostou muito do laudo que tu fizeste Ela concorda com tudo Eu tambeacutem Jaacute

dei para a nova professora ler tambeacutem para ela ficar a par da situaccedilatildeo Tu concordas que ele

tem TDAH neacute Agora que jaacute se passaram uns meses natildeo seria o caso de dar uma medicaccedilatildeo

para nos ajudar a lidar com ele

Psicoacuteloga

Eu natildeo decido sobre a medicaccedilatildeo isso compete aos pais com a psiquiatra Eu soacute acho

que ele estaacute conseguindo lidar com a anguacutestia de outras formas eu natildeo tenho relacionado mais

o caso dele com os sintomas do TDAH

Pedagoga

Mas aqui na escola ele segue hiperativo e cada vez mais desatento pelo que tenho

falado com a professora

Psicoacuteloga

Ela tem conseguido ficar com ele na sala natildeo eacute Isso eacute muito importante Ele estaacute com

um bom pertencimento agrave turma Ele me conta dos colegas que satildeo amigos dele

Pedagoga

Sim eu tenho percebido Quando ele natildeo quer colaborar ela fala que a turma natildeo gosta

desse tipo de comportamento que gosta de outro que ele sabe qual eacute Ela tem jeito com ele

isso eacute bom O problema eacute que agraves vezes ele passa mal tem uma crise de ansiedade diz que tem

medo de morrer isso eacute sinal de que as coisas natildeo estatildeo bem resolvidas ainda Por isso eu entrei

em contato com a meacutedica de novo para ver a questatildeo da Ritalina para ele se sentir mais calmo

Psicoacuteloga

42

Estou trabalhando a questatildeo dos medos na cliacutenica ele estaacute conseguindo elaborar com

livros faz-de-conta piadas Soacute natildeo entendo a relaccedilatildeo disso com a medicaccedilatildeo

Pedagoga

Tu eacutes contra neacute Olha aqui na escola noacutes temos em torno de cinquenta alunos

matriculados que tecircm diagnoacutestico de TDAH Temos alguns diagnosticados com TOD no

ensino fundamental e no ensino meacutedio alunos que jaacute foram TDAH mas conseguiram evoluir

graccedilas agrave medicaccedilatildeo A grande maioria dos TDAH toma medicaccedilatildeo e o desempenho melhora

muito depois disso Por experiecircncia sei o sofrimento que passam os natildeo medicados Muitas

vezes o problema evolui para transtornos mais graves a medicaccedilatildeo pode ser uma saiacuteda para

evitar problemas futuros

Psicoacuteloga

Natildeo eacute que eu seja contra soacute acho que ele estaacute tendo mudanccedilas significativas com a ajuda

da famiacutelia e com a terapia A troca de turma por sugestatildeo tua foi uma boa alternativa A forma

como eu costumo trabalhar vai numa via diferente dessa do diagnoacutestico de TDAH como se ele

fosse soacute mais uma crianccedila entre as cinquenta que tecircm esse diagnoacutestico e precisa tomar

medicaccedilatildeo Eu gosto de olhar a singularidade do caso Acho que aqui na escola vocecircs acolheram

bem essa forma buscando alternativas singulares para ele As mudanccedilas ocorrem aos poucos

Pedagoga

Sem duacutevida daacute para ver diferenccedila Mas soacute ele tem um tratamento especial aqui na

escola noacutes eacute que temos que entender a dificuldade dele com os limites como a toleracircncia agrave

frustraccedilatildeo mas ele natildeo se dobra Ele natildeo estaacute vindo nas atividades do teatro A matildee dele disse

que eacute o frio

43

Psicoacuteloga

Estaacute certo Vou falar com ela

Pedagoga

Bom e em funccedilatildeo da inteligecircncia dele acima da meacutedia noacutes sugerimos que ele entrasse

no grupo do xadrez a matildee o trouxe um dia para a aula mas ele natildeo quis ficar natildeo teve muita

paciecircncia para aprender

Psicoacuteloga

Interessante Existem outras formas para ele poder desenvolver a inteligecircncia Talvez

seja muito jovem para o xadrez quem sabe daqui a uns anos vamos ver o que ele acha

CENA 3

Cliacutenica de psicologia Tarde

Psicoacuteloga lecirc alguns registros das sessotildees com seu paciente

ldquoele perguntou para a funcionaacuteria da limpeza o que era TDAHrdquo

ldquoo menino diz vou ter que tomar remeacutedio para cabeccedila porque sou malucordquo

ldquoo menino diz eu natildeo sei o que eacute me comportar soacute sei o que eacute natildeo me comportar Todo

mundo diz que eu natildeo me comporto [] se comportar eacute nada Eacute natildeo fazer nadardquo

ldquoObservaccedilotildees Preciso frisar a importacircncia destas questotildees trazidas pelo meu paciente

na medida em que acredito que ele estava tomando um pouco para si a preocupaccedilatildeo do que os

adultos fariam com ele saindo de uma posiccedilatildeo unicamente objetal para uma posiccedilatildeo ativa de

quem pode fazer alguma coisa por si Dei algumas dicas das coisas que pensava que esperavam

dele na escola como cuidar das suas coisas copiar do quadro fazer as tarefas com calma e que

ele poderia perguntar tambeacutem para seus paisrdquo

ldquoos pais decidiram natildeo medicar o filhordquo

ldquopai soacute quero que meu filho seja felizrdquo

44

ldquopai jogamos Xbox umas trecircs horas por dia eacute muitordquo

ldquomatildee vai comeccedilar artes marciais para descarregar energiardquo

Psicoacuteloga (para si mesma)

Seraacute que eu agi corretamente Seraacute que fiz a melhor escolha pelo bem do menino Seraacute

que ele estaria melhor se estivesse medicado

Noacutes

O que quer dizer agir corretamente fazer a melhor escolha A psicoacuteloga segue

capturada pelo discurso idealizador da escola em relaccedilatildeo agrave sua parceira meacutedica ao qual ela

mesma buscou constituir oposiccedilatildeo Ao combater a medicalizaccedilatildeo ela parece desejar ocupar

esse lugar de domiacutenio para a matildee o pai o menino

A psicoacuteloga entende que a medicaccedilatildeo acaba por assegurar um discurso que localiza no

indiviacuteduo o problema de aprendizagem e comportamento No entanto cabe perguntar a

Ritalina eacute capaz de impedir a escuta cliacutenica Por que a resistecircncia agrave medicaccedilatildeo afinal

Embora o menino natildeo tome Ritalina e conte com as prescriccedilotildees cliacutenicas a escola segue

com a parceira psiquiatra e dezenas de estudantes desatentos e hiperativos medicados Como

constituir um lugar que resiste agrave individualizaccedilatildeo do problema sem fazer oposiccedilatildeo agrave medicaccedilatildeo

jaacute que esta faz parte de nosso laccedilo social contemporacircneo

Psicoacuteloga (para si mesma)

Querem uma resposta desejam uma soluccedilatildeo definitiva Buscam uma alternativa A

medicaccedilatildeo cumpriria essa funccedilatildeo sem ela o que ou quem o faria nesses casos A psicoterapia

natildeo estaacute surtindo efeitos ou os efeitos da psicoterapia natildeo estatildeo sendo reconhecidos O

diagnoacutestico de TDAH cumpre a funccedilatildeo de abrandar a anguacutestia de natildeo saber o que se passa

45

CENA 4

Cliacutenica de psicoterapia Manhatilde

A matildee chega com o filho para a sessatildeo

Matildee

Eu tenho lido sobre o TDAH parece que pode ser geneacutetico Pelo que o pai me conta

ele era hiperativo hoje estaacute muito bem natildeo precisou de medicaccedilatildeo Jaacute eu era bem quieta entatildeo

natildeo fui eu que transmiti deve ter sido o pai Eu queria te contar de uma coisa que aconteceu na

escola semana passada Passaram por cima de mim fiquei furiosa O meu filho se desentendeu

com um colega na hora do recreio e eles brigaram

Crianccedila

Foi ele quem se desentendeu

Matildee

Sim eu sei meu filho Sempre entram em contato comigo mas em vez disso chamaram

o pai Ele teve que sair do serviccedilo e ir ateacute a escola para buscaacute-lo Fiquei com tanta raiva fizeram

um escacircndalo por uma briguinha de crianccedila Eu vou escrever para a escola reforccedilando que

tudo o que acontecer com ele sou eu que resolvo Ah eu natildeo estou levando ele nas aulas de

teatro porque nessa eacutepoca eacute muito frio para ele ficar

Psicoacuteloga

Depois noacutes conversamos melhor Temos que marcar um horaacuterio

Matildee

Estaacute bem Ateacute logo

46

Noacutes

Tudo o que ocorre com o filho eacute a matildee que resolve assim como tudo o que ocorre com

o paciente eacute a psicoacuteloga que quer resolver A posiccedilatildeo da psicoacuteloga ressoa a posiccedilatildeo da matildee

Psicoacuteloga e crianccedila entram na sala Brincam de ldquoHarry Potter versus Voldemortrdquo Ele

conta sobre um jogo novo em que bruxos da histoacuteria de Harry Potter lutam contra os

dementadores fantasmas que os assombram

Psicoacuteloga

E como eacute

Crianccedila

Os bruxos tecircm que usar as varinhas para matar os dementadores eu joguei ontem

Psicoacuteloga

Que interessante

Crianccedila (brinca que usa varinha contra a psicoacuteloga)

Tu acha isso interessante

Psicoacuteloga

O que aconteceu na escola Teu colega se desentendeu contigo

Crianccedila

Sim Foi ele que comeccedilou dessa vez Agraves vezes sou eu mas agraves vezes satildeo os outros

47

Psicoacuteloga

Entendi E aiacute chamaram teu pai

Crianccedila

Sim

Psicoacuteloga

E o que tu achou do teu pai ter ido

Crianccedila

Atildehn Um pouco bom e um pouco ruim Eu fui para casa Entatildeo por isso foi bom Mas

ele ficou brabo entatildeo isso foi ruim

Psicoacuteloga

Entendi Aiacute tu ficou jogando em casa Sozinho

Crianccedila

Eacute Minha matildee jaacute estava em casa

Psicoacuteloga

E o que parece para ti bruxos lutando contra dementadores

Ele representa os personagens Corre pela sala pula joga-se ao chatildeo

48

Crianccedila

Inteligentes contra idiotas Os idiotas tecircm que morrer os inteligentes vencem Eacute assim

olha

Crianccedila representa mais uma vez com mais intensidade alterna expressotildees de

agressividade e de idiotice

Crianccedila

Achou engraccedilado

Noacutes

A crianccedila estaria tentando representar o que desejam dele que corresponda ao

diagnoacutestico de TDAH ou que corresponda a uma crianccedila inteligente Qual a responsabilidade

do laudo da psicoacuteloga sobre isso

Psicoacuteloga

O que seraacute que tu estaacute querendo me contar

Crianccedila

Agraves vezes eu sou idiota e agraves vezes eu sou inteligente Minha matildee quer que eu seja

inteligente

Psicoacuteloga

E a escola

49

Crianccedila

A escola queria que eu fosse inteligente mas acha que eu sou burro Na verdade a escola

eacute idiota eacute para idiotas perdedores eacute inuacutetil Soacute faccedilo coisas inuacuteteis

Psicoacuteloga

Senta aqui comigo um pouco Respira Bom tu acha que querem que tu seja ou idiota

ou inteligente Eacute muito difiacutecil ser totalmente idiota ou totalmente inteligente natildeo acha

Crianccedila

Por isso que eu sou outra coisa eu fico entre o idiota e o inteligente O nome eacute

preocupatoacuterio

Psicoacuteloga (pensa consigo)

Preacute-operatoacuterio

Crianccedila

Eu me preocupo com tudo Eu tenho medo de tudo Sou a pessoa mais medrosa do

mundo

Psicoacuteloga

Do mundo Na verdade todo mundo tem seus medos suas preocupaccedilotildees na vida a

gente vai lidando aos pouquinhos com cada uma

50

Crianccedila

Mas ter medo eacute para idiotas eacute para os fracos os fortes satildeo os inteligentes eu natildeo tenho

medo de nada eu sou o mais forte

O menino se agita mais uma vez corre pela sala brinca de faz de conta numa cena em

que bate em algueacutem mais fraco

Psicoacuteloga (para si)

Por que eu escrevi sobre o TDAH no laudo Por que eu fiz um teste de inteligecircncia

Psicoacuteloga

Conheccedilo pessoas fortes e inteligentes que tecircm muitos medos

Crianccedila

Quem

Psicoacuteloga

Adultos que eu conheccedilo Na verdade os medos tornaram as pessoas mais fortes

Crianccedila

Natildeo os medos satildeo para os fracos

Psicoacuteloga

Bom tu natildeo eacute fraco tu disse que tem preocupaccedilotildees eacute uma situaccedilatildeo diferente estaacute

enfrentando teus medos

51

CENA 5

Casa da psicoacuteloga Noite

Matildee e psicoacuteloga conversam no telefone

Matildee

Ele ficou muito agitado agrave tarde natildeo quis ir agrave escola eu tambeacutem natildeo insisti O que

adianta Ele chega laacute e mandam ele de volta para casa Como eacute que foi a sessatildeo Ele contou

alguma coisa sobre a briga

Psicoacuteloga

Foi uma sessatildeo importante acho que mobilizou questotildees difiacuteceis para ele as

expectativas das pessoas sobre ele o quanto ele consegue responder a isso Natildeo comentou

muito sobre a briga

Matildee

Na escola disseram que foi ele que ele agrediu um colega no intervalo que

aparentemente o colega natildeo provocou nem nada Estou com raiva porque isso tem se repetido

qualquer probleminha que acontece nos chamam Desde que a nova professora dele saiu da

escola

Psicoacuteloga

O que aconteceu com a professora

52

Matildee

Eu achei que tinha comentado contigo ela estaacute com problema de sauacutede estaacute sem voz

descobriu um tumor na garganta e vai operar Meu filho estaacute sentindo falta dela natildeo estaacute se

acertando com a estagiaacuteria Mas hoje passaram dos limites chamando o pai

Psicoacuteloga

Por que seraacute que chamaram o pai

Noacutes

Por que passaram dos limites Quais limites

Matildee

Eu natildeo sei parece que quiseram me dizer que eu natildeo dou conta do meu filho soacute o pai

natildeo contam mais comigo

Psicoacuteloga

E tu concordas com isso

Matildee

Tu concorda com isso

Psicoacuteloga

Natildeo concordo Acho que tem que ver o lado bom disso a escola quis te ajudar pode ter

sido uma iniciativa de envolvecirc-lo fazer participar tambeacutem dos problemas que estatildeo

enfrentando

53

Matildee

Eacute isso que tu acha Mas ele eacute participativo sempre brinca com o filho em casa Parece

que quiseram me atacar E natildeo desistiram de oferecer a medicaccedilatildeo neacute Eu levei vaacuterios artigos

para lerem sobre os efeitos colaterais da Ritalina nem quiseram ler A meacutedica entrou em contato

comigo de novo a pedido da escola Estou pensando em trocar meu filho de escola ano que

vem

Psicoacuteloga

Eacute uma alternativa a ser considerada Vamos ir pensando e seguimos conversando outra

hora

Fim do tempo 2

TEMPO 3

Primavera

CENA 1

Cliacutenica de psicoterapia Tarde

A matildee chega para atendimento

Psicoacuteloga

Pode sentar aqui por favor

Matildee

Obrigada Leu o material que te enviei

54

Psicoacuteloga

Eu dei uma olhada sim

Matildee

Sei que deve ser difiacutecil para ti entender mas eu acho que faz muito sentido

Psicoacuteloga

O que precisamente tu gostarias que eu entendesse

Matildee

Tu pode ateacute achar que eacute loucura mas eu venho lendo sobre o assunto haacute um tempo As

crianccedilas com TDAH podem ser superdotadas elas demonstram tambeacutem agitaccedilatildeo e dispersatildeo

mas em vez de tratarmos como sintomas de uma doenccedila entendemos como um comportamento

tiacutepico dos superdotados As crianccedilas sofrem muito na infacircncia mas na vida adulta eacute que se

realizam deixam sua marca no mundo Os grandes cientistas artistas foram crianccedilas

hiperativas hoje satildeo considerados com uma inteligecircncia muito superior agrave meacutedia

Psicoacuteloga

Entendi Tu achas que teu filho eacute uma crianccedila superdotada

Matildee

Sei que parece estranho mas ele tem todas as caracteriacutesticas eacute muito inteligente

espontacircneo tem sintomas do TDAH mas natildeo eacute TDAH tem dificuldade em obedecer em

entender regras eacute questionador

55

Psicoacuteloga

Sim realmente ele tem todas as caracteriacutesticas Eacute uma forma de entender o que estaacute

acontecendo Como foi que tu encontraste essa classificaccedilatildeo

Matildee

Foi pesquisando o TDAH na internet Encontrei uns artigos assisti uns viacutedeos tambeacutem

e natildeo soacute de neurologistas mas de psicoacutelogos falando sobre o assunto Eu fiquei ceacutetica a

princiacutepio mas quanto mais eu lia mais fazia sentido

Psicoacuteloga

Eu fiquei pensando que talvez tu tenhas pesquisado bastante sobre o assunto porque natildeo

encontrou uma resposta ainda para o que estaacute acontecendo com teu filho A escola e a meacutedica

entendem que ele eacute TDAH eu disse que ele tem sintomas mas natildeo eacute TDAH como tu mesma

falou aleacutem disso eu atesto que ele tem uma inteligecircncia acima da meacutedia Ele natildeo toma

medicaccedilatildeo mas tu achaste necessaacuterio buscar algo que operasse no corpo como as artes marciais

para descarregar energia acumulada

Matildee

Sim eacute que o teatro natildeo deu mais certo natildeo tem mais ningueacutem da turma dele ele

estava ficando mais agitado ainda

Psicoacuteloga

Tudo bem foi soacute uma sugestatildeo Bom o que eu quero dizer eacute Vecirc se faz sentido para

ti Como nem eu e nem a escola te demos um retorno que te ajudasse a entender o que acontece

com teu filho tu buscaste uma terceira opiniatildeo digamos assim Essa classificaccedilatildeo da

superdotaccedilatildeo pode ter funcionado para te deixar mais tranquila quanto ao que acontece com

ele

56

Matildee

Acho que sim Eacute o que estaacute fazendo sentido agora

Psicoacuteloga

A gente pode entender como uma classificaccedilatildeo possiacutevel Podemos chamar de TDAH

de superdotado de TOD Existem outras classificaccedilotildees Mas de que forma podem nos ajudar

Como isso pode ajudar teu filho a lidar com o sofrimento

Matildee

O que eu achei interessante eacute que no material que te enviei tem uma orientaccedilatildeo para os

pais As matildees e os pais das crianccedilas superdotadas natildeo devem dar proibiccedilotildees aos filhos natildeo

devem limitar sua criatividade impondo regras

Psicoacuteloga

Como acontece isso

Matildee

Eacute porque os superdotados natildeo compreendem bem o que eacute proibido entatildeo eacute preciso

explicar bem fazecirc-los entender em vez de brigar e impor regras Eu vejo pelo meu filho ele

tem muita resistecircncia com coisinhas da rotina como escovar os dentes por exemplo entatildeo em

vez de brigar com ele escovar agrave forccedila como muitas matildees fazem eu me agacho olho em seus

olhos explico para ele que ele pode ficar com caacuterie com dor Tudo tem que ser bem explicado

com muito jeito e calma

57

Psicoacuteloga

Parece que a orientaccedilatildeo para os pais e as matildees das crianccedilas superdotadas eacute natildeo serem

pais e matildees Natildeo sei o quanto esse material pode ajudar Tu natildeo precisas ficar com medo de

brigar com teu filho de mostrar regras e proibiccedilotildees por receio de interferir no desenvolvimento

da criatividade e da inteligecircncia dele Eacute disso que tu tem medo

A matildee chora

Psicoacuteloga

Natildeo acredito que seja possiacutevel educar um filho no papel de matildee de pai sem produzir

alguma marca em sua histoacuteria Achar que evitar agir de certo modo para que uma faculdade se

desenvolva plenamente eacute uma ilusatildeo que criamos

Matildee

Eu sei Eacute que a gente fica tatildeo perdida a gente lecirc tanta coisa que natildeo sabe mais se

estaacute fazendo certo ou errado se estaacute prejudicando o desenvolvimento da crianccedila Eu natildeo sei

educar eu natildeo sei o jeito certo

Psicoacuteloga

Eu acho que ningueacutem sabe bem como educar todo mundo tenta Realmente hoje noacutes

lemos de um tudo na internet temos acesso facilitado agrave informaccedilatildeo e natildeo vatildeo faltar artigos de

jornal dizendo como devemos agir Por isso temos que ter cuidado com o que lemos fazer um

discernimento natildeo tomar tudo como verdade Eu quero dizer que ainda que nesse material

sobre superdotaccedilatildeo diga que tu natildeo deves brigar com o teu filho em alguns momentos quando

tu sentires que deves brigar tu podes brigar

Matildee

58

Eu soacute natildeo quero que meu filho se torne um delinquente

Psicoacuteloga

Certo Mas por que dizes isso

Matildee

Porque agraves vezes eacute muito difiacutecil de lidar com ele ele fica agressivo me desafia tenho

medo de que ele se torne uma maacute pessoa

Psicoacuteloga

Quando eu digo brigar natildeo estou falando de ser violenta de bater mas de impor a tua

palavra de falar em nome da lei isso natildeo vai tornaacute-lo uma pessoa maacute E nem te tornar uma

pessoa maacute

Matildee

Eacute eu sei disso eu tenho que ser matildee dele

Psicoacuteloga

Que matildee natildeo gostaria de ter um filho superdotado brilhante que vai mudar o mundo

Acho que todas noacutes queremos isso dos nossos filhos Mas isso natildeo cabe a ningueacutem dizer soacute o

futuro vai mostrar Ningueacutem pode dizer hoje que teu filho vai ser um delinquente ou uma

pessoa que vai mudar o mundo para melhor O que podemos fazer eacute ajudaacute-lo hoje

proporcionando uma vida saudaacutevel organizando o dia a dia mostrando limites sim lidando

com as birras E jaacute satildeo coisas muito difiacuteceis de fazer Agora no que isso vai dar natildeo

sabemos Soacute temos que ficar atentas a como ele estaacute reagindo hoje agraves coisas que pensamos e

queremos dele

59

Matildee

Eu vou fazer o que estiver ao meu alcance

CENA 2

Casa da psicoacuteloga Meio-dia

Psicoacuteloga recebe uma mensagem de texto da matildee

ldquoEscrevo para informar que natildeo vamos seguir com os atendimentos por enquanto Sei

que ainda temos um caminho pela frente mas tivemos que cortar gastos Quando precisarmos

entramos em contato Obrigada PS A profe voltou da licenccedila e estaacute trabalhando sobre os

MEDOS com a turma Meu filho estaacute adorandordquo

CENA 3

Cliacutenica de psicoterapia Entardecer

Psicoacuteloga organiza pastas dos pacientes Encontra um desenho

60

Recorda-se de uma sessatildeo mesa cheia de folhas canetas e laacutepis de cor O paciente e

a psicoacuteloga conversam sobre um passeio que ele fez com a turma

Psicoacuteloga

Entatildeo quer dizer que tu gostou de ir ao museu Foi uma boa ideia da professora

Crianccedila

Na verdade todas as turmas fazem esse passeio

Psicoacuteloga

Bom mas foi uma atividade da escola que tu gostou de fazer

61

Crianccedila

Eacute um pouco

Psicoacuteloga

Vamos fazer um desenho Pode ser da tua escolha

Crianccedila

Entatildeo me daacute tua matildeo Sabe o que eu vou fazer Adivinha

O menino apoia a matildeo da psicoacuteloga sobre uma folha em branco Ele a contorna com

um laacutepis

Psicoacuteloga

Ah que legal que ficou

Crianccedila

Natildeo terminei ainda

Ele faz o contorno de sua proacutepria matildeo ao lado Faz unhas compridas cortes pelos em

ambas as matildeos

Psicoacuteloga

Que matildeos satildeo essas

Crianccedila

Eacute a matildeo de um lobisomem e a do filho do lobisomem o lobisominho

62

Psicoacuteloga

Entendi eles satildeo pai e filho e tecircm as matildeos muito parecidas

Crianccedila escreve um S na matildeo do lobisominho

Crianccedila

Pronto tinha faltado a tatuagem

Psicoacuteloga

Ah o lobisominho tem uma tatuagem S de quecirc

Crianccedila

S de lobi- Somem

Psicoacuteloga

Ah entendi

Ele escreve LOBISOMEM

Crianccedila

Eacute que eacute com S natildeo eacute com Z mas tem som de Z Sabia que tem um bicho chamado sapo-

boi Descobri ontem

Ele escreve SAPA-BOI

63

Psicoacuteloga

Viu o que tu escreveu SapA Tu conheceu esse bicho no passeio

Crianccedila

Sim A Sapa-boi era matildee do lobisominho

Psicoacuteloga

Comeccedila com S do lobi-Somem

Crianccedila

Eacute mas tem som de S mesmo Esse bicho eacute um hiacutebrido

Psicoacuteloga

Um anfiacutebio

Crianccedila

Natildeo um hiacutebrido mesmo uma mistura de sapo com boi Eacute um sapo mas do tamanho

de um boi

Psicoacuteloga

Ah o Lobisomem e o lobisominho tambeacutem satildeo hiacutebridos

Crianccedila

Sim eles satildeo lobo com homem

64

Noacutes

Homo homini lupus est1

Psicoacuteloga guarda o desenho e volta para casa inquieta Tempos depois ela teraacute

escrito

ldquoO lobo e o homem ocupam o mesmo lugar hiacutebrido da condiccedilatildeo humana Natildeo haacute como

apagar o lobo do humano antes haacute contornos formas de conviver com ele Quando Some o

homem irrompe o lobo

lsquoLobi S omemrsquo eacute o registro de um natildeo lugar a escrita do hibridismo do humano com

um S tatuado o que tinha faltado e agora faz marca Um desejo de saber a que espeacutecie pertence

entre o idiota e o inteligente entre o TDAH e o superdotado entre o forte e o fraco entre lobo

e homem entre sapa e boi natildeo um contra o outro

Entre a casa e a escola entre a psicoacuteloga e a meacutedica que saberes se formam Que

maneiras criamos juntos de circunscrever contornar a infacircncia Entre a cultura e o que lhe

escapa seu lobo O que se encontra aiacute o que deriva desse lugar senatildeo a condiccedilatildeo subjetiva

desejante que faz a vida pulsarrdquo

1 O homem eacute o lobo do homem Encontramos a expressatildeo na peccedila Asinaria do dramaturgo romano Plauto (230 aC-180 aC) O filoacutesofo Thomas Hobbes a retoma no trabalho Leviatatilde (1651) bem como Sigmund Freud em O mal-estar na cultura (1930)

65

INTRODUCcedilAtildeO

O escrito que se segue eacute fruto de uma inquietaccedilatildeo que se coloca de discutir o que resta

da histoacuteria contada em forma dramatuacutergica O texto criado eacute inspirado na praacutetica profissional

de psicoacuteloga cliacutenica com orientaccedilatildeo psicanaliacutetica observando o cuidado de preservar o

anonimato das pessoas envolvidas A ficccedilatildeo arranjada eacute uma tentativa de contornar elementos

destoantes conflitos insoluacuteveis impasses no intuito de transmitir a experiecircncia chegar agrave

extremidade das pontas soltas transformaacute-las numa outra coisa

Com isso fizemos uma escolha por apresentar o problema de pesquisa figurado em

escrita de tempos e cenas dramaacuteticas Agora haacute o que conversar com a calma e a objetividade

que um trabalho acadecircmico demanda seguindo procedimentos para que se chegue a uma

compreensatildeo mais alargada acerca dos temas suscitados pelo texto dramaacutetico alguns mais

emergentes outros aventados todos tocados por alguma coisa que diz respeito ao desejo

humano e a como o desejo se faz presente nas relaccedilotildees que estabelecemos uns com os outros

No entanto o trabalho natildeo eacute sobre o desejo muito embora natildeo possa ser realizado sem o desejo

jaacute que eacute por ele que uma linha de tensatildeo a linha de accedilatildeo se manteacutem sempre viva promovendo

ao mesmo tempo implicaccedilotildees e desajustes

Iniciamos o trabalho inspirados em Mannoni (2003) que fala do envolvimento dos

adultos no mal-estar sofrido pela crianccedila Eacute do que resulta de um jogo de implicaccedilotildees dos

adultos que produz efeitos sobre a crianccedila que esse escrito deseja tratar Considerando os

discursos que atravessam o seu fazer quais as condiccedilotildees de autorizaccedilatildeo da escola no que se

refere agraves dificuldades de certos alunos que apresentam sintomas de aprendizagem De que

forma os adultos envolvidos com a educaccedilatildeo de crianccedilas lidam com o sofrimento com o mal-

estar com o ldquolobordquo Haacute nesse sentido nas cenas do proacutelogo um discurso medicalizante que

participa das decisotildees da escola no que concerne aos problemas de aprendizagem e como

veremos respeitando as singularidades do caso essa natildeo eacute uma situaccedilatildeo isolada da histoacuteria

contada mas algo bastante frequente em nossas escolas Esse discurso tomou de surpresa a

personagem da psicoacuteloga jaacute que natildeo considerava que sua escuta ao se estender para aleacutem da

cliacutenica para aleacutem do paciente e sua famiacutelia encontraria na fala da coordenadora pedagoacutegica a

defesa da medicalizaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo de categorias nosoloacutegicas

Maria Cristina Kupfer pesquisadora de psicanaacutelise e educaccedilatildeo comenta

66

Escutar por exemplo um problema de aprendizagem como uma formaccedilatildeo fantasmaacutetica singular sem nenhuma articulaccedilatildeo com o discurso social escolar pode conduzir em alguns casos ao fracasso da accedilatildeo do psicanalista Disto aliaacutes jaacute falaram autores natildeo psicanalistas como M Helena Patto (1990) De outro lado uma leitura que inclua o discurso social que circula em torno do educativo e do escolar [] estaraacute produzindo uma inflexatildeo na accedilatildeo do psicanalista e o levaraacute a uma praacutetica que natildeo coincide mais com a cliacutenica psicanaliacutetica ldquoortodoxardquo pois ele teraacute de se movimentar o suficiente para ouvir pais e escola (KUPFER 1999 p 19)

Pensando hoje sobre o que se desenrola nas cenas assumimos neste trabalho o lugar

do ldquoNoacutesrdquo capaz de produzir um distanciamento necessaacuterio para poder falar do caso espiar suas

minuacutecias olhaacute-lo criticamente e tentar entender como se produzem as medidas e desmedidas

dos personagens Um dia fomos a psicoacuteloga presente em todas as cenas e apenas a partir dessa

posiccedilatildeo podemos testemunhar os acontecimentos Entendemos que a psiquiatra entrou em

contato com a psicoacuteloga por ela ter se tornado um obstaacuteculo agrave sua forma de conduzir pois

talvez se ela tivesse encorajado a medicaccedilatildeo possivelmente natildeo haveria motivo para conversa

Do mesmo modo a intervenccedilatildeo da meacutedica havia se tornado um entrave para a maneira da

psicoacuteloga enxergar as coisas afinal pode ter pensado a psicoacuteloga ldquoSe natildeo fosse a escola a me

atrapalhar com sua parceira eu saberia como tratar o menino mas depois do telefonema da

escola eu perdi o domiacutenio da situaccedilatildeordquo Ao tentar retomar um suposto domiacutenio da situaccedilatildeo o

qual percebeu tomado pela meacutedica a psicoacuteloga encontrava o limite de sua escuta seu ponto

cego

A princiacutepio a situaccedilatildeo configura-se numa forma de embate De um lado psicoacuteloga e

matildee de outro a escola e a meacutedica No centro uma crianccedila objeto de certezas No pano de

fundo o discurso medicalizante operando sobre todos noacutes Na tentativa de promover uma boa

relaccedilatildeo entre a professora e o aluno sustentando uma direccedilatildeo de tratamento que considerava

correta talvez a psicoacuteloga tenha desautorizado a escola em sua responsabilidade de conduzir o

caso do aluno Opondo-se a um discurso psicopatologizante a psicoacuteloga oferece outro discurso

a partir do mesmo lugar de imposiccedilatildeo respaldado por um laudo e um teste de inteligecircncia

Cabe questionar o que faz com que a psicoacuteloga seja capturada pelo desejo de se manter

numa posiccedilatildeo de controle como um agente capaz de fazer as melhores escolhas pelo bom

andamento do caso pelo bem da crianccedila Natildeo haacute como responder de um lugar alheio agrave relaccedilatildeo

transferencial que se estabelece com a crianccedila com a escola com a matildee e com a meacutedica

Interessa pois aproximar-se dos contornos da transferecircncia estabelecida

67

O que fazer diante deste impasse que se forma entre o dever de educar de tomar o

menino como mais um dos mais de vinte alunos que precisam aprender a ler e a escrever

aprender alguns coacutedigos de conduta de convivecircncia na cena escolar e aquilo que escapa agrave

funccedilatildeo civilizatoacuteria da escola o que aponta que o menino natildeo eacute apenas mais um Como

situarmos um espaccedilo entre esses dois lugares Dois lugares que tambeacutem nos constituem como

adultos que cuidam das crianccedilas uma divisatildeo entre o compromisso de educar constituindo

bordas para o gozo e desejo de deixaacute-las usufruir desse gozo sem imposiccedilatildeo de limites Haacute

aqui nesse jogo que produz um ldquoentrerdquo uma implicaccedilatildeo do adulto Um dever de se implicar

O discurso medicalizante que opera tambeacutem na escola e toma lugar do discurso educativo faria

as vezes dessa implicaccedilatildeo Constitui um dever nosso dos adultos para com as crianccedilas O que

resulta dessa operaccedilatildeo no fazer do educador

Este lugar de ldquoentrerdquo natildeo eacute senatildeo o lugar subjetivo de inscriccedilatildeo na cultura inscriccedilatildeo que

ldquocomportardquo o enlace de uma singularidade a um comum Assim como minhas marcas

correspondem agrave minha histoacuteria e somente agrave minha as do outro compreendem a singularidade

de sua histoacuteria no entanto por ldquoportarmosrdquo marcas somos iguais entatildeo ldquoportamos-comrdquo o

outro Eacute esse traccedilo comum que temos de encontrar ou reencontrar em nossas crianccedilas Traccedilo

que em posiccedilatildeo de autoria de sua histoacuteria o menino tambeacutem buscava ao dizer que natildeo sabia o

que era ldquose comportarrdquo e sofrer do horror imaginaacuterio do vazio desse lugar da anguacutestia do nada

A professora da crianccedila com TDAH da histoacuteria sabia um jeito de as coisas funcionarem

mas um jeito que encontrava um limite com o menino No limite estava o TDAH Esse

transtorno que impedia em seu entendimento que ele se comportasse Por ter um problema que

natildeo fazia parte da composiccedilatildeo de seu saber como educadora ela se desautorizava na educaccedilatildeo

de seu aluno jaacute que o problema estava fora de sua alccedilada Esbarrava-se com isto ldquoComo educar

a crianccedila com TDAH se seus sintomas me impedem de educaacute-la da forma que julgo saber que

acontece a educaccedilatildeordquo Parece que a soluccedilatildeo eacute a via da medicalizaccedilatildeo como um saber outro

inquestionaacutevel O que nos resta eacute aprender a abordaacute-lo questionaacute-lo Se nos colocarmos em

oposiccedilatildeo como fez a psicoacuteloga ao negar a referecircncia ao saber meacutedico na escola passamos a

ocupar o mesmo lugar impositivo que desautoriza o saber do outro ainda que (e talvez

justamente por isso) as intenccedilotildees sejam as melhores

Nesse sentido neste trabalho vamos tentar enunciar uma equaccedilatildeo sobre o laccedilo que hoje

sustenta a educaccedilatildeo escolar a fim de fazer aparecer o ponto limite de uma educabilidade que

dispensa o professor de sua funccedilatildeo em relaccedilatildeo a crianccedilas com TDAH Jaacute antecipamos aqui

68

nossa versatildeo embora natildeo iremos discuti-la imediatamente achamos que o que demite o

professor tambeacutem o permite Pensamos que isso pode nos remeter ao traacutegico o que nos

conduziraacute a uma visita agrave trageacutedia antiga

Para iniciar a conversa no primeiro capiacutetulo discutimos como a medicalizaccedilatildeo ingressa

no cenaacuterio educativo e o lugar a partir do qual esse discurso opera Aleacutem disso abordamos a

constituiccedilatildeo do TDAH na aacuterea meacutedica e a sua gradual imersatildeo no campo escolar Apresentamos

tambeacutem um recorte da histoacuteria do faacutermaco metilfenidato mais conhecido pelo nome comercial

Ritalina e como se torna a soluccedilatildeo apresentada para o transtorno de hiperatividade e de

desatenccedilatildeo Na primeira parte do trabalho queremos entatildeo mostrar como os processos de

medicalizaccedilatildeo da vida escolar ocorrem em larga escala saindo da particularidade de um caso

cliacutenico e pensando a dimensatildeo da questatildeo seu caraacuteter epidecircmico

No segundo capiacutetulo apresentamos a dimensatildeo do traacutegico Abordamos como a

psicanaacutelise se apropria de noccedilotildees do traacutegico a partir de trageacutedias claacutessicas para dizer de seu

modo de operar Nesse sentido apresentamos como Sigmund Freud trabalha conceitos da

psicanaacutelise com a trageacutedia de Soacutefocles Eacutedipo Rei e tambeacutem como Jacques Lacan trabalha

com a trageacutedia Antiacutegona do mesmo autor para falar da eacutetica da psicanaacutelise Discorremos

ainda sobre a peccedila Eacutedipo em Colono a qual compotildee com as duas outras trageacutedias uma trilogia

No terceiro capiacutetulo vamos abordar o traacutegico como experiecircncia humana e como gecircnero

teatral conhecendo contribuiccedilotildees de filoacutesofos como Aristoacuteteles e Nietzsche e a esteacutetica de

tragedioacutegrafos como Euriacutepides A visita ao campo do traacutegico tem por intuito recolher elementos

que nos permitam uma aproximaccedilatildeo de um modo de operar de contornar o mal-estar presente

em nossa cultura nomeado de lobo pelo caso cliacutenico de dionisiacuteaco pelo filoacutesofo Nietzsche A

escola da histoacuteria dramatizada contava com uma meacutedica representante de um saber capaz de

apaziguar suas anguacutestias diante do limite do natildeo educar Eacute possiacutevel tomar a situaccedilatildeo vivida na

escola como uma cena e o saber medicalizante que se impotildee ao cenaacuterio educativo capaz de

eliminar os conflitos vividos nele como uma repeticcedilatildeo da imposiccedilatildeo de soluccedilotildees presentes na

dramaturgia do teatro grego que assumem o nome de deus ex machina ndash um deus ou outro

personagem que entra em cena atraveacutes de uma maacutequina provocando o desenlace da histoacuteria de

forma derradeira Na segunda parte do capiacutetulo discutimos entatildeo sobre esse recurso cecircnico

bem como sobre seus efeitos

No quarto capiacutetulo ldquoEducar e seus impassesrdquo apresentamos a dimensatildeo impossiacutevel da

educaccedilatildeo enunciada pela psicanaacutelise e trabalhamos com dois desenlaces possiacuteveis diante de

69

conflitos que surgem em cena a medicalizaccedilatildeo como deus ex machina e a falta como operadora

da criaccedilatildeo

Na sequecircncia trabalhamos com uma peccedila de Euriacutepides Medeia ndash citada por Aristoacuteteles

como um mau exemplo de escolha pelo recurso do deus ex machina ndash a fim de discutir a

abordagem do traacutegico os efeitos do desenlace e as vias de abertura que surgem numa obra que

causa de grande inquietaccedilatildeo Tentamos ler Medeia a partir de significantes presentes no texto e

de elementos pensados do encontro entre psicanaacutelise filosofia educaccedilatildeo e traacutegico

De que forma o desenlace em Medeia bem como as vias de abertura nos ajudam a

pensar o modo como lidamos com o traacutegico na cena educativa Abordar essa questatildeo eacute uma

forma de encerrar o trabalho Buscamos trazer agrave frente agrave superfiacutecie os elementos que

trabalhamos ao longo da escrita e que podem compor uma equaccedilatildeo teoacuterica que nos permite ler

a histoacuteria proposta no proacutelogo

Em seguida apresentamos um epiacutelogo constituiacutedo por histoacuterias vividas na escola pela

autora do trabalho ocupando diferentes posiccedilotildees narrativas Eacute a forma que escolhemos de fazer

o desenlace

Os caminhos da pesquisa

Com a psicanaacutelise como meacutetodo de pesquisa acreditamos ser possiacutevel construir um

saber entre os discursos um terceiro espaccedilo uma terceira via que sem intenccedilotildees prescritivas

possibilita a enunciaccedilatildeo dos impasses educativos

O meacutetodo de pesquisa que engendrou este trabalho percorreu duas vias A primeira diz

respeito agrave construccedilatildeo de caso cliacutenico A segunda se pautou na leitura de um acontecimento a

partir de elementos que decantam da anaacutelise de outro campo de experiecircncia

No proacutelogo deste trabalho apresentamos um texto dramatuacutergico inspirado na

experiecircncia cliacutenica da psicoacuteloga da histoacuteria Buscamos atraveacutes do arranjo cecircnico dar lugar aos

impasses vivenciados acerca da escolarizaccedilatildeo da crianccedila num jogo formado pelos lugares

ocupados por cada personagem Criamos um personagem que natildeo participa ativamente das

cenas mas tem o papel de tecer diaacutelogo entre as accedilotildees cecircnicas e o leitor da dramaturgia no

sentido de promover um espaccedilo terceiro entre duas situaccedilotildees entre dois personagens que por

vezes estatildeo em oposiccedilatildeo um em relaccedilatildeo ao outro e buscam de certo modo o apagamento da

demanda do outro a quem se opotildeem O nome que damos a essa voz eacute Noacutes convocando a escrita

70

e a leitura do caso a ocuparem um espaccedilo conjunto observando as tensotildees e polaridades da

cena numa tentativa de nos aproximarmos daquilo que concerne ao traacutegico (cujas

particularidades seratildeo discutidas nas proacuteximas paacuteginas)

Deste lugar que nomeamos Noacutes queremos a partir de uma certa distacircncia dos

acontecimentos vislumbrar elementos miacutenimos que formam a conjuntura das cenas a fim de

que dela decante um saber sobre o caso capaz de ser transmitido De acordo com Acircngela

Vorcaro (2010) os elementos que restam de um caso cliacutenico guardam o seu saber constituiacutedo

pelo encontro que se daacute entre o analista e o analisando e tambeacutem por aquilo que transborda

desse encontro permitindo a experiecircncia da cliacutenica interrogar a teoria e a teacutecnica da psicanaacutelise

fazendo com que uma transmissatildeo seja possiacutevel Para a autora cada caso propotildee um saber

singular impedindo tentativas de aplicabilidade do meacutetodo psicanaliacutetico ldquoEfetivamente Freud

decanta a cliacutenica e transmite dela o caso E interessa ressaltar que o caso natildeo se limita ao

paciente mas refere-se ao encontro que a cliacutenica promoverdquo (VORCARO 2010 p 12)

Eacute este ponto de encontro que a cliacutenica promove ponto em que se tece a relaccedilatildeo

transferencial onde cada personagem fala e age a partir dela que buscamos situar a figura do

Noacutes Destacamos tambeacutem a referecircncia de Vorcaro a Freud na transmissatildeo de casos cliacutenicos

Geralmente os casos mais desafiadores ao psicanalista o impeliam agrave escrita os casos que

supostamente ldquonatildeo deram certordquo ou ainda casos com os quais ele natildeo conseguiu trabalhar

Nesse sentido a cada caso escrito transmitia-se um saber singular sobre a cliacutenica psicanaliacutetica

No papel de psicoacuteloga buscamos com a escrita dos recortes cliacutenicos dar lugar agrave relaccedilatildeo

transferencial a partir da qual era possiacutevel agir e fazer dos elementos que restam do caso uma

pesquisa Segundo Vorcaro

[] nessa dobradiccedila em que se identifica num soacute tempo o cliacutenico e o pesquisador interessa localizar nos traccedilos depositados da escrita literal como o pesquisador ultrapassa sua transcriccedilatildeo Afinal um saber se deposita em seu escrito a despeito da consciecircncia do autor Eacute o que permite ao pesquisador ao retornar outras vezes mais sobre a transcriccedilatildeo feita do caso situar propriamente o que o caso fisga de interesse investigativo (VORCARO 2010 p 15)

Da leitura literal do escrito torna-se possiacutevel encontrar traccedilos que conectados formam

uma constelaccedilatildeo estrutura que busca transmitir o saber ainda que o saber comporte um

impossiacutevel um saber inconsciente Buscamos assim os elementos miacutenimos para produzir uma

71

equaccedilatildeo teoacuterica ndash equaccedilatildeo que nos permite voltar ao cenaacuterio para lecirc-lo novamente e almeja

permitir ler tambeacutem outros cenaacuterios

A fim de produzir um distanciamento dos impasses gerados na escolarizaccedilatildeo da crianccedila

situaccedilatildeo vivenciada na cliacutenica e na escola escolhemos uma estrutura dramatuacutergica para contar

a histoacuteria Identificamos que haacute em cena posiccedilotildees discursivas diferentes que em funccedilatildeo da

posiccedilatildeo sintomaacutetica de cada um e do lugar que ocupam em transferecircncia impedem os

deslocamentos necessaacuterios para que se arme um desenlace capaz de transformar essas posiccedilotildees

Haacute na verdade uma ilusatildeo em cada uma (pedagoga psicoacuteloga meacutedica) de que a escolha

tomada individualmente teraacute condiccedilotildees de resolver o problema

A leitura dessa situaccedilatildeo nos remete aos modos de desenlace operados pelo traacutegico a

como era apresentado pelas trageacutedias claacutessicas e como ao longo dos seacuteculos foi sendo

substituiacutedo por novas esteacuteticas teatrais com grande influecircncia das transformaccedilotildees filosoacuteficas e

poliacuteticas Dessa forma nossa investigaccedilatildeo busca captar o ponto de virada de um arranjo cecircnico

para outro

Eacute nesse sentido que adentramos em nossa segunda via metodoloacutegica que consiste em

tomar elementos estruturais de um campo outro para ler uma questatildeo inquietante de nosso

tempo para entendermos como estamos habituados a trabalhar com ela hoje Da passagem do

mundo traacutegico ao ensinamento moral que ocorreu com os gregos pensamos que haacute uma

estrutura possiacutevel de ser tomada para tentar acessar o que opera nesse apelo ao saber meacutedico

feito pela escola Assim o meacutetodo proposto ocorre no sentido de tomar um acontecimento

analisaacute-lo e destacar dele elementos estruturais que permitem acessar um outro acontecimento

Aleacutem disso destacamos que a opccedilatildeo por um texto dramatuacutergico se aproxima da

construccedilatildeo de caso psicanaliacutetico na medida em que ambas as escritas buscam trazer agrave tona as

nuances da histoacuteria as tensotildees e polaridades sustentadas em cena de modo a transmitir ao leitor

um saber sobre a experiecircncia Diferente seria a tendecircncia a oferecer uma soluccedilatildeo aplicaacutevel para

toda e qualquer situaccedilatildeo uma imposiccedilatildeo de verdade Satildeo duas formas conflitantes que tentamos

expor em cena e nas discussotildees teoacutericas deste trabalho

72

1 A MEDICALIZACcedilAtildeO NA CENA EDUCATIVA E A CONSTITUICcedilAtildeO DO TDAH

Este trabalho se inscreve entre as discussotildees que vem sendo realizadas no campo da

educaccedilatildeo acerca dos processos de medicalizaccedilatildeo da vida e de como o saber meacutedico se faz

presente no discurso da escola

Na extensatildeo de sua obra Michel Foucault apresenta como a medicina ganhou espaccedilo

na sociedade europeia ao longo dos seacuteculos XVIII XIX e XX atraveacutes dos movimentos de

urbanizaccedilatildeo sanitarizaccedilatildeo higienizaccedilatildeo educaccedilatildeo a fim de zelar pela sauacutede da populaccedilatildeo Na

esteira dessa praacutetica no entanto encontramos a medicina como estrateacutegia de um exerciacutecio de

controle e poder sobre os corpos encarregada de produzir discurso de verdade acerca da

normalidade da sexualidade da educaccedilatildeo nas famiacutelias e instituiccedilotildees sociais Hoje colhemos

os efeitos desse discurso e ainda o produzimos na sociedade e educaccedilatildeo brasileira

Considerando as contribuiccedilotildees de Foucault o pesquisador Irving Zola (1972) propotildee

trazer agrave tona o termo ldquomedicalizaccedilatildeordquo Com isso menciona que a medicina se tornou uma

instituiccedilatildeo de controle social que toma o lugar de instituiccedilotildees tradicionais como a religiatildeo e o

direito Conquistou o poder de proferir e julgar a verdade das coisas a partir de um ponto de

vista supostamente neutro em nome da sauacutede Isso natildeo ocorre atraveacutes do poder poliacutetico que a

pessoa do meacutedico pode ter ou influenciar mas eacute ldquoum fenocircmeno insidioso e natildeo dramaacutetico

implicado em lsquomedicalizarrsquo muito da nossa vida diaacuteria fazendo dos medicamentos e dos roacutetulos

lsquosaudaacutevelrsquo e lsquodoentersquo relevantes a toda parte da existecircncia humanardquo (ZOLA 1972 p 487)

O autor fala que esse fenocircmeno comeccedilou a ser percebido atraveacutes da psiquiatria campo

da medicina para o qual criacuteticas e preocupaccedilotildees foram convergidas mas isso natildeo impediu que

a medicalizaccedilatildeo acontecesse Se buscarmos os motivos veremos que tal processo estaacute

ldquoenraizado no avanccedilo do nosso complexo e burocraacutetico sistema tecnoloacutegico que nos levou para

o caminho da relutante confianccedila no especialistardquo (ZOLA 1972 p 487)

Dessa forma Zola (1972) desloca uma possiacutevel culpabilizaccedilatildeo da ciecircncia da medicina

ou da ciecircncia da psiquiatria pela existecircncia dos processos de medicalizaccedilatildeo para um

acontecimento decorrente do progresso cientifico e tecnoloacutegico que acaba por regular as nossas

relaccedilotildees com os outros numa espeacutecie de cuidado e vigilacircncia Natildeo haacute uma entidade ou

indiviacuteduo culpados por implantar os processos de medicalizaccedilatildeo pois estes estatildeo no interior de

nossa cultura

73

Medicalizaccedilatildeo eacute o processo de tornar um problema natildeo meacutedico geralmente um

problema social como algo pertencente ao campo da medicina a qual tem a incumbecircncia de

nomeaacute-lo e trataacute-lo Michel Foucault apresenta no curso Os anormais de que forma a

medicalizaccedilatildeo se constitui no terreno da psiquiatria e lhe confere poder

Despatologizaccedilatildeo do objeto foi essa a condiccedilatildeo para que o poder meacutedico poreacutem da psiquiatria pudesse se generalizar assim Surge entatildeo o problema como pode funcionar um dispositivo tecnoloacutegico um saber-poder tal em que o saber despatologiza de saiacuteda um domiacutenio de objetos que no entanto oferece a um poder que soacute pode existir como poder meacutedico Poder meacutedico sobre o natildeo-patoloacutegico estaacute aiacute a meu ver o problema central ndash mas talvez vocecircs digam evidente ndash da psiquiatria (FOUCAULT 2001 p 394)

Numa perspectiva contemporacircnea da medicalizaccedilatildeo num novo regime de gestatildeo da

vida Seacutergio Carvalho e outros (2015) apontam que os pacientes estatildeo cada vez mais autocircnomos

satildeo agora indiviacuteduos consumidores que natildeo se submetem mais ao meacutedico como um agente de

cuidado mas esperam dele e de outros profissionais implicados com novas tecnologias em

sauacutede prescriccedilotildees e orientaccedilotildees de forma que eles ndash os proacuteprios pacientes ndash possam decidir

sobre o destino de seus corpos No entanto podemos dizer ainda que tenham mudado de

posiccedilatildeo na teia discursiva da medicalizaccedilatildeo seguem fazendo parte desse emaranhado como

consumidores dos produtos da medicina

A medicalizaccedilatildeo com a qual estamos familiarizados hoje ou seja o processo intriacutenseco

ao progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico comeccedilou a aparecer na segunda metade do seacuteculo XX

Poreacutem a praacutetica vem tomando corpo desde o fim do seacuteculo XVIII com o discurso de

normalizaccedilatildeo da existecircncia problematizado na obra de Foucault Se hoje tendemos a traccedilar uma

separaccedilatildeo entre o corpo doente e o corpo saudaacutevel com o desenvolvimento da psiquiatria haacute

dois seacuteculos comeccedilamos a demarcar de forma cada vez mais clara e precisa a fronteira entre o

que eacute normal e o que eacute patoloacutegico

Essa distinccedilatildeo entre a normalidade e a patologia constitui um modo de operar proacuteprio

ao campo da psiquiatria que implica a instituiccedilatildeo de um padratildeo normal de funcionamento

mental e de comportamento ao qual todo indiviacuteduo eacute comparado Tal padratildeo eacute sempre dado a

priori nunca eacute questionado Mas como surge o padratildeo

De acordo com Freitas (2011) a partir de uma heranccedila dos ideais iluministas que

concebe o ser humano como racional e individualizado a psiquiatria durante o seacuteculo XIX

desenvolveu-se no sentido de descobrir funccedilotildees mentais e localizar no ceacuterebro problemas que

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acometiam tais funccedilotildees As descobertas neurofisioloacutegicas possibilitaram a concepccedilatildeo de teorias

acerca das capacidades humanas sendo que cada ser humano como indiviacuteduo deveria zelar

sobre sua mente e adaptaacute-la ao meio externo Aqueles que natildeo conseguiam ter esse cuidado

sobre suas funccedilotildees mentais demonstravam sinais patoloacutegicos de provaacutevel etiologia orgacircnica

Dessa forma o indiviacuteduo normal seria aquele mais adaptado agrave sua realidade e qualquer

desvio de norma poderia indicar uma patologia Entendemos que para a psiquiatria da eacutepoca a

origem de um problema de desajuste social estaacute localizada no organismo de um indiviacuteduo um

ser considerado doente e anormal sem levar em conta as particularidades da vida de cada um

ou entatildeo como a cultura eacute inscrita transmitida a cada sujeito concepccedilotildees que podemos ter hoje

ao nos debruccedilarmos sobre as produccedilotildees de nossos antepassados No seacuteculo XIX eram outros

os elementos que organizavam o discurso social

De acordo com Foucault (2006) nessa eacutepoca o meacutedico acaba por incorporar o poder

psiquiaacutetrico sobre o paciente tornando seu meacutetodo de intervenccedilatildeo a prova do domiacutenio sobre o

saber e sobre o outro A interrogaccedilatildeo que atesta a loucura a prescriccedilatildeo de medicamentos que

controlam o corpo o proacuteprio uso da hipnose satildeo praacuteticas que comprovam o poder psiquiaacutetrico

que tomam por terapecircuticas accedilotildees disciplinares Assim se constituiacuteam relaccedilotildees de poder

operadas por um discurso medicalizante que natildeo pode ser confundido com uma pessoa mas

com a funccedilatildeo que ela exerce num acircmbito relacional

Segundo Chaves e Caliman (2017) havia uma divergecircncia de olhares sobre o indiviacuteduo

doente Enquanto Esquirol pensava que a anormalidade era inata fatalidade bioloacutegica e

hereditaacuteria Seacuteguin acreditava na possibilidade de mudanccedila de comportamento dos indiviacuteduos

se houvesse uma intervenccedilatildeo Seacuteguin trouxe a noccedilatildeo de que o desenvolvimento ocorre a todo

ser humano de modo universal e que alguns apresentam particularidades para as quais uma

intervenccedilatildeo normalizadora eacute possiacutevel Tais particularidades passaram a ser levantadas descritas

e classificadas Nesse sentido a medicina conquista um espaccedilo para atuar de forma pedagoacutegica

e preventiva

Com as noccedilotildees de desenvolvimento e necessidade de prevenccedilatildeo de patologias o cenaacuterio

da psiquiatria passa a abranger tambeacutem a infacircncia de forma a produzir um saber meacutedico sobre

a crianccedila Dessa maneira

[] em torno da crianccedila anormal aquela que natildeo avanccedilava no seu desenvolvimento cresceu a defesa de um tratamento moral e de prevenccedilatildeo dos desvios facilitando a expansatildeo de estrateacutegias disciplinares da psiquiatria

75

para aleacutem dos limites asilares aproximando-se das famiacutelias e das escolas (CHAVES CALIMAN 2017 p 141)

Podemos entrever essa ideia em Foucault no curso Os anormais O filoacutesofo aponta que

a psiquiatria proposta por Esquirol tinha um modelo de imitaccedilatildeo ou seja tinha como centro a

doenccedila e o que um conjunto de sintomas poderia representar dessa doenccedila Essa forma de operar

eacute substituiacuteda por uma psiquiatria que desfoca a doenccedila ou natildeo a coloca como causa de suas

investigaccedilotildees mas propotildee como centro um desenvolvimento normativo voltando sua atenccedilatildeo

entatildeo agrave infacircncia Tal modo de fazer psiquiatria eacute para o autor uma correlaccedilatildeo agraves descobertas

cientiacuteficas da neurologia e da biologia com as quais a psiquiatria poderia constituir-se como

saber da medicina

Vocecircs compreendem nessa medida por que e como a psiquiatria pocircde manifestar tanta obstinaccedilatildeo em enfiar o nariz no quarto de crianccedila ou na infacircncia Natildeo eacute porque ela queria acrescentar uma peccedila anexa a seu domiacutenio jaacute imenso natildeo eacute porque queria colonizar mais uma pequena parte de existecircncia em que ela natildeo teria tocado ao contraacuterio eacute que havia aiacute para ela o instrumento de sua universalizaccedilatildeo possiacutevel (FOUCAULT 2001 p 392)

Na infacircncia assim poderiacuteamos averiguar antecipaccedilotildees ou atrasos do desenvolvimento

humano normal que embora natildeo possam ser chamados de doentes eram entendidos como

anomalias Um instinto sexual biologicamente constituiacutedo poderia surgir precocemente na

infacircncia Por outro lado condutas sexuais inapropriadas para adultos de quem se espera um

desenvolvimento normal e controle sobre suas funccedilotildees mentais e instintos eram nomeadas de

infantis A palavra ldquoinfantilrdquo ou ldquoinfantilizadordquo acaba por significar condutas imaturas ou

seja na infacircncia ainda estamos num processo de maturaccedilatildeo orgacircnico e de nossas funccedilotildees

mentais que se bem controlado se bem educado nos conduz a uma normalidade adulta

No acircmbito da escola comeccedilaram a surgir espaccedilos para a educaccedilatildeo de crianccedilas ldquodoentesrdquo

(geralmente classificadas com idiotia ou seja retardo mental) separadas das crianccedilas ditas

normais das classes das escolas regulares No entanto dentro da sala de aula normal

apareceram novas categorias de anormalidade as crianccedilas com problemas morais inquietos e

indisciplinados que atrapalhavam a rotina escolar Dessa forma uma diferenccedila entre

comportamento doentio e conduta anocircmala indesejada no acircmbito da escola passou a ser

estabelecida (CHAVES CALIMAN 2017) Ou entatildeo como pode referir Foucault (2001 p

391)

76

Eacute um contratempo eacute uma sacudida nas estruturas que aparecem em contraste com um desenvolvimento normal e que vatildeo constituir o objeto geral da psiquiatria E eacute soacute secundariamente em relaccedilatildeo a essa anomalia fundamental que as doenccedilas vatildeo aparecer como uma espeacutecie de epifenocircmeno com relaccedilatildeo a esse estado que eacute fundamentalmente um estado de anomalia

Nesse sentido jaacute no seacuteculo XX a psiquiatria sentiu a necessidade de criar compecircndios

e manuais de doenccedilas encontradas nas diferentes fases do desenvolvimento humano e em

diferentes espaccedilos da vida humana a fim de ajudar na sua classificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo Eacute nesse

cenaacuterio que surgem as doenccedilas mentais de causas supostamente fisioloacutegicas que afetam

crianccedilas de acordo com uma concepccedilatildeo que correlaciona a anomalia do desenvolvimento com

achados neuroloacutegicos e bioloacutegicos

Durante a Primeira Guerra Mundial de acordo com Herrera (2015) Europa e Estados

Unidos viveram a epidemia de uma doenccedila misteriosa cujas causa e cura ateacute hoje natildeo foram

satisfatoriamente descobertas a encefalite letaacutergica um tipo de dor de cabeccedila potencialmente

fatal acompanhada de febre letargia tremores perda da fala e psicose entre outros sintomas

Como sintomas residuais foram descritas alteraccedilatildeo do sono hiperatividade teimosia

irritabilidade e problemas de memoacuteria

Entendemos que na eacutepoca muitos agentes etioloacutegicos eram ainda desconhecidos como

viacuterus e bacteacuterias Sabe-se que a doenccedila surgiu em contexto de guerra em que soldados poderiam

entrar em contato com soldados de outros territoacuterios transmitindo ou sendo infectados por

micro-organismos ainda estranhos ao corpo do outro ou ao seu proacuteprio Haacute uma suposiccedilatildeo atual

de que a encefalite letaacutergica tenha se originado por uma bacteacuteria que se alojava na garganta No

entanto na eacutepoca da epidemia quem investigava a doenccedila eram neurologistas por acreditarem

que a origem era um comprometimento das funccedilotildees neuroloacutegicas

No campo da medicina e da neurologia o seacuteculo XX foi marcado por uma importante

mudanccedila na forma de conceber e abordar sintomas de doenccedilas supostamente de origem

orgacircnica Anteriormente agrave Primeira Guerra Mundial meacutedicos viam-se preocupados com casos

de histeria doenccedila que acometia em sua maioria as mulheres e reunia alguns sintomas

semelhantes ao da encefalite letaacutergica aleacutem de paralisias e cegueiras

Sigmund Freud meacutedico formado em Viena atraveacutes do que estudou com Breuer e

Charcot a respeito do meacutetodo hipnoacutetico e com a ajuda de suas pacientes propocircs ao mundo da

medicina um novo meacutetodo de abordagem da histeria a escuta das representaccedilotildees mentais de

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eventos traumaacuteticos e de histoacuterias de vida relacionadas a esses eventos o que levava agrave remissatildeo

ou ao aliacutevio de sintomas e a uma posiccedilatildeo mais responsaacutevel sobre escolhas de vida Assim no

iniacutecio do seacuteculo XX Freud apresentou a psicanaacutelise como teoria e meacutetodo de tratamento para

as neuroses As neuroses ainda que apresentem manifestaccedilotildees no corpo natildeo se originam de

acometimentos orgacircnicos mas se devem ao recalque a conteuacutedos mentais recalcados

alienados da consciecircncia Nesse sentido o surgimento da psicanaacutelise como teoria e meacutetodo de

tratamento foi a escuta de mulheres histeacutericas mulheres que situaram um limite no campo

meacutedico A partir do pedido de suas pacientes por tomarem a palavra Freud engendrou uma

nova forma de abordagem ao saber meacutedico que encontrou suas resistecircncias

Com o desenvolvimento da psicanaacutelise Freud chegou a alguns pilares de sua teoria

como o conceito de Trieb traduzido no Brasil por ldquopulsatildeordquo Na proposta de Freud (19152004)

a pulsatildeo evidenciaria a exigecircncia do trabalho imposto ao psiacutequico por sua articulaccedilatildeo ao corpo

referindo-se a impulsos que brotam do interior do corpo e demandam uma representaccedilatildeo

psiacutequica Aqui pode haver referecircncia agrave forma de abordagem das anormalidades discutida por

Foucault Haacute um trabalho psiacutequico em estabelecer uma articulaccedilatildeo entre as representaccedilotildees e o

que lateja no corpo Mannoni (2003) tambeacutem comenta que as produccedilotildees freudianas no iniacutecio

de sua vida como psicanalista eram tomadas na via de um paralelismo psicofiacutesico observado

em outros estudiosos Mas o corpo trazido agrave tona pelo discurso psicanaliacutetico a partir da escuta

de pacientes eacute o mesmo corpo da neurologia e da biologia objeto de investigaccedilatildeo e controle

da medicina Talvez uma das inovaccedilotildees de Freud para o campo da medicina seja a inauguraccedilatildeo

de uma nova noccedilatildeo de corpo atraveacutes de uma nova abordagem

Nesse sentido acreditamos que haacute aqui um contraste entre formas de abordagem dos

sintomas no campo da medicina Contudo natildeo queremos igualar histeria e encefalite letaacutergica

identificando-as numa mesma categoria nosoloacutegica pois sabemos que natildeo satildeo a mesma coisa

Apenas queremos dizer que para doenccedilas com sintomas neuroloacutegicos semelhantes que

desafiavam o campo meacutedico existiam modos distintos de investigaccedilatildeo que produziam modos

diferentes de conceber o corpo

Na deacutecada de 1930 alguns pesquisadores preocupados com uma nova epidemia de

encefalite letaacutergica voltaram-se agrave investigaccedilatildeo da gecircnese das condiccedilotildees neuroloacutegicas que

caracterizavam a doenccedila e estudaram o comportamento de crianccedilas com supostas lesotildees

cerebrais Jaacute em 1947 de acordo com Herrera (2015) Strauss e Werner criaram o termo Lesatildeo

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Cerebral Miacutenima (LCM) para descrever crianccedilas com problemas de comportamento e com

dificuldades para aprender que natildeo se encaixavam em outras patologias da infacircncia

Poreacutem ao natildeo ser constatada lesatildeo alguma no ceacuterebro de crianccedilas supostamente

doentes o termo LCM foi substituiacutedo por DCM Disfunccedilatildeo Cerebral Miacutenima nova categoria

que foi amplamente divulgada nos Estados Unidos por meio da publicaccedilatildeo de um manual

explicativo em 1964 que traccedilava uma histoacuteria dos problemas de aprendizagem ateacute se chegar

ao DCM O projeto foi financiado pelo governo americano e consistia tambeacutem na distribuiccedilatildeo

de panfletos e na transmissatildeo de curtas-metragens que orientavam a populaccedilatildeo para a detecccedilatildeo

da disfunccedilatildeo (HERRERA 2015)

Em 1968 o Manual diagnoacutestico e estatiacutestico dos transtornos mentais (DSM) era

lanccedilado em sua segunda ediccedilatildeo na qual apresentava outra categoria de transtorno do aprender

chamada Transtorno de Reaccedilatildeo Hipercineacutetica ou Hipercinesia que continha os principais

sintomas da DCM as saber a hiperatividade desatenccedilatildeo e impulsividade

O nome da disfunccedilatildeo foi modificado para Distuacuterbio de Deacuteficit de Atenccedilatildeo na ediccedilatildeo do

DSM-III e para Transtorno do Deacuteficit de Atenccedilatildeo Com ou Sem Hiperatividade (TDAH) ou de

tipo combinado no DSM-IV Aparece com a mesma nomenclatura no DSM-V Jaacute outro manual

de classificaccedilatildeo de desordens mentais o Coacutedigo Internacional de Doenccedilas (CID-10) chama um

distuacuterbio similar ao TDAH de Transtornos Hipercineacuteticos

Segundo o DSM-V o TDAH eacute um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado

por dificuldades no desenvolvimento que se manifestam desde a infacircncia e influenciam no

desempenho estudantil familiar e social O diagnoacutestico pode ser realizado a partir dos 6 anos

de idade Consiste num padratildeo persistente de desatenccedilatildeo eou hiperatividade e impulsividade

que caracterizam uma disfunccedilatildeo no desenvolvimento Tanto o tipo desatento quanto o tipo

hiperativo exigem que no miacutenimo seis sintomas de nove listados de cada um estejam presentes

e persistam por pelo menos seis meses de modo incompatiacutevel com o niacutevel de desenvolvimento

e que tenham prejuiacutezos sobre a vida estudantil profissional e social do indiviacuteduo (AMERICAN

PSYCHIATRY ASSOCIATION 2014)

Freitas (2011) em sua tese de doutorado propotildee pensar o que caracteriza o TDAH Se

nesse transtorno o sujeito eacute marcado por um deacuteficit importante da atenccedilatildeo a autora sugere

investigar este conceito e sua construccedilatildeo histoacuterica Haveria um consenso sobre seu significado

Freitas aponta que natildeo

79

A ausecircncia de uma definiccedilatildeo mais clara do conceito de atenccedilatildeo em muitos escritos pode parecer aparentemente irrelevante como se esse fosse um dado que se pudesse tomar a priori Mas natildeo eacute Entendo que esse conceito vem sendo usado como se todos tiveacutessemos propriedade sobre ele ou mesmo um entendimento padratildeo para seu uso Mas natildeo temos (FREITAS 2011 p 42)

Frisamos que Freud no iniacutecio do seacuteculo XX situando a teacutecnica da escuta analiacutetica

aborda a atenccedilatildeo Ele a teoriza da seguinte forma

[] poupamos de esforccedilo violento nossa atenccedilatildeo a qual de qualquer modo natildeo poderia ser mantida por vaacuterias horas diariamente e evitamos um perigo que eacute inseparaacutevel do exerciacutecio da atenccedilatildeo deliberada Pois assim que algueacutem deliberadamente concentra bastante a atenccedilatildeo comeccedila a selecionar o material que lhe eacute apresentado um ponto fixar-se-aacute em sua mente com clareza particular e algum outro seraacute correspondentemente negligenciado e ao fazer essa seleccedilatildeo estaraacute seguindo suas expectativas ou inclinaccedilotildees Isto contudo eacute exatamente o que natildeo deve ser feito Ao efetuar a seleccedilatildeo se seguir suas expectativas estaraacute arriscado a nunca descobrir nada aleacutem do que jaacute sabe e se seguir as inclinaccedilotildees certamente falsificaraacute o que possa perceber Natildeo se deve esquecer que o que se escuta na maioria satildeo coisas cujo significado soacute eacute identificado posteriormente (FREUD 19121996c p 70)

Sabemos que haacute aqui uma diferenccedila importante a ser situada entre a atenccedilatildeo demandada

na escuta psicanaliacutetica voltada para a literalidade do que se escreve na fala e uma atenccedilatildeo

voluntaacuteria que pertence aos processos conscientes Para Freitas (2011) cada tempo de nossa

histoacuteria apresentou um modo de conceber a atenccedilatildeo de controlaacute-la de julgaacute-la e de medi-la Eacute

possiacutevel entender que a atenccedilatildeo eacute um conceito em transformaccedilatildeo constante inseparaacutevel das

mudanccedilas de paradigma ao longo da nossa histoacuteria

Por exemplo a autora aponta a importacircncia da atenccedilatildeo durante o seacuteculo XIX e o quanto

o desenvolvimento dessa funccedilatildeo psicoloacutegica ficou atrelado agraves possibilidades da ciecircncia de

medi-la pensar formas de estimulaacute-la e controlaacute-la Nesse sentido a concepccedilatildeo de atenccedilatildeo

adequava-se aos limites das teacutecnicas de mediccedilatildeo Coube agrave educaccedilatildeo como papel fundamental

nesse processo entrever as condiccedilotildees de fixar a atenccedilatildeo das crianccedilas para os modelos morais

respeitaacuteveis da eacutepoca

Com o desenvolvimento do conceito de atenccedilatildeo pelo discurso meacutedico as noccedilotildees de

impulsividade e de falta de controle se tornam indiacutecios de patologia Isso pode ter colaborado

para a descriccedilatildeo de uma entidade nosoloacutegica como o TDAH que reuacutene sintomas de desatenccedilatildeo

hiperatividade e impulsividade

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Santos e Freitas (2016) entrevistando Ilina Singh uma importante pesquisadora inglesa

sobre o TDAH contam que o transtorno ficou conhecido no Brasil nos anos 1990 quando

professores passaram a identificar alunos hiperativos em suas salas de aula e encaminhaacute-los

para diagnoacutesticos meacutedicos Hoje os diagnoacutesticos de TDAH atingiram niacuteveis epidecircmicos no

Brasil

Os pesquisadores afirmam que a miacutedia tem um importante papel nessa mudanccedila de

cenaacuterio No entanto hoje na cidade de Porto Alegre professores recebem treinamento e

capacitaccedilatildeo especiacuteficos para detectar a presenccedila de sintomas de TDAH nos estudantes e satildeo

orientados a fazer o devido encaminhamento para especialistas em sauacutede

Para os autores essa situaccedilatildeo evidencia o quanto a escola brasileira estaacute se tornando

dependente da presenccedila do saber meacutedico para legislar sobre problemas de aprendizagem

Em outras palavras as escolas estatildeo delegando agrave medicina a autoridade para legislar sobre problemas ou questotildees que poderiam ser vistos como escolares ou sociais num claro processo de medicalizaccedilatildeo Neste sentido entendemos que as escolas estatildeo deixando um espaccedilo vazio em termos pedagoacutegicos no que se refere agraves suas possiacuteveis accedilotildees ou praacuteticas [] (SANTOS FREITAS 2016 p 1079)

O fato de o nuacutemero de crianccedilas e de pessoas de diferentes idades ter atingido um

patamar considerado epidecircmico no Brasil eacute algo que causa bastante preocupaccedilatildeo e necessidade

de investigar as causas do transtorno sejam elas orgacircnicas fisioloacutegicas educacionais e sociais

em diversas pesquisas no Paiacutes assim como um dia pesquisadores se ocuparam de estudar a

encefalite letaacutergica no iniacutecio do seacuteculo passado

De acordo com Freitas (2011) uma epidemia eacute assim chamada quando um evento ou

uma doenccedila aparece repentinamente e atinge rapidamente uma parcela consideraacutevel da

populaccedilatildeo A autora aponta que a prevalecircncia de crianccedilas com TDAH no mundo varia de 3 a

6 dependendo do paiacutes ou da regiatildeo E percebe tal realidade quando numa turma de vinte

alunos quatro ou cinco tecircm o diagnoacutestico e os professores natildeo se impressionam com tal fato

As formas de abordar a epidemia do TDAH satildeo bastante diversas de acordo com a aacuterea

de pesquisa e a trajetoacuteria acadecircmica Haacute aqueles que se questionam sobre a existecircncia do

transtorno ndash natildeo seria uma invenccedilatildeo da American Psychiatry Association (APA) Temos uma

epidemia de acometidos ou de diagnoacutesticos ndash e haacute outros que apresentam registros de uma

doenccedila semelhante ao TDAH descrita no seacuteculo XVIII e afirmam que as crianccedilas tecircm o direito

de serem diagnosticadas e tratadas

81

Ilina Singh (apud SANTOS FREITAS 2016) fala da importacircncia de tratarmos da

questatildeo de modo multifatorial como um problema de sauacutede puacuteblica que coloca as diversas

aacutereas a trabalharem juntas Hoje eacute conhecido amplamente que o principal encaminhamento que

se faz a uma crianccedila com TDAH eacute a avaliaccedilatildeo meacutedica para o iniacutecio de tratamento com o

metilfenidato um psicoestimulante criado nos anos 1950 na Suiacuteccedila vendido e consumido no

mundo inteiro

No entanto Singh considera como algo importante no tratamento a escuta das crianccedilas

e de suas famiacutelias a fim de registrar e de divulgar o que elas podem dizer sobre isso que lhes

acontece isso que chamamos TDAH Nada mais justo do que dar voz agravequeles que sofrem os

sintomas assim como no fim do seacuteculo XIX Freud deu voz agraves histeacutericas constituindo um

meacutetodo que permitiu aos sujeitos narrarem as particularidades de suas histoacuterias para aleacutem dos

achados cientiacuteficos Eacute importante na escuta de crianccedilas com TDAH lembrar o que nos disse a

psicanalista Maud Mannoni (2003) natildeo podemos usar a crianccedila para comprovar as verdades

de uma teoria ou seja natildeo devemos querer encontrar na crianccedila os sintomas previstos de

desatenccedilatildeo e hiperatividade mas buscar construir com ela uma narrativa que sirva de ponte

para outras formas de ser e estar no mundo

11 MARGUERITE ou um recorte da histoacuteria da RITALINA

O nome Marguerite tem sua importacircncia para a histoacuteria da psicanaacutelise teoria e meacutetodo

a partir dos quais se pretende traccedilar as linhas desta pesquisa O psicanalista Jacques Lacan

apresentou em sua tese de doutorado em psiquiatria o ldquoCaso Aimeacuteerdquo nome fictiacutecio de

Marguerite uma mulher que sofria de paranoia A partir da escuta de seus deliacuterios Lacan

desloca uma concepccedilatildeo organicista e sintomaacutetica acerca da paranoia para uma concepccedilatildeo

psicanaliacutetica dando ecircnfase aos significantes que organizam e desorganizam o deliacuterio

Gostariacuteamos no entanto de apresentar outra Marguerite natildeo a partir de um caso cliacutenico

mas como sua histoacuteria inspirou o nome de um faacutermaco

Marguerite era uma jovem mulher que vivia com seu marido Leandro Panizzon em

Basel Suiacuteccedila Os dois haviam nascido e crescido na Itaacutelia Ela jogava tecircnis Leandro era quiacutemico

na empresa CIBA Na eacutepoca ele sintetizava compostos de nitrogecircnio

Certo dia no ano de 1944 ele fez experimentos com a piperidina uma amina encontrada

em plantas e criou um composto molecular muito semelhante agraves anfetaminas que satildeo poderosos

82

estimulantes No entanto a empresa onde trabalhava entendeu que Panizzon havia produzido

um estimulante leve uma espeacutecie de ldquopsicotocircnicordquo (SHORTER 2008)

Dessa forma o que ele havia descoberto era diferente dos estimulantes que se conheciam

ateacute entatildeo derivados das anfetaminas Um importante estimulante com essa derivaccedilatildeo

sintetizado em 1932 na Franccedila foi a benzedrina muito utilizada durante a Segunda Guerra

Mundial com o intuito de aumentar a resistecircncia e eliminar o cansaccedilo dos soldados (BRANT

CARVALHO 2012)

Por questatildeo de honra o quiacutemico resolveu experimentar sua criaccedilatildeo para averiguar seus

efeitos Poreacutem ele natildeo sentiu nada digno de nota Resolveu entatildeo oferecer o composto agrave sua

esposa Diferentemente de Leandro Marguerite se sentiu estimulada e disposta quando provou

a droga Passou a usaacute-la com frequecircncia e notou melhora em seu problema de pressatildeo baixa

Aleacutem disso comeccedilou a tomaacute-la antes de suas partidas de tecircnis o que a ajudou a aprimorar seu

desempenho (SHORTER 2008)

Panizzon passou a trabalhar com seu colega Hartmann no aprimoramento da moleacutecula

que havia inventado e em 1950 obtiveram o metilfenidato A patente para sua comercializaccedilatildeo

veio em 1954 O faacutermaco comeccedilou a ser vendido na Suiacuteccedila como um psicoestimulante leve para

agir sobre a fadiga crocircnica a letargia alguns estados depressivos psicose associada agrave depressatildeo

e a narcolepsia (HERRERA 2015)

Considerando o apreccedilo de Marguerite pela droga que criara Leandro resolveu nomeaacute-

la de Ritaline em homenagem agrave sua mulher cujo apelido era Rita (SHORTER 2008)

A Ritalina como a chamamos no Brasil pode ser representada pela seguinte foacutermula

83

De acordo com Herrera (2015) com a patente norte-americana que Panizzon e

Hartmann conseguiram a Ritalina foi importada para os Estados Unidos em 1955 e comeccedilou a

ser utilizada em hospitais para o tratamento de adultos depressivos

Dos anos 1950 ateacute os nossos dias o composto foi crescendo em produccedilatildeo e

comercializaccedilatildeo passando a ser indicado para diferentes puacuteblicos De homens deprimidos a

Ritalina teve bons efeitos sobre idosos depressivos alcoolistas mulheres fatigadas meninos

desobedientes ateacute chegar a crianccedilas e adolescentes com desordens do aprender

Isso eacute o que nos mostra um importante estudo realizado por Herrera (2015) que analisa

propagandas do metilfenidato feitas pelas induacutestrias farmacecircuticas e publicadas em revistas

cientiacuteficas desde sua criaccedilatildeo ateacute 1979 A partir das propagandas o autor constata a mudanccedila

de puacuteblico-alvo As uacuteltimas propagandas analisadas indicam a Ritalina para crianccedilas com

problemas na escrita e na matemaacutetica prometendo melhora no rendimento escolar Aleacutem disso

apontam como puacuteblico-alvo meninos problemaacuteticos inquietos e hiperativos provavelmente

portadores de disfunccedilatildeo cerebral miacutenima

Ainda que a moleacutecula tenha sido aperfeiccediloada no intuito de diminuir os efeitos

colaterais o princiacutepio do metilfenidato eacute o mesmo desde os anos 1950 ateacute hoje uma substacircncia

psicotroacutepica que atua no sistema nervoso central mais precisamente no sistema da dopamina

impedindo sua recaptaccedilatildeo bem como a recaptaccedilatildeo de outros neurotransmissores fazendo com

que eles prolonguem seus estiacutemulos eleacutetricos Poreacutem se na segunda metade do seacuteculo XX o

metilfenidato foi prescrito como estimulante leve capaz de agir contra a depressatildeo e a fadiga

hoje ele eacute indicado a pessoas que apresentam comportamentos diferentes de estados

depressivos ou seja eacute indicado para quem tem hiperatividade e deacuteficit de atenccedilatildeo oferecendo

melhora na concentraccedilatildeo das tarefas escolares

Coincidentemente ou natildeo a eacutepoca da mudanccedila de puacuteblico consumidor do metilfenidato

foi a mesma de descoberta do composto da fluoxetina antidepressivo consumido ateacute hoje com

este fim moleacutecula que tem como diferencial atuar sobre a recaptaccedilatildeo exclusiva do

neurotransmissor serotonina produzindo efeitos colaterais menos nocivos (SHORTER 2008)

No entanto ainda que os pacientes para quem o medicamento eacute indicado tenham

mudado ao longo dos anos haacute um puacuteblico que consome o metilfenidato da eacutepoca de sua criaccedilatildeo

ateacute a atualidade com o mesmo fim Marguerite usava a droga que recebeu seu apelido para

aprimorar seu rendimento nos jogos de tecircnis e hoje existem pessoas que o tomam para obter um

84

bom desempenho nas mais diversas atividades Melhorar a produtividade e a performance satildeo

objetivos natildeo meacutedicos

Isso eacute o que nos apontam Brant e Carvalho (2012) ao dizerem que o puacuteblico que tem

como finalidade melhorar o desempenho eacute bastante diverso como estudantes universitaacuterios

especialmente em eacutepocas de provas profissionais da sauacutede empresaacuterios atletas e motoristas

de caminhatildeo Com o uso natildeo meacutedico por um grupo heterogecircneo como esse os autores sugerem

que haacute venda ou prescriccedilatildeo descontrolada do medicamento a pessoas saudaacuteveis que buscam

melhoria das funccedilotildees cognitivas

Os autores apontam que ao contraacuterio do que se pode imaginar o consumo do

metilfenidato estaacute para aleacutem de fins recreativos como o prazer causado por um estado de

euforia ou uma sensaccedilatildeo de bem-estar Visa responder agraves demandas do mundo do trabalho

competitivo e globalizado Defendem que a Ritalina seria um medicamento gadget da

contemporaneidade o que significa que ocupa um lugar na economia de gozo do nosso tempo

O gadget eacute entendido como um produto criado pela induacutestria que oferece um ganho ldquoum

prolongamento das capacidades humanasrdquo mas sempre insuficiente e limitado no tempo

O uso contemporacircneo do metilfenidato estaacute aleacutem da triacuteade doenccedila sauacutede e cuidado Compreende a busca incessante do homem para superar seus limites e viver bem em sociedade o que torna esse medicamento um gadget um fetiche capaz de aproximar ainda mais o usuaacuterio de sua fraacutegil condiccedilatildeo do ser-aiacute-no-mundo (BRANT CARVALHO 2012 p 632)

12 RITALINA e o consumo de metilfenidato por escolares

Os pais dizem incontrolaacutevel desastrado impulsivo Seus professores dizem hiperativo se distrai com facilidade impulsivo Os meacutedicos diriam PFC (Problema Funcional de Comportamento) DCM (Disfunccedilatildeo Cerebral Miacutenima) LCM (Lesatildeo Cerebral Miacutenima) Hipercinesia Ritalina ajuda a ldquocrianccedila problemardquo a se tornar amaacutevel de novo

(Canadian Family Phisician 1971 traduccedilatildeo nossa)

Em 1971 a CIBA induacutestria farmacecircutica fabricante do metilfenidato publicou uma

propaganda na revista Canadian Family Phisician com os dizeres em epiacutegrafe Conforme

Herrera (2015) esse eacute um dentre vaacuterios anuacutencios publicados em revistas meacutedicas canadenses

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e norte-americanas para a promoccedilatildeo da Ritalina como um medicamento para crianccedilas com

problemas tanto em casa quanto na escola

Qual a validade do saber da famiacutelia e da escola nessa propaganda Parece que o saber

meacutedico que visa um diagnoacutestico ganha um valor sobredeterminante na conduta com a crianccedila

que apresenta tais caracteriacutesticas com os pais e na sala de aula jaacute que eacute com uma das opccedilotildees

diagnoacutesticas apresentadas que o caminho do medicamento eacute indicado A Ritalina eacute oferecida

como aquilo que vai tornar a crianccedila com problema uma crianccedila amaacutevel como uma ponte entre

uma crianccedila indesejaacutevel porque hiperativa impulsiva desatenta e uma crianccedila amaacutevel digna

de amor pela famiacutelia e pela escola

O anuacutencio cita diferentes diagnoacutesticos jaacute conhecidos pela classe meacutedica na eacutepoca como

a lesatildeo cerebral miacutenima e cita tambeacutem novas nomenclaturas como a disfunccedilatildeo cerebral

miacutenima Dessa forma acaba convocando meacutedicos que nomeiam de formas diferentes a mesma

questatildeo que desejam promover

De acordo com a anaacutelise de Herrera (2015) a CIBA promoveu a Ritalina e o transtorno

receacutem-nomeado de DCM de forma conjunta Se dos anos 1950 ateacute iniacutecio de 1970 o

medicamento era voltado para o puacuteblico adulto conforme mostravam comerciais da eacutepoca a

partir dos anos 1970 o puacuteblico-alvo da induacutestria farmacecircutica mudou para os meninos com

problemas escolares devido agrave impulsividade e agrave inquietaccedilatildeo identificadas tambeacutem em casa

Segundo o autor ldquoo material publicitaacuterio desenvolvido na deacutecada de 1970 reforccedila a associaccedilatildeo

do comportamento inquieto e impulsivo com o gecircnero masculino e consolida efetivamente a

Ritalina como a droga de escolha para o tratamento do comportamento impulsivo em meninosrdquo

(HERRERA 2015 p 123)

No Brasil a Ritalina produzida pela Novartis chegou nos anos 1990 periacuteodo em que

a palavra ldquohiperativordquo tambeacutem passou a ser frequente no discurso social da escola Importante

lembrar que o termo ldquocrianccedila problemardquo citado na propaganda da CIBA foi veiculado no

Brasil nos anos 1930 atraveacutes do livro de mesmo nome do meacutedico alagoano Arthur Ramos no

qual aborda os serviccedilos de higiene mental no estado do Rio de Janeiro e propotildee uma diferenccedila

entre anormalidade da crianccedila e o problema que vive em seu contexto social e cultural O

meacutedico propotildee chamar de ldquocrianccedila problemardquo aquela que experimenta dificuldades de

aprendizagem e de adaptaccedilatildeo agrave escola que natildeo se devem a um problema orgacircnico ou a uma

anomalia jaacute que essas constituem realmente um impedimento uma barreira a uma educaccedilatildeo

comum como eacute o caso nos dias de hoje dos alunos com necessidades educativas especiais A

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crianccedila problema corresponde agravequela produzida pelo discurso dos pais e educadores Para o

autor

[] as crianccedilas ldquocaudas de classerdquo nas Escolas insubordinadas desobedientes instaacuteveis mentirosas fujonas [] na sua grande maioria natildeo satildeo portadoras de nenhuma ldquoanomaliardquo moral no sentido constitucional do termo Elas foram ldquoanormalizadasrdquo pelo meio Como o homem primitivo cuja ldquoselvageriardquo foi uma criaccedilatildeo de civilizados tambeacutem na crianccedila o conceito de ldquoanormalrdquo foi antes de tudo o ponto de vista adulto a consequumlecircncia de um enorme sadismo inconsciente de pais e educadores (RAMOS 1950 p 18)

Compreendendo o sentido de ldquomeiordquo menos pelo vieacutes behaviorista e mais atrelado agrave

teoria da psicanaacutelise e da antropologia Ramos buscou mostrar o quanto noacutes educadores pais

psicoacutelogos meacutedicos podemos fazer com que alunos respondam a uma expectativa de

anormalidade com sintomas que cabem agrave forma de organizaccedilatildeo social da escola Nesse sentido

busca desconstruir o discurso que patologiza a crianccedila escolar e fala dos problemas vividos no

contexto social brasileiro daquela eacutepoca

No entanto a partir da propaganda da CIBA e da apropriaccedilatildeo que fazemos dos

significantes que designam os transtornos eacute possiacutevel dizer que o conceito utilizado por Ramos

(1950) de ldquocrianccedila problemardquo acabou engolfado pelo processo de medicalizaccedilatildeo da escola

brasileira e ressignificado como um problema individual Agrave diferenccedila de Ramos (1950) que

faz uma criacutetica agrave conduta anormalizadora na escola o anuacutencio da Ritalina propotildee uma

alternativa teacutecnica agrave fala de pais e educadores aleacutem de apresentar a soluccedilatildeo para a ldquodoenccedilardquo da

crianccedila

Nesse sentido hoje o metilfenidato eacute tanto importado quanto produzido no Brasil e

vendido sob o nome comercial Ritalina e Concerta Haacute tambeacutem a opccedilatildeo de medicamento

geneacuterico

Segundo Bianchi e outros (2017) entre 1996 e 2012 a quantidade de metilfenidato

produzido aqui e importado passou de 9 para 578 kg o que representa um aumento de 6322

comparando com a fabricaccedilatildeo mundial de metilfenidato entre 1998 e 2012 a qual variou de

13493 kg a 63236 kg representando um aumento de 369 O relatoacuterio teacutecnico de fabricaccedilatildeo

de substacircncias psicotroacutepicas feito pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e publicado em 2017

ressalta que em 2016 ocorreu o maior registro de fabricaccedilatildeo mundial de metilfenidato no

mundo ou seja 74 toneladas Em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de 2012 haacute um aumento de 17 Ainda

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que seja possiacutevel perceber uma certa estabilidade registra-se um crescimento na produccedilatildeo do

medicamento

Se a fabricaccedilatildeo mundial tem aumentado cada vez mais isso pode indicar que a

necessidade de consumo pode estar aumentando Em 2018 registrou-se no Brasil uma procura

maior do que a oferta O jornal mineiro O Tempo publicou uma reportagem em outubro sobre

a falta do medicamento que atingiu todo o Paiacutes desde maio A justificativa da Novartis

fabricante da Ritalina para o desabastecimento foi a burocracia para importaccedilatildeo da mateacuteria-

prima o que gerou um atraso na produccedilatildeo aleacutem disso houve uma procura maior que a prevista

De acordo com a repoacuterter Thuanny Motta como forma de garantir o acesso ao

medicamento nas farmaacutecias brasileiras a empresa resolveu duplicar a produccedilatildeo nacional de

150 mil caixas para 300 mil por mecircs pelo menos durante um periacuteodo de trecircs meses aleacutem de

otimizar a via de distribuiccedilatildeo Lembramos que o metilfenidato natildeo eacute vendido apenas para

pessoas diagnosticadas com o TDAH Como discutido o consumo tambeacutem ocorre entre aqueles

que desejam aprimorar seu desempenho em atividades acadecircmicas e profissionais No entanto

eacute preciso considerar que de acordo com Bianchi e outros (2017) o metilfenidato eacute o estimulante

mais vendido no Brasil para o tratamento do TDAH entre crianccedilas jovens e adultos

A Agecircncia Nacional de Vigilacircncia Sanitaacuteria (Anvisa) preocupada com o aumento do

consumo de Ritalina nos anos 2000 divulgou um boletim informativo sobre o puacuteblico

consumidor do metilfenidato O oacutergatildeo constatou um aumento do consumo de Ritalina por

crianccedilas de 6 a 16 anos no Brasil entre os anos de 2009 a 2011 Natildeo haacute divulgaccedilatildeo de um

boletim com dados mais recentes

No entanto a partir da reportagem do jornal O Tempo eacute possiacutevel fazer uma constataccedilatildeo

Se no boletim divulgado em 2012 o maior consumo mensal de metilfenidato considerando a

Ritalina a Ritalina de longa duraccedilatildeo e o Concerta foi de aproximadamente 140 mil caixas no

mecircs de agosto de 2011 (Figura 1) parece que hoje a produccedilatildeo normal apenas de Ritalina e

Ritalina de longa duraccedilatildeo tem sido de 150 mil caixas por mecircs

Para ter dados mais representativos da real produccedilatildeo do metilfenidato seria necessaacuterio

estimar a produccedilatildeo de Concerta e do geneacuterico fabricado pelo laboratoacuterio EMS aleacutem de

relacionar os dados da produccedilatildeo com os dados do consumo Sobre esta relaccedilatildeo no mecircs de

novembro de 2018 a empresa Novartis revelou a pedido do jornal baiano Correio que a

demanda meacutedia de Ritalina eacute de 150 a 160 mil unidades por ano A cada ano haacute aumento de

15 na procura

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Eacute interessante levar em consideraccedilatildeo a periodicidade da dispensa do metilfenidato no

Brasil conforme o Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC)

Segundo Bianchi e outros (2017) a comercializaccedilatildeo do metilfenidato diminui com o fim do

ano letivo o que pode ser interpretado como uma diminuiccedilatildeo da prescriccedilatildeo meacutedica durante as

feacuterias escolares Podemos observar essa constataccedilatildeo no graacutefico a seguir divulgado no boletim

farmacoepidemioloacutegico do SNGPC (2012)

Figura 1ndash Consumo mensal de metilfenidato industrializado no Brasil entre 2009 e 2011

Fonte SNGPCCSGPCNUVIGAnvisa

A relaccedilatildeo do consumo de metilfenidato ao longo do ano letivo pode ficar um pouco mais

clara se olharmos o graacutefico que informa as caixas de medicamentos consumidas por crianccedilas e

jovens em idade escolar na cidade de Porto Alegre que de acordo com o SNGPC (2012) eacute a

cidade brasileira que registrou o maior consumo desse medicamento no triecircnio

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Figura 2 ndash Consumo mensal de metilfenidato em Porto Alegre entre 2009 e 2011

Fontes SNGPCCSGPCNUVIGAnvisa DATASUSMinisteacuterio da Sauacutede

Podemos verificar com o graacutefico que existe um aumento no consumo de metilfenidato

com o iniacutecio das aulas e salvo algumas variaccedilotildees haacute uma tendecircncia de crescimento ao longo

do ano Os meses de maior consumo parecem ser outubro e novembro eacutepoca em que os alunos

podem estar realizando as avaliaccedilotildees finais Nos trecircs anos haacute uma ligeira queda no mecircs de julho

mecircs das feacuterias de inverno e logo em seguida um aumento de consumo com o iniacutecio do segundo

semestre

Tais interpretaccedilotildees satildeo confirmadas pelo SNGPC ao analisar um conjunto de dados do

consumo e prescriccedilatildeo meacutedica em todo o paiacutes A agecircncia conclui que ldquotem havido um aumento

no consumo de metilfenidato no paiacutes com um comportamento aparentemente variaacutevel com

destaque para reduccedilatildeo do consumo nos meses de feacuterias e aumento no segundo semestre dos

anos estudadosrdquo (SISTEMA NASCIONAL 2012 p 13)

Aleacutem disso outro importante dado informado pela agecircncia foi o de que a maioria dos

meacutedicos que prescrevem o faacutermaco tem especialidade no atendimento de crianccedilas e jovens

como neurologia pediaacutetrica e pediatria ldquoEntre as especialidades meacutedicas informadas houve

um predomiacutenio daquelas relacionadas com assistecircncia agrave crianccedila e ao adolescente e que tratam

de problemas do sistema nervoso centralrdquo (SISTEMA NACIONAL 2012 p 13) Dessa

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forma a maior parte das prescriccedilotildees controladas do faacutermaco tem sido realizada para o puacuteblico

infantil e juvenil provavelmente em funccedilatildeo de um diagnoacutestico de TDAH

O consumo de metilfenidato associado agrave escolarizaccedilatildeo eacute um fato que descobrimos pela

anaacutelise dos graacuteficos O medicamento estaria ganhando o espaccedilo escolar de forma a se tornar

condiccedilatildeo para a educaccedilatildeo No final do boletim farmacoepidemioloacutegico o SNGPC nos alerta

para o fato de que o uso do medicamento metilfenidato tem sido feito de forma equivocada

divulgado como a ldquodroga da obediecircnciardquo e que em paiacuteses como os Estados Unidos utiliza-se o

medicamento ldquopara moldar as crianccedilas afinal eacute mais faacutecil modificaacute-las que ao ambienterdquo

(SISTEMA NACIONAL 2012 p 13) Recomenda que o metilfenidato seja utilizado como

mais uma estrateacutegia ldquoaliado a outras medidas como educacionais sociais e psicoloacutegicasrdquo

(SISTEMA NACIONAL 2012 p 13)

Nesse sentido contamos a histoacuteria do diagnoacutestico de TDAH e do consumo de

metilfenidato para aleacutem da questatildeo singular pela qual fomos convocados na cliacutenica

Conhecemos um pouco de seu caraacuteter epidecircmico e das proporccedilotildees que a medicalizaccedilatildeo tomou

em nossa vida como modo de regular nossas relaccedilotildees uns com os outros

Nas paacuteginas seguintes iremos pensar a questatildeo a partir de outra perspectiva a qual traz

agrave tona os embaraccedilos que aparecem na histoacuteria contada no proacutelogo formados quando

interrogamos as escolhas que tomamos junto a crianccedilas com problemas de comportamento na

escola Essa perspectiva eacute a da relaccedilatildeo entre o traacutegico e a psicanaacutelise como formas discursivas

que nos possibilitam enunciar uma questatildeo de modo a criar bordas ao impossiacutevel de nosso

fazer

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2 A TRAGEacuteDIA ANTIGA E CONSTITUICcedilAtildeO DA PSICANAacuteLISE

Flectere si nequeo superos Acheronta movebo

Virgiacutelio Eneida

Em 1900 Freud publica a obra inaugural da psicanaacutelise chamada A interpretaccedilatildeo dos

sonhos com essa frase de apresentaccedilatildeo a qual significa ldquoSe natildeo posso mover os ceacuteus moverei

o infernordquo ou ainda ldquoSe natildeo puder dobrar os deuses de cima moverei o Aqueronterdquo

Encontramos tal citaccedilatildeo no livro VII verso 312 do poema eacutepico Eneida do poeta romano

Virgiacutelio O Aqueronte referido por Freud eacute o um rio subterracircneo que representa os deuses que

habitam a parte de baixo da terra Deuses que muitas vezes pisaram o palco das trageacutedias

antigas por meio de uma escada situada sob um alccedilapatildeo conhecida por escada de Caronte ou

de Aqueronte

Pensamos o que faz com que Freud escolha tal frase como podemos dizer um oraacuteculo

de abertura agrave sua ciecircncia Preserva o latim liacutengua enigmaacutetica aos falantes das liacutenguas que dela

derivam Os sonhos satildeo justamente isso enigmas aos seus sonhadores figuraccedilotildees que brotam

na consciecircncia e causam surpresa e inquietaccedilatildeo a quem as produz O que Freud mostra na obra

que introduz o seu meacutetodo de escuta dos sonhos eacute o trabalho psiacutequico de encenar o desejo

inconsciente e o trabalho de interpretaccedilatildeo das cenas tornando o desconhecido conhecido o

estranho familiar o conteuacutedo inconsciente consciente

Em vez de incidir sobre o que aparece conscientemente no discurso ndash ou seja o

significado corrente do que o paciente diz ndash situando o falante numa rede discursiva

distanciada sem que se construa um percurso ateacute ela uma rede que o identifica como mais um

indiviacuteduo que sofre de mesmos sintomas Freud escuta o como como o paciente diz o que diz

a dimensatildeo invisiacutevel presente em seu discurso e nesse sentido aproxima-se de um discurso

outro que daacute voz ao sujeito que cinde o indiviacuteduo que o atravessa que mostra como um aspecto

sintomaacutetico compartilhado por muitos o toca singularmente Freud chega ao rio subterracircneo

move o Aqueronte constroacutei a travessia com o sujeito que lhe fala de um modo de dizer a outro

Nesse sentido traz agrave cena o inconsciente comprova sua existecircncia para aleacutem dos sintomas

neuroacuteticos ou seja apresenta os sonhos como manifestaccedilotildees dessa instacircncia alienante

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21 A trilogia tebana de Soacutefocles Eacutedipo Rei e o inconsciente

Falando de sonhos infantis que retratam o desejo por um dos progenitores e a aversatildeo

ao outro Freud se aproxima de outra histoacuteria claacutessica grega desta vez que se torna emblemaacutetica

da proacutepria psicanaacutelise

Essa descoberta eacute confirmada por uma lenda da Antiguidade claacutessica que chegou ateacute noacutes uma lenda cujo poder profundo e universal de comover soacute pode ser compreendido se a hipoacutetese que propus com respeito agrave psicologia infantil tiver validade igualmente universal O que tenho em mente eacute a lenda do Rei Eacutedipo e a trageacutedia de Soacutefocles que traz o seu nome (FREUD 19002015 p 178)

A histoacuteria de Soacutefocles Oedipus Tiranus tem iniacutecio com a peste que toma conta de

Tebas terra de Cadmo antigo cidade que jaacute conheceu seus momentos de gloacuteria O oraacuteculo do

deus Apolo revela que a terra poderaacute ser purificada quando o assassino do rei antecessor Laio

for descoberto e punido O rei Eacutedipo que assumira o trono de Tebas e se casara com a rainha

Jocasta como recompensa apoacutes desvendar o enigma da Esfinge lanccedila-se na empreitada de

descobrir e combater o assassino de Laio Eacutedipo que chegara agrave terra de Tebas por fugir de seu

destino uma profecia de que seria o assassino de seu pai e desposaria a proacutepria matildee acaba por

se descobrir filho e algoz do antigo rei Ao fugir de seu destino cumpre-o sem sabecirc-lo Aiacute reside

a dimensatildeo do inconsciente

A accedilatildeo da peccedila natildeo consiste em nada aleacutem do processo de revelaccedilatildeo com engenhosos adiamentos e sensaccedilatildeo sempre crescente - um processo que pode ser comparado ao trabalho de uma psicanaacutelise - de que o proacuteprio Eacutedipo eacute o assassino de Laio mas tambeacutem de que eacute o filho do homem assassinado e de Jocasta Estarrecido ante o ato abominaacutevel que inadvertidamente perpetrara Eacutedipo cega a si proacuteprio e abandona o lar A prediccedilatildeo do oraacuteculo fora cumprida (FREUD 19002015 p 179)

O que Freud nos mostra ao apresentar a trageacutedia de Soacutefocles eacute que se essa peccedila nos

comove incomparavelmente em relaccedilatildeo a outras peccedilas mesmo de dramaturgos modernos aleacutem

do amor e da hostilidade em relaccedilatildeo agraves figuras parentais a razatildeo disso reside no fato de que noacutes

somos alheios ao discurso do qual somos feitos e quanto mais tentarmos escapar de nosso

destino buscando culpados ou responsabilizando outrem pelos rumos de nossa vida tanto mais

cairemos na armadilha que noacutes mesmos nos arranjamos

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O saacutebio e cego Tireacutesias personagem da peccedila declara a Eacutedipo o grande decifrador de

enigmas ldquoVeraacutes num mesmo dia teu princiacutepio e teu fimrdquo (Eacutedipo Rei v 528) Esta profecia se

refere ao momento da peccedila quando o infeliz Eacutedipo descobre ser casado com sua matildee e ter

gerado frutos do incesto concluindo assim a terriacutevel descoberta de sua origem Em suas

palavras ldquoos deuses desprezam-me agora por ser filho de seres impuros e porque fecundei ndash

miseraacutevel ndash as entranhas de onde saiacuterdquo (Eacutedipo Rei vv 1610-1613) Ao natildeo suportar ver a

verdade fura os proacuteprios olhos A frase de Tireacutesias o horror descoberto por Eacutedipo pode ter um

importante sentido para a noccedilatildeo do traacutegico Por ora podemos dizer que de acordo com Tireacutesias

Eacutedipo natildeo eacute um estrangeiro salvador que apareceu em Tebas para livrar a cidade do mal ao

contraacuterio eacute um filho da terra sucessor legiacutetimo do trono que toma o lugar que lhe cabe e se

torna o responsaacutevel pela desgraccedila da cidade

Nesse sentido a psicanaacutelise se aproxima da trageacutedia grega para de certa forma dizer

do seu modo de operar Se Freud recorreu a Eacutedipo Rei e com ele conseguimos nos aproximar

da noccedilatildeo de inconsciente o freudiano Lacan elege Antiacutegona e com ela nos apresenta a eacutetica da

psicanaacutelise O que podemos compreender de pensamento em comum entre os dois psicanalistas

eacute que ainda que sejamos inconscientes de nosso desejo e de nosso destino somos responsaacuteveis

por ele Ao fim da peccedila Eacutedipo diz que jamais teria voluntariamente feito o que fez No entanto

deve arcar com as consequecircncias do destino determinado pelos deuses Ainda iremos conversar

sobre a funccedilatildeo dos deuses na trageacutedia ao que ela corresponde do que ela participa

Gostariacuteamos antes de prosseguirmos com a apreciaccedilatildeo de Lacan da trageacutedia de

apresentar algumas passagens que sucedem Eacutedipo Rei e antecedem Antiacutegona na composiccedilatildeo da

trilogia tebana de Soacutefocles

22 Eacutedipo (e Antiacutegona) em Colono

Na trageacutedia Eacutedipo em Colono2 vemos Eacutedipo sair de Tebas sem rumo Sem a garantia

dos deuses sobre qual o melhor destino a um parricida incestuoso (mataacute-lo por seus crimes

2 Eacutedipo e Antiacutegona apoacutes caminharem por muito tempo chegam a Colono pequeno povoado perto de Atenas onde governa o rei Teseu Ismene chega ao lugar para dar notiacutecias da cidade de Tebas Os irmatildeos Polinices e Eteacuteocles em vez de aceitarem o reinado de Creonte irmatildeo de Jocasta para livrar os tebanos das desgraccedilas dos Labdaacutecidas decidem disputar entre si o trono Ao mesmo tempo o oraacuteculo havia previsto infortuacutenios para a cidade caso o corpo de Eacutedipo fosse violado Dessa forma Creonte parte agrave sua procura para conferir o tuacutemulo nas fronteiras de Tebas e zelar por seu cadaacutever Em solo tebano Eacutedipo natildeo poderia ser enterrado por ter cometido assassinato de um rei crime tambeacutem de parriciacutedio Eacutedipo fica muito decepcionado com os dois filhos por estarem mais preocupados com o poder do que com o destino do pai e lanccedila sobre os dois uma praga a de que morreriam nas

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Enterrar seu corpo Expulsaacute-lo de Tebas) o que Creonte seu cunhado decide eacute libertar a

cidade de sua maldiccedilatildeo contrariando o pedido de Eacutedipo para que Creonte ponha fim agrave sua vida

No entanto como o corpo de Eacutedipo pode vir a desgraccedilar ainda mais a cidade de Tebas a soluccedilatildeo

encontrada eacute mandaacute-lo embora Dessa maneira Eacutedipo vaga ateacute encontrar um lugar que aceite

acolhecirc-lo

Antiacutegona uma de suas filhas com Jocasta escolhe acompanhar o pai na difiacutecil jornada

em busca de uma terra que possa refugiar o cadaacutever de um homem jaacute assolado pela desgraccedila

Antiacutegona parece ocupar o lugar dos olhos furados do pai pois ao longo da caminhada ela lhe

narra tudo o que vecirc tornando-se os proacuteprios olhos do pai Nas palavras de Eacutedipo falando da

coragem da filha Antiacutegona

[] ainda crianccedila sentindo seus membros mais firmes decidiu guiar um anciatildeo em suas longas caminhadas sempre errante descalccedila percorrendo os bosques perigosos faminta atormentada repetidamente pelas aacuteguas das chuvas pelo sol ardente jaacute esquecida do conforto de seu lar cuidando apenas de dar alimento ao pai (Eacutedipo em Colono vv 366-373)

Eacutedipo tambeacutem elogia a atitude de Ismene de ter saiacutedo da proteccedilatildeo de Tebas para ir a seu

encontro e com isso compara as duas filhas aos dois filhos Apesar do lugar desigual que

ocupam na Greacutecia Antiga ou seja o de ser mulher ambas satildeo mais corajosas desafiam-se em

terras distantes enquanto os outros esquecem do pai e se resguardam ao lar e objetivam ocupar

o trono de Tebas Somente apoacutes um tempo em outro episoacutedio da peccedila aparece Polinices para

matildeos um do outro maldiccedilatildeo que se concretiza e antecede a trageacutedia Antiacutegona Com essa decisatildeo Eacutedipo se coloca ao lado de Teseu e promete a ele que sua terra seraacute bendita e protegida pelos deuses se sepultar o seu corpo Isso havia sido pronunciado tambeacutem pelo oraacuteculo de acordo com Ismene Mesmo sabendo a origem desgraccedilada de Eacutedipo Teseu se interessa pela notiacutecia do oraacuteculo e manda edificar uma sepultura a Eacutedipo Numa tentativa frustrada Creonte aparece em Colono com seus soldados captura Ismene e Antiacutegona que satildeo salvas pelos homens de Teseu Depois disso quem aparece eacute Polinices pedindo piedade ao pai em sua retomada do trono Ele conta que Eteacuteocles o irmatildeo mais jovem banira-o de Tebas apoacutes ter convencido os cidadatildeos de que ele deveria ser o novo rei Em Argos Polinices organizara um grupo de guerreiros para invadir Tebas e tomar o trono usurpado pelo irmatildeo No entanto Eacutedipo conta que fora ele proacuteprio banido por Polinices quando lhe entregou o trono e agora que este estava em situaccedilatildeo de anguacutestia ameaccedilado pela maldiccedilatildeo e pelos oraacuteculos lembrou-se da existecircncia do pai Dessa forma Eacutedipo natildeo perdoa o filho e o manda embora assombrado com maldiccedilotildees Polinices retorna em direccedilatildeo a seu fim traacutegico Eacutedipo ao sentir que seu fim se aproxima pede para Teseu segui-lo a um local oculto de sua escolha Apoacutes encontrar o local Eacutedipo eacute chamado pelos deuses e morre misteriosamente Teseu ficara encarregado de natildeo permitir jamais que qualquer mortal mesmo as filhas se aproximasse do misterioso tuacutemulo (SOacuteFOCLES 441aC2014)

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pedir ao pai que volte atraacutes na maldiccedilatildeo do duplo assassinato que havia proclamado aos filhos

pedido este imediatamente negado por Eacutedipo Certo de sua desgraccedila futura Polinices suplica

agraves irmatildes

[] Ah Minhas queridas irmatildes Ao menos voacutes que ouvistes as imprecaccedilotildees impiedosas deste pai natildeo me afronteis Em nome de todos os deuses vos suplico se um dia sua maldiccedilatildeo se consumar e se tiverdes meios de voltar a Tebas dai-me sepultura e oferendas fuacutenebres Assim aos elogios que hoje recebeis por vossa caridosa ajuda a este homem somar-se-atildeo outros louvores natildeo menores pelos cuidados que me houverdes dispensado (Eacutedipo em Colono vv 1661-1671)

Apoacutes Antiacutegona ter sugerido ao irmatildeo Polinices que desistisse de enfrentar o reino de

Tebas com seu exeacutercito ele afirma que natildeo haacute mais como voltar atraacutes acovardar-se pois se

contasse aos seus homens a maldiccedilatildeo do pai natildeo lutariam mais com ele e seu dever era assumir

o comando das tropas seguir seu caminho e enfrentar a realizaccedilatildeo da profecia do pai caso esta

de fato se cumprisse Por fim diz para as irmatildes esquivando-se de seus abraccedilos ldquoqueira Zeus

conduzir-vos por caminhos bons se apoacutes a minha morte me proporcionardes os funerais

pedidos jaacute que natildeo podeis fazer por mim ainda em vida coisa algumardquo (Eacutedipo em Colono vv

1701-1704) E entatildeo Antiacutegona se lamenta por antever o final traacutegico de seu irmatildeo por jaacute vecirc-

lo caminhar em direccedilatildeo ao outro mundo

Eacutedipo sofre uma morte carregada de misteacuterio Recebe um aviso dos deuses de que sua

morte estaria proacutexima Sua sepultura natildeo eacute apresentada na accedilatildeo cecircnica mas eacute narrada Antiacutegona

e Ismene participam das honras fuacutenebres conferem um ritual de sepultamento ao pai No

entanto o lugar onde Eacutedipo eacute enterrado fica sob os cuidados de Teseu apenas dele Eacutedipo

oferece seu corpo a Teseu com a promessa divina de proteccedilatildeo agrave sua terra

A princesa tebana se desespera por natildeo saber o que fazer manifesta o desejo de ir ao

encontro do pai de conhecer sua morada de perder sua vida Suas lamentaccedilotildees recebem o

consolo do coro ateacute a chegada de Teseu para quem solicita ver o sepulcro do pai Ao saber que

Eacutedipo havia interditado qualquer pessoa de visitaacute-lo e tirar-lhe a paz a filha respeita sua decisatildeo

e diz ao rei do lugar ldquoSe eacute este o seu desejo que assim seja Manda-nos logo de retorno a

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Tebas nossa antiga cidade para que se for possiacutevel consigamos ambas [Antiacutegona e Ismene]

deter a marcha da carnificina funesta para nossos dois irmatildeosrdquo (Eacutedipo em Colono vv 2084-

2089)

Dessa forma as duas conseguem retornar a Tebas No entanto como narra o iniacutecio da

trageacutedia Antiacutegona natildeo conseguem impedir que a maldiccedilatildeo de Eacutedipo se concretize e Eteacuteocles

e Polinices morrem pelas matildeos um do outro Eacute aiacute que o desejo de Antiacutegona segue seu caminho

no dever para com o irmatildeo de conferir-lhe o sepultamento devido conforme por ele suplicado

Assim Antiacutegona que acompanhou os uacuteltimos passos de Eacutedipo como uma testemunha

de seus uacuteltimos feitos nesse mundo que partiu com ele em busca de um lugar que abrigasse o

corpo eacute impedida de ver o local onde jaz seu pai e tambeacutem irmatildeo algo indispensaacutevel para que

se imponha uma diferenccedila entre os que ainda vivem e os que jaacute morreram De acordo com

Guyomard (1996 p 21) ldquoos funerais separam os vivos dos mortos e permitem aos vivos viver

sem ser assombrados por seus fantasmasrdquo Com isso o que resulta da morte de Eacutedipo para

Antiacutegona eacute uma indiferenciaccedilatildeo entre a vida e a morte e eacute com a urgecircncia de impor uma

separaccedilatildeo entre os dois termos que ela inicia a peccedila intitulada com o seu nome

Interessante visitar a histoacuteria pregressa da famiacutelia de Antiacutegona ver de certo modo a

reincidecircncia de questotildees de seus antepassados em sua vida o que a relaciona ao avocirc Laio ao

seu irmatildeo e ao mesmo tempo pai Eacutedipo Aleacutem disso o destino dos personagens da trilogia

tebana estaacute de certo modo ligada ao mito de fundaccedilatildeo da cidade de Tebas por seu primeiro

rei Cadmo Na proacutexima seccedilatildeo visitamos algumas partes que compotildeem a histoacuteria em que se

inscreve a trilogia tebana

221 O mito de fundaccedilatildeo de Tebas

O helenista Francis Vian realizou uma pesquisa cuidadosa sobre a histoacuteria da fundaccedilatildeo

de Tebas em sua obra As origens de Tebas Cadmo e os espartos Segundo Vian (1963) uma

das referecircncias mais completas sobre a histoacuteria do personagem Cadmo se encontra na Biblioteca

de Apolodoro uma importante fonte de pesquisa sobre mitologia grega datada do seacuteculo I

Dessa maneira um dos livros se dedica a contar as aventuras dos descendentes de Agenor pai

de Cadmo Fecircnix e Europa Segundo o livro Cadmo consulta o oraacuteculo de Delfos para saber o

paradeiro de sua irmatilde Europa que havia sido raptada por Zeus O oraacuteculo lhe diz que natildeo eacute

preciso se preocupar com ela e lhe atribui uma importante tarefa Cadmo deve encontrar uma

97

vaca e segui-la ateacute o ponto onde ela cairia de cansaccedilo Neste ponto da queda ele fundaria uma

cidade

Desse modo Cadmo caminha ateacute encontrar a vaca e faz o que o oraacuteculo havia solicitado

A vaca caminha ele a segue ateacute que ela se deita num lugar apoacutes atravessar a Beoacutecia Cadmo

pede para que um de seus companheiros procure aacutegua na fonte de Ares No entanto cada

homem que ele envia para buscar aacutegua acaba morto pelo guardiatildeo da fonte um dragatildeo Furioso

Cadmo vai ateacute a fonte e mata o dragatildeo A deusa Atena lhe diz para arrancar seus dentes e semeaacute-

los Assim que Cadmo cumpre o que a deusa lhe pede guerreiros armados surgem da terra os

semeados ou espartos Cadmo joga pedras nos guerreiros os quais acreditam terem sido

atacados pelos proacuteprios companheiros Assim eles acabam guerreando uns com os outros ateacute

restarem apenas cinco Para expiar o que havia feito Cadmo eacute obrigado a servir o deus Ares

por um ano o que equivale a oito anos dos nossos atuais Haacute uma variaccedilatildeo nessa histoacuteria

segundo Vian (1963) que suprime a parte do surgimento dos guerreiros e no lugar conta que

nasceram os filhos da terra Ares teria punido Cadmo natildeo pelo massacre mas pela morte do

dragatildeo

De acordo com a Biblioteca de Apolodoro apoacutes a servidatildeo por um ano a deusa Atena

torna Cadmo rei e Zeus lhe concede a matildeo de Harmonia filha de Afrodite e de Ares Todos os

deuses celebram o casamento

Segundo fragmento de texto do helecircnico Fereacutecides (VIAN 1963) o episoacutedio dos

guerreiros espartos ocorre apoacutes a fundaccedilatildeo da cidade de Tebas e do casamento de Cadmo com

Harmonia e natildeo antes Cadmo estabelecido em Tebas teria recebido de Ares e Atena metade

dos dentes do dragatildeo e os teria semeado por ordem dos deuses De acordo com Vian (1963)

uma importante contribuiccedilatildeo deixada por Fereacutecides eacute oferecer uma relaccedilatildeo entre o mito de

Cadmo e o mito de Jasatildeo visto que a outra metade dos dentes do dragatildeo eacute dada ao rei Eetes da

Coacutelquida Retomaremos esse episoacutedio quando nos ocuparmos da histoacuteria de Medeia

De acordo com Vian (1963) a princiacutepio Eacutedipo e Cadmo natildeo tinham ligaccedilatildeo alguma

entre eles Eacute num tempo posterior que inserimos os dois numa genealogia comum Uma ligaccedilatildeo

possiacutevel indica o parentesco de Cadmo agrave famiacutelia de Eacutedipo da seguinte forma Cadmo teve

Polidoro que governou Tebas e foi morto pelas Bacantes Polidoro teve Laacutebdaco tambeacutem

morto pelas Bacantes este era pai de Laio morto pelo proacuteprio filho Eacutedipo Todos foram reis

de Tebas

98

Nossa principal fonte de informaccedilatildeo satildeo as trageacutedia com Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides

as quais no entanto apresentam versotildees diferentes de filiaccedilatildeo entre os descendentes de Cadmo

e dos guerreiros filhos do dragatildeo e da terra Construir uma genealogia lendaacuteria eacute uma tarefa que

implica artificialidade Ou ainda ficccedilatildeo Sobretudo no que se refere aos espartos que muito

mais do que pertencerem a uma mesma famiacutelia pertencem a uma mesma classe social militar

Eacute dessa classe espartana dos filhos da terra de Tebas que parece descender Creonte

personagem recorrente nas trageacutedias De acordo com Vian (1963) a rivalidade existente entre

Creonte e a famiacutelia de Eacutedipo que podemos averiguar sobretudo na trilogia tebana deve-se a

uma antiga rivalidade entre um Creonte primeiro filho de um dos cinco espartanos que

restaram da batalha lendaacuteria e Cadmo que provocou o massacre e fundou a cidade de Tebas

Sem ser filho da terra torna-se seu primeiro rei Nesse ponto podemos supor uma relaccedilatildeo de

Cadmo com Eacutedipo Ao assumirem o trono de Tebas ambos satildeo considerados estrangeiros

Cadmo era filho de Agenor da Feniacutecia Jaacute Eacutedipo era tebano mas esse fato era desconhecido

por ele e pelos cidadatildeos de Tebas quando assumira o trono

Nas trageacutedias de Soacutefocles a relaccedilatildeo entre Creonte e Eacutedipo parece cordial no entanto o

tragedioacutegrafo se recusa a chamar Creonte de rei nas duas primeiras peccedilas da trilogia tebana Em

vez disso toma-o como tutor dos filhos de Eacutedipo Em Eacutedipo em Colono Creonte eacute citado como

regente natildeo como rei legiacutetimo Eacute tido como rei apenas em Antiacutegona em funccedilatildeo de seu laccedilo de

sangue com os filhos mortos de Eacutedipo Contudo ningueacutem o considera um rei legiacutetimo em

funccedilatildeo da tirania com a qual governa nem seu proacuteprio filho Hecircmon Na trageacutedia de Eacutedipo da

versatildeo contada por Euriacutepides a rivalidade se torna mais evidente visto que eacute Creonte quem

investiga o assassino de Laio e ordena seus seguidores a ferirem os olhos do assassino Eacutedipo

(VIAN 1963)

Francis Vian capta uma estrutura clara das aventuras de Cadmo que faz dele um heroacutei

Tal estrutura parece ter um caraacuteter religioso Para ele o heroacutei estaacute em busca de um lugar para

fundar ex nihilo uma nova cidade Ele eacute guiado por um animal encarnado por uma divindade

e se sacrifica para tornar a nova terra um solo sagrado Em seguida ele luta bravamente com o

dragatildeo Assim temos na histoacuteria de Cadmo um mito de criaccedilatildeo com trecircs atos principais ldquoo

combate vitorioso com o monstro primordial a expiaccedilatildeo ritual do assassinato e o triunfo final

marcado por uma hierogamiardquo (VIAN 1963 p 232)

Podemos observar tal estrutura ou ao menos os trecircs atos heroicos na histoacuteria de Eacutedipo

O heroacutei mata a esfinge que assolava Tebas Com isso ganha a matildeo natildeo de uma deusa mas da

99

rainha Jocasta Ao final de Eacutedipo Rei na versatildeo de Soacutefocles expia sua culpa furando seus olhos

e exilando-se de Tebas Outra relaccedilatildeo que podemos identificar entre Cadmo e Eacutedipo se daacute em

Eacutedipo em Colono A relaccedilatildeo que fazemos ocorre na verdade mais especificamente entre Eacutedipo

e a vaca Tal como o animal sagrado Eacutedipo caminha errante acompanhado de Antiacutegona ateacute

cansar e encontrar um lugarejo colonizado por Atenas O ponto onde a vaca cai e falece se torna

o comeccedilo ex nihilo de toda histoacuteria de Tebas Jaacute o local onde Eacutedipo morre misteriosamente

nas fronteiras de Atenas parece tornar-se siacutembolo do fechamento de um ciclo iniciado haacute

muitas geraccedilotildees

222 O destino dos Labdaacutecidas

No livro Eacutedipo ao peacute da letra Antonio Quinet (2015) nos conta uma histoacuteria anterior agrave

trageacutedia de Eacutedipo e de Antiacutegona buscando se aproximar da origem da maldiccedilatildeo dos

Labdaacutecidas aquela que fez gerar o terriacutevel oraacuteculo que assolou a famiacutelia ou seja o oraacuteculo que

proferiu que o filho de Laio o mataria e se casaria com sua esposa Tal histoacuteria pertence agrave

mitologia grega e narra circunstacircncias da vida de Laio

Labdaco rei de Tebas reprimiu o culto ao deus Dioniso que vinha ganhando cada vez

mais forccedila na cidade Em funccedilatildeo disso foi morto pelas bacantes mulheres que honravam o

deus em rituais Laio filho de Labdaco era ainda muito jovem para assumir o trono o qual

ficou sob regecircncia de Lico cunhado de Labdaco Poreacutem tiranos tomaram o reino e mataram o

novo rei Para proteger o pequeno Laio dos ataques seu avocirc Nicteu o enviou para a corte do

reino da Friacutegia e o deixou aos cuidados do rei Peacutelops

Com o passar dos anos Laio se apaixonou por Criacutesipo filho do rei e herdeiro do trono

Quinet (2015) conta que o jovem filho de Labdaco planejou uma fuga resolveu raptar seu

amado e retornar com ele para Tebas com a intenccedilatildeo de assumir o reinado deixado por seu pai

Peacutelops tentou recuperar o filho mas sem sucesso culpou Laio por tecirc-lo sequestrado e lanccedilou

uma maldiccedilatildeo parte da que jaacute conhecemos Laio seria assassinado pelo proacuteprio filho

Os deuses do Olimpo reconheceram a legitimidade das palavras proferidas pelo rei

friacutegio jaacute que Laio desonrou a lei da hospitalidade de grande valor entre os gregos Embora

tenha encontrado um lugar seguro para viver na corte de Peacutelops Laio raptou e fugiu com

Criacutesipo traindo o reino da Friacutegia importante aliado do reino de Tebas Sobre o destino de

100

Criacutesipo as histoacuterias divergem uns dizem que ele teria sido morto ou que teria se matado

Outros dizem que teria chegado em Tebas com Laio

Ainda que natildeo se saiba ao certo o que acontecera ao amado de Laio o priacutencipe tebano

casa-se com Jocasta e com a morte do rei tirano reassume o trono de Tebas e daacute seguimento agrave

linhagem real de sua famiacutelia Poreacutem segundo Quinet (2015) como puniccedilatildeo pelo crime de

sequestro a deusa Hera envia a Tebas a Esfinge criatura mitoloacutegica constituiacuteda por um corpo

de leatildeo asas de paacutessaro e cabeccedila de mulher Como diria a crianccedila de nosso Proacutelogo um hiacutebrido

Misterioso hiacutebrido que lanccedila ao outro uma pergunta sobre o ser Liberta somente o cidadatildeo que

decifrar seu enigma devorando aquele que natildeo resolvecirc-lo O rei Laio consulta o oraacuteculo de

Delfos para saber o que fazer diante da terriacutevel ameaccedila e eacute orientado a natildeo ter filhos caso

quisesse salvar a cidade Sabemos o desfecho dessa histoacuteria e curiosamente aquele que eacute capaz

de desvendar o enigma da esfinge eacute Eacutedipo filho de Laio e Jocasta

Natildeo ter filhos significaria dar um fim em sua proacutepria geraccedilatildeo agrave maldiccedilatildeo apregoada

por Peacutelops e reconhecida pelos deuses libertando Tebas de uma dinastia condenada ao

sofrimento No entanto para um rei natildeo ter filhos eacute renunciar ao poder entregaacute-lo a outra

famiacutelia

Laio bem que tentou natildeo ter filhos de acordo com Quinet (2015) Ainda assim Eacutedipo

foi concebido num dia em que cedeu aos prazeres de Dioniso mesmo deus combatido pelo seu

pai Dessa maneira quando o bebecirc nasceu Laio mandou que lhe furassem o peacute e que o

abandonassem no monte Citeron Eacutedipo nome que significa ldquopeacute inchadordquo foi encontrado por

um pastor que o entregou para ser adotado pelos reis de Corinto Poacutelibo e Meacuterope

Assim a maldiccedilatildeo lanccedilada a Laio se torna a maldiccedilatildeo das geraccedilotildees seguintes dos

Labdaacutecidas porque agrave medida que foi sendo concretizada ainda que sua realizaccedilatildeo tenha

ocorrido na tentativa de evitaacute-la mais o fado foi sendo relanccedilado para as geraccedilotildees seguintes

Laio cometeu um crime contra a hospitalidade e foi amaldiccediloado Seu filho Eacutedipo consumou a

maldiccedilatildeo cometendo o parriciacutedio e por consequecircncia o incesto Os dois netos homens gerados

pelo crime de incesto carregaram a maldiccedilatildeo ateacute se destruiacuterem um ao outro O que resta a

Antiacutegona envolvida nesse imbroacuteglio familiar Com Ismene ela eacute a uacuteltima da terriacutevel linhagem

dos Labdaacutecidas

A maldiccedilatildeo se encerra com ela Talvez sim pois o que conhecemos da histoacuteria de

Antiacutegona contada por Soacutefocles na terceira parte da trilogia tebana eacute que ela acolhe a sina dos

Labdaacutecidas em vez de fugir lutar contra ela assim como faz seu pai no fim da vida Eacutedipo

101

como o pai Laio fora acolhido em solo estrangeiro recebido por Teseu sem receio de que o

amaldiccediloado labdaacutecida pudesse trazer a sua terra algum mal Grato por sua acolhida escolhe

um lugar incerto uma regiatildeo sem limites definidos prometendo a Teseu que o ato do enterro

traria proteccedilatildeo a seu reino Aleacutem disso Eacutedipo renega seus filhos homens os quais como o avocirc

Laio tinham como preocupaccedilatildeo reinar sobre Tebas perpetuando o poder da famiacutelia

O nome Antiacutegona de acordo com o Dicionaacuterio etimoloacutegico da mitologia grega (2013

p 36) eacute composto pela preposiccedilatildeo ἀντί que pode significar ldquode frenterdquo ldquoem frente derdquo e γονή

que indica a descendecircncia O segundo termo corresponde ainda ao tema verbal γεν- ldquonascerrdquo

A primeira parte do composto poderia remontar ao sacircnscrito aacutenti no latim ante cuja raiz ant

teria tido como significado original ldquode frenterdquo para passar ao grego com o sentido de ldquoopor-

se encontrar-serdquo

Conforme o dicionaacuterio ainda que apareccedilam interpretaccedilotildees como ldquocontra o nascimentordquo

ou ldquocontra o uacuteterordquo ou tentativas de relacionar o nome com a ldquooposiccedilatildeo ao nascimentordquo pelo

fato de a heroiacutena ter sido fruto de um incesto Antiacutegona significa ldquonascida no lugar derdquo ldquopara

tomar o lugar derdquo algum antepassado algum familiar

Nesse sentido o proacuteprio nome jaacute apresenta a implicaccedilatildeo da princesa na sina da famiacutelia

ou seja ela nasceu para ocupar o lugar de um familiar ou para velar um familiar De que lugar

se fala aqui O lugar da morte

Eacutedipo natildeo deveria ter nascido pois foi recomendado a Laio que natildeo tivesse filhos

Mesmo assim ainda que soubessem da recomendaccedilatildeo do oraacuteculo Laio e Jocasta o

desobedeceram e Eacutedipo foi originado na transgressatildeo de um interdito Toda a famiacutelia carrega

esse signo de negaccedilatildeo da lei pois cada um de seus frutos natildeo deveria ter nascido Mas que lei

eacute esta que a famiacutelia tenta burlar ao longo das geraccedilotildees Talvez a lei divina que Antiacutegona honra

Dessa forma tambeacutem Antiacutegona natildeo deveria ter nascido mas nasceu Ela cumpre o conselho

que o oraacuteculo de Delfos deu ao avocirc pois natildeo se casou e natildeo teve filhos e enfatiza tal sacrifiacutecio

em seus lamentos finais Aleacutem disso o que se pode dizer Como isso ressoa em sua histoacuteria

23 Antiacutegona heroiacutena traacutegica da eacutetica da psicanaacutelise

[] um leito nupcial jamais terei nem ouvirei hinos de bodas nem sentirei as alegrias conjugais nem filhos amamentarei hoje sozinha

102

sem nenhum amigo parto ndash ai infeliz de mim ndash ainda viva para onde os mortos moram (Antiacutegona vv 1021-1026)

Em seu seminaacuterio A eacutetica da psicanaacutelise Lacan (1959-19601997) a exemplo de Freud

recorre agrave trageacutedia grega para enunciar o que se articula como eacutetica psicanaliacutetica a qual estaacute

sustentada pela noccedilatildeo de que o sujeito para viver sua vida com suas escolhas pode ceder de

qualquer fonte de que dispor soacute natildeo pode ceder de seu proacuteprio desejo

Nesse sentido Lacan elege Antiacutegona filha de Eacutedipo a heroiacutena da eacutetica cuja histoacuteria

visita na versatildeo homocircnima de Soacutefocles Patrick Guyomard (1996) em seu livro O gozo do

traacutegico realiza uma leitura do seminaacuterio de Lacan sobre a eacutetica e oferece tambeacutem a dimensatildeo

do desejo em Antiacutegona em que aponta as caracteriacutesticas que fazem com que a heroiacutena adentre

o universo do traacutegico

Sua irredutibilidade sua coragem diante da morte seu desafio em favor de uma causa que lhe eacute vital sua lucidez diante das condiccedilotildees de sua vida que ela natildeo pode salvar ao preccedilo da perda de suas razotildees de viver tudo isso satildeo traccedilos essenciais a qualquer eacutetica do desejo (GUYOMARD 1996 p 21)

A fim de buscar elementos que nos ajudem a pensar a questatildeo dos limites e

possibilidades no cenaacuterio da educaccedilatildeo escolar vamos conhecer a histoacuteria de Antiacutegona heroiacutena

que inspira o trabalho de Lacan sobre a eacutetica da psicanaacutelise

Soacutefocles em Antiacutegona uacuteltima parte da trilogia tebana apresenta inicialmente um

diaacutelogo entre Antiacutegona e Ismene filhas de Eacutedipo e Jocasta em que narram os uacuteltimos

acontecimentos Seus dois irmatildeos Eteacuteocles e Polinices acabam por matar um ao outro na

disputa pelo trono de Tebas Com a morte dos dois eacute o seu tio Creonte que assume o reinado

Creonte confere um sepultamento digno a Eteacuteocles pois ele era o rei de Tebas mas proiacutebe sob

pena de morte o enterro de Polinices pois ele cometeu um atentado contra o governo ao matar

o rei seu proacuteprio irmatildeo Proclama Creonte

[] fique insepulto o seu cadaacutever e o devorem catildees e aves carniceiras em nojenta cena Satildeo estes os meus sentimentos e jamais concederei aos homens vis maiores honras que as merecidas tatildeo somente pelos justos Soacute quem quiser o bem de Tebas haacute de ter a minha estima em vida e mesmo apoacutes a morte

103

(Antiacutegona vv 235-241)

Ao edito de Creonte o corifeu responde ldquo[] tens o poder ndash eu reconheccedilo ndash para impor

a lei de tua escolha seja em relaccedilatildeo aos mortos seja a noacutes que ainda estamos vivosrdquo (Antiacutegona

vv 244-246)

Antiacutegona se recusa a se submeter agraves leis do Estado pois vatildeo contra as leis divinas

Sabendo que iraacute pagar com a proacutepria vida enterra seu irmatildeo Polinices com as proacuteprias matildeos e

natildeo nega sua accedilatildeo quando descoberta Em diaacutelogo com Creonte lembra a ele das leis natildeo

escritas aquelas que os regem desde os tempos mais remotos ou seja natildeo se deve negar enterro

a um corpo natildeo importando quem seja Desafiado por Antiacutegona sua sobrinha questionado

pelo coro enfrentado pelo filho Hecircmon Creonte insiste em imprimir agrave princesa um destino

terriacutevel o emparedamento ainda viva numa caverna fora da cidade

Tireacutesias o saacutebio cego diz a Creonte que a cidade de Tebas estaacute amaldiccediloada pela carniccedila

espalhada por catildees e aves e pode perder a proteccedilatildeo dos deuses caso o rei natildeo volte atraacutes de sua

decisatildeo Dessa forma Creonte vai com seus guardas soltar Antiacutegona Um mensageiro anuncia

ao coro o suiciacutedio de Hecircmon noivo de Antiacutegona que jazia abraccedilado ao corpo pendente da

princesa estrangulada com um laccedilo de seu vestido Ao saber do filho morto Euriacutedice retorna

ao palaacutecio para cometer sua morte

Ao fim Creonte carrega o corpo do filho e vecirc o corpo da mulher Deseja a proacutepria

morte mas natildeo eacute esse seu destino A fala que encerra a trageacutedia eacute do coro que ensina sobre a

prudecircncia das palavras

231 Aacutetē Omos Mecircrima

Lacan aponta que Antiacutegona eacute levada por uma paixatildeo pois sua accedilatildeo natildeo eacute simplesmente

defender o direito sagrado do morto e de sua famiacutelia e muito menos se justifica por uma suposta

santidade De acordo com o autor existe uma palavra no texto da trageacutedia que se repete vinte

vezes aacutetē ou ldquoo limite que a vida humana natildeo poderia transpor por muito tempordquo (LACAN

1959-19601997 p 318) e eacute justamente onde Antiacutegona deseja estar ou seja o lugar que deve

ocupar por destino desde o seu nascimento

Ela natildeo suporta viver sob as leis de Creonte sob as leis do homem pois tem algo de

desumano em sua conduta Para Lacan esse caraacuteter desumano fica claro toma forma no

104

tratamento que dirige agrave irmatilde Ismene que interroga a decisatildeo de Antiacutegona de enterrar o irmatildeo

das duas jaacute que a conduta da heroiacutena eacute romper a ligaccedilatildeo com a irmatilde tomaacute-la por inimiga e natildeo

a querer mais ainda que volte atraacutes no que disse Mesmo quando Ismene quer acompanhar o

destino de Antiacutegona esse rompimento se manteacutem pois esta a trata com desprezo O coro utiliza

a palavra omos para referir-se agrave heroiacutena que pode significar inflexiacutevel e que Lacan diz ser

literalmente cru ou natildeo civilizado ldquoQue Antiacutegona saia deste modo dos limites humanos o que

isso quer dizer para noacutes ndash senatildeo que seu desejo visa precisamente isto ndash para aleacutem da Ateacuterdquo3

(LACAN 1959-19601997 p 319)

Oliveira (2007 p 63) se ocupa em investigar a palavra aacutetē repetida tantas vezes na

trageacutedia de Antiacutegona

Como traduzir essa palavra intraduziacutevel O dicionaacuterio diz ldquoflagelo enviado pelos deuses particularmente cegueira do espiacuterito desvario loucura ruiacutena infelicidade pesterdquo Como nome proacuteprio Aacutete eacute a Fatalidade a deusa do infortuacutenio O substantivo aacutete estaacute por sua vez relacionado ao verbo aaacuteo que quer dizer ldquoperturbar o espiacuterito abater de vertigem e de loucura ter o espiacuterito desvairado e abater com uma calamidade causar um infortuacuteniordquo

Parece existir uma tendecircncia a relacionar a palavra aacutetē com erro ou hamartia cometido

quando a pessoa estaacute tomada pela loucura ou como resultado do erro levando o indiviacuteduo agrave

ruiacutena e ao infortuacutenio Essa eacute a visatildeo que Aristoacuteteles aponta de acordo com Oliveira (2007) No

entanto segundo o autor Lacan natildeo toma a aacutetē como hamartia e discorda do argumento de

Aristoacuteteles

Para Lacan (1959-19601997) a aacutetē natildeo pode se referir a um erro cometido por um

sujeito jaacute que se encontra num campo aleacutem de suas possibilidades no que concerne ao campo

do Outro A aacutetē eacute um vazio que resta no sujeito de sua relaccedilatildeo com o Outro ou seja refere-se

ao que resta do Outro na emergecircncia do sujeito Hamartia para o autor eacute o que ocorre a

Creonte que natildeo eacute o heroacutei da peccedila ao querer fazer valer uma lei para todos a lei da cidade

Com seu erro traacutegico comete um transbordamento de limites de outro tipo A aacutetē diz respeito

a um limite que separa o sujeito do Outro

3 A ediccedilatildeo brasileira do seminaacuterio A eacutetica da psicanaacutelise traz a forma Ateacute para referir-se ao termo grego Ἄτη (Aacutetē) Trata-se de uma variaccedilatildeo de ἄτη (aacutetē) que consta no texto original de Soacutefocles (fonte httpwwwperseustuftsedu) Ver na sequecircncia o comentaacuterio de Oliveira (2007) sobre a traduccedilatildeo dessas palavras

105

Ao se aproximar da aacutetē do limite deste lugar aleacutem do humano Antiacutegona entra numa

cadeia que corre em cascata e o que estaacute no fundo eacute um meacuterimna uma palavra designada por

Lacan (1959-19601997) como algo ambiacuteguo que estaacute entre o objetivo e o subjetivo o que

permite pensar no meacuterimna como significante da cadeia como a desgraccedila da famiacutelia de

Antiacutegona como a maldiccedilatildeo dos Labdaacutecidas lanccedilada e relanccedilada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo

Dessa maneia o que impulsiona a heroiacutena para as fronteiras da aacutetē eacute o meacuterimna de sua

famiacutelia Antiacutegona toma o lugar de seus antepassados sendo esse lugar a proacutepria aacutetē o limite

humano que deseja ultrapassar fronteira entre a vida e a morte Seu desejo de morrer eacute

impulsionado pelo meacuterimna que a conduz agrave morte ao destino de seus familiares com exceccedilatildeo

da traidora Ismene Para ela a interpretaccedilatildeo do meacuterimna familiar parece ser menos fatal

Sobre a etimologia do nome Antiacutegona que podemos designar como ldquonascida no lugar

derdquo ainda questionamos Antiacutegona veio ao mundo substituindo o quecirc Nasceu no lugar de

quem Ela parece carregar a proacutepria condiccedilatildeo de nascer no lugar de algo de substituir algueacutem

de ocupar um lugar Eacute como se em suas accedilotildees ela tomasse para si a responsabilidade do meacuterimna

de sua famiacutelia como se a sua funccedilatildeo no mundo fosse essa a de promover o desenlace do

meacuterimna conforme demonstra em seus lamentos finais

[] Ah Horrores do taacutelamo materno Ah Teus abraccedilos incestuosos minha matildee com o pai de quem nasci Como sou infeliz E para eles vou assim maldita sem ter chegado agraves bodas Meu irmatildeo infortunado Que uniatildeo a nossa Transformas-me morrendo em morta viva (Antiacutegona vv 961-961)

Prestes a morrer no lugar intransponiacutevel ao qual ela se prende a aacutetē Antiacutegona se lembra

de sua origem incestuosa e sugere ir para o mesmo caminho dos pais ao sugerir uma uniatildeo

incestuosa com o irmatildeo Torna-se uma morta-viva ao ocupar este lugar entre vida e morte ao

doar-se como o limite que pode promover essa separaccedilatildeo entre vida e morte Justamente essa

barreira que foi negada desde o princiacutepio aos Labdaacutecidas Nasceram sob o interdito de jamais

existirem Eacutedipo que natildeo deveria ter nascido simplesmente desaparece Natildeo ter sepultura eacute

uma forma de apagar o seu nascimento Polinices natildeo ganha o direito de ser enterrado Ao

106

contraacuterio do corpo de Eacutedipo objeto miacutestico o corpo de Polinices fica exposto em sua crueza

de carne abjeto

Dessa forma o limite entre vida e morte fica confuso e eacute essa barreira que Antiacutegona

busca fazer com o miacutenimo que lhe resta com a univocidade de sua metaacutefora com seu corpo e

com sua morte Garantir o passado a histoacuteria da famiacutelia com um presente fatal Garantir o

direito de existecircncia da famiacutelia mesmo em sua negatividade Garantir a vida da famiacutelia com a

sua morte

Em que Antiacutegona se diferencia de seus familiares ao mesmo passo que se alia a eles

Em vez de fugir de seu destino das profecias do oraacuteculo do mandamento das divindades

Antiacutegona encara sua sina deseja-a Confere sepultamento ao irmatildeo criminoso selando natildeo

apenas o fim deste mas o fim do proacuteprio Eacutedipo a quem foi negada num primeiro momento a

sepultura em Tebas Assume o enterro do irmatildeo como de sua responsabilidade acolhendo

dando um lugar em sua existecircncia ao fado familiar

Nesse sentido entendemos que Lacan (1959-19601997) situa Antiacutegona no lugar ex

nihilo zona limite da linguagem a partir da qual acontece a criaccedilatildeo A expressatildeo atribui-se a

ldquodo nadardquo vazio e para o psicanalista haacute uma correspondecircncia entre a modelaccedilatildeo significante

o que fazemos com os significantes que nos marcam como sujeitos e a criaccedilatildeo ex nihilo ldquoa

introduccedilatildeo no real de uma hiacircncia de um furordquo (LACAN 1959-19601997 p 153)

Antiacutegona se apresenta como autocircnomos pura e simples relaccedilatildeo do ser humano com

aquilo que ocorre de ele ser miraculosamente portador ou seja do corte significante que lhe

confere o poder intransponiacutevel de ser o que eacute contra tudo e contra todos (LACAN 1959-

19601997)

Guyomard (1996 p 31) aponta que ela ldquoeacute autoacutenomos ela que daacute a si mesma a lei de

sua fidelidade agrave famiacutelia e aceita sofrer-lhe os efeitosrdquo De acordo com Vieira (2010) Antiacutegona

natildeo tem pretensatildeo alguma de se manter viva mas de sustentar a sobrevida de seu ideal de

conduta de sua eacutetica ldquo[] a morte natildeo significa impossibilidade mas necessidade natildeo

simboliza o final da vida mas seu coroamentordquo (VIEIRA 2010 p 157) Ou seja Antiacutegona

preserva o significante uacuteltimo de sua eacutetica que faz valer sua proacutepria passagem pelo mundo

nem que para isso precise morrer A morte para ela natildeo eacute o limite mas seu limite eacute o seu

significante eacutetico

107

Sem fugir agraves consequecircncias de seu ato de enterrar o irmatildeo (diga-se de passagem duas

vezes) Antiacutegona assume a Creonte increacutedulo da desobediecircncia da sobrinha ser a criminosa

desafiadora da lei ldquoFui eu a autora Digo e nunca negariardquo (Antiacutegona v 503)

232 Desejo do Outro primordial e castraccedilatildeo

O desejo da matildee o texto faz a ele alusatildeo eacute a origem de tudo O desejo da matildee eacute o desejo fundador de toda a estrutura aquele que fez vir agrave luz seus rebentos uacutenicos Eteocleacutes Polinices Antiacutegona e Ismene mas ao mesmo tempo eacute um desejo criminoso [] Nenhuma mediccedilatildeo eacute aqui possiacutevel a natildeo ser esse desejo seu caraacuteter radicalmente destruidor A descendecircncia da uniatildeo incestuosa se desdobrou em dois irmatildeos um que representa o poderio o outro que representa o crime Natildeo haacute ningueacutem para assumir o crime e a validade do crime senatildeo Antiacutegona Entre os dois Antiacutegona escolhe ser pura e simplesmente a guardiatilde do ser criminoso como tal [] Eacute na medida em que a comunidade se recusa a isso [perdoar] que Antiacutegona deve fazer o sacrifiacutecio de seu ser para a manutenccedilatildeo desse ser essencial que eacute a Ateacute familiar ndash motivo eixo verdadeiro em torno do qual gira toda essa trageacutedia Antiacutegona perpetua eterniza imortaliza essa Ateacute (LACAN 1959-19601997 p 342)

A condiccedilatildeo de Antiacutegona ser como eacute o lugar que lhe cabe na linhagem familiar deve-se

ao desejo destruidor do Outro primordial Jocasta Parece ser isso que Lacan tenta propor jaacute

que entende que o desejo da matildee eacute criminoso e destrutivo responsaacutevel por ter gerado filhos

criminosos cabendo ao desejo puro de Antiacutegona a condiccedilatildeo de zelar fielmente a aacutetē familiar

Eacute Guyomard (1996) quem constroacutei uma criacutetica ao argumento de Lacan pois acredita

que Jocasta natildeo pode carregar em seus ombros sozinha a culpa do desejo desmedido de seus

filhos soacute pelo fato de ser a matildee o Outro primordial Como se os pais Laio e Eacutedipo natildeo tivessem

nada a ver com os crimes da famiacutelia e fossem apenas viacutetimas de uma mulher-matildee terriacutevel De

acordo com a tese de Lacan supomos que Antiacutegona sacrifica-se morre em decorrecircncia do

desejo materno incestuoso ao qual se alia purificando seu ser num eterno zelo pelo corpo do

irmatildeo

Acreditamos que haacute outro aspecto a ser pensado nessa passagem de Lacan que diz

respeito agraves inscriccedilotildees significantes que possibilitariam Antiacutegona construir um caminho outro

para a sua vida uma medida uma inflexatildeo ao desejo do Outro primordial Natildeo haacute realmente

nada em seu ato que possa vir a constituir uma medida uma funccedilatildeo simboacutelica ao puro desejo

materno por meio da constituiccedilatildeo da falta

108

Guyomard (1996) aborda essa questatildeo ao propor pensarmos na diferenccedila entre o desejo

de Antiacutegona (o qual para Lacan eacute puro desejo materno) e a operaccedilatildeo de castraccedilatildeo operaccedilatildeo esta

que junto agrave frustraccedilatildeo e agrave privaccedilatildeo concede ao sujeito uma condiccedilatildeo desejante marcada pela

falta Para o autor eacute fundamental

[] saber se se trata de seu desejo ou de sua castraccedilatildeo da afirmaccedilatildeo de sua onipotecircncia aleacutem da morte ou do reconhecimento de seus limites Essa diferenccedila eacute essencial O desejo puro realmente remete agrave castraccedilatildeo pensada como puro corte o puro poder de dizer natildeo de Antiacutegona [] como saber se o poder da recusa o natildeo do sujeito eacute ele mesmo aceitaccedilatildeo ou recusa da castraccedilatildeo (de um limite para seus desejos) Seraacute que Antiacutegona apoia sua recusa na aceitaccedilatildeo ou na recusa de sua castraccedilatildeo (GUYOMARD 1996 p 16-17)

A recusa de que Guyomard fala eacute a recusa do interdito de Creonte Sendo assim sua

questatildeo eacute provavelmente quanto ao valor da lei proposta pelo rei para Antiacutegona como tal

interdito se compotildee no ato de Antiacutegona Pensamos que se trata de uma aceitaccedilatildeo de algo que

poderia cumprir a funccedilatildeo da castraccedilatildeo na medida em que no ato de recusar a lei de Creonte

enterrando o irmatildeo Antiacutegona estipula qual a lei que ela segue a lei divina anterior agrave proibiccedilatildeo

de Creonte Eacute essa lei que a constitui como sujeito de desejo e sujeito de linguagem na tentativa

de demarcar a diferenccedila entre vida e morte o traccedilado entre a vida e a morte Eacute a essa lei que ela

se dobra No entanto acreditamos que natildeo haacute limite para seu desejo em seu ato ela se lanccedila a

um destino mortiacutefero de reencontro com o vazio de sua constituiccedilatildeo de reencontro com seus

familiares Deseja esse destino natildeo recua diante dele mas ainda assim experimenta anguacutestia

Ao final acaba por lamentar sua proacutepria morte mas a aceita natildeo foge dela Toma-a como uma

vantagem Desse modo diz a Creonte

[] Eu jaacute sabia que teria de morrer (e como natildeo) antes ateacute de o proclamares Mas se me leva a morte prematuramente Digo que para mim soacute haacute vantagem nisso Assim cercada de infortuacutenios como vivo A morte natildeo seria entatildeo uma vantagem (Antiacutegona vv 524-530)

109

Sabe que um dia iraacute morrer sabe que sua vida e de seus familiares estaacute desgraccedilada para

sempre e nesse sentido escolhe um motivo para morrer Faz de seu ato um ato simboacutelico ao

escolher morrer por algo por alguma coisa Doa-se completamente a isso

No seminaacuterio 10 chamado A anguacutestia em que Lacan (1962-19632005) trabalha esse

conceito fundamental motor da cliacutenica psicanaliacutetica o psicanalista fala da relaccedilatildeo do sujeito

neuroacutetico com a anguacutestia de castraccedilatildeo Ele nos diz que aquilo do qual o neuroacutetico recua natildeo eacute

a castraccedilatildeo mas fazer de sua castraccedilatildeo aquilo que preencheria a falta do Outro ceder uma parte

positivada de si como forma de garantir o Outro Chega a esta formulaccedilatildeo a partir do que Freud

diz sobre a cliacutenica que o ponto intransponiacutevel o ponto de chegada da elaboraccedilatildeo da experiecircncia

do neuroacutetico eacute a anguacutestia de castraccedilatildeo

No entanto Lacan acredita que o limite eacute mais aleacutem do ponto situado por Freud

Dedicar sua castraccedilatildeo agrave garantia do Outro eacute diante disso que o neuroacutetico se deteacutem Ele se deteacutem aiacute por uma razatildeo como que interna agrave anaacutelise e que decorre de que eacute a anaacutelise que o leva a esse encontro A castraccedilatildeo no fim das contas nada mais eacute que o momento da interpretaccedilatildeo da castraccedilatildeo (LACAN 1962-19632005 p 56)

Lembramos aqui que a castraccedilatildeo eacute uma das operaccedilotildees que constituem o sujeito como

ldquoem-faltardquo sendo uma operaccedilatildeo que implica uma perda de uma parte de si para o Outro O que

o sujeito perde eacute a miragem de uma relaccedilatildeo totalizada com a dimensatildeo primordial do Outro

representada por quem exerce a funccedilatildeo materna ou seja o que ele perde eacute justamente ser aquilo

capaz de preencher a falta deste Outro

Na castraccedilatildeo pode-se dizer ele perde a identificaccedilatildeo a uma dimensatildeo objetal

assumindo uma dimensatildeo subjetiva Isso ocorre porque resta uma potecircncia que lanccedila o sujeito

para fora dessa relaccedilatildeo o significante da falta que ele passa a situar numa alteridade simboacutelica

natildeo mais ocupada pela matildee mas pela linguagem pela cultura O sujeito neuroacutetico natildeo deseja

mais ser o objeto que pode completar o Outro mas ter ou natildeo ter esse objeto capaz de

causarcompletar a falta no Outro A dimensatildeo da alteridade precisa permanecer faltante falta

esta realizada pelo sujeito que busca completaacute-la de alguma forma nunca totalmente com os

objetos de que dispotildee ou de que natildeo dispotildee Se a falta for totalmente preenchida o sujeito se

flagra a si mesmo como fixado em uma dimensatildeo totalmente objetal Em vez de doar uma parte

de si uma cessatildeo de objeto ele doa-se por inteiro e da relaccedilatildeo com a alteridade nada resta para

que ele siga desejante percorrendo e produzindo-se em uma cadeia simboacutelica

110

O sujeito para desejar precisa manter o falo como significante da falta do Outro com

o qual pode inventar uma diversidade de representaccedilotildees Nesse sentido seu limite estaacute para

aleacutem da operaccedilatildeo da castraccedilatildeo na medida em que desta operaccedilatildeo natildeo decorra advir como puro

objeto que obtura a falta do Outro o que colocaria em questatildeo ateacute mesmo a sustentaccedilatildeo da

diferenccedila mas advir sempre como sujeito desejante para aleacutem do gozo do Outro

Dessa maneira questionamos o que faz com que Antiacutegona seja a heroiacutena traacutegica que a

psicanaacutelise recupera ao pensar a eacutetica considerando que ela doa seu corpo sua proacutepria vida

falece em nome da garantia do Outro um lugar ocupado pelos deuses gregos O trabalho da

cliacutenica psicanaliacutetica pode ocorrer no sentido de conduzir o sujeito a esse enfrentamento

experimentado natildeo sem anguacutestia de averiguar quais satildeo os contornos que conformam seu

desejo ao que responde sua castraccedilatildeo com o que ou como ele paga a diacutevida simboacutelica de sua

existecircncia Para Lacan o sujeito pode pagar com o que for uma cessatildeo de si de algo de si de

seu gozo soacute natildeo pode pagar com o seu proacuteprio desejo ldquoA uacutenica coisa da qual se pode ser

culpado eacute de ter cedido de seu desejordquo (LACAN 1959-19601997 p 385) Pois pensamos que

a sua condiccedilatildeo desejante eacute a uacutenica coisa que o sujeito realmente pode ter Desse modo o puro

desejo de Antiacutegona eacute a uacutenica coisa que permanece com ela ateacute o fim Ela perde sua vida seu

futuro um casamento alegrias conjugais os filhos e Ismene sua irmatilde mas natildeo perde tudo

pois sustenta seu desejo e com ele vai ateacute a morte atravessa a fronteira entre vida e morte a

aacutetē

Talvez a personagem Antiacutegona mostre para noacutes a dimensatildeo paradoxal inerente a essa

relaccedilatildeo do sujeito com o Outro O que eacute da ordem subjetiva o que eacute da ordem objetal na medida

em que em verdade inventamos o que o Outro supostamente desejaria de noacutes e decidimos o

quanto respondemos ou natildeo a tal demanda Antiacutegona nos diz que natildeo tem nada a perder pois

em sua vida cheia de infortuacutenios a morte se inscreveria como vantagem A morte para noacutes

meros leitores espectadores da cena eacute a perda de tudo eacute mergulho na radicalidade do ser

objetal Talvez para Ismene para Creonte para os demais cidadatildeos tebanos tambeacutem Para

Antiacutegona morte eacute ganho torna-se radicalmente um ganho subjetivo

111

233 Antiacutegona ex nihilo e as leis natildeo escritas

A accedilatildeo traacutegica de Antiacutegona para Lacan (1959-19601997) ocupa um lugar limite lugar

de antecipaccedilatildeo da morte da experiecircncia da proacutepria morte em vida O espectador testemunha ao

mesmo tempo que eacute conduzido a uma travessia neste lugar que situa os limites do simboacutelico

Dessa maneira Antiacutegona situa-se num lugar ex nihilo ou seja com sua accedilatildeo de enterrar

Polinices a heroiacutena vai ao limite da linguagem atribuindo ateacute as uacuteltimas consequecircncias valor

ao significante irmatildeo que impera sobre tudo o que ele possa ter feito pelo bem ou pelo mal E

desse lugar no belo enfrentamento de Antiacutegona contra as leis de Creonte ela diz

Mas Zeus natildeo foi o arauto delas para mim nem essas leis satildeo as ditadas entre os homens pela Justiccedila companheira de morada dos deuses infernais e natildeo me pareceu que tuas determinaccedilotildees tivessem forccedila para impor aos mortais ateacute a obrigaccedilatildeo de transgredir normas divinas natildeo escritas inevitaacuteveis natildeo eacute de hoje natildeo eacute de ontem eacute desde os tempos mais remotos que elas vigem sem que ningueacutem possa dizer quando surgiram (Antiacutegona 511-520)

De que leis Antiacutegona fala aqui construindo uma arguiccedilatildeo alternativa agrave imposiccedilatildeo de

Creonte Satildeo leis de tempos remotos anteriores ao bem que o rei quer para a cidade Satildeo leis

aleacutem do bem natildeo escritas mas que se fazem presentes entre os cidadatildeos Em seu livro Antiacutegona

e a eacutetica traacutegica da psicanaacutelise Ingrid Vorsatz (2013) nos diz que as leis natildeo escritas nomina

diferenciavam-se da lei escrita nomos As nomina dependem da accedilatildeo de cada indiviacuteduo do

quanto cada um consegue inscrever em ato as leis natildeo escritas que segue Apenas por adesatildeo

singular as nomina podem ter validade Isso vale tambeacutem para as imposiccedilotildees divinas As

verdades dos deuses gregos soacute tecircm valor no momento em que um cidadatildeo escolher segui-las

em ato

As leis natildeo escritas nomina satildeo aquelas que vigem desde os tempos imemoriais e sua validade reside exclusivamente na forccedila de sua enunciaccedilatildeo a despeito de sua origem divina Sua incidecircncia eacute real ela ex-siste eacute exterior ao mundo humano que por sua vez se constitui na e atraveacutes da submissatildeo a essas leis Para que tenha validade a lei natildeo escrita convoca o ato singular

112

de cada um ndash no caso da heroiacutena traacutegica ndash a cada vez (VORSATZ 2013 p 114)

Jaacute o nomos a escrita da lei surge de uma necessidade de organizaccedilatildeo da poacutelis numa

tentativa de registrar a legislaccedilatildeo divina Uma vez escrita a lei dispensaria a escolha individual

para adquirir validade e deveria ser respeitada por todos sem exceccedilatildeo pelo bem comum

Vorsatz (2013) argumenta que o universo em que a trageacutedia se estabelece natildeo eacute ainda

o conhecido acircmbito da filosofia acessiacutevel ao nosso modo de organizaccedilatildeo contemporacircneo que

se faz com a razatildeo e o conhecimento em que o indiviacuteduo eacute senhor em sua proacutepria casa Esse

modo de vida comeccedila a se desenvolver na histoacuteria da humanidade no seacuteculo IV antes de Cristo

que corresponde ao surgimento da democracia com o ideal de bem para todos Na trageacutedia natildeo

satildeo motivaccedilotildees racionais e de algum sistema de conhecimento que sustentam a vida dos

homens

A trageacutedia antiga que surgiu e se dissipou ao longo do seacuteculo V antes de Cristo situa-

se no mundo dos deuses gregos e sendo assim a palavra tomada pelo heroacutei traacutegico leva em

consideraccedilatildeo a alteridade divina Para Vorsatz (2013 p 22) ldquoo heroacutei traacutegico determinado pelo

campo real dos deuses dele se extrai por intermeacutedio de seu atordquo Assim o heroacutei surge no

momento em que com sua accedilatildeo garante a presenccedila e a ordem divina Poreacutem sua accedilatildeo implica

sua proacutepria perda

Antiacutegona garante no ato de enterrar Polinices com suas proacuteprias matildeos o lugar das leis

natildeo escritas da Justiccedila companheira dos deuses de baixo da terra como se estivessem na origem

de sua escolha Em seguida mostra-se responsaacutevel pelas consequecircncias de seu ato que implica

a proacutepria morte Com seu ato e com suas palavras Antiacutegona move o Aqueronte

Eacute importante entender que o ato de Antiacutegona aleacutem de corresponder ao seu desejo

inscreve-se numa tradiccedilatildeo grega de entregar os corpos ao mundo dos deuses de baixo Para

fazecirc-lo em respeito e honra aos deuses os corpos passam por um ritual de purificaccedilatildeo as

libaccedilotildees fuacutenebres Aleacutem disso os corpos precisam de sepultura para que possa ocorrer um

esquecimento jaacute que ldquoas almas errantes se transformariam em fantasmas que perseguiriam os

vivosrdquo (VORSATZ 2013 p 64)

Natildeo permitir as honras fuacutenebres e o sepultamento de Polinices eacute uma desmedida de

Creonte ldquoA mutilaccedilatildeo do corpo aleacutem de enfraquecer o espiacuterito do morto atinge gravemente a

honra da estirpe O sepultamento eacute um dever sagrado que faz o morto descer ao Hades onde

ele se torna um numen (espiacuterito ou gecircnio) protetor da linhagemrdquo (VORSATZ 2013 p 64)

113

A purificaccedilatildeo do corpo e o seu enterro correspondem desse modo a uma operaccedilatildeo

simboacutelica que permite estabelecer uma separaccedilatildeo entre os vivos e os mortos Antiacutegona age em

funccedilatildeo da morte simboacutelica de Polinices no entanto as honras fuacutenebres que concede a ele

levam-na agrave sua proacutepria morte simboacutelica ao ponto extremo onde a vida alcanccedila a morte Presa

entre duas mortes conforme define Lacan

Vorsatz (2013 p 67) aponta que Creonte

em seu afatilde legiferante faz com que as funccedilotildees e os lugares sejam subvertidos os vivos satildeo enterrados os mortos jazem insepultos A situaccedilatildeo resulta no chaos a proacutepria natureza desordenou-se e a ordem coacutesmica tatildeo cara ao grego antigo foi revirada pelo avesso A sentenccedila do soberano sobre o ato de Antiacutegona apenas redobra a anterior a proibiccedilatildeo do sepultamento de Polinices este condenado a apodrecer entre os vivos aquela a viver entre os mortos

De acordo com a autora Creonte natildeo ordena a morte de Antiacutegona conforme havia

prometido ao traidor do decreto Natildeo esperava ele que a pessoa a trair seria ela sua sobrinha

sangue de seu sangue Temendo a revolta dos deuses decide pelo seu emparedamento viva A

morte seria uma consequecircncia pela qual ele natildeo quer se responsabilizar

O destino traacutegico de Antiacutegona eacute o de seu corpo no lugar do corpo do irmatildeo Ela aparece

como carne como morta embora viva O que mais ela consegue realizar ainda que

simbolicamente Como jaacute mencionado em Eacutedipo em Colono trageacutedia que antecede Antiacutegona

Eacutedipo eacute enterrado por Teseu em lugar desconhecido seu corpo natildeo pertence a lugar nenhum

natildeo protege a sua linhagem Antiacutegona e a irmatilde Ismene fazem os rituais de purificaccedilatildeo poreacutem

satildeo impedidas de ver e de saber sobre o local da sepultura

Antiacutegona ao dizer os motivos pelos quais enterra Polinices afirma

[] Se houvera sido matildee de filhos ou se o esposo morto apodrecesse exposto jamais enfrentaria eu tamanhas penas tendo de opor-me a todos os concidadatildeos Que leis me fazem pronunciar estas palavras Fosse eu casada e meu esposo falecesse bem poderia encontrar outro e de outro esposo teria um filho se antes perdesse algum mas morta minha matildee morto meu pai jamais outro irmatildeo meu viria ao mundo (Antiacutegona vv 1008-1017)

114

Para Guyomard (1996) Antiacutegona ao enterrar o irmatildeo o uacutenico que lhe resta estaacute

honrando tambeacutem algo que diz respeito agrave sua proacutepria condiccedilatildeo de ter nascido do incesto ldquoA

questatildeo de Antiacutegona eacute que essa unicidade inclui o incesto Um incesto que a fez nascer ndash sem

metaacutefora ndash e que a faz morrer Ela coloca tragicamente a questatildeo da confusatildeo entre a vida e a

morte como entre a lei e o incestordquo (GUYOMARD 1996 p 32)

Como o autor aponta Antiacutegona conhece apenas uma metaacutefora pura que a conduz agrave

morte Eacute tambeacutem o que a faz ver em Polinices a unicidade de ser um irmatildeo o que a faz por

outro lado tomar-se na unicidade de ser uma irmatilde De acordo com Guyomard (1996 p 31)

[] a unicidade do irmatildeo morto converte-se na relaccedilatildeo pura (isto eacute esvaziada de qualquer outro interesse) de Antiacutegona com o que faz dela um sujeito falante ela se identifica com o corte da linguagem ndash a partir desse nada para onde retorna ndash sendo apenas a irmatilde de seu irmatildeo

Dessa maneira podemos depreender disso que o lugar do irmatildeo morto eacute o lugar do

desejo de Antiacutegona O desejo que se revela no cadaacutever de Polinices De acordo com Lacan

(1959-19601997) o valor do ser irmatildeo se torna um valor de linguagem que acaba por mostrar

o corte instaurado em Antiacutegona o corte de linguagem o limite o ex nihilo em que ela fica

presa

Jamais outro irmatildeo de Antiacutegona viria ao mundo estando seu pai Eacutedipo e sua matildee Jocasta

mortos Eacute importante lembrar que Eacutedipo aleacutem de pai eacute tambeacutem irmatildeo de Antiacutegona e nessa

medida ao enterrar Polinices podemos entender que ela enterra tambeacutem o que resta de irmatildeo

em Eacutedipo

Nesse sentido Eacutedipo e Polinices parecem estar ligados por um significado oculto que

diz respeito a ambos serem irmatildeos de Antiacutegona Outra ligaccedilatildeo possiacutevel eacute o dever de enterrar

Eacutedipo (corpo que some subtraiacutedo) deslocado ao dever de enterrar Polinices (corpo exposto

que aparece em demasia) Nessa relaccedilatildeo ela manteacutem a metoniacutemia de seu desejo ateacute as uacuteltimas

consequecircncias apontando o que sustenta essa relaccedilatildeo as leis divinas Os termos morfoloacutegicos

que constituem o nome Antiacutegona em grego ἀντί e γονή aludem agrave funccedilatildeo da metaacutefora a

condiccedilatildeo de substituir uma coisa por outra tomar o lugar de algum familiar nascer no lugar de

algo ou alguma coisa O ato com o qual se afirma como sujeito ao mesmo tempo que se coloca

em perda ou seja o ato de enterrar o irmatildeo ao lembrar das leis natildeo escritas como dissemos

ocorre por meio da tentativa de garantir simbolicamente o enterro de Eacutedipo pelo enterro de

Polinices

115

Contudo como consequecircncia de seu ato Antiacutegona se torna a proacutepria coisa que substitui

o irmatildeo morto eacute enterrada como cadaacutever sem secirc-lo eacute tomada como morta sem secirc-lo sem que

nada reste como diferenccedila como qualquer outra coisa torna-se totalmente metaacutefora Puro corte

significante pura metaacutefora Doa-se como parte fundamental da constituiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo

simboacutelica capaz de marcar a diferenccedila entre dois mundos o mundo dos vivos e o mundo dos

mortos o mundo dos humanos e o mundo dos deuses No entanto Creonte provoca nova

confusatildeo ao natildeo permitir o enterro de um morto e ao ordenar o enterro de uma pessoa viva

A proacutepria trageacutedia grega para Kathrin Rosenfield (2000) eacute uma arte que se apresenta

como metaacutefora quer dizer representaccedilatildeo Eacute um lugar de passagem entre lugares irredutiacuteveis

um ao outro a natureza e a cultura

Enquanto metaacutefora de uma intuiccedilatildeo intelectual a trageacutedia potildee em cena a passagem ndash o meio (termo) indefinido e insuperaacutevel ndash entre mundo estranhos entre si e que satildeo ao mesmo tempo figuras de niacuteveis distintos do entendimento e da razatildeo Nesta perspectiva a trageacutedia eacute inteiramente no momento no instante da representaccedilatildeo transporte infinitamente prolongado entre niacuteveis irredutiacuteveis um ao outro (ROSENFIELD 2000 p 168)

A trageacutedia Antiacutegona permite a realizaccedilatildeo dessa passagem dessa travessia que conduz

de um plano a outro sem que nenhum possa prevalecer sobre o outro Para fazer tal travessia

a qual se prolonga em metoniacutemia desejante faz-se necessaacuteria a construccedilatildeo de uma metaacutefora

nem que para sua garantia o preccedilo a pagar a libra de carne seja a proacutepria existecircncia

Nessa linha de pensamento Vorsatz (2013) nos mostra que aleacutem da temaacutetica proposta

na trageacutedia Antiacutegona a proacutepria esteacutetica traacutegica sua forma de apresentaccedilatildeo linguiacutestica compotildee-

se de modo a trabalhar a linha de tensatildeo entre planos distintos e nesse sentido favorece o

pensamento poeacutetico justamente esse que natildeo visa um argumento racional e loacutegico mas uma

forma de pensamento alargada em que os sentidos vatildeo sendo produzidos em decorrecircncia das

passagens de um termo a outro

Vemos que a proacutepria estrutura de linguagem poeacutetica da trageacutedia caracteriza uma forma de pensamento singular distinta e anterior ao pensamento logico-conceitual em que as contradiccedilotildees natildeo se anulam reciprocamente e diferentes patamares de temporalidade coexistem sem que haja primazia de uns sobre outros A linguagem poeacutetica natildeo subsumida ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo seria aparentada ao funcionamento inconsciente Talvez seja possiacutevel supor que em seu funcionamento o inconsciente tem uma forma poeacutetica de proceder de acordo com sua estrutura de linguagem assinalada por Lacan ndash metaacutefora e

116

metoniacutemia satildeo mecanismos anaacutelogos agrave condensaccedilatildeo e ao deslocamento postulados por Freud (VORSATZ 2013 p 41)

Condensaccedilatildeo e deslocamento satildeo mecanismos que Freud descobre operarem na

deformaccedilatildeo que conteuacutedos inconscientes sofrem na tentativa de figurar o sonho a linguagem

o sintoma O trabalho de interpretar os sonhos vai nesse sentido de averiguar essas operaccedilotildees

com o paciente que captam traccedilos aspectos em comum de diferentes objetos pessoas espaccedilos

e tempos e os fazem participar de uma mesma cena sem que haja uma anulaccedilatildeo ou contradiccedilatildeo

entre eles A condensaccedilatildeo tomada por Lacan como metaacutefora eacute uma operaccedilatildeo simboacutelica que

permite ao sujeito a construccedilatildeo de um novo sentido pela substituiccedilatildeo de um significante por

outro Ele trabalha com essa questatildeo no seminaacuterio As formaccedilotildees do inconsciente (LACAN

1957-19581998)

Nesse sentido na constituiccedilatildeo do sujeito como ser de linguagem Lacan propotildee a

ocorrecircncia de metaacutefora paterna que teria por funccedilatildeo a substituiccedilatildeo do significante do desejo da

matildee pelo significante do nome do pai Isso implicaria uma alienaccedilatildeo ao desejo do Outro uma

pergunta necessaacuteria e fundante sobre o que o Outro quer de mim sendo este uma alusatildeo agrave matildee

como Outro primordial Nesse sentido Antiacutegona desliza a uma rede significante com a qual

interpela esse Outro como metaacutefora o qual corresponde aos deuses gregos ldquoQue mandamentos

transgredi das divindadesrdquo (Antiacutegona v 1027)

Pensamos se na trageacutedia grega natildeo haveria uma intenccedilatildeo nesse sentido uma tentativa

conjunta de criar um dispositivo uma operaccedilatildeo cultural uma metaacutefora que pudesse representar

o desejo humano na cultura Uma tentativa de fundar um saber da civilizaccedilatildeo sempre falha

sempre traacutegica jaacute que por ela todos morrem no final em cadeia Seria uma tentativa de que a

representaccedilatildeo alcanccedilasse um ponto impossiacutevel Como aponta Vorsatz (2013) fazer o simboacutelico

cortar o real

Lacan no complemento ao seu comentaacuterio sobre a trageacutedia Antiacutegona fala que

ldquoAntiacutegona diante de Creonte se situa como a sincronia oposta agrave diacroniardquo (LACAN 1959-

19601997 p 344) Com seu ato de enfrentar Creonte Antiacutegona faz um corte sincrocircnico na

lei proferida pelo rei Ao nomear Polinices como inimigo criminoso escravo o que resulta no

edito de deixar seu corpo exposto a princesa mostra o que ele eacute para ela um irmatildeo antes de

tudo O que o rei faz com isso Natildeo mata o traidor pois eacute sua sobrinha mas a enterra viva para

manter em parte sua palavra Ao ouvir o adivinho Tireacutesias muda de ideia ordena que

desenterrem Antiacutegona Poreacutem jaacute estava morta enforcada com um laccedilo de linho de seu vestido

117

Ao vecirc-la o filho de Creonte noivo da princesa mata-se com uma espada Ao saber da morte

do filho a mulher de Creonte tambeacutem comete suiciacutedio

O rei desesperado implora para que a morte chegue ateacute ele jaacute que ele mesmo natildeo

consegue fazecirc-lo ldquoVenha Aconteccedila a uacuteltima das mortes ndash a minha ndash e traga o meu dia final

o mais feliz de todos Venha Venha pois natildeo quero viver nem mais um diardquo (Antiacutegona vv

1468-1471)

Agrave suacuteplica de Creonte o corifeu diz ldquoisto eacute o futuro antes cuidemos do presenterdquo

(Antiacutegona v 1472) Entendemos que haacute na trageacutedia uma invenccedilatildeo um fazer com a linguagem

e a relaccedilatildeo da temporalidade com a linguagem O saber na trageacutedia um saber que natildeo se revela

a priori que se faz com o ato um saber insabido pode ser transmitido com esses termos

234 A dimensatildeo do belo

No lugar em que Antiacutegona sustenta seu desejo ex nihilo Lacan (1959-19601997) fala

de seu brilho de sua luz que em parte se reflete causando um cegamento no espectador e em

parte se reteacutem e se prolonga O psicanalista menciona especialmente uma imagem de Antiacutegona

que se destaca dentre as outras imagem de sua lamentaccedilatildeo ao entrar viva no tuacutemulo de sua

morte

Pois bem sabemos que para aleacutem dos diaacutelogos para aleacutem da famiacutelia e da paacutetria para aleacutem dos desenvolvimentos moralizadores eacute ela que nos fascina em seu brilho insuportaacutevel naquilo que ela tem que nos reteacutem e ao mesmo tempo nos interdita no sentido em que isso nos intimida no que ela tem de desnorteante ndash essa viacutetima tatildeo terrivelmente voluntaacuteria (LACAN 1959-19601997 p 300)

Nesse sentido para aleacutem da discussatildeo que compreende as leis do Estado opostas agraves leis

familiares no que diz respeito aos deveres para com os mortos que por si soacute jaacute nos coloca numa

dimensatildeo de tensionamento o ato de Antiacutegona nos atravessa ao problematizar a via desejante

que em seu caso sobrevive mesmo ao conduzi-la agrave morte Haacute aiacute um lugar para aleacutem dos limites

eacuteticos que nossa consciecircncia atinge alccedilamos uma experiecircncia esteacutetica compreendida como a

zona do belo que estaacute num ponto aleacutem da zona do bem

O belo diz Lacan pode dar forma ao desejo inconsciente poreacutem haacute uma relaccedilatildeo

ambiacutegua entre os termos ldquodesejordquo e ldquobelordquo Uma vez que o nosso desejo tome forma bela a

partir de um certo arranjo de elementos miacutenimos chegamos a um ponto de suspensatildeo do

118

horizonte do desejo pois ele encontra no belo uma experiecircncia esteacutetica tal que favorece a

satisfaccedilatildeo desejante e natildeo a relanccedila Nesse sentido o belo guarda a condiccedilatildeo tanto de expressatildeo

do desejo quanto de suspendecirc-lo

A verdadeira barreira que deteacutem o sujeito diante do campo inominaacutevel do desejo radical uma vez que eacute o campo da destruiccedilatildeo absoluta [] eacute o fenocircmeno esteacutetico propriamente dito uma vez que eacute identificaacutevel com a experiecircncia do belo (LACAN 1959-19602007 p 265)

A uacutenica maneira possiacutevel de transmitir a experiecircncia do ex nihilo de onde Antiacutegona

situa seu ato simboacutelico eacute a via do belo que para Lacan eacute o verdadeiro limite do desejo para

aleacutem dele nada resta a natildeo ser destruiccedilatildeo Esse limite Antiacutegona o toca e nos comove

Talvez aqui seja interessante fazer um esboccedilo da diferenccedila proposta por Lacan (1959-

19602007) entre o bem e o belo jaacute que o psicanalista compara a barreira do bem com a barreira

do belo O limite do belo situa-se num ponto aleacutem do limite do bem embora por sermos

constantemente iludidos na dimensatildeo do bem por muitas vezes em nossas relaccedilotildees cotidianas

em nossas escolhas de vida paralisamos diante da barreira do bem enganando-nos de que aiacute

reside o que eacute da ordem do nosso desejo ou entatildeo ao menos o que eacute da ordem do justo

Lacan aponta que no fazer do psicanalista eacute preciso pensar sobre como o desejo e o bem

se articulam O desejo de curar em psicanaacutelise seria um desejo de libertar o sujeito das ilusotildees

do bem e dessa forma ir na via contraacuteria da ldquofalcatrua beneacutefica do querer-o-bem-do-sujeitordquo

(LACAN1959-19602007 p 267) Para o psicanalista francecircs o bem eacute o que reteacutem o desejo

ilude o sujeito na realizaccedilatildeo de seu desejo quando na verdade o silencia

Lacan nos aponta que o bem estaacute sempre em referecircncia agrave noccedilatildeo freudiana de princiacutepio

do prazer atraveacutes do qual buscamos satisfaccedilatildeo e com o princiacutepio de realidade que faz com

que nos deparemos com os caminhos equivocados para onde o prazer nos conduz Nesse

sentido o bem estaacute relacionado a um conflito fruto do embate entre esses dois princiacutepios Entre

o prazer e a realidade sabemos que como neuroacuteticos tendemos a entrar num acordo atraveacutes

do qual conseguimos adquirir satisfaccedilatildeo atraveacutes dos compromissos que a realidade nos coloca

sem precisarmos muitas vezes escolher e bancar o que eacute da ordem de nosso desejo Tendemos

a buscar uma parcela de prazer atraveacutes do investimento nos objetos do mundo enganando-nos

na via da realizaccedilatildeo de nosso desejo Isso nos livra da responsabilidade de arcar com a

consequecircncia de seguirmos a via desejante jaacute que esse caminho natildeo nos traz satisfaccedilatildeo da

119

ordem do principio do prazer ou da articulaccedilatildeo deste com o princiacutepio de realidade A satisfaccedilatildeo

seria de outra ordem difiacutecil de bancar aliada agrave pulsatildeo de morte

Dessa maneira o psicanalista apresenta a noccedilatildeo de praacutexis no duplo sentido que ela

evoca a dimensatildeo eacutetica a nossa accedilatildeo como agimos de acordo com nosso lugar na linguagem

e a dimensatildeo ex nihilo a fabricaccedilatildeo o que produzimos com os significantes que nos posicionam

como sujeitos de desejo Antes do surgimento da noccedilatildeo de necessidade do que realmente

precisamos para viver e para realizar nossos desejos antes de qualquer intenccedilatildeo de suprir uma

necessidade no princiacutepio eacute como significante que qualquer coisa se articula Nesse sentido que

Lacan traz a ideia da necessidade de sermos seres vestidos Antes de se pensar na funccedilatildeo do

encobrimento do corpo ou de alguma coisa no iniacutecio estaacute a invenccedilatildeo produtora ex nihilo com

a qual o ser humano organiza-se ao longo dos seacuteculos como um ser vestido Dessa maneira

primeiramente ele cria a roupa (ex nihilo) e com isso surge a necessidade de cobrir-se bem

como o direito de ter suas necessidades satisfeitas as quais tem um valor uacutetil Sendo assim a

praacutexis do homem o coloca a fabricar com alguma coisa que tem valor significante e com isso

o homem descobre a utilidade do que criou numa perspectiva coletiva

De acordo com Lacan (1959-19602007 p 280) ldquoA dimensatildeo do bem levanta uma

muralha poderosa na via do nosso desejordquo Eacute nessa perspectiva que ele apresenta a dimensatildeo

do belo para aleacutem da barreira do bem O belo diferente do bem natildeo nos engana sobre o desejo

natildeo nos oferece uma ilusatildeo de fazer o bem com nossos bens Eacute uma funccedilatildeo que nos abre os

olhos

Se o bem estaacute em relaccedilatildeo ao que nos satisfaz com o princiacutepio do prazer o belo se refere

a algo mais aleacutem desse princiacutepio a pulsatildeo de morte e nesse sentido embora seja o verdadeiro

limite do desejo o mais aleacutem pode de certo modo se conjugar ao desejo Eacute isso que Antiacutegona

realiza

Pensamos nessas contribuiccedilotildees do pensamento psicanaliacutetico para a aacuterea da educaccedilatildeo ou

sobre como podem se articular A experiecircncia educativa parece se aliar melhor a uma ideia de

laccedilo social de construccedilatildeo do conhecimento de tradiccedilatildeo cultural o que podemos prontamente

relacionar ao que produz vida ao que manteacutem o desejo vivo ao que visa preservar o laccedilo as

relaccedilotildees com o outro Contudo Lacan nos fala que se a pulsatildeo de morte para aleacutem de uma

perspectiva que remete a algo da destruiccedilatildeo potildee em causa tudo o que existe ldquoeacute igualmente

vontade de criaccedilatildeo a partir de nada vontade de recomeccedilarrdquo (LACAN 1959-19602007 p 260)

120

Somos impelidos assim a adotar uma atitude questionadora a pensar que as relaccedilotildees

que se cristalizam no cenaacuterio educativo embora possam mobilizar algo da satisfaccedilatildeo de uma

necessidade manter nossas relaccedilotildees aparentemente coesas natildeo satildeo relaccedilotildees estanques ou

necessaacuterias mas podem ser desmontadas e rearranjadas na medida em que modelamos

elementos que significam na cena o que nos coloca no lugar de criadores produtores de uma

outra coisa que pode gerar um novo laccedilo como efeito

Estou-lhes mostrando a necessidade de um ponto de criaccedilatildeo ex nihilo do qual nasce o que eacute histoacuterico na pulsatildeo No comeccedilo era o Verbo o que quer dizer o significante Sem o significante no comeccedilo eacute impossiacutevel articular a pulsatildeo como histoacuterica E isso basta para introduzir a dimensatildeo ex nihilo na estrutura do campo analiacutetico (LACAN 1959-19601997 p 261)

Dessa maneira a pulsatildeo que nos move remonta agrave ideia de fazer com o significante o

que fabricamos com ele

O belo permite alcanccedilar uma zona aleacutem do limite do bem aborda nossas tendecircncias

disjuntivas e de modo misterioso une-se ao nosso desejo Desse modo entendemos que a funccedilatildeo

do belo eacute um tanto paradoxal Diz respeito agrave relaccedilatildeo fundamental do sujeito com seus proacuteprios

limites com a proacutepria morte ao mesmo tempo que figura o desejo Conforme comenta Lacan

remetendo-nos agrave funccedilatildeo do vestir do encobrir-se o uacuteltimo veacuteu antes do horror eacute o belo

Trabalhando significantes soacute conseguimos nos aproximar do horror do vazio de nossa

constituiccedilatildeo com o belo e com ele retirarmos uma dose de satisfaccedilatildeo Para aleacutem disso temos

a dimensatildeo destrutiva que nos faz sofrer que nos retira a possibilidade de fazer com o

significante que nos retira a proacutepria condiccedilatildeo desejante Eacute a esse lugar paradoxal aleacutem do bem

e aleacutem do belo que Antiacutegona se encaminha e em funccedilatildeo disso de passar totalmente dos limites

confundindo o lugar de sujeito com o lugar de objeto ela encontra a proacutepria morte Noacutes leitores

e espectadores atravessamos os limites com ela salvaguardados pelo veacuteu da cena que nos diz

que natildeo passa de ficccedilatildeo o que nos ajuda a colher os efeitos cecircnicos de horror e piedade

O filoacutesofo Eugenio Triacuteas em seu livro El bello y lo siniestro nos fala da relaccedilatildeo

existente entre o horror e o belo fazendo um comentaacuterio especial sobre o belo na trageacutedia grega

Para o autor a trageacutedia formalizou uma esteacutetica tal que nos fez e nos faz admiraacute-la e trabalhaacute-

la ateacute hoje Eacute um modelo artiacutestico indiscutiacutevel A resposta para isso pode ter sido levantada por

Freud quando adotou Eacutedipo como figura exemplar de sua teorizaccedilatildeo no que tange ao desejo

inconsciente No entendimento de Triacuteas haacute para Freud uma estrutura antropoloacutegica

121

inconsciente sustentada e revelada pela trageacutedia especialmente a de Eacutedipo e eacute decorrente do

que a trageacutedia mobiliza do inconsciente humano que sentimos os efeitos esteacuteticos do belo

A antiguidade grega engendrou uma esteacutetica enigmaacutetica que os padrotildees de beleza que

foram sendo estabelecidos nos seacuteculos posteriores natildeo conseguem alccedilar Nesses ideais haacute uma

noccedilatildeo de proporccedilatildeo simplicidade contraste e familiaridade os quais nosso entendimento

racional eacute capaz de captar e reproduzir No entanto a trageacutedia pode abarcar esses ideias e ir

aleacutem deles a um ponto um limite que escapa agrave nossa racionalidade Justamente nesse ponto

aleacutem que toca no inconsciente ponto captado por Freud eacute que reside o belo da trageacutedia Para

Triacuteas (2010) pode-se atingir um ponto tal de familiaridade que sugere um tom de

estranhamento Nesse sentido o filoacutesofo se interessa em estudar o artigo freudiano Das

Unheimliche (1919) para com ele buscar transmitir algo da potecircncia da obra de arte

Para Triacuteas (2010) o unheimlich nomeado na liacutengua espanhola de siniestro pode ser

suscitado pelo reconhecimento de algo familiar na beleza um objeto do mundo reconheciacutevel

pertencente ao nosso meio um rosto de algueacutem conhecido O autor nos diz que esse algo

familiar e harmonioso que identificamos de repente se apresenta como revelador de conteuacutedos

pertencentes a noacutes mesmos portador de misteacuterios que esquecemos e desejamos que

permaneccedilam esquecidos e que pertencem a fantasias forjadas por nosso desejo inconsciente A

forccedila da obra de arte seu efeito de belo reside nessa conjunccedilatildeo do familiar com o siniestro em

sua representaccedilatildeo sensiacutevel e real sendo entatildeo que careceria de forccedila a obra que natildeo contivesse

essa hiacircncia familiarestranho

Por meio do conceito de siniestro Triacuteas buscou comprovar sua hipoacutetese de que o efeito

de belo numa obra de arte depende do jogo entre o familiar e o estranho ao mesmo tempo que

o estranho tambeacutem faz com que a obra perca o efeito do belo Em outras palavras o autor afirma

que o estranho eacute condiccedilatildeo e limite do belo Sendo assim natildeo poderia haver belo sem que o

estranho estivesse presente na obra artiacutestica No entendimento de Triacuteas o estranho deve estar

presente sob forma de ausecircncia velado sob a forma de familiaridade e harmonia natildeo podendo

ser desvelado Com isso o autor presume que o estranho eacute o poder da obra sua magia seu

misteacuterio a fascinaccedilatildeo que causa Nesse sentido a revelaccedilatildeo do estranho implicaria natildeo

obstante a destruiccedilatildeo do efeito esteacutetico (TRIacuteAS 2010)

Assim podemos entender que o belo se transmite pela via da experiecircncia esteacutetica ou

entatildeo que somente por essa vida atingimos o efeito do belo capaz de tocar de tal modo a nos

transformar a nos colocar na via desejante Se o nosso entendimento racional se a nossa

122

consciecircncia tomar o lugar de domiacutenio da compreensatildeo de uma obra corre-se o risco de natildeo

sermos atingidos por ela transformados ela se torna mais um conteuacutedo objetivo que passa pelo

crivo do racional

O arranjo cecircnico que favorece o estranhamento se revela o estranho jaacute natildeo eacute mais

estranho tampouco familiar eacute compreensiacutevel dele nos distanciamos e ele natildeo nos diz mais

respeito como seres humanos Isso depende tambeacutem pensamos da atitude que assumimos

diante de uma obra de arte do quatildeo disponiacuteveis estamos se nos defendemos do que ela suscita

se ela toma parte da nossa vida como bem de consumo se buscamos com ela uma completude

imaginaacuteria enfim Mas haacute tambeacutem obras de arte como Antiacutegona que nos tomam

desprevenidos que nos fazem falar e seguir falando seacuteculos e seacuteculos depois de sua criaccedilatildeo

como supomos a um claacutessico (na concepccedilatildeo de Italo Calvino) que ainda natildeo terminou de dizer

o que tinha para dizer

235 A mulher Antiacutegona

Em muitos momentos Creonte se refere a Antiacutegona como uma mulher num tom

depreciativo Diz que ele nunca obedeceria a uma mulher Acusa Hecircmon seu filho de estar

submetido a uma mulher Fala a Antiacutegona que ela eacute uma mulher que quer fazer o papel de

homem ao enfrentaacute-lo O que quer dizer isso

O lugar da mulher na Greacutecia Antiga era resguardado ao lar a ser esposa gerar filhos e

cuidar da casa Natildeo participavam da vida poliacutetica natildeo estudavam Natildeo participavam da

encenaccedilatildeo das trageacutedias os papeis de mulheres eram realizados por homens jovens com

maacutescaras femininas O papel da corajosa Antiacutegona foi interpretado por um homem

Assim de modo diferente ao que esperavam dela por ser mulher a personagem

Antiacutegona enfrentou a decisatildeo do rei provocando um questionamento sobre sua poliacutetica e

justiccedila Aleacutem disso natildeo se casou e natildeo teve filhos Esse fato eacute algo marcado por ela em sua

fala quando lamenta sua morte precoce

[] Se houvera sido matildee de filhos ou se o esposo morto apodrecesse exposto jamais enfrentaria eu tamanhas penas tendo de opor-me a todos os concidadatildeos Que leis me fazem pronunciar estas palavras Fosse eu casada e meu esposo falecesse bem poderia encontrar outro e de outro esposo

123

teria um filho se antes perdesse algum [] um leito nupcial jamais terei nem ouvirei hinos de bodas nem sentirei as alegrias conjugais nem filhos amamentarei [] (Antiacutegona vv 1008-1015 1021-1024)

Entendemos com essa passagem que se Antiacutegona se tornasse esposa e matildee o laccedilo

existente com marido e possiacuteveis filhos natildeo seria um laccedilo tatildeo fundamental como o que a prende

aos seus antecessores familiares especialmente ao seu irmatildeo Natildeo morreria para sustentar a

existecircncia de um esposo pois arranjaria outro com o qual teria outros filhos O lugar de marido

e descendentes para ela parece ser mais um compromisso social uma obrigaccedilatildeo facilmente

restituiacuteda Um destino certo para qualquer mulher sem escolhas que faccedilam aparecer o desejo

Parece-nos haver para Antiacutegona uma separaccedilatildeo da ideia de ser esposa e matildee da ideia de

ser um sujeito Esse lugar estaacute mais aleacutem dos deveres sociais Sua eacutetica natildeo eacute uma moral social

eacute a eacutetica de seu desejo Isso eacute o que Creonte natildeo admite ver em Antiacutegona Ele a vecirc sair do lugar

circunscrito a uma mulher e chamando-a de mulher tenta evocar essas obrigaccedilotildees

Assim Antiacutegona provoca um corte nas accedilotildees de Creonte especialmente quando ao

morrer faz com que ele perca filho e esposa mortes pelas quais ele se responsabiliza ao final

da peccedila Acreditamos que esse aspecto da relaccedilatildeo entre Creonte e Antiacutegona da diferenccedila entre

o lugar de homem e o lugar de mulher na sociedade tebana eacute um ponto importante a ser

mencionado ainda que seja num trabalho em que o tema central natildeo eacute esse Natildeo podemos

ignoraacute-lo como temaacutetica capaz de dialogar com discursos vivos correntes de nossa atualidade

acerca do feminismo Eacute disso que se trata em um claacutessico haacute sempre um aspecto capaz de falar

diretamente ao contemporacircneo

Dissemos no iniacutecio da seccedilatildeo sobre a trageacutedia Antiacutegona que gostariacuteamos de abordaacute-la

para entender a questatildeo dos limites e das possibilidades na cena educativa Pois bem o que

podemos dizer para o momento eacute que a crianccedila que apresenta sintomas relativos agrave escola como

hiperatividade dificuldades de atenccedilatildeo e de aprendizagem talvez precise realizar uma operaccedilatildeo

simboacutelica que se decirc ao niacutevel de uma invenccedilatildeo para aleacutem das obrigaccedilotildees e medidas

preestabelecidas de bom comportamento no ciacuterculo social da qual participa Com Antiacutegona

entendemos que haacute um laccedilo que nos sustenta para aleacutem de discursos que se impotildeem sobre a

cena no intuito de organizaacute-la um laccedilo mais proacuteximo agraves nossas condiccedilotildees inventivas agraves

possibilidades de rearranjo da cena Mas como satildeo ldquoleis natildeo escritasrdquo escrevemos e criamos a

124

cada vez pela modelaccedilatildeo dos significantes presentes na cena escolar os quais ao serem

trabalhados bordejam um vazio circunscrito por fronteiras que natildeo excluem o outro mas se

formam com ele

Nas proacuteximas paacuteginas discutiremos como algumas questotildees identificadas pela

psicanaacutelise na trageacutedia grega participam de noccedilotildees e conceitos do traacutegico e da trageacutedia trazendo

novos elementos para a conversa

125

3 O TRAacuteGICO

Como sondar o traacutegico o que lhe eacute proacuteprio Elegemos como uma primeira aproximaccedilatildeo

sua definiccedilatildeo no dicionaacuterio afinal haacute de se comeccedilar por algum caminho Buscamos logo um

dicionaacuterio de teatro e seguimos com ele Patrice Pavis indica em seu Dicionaacuterio de teatro que

quanto ao traacutegico eacute preciso estabelecer uma diferenccedila entre o gecircnero literaacuterio da trageacutedia e o

traacutegico como aquilo que se refere a um ldquoprinciacutepio antropoloacutegico e filosoacutefico que se encontra

em vaacuterias outras formas artiacutesticas e mesmo na existecircncia humanardquo (PAVIS 2015 p 416)

Haacute dessa forma o gecircnero chamado trageacutedia nascido no seacuteculo V aC e sistematizado

pelo filoacutesofo Aristoacuteteles em sua obra Poeacutetica no seacuteculo IV aC Como exemplos podemos citar

as trageacutedias antigas dos claacutessicos Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides as quais foram propostas no

seacuteculo V aC Tambeacutem fazem parte do gecircnero traacutegico as trageacutedias modernas de poetas como

Shakespeare Corneille e Racine

Jaacute o traacutegico deriva de uma apreciaccedilatildeo filosoacutefica da existecircncia humana a qual pode ter

uma essecircncia traacutegica Tal concepccedilatildeo aparece a partir do seacuteculo XIX atraveacutes das filosofias de

Hegel Schopenhauer Nietzsche entre outros No entanto eacute preciso considerar segundo Pavis

(2015) que a essecircncia do traacutegico apresentada por filoacutesofos soacute eacute possiacutevel a partir do que foi

capturado por eles na trageacutedia em forma de poesia e representaccedilatildeo Dentre os filoacutesofos vamos

abordar um pouco da apreciaccedilatildeo que Nietzsche faz da trageacutedia por considerar que sua

contribuiccedilatildeo traz agrave tona o tensionamento essencial para compreender a forma do traacutegico

31 Noccedilotildees do traacutegico e da trageacutedia antiga

311 O conflito insoluacutevel

A partir de Pavis (2015) podemos entender que o conflito inevitaacutevel e insoluacutevel

proposto pela trageacutedia antiga se transforma ao longo da histoacuteria possibilitando dramas soluacuteveis

reflexotildees filosoacuteficas e o sentimento do absurdo da existecircncia temas propostos em outros

gecircneros teatrais Talvez o que a trageacutedia antiga tenha inaugurado no cenaacuterio teatral como

essecircncia do traacutegico que se relanccedila e se renova seja uma relaccedilatildeo intriacutenseca agrave fatalidade da

experiecircncia humana O traacutegico nos coloca diante da condiccedilatildeo humana dos limites de nossa

126

existecircncia da falta de garantia sobre o sucesso de nossas escolhas da dimensatildeo da fragilidade

e vulnerabilidade do humano

Diante da dimensatildeo insoluacutevel da existecircncia eacute possiacutevel adotar diferentes formas de se

posicionar Com as noccedilotildees do traacutegico podemos ler a vida cotidiana as relaccedilotildees humanas que

estabelecemos nos mais diferentes espaccedilos de conviacutevio que por muitas vezes resultam em

conflitos Tais conflitos bem poderiam ser tomados como insoluacuteveis mostrarem-se verdadeiros

impasses pois as pessoas que os formam podem ter propoacutesitos legiacutetimos No entanto o quanto

estamos comprometidos com nossas escolhas com os efeitos de nosso fazer sobre o outro

O cenaacuterio escolar eacute uma arena rica em conflitos e impasses ndash lhe eacute inerente como locus

da vida a presenccedila de choques embaraccedilos empecilhos subversotildees Nesse sentido com a

aproximaccedilatildeo do traacutegico queremos destacar elementos que possibilitem compor diferentes

equaccedilotildees para o desdobramento possiacutevel a partir do encontro com a dimensatildeo insoluacutevel da

(ex)sistecircncia refletindo sobre suas consequecircncias para a relaccedilatildeo dos atores escolares com a

praacutexis educativa

Segundo Rosenfield (2000) a trageacutedia antiga coloca em cena o impasse dando enredo

a situaccedilotildees em que natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel entre as posiccedilotildees dos personagens jaacute que suas

escolhas mesmo quando antagocircnicas podem se sustentar como legiacutetimas Nos enredos

traacutegicos assistimos aos percalccedilos de um heroacutei ou de uma heroiacutena cujo destino aparece como

cifrado jaacute desde o iniacutecio da peccedila Trata-se dos desdobramentos de um percurso de vida que

encerra opccedilotildees que bem poderiam ser nomeadas de ldquoescolha forccediladardquo tal como indicou Lacan

(19642008) ao renomear a ldquoescolha pela neuroserdquo proposta por Freud (19132014) como uma

escolha forccedilada entre a ldquobolsa ou a vidardquo Assim os impasses impostos pelo traacutegico colocaratildeo

o sujeito diante de embaraccedilos eacuteticos o que observou muito bem Lacan (1959-19601997) ao

retomar a Antiacutegona de Soacutefocles

Eacute a Antiacutegona que Lacan recorreraacute quando se ocupa da eacutetica da psicanaacutelise

estabelecendo-a sustentada em preceitos que de forma alguma respondem a uma obrigaccedilatildeo a

um ordenamento preacutevio ou a uma moral social Da eacutetica da psicanaacutelise decanta um uacutenico

princiacutepio que indica a necessidade do sujeito natildeo ceder de seu desejo Natildeo eacute demais relembrar

que a dimensatildeo do desejo pode um sem nuacutemero de vezes impelir o sujeito a atos que natildeo se

coadunam com sua vontade Nem sempre desejamos aquilo do que podemos dizer que temos

vontade E justo aiacute reside a complexidade desse preceito eacutetico Respondendo ao ditame

inconsciente o desejo natildeo eacute algo passiacutevel de controle ou antecipaccedilatildeo mas ainda assim de

127

acordo com os caminhos abertos pela psicanaacutelise requer que o sujeito natildeo recue diante de sua

emergecircncia e que possa se responsabilizar por suas consequecircncias

Lacan se interessaraacute por esquadrinhar o percurso de Antiacutegona que escolhe agrave revelia de

sua morte alinhar-se aos preceitos dos deuses em oposiccedilatildeo agrave lei da cidade da qual Creonte se

apresenta como guardiatildeo Como nos lembra Vorsatz (2013) a posiccedilatildeo tomada pelo heroacutei

traacutegico leva em consideraccedilatildeo a alteridade divina ldquoo heroacutei traacutegico determinado pelo campo real

dos deuses dele se extrai por intermeacutedio de seu atordquo (VORSATZ 2013 p 22) O heroacutei se

inscreve como tal atraveacutes de uma accedilatildeo que garante a presenccedila e a ordem divina Poreacutem sua

accedilatildeo implica sua proacutepria perda

O heroacutei alccedila uma posiccedilatildeo digna comovente admiraacutevel bela pois mesmo sabendo de

sua mortalidade de sua infelicidade de seu destino traacutegico natildeo cede de sua decisatildeo e eacute nesse

instante de natildeo ceder que ele atinge a potecircncia possiacutevel a um ser humano a responsabilidade

sobre suas escolhas pelas perdas que derivam dessas escolhas Tatildeo humano que parece divino

O Coro em Antiacutegona de Soacutefocles nos diz que ldquoHaacute muitas maravilhas mas nenhuma eacute tatildeo

maravilhosa quanto o homemrdquo (Antiacutegona vv 384-385)

As accedilotildees do heroacutei satildeo definidas por Aristoacuteteles ndash quem primeiro propocircs uma

sistematizaccedilatildeo da trageacutedia ndash como de caraacuteter elevado superiores agraves dos homens comuns Para

ele a trageacutedia eacute uma representaccedilatildeo dessas belas accedilotildees que suscitam no espectador o terror e a

piedade tendo como efeito a purificaccedilatildeo dessas emoccedilotildees Nesse sentido ao final do drama o

espectador experimenta um apaziguamento uma sensaccedilatildeo de que tudo retornou a uma suposta

ordem inicial ainda que o impasse tenha conduzido o heroacutei a um destino traacutegico sem

conciliaccedilatildeo possiacutevel entre as partes que formam o conflito

Aleacutem dos efeitos destacados por Aristoacuteteles o heroacutei traacutegico tem a funccedilatildeo de convidar o

expectador a habitar uma arena conflituosa em que os personagens se situam entre dois mundos

distintos o ritual antigo e o poliacutetico novo De acordo com Melo (2014) a qualidade desse

conflito eacute poliacutetica e coletiva e natildeo moralista e individual como podem se caracterizar muitos

conflitos que vivenciamos no mundo contemporacircneo Isso caracterizaria para ela um desafio

na representaccedilatildeo de trageacutedias antigas ao puacuteblico de hoje jaacute que o heroacutei natildeo tornaria seu impasse

como se pretende o impasse tambeacutem do outro mas seria simplesmente julgado como algueacutem

que tomou uma decisatildeo errada

A tensatildeo do conflito o compartilhamento da questatildeo eacutetica inerentes ao efeito traacutegico

da trageacutedia antiga tornam-se dificuldades para quem propotildee essa forma artiacutestica Para Melo

128

(2014) muito aleacutem dos afetos que a trageacutedia pretende suscitar segundo paracircmetros

aristoteacutelicos o que se impotildee como essencial eacute a dimensatildeo eacutetica na qual o heroacutei estaacute envolvido

a qual o dilacera e o transforma A funccedilatildeo da trageacutedia seria essa possibilitar um pensamento

eacutetico ao puacuteblico natildeo moral o que conduziria ao refinamento e agrave responsabilidade sobre as

escolhas eacuteticas em suas vivecircncias

De acordo com Rosenfield (2000) o paradoxo para onde o destino traacutegico conduz

desencadeia uma experiecircncia que natildeo cabe em qualquer polaridade ou dualismo A escolha que

os personagens estatildeo em vias de fazer natildeo eacute equacionaacutevel por um isso ou aquilo mas distende-

se com mais precisatildeo no diapasatildeo do ldquoisso e aquilordquo Na trageacutedia antiga vemos se desdobrar

uma narrativa que localiza um veacutertice impossiacutevel desenhando uma terceira margem para a

travessia do heroacutei

Dessa terceira margem partimos para outra palavra para um nome Sondamos um

conceito apresentado por Platatildeo em seu diaacutelogo Timeu trabalhado por Jacques Derrida Esta

palavra se chama khocircra

312 Khocircra

Na referida obra Platatildeo apresenta discussotildees sobre a origem do mundo a criaccedilatildeo da

natureza e dos seres humanos Entre as possibilidades um princiacutepio divino e um processo de

transformaccedilatildeo das coisas Platatildeo apresenta o conceito de khocircra importante para pensarmos a

respeito do traacutegico Jacques Derrida (1995) dedica um livro para discutir o diaacutelogo platocircnico e

amplia o entendimento acerca de khocircra para aleacutem das definiccedilotildees que a localizam e a

essencializam Enfatiza seu aspecto de indefiniccedilatildeo e as condiccedilotildees que a tornam uma terceira

via possiacutevel natildeo apenas um espaccedilo localizado entre dois pontos

De acordo com Derrida (1995) khocircra desafia a loacutegica de natildeo contradiccedilatildeo da filosofia

que precisa definir o que eacute e o que natildeo eacute um conceito justamente porque ela pode satisfazer

ambas as condiccedilotildees e nenhuma Sabe-se que khocircra estaacute entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel entre o

mito e o logos e eacute desta condiccedilatildeo de ocupar um entrelugar ou de vir a ser um entrelugar que

traccedilamos uma relaccedilatildeo com o traacutegico

No entanto com Derrida (1995) temos que khocircra acaba por situar embora natildeo se situe

entre esses dois lugares num movimento de oscilaccedilatildeo em que sua conceituaccedilatildeo escapa Derrida

nos diz que natildeo se trata de uma oscilaccedilatildeo como qualquer outra entre polos opostos jaacute que na

129

verdade khocircra natildeo eacute nem sensiacutevel nem inteligiacutevel ou pode ser ao mesmo tempo as duas

coisas isto e aquilo

Platatildeo apresenta a khocircra palavra feminina como lugar de passagem como regiatildeo e

apresenta metaacuteforas que descrevem o conceito como receptaacuteculo como matildee ama capaz de

acolher e transformar as coisas Entendemos com a criacutetica de Derrida que a diferenccedila que ele

busca acentuar estaacute na ideia de devir relacionada ao deslocamento metoniacutemico agrave condiccedilatildeo de

transformaccedilatildeo pela qual algo passa e natildeo o lugar em que isso eacute transformado natildeo o molde

mas a condiccedilatildeo de moldar

Khocircra natildeo eacute sobretudo natildeo eacute um suporte ou um sujeito que daria lugar recebendo ou concebendo ou ateacute mesmo se deixando conceber Como lhe denegar essa significaccedilatildeo essencial de receptaacuteculo jaacute que esse mesmo nome eacute dado por Platatildeo Eacute difiacutecil [] Talvez seja a partir de khocircra que comeccedilaremos a aprendecirc-lo ndash a recebecirc-lo a receber dela o que seu nome denomina A recebecirc-lo senatildeo a compreendecirc-lo a concebecirc-lo (DERRIDA 1995 p 20)

A relaccedilatildeo que se molda nesta breve paacutegina entre trageacutedia e khocircra ocorre no sentido de

construir as bordas tomar o traacutegico como efeito como um desenrolar ou entatildeo um devir de um

gesto de criaccedilatildeo

313 A funccedilatildeo do logos

Segundo Vorsatz (2013) a trageacutedia se desenvolve durante o seacuteculo V aC e se situa

num lugar entre tempo de transiccedilatildeo da histoacuteria da humanidade do mundo mitoloacutegico ao mundo

poliacutetico Diante disso os mitos misturam-se a uma tentativa de constituiccedilatildeo das leis na polis

grega

Com o surgimento da democracia e da filosofia no seacuteculo IV aC a relaccedilatildeo do ser

humano com a palavra sofre uma mudanccedila Em vez de estar referenciada a um saber outro

inacessiacutevel e intuitivo como na trageacutedia a funccedilatildeo do logos passa a se atribuir agrave razatildeo e ao

conhecimento acessiacuteveis agrave consciecircncia humana O ser humano sai de uma posiccedilatildeo de

imprevisibilidade de falta de garantia e alcanccedila uma posiccedilatildeo de domiacutenio com sua linguagem

A trageacutedia propotildee um modo singular de incidecircncia da palavra jaacute que esta acontece eacute

colocada em ato Tem um encontro com a accedilatildeo um acontecimento Para Vorsatz (2013) a

130

palavra aqui natildeo quer demonstrar alguma coisa ela mostra Nesse sentido os atos da trageacutedia

satildeo atos de linguagem

O que precisamente a palavra mostra em ato Ela mostra que haacute uma tentativa de unir

costurar linguagem e accedilatildeo pois haacute uma cisatildeo entre nossos desejos com as accedilotildees que tomamos

uma cisatildeo que hoje natildeo queremos ver os impasses eacuteticos entre o fazer e o falar na tentativa

traacutegica de coincidir a palavra e a accedilatildeo Desse modo Vorsatz (2013 p 40) afirma que ldquoa arte

traacutegica consistiria propriamente em tornar simultacircneo o que eacute sucessivo [] O resultado seria

uma accedilatildeo cuja causa eacute exterior ao heroacutei traacutegico mas em relaccedilatildeo agrave qual ele eacute inteiramente

responsaacutevelrdquo

Antiacutegona realiza suas accedilotildees a partir desse lugar onde os tempos se cruzam a aacutetē atraveacutes

da sua criaccedilatildeo com o significante ex nihilo Nesse sentido ela provoca um corte nas accedilotildees de

Creonte que se tecem numa sucessatildeo de fatos numa linha que natildeo consegue que natildeo pode

alccedilar o eixo onde se situa Antiacutegona sendo que para ele um traidor da paacutetria merece castigo e

quem ajudaacute-lo natildeo importando o motivo sofreraacute tambeacutem as consequecircncias Ao fim da peccedila

quando Creonte sofre tantas perdas aquilo que era mais importante para ele ele implora para

que aconteccedila sua morte buscando com suas palavras dominar a simultaneidade dominar o

ponto onde os tempos se cruzam e a resposta que ouve do corifeu eacute que sua morte eacute o futuro

cabe a ele cuidar do presente O que isso pode significar Natildeo haacute como querer controlar a

simultaneidade nem mesmo um rei como Creonte pode fazer isso Noacutes podemos traccedilar a linha

das sucessotildees apenas com nosso desejo Poreacutem o que podemos fazer como Antiacutegona eacute nos

responsabilizarmos pela causa de nossos atos e de nossa fala ainda que sobre ela natildeo possamos

exercer domiacutenio

Podemos entender a relaccedilatildeo disso com o conflito insoluacutevel que caracteriza a trageacutedia

natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel justamente porque natildeo podemos exercer domiacutenio sobre todos os

eventos e dele retirar uma verdade uma resposta ou uma moral da histoacuteria Podemos apenas

dizer enunciar que haacute e sempre haveraacute um aspecto do qual natildeo podemos saber sobre o qual

natildeo temos controle pois somos apenas mais um elemento de cena somos controlados por uma

forccedila inconsciente e nos cabe apenas estar cientes disso Assim natildeo haacute uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

entre Antiacutegona e Creonte mas a enunciaccedilatildeo de um jogo de forccedilas e de um conflito irresoluacutevel

Haacute outro importante aspecto que podemos abordar no que tange agrave simultaneidade de

eventos no tempo Eacute o que esse encontro de elementos que geram um acontecimento e

131

suspendem a cronologia pode suscitar a quem o vivencia ou a quem assiste a isso Trata-se do

Unheimliche

314 O estranho-familiar e a trageacutedia

O que pode causar um efeito de estranhamento a uma pessoa eacute a simultaneidade de fatos

de modo que se flagra envolvida numa trama de acontecimentos que natildeo eacute capaz de controlar

ou prever No andamento ndash sucessivo ndash da vida o sujeito pode se ver surpreendido pela

atualizaccedilatildeo de sentidos sobrepostos em camadas ndash simultacircneas ndash de tal forma com tal arranjo

cecircnico que isso faz com que ele experimente uma sensaccedilatildeo de unheimlich ao perceber por um

momento que algo estranho e tambeacutem familiar lhe ocorre interrompendo suas associaccedilotildees e

suas certezas Eacute o que pode ter sucedido a Creonte ao deparar-se com a morte de Hecircmon e

Euriacutedice seus preciosos bens ao se dar conta de que escolheu inconscientemente colocaacute-los

em perda Eacute o que pode ter ocorrido a Eacutedipo apoacutes buscar incansavelmente o assassino de Laio

e descobrir que fora ele mesmo ao desvelar seu terriacutevel destino de matar o pai e casar com a

matildee na tentativa de justamente fugir do que o oraacuteculo pregara

Pois bem o que eacute unheimlich Eacute um termo que qualifica alguma coisa ao mesmo tempo

como assustadora e familiar Em seu artigo de 1919 Das Unheimliche Freud se propotildee a

investigar essa temaacutetica que atribui ao campo da esteacutetica a partir do olhar da teoria

psicanaliacutetica e das contribuiccedilotildees da literatura Apresenta ao leitor uma investigaccedilatildeo em

dicionaacuterios em que busca o sentido da palavra no alematildeo e em outros idiomas Descobre que o

verbete unheimlich refere algo misterioso sobrenatural que desperta horriacutevel temor Para

Freud referindo-se a Schelling o estranho diz respeito a tudo aquilo que deveria permanecer

secreto oculto mas veio agrave luz (FREUD 19191969)

Freud acaba por descobrir em sua investigaccedilatildeo um encontro do unheimlich (estranho

assustador) com o heimlich (familiar) chegando a um ponto em que as palavras que num

primeiro momento parecem opostas antocircnimas tornam-se coincidentes sinocircnimas O

dicionaacuterio Wortebuch der Deutschen Sprache escrito por Daniel Sanders (1860) traz como

primeira definiccedilatildeo de heimlich familiar domeacutestico iacutentimo amistoso obsoleto alegre

disposto Na segunda definiccedilatildeo o termo eacute designado como oculto escondido dos outros dos

olhares dos outros encontro ou caso de amor lugar ou comportamento estranho No dicionaacuterio

de Grimm (1877) Freud encontra heimlich como aleacutem do tradicional significado de ldquofamiliarrdquo

132

definiccedilotildees como afastado dos olhos de estranhos secreto miacutestico alegoacuterico e por fim

inconsciente

Nesse sentido Freud (19191969) entende que a palavra que investigava unheimlich

podia ser uma subespeacutecie de heimlich colocando em questatildeo a concepccedilatildeo dos opostos Ou seja

elas podem ser compreendidas como termos e situaccedilotildees opostas uma a outra mas haveria um

ponto original de encontro ou reencontro entre as duas e eacute isso que o motivava a investigar ou

trazer agrave luz Acreditamos que isso pode ter relaccedilatildeo com a simultaneidade que a trageacutedia

apresenta

Freud recorre agrave literatura fantaacutestica para tentar entender em que circunstacircncia o familiar

e o assustador coincidem Visita o conto O Homem de Areia de E T A Hoffmann autor que

possui na visatildeo de Freud (19191969) grande criatividade para inventar situaccedilotildees e descobrir

elementos que fazem surgir a sensaccedilatildeo de estranheza No referido conto eacute o que acontece com

o aparecimento da personagem Oliacutempia (que na verdade eacute um autocircmato) pela qual o

protagonista Nathanael se apaixona O autor escreve seu conto de maneira que os leitores se

questionem sobre a humanidade de Oliacutempia fazendo-os sentir um estranhamento Contudo

Freud retira do mesmo texto outro fragmento que eacute tomado por ele como algo que merece mais

atenccedilatildeo do que a duacutevida em relaccedilatildeo agrave vida de Oliacutempia Esse fragmento se refere agrave ideia de ter

os olhos roubados que aparece ligada agrave figura do Homem de Areia

A fantasia que ocorre a Nathanael eacute para Freud o que realmente torna o conto estranho

A tese freudiana eacute pautada em sua teoria psicanaliacutetica do medo ou ameaccedila de castraccedilatildeo O medo

de ficar cego de perder os olhos eacute para Freud um substituto do medo de ser castrado medo este

recalcado mas que veio agrave luz por meio de um substituto metafoacuterico ndash medo de cegar

Nesse sentido o Homem de Areia eacute uma das figuraccedilotildees da castraccedilatildeo criatura de quem

se teme uma terriacutevel accedilatildeo A figura do Homem de Areia eacute temida porque este deseja arrancar

os olhos dos meninos que natildeo dormem dos meninos vigilantes que desejam ter o controle de

tudo para alimentar seus filhos que moram na Lua

Como dissemos na seccedilatildeo anterior para Lacan o neuroacutetico recua natildeo da castraccedilatildeo em si

mas da ameaccedila de castraccedilatildeo da ameaccedila de dispor de uma parte de si para propiciar a completude

do Outro Essa proposiccedilatildeo nos abre caminho para articular a sensaccedilatildeo terriacutevel do unheimlich agrave

anguacutestia tal como delineada por Lacan

O desejo que nos conduz a buscar objetos do mundo de modo a retirar deles uma parcela

de satisfaccedilatildeo estaacute velado e marcado por uma falta No entanto em certas circunstacircncias eacute

133

possiacutevel que algo venha a ocupar esse lugar da falta sem que o sujeito possa saber jaacute que se

trata de algo que estaacute em um lugar inapreensiacutevel

Nesse lugar da falta onde algo pode aparecer [] aqui se perfila uma relaccedilatildeo com a reserva libidinal ou seja com esse algo que natildeo se projeta natildeo se investe no niacutevel da imagem especular que eacute irredutiacutevel a ela em razatildeo de permanecer profundamente investido no niacutevel do proacuteprio corpo do narcisismo primaacuterio daquilo a que chamamos de auto-erotismo de um gozo autista (LACAN 1962-19632005 p 55)

Quando algo efetivamente aparece no lugar da falta irrompe a anguacutestia

[] a anguacutestia surge quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar que chamarei para me fazer entender de natural ou seja o lugar (-phi) que corresponde [] ao lugar ocupado [] pelo a do objeto do desejo Eu disse alguma coisa ndash entendam uma coisa qualquer (LACAN 1962-19632005 p 51)

Lacan nomeia essa alguma coisa que pode produzir anguacutestia do seguinte modo ldquoa

Unheimlichkeit eacute aquilo que aparece no lugar em que deveria estar o menos -phirdquo (LACAN

1962-19632005 p 51) No lugar em que a falta que possibilita a condiccedilatildeo desejante deveria

estar resguardada percebemos irromper alguma coisa seja qual for Qualquer coisa que ao

lugar assinalado pela falta venha lhe conferir uma imagem eacute inquietante Quando a proacutepria falta

falta o que resta a desejar A falta da falta desencadeia a anguacutestia

Retornando agraves contribuiccedilotildees freudianas o personagem que inspira a versatildeo do

complexo de Eacutedipo da peccedila Eacutedipo Rei de Soacutefocles cega-se para expiar sua culpa por ter se

casado com a matildee (FREUD 19001969) Nesse sentido a castraccedilatildeo que Eacutedipo se impotildee eacute no

olhar uma vez que eacute no niacutevel da imagem que algo lhe causa perturbaccedilatildeo O unheimlich parece

estar invariavelmente relacionado a uma questatildeo do olhar Nesse sentido o elemento que causa

estranhamento surge sempre enquadrado numa cena numa janela ou numa cortina que se abre

no recorte de visatildeo de onde vemos e somos vistos

Como comenta Lacan natildeo pode ser dito aparece de repente de suacutebito ldquoapresenta-se

atraveacutes de claraboiasrdquo (LACAN 1962-19632005 p 86) Eacute interessante pensar a partir desse

comentaacuterio de Lacan a relaccedilatildeo que se estabelece entre o heroacutei traacutegico e os deuses gregos

supondo que um vecirc o outro pela claraboia celeste O ato de Eacutedipo de se privar da visatildeo furando

os olhos cortando o eixo da relaccedilatildeo de ver-e-ser-visto eacute uma representaccedilatildeo do limite a que

chegou em sua vida da impossibilidade de seguir vivendo do mesmo modo apoacutes descobrir a

134

terriacutevel verdade Precisaria transformar alguma coisa perder uma parte de si para garantir da

ordem do mundo a supremacia divina

Haacute uma relaccedilatildeo que podemos averiguar entre a trilogia traacutegica de Soacutefocles e o conto

fantaacutestico comentado por Freud no ensaio sobre o estranho Embora de estilos narrativos e

eacutepocas bem diferentes e distantes haacute uma peculiar semelhanccedila A boneca Oliacutempia surge no

quadro ou ainda o estudante Nathanael a vecirc atraveacutes da janela e se apaixona por ela sem saber

que se trata de um autocircmato Quem teve a oportunidade de ler a histoacuteria sabe que o estudante

cai em estado de loucura quando descobre que misteriosamente seus olhos foram roubados e

estatildeo na boneca Oliacutempia Eacutedipo por sua vez apoacutes furar os olhos e sair dos limites de Tebas eacute

acompanhado por Antiacutegona que ocupa o lugar de seus olhos ou seja vecirc o mundo atraveacutes dela

A semelhanccedila que notamos eacute o fato de as duas figuras femininas estarem de certa forma cada

uma a seu modo com os olhos ou com o olhar das figuras masculinas de quem os olhos foram

arrancados ndash de forma metafoacuterica ou em realidade Ocupam esse ponto esse objeto olhar que

eacute compreendido por Lacan como uma das formas do objeto a que vinculam o sujeito ao Outro

Como vimos Freud (19001969) apresenta a teoria sobre Eacutedipo tomando a trageacutedia de

Soacutefocles como uma forma de simbolizaccedilatildeo dos desejos fundamentais de incesto e parriciacutedio

realizados por Eacutedipo que recebe de si mesmo o seu devido castigo Para ele o desejo humano

desdobra-se em diferentes vertentes chegando a um ponto de ambivalecircncia amor-oacutedio A forccedila

da proibiccedilatildeo universal que percorre diferentes culturas em relaccedilatildeo ao duplo desejo incestuoso

e parricida demonstra a forccedila tambeacutem existente nesses desejos Freud reconhece em Eacutedipo a

realizaccedilatildeo daquilo que supotildee a todos noacutes em fantasia o drama que vivenciamos em nossas

vidas na relaccedilatildeo com nossos pais e por isso essa trageacutedia em especiacutefico possui uma forccedila tatildeo

grande Apesar das diferenccedilas culturais entre o povo grego e noacutes as barreiras sociais e histoacutericas

satildeo ultrapassadas e com isso a trageacutedia Eacutedipo Rei apresenta uma estrutura antropoloacutegica

Pois bem de acordo com a teoria freudiana ao assistir agrave peccedila tomamos conhecimento

do conflito que guardamos no inconsciente o qual conseguimos atingir em uma experiecircncia de

reconhecimento por meio da arte No decorrer da trageacutedia nos identificamos com o heroacutei (no

caso Eacutedipo) que padece de um drama muito familiar mas ao realizar o desejo suscita em noacutes

o sentimento de temor por desvendar estranhamente nossas fantasias inconscientes Em funccedilatildeo

da experiecircncia de reconhecimento e estranheza do caraacuteter fictiacutecio da representaccedilatildeo traacutegica que

torna possiacutevel uma accedilatildeo impossiacutevel chegamos agrave purificaccedilatildeo das paixotildees que eacute tomada tambeacutem

como conhecimento sobre noacutes mesmos sobre a direccedilatildeo de nossos desejos

135

Rosenfield (2000) faz uma leitura da obra de Soacutefocles a partir do poeta Houmllderlin que

realiza uma traduccedilatildeo que manteacutem a densidade da letra sofocliana o que pode contribuir para o

entendimento do unheimlich implicado na arte traacutegica De acordo com Rosenfield (2000) a

abordagem houmllderliniana de Eacutedipo Rei ressalta o conflito entre duas diferentes formas de saber

Um saber que se mostra atraveacutes da investigaccedilatildeo do exame racional e do conhecimento que ele

gera e um saber de outra ordem profeacutetico oracular inacessiacutevel agrave razatildeo falho quando utilizado

na praacutetica

A trageacutedia de Eacutedipo comeccedila justamente aiacute ao natildeo diferenciar as formas de saber jaacute que

o heroacutei aspira agrave revelaccedilatildeo desse saber outro ao domiacutenio do saber profeacutetico que estaacute no limite

da existecircncia humana natildeo lhe pertence assim como o saber sobre o proacuteprio destino natildeo lhe

pertence Eacutedipo ao desconhecer a proacutepria origem eacute tomado pelo intenso desejo de alcanccedilar o

domiacutenio absoluto da proacutepria existecircncia o que se refere agrave ldquometaacutefora do desejo fundamentalmente

desmedido que caracteriza a condiccedilatildeo humanardquo (ROSENFIELD 2000 p 102)

Na tentativa de dominar e ao mesmo tempo negar aquilo que de alguma forma

(inconsciente) jaacute sabia o saber profeacutetico da existecircncia Eacutedipo deseja um saber racional e

consciente Eacute este iacutempeto por querer conhecer o assassino de Laio por promover uma busca

incessante atraacutes do culpado para impor-lhe as devidas penas devorando todo o conteuacutedo

profeacutetico como a Esfinge devora quem ignora a resposta para seu enigma que acaba por tornar

Eacutedipo presa objeto no quadro da anguacutestia da trageacutedia Ele se vecirc vendo ele se sabe sabendo

cena perturbadora e insuportaacutevel que o leva a se automutilar

A exatidatildeo a verdade a ciecircncia desautorizam o saber profeacutetico sobre o sujeito e ao fim

resta o estranhamento Na perspectiva de Houmllderlin supotildee Rosenfield (2000) Soacutefocles

apresenta a linguagem como dimensatildeo autocircnoma responsaacutevel por fazer brotar sentidos

independentes do domiacutenio racional de seus agentes O heroacutei se apresenta como errante que

perambula entre sentidos distantes do que a inteligecircncia ediacutepica pode identificar e pretender

Portanto o que visa compreender pelo vieacutes do racional natildeo eacute alcanccedilado pois o sentido eacute apenas

total e ateacute mesmo excessivo quando na aceitaccedilatildeo e no jogo com o saber das premoniccedilotildees e

oraacuteculos inacessiacuteveis a noacutes (ROSENFIELD 2000)

Os personagens da trageacutedia Eacutedipo Rei satildeo desse modo assombrados pela antecipaccedilatildeo

de algo terriacutevel que natildeo pode ser representado que natildeo cabe agrave simbolizaccedilatildeo Haacute algo inquietante

que se pronuncia atraveacutes de suas accedilotildees e de sua linguagem para aleacutem de suas intenccedilotildees

voluntaacuterias (ROSENFIELD 2000)

136

Feita esta apreciaccedilatildeo do unheimlich freudiano na trageacutedia seguimos com a esteacutetica de

Aristoacuteteles

32 A trageacutedia na Poeacutetica de Aristoacuteteles

Na Poeacutetica Aristoacuteteles apresenta o gecircnero traacutegico seu contexto de nascimento os

elementos que o compotildee suas caracteriacutesticas explanando o que seria em sua visatildeo o ideal de

trageacutedia Para o filoacutesofo grego esta arte eacute superior agrave epopeia ou seja aos poemas eacutepicos que

narram mitos e feitos heroicos como eacute o caso da Iliacuteada e da Odisseia atribuiacutedas ao poeta

Homero Aleacutem de contemplar todos os aspectos das narrativas eacutepicas como a meacutetrica o ritmo

o mito a trageacutedia consegue reunir ainda o espetaacuteculo e a muacutesica Nesse sentido conseguimos

entender a ecircnfase que atribui agrave trageacutedia em sua apreciaccedilatildeo de uma forma praacutetica do pensamento

humano uma forma poeacutetica Natildeo podemos contudo desconsiderar o fato consabido da perda

de uma importante parte do texto aristoteacutelico em que ele supostamente trabalharia as

especificidades da comeacutedia e sua relaccedilatildeo com a catarse

Ao fim do texto Aristoacuteteles justifica a superioridade da trageacutedia em relaccedilatildeo agrave epopeia

tambeacutem em funccedilatildeo da finalidade a trageacutedia seria a arte que melhor consegue atingir o propoacutesito

artiacutestico Na sexta parte da Poeacutetica o filoacutesofo define o gecircnero traacutegico e fala de sua finalidade

a qual seria a imitaccedilatildeo ou a representaccedilatildeo de accedilotildees

[] o elemento mais importante eacute a trama dos fatos pois a trageacutedia natildeo eacute imitaccedilatildeo dos homens mas de accedilotildees e de vida de felicidade [e infelicidade mas felicidade] e infelicidade reside na accedilatildeo e a proacutepria finalidade da vida eacute uma accedilatildeo natildeo uma qualidade Ora os homens possuem tal ou tal qualidade conformemente ao caraacuteter mas satildeo bem ou mal-aventurados pelas accedilotildees que praticam Daqui se segue que na trageacutedia natildeo agem as personagens para imitar caracteres mas assumem caracteres para efetuar certas accedilotildees por isso as accedilotildees e o mito constituem a finalidade da trageacutedia e a finalidade eacute de tudo o que mais importa (Poeacutetica VI 1450a 16-22)

A partir do que Aristoacuteteles define como finalidade da trageacutedia ou seja a representaccedilatildeo

de accedilotildees podemos tentar entender qual o seu interesse por essa temaacutetica no contexto de sua

obra Lacan (1959-19601997) ao apresentar seu programa da eacutetica da psicanaacutelise reporta-se

agrave eacutetica aristoteacutelica as accedilotildees do ser humano tendem a um bem e o bem uacuteltimo eacute a felicidade a

qual pode ser entendida como um bem supremo A essecircncia humana se expressa nessa busca

pela felicidade embora de acordo com Freud (19302012) natildeo haja nada na civilizaccedilatildeo que

137

garanta ao ser humano a realizaccedilatildeo do desejo de ser feliz Por sua vez Aristoacuteteles parecia

preocupar-se com isso de que modo o homem poderia encontrar o caminho para a felicidade

que garantia poderia a poacutelis grega dar agrave felicidade dos cidadatildeos Nesse sentido a trageacutedia

poderia cumprir uma funccedilatildeo social numa educaccedilatildeo para a vida feliz ao retratar accedilotildees que

conduzem da felicidade agrave infelicidade ou vice-versa Lembrando que se a finalidade da accedilatildeo

humana eacute um bem eacute a felicidade a finalidade da trageacutedia eacute tatildeo somente a accedilatildeo

Na Poliacutetica Aristoacuteteles fala de um ideal de vida em sociedade de uma educaccedilatildeo moral

para se atingir a felicidade Haacute uma retomada do efeito cataacutertico mas dessa vez o filoacutesofo o

menciona como suscitado pela muacutesica Essa arte eacute capaz de provocar emoccedilotildees distintas eacute capaz

de apaixonar comover e acalmar dependendo do modo como nos aproximamos dela Fala de

estilos e harmonias diferentes e de tipos de instrumentos

Como lembra Lacan a muacutesica assume um papel na trageacutedia o efeito cataacutertico de

purificar temor e piedade provocando um certo prazer e permitindo o retorno a um certo estado

normal um apaziguamento interno

Qual eacute entatildeo esse prazer ao qual se retorna depois de uma crise que se desenvolve numa outra dimensatildeo que num dado momento o ameaccedila pois sabe-se a que extremos uma muacutesica entusiasmadora pode levar Eacute aqui que a topologia que definimos do prazer como sendo a lei do que se desenrola aqueacutem do aparelho onde o temiacutevel centro de aspiraccedilotildees do desejo nos atrai permite-nos talvez convergir melhor do que se fez ateacute aqui com a intuiccedilatildeo aristoteacutelica (LACAN 1959-19601997 p 298)

Podemos entender que embora o desejo inconsciente do qual fala Freud o mesmo que

participa da formulaccedilatildeo da eacutetica da psicanaacutelise segundo Lacan natildeo faccedila parte do que Aristoacuteteles

pretendeu definir como eacutetica eacute possiacutevel encontraacute-lo no que o filoacutesofo chamou de prazer obtido

na experiecircncia da trageacutedia sistematizada na Poeacutetica Isso porque o que importa para Lacan na

eacutetica eacute a conformidade das accedilotildees com o desejo inconsciente a quem age ou seja o desejo

aparece em accedilatildeo mas dele o indiviacuteduo nada sabe

Da mesma forma para Aristoacuteteles o que importa na bela arte traacutegica eacute a accedilatildeo e ela eacute

quem define as caracteriacutesticas do heroacutei ou seja podemos entender com isso que a accedilatildeo antecipa

a posiccedilatildeo subjetiva natildeo o contraacuterio e essa noccedilatildeo estaacute em conformidade com a eacutetica da

psicanaacutelise No entanto se formos analisar o entendimento de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave sua

noccedilatildeo de eacutetica haacute um distanciamento do que fala sobre a trageacutedia pois o foco estaacute na moral e

nos bons costumes dos cidadatildeos conscientes de seus atos

138

Quanto agrave catarse ou seja agrave purificaccedilatildeo do temor e da piedade efeitos da trageacutedia cabem

algumas colocaccedilotildees De acordo com Aristoacuteteles ldquosuscitando o terror e a piedade [a trageacutedia]

tem por efeito a purificaccedilatildeo dessas emoccedilotildeesrdquo (Poeacutetica VI 1449b 25-28) Lacan nos fornece o

termo no original grego ldquodirsquo eleou kai phobou perainousa ten ton toiouton pathematon

kaacutetharsinrdquo (LACAN 1959-19601997 p 297) O psicanalista designa o termo kaacutetharsin ou

catarse como purificaccedilatildeo ou purgaccedilatildeo Na eacutepoca em que foi sugerida por Aristoacuteteles tal

expressatildeo era conhecida no campo meacutedico e se referia a eliminaccedilotildees do organismo com o

objetivo de retorno a um estado normal

No entanto Lacan reconhece que tal forma de nomear a meta da trageacutedia natildeo era

exclusiva do campo meacutedico jaacute que haacute estudiosos que a relacionam a uma purificaccedilatildeo ritual o

que teria mais proximidade com o proacuteprio surgimento da arte Qualquer conclusatildeo no sentido

de conhecer a origem do termo empregado por Aristoacuteteles eacute precipitada na medida em que haacute

uma parte da Poeacutetica perdida na qual se supotildee que o filoacutesofo teria trabalhado mais

detalhadamente sobre esse conceito

Destacamos a lembranccedila de Lacan da catarse na tradiccedilatildeo meacutedica termo utilizado

seacuteculos mais tarde na experiecircncia psicanaliacutetica com Freud e Breuer A catarse teria a funccedilatildeo

de uma descarga motora em ato de afetos que ficariam em suspensatildeo no aparelho psiacutequico

desligados do evento que os teria originado

Triacuteas (2010) nos ajuda a ampliar o entendimento do que seriam tais paixotildees humanas

O temor fobos em alguns casos traduzido para o portuguecircs como ldquoterrorrdquo designa um

sentimento de medo do espectador em relaccedilatildeo ao heroacutei traacutegico agraves suas accedilotildees e ao destino que

jaacute pode ser entrevisto agrave medida que se acompanha a linha de accedilatildeo O espectador sente um

impulso por se afastar da cena Ao mesmo tempo sente tambeacutem compaixatildeo piedade o eacuteleos

ao se identificar com o desejo do heroacutei ao admirar sua coragem seu iacutempeto sua forccedila

qualidades que pode ter como ideais das quais deseja se aproximar

Nesse sentido o jogo de tensotildees a ambiguidade de paixotildees que o percurso heroico

provoca nos espectadores lembra a duplicidade afetiva do unheimlich estranho e familiar

Ainda que a cena desperte inquietaccedilatildeo perturbaccedilatildeo afastamento haacute alguma trama

acontecendo aos poucos de cena a cena que prende que costura com a histoacuteria de vida de

cada um que assiste agrave trageacutedia que lecirc o que favorece a transmissatildeo da experiecircncia traacutegica o

reconhecimento do outro a noccedilatildeo de alteridade o entendimento de que aquele drama poderia

ocorrer a qualquer um de noacutes Assim se constroacutei uma forma de saber sobre a vida

139

Lacan (1959-19601997 p 300) ao estudar a peccedila Antiacutegona nos diz que ldquopelo

intermeacutedio da piedade e do temor somos purgados purificados de tudo o que eacute dessa ordem

Essa ordem podemos entatildeo reconhececirc-la ndash eacute a seacuterie do imaginaacuterio propriamente dita E somos

dela purgados pelo intermeacutedio de uma imagem dentre outrasrdquo Lacan nos explica que essa

imagem eacute a da beleza de Antiacutegona no lugar entre a vida e a morte A sua contribuiccedilatildeo a esse

entendimento da purgaccedilatildeo das paixotildees eacute quanto ao desejo articulado a elas Diz ele que na

travessia do lugar onde a heroiacutena fica presa ldquoo raio do desejo se reflete e ao mesmo tempo se

retrai chegando a nos dar esse efeito tatildeo singular o mais profundo que eacute o efeito do belo no

desejordquo (LACAN 1959-19601997 p 302) Nesse sentido eacute o desejo humano que estaacute

implicado nos efeitos de temor e piedade da trageacutedia

Aristoacuteteles define o desenlace como o periacuteodo da trageacutedia que se inicia com a ocorrecircncia

de uma mudanccedila de sorte e termina com o final da peccedila Para o filoacutesofo o desenlace traacutegico eacute

fruto do jogo entre os elementos presentes na histoacuteria desde o iniacutecio dispensando o uso de

novos recursos cecircnicos para propor o final da cena traacutegica O desenlace assim decorre emana

da trama traacutegica

Um dos recursos cecircnicos propostos na trageacutedia antiga era o deus ex machina Para

Aristoacuteteles sua intervenccedilatildeo natildeo deveria fazer parte da cena traacutegica pois as accedilotildees dos

personagens eram de certa forma alheias a esse recurso bem como o modo como

encaminhavam o desenlace do drama Acerca do deus ex machina Aristoacuteteles propotildee

Ao deus ex machina [] natildeo se deve recorrer senatildeo em acontecimentos que se passam fora do drama ou nos do passado anteriores aos que se desenrolam em cena ou nos que ao homem eacute vedado conhecer ou nos futuros que necessitam ser preditos ou prenunciados ndash pois que aos deuses atribuiacutemos noacutes o poder de tudo verem (Poeacutetica XV 1454b 1-7 grifos nossos)4

No entanto algumas peccedilas da trageacutedia antiga contrariando a esteacutetica aristoteacutelica

apresentada no seacuteculo IV aC apresentavam o deus ex machina como artifiacutecio para conferir

uma soluccedilatildeo aos conflitos traacutegicos um deus grego descia ao centro da accedilatildeo atraveacutes de uma

maquinaria a fim de dar um encaminhamento definitivo aos impasses do drama O recurso ao

deus ex machina proposto como elemento exterior ao enredo capaz de nele ingressar para

desenhar uma soluccedilatildeo derradeira aos conflitos contraria o que no dizer de Aristoacuteteles

caracteriza a trageacutedia

4 A referecircncia do texto de Aristoacuteteles segue a numeraccedilatildeo Bekker estabelecida pela Revised Oxford Translation

140

Entrevemos o nascedouro do decliacutenio da dimensatildeo traacutegica da experiecircncia humana

localizada em sua forma narrativa na esteacutetica da trageacutedia grega no surgimento de peccedilas que

apresentavam o deus ex machina como forma intervir sobre os impasses como foi o caso de

peccedilas do tragedioacutegrafo Euriacutepides Nietzsche (18721992) em seu trabalho O nascimento da

trageacutedia situa nesse dramaturgo o fim da trageacutedia antiga e elenca como um de seus motivos

a forma como propunha esse dispositivo cenograacutefico

Mas como um recurso cecircnico pode ser capaz de modificar a esteacutetica dramaacutetica o modo

de o humano representar o traacutegico De que forma um autor pode ser responsaacutevel pelo fim de

um gecircnero tatildeo aclamado em seu tempo Eacute importante questionar o contexto social grego quais

laccedilos sustentavam as relaccedilotildees entre os cidadatildeos quais mudanccedilas poliacuteticas e de pensamento

vivenciavam jaacute que isso pode ter contribuiacutedo para que Euriacutepides inovasse em sua forma de

interpretar os mitos de apresentar o que considerava essencial nas histoacuterias que escolhia colocar

em cena Ainda assim eacute importante considerar que se para Nietzsche Euriacutepides eacute responsaacutevel

pelo fim da trageacutedia claacutessica para Aristoacuteteles ele eacute o mais traacutegico dos poetas

Nesse sentido nas linhas que se seguem vamos conhecer como o filoacutesofo Nietzsche

compreende a trageacutedia de que modo em sua visatildeo o drama euripidiano acaba com esse gecircnero

traacutegico e como o uso deus ex machina estaacute implicado nessa mudanccedila Interessa a este trabalho

fazer tal apreciaccedilatildeo a fim de tentar compreender o modo como noacutes hoje lidamos com a

dimensatildeo do traacutegico no laccedilo social educativo visto que muitas vezes apelamos a uma soluccedilatildeo

desta natureza para intervir na escolarizaccedilatildeo de crianccedilas

33 A morte da trageacutedia

Em seu livro O nascimento da trageacutedia Nietzsche apresenta a origem desse gecircnero

dramaacutetico sua ascensatildeo e seu decliacutenio Chamamos esta parte da escrita de ldquomorte da trageacutediardquo

porque desejamos destacar de que modo o filoacutesofo entende a transiccedilatildeo da representaccedilatildeo claacutessica

para outras formas de representar a arte da cena Mas antes elencamos alguns pontos do texto

de Nietzsche que abordam a trageacutedia em vida

141

331 Apoliacutenio-dionisiacuteaco

O desenvolvimento da arte da trageacutedia depende da tensatildeo entre os opostos apoliacuteneo e

dionisiacuteaco os quais raramente encontram uma conciliaccedilatildeo O universo artiacutestico apoliacuteneo se

refere ao deus grego Apolo e representa o sonho humano projetado pela arte plaacutestica e o

universo artiacutestico dionisiacuteaco do deus grego Dioniacutesio refere-se agrave embriaguez da arte natildeo

figurada da muacutesica (NIETZSCHE 18721992)

Segundo o filoacutesofo alematildeo ldquoApolo na qualidade de deus dos poderes configuradores

eacute ao mesmo tempo o deus divinatoacuterio Ele segundo a raiz do nome o lsquoresplendentersquo a divindade

da luz reina tambeacutem sobre a bela aparecircncia do mundo interior da fantasiardquo (NIETZSCHE

18721992 p 29) A forccedila do deus da luz caracteriza o impulso apoliacuteneo ou seja a beleza da

aparecircncia das coisas a confianccedila e a tranquilidade diante de um mundo de tormentos a partir

do princiacutepio de individuaccedilatildeo Esse princiacutepio o autor o retira da filosofia de Schopenhauer e

pode se referir agrave crenccedila numa essecircncia uacutenica e indivisiacutevel que natildeo se deixa abalar Assim

[] tampouco deve faltar agrave imagem de Apolo aquela linha delicada que a imagem oniacuterica natildeo pode ultrapassar a fim de natildeo atuar de um modo patoloacutegico pois do contraacuterio a aparecircncia nos enganaria como realidade grosseira isto eacute aquela limitaccedilatildeo mensurada aquela liberdade em face das emoccedilotildees mais selvagens aquela sapiente tranquilidade do deus plasmador (NIETZSCHE 18721992 p 30)

Natildeo obstante quando a delicada linha se rompe cedendo ao oniacuterico um lugar para o

patoloacutegico para o abjeto ou seja quando o terror atinge o homem rompendo esse princiacutepio de

individuaccedilatildeo e um poderoso ecircxtase adveacutem com essa quebra eacute o impulso dionisiacuteaco que se

apodera do humano anaacutelogo a uma sensaccedilatildeo de embriaguez A forccedila de Dioniacutesio potildee o humano

a cantar e danccedilar a conciliar-se com os outros de forma a romper com os limites que

diferenciam os homens unindo-os num soacute O ser humano sente-se parte da natureza funde-se

a ela aos animais e plantas sente-se como um deus enlevado extasiado Como aponta

Nietzsche (18721992 p 31) no impulso dionisiacuteaco

O homem natildeo eacute mais artista tornou-se obra de arte a forccedila artiacutestica de toda a natureza para a deliciosa satisfaccedilatildeo do Uno-primordial revela-se aqui sob o frecircmito da embriaguez A argila mais nobre a mais preciosa pedra de maacutermore eacute aqui amassada e moldada []

142

Dessa forma habita no homem duas tendecircncias opostas regidas pelas forccedilas de Apolo e

Dioniacutesio do mesmo modo que o humano se sente impelido por criar coisas belas por afirmar

sua essecircncia como indiviacuteduo uacutenico lutando contra os tormentos da vida ele tambeacutem se deixa

moldar pelas matildeos do mundo chegando ao seu estado de argila pronto a ser fundido com a

natureza pronto a fazer-se obra de arte

De acordo com Nietzsche (18721992) a trageacutedia grega originou-se da conciliaccedilatildeo

desses dois impulsos A sua tese compartilhada por outros pensadores da eacutepoca eacute a de que suas

primeiras formas de expressatildeo apareceram com o coro do ditirambo um coro que se

diferenciava de qualquer outro pois as pessoas que cantavam e danccedilavam em honra a Dioniacutesio

suspendiam qualquer marca civilizatoacuteria qualquer funccedilatildeo social e encarnavam saacutetiros seres

sublimes e divinos que tinham a forma hiacutebrida homem-bode e que possuiacuteam uma visatildeo

desvelada da natureza por serem a representaccedilatildeo da forccedila do impulso do deus Dioniacutesio A forma

final do coro da trageacutedia eacute a imitaccedilatildeo artiacutestica desse protoacutetipo do qual surgiu tambeacutem a figura

do ator No periacuteodo mais antigo da trageacutedia Dioniacutesio natildeo estava presente em cena

verdadeiramente mas era representado pelo coro que deu origem agrave proacutepria trageacutedia

Esse coro contempla em sua visatildeo o seu senhor e mestre Dioniacutesio e eacute por isso eternamente o coro servente ele vecirc como este o deus padece e se glorifica e por isso ele proacuteprio natildeo atua Nessa posiccedilatildeo de absoluto servimento em face do deus o coro eacute pois literalmente a mais alta expressatildeo da natureza e profere como esta em seu entusiasmo sentenccedilas de oraacuteculo e de sabedoria como compadecente ele eacute ao mesmo tempo o saacutebio que do coraccedilatildeo do mundo enuncia a verdade (NIETZSCHE 18721992 p 61)

Nietzsche (18721992) aponta o quanto o coro dos primoacuterdios da arte traacutegica chamado

de espectador ideal difere-se dos espectadores de sua eacutepoca jaacute que esses natildeo habitam a cena

traacutegica tal como o coro apesar de este representar a multidatildeo o homem comum e simples O

coro sofre com o heroacutei traacutegico pois antevecirc e profere a sua ruiacutena Lacan (1959-19601997 p

305) aborda o papel do coro no seu comentaacuterio sobre Antiacutegona afirmando que ldquoo Coro satildeo as

pessoas que se emocionamrdquo O espectador comum para ele estaacute livre de qualquer preocupaccedilatildeo

ou comprometimento em se emocionar Eacute o coro quem assume o papel da emoccedilatildeo que se supotildee

ser expressa pelo povo que assiste agrave cena

A partir de Schiller Nietzsche afirma que o coro eacute como uma muralha viva que se coloca

sobre a realidade atroz jaacute que entrevecirc a vida de forma mais crua e real ldquomais completa do que

o homem civilizado que comumente julga ser a uacutenica realidaderdquo (NIETZSCHE 18721992 p

143

57) Ou seja eacute como se o coro formasse uma barreira de proteccedilatildeo aos olhos do homem

civilizado que natildeo pode sentir ou ver a olho nu a crueza de um mundo miacutetico que o antecedeu

E com isso as pessoas do coro conhecem uma verdade inacessiacutevel ao espectador comum talvez

porque tal acesso seja simplesmente impossiacutevel

Todos os elementos cecircnicos que surgem posteriormente ao coro revelando sua

diferenciaccedilatildeo e seus contrastes expressam a dimensatildeo apoliacutenea da aparecircncia das coisas O

apoliacuteneo aparece no diaacutelogo da trageacutedia de forma clara e bela E assim o coro tambeacutem participa

de um diaacutelogo a partir do qual pode transmitir ao puacuteblico aquilo que o vento sopra em seus

ouvidos aquilo que a luz irradia em seus olhos

Nietzsche faz especial alusatildeo agrave dimensatildeo apoliacutenea na trageacutedia de Soacutefocles pois a

linguagem do heroacutei eacute tatildeo clara e precisa que acaba por conduzir o espectador por um caminho

surpreendentemente curto ao mais iacutentimo e ao mais fundo do heroacutei O que isso significa Que

o heroacutei traacutegico consegue aproximar o espectador de seu desejo por meio do arranjo de suas

palavras sem dizecirc-lo Aquilo que surge na superfiacutecie a aparecircncia a imagem luminosa do heroacutei

pode se revelar como resultante de um olhar que mira o mais fundo do ser como o autor mostra

na seguinte passagem

Quando numa tentativa eneacutergica de fitar de frente o Sol nos desviamos ofuscados surgem diante dos olhos como uma espeacutecie de remeacutedio manchas escuras inversamente as luminosas apariccedilotildees dos heroacuteis de Soacutefocles em suma o apoliacuteneo da maacutescara satildeo produtos necessaacuterios de um olhar no que haacute de mais iacutentimo e horroroso na natureza como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite medonha (NIETZSCHE 18721992 p 63)

A noite medonha a dimensatildeo dionisiacuteaca da trageacutedia eacute revestida pela luz apoliacutenea

Soacutefocles parece oferecer no apoliacuteneo de sua trageacutedia a beleza de sua obra Bela agrave medida do

horror que ela oculta

E o que ela oculta eacute o proacuteprio deus Dioniacutesio sob a maacutescara de tantos outros heroacuteis que

representam o seu sofrimento E de que sofrem os heroacuteis Nietzsche fala sobre Eacutedipo Em Eacutedipo

Rei em que busca investigar o assassino de Laio seu pai bioloacutegico Eacutedipo ignora que ele mesmo

o fizera e que se casara com Jocasta sua matildee ele atenta contra a natureza ao decifrar o enigma

da Esfinge ao ousar conhecer segredos da natureza Em funccedilatildeo disso destroacutei aquilo que deve

ser sua proacutepria natureza revelando que havia cometido os crimes de parriciacutedio e incesto

144

Haacute uma antiquiacutessima crenccedila popular persa sobretudo segundo a qual um saacutebio mago soacute podia nascer do incesto o que noacutes em relaccedilatildeo a Eacutedipo o decifrador do enigma e desposante de sua matildee devemos interpretar imediatamente no sentido de que laacute onde por meio das forccedilas divinatoacuterias e maacutegicas foi quebrado o sortileacutegio do presente e do futuro a riacutegida lei da individuaccedilatildeo e mesmo o encanto proacuteprio da natureza laacute deve ter-se antecipado como causa primordial uma monstruosa transgressatildeo da natureza ndash como era ali o incesto pois como se poderia forccedilar a natureza a entregar seus segredos senatildeo resistindo-lhe vitoriosamente isto eacute atraveacutes do inatural Este conhecimento eu o vejo cunhado naquela espantosa triacuteade do destino edipiano aquele que decifra o enigma da natureza ndash essa esfinge biforme ndash ele mesmo tem de romper tambeacutem como assassino do pai e esposo da matildee as mais sagradas ordens da natureza (NIETZSCHE 18721992 p 65)

Eacute possiacutevel dizer que desse rompimento adveacutem o dionisiacuteaco o saber dionisiacuteaco A partir

do que Nietzsche propotildee sobre Eacutedipo o que podemos pensar sobre outra trageacutedia de Soacutefocles

que compotildee a trilogia tebana Antiacutegona em tal armadilha do inatural

A princesa de Tebas eacute filha de Eacutedipo e de Jocasta filha de seu proacuteprio irmatildeo materno

filha de sua proacutepria avoacute paterna ou seja fruto de uma monstruosa genealogia que deve honrar

com sua proacutepria morte Sua destruiccedilatildeo eacute o preccedilo que escolhe pagar por ser ela mesma

transgressatildeo da natureza Parece-nos que viver em seu caso eacute violar o natural Paradoxalmente

ao escolher quando morrer ou seja ao natildeo deixar que sua vida flua em direccedilatildeo ao matrimocircnio

e agrave maternidade a jovem Antiacutegona pode tambeacutem transgredir a natureza

Antiacutegona porta em si mesma um antinatural e natildeo um princiacutepio natural suposto pelos

gregos O fato de ter nascido de existir resistir eacute ultrapassar um limite humano a aacutetē lugar de

seu destino final para onde caminha seu desejo Origem e destino convergem em Antiacutegona Ao

mesmo tempo que paga o preccedilo de ser um crime ela o comete

Qual o crime contra a natureza que ela mesma comete para aleacutem do crime contra o

interdito de enterrar o irmatildeo Talvez o de saber ser uma morta-viva Rumo agrave sua morte a

proacutepria Antiacutegona questiona ldquoQue mandamentos transgredi das divindadesrdquo (Antiacutegona v

1027) Talvez o mandamento de preservar a ignoracircncia sobre o proacuteprio destino pois a heroiacutena

o sabe opta por morrer de causas natildeo naturais impede que a natureza haja em seu corpo

permitindo casar ter filhos envelhecer Antiacutegona antecipa sua morte morada final de todos

noacutes De acordo com Nietzsche (18721992 p 65) ldquoa sabedoria e precisamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute um horror antinatural que aquele que por seu saber precipita a natureza no abismo

da destruiccedilatildeo haacute de experimentar tambeacutem em si proacuteprio a desintegraccedilatildeo da naturezardquo

145

O saber sobre a proacutepria natureza deve permanecer intacto como um eterno misteacuterio

enigma a ser desvendado durante uma vida mas que de fato nunca pode ser

Assim Antiacutegona natildeo age de acordo com a mesma natureza suposta nos demais cidadatildeos

tebanos O rei Creonte a acusa de agir de modo diferente do povo ao recusar seguir a lei que

impocircs agrave cidade ou seja as palavras de interdito contra aquele que ousar enterrar o traidor do

reino Polinices Antiacutegona eacute chamada de desumana Para o povo de Tebas natureza e

humanidade satildeo valores ausentes na heroiacutena

Uma questatildeo que se coloca agora e que vale uma breve discussatildeo eacute sobre o natural no

homem Existe uma natureza especificamente humana que se violada torna o homem

antinatural digno de destruiccedilatildeo Estaacute na natureza a humanidade do homem O que torna o

homem ser humano A filosofia desde a Antiguidade buscou responder qual seria o proacuteprio

do humano Natildeo eacute o propoacutesito deste trabalho discorrer sobre as mais variadas teorias que

buscam dar conta dessa inquietante questatildeo que por si soacute nos mobiliza Mas buscamos olhaacute-la

a partir do entendimento da psicanaacutelise A escolha por pensar a partir desse campo eacute em funccedilatildeo

da abertura que este saber oferece ao conhecimento que concerne agrave trageacutedia antiga ou seja agrave

sua relaccedilatildeo com a palavra e com o fazer

Num artigo em que aborda o brincar no iniacutecio da escolarizaccedilatildeo como um exerciacutecio que

permite agrave crianccedila a entrada no universo do simboacutelico Moschen (2011) argumenta que o que

podemos chamar de humano dificilmente encontra suas bases na natureza A autora explica que

Qualquer raciociacutenio que se desdobre reivindicando sua legitimidade numa suposta Natureza dos homens seraacute facilmente derrubado por uma simples reflexatildeo histoacuterica capaz de nos mostrar que os homens se produzem como homens quando satildeo assujeitados agraves condiccedilotildees de uma ancestralidade que configura um campo de possibilidades e de limitaccedilotildees para a sua realizaccedilatildeo (MOSCHEN 2011 p 91)

O ser humano natildeo parece ter em si um coacutedigo de conduta natural para ser o que eacute Sua

fisiologia e sua geneacutetica podem importar para determinar questotildees condizentes ao organismo

mas natildeo agrave humanidade Ele se torna humano ao se submeter agravequilo que o precede aos seus

ancestrais e a uma linha que separa seus limites e possibilidades Mas como o homem pode

acessar esse legado Como ele se sujeita a uma ancestralidade De acordo com Moschen

(2011) os homens se tornam humanos quando satildeo assim chamados por outros seres humanos

antecessores Somente eacute possiacutevel a estes dar as boas-vindas aos pequenos homens que chegam

ao mundo nomeando seus iguais porque eles mesmos se submetem agrave linguagem Com efeito

146

A humanizaccedilatildeo do organismo vai se dar no entre-lugares de um assujeitamento agraves condiccedilotildees histoacutericas transmitidas pelos adultos proacuteximos agraves crianccedilas e da tomada de posiccedilatildeo do pequeno frente a esses determinantes que lhe chegam vindos de uma ancestralidade que ele natildeo domina (MOSCHEN 2011 p 91)

Ser humano eacute a possibilidade de ir aleacutem da condiccedilatildeo de organismo atraveacutes da

transmissatildeo da ancestralidade feita pelos adultos ou seja por aqueles jaacute submetidos agrave

linguagem e atraveacutes da postura diante de tal transmissatildeo o que ocorre no entre-lugar onde

emerge o sujeito Parece natildeo haver nada na natureza que defenda o caraacuteter humano do homem

A humanidade se encontra nos contornos simboacutelicos que a definem que para Antiacutegona

estatildeo num ponto mais aleacutem em relaccedilatildeo agraves leis compartilhadas pelos tebanos Ela o ultrapassa

com o seu desejo de morte sustentando as origens de sua famiacutelia a aacutetē familiar

Eacute nesse sentido que a princesa de Tebas sofre o julgamento dos cidadatildeos tebanos pois

como seres humanos que satildeo natildeo a reconhecem como parte de um legado compartilhado entre

eles Para os tebanos Antiacutegona eacute cruel e inflexiacutevel caracteriacutesticas que situam uma

impossibilidade de tomaacute-la como pertencente ao que os humaniza Mas eacute justamente aiacute que

Antiacutegona parece fundar uma humanidade a sua no firme terreno de sua eacutetica que a faz honrar

a ancestralidade que lhe foi transmitida ao enterrar o irmatildeo ao mesmo tempo que torna

manifesta sua posiccedilatildeo subjetiva a de ser uma morta-viva a de querer morrer

O que assombra a cidade de Tebas talvez seja o pano de fundo de suas accedilotildees a dimensatildeo

dionisiacuteaca escondida em sua linguagem apoliacutenea a sua plena convicccedilatildeo do que deseja morrer

sem desvios sem enganos ou ilusotildees uma linha reta traccedilada de seus peacutes ateacute o tuacutemulo ou seja

manifestaccedilatildeo plena da pulsatildeo de morte Assusta a sua plena ldquoconsciecircnciardquo demonstrada em

accedilatildeo sobre seu proacuteprio destino tanto que a chamam de desumana Talvez seja mesmo

desumana por sustentar seu desejo para aleacutem dos limites simboacutelicos que contornam a vida na

polis grega a vida compartilhada com os outros inscritos em uma cultura Talvez seja ldquohumana

demaisrdquo atribuiccedilatildeo dos heroacuteis e heroiacutenas caracterizados com as melhores disposiccedilotildees dos

homens e mulheres conforme Aristoacuteteles considerando que dentre tais disposiccedilotildees esteja a

fidelidade a seu proacuteprio desejo e agrave luta para sua realizaccedilatildeo

Nos entrelugares da servidatildeo agrave ancestralidade e da posiccedilatildeo diante do legado rumo ao

leito de morte viva e humana o que ela faz eacute se lamentar Um lamento apoliacuteneo que expressa

147

sorrateiramente o horror dionisiacuteaco Antiacutegona nasce como sujeito autocircnomos num espaccedilo curto

de tempo na trageacutedia encabeccedilada por seu nome proacuteprio

[] um leito nupcial jamais terei nem ouvirei hinos de bodas nem sentirei as alegrias conjugais nem filhos amamentarei hoje sozinha sem nenhum amigo parto ndash ai infeliz de mim ndash ainda viva para onde os mortos moram (Antiacutegona vv 1021-1026)

Tecendo em belo discurso apoliacuteneo Antiacutegona expressa o dionisiacuteaco colocando em cena

o tensionamento das duas forccedilas que formam o que eacute essencial na trageacutedia na visatildeo de

Nietzsche como heroiacutena legiacutetima do aclamado Soacutefocles Faccedilamos agora algumas

consideraccedilotildees sobre Euriacutepides no que tange agraves duas dimensotildees traacutegicas

332 Euriacutepides por Nietzsche

Nietzsche (18721992) aponta que Euriacutepides foi responsaacutevel por excluir o dionisiacuteaco da

trageacutedia grega e com isso responsaacutevel tambeacutem pela morte do gecircnero que dependia de uma

conciliaccedilatildeo possiacutevel entre os impulsos de Apolo e os de Dioniacutesio Em suas palavras

Excisar da trageacutedia aquele elemento dionisiacuteaco originaacuterio e onipotente e voltar a construiacute-la de novo puramente sobre uma arte uma moral e uma visatildeo do mundo natildeo dionisiacuteacas ndash tal eacute a tendecircncia de Euriacutepides que agora se nos revela em luz meridiana (NIETZSCHE 18721992 p 78)

Como seria uma arte uma moral e uma visatildeo de mundo natildeo dionisiacuteacas Um aspecto

apontado por Nietzsche (18721992) diz respeito ao lugar conferido por Euriacutepides ao homem

comum em suas trageacutedias ele que colocou no centro da cena a imitaccedilatildeo do cotidiano com todas

as caracteriacutesticas e psicologismos dos personagens o que foi muito caro ao surgimento da

comeacutedia nova Poreacutem isso demarcou o fim da trageacutedia antiga De acordo com Nietzsche pelo

intermeacutedio de Euriacutepides

[] o homem da vida cotidiana deixou o acircmbito dos espectadores e abriu caminho ateacute o palco o espelho em que antes apenas os traccedilos grandes e audazes chegavam agrave expressatildeo mostrou agora aquela desagradaacutevel exatidatildeo

148

que tambeacutem reproduz conscienciosamente as linhas mal traccediladas na natureza (NIETZSCHE 18721992 p 73-74)

Para sustentar a realidade dionisiacuteaca na trageacutedia eacute preciso manter uma certa imprecisatildeo

uma atmosfera enigmaacutetica uma inexatidatildeo da imitaccedilatildeo dos personagens e natildeo expor na

superfiacutecie da fala e das accedilotildees um personagem comum que poderia ser visto todos os dias por

qualquer um desvelado na vida cotidiana

Um certo enigma um inatingiacutevel um natildeo clarificaacutevel do homem deveria ser mantido

como a forccedila do drama decorrente da sua origem em Dioniacutesio ou seja num mundo que natildeo

conhece fronteiras entre os seres Era justamente aiacute que residia a potecircncia dos dramas

inventados pelos tragedioacutegrafos antigos

O filoacutesofo alematildeo alega que Euriacutepides como um pensador buscou estudar e

compreender a estrutura das obras-primas da trageacutedia de seus antecessores Eacutesquilo e Soacutefocles

mas se deparou com muitas incertezas ldquo[] percebeu alguma coisa de incomensuraacutevel em cada

traccedilo e em cada linha uma certa precisatildeo enganadora e ao mesmo tempo uma profundidade

enigmaacutetica sim uma infinitude do fundordquo (NIETZSCHE 18721992 p 77)

Ora o que eacute essa coisa incomensuraacutevel essa infinitude essa profundidade intrigante a

Euriacutepides senatildeo a percepccedilatildeo da proacutepria dimensatildeo dionisiacuteaca O autor buscou dar forma

controlar domesticar algo que resiste agrave domesticaccedilatildeo que deve permanecer ali borrado no

desenho do quadro da cena traacutegica Como ele natildeo pocircde explicar racionalmente tal sensaccedilatildeo

tratou-a como exagerada como desnecessaacuteria como inimiga da criaccedilatildeo e resolveu eliminar de

suas obras traacutegicas os arranjos atraveacutes dos quais o dionisiacuteaco parecia ganhar expressatildeo

Ao abordar o espiacuterito traacutegico presente na traduccedilatildeo de Antiacutegona de Soacutefocles feita pelo

poeta alematildeo Holderlin Rosenfield (2000) enfatiza essa dupla dimensatildeo com a qual a trageacutedia

se fazia A poesia se articula com a dimensatildeo do cognosciacutevel da experiecircncia empiacuterica e com

a apresentaccedilatildeo poeacutetica ela mesma o que faz surgir ldquoum movimento cujo ponto de fuga reside

aleacutem das determinaccedilotildees numa dimensatildeo radicalmente irredutiacutevel aos conceitos do

entendimentordquo (ROSENFIELD 2000 p 167)

Segundo a autora o que resulta desse jogo do cognosciacutevel com o poeacutetico eacute uma

sabedoria de outra ordem que faz marcas ao conhecimento comum situando um limite do nosso

discurso em poder transpor essa sabedoria a um dizer Ela permanece como um misteacuterio que

encanta e inquieta que natildeo se deixa dominar pela compreensatildeo Talvez seja justamente esse

149

ponto inalcanccedilaacutevel pela razatildeo essa sabedoria obscura causa do belo da experiecircncia que

Euriacutepides desejou excluir de seus dramas

Assim Nietzsche (18721992 p 77) nos revela os incocircmodos de Euriacutepides em relaccedilatildeo

agrave trageacutedia dos consagrados Eacutesquilo e Soacutefocles

[] quatildeo duvidosa permanecia para ele a soluccedilatildeo dos problemas eacuteticos Quatildeo questionaacutevel o tratamento dos mitos Quatildeo desigual a reparticcedilatildeo de ventura e desventura Mesmo na linguagem da trageacutedia antiga havia para ele muita coisa de ofensiva ao menos enigmaacutetica em especial achava haver demasiada pompa para relaccedilotildees muito comuns demasiados tropos e monstruosidades para a simplicidade dos caracteres Assim cismando intranquilo ficava sentado no teatro e ele o espectador confessava a si mesmo que natildeo entendia seus grandes predecessores

A trageacutedia de Euriacutepides Medeia talvez uma de suas obras mais instigantes que nos

propomos a estudar na sequecircncia deste trabalho contempla as caracteriacutesticas citadas pelo

filoacutesofo alematildeo Podemos nos perguntar antes de uma apreciaccedilatildeo mais pontual de sua Medeia

por que Euriacutepides natildeo compartilhava da esteacutetica de seus predecessores Podemos

responsabilizaacute-lo pela derrocada da trageacutedia antiga pelo fim da representaccedilatildeo dos mitos ou

entatildeo tentar entender que talvez expressasse atraveacutes da arte as mudanccedilas poliacuteticas e filosoacuteficas

de seu tempo numa Atenas que abrigava o movimento sofista e as condiccedilotildees para a constituiccedilatildeo

da democracia numa cidade ideal

De acordo com Vorsatz (2013) a trageacutedia antiga situa-se entre dois momentos histoacutericos

fundamentais ou seja divide um tempo miacutetico e um tempo poliacutetico sucede o tempo do ideal

homeacuterico e antecede o tempo do ideal filosoacutefico A trageacutedia claacutessica eacute expressatildeo de um mundo

em transformaccedilatildeo encenaccedilatildeo da genuiacutena experiecircncia humana num mundo agrave mercecirc da vontade

divina recortado com a insuficiecircncia da palavra do heroacutei no jogo cantado e contado pelo coro

Nesse sentido Euriacutepides ao viver em tal periacuteodo de transiccedilatildeo pode ter pertencido ao

grupo dos que aspiravam a uma inovaccedilatildeo das ideias uma nova forma de interpretar os mitos a

escuta de questotildees humanas sob um acircngulo diferente da estrutura enigmaacutetica dos poemas

homeacutericos e da tradiccedilatildeo oral Talvez mais interessado em explorar as pequenezas dos

sentimentos e as sutilezas do pensamento como um contraponto a feitos admiraacuteveis e

grandiosos Hoje Euriacutepides eacute considerado junto com Eacutesquilo e Soacutefocles um dos principais

tragedioacutegrafos da Greacutecia Antiga e ainda que sua esteacutetica seja questionada pelos ideais de beleza

aristoteacutelicos eacute considerado por Aristoacuteteles o mais traacutegico dos poetas traacutegicos

150

Dessa forma indagamos sem buscar suas bases no terreno dionisiacuteaco onde se funda o

drama de Euriacutepides Como pode restar o elemento apoliacuteneo sem o seu contraponto Para

Nietzsche (18721992) o tragedioacutegrafo propotildee uma nova tensatildeo entre dimensotildees opostas uma

tensatildeo natildeo artiacutestica mas realista no lugar do apoliacuteneo versus dionisiacuteaco Euriacutepides parece

inaugurar a frieza do pensamento versus o fervor do afeto conflito que encontramos em

Medeia

Outro modo de ver a proposta de Euriacutepides segundo o filoacutesofo alematildeo refere-se ao que

ele chamou de ldquosocratismo esteacuteticordquo (NIETZSCHE 18721992 p 81) Na luta pela expulsatildeo

do inquietante impulso dionisiacuteaco da trageacutedia o que se ergue contra ele eacute o pensamento

socraacutetico que visa colocar tudo o que existe sob o exame do racional do inteligiacutevel Aquilo

que passar por tal provaccedilatildeo eacute considerado bom Do mesmo modo Euriacutepides acreditou que a

trageacutedia deveria passar por um exame da inteligecircncia O que resultasse desse crivo da razatildeo

seria belo Ou seja para ele o que natildeo era compreensiacutevel justificaacutevel pela racionalidade

tampouco tinha beleza

O filoacutesofo alematildeo aborda a relaccedilatildeo entre Soacutecrates e Euriacutepides e a importacircncia dessa

relaccedilatildeo para a esteacutetica proposta pelo tragedioacutegrafo Em Atenas circulava a ideia de que Soacutecrates

ajudava Euriacutepides na escrita uma lenda contada por aqueles mais saudosos de tempos passados

que sentiam os valores tradicionais ruiacuterem pelos sofistas que eram os representantes de um

pensamento racional que buscavam destituir os mitos do discurso dos cidadatildeos Na visatildeo

desses cidadatildeos Soacutecrates poderia sustentar uma linha filosoacutefica que preservava as tradiccedilotildees e

utilizava a razatildeo pelo bem em nome do saber e da consciecircncia Sem eliminar os mitos buscava

apenas trazecirc-los agrave luz da razatildeo e do conhecimento Nesse sentido Soacutecrates que natildeo apreciava

a arte traacutegica costumava assistir apenas agraves peccedilas de Euriacutepides em funccedilatildeo do questionamento e

tratamento racional que imprimia aos mitos

Nietzsche (18721992) destaca uma importante passagem da vida de Soacutecrates

fundamental para o surgimento de sua filosofia para sua circulaccedilatildeo pela via puacuteblica O oraacuteculo

de Delfos oraacuteculo do deus Apolo diz a um amigo de Soacutecrates que ele eacute o mais saacutebio dentre os

saacutebios Quando o amigo conta as palavras do oraacuteculo o filoacutesofo volta sua vida agrave busca de

algueacutem mais dotado de sabedoria questionando conceitos e valores construiacutedos por saacutebios

reconhecidos na cidade professores e sofistas No entanto a cada encontro que tecia no intuito

de refutar tal prenuacutencio Soacutecrates colocava seu interlocutor diante da contradiccedilatildeo de seus

pensamentos provando a si mesmo o acerto do oraacuteculo Passou a buscar a verdade desejava

151

fazecirc-la brotar vir ao mundo atraveacutes dos diaacutelogos que tecia com os outros Assim tornou-se ele

mesmo um saacutebio admirado por muitos desprezado por outros tantos

Tal ocasiatildeo da vida de Soacutecrates eacute relatada num texto de Platatildeo Apologia de Soacutecrates o

qual apresenta a defesa do enigmaacutetico saacutebio condenado agrave morte hoje considerado um dos

fundadores da filosofia ocidental Mas Nietzsche conta ainda e eacute isso que desejamos frisar que

se o primeiro saacutebio eacute Soacutecrates o segundo eacute Euriacutepides No entanto Euriacutepides natildeo alcanccedilou a

notoriedade de seu suposto mestre

Do mesmo modo Lacan (1960-19611992) menciona Euriacutepides no seminaacuterio A

transferecircncia Numa das passagens situa o tragedioacutegrafo como um saacutebio nada mal lembrando

tambeacutem as prediccedilotildees do oraacuteculo poreacutem Soacutecrates eacute o mais saacutebio dentre todos Essa questatildeo (a

de Soacutecrates ser o mais saacutebio) Lacan comenta logo na apresentaccedilatildeo de seu seminaacuterio como a

questatildeo que Soacutecrates sustentou durante toda sua vida colocando o filoacutesofo na origem da mais

longa transferecircncia da histoacuteria jaacute que a sustentou como verdade ateacute o fim da vida

Soacutecrates antes de morrer concorda com deus Apolo sim ele era o mais saacutebio por

duvidar de sua sabedoria por saber que nada sabia o que o diferenciava de outros sofistas que

se julgavam saacutebios a priori Isso fazia com que defendessem qualquer ideia como verdade

buscando argumentos racionais para isso Faziam mal-uso da razatildeo Ao ser julgado como

destruidor dos mitos por desprezar os deuses Soacutecrates diz que o proacuteprio deus Apolo o

considerava o mais saacutebio e que apenas ele Apolo saberia se sua condenaccedilatildeo agrave morte era justa

ou injusta

Em decorrecircncia da influecircncia socraacutetica em suas obras os mitos histoacuterias compartilhadas

entre o povo grego que davam origem aos dramas traacutegicos para Euriacutepides deveriam ser bem

justificados sem deixar espaccedilos vazios ou margem para duacutevidas Nesse sentido natildeo havia uma

supressatildeo dos mitos ou uma supressatildeo da presenccedila divina em favor da razatildeo humana A

diferenccedila consistia em integrar a mitologia agrave racionalidade engolfaacute-la Para Vieira (2010) eacute

feitio de Euriacutepides construir accedilotildees com propoacutesitos inovadores que para ele beiram o absurdo

em vez de tomar tais accedilotildees como decorrentes do mito em que os deuses interferem de modo

enigmaacutetico sobre o ser humano Sobre a diferenccedila de Euriacutepides na trageacutedia Nietzsche

(18721992 p 72) o critica por tecirc-la eliminado e o indaga pessoalmente

E assim como o mito morreu para ti tambeacutem morreu para ti o gecircnio da muacutesica e mesmo se saqueaste com presas aacutevidas todos os jardins da muacutesica ainda assim soacute pudeste chegar a uma arremedada muacutesica mascarada E porque abandonaste Dioniacutesio por isso Apolo tambeacutem te abandonou afugenta todas

152

as paixotildees de seu covil e as conjura em teu ciacuterculo afila e aguccedila como se deve uma dialeacutetica sofiacutestica para as falas de teus heroacuteis ndash tambeacutem os teus heroacuteis tecircm paixotildees arremedadas e mascaradas e proferem apenas falas arremedadas e mascaradas

Por ignorar o dionisiacuteaco Euriacutepides natildeo compreende o mito Em consequecircncia desse

abandono ignora tambeacutem o apoliacuteneo O que eacute a figura sem o que lhe faz pano de fundo

Subjugar a arte da trageacutedia a questionamentos filosoacuteficos acarretou numa montagem de heroacuteis

e heroiacutenas que apenas imitam accedilotildees e falas de heroacuteis e heroiacutenas sem secirc-los A dialeacutetica

socraacutetica que busca trazer a verdade agrave luz tem lugar no teatro euripidiano o que tem por efeito

uma nova forma de apresentar a palavra em cena

De acordo com Vorsatz (2013) haacute uma diferenccedila fundamental na forma de trabalhar

com a palavra na trageacutedia antiga e na filosofia Os tragedioacutegrafos colocam a palavra em cena

de modo a circunscrever um lugar subjetivo uma zona onde o dizer do heroacutei e da heroiacutena muito

mais que significar alguma coisa eacute um ato aparece em accedilatildeo Segundo a autora eacute desta palavra

como accedilatildeo que deriva a posiccedilatildeo subjetiva O heroacutei e a heroiacutena garantem com seu ato a presenccedila

divina sujeitam-se a ela e ao mesmo tempo satildeo responsaacuteveis pelo destino traacutegico a eles

imposto ainda que dele nada saibam Eacute justamente essa condiccedilatildeo subjetiva apresentada pela

heroiacutena Antiacutegona na peccedila de Soacutefocles que inspira Lacan (1959-19601997) a trabalhar sobre

a eacutetica da psicanaacutelise uma eacutetica essencialmente traacutegica pois se configura numa travessia em

que o sujeito natildeo cede de seu desejo desejo inconsciente ao qual eacute alienado

Jaacute na filosofia encontramos a tendecircncia de colocar a palavra na eterna busca de uma

verdade uacutenica e universal passiacutevel de ser dominada pela consciecircncia do indiviacuteduo

[] a filosofia grega eleva o homem agrave categoria de ser de razatildeo atraveacutes da constituiccedilatildeo de um saber sobre ele e sobre o mundo que o cerca Por sua vez a trageacutedia antiga parece colher aquilo mesmo que escaparaacute ao domiacutenio filosoacutefico o fato de que o homem natildeo eacute senhor em sua proacutepria casa pois haacute um campo imperscrutaacutevel domiacutenio dos deuses a cujas injunccedilotildees ele deveraacute responder por meio da libra de carne que lhe cabe pagar cessatildeo de uma parte de si (VORSATZ 2013 p 24)

Nos dramas de Euriacutepides com o surgimento de uma filosofia que comeccedilava a atravessar

o espaccedilo puacuteblico a tomar parte da organizaccedilatildeo poliacutetica da cotidianidade das pessoas que

passava a permear o campo das artes com seus atributos de tomar o indiviacuteduo como ser dotado

de razatildeo com o uso da ironia da busca pela verdade encontramos a mudanccedila de relaccedilatildeo com

a palavra que aparece nos textos do coro e dos personagens

153

333 Deus ex machina euripidiano

A mudanccedila na trageacutedia a partir de Euriacutepides se expressa de modo mais evidente no

desenlace do drama de acordo com Nietzsche (18721992) a partir do recurso deus ex machina

utilizado como forma de resolver impasses e ldquopontas soltasrdquo da trama Eacutesquilo Soacutefocles e

outros tragedioacutegrafos tambeacutem apresentaram o deus ex machina em algumas de suas trageacutedias

A diferenccedila estaacute na intervenccedilatildeo dos deuses trazidos pela maacutequina nos rumos da cena traacutegica

Nesse sentido ao final das trageacutedias de Eacutesquilo e Soacutefocles o espectador poderia se

confortar com um prazer inerente ao traacutegico uma sensaccedilatildeo de conciliaccedilatildeo com o mundo que

apresenta um equiliacutebrio do dionisiacuteaco e do apoliacuteneo Lembramos que a conciliaccedilatildeo eacute uma

experiecircncia esteacutetica que emana da trama traacutegica no entanto natildeo haacute um acordo entre os

personagens da cena

No Dicionaacuterio de teatro Pavis (2015 p 21) nomeia este prazer de ldquoapaziguamento

finalrdquo e o toma como um produto da estrutura narrativa que indica o final da peccedila a impressatildeo

de que o heroacutei resolveu de algum modo seus conflitos e de que tudo retornou a uma suposta

ordem inicial No caso da trageacutedia a sensaccedilatildeo experimentada pelo espectador eacute a de uma

ldquojusticcedila transcendente do universo traacutegicordquo (PAVIS 2015 p 22)

Poreacutem com as modificaccedilotildees euripidianas que produzem uma intervenccedilatildeo divina

derradeira sobre a cena haacute apaziguamento final

De acordo com Nietzsche (18721992 p 107)

[] o heroacutei depois de bastante martirizado pelo destino colhia uma bem merecida recompensa em um magniacutefico casamento em algumas homenagens divinas O heroacutei se tornara um gladiador a quem apoacutes ter sido bastante maltratado e estar coberto de ferimentos era ocasionalmente doada a liberdade O deus ex machina tomou o lugar do reconforto metafiacutesico Natildeo quero dizer que a consideraccedilatildeo traacutegica do mundo tenha sido destruiacuteda em toda parte e por completo pelo acossante espiacuterito natildeo dionisiacuteaco sabemos apenas que precisou fugir da arte para refugiar-se por assim dizer no mundo iacutenfero numa degeneraccedilatildeo em culto secreto

Deus ex machina entra como substituto do ldquoreconforto metafiacutesicordquo mas sem provocar

tal sensaccedilatildeo Ele eacute uma presenccedila que dita o futuro dos heroacuteis

154

[] uma consonacircncia terrena [] o deus das maacutequinas e crisoacuteis vale dizer as forccedilas dos espiacuteritos naturais conhecidas e empregadas a serviccedilo do egoiacutesmo superior que acredita em uma correccedilatildeo do mundo pelo saber em uma vida guiada pela ciecircncia [] (NIETZSCHE 18721992 p 108)

Dessa forma o deus ex machina proposto inicialmente por Eacutesquilo torna-se em

Euriacutepides a marca mais visiacutevel da mudanccedila de sua trageacutedia que se coloca no lugar da sensaccedilatildeo

de um conforto transcendente tiacutepico das trageacutedias antigas que dependiam da tensatildeo apoliacuteneo-

dionisiacuteaco A entrada do deus ex machina se torna signo de um desenlace que natildeo se constroacutei

ao longo do drama que natildeo emana das relaccedilotildees entre os personagens da histoacuteria de acordo

com a criacutetica nietzschiana Eacute um recurso que por carregar a funccedilatildeo de fazer justiccedila de conhecer

a verdade e a razatildeo sobre o mundo justifica-se por si mesmo Encontra em sua funccedilatildeo de

correccedilatildeo e julgamento do certo e do errado do bem e do mal seu direito de intervir e impor o

desenlace da histoacuteria (NIETZSCHE 18721992)

Eacute possiacutevel dizer desse modo que a entrada do deus ex machina na trageacutedia de Euriacutepides

tem o intuito de encaminhar o impasse traacutegico produzido entre os personagens para a soluccedilatildeo

que defenda o justo a razatildeo o correto e conforme apontado por Nietzsche (18721992) a

ciecircncia Tais finalidades estatildeo em consonacircncia com os objetivos da filosofia que se expandia

cada vez mais na via puacuteblica encontrando lugar na cena traacutegica

Entendemos esse dispositivo teatral como uma soluccedilatildeo a partir da qual uma atitude de

autoria fica suspensaA impressatildeo da suspensatildeo do lugar de autor pode ser decorrente da

suspensatildeo da criaccedilatildeo incitada pelo proacuteprio desfecho da cena Quando entra em cena um deus

ex machina para impor um fim a sensaccedilatildeo eacute de que os conflitos produzidos entre os

personagens natildeo satildeo realmente solucionados Parecem em vez disso suspensos silenciados

amortecidos por uma imposiccedilatildeo moral

De acordo com Antonio Rebelo (1995) em artigo sobre a peccedila euripidiana Ifigecircnia em

Tauris o deus ex machina eacute comparado aos ensinamentos filosoacuteficos de Soacutecrates no diaacutelogo

Clitofonte atribuiacutedo a Platatildeo e nesse sentido o dispositivo assumiria uma funccedilatildeo moralizante

O autor nos ajuda a pensar a funccedilatildeo do deus ex machina para aleacutem das concepccedilotildees

criacuteticas de Aristoacuteteles e de Nietzsche

A anaacutelise aristoteacutelica foi determinante para conferir uma carga depreciativa agrave utilizaccedilatildeo do deus ex machina Toda a criacutetica posterior ateacute os nossos dias foi fortemente influenciada pelas normas que o Estagirita estabeleceu para a trageacutedia Do ponto de vista teoacuterico o deus ex machina passou a ser

155

considerado uma violaccedilatildeo do princiacutepio aristoteacutelico da verossimilhanccedila e coerecircncia entre o desenvolvimento da intriga e o seu desenlace Soacute recentemente o deus ex machina tem vindo a ser reabilitado e revalorizado apoacutes a rejeiccedilatildeo de antigos preconceitos (REBELO 1995 p 170-171)

Nesse sentido o autor diz que na anaacutelise de Aristoacuteteles em que o filoacutesofo deprecia o

uso do deus ex machina haacute tambeacutem recomendaccedilatildeo de como usar o recurso sem que a accedilatildeo

dramaacutetica seja prejudicada A presenccedila dos deuses funciona na cena para situar certos

acontecimentos sobre o passado eou sobre o futuro simplesmente porque os heroacuteis ou outros

personagens os desconhecem

No entanto quem deve desenhar um destino em cena ateacute o momento de desenlace da

accedilatildeo ainda que fracassem ainda que o fim seja traacutegico satildeo os personagens Natildeo eacute o fato de

uma trageacutedia apresentar ou natildeo apresentar o deus ex machina que necessariamente a accedilatildeo dos

heroacuteis estaraacute em prejuiacutezo Deuses situam o tempo o lugar as circunstacircncias da accedilatildeo Quando

uma trageacutedia atribui aos deuses um papel que natildeo este como por exemplo decidir sobre o

destino das personagens pode haver uma mudanccedila abrupta de rumo desnecessaacuteria eou

inverossiacutemil que vai contra um caminho tecido pelo drama

De acordo com Rebelo (1995) eacute esta a criacutetica que costumamos encontrar aos dramas de

Euriacutepides Poreacutem para o autor das trageacutedias de Euriacutepides agraves quais temos acesso duas se

encerram com um deus ex machina que encaminha o desenlace de modo a resolver o conflito

insoluacutevel que satildeo Orestes e Hipoacutelito Nas trageacutedias Medeia Heacutecuba Heacuteracles e Os

Heraclidas satildeo mortais que surgem ex machina impondo o desenlace e assim natildeo satildeo

comparaacuteveis aos deuses quando estatildeo nesse lugar Dessa maneira as peccedilas Androcircmaca As

Suplicantes Electra Ifigecircnia entre os Tauros Ion Helena As Bacantes e Ifigecircnia em Aulide

ainda que apresentem deuses num plano exterior ao da cena ou que entram em cena por meio

de uma maquinaria sua intervenccedilatildeo natildeo modifica os rumos da trama pois o desenlace ocorre

como um fruto da trama e a funccedilatildeo divina consiste em dar uma palavra final uma costura

O entendimento de Lacan (1959-19601997) a respeito desse recurso cecircnico vai ao

encontro dessa definiccedilatildeo pois para o psicanalista o deus ex machina ldquoserve somente de

enquadramento e de limite da trageacutediardquo (LACAN 1959-19601997 p 384) e natildeo devemos

levar em conta esse recurso mais do que as vigas que estatildeo na volta do que sustenta realmente

o palco

O psicanalista faz esse comentaacuterio ao citar a peccedila de Soacutefocles Filoctetes em que o heroacutei

eacute salvo por Heacutercules ex machina de uma ilha onde o haviam abandonado Poreacutem para Rebelo

156

(1995) justamente nessa peccedila haacute uma diferenccedila no uso do recurso pois assume funccedilatildeo de

intervir de modo inesperado e definitivo Eacute importante esse apontamento de Rebelo (1995) pois

ele mostra que o dispositivo cecircnico em questatildeo tambeacutem aparece em peccedilas de Soacutefocles de

maneira a mudar os rumos da histoacuteria Tambeacutem podemos destacar a peccedila de Eacutesquilo Orestes

cujo desfecho ocorre com a intervenccedilatildeo divina de Apolo o qual interrompe um final traacutegico

Orestes mata a proacutepria matildee para vingar a morte do pai arranjada por ela Como provavelmente

ele seraacute condenado agrave morte pede a seu tio Menelau que interceda por ele em seu julgamento

Quem acaba por ajudaacute-lo eacute o proacuteprio deus Apolo que entra em cena no carro do Sol e confere

um novo ordenamento agraves accedilotildees dos homens Essa eacute a primeira vez que o recurso ex machina eacute

utilizado na trageacutedia grega Desse modo Rebelo (1995) esclarece que o sentido de atribuir o

uso desse recurso por Euriacutepides se justifica apenas por sua escolha na maioria de suas peccedilas

mas natildeo pela vinculaccedilatildeo do desenlace das peccedilas do tragedioacutegrafo ao dispositivo

Para Otto Maria Carpeaux (2010) haacute uma diferenccedila crucial entre Eacutesquilo e Euriacutepides

decorrente das transformaccedilotildees sociais e espirituais que os separam que eacute o modo como

apresentam o mito e a divindade pois enquanto ldquoEacutesquilo parecia ser representante do

conservadorismo religioso Euriacutepides eacute representante do individualismo filosoacutefico [] Eacutesquilo

eacute coletivista Euriacutepides individualistardquo (CARPEAUX 2010 p 188) Talvez essas diferenccedilas

caracterizem de modo mais sutil o que os autores desejavam transmitir com o uso do deus ex

machina pois ldquoem Eacutesquilo falam montanhas em Euriacutepides almasrdquo (CARPEAUX 2010 p

190)

Para Rebelo (1995 p 167) ldquouma das finalidades se natildeo uacutenica do deus ex machina

seria a parecircnese a exortaccedilatildeo aos espectadores para agirem de acordo com os preceitos divinosrdquo

Dessa maneira a funccedilatildeo do dispositivo teria como propoacutesito uma expansatildeo de sua intervenccedilatildeo

para aleacutem dos limites da cena Entendemos que o alvo do deus ex machina satildeo os espectadores

natildeo os personagens de forma a impor se o final da histoacuteria ldquoa moral da histoacuteriardquo

Eacute nesse sentido que o desenlace da histoacuteria adquire uma marca diferente na maioria das

peccedilas de Euriacutepides conforme comenta Nietzsche (18721992) pois a transmissatildeo da

experiecircncia do traacutegico daacute lugar agrave imposiccedilatildeo moral atraveacutes da presenccedila e da palavra divina que

encerram a trama Ainda que Soacutefocles e Eacutesquilo tenham utilizado esse recurso algumas vezes

tendo como consequecircncia o efeito moralizador para o filoacutesofo alematildeo satildeo as trageacutedias de

Euriacutepides que marcam o fim do gecircnero O tradutor de O nascimento da trageacutedia Jacoacute

Guinsburg ajuda-nos a entender o motivo

157

No teatro de Euriacutepides Nietzsche identifica o ponto de inflexatildeo do processo que conduziu ao esvaziamento da trageacutedia grega e ao advento da Comeacutedia Nova Muito embora consigne um tardio arrependimento ao gecircnio criador de As bacantes atribui-lhe em face das dramatizaccedilotildees tidas como as mais expressivas do tragicismo helecircnico pelo menos quatro pecados capitais a eacutepica desmitificada o realismo mimeacutetico o socratismo criacutetico e o otimismo cientifista (GUINSBURG 1992 p 163)

O abandono do dionisiacuteaco jaacute dava notiacutecias antes mesmo da reinvenccedilatildeo dos mitos feita

por Euriacutepides pois jaacute com Soacutefocles podemos ver a modificaccedilatildeo do papel do coro que passa

da musicalidade (talvez um dos uacutenicos elementos da trageacutedia que preservavam a relaccedilatildeo com o

ritual em honra a Dioniso de onde o gecircnero deriva) para a personalizaccedilatildeo caracteriacutestica que se

torna mais marcante nas peccedilas euripidianas No coro haacute um ator o corifeu que o representa em

alguns diaacutelogos

Isso pode ser compreendido como uma evoluccedilatildeo que acompanha mudanccedilas na

organizaccedilatildeo cultural Se natildeo fosse assim talvez o gecircnero traacutegico natildeo teria nascido e teriacuteamos

ainda os rituais dionisiacuteacos como forma de arte O nascimento da trageacutedia permanece como um

misteacuterio uma faacutebula miacutetica para todos noacutes como lembra Pierre-Aimeacute Touchard (1970)

Sabemos que por volta do ano 492 aC uma pessoa resolveu se separar do coro e dizer ldquoagora

sou Dionisordquo representando o bode expiatoacuterio causa dos cantos da comoccedilatildeo do temor e da

piedade O primeiro ator Theacutespis separou-se do coro e aprimorou a arte de imitar viajando

sozinho encenando suas proacuteprias peccedilas utilizando maacutescaras para diferenciar uma personagem

da outra Tornou-se o primeiro dramaturgo de teatro e criou a possibilidade do ator contracenar

com o coro inventando a figura do protagonista Desse modo as encenaccedilotildees seguiram um

processo de transformaccedilatildeo que acompanha as transformaccedilotildees da vida puacuteblica em um fluxo de

criaccedilatildeo que vai se tecendo com cada vez mais elementos cecircnicos

Contudo a partir de Guinsburg (1992) podemos dizer que satildeo as alternativas

encontradas por Euriacutepides dentro desse processo cultural de transformaccedilotildees artiacutesticas que o

localizam como grande responsaacutevel pelo fim da trageacutedia na opiniatildeo de Nietzsche O

tragedioacutegrafo encaminhou a arte traacutegica para uma criacutetica aos seus contemporacircneos que

buscavam o equiliacutebrio apoliacuteneo-dionisiacuteaco tornando-a uma forma de divulgar sua indignaccedilatildeo

e apresentar sua concepccedilatildeo iluminista do traacutegico Aleacutem disso Nietzsche acredita que Euriacutepides

em sua trageacutedia promoveu uma campanha ideoloacutegica em favorecimento de Soacutecrates

158

[] fala por sua boca o filoacutesofo racionalista que esgota no conceito e na loacutegica o conhecimento e a verdade do ser Euriacutepides e Soacutecrates satildeo pois na perspectiva de O nascimento da trageacutedia duas faces da mesma maacutescara que eacute no entanto primordialmente a do Sofista (GUINSBURG 1992 p 164)

Considerando a influecircncia de Soacutecrates na trageacutedia de Euriacutepides entendemos que o deus

ex machina euripidiano acaba por legitimar o domiacutenio do conhecimento filosoacutefico ndash jaacute que

divino verticalizado metafiacutesico ndash sobre a arte traacutegica sobre as possibilidades de criaccedilatildeo

Fizemos essa digressatildeo teoacuterica em torno do traacutegico para entender o que resta dele como

ele resta apoacutes a morte da trageacutedia grega bem como para fundamentar nossa tese de que hoje

haacute sobre noacutes outros nomes para o deus ex machina cujo ldquoforardquo e cuja ldquomaacutequinardquo noacutes mesmos

produzimos Um eacute portanto a medicalizaccedilatildeo requerida para que nossas relaccedilotildees dentro dos

mais diferentes espaccedilos de convivecircncia funcionem bem e deem um destino para o dionisiacuteaco

que haacute em noacutes o qual por mais arcaico que seja por mais distante cronologicamente natildeo eacute

passiacutevel de ser completamente recoberto pelos recursos simboacutelicos de que a cultura dispotildee a

cada tempo em cada territoacuterio Ainda que o dionisiacuteaco tenha sido aparentemente expulso

varrido da cultura ocidental ele subsiste como diz Nietzsche na sombra num mundo iacutenfero

Vimos que as alteraccedilotildees culturais que datildeo ensejo agrave filosofia socraacutetica satildeo proacuteximas agraves

que estabelecem o deus ex machina como um dispositivo a oferecer uma aprovaccedilatildeo moral dos

atos das personagens da cena que significa um juiacutezo de valor a atestaccedilatildeo de uma verdade

Entendemos que na cena escolar diante de um problema de comportamento ou de

aprendizagem apresentado por uma crianccedila muitas vezes a escola pode julgar ter a obrigaccedilatildeo

moral de chamar para a cena um personagem que representa o saber meacutedico de modo que este

costure um desenlace com uma palavra diagnosticadora sobre o mal-estar A partir de testes e

consultas cliacutenicas o especialista pode dizer se a crianccedila apresenta uma dificuldade de

aprendizagem como dislexia um transtorno mental como o TDAH ou o TOD e a partir do

diagnoacutestico muitas vezes definir os rumos da rotina escolar desse estudante como por

exemplo para crianccedilas com TDAH o horaacuterio da medicaccedilatildeo combinado ao horaacuterio de estudos

No proacuteximo capiacutetulo discutiremos os efeitos do saber meacutedico no campo escolar Antes

queremos apresentar outro argumento que leva a pensar que a medicalizaccedilatildeo pode ser acionada

como uma instacircncia moral

Haacute um comentaacuterio de Lacan no seminaacuterio A transferecircncia no qual trabalha com o texto

de Platatildeo O banquete que indica uma aproximaccedilatildeo de Soacutecrates ao saber meacutedico

159

Jaacute se observou que haacute em Soacutecrates uma referecircncia ambiente agrave medicina Com muita frequecircncia quando quer levar seu interlocutor ao plano de diaacutelogo no qual entende dirigi-lo rumo agrave percepccedilatildeo de um percurso rigoroso ele se refere a tal arte de teacutecnico Se sobre tal assunto quiserem saber a verdade pergunta frequentemente a quem se dirigiratildeo E dentre estes o meacutedico estaacute longe de ser excluiacutedo Ele eacute mesmo tratado com uma reverecircncia particular (LACAN 1960-19611992 p 73)

Lacan logo assinala que o meacutedico ao qual Soacutecrates se refere na ocasiatildeo do texto de

Platatildeo eacute Erixiacutemaco o qual toma a medicina como a maior de todas as artes Natildeo entraremos

no discurso sobre o amor do personagem de O banquete no entanto queremos apresentar alguns

pontos trabalhados por Lacan no que concerne ao discurso meacutedico Ainda que a histoacuteria da

medicina seja bastante longa dividida mesmo na antiguidade por diferentes escolas haacute um

aspecto que lhe atravessa A medicina sempre busca alcanccedilar uma precisatildeo cientiacutefica sendo

esta uma necessidade intriacutenseca agrave sua proacutepria existecircncia Para Lacan (1960-19611992) essa

busca acaba por natildeo enfrentar poreacutem assuntos elementares como a definiccedilatildeo de sauacutede

Quando haacute desejo de entender as diferenccedilas entre normal e patoloacutegico geralmente isso

eacute realizado por um saber das ciecircncias humanas por exemplo poreacutem natildeo constitui questatildeo de

pesquisa na aacuterea da medicina Ainda assim Lacan busca desvendar especialmente no discurso

de Erixiacutemaco a noccedilatildeo de sauacutede para o discurso meacutedico no qual se inclui como psiquiatra e

psicanalista

[] qualquer que seja a natureza da sauacutede e a boa forma que seria a da sauacutede somos levados a postular no seio desta boa forma estados paradoxais ndash e o miacutenimo que se pode dizer ndash estes mesmos cuja manipulaccedilatildeo em nossas terapecircuticas eacute responsaacutevel pelo retorno a um equiliacutebrio que permanece no conjunto muito pouco criticado enquanto tal Aiacute estaacute portanto o que encontramos no niacutevel dos postulados menos acessiacuteveis a demonstraccedilatildeo sobre a posiccedilatildeo meacutedica E justamente esta que seraacute consagrada aqui no discurso de Erixiacutemaco sob o nome de harmonia Natildeo sabemos de que harmonia se trata mas a noccedilatildeo eacute bastante fundamental para toda a posiccedilatildeo meacutedica como tal (LACAN 1960-19611992 p 75)

Nesse sentido ao contextualizar o discurso do personagem meacutedico com o pensamento

de Heraacuteclito e de Soacutecrates Lacan entende que a ideia da sauacutede como harmonia meacutedica estaacute

ligada ao saber da fiacutesica agrave metaacutefora da comunicaccedilatildeo entre um vaso cheio com um vazio por

um fio de latilde e agrave arte da muacutesica no que diz respeito aos acordes

O que podemos destacar aqui eacute a criacutetica de Lacan agrave definiccedilatildeo de Erixiacutemaco sobre o que

eacute a ciecircncia meacutedica

160

Existe ali uma parcialidade de que natildeo partilhamos Todas as espeacutecies de modelos da fiacutesica nos trouxeram a ideia de uma fecundidade dos contraacuterios dos contrastes das oposiccedilotildees e de uma natildeo-contradiccedilatildeo absoluta do fenocircmeno com seu princiacutepio conflitual Toda a fiacutesica tende muito mais para o lado da imagem da onda do que para o lado da forma da Gestalt da boa forma natildeo importa o que disso tenha feito a psicologia moderna Natildeo podemos deixar de nos surpreender digo eu tanto nessa passagem quanto em vaacuterias outras de Platatildeo ao ver sustentada a ideia de natildeo sei que impasse que aporia de natildeo sei que preferecircncia a ser dada ao lado do caraacuteter forccedilosamente fundamental do acorde com o acorde da harmonia com a harmonia (LACAN 1960-19611992 p 79)

Entrever a potecircncia das contrariedades dos impasses eacuteticos que surgem em cena eacute o que

o traacutegico tem a transmitir visando natildeo agrave harmonia agrave boa forma mas daando lugar agrave dimensatildeo

da anguacutestia em cena dos limites humanos do que perdemos em nossa posiccedilatildeo desejante

subjetiva Haacute uma distacircncia talvez uma antinomia entre o que se busca transmitir com o

discurso socraacutetico ndash aparentado em certo ponto ao discurso meacutedico ndash presente em trageacutedias de

Euriacutepides e o traacutegico que se transmite em trageacutedias sofocleanas como Antiacutegona cuja eacutetica eacute

partilhada com a psicanaacutelise

Natildeo que natildeo haja nas noccedilotildees visitadas do traacutegico uma tendecircncia de encaminhar uma

transformaccedilatildeo um retorno a um suposto equiliacutebrio ou estado anterior Como vimos esta noccedilatildeo

cataacutertica aparece em textos meacutedicos como expurgaccedilatildeo das impurezas do corpo assim como na

noccedilatildeo de harmonia meacutedica haacute o entendimento de evacuar alguma coisa do corpo ou preencher

o corpo com alguma coisa Sabemos que haacute tal noccedilatildeo tambeacutem nos primoacuterdios da histoacuteria da

psicanaacutelise com Freud e Breuer no sentido de que o tratamento das histeacutericas consistia na

descarga dos afetos conforme mencionado anteriormente

Em que reside na diferenccedila de uma posiccedilatildeo para outra Da harmonia meacutedica ao

apaziguamento final das trageacutedias antigas Acreditamos que a operaccedilatildeo meacutedica tende a veicular

um ideal de corpo saudaacutevel Jaacute a conciliaccedilatildeo final das trageacutedias o equiliacutebrio entre apoliacuteneo e

dionisiacuteaco demarca um reposicionamento dos personagens em cena fruto do jogo de tensotildees

e de desacordos que ocorre num movimento contraacuterio ao da idealizaccedilatildeo Vemos heroacuteis e

heroiacutenas se deslocarem de um lugar admiraacutevel para uma posiccedilatildeo que os arruiacutena Mas haacute sempre

algo que permanece vivo a uacutenica coisa que resta para de certa forma restaurar a cena o desejo

A presenccedila de uma ilusatildeo de harmonia operada atraveacutes da liberaccedilatildeo dos afetos presente

nos primoacuterdios da psicanaacutelise vai em sua histoacuteria cedendo lugar a uma concepccedilatildeo que indica

o mal-estar como inerente agrave condiccedilatildeo humana O sujeito elabora certos eventos de sua vida

161

numa perspectiva inventiva junto com seu analista ldquorecriandordquo memoacuterias com as quais produz

novos sentidos Isso eacute o que nos aponta Freud (19371975) no texto Construccedilotildees em anaacutelise

Nesse sentido entendemos que a eacutetica da psicanaacutelise sendo uma eacutetica do desejo que situa os

limites do sujeito encontra ressonacircncia na eacutetica transmitida com o traacutegico em trageacutedias gregas

do seacuteculo IV aC anteriores agrave virada proposta por Euriacutepides que de acordo com Nietzsche

(18721992) calca sua dramaturgia na moral socraacutetica moral que acaba por servir ao saber

meacutedico conforme exposiccedilatildeo de Lacan (1960-19611992)

Na equaccedilatildeo por noacutes proposta a medicalizaccedilatildeo estaacute para o deus ex machina assim como

a cena escolar estaacute para a cena traacutegica respeitando as devidas temporalidades Na cena traacutegica

os heroacuteis e heroiacutenas em sua relaccedilatildeo traacutegica com o desejo situam os limites entre a vida e a

morte os limites desejantes em si mesmos abrem outras vias de criaccedilatildeo para e por noacutes nos

comovem nos fazem sentir um plano mais aleacutem que ocorre na horizontalidade metoniacutemica do

desejo dando expressatildeo ao dionisiacuteaco este que pode ser subjugado na cena euripidiana por

um modo de conhecimento moralizante que surge ex machina

Sendo assim podemos aprender sobre a cena escolar com a anaacutelise da cena traacutegica onde

ocorrem encontros e desencontros onde se travam as relaccedilotildees que abrem ou natildeo espaccedilo ao

exerciacutecio do desejo conflitos entre seus agentes professores alunos funcionaacuterios Entendemos

que a medicalizaccedilatildeo eacute muito frequentemente um saber que se impotildee sobre a escola tal qual um

deus ex machina nas circunstacircncias em que seus agentes se esbarram com o limite de seu fazer

e delegam seu posto a um outro saber ndash reconhecido cientiacutefico justificado bem-vindo ndash o

saber meacutedico Cabe agrave medicalizaccedilatildeo confirmar que seu saber fala a partir desse lugar divino

legitimado para que uma moral se instaure uma moral sobre corpos inquietos e dispersos que

satildeo os corpos das crianccedilas com TDAH No proacuteximo capiacutetulo nos aproximamos da forma como

autores da interface educaccedilatildeo e psicanaacutelise transmitem essa questatildeo e tentamos entender os

efeitos de um discurso medicalizante a partir do lugar do deus ex machina na cena escolar

Queremos destacar aqui o meacutetodo que utilizamos na escrita deste trabalho que consiste

em tomar elementos estruturais de um campo outro para ler uma questatildeo inquietante de nosso

tempo Haacute uma transiccedilatildeo do mundo traacutegico ao ensinamento moral Dessa passagem que ocorreu

com os gregos pensamos que haacute uma estrutura possiacutevel de ser tomada para ler o que opera

162

nesse apelo ao saber meacutedico na escola Percorremos nosso caminho de pesquisa tomando um

acontecimento para ao analisaacute-lo destacar dele elementos estruturais que permitem fazer

emergir novos sentidos em um outro acontecimento

163

4 EDUCAR E SEUS IMPASSES

No primeiro capiacutetulo deste trabalho mostramos que o mal-estar que atinge as crianccedilas

em idade escolar nomeado de TDAH chegou a patamares epidecircmicos Diante disso haacute muitas

prescriccedilotildees de metilfenidato para esse problema que localizamos no corpo Nesse sentido a

alternativa que parecemos buscar para educar as crianccedilas desatentas e hiperativas de nosso

discurso eacute a medicalizaccedilatildeo diagnosticando e medicando os alunos reais considerando que haacute

segundo Mannoni (2003) as crianccedilas faladas e as crianccedilas em carne e osso A intervenccedilatildeo

medicamentosa sobre o aluno em pessoa produz efeitos sobre o aluno falado

Como dissemos este trabalho pretende se guiar pela psicanaacutelise com o que atraveacutes dela

tambeacutem portamos de limites Haacute para essa teoria um limite insuperaacutevel na educaccedilatildeo um

impossiacutevel do educar De acordo com Freud (19251996b) educar eacute uma profissatildeo como

psicanalisar e governar impossiacutevel Os trecircs fazeres se datildeo por meio da linguagem de palavras

que guardam em si contradiccedilotildees jaacute que podem constituir sentidos diversos na medida em que

vatildeo sendo encadeadas de acordo com quem fala e quem escuta

No entanto ainda que haja uma impossibilidade como lembra Leandro de Lajonquiegravere

soacute eacute possiacutevel educar com as palavras

[] natildeo haacute educaccedilatildeo que natildeo se sirva de uma liacutengua e portanto que natildeo pressuponha a linguagem Mais ainda como a estrutura da linguagem eacute de natureza remissiva ou seja trata-se de uma rede de diferenccedilas o transmitido via uma liacutengua estaacute condenado tanto a se repetir quanto a diferir [] Com efeito essa contradiccedilatildeo insuperaacutevel inviabiliza o fato do aprendiz vir a ser uma reacuteplica do mestre e natildeo como agraves vezes se pensa a mesmiacutessima transmissatildeo educativa [] Assim agrave medida que essa tensatildeo contraditoacuteria eacute equacionada a educaccedilatildeo vira um fato ou em outras palavras o equacionamento da impossibilidade de fabricar replicantes torna a priori possiacutevel que a educaccedilatildeo venha de fato a acontecer (LAJONQUIEgraveRE 1997 p 39)

O reconhecimento do limite das nossas palavras em direccedilatildeo ao outro pode permitir a

elaboraccedilatildeo de uma equaccedilatildeo para o educar na qual estaraacute contida a impossibilidade da educaccedilatildeo

O ponto em que se situa a crianccedila com TDAH eacute o ponto em que justamente se encontra um

limite ao fazer do professor pois a crianccedila natildeo se comporta do modo como o professor lhe

pede e eacute muitas vezes natildeo se comportando da forma esperada que ela busca de algum modo

atender inconscientemente agraves demandas do Outro agrave linguagem agrave qual estaacute submetida na

tentativa de articular seu lugar subjetivo em diferentes espaccedilos em casa e na escola No entanto

164

na medida em que sua forma de interpretar o que dela desejam estiver distante da conduta

compartilhada entre seus pares na escola ndash que ainda que de modos diferentes conseguem

acompanhar a rotina cumprir tarefas ndash ela assume uma posiccedilatildeo tal que potildee em evidecircncia o

limite do educar

A resistecircncia aos moldes que nossa cultura arranja representada pela crianccedila hiperativa

eou desatenta pode fazer alguns professores ou professoras chegarem ao ponto de fracasso de

sua profissatildeo A professora do caso apresentado poderia ter pensado ldquoSe com todo arranjo

escolar e com minhas palavras em lugar de autoridade a crianccedila natildeo se ordena haacute um limite

meu mas porque certamente haacute um impossibilidade nela o TDAHrdquo E com isso a professora

renunciaria a seu papel encaminharia a crianccedila para a coordenaccedilatildeo acionaria matildee e psicoacuteloga

O fracasso portanto para a escola tomada pelo discurso medicalizante parece estar no

organismo do aluno O aluno com TDAH eacute causa do fracasso do professor e se natildeo fosse por

ele tudo correria bem (assim como pensou inicialmente a psicoacuteloga da histoacuteria ldquose natildeo fosse

pela escola e sua parceira teria dado tudo certordquo)

Tomando por referecircncia uma anaacutelise sobre o fenocircmeno do fracasso escolar realizada

por Lajonquiegravere (1997) para quem o fracasso eacute fruto de uma tentativa sintomaacutetica de situar o

impossiacutevel da fala entendemos que no caso da crianccedila com TDAH acontece algo semelhante

ela eacute tomada como causa do impossiacutevel do fazer do professor e nesse sentido haacute um

impedimento agrave sua presenccedila em sala de aula e por consequecircncia agraves palavras norteadoras do

educador que podem ingressaacute-la na educaccedilatildeo escolar Se pedir para o aluno sair da sala

encaminhaacute-lo para coordenaccedilatildeo e por fim medicaacute-lo fosse o modo de equacionar a educaccedilatildeo

escolar ou ainda se esse transtorno fosse realmente o impossiacutevel da educaccedilatildeo com o qual

devemos lidar talvez hoje trabalhariacuteamos melhor com o mal-estar natildeo haveria educadores

adoecidos por conta disso e o mal-estar gerado pelas crianccedilas com TDAH natildeo existiria O

sintoma quando natildeo escutado tende a se repetir

O ponto de limite enunciado pela escola o que faz com que peccedila ajuda eacute produzido por

um discurso que se trama com o discurso medicalizante Natildeo eacute o mesmo lugar em que estaacute a

impossibilidade da educaccedilatildeo da qual fala a psicanaacutelise Entendemos que as coisas se formam

da seguinte maneira atraveacutes da psicanaacutelise Freud diz que o ato educativo se faz com o

impossiacutevel intriacutenseco ao educar A escola com o discurso medicalizante parece querer educar

sem o impossiacutevel Mas como natildeo se educa sem a impossibilidade intriacutenseca ao educar ndash

165

lembrando que se educa com palavras ndash a escola parece renunciar agrave sua tarefa com aquelas

crianccedilas que representam para ela um limite

Produzimos um impedimento que toma o lugar do impossiacutevel da linguagem justamente

porque natildeo podemos com ele O limite produzido em nosso discurso ou seja a

psicopatologizaccedilatildeo eacute um limite sanado pela medicaccedilatildeo que dispensa a implicaccedilatildeo com o ato

educativo

Natildeo eacute tarefa faacutecil se fazer suporte dos limites da linguagem pois disso depende que

reconheccedilamos os limites de nosso proacuteprio acontecer como sujeito De certo modo em casos

que natildeo se bastam com os dispositivos educativos que criamos que precisam de uma funccedilatildeo a

mais temos que como educadores reviver a cena da imposiccedilatildeo de nossos limites tomar o lugar

do mestre que sabe por delegaccedilatildeo e de certa forma pagar a diacutevida simboacutelica de nossa filiaccedilatildeo

a uma cultura (LAJONQUIEgraveRE 1997)

No entanto se natildeo conseguimos reconhecer na crianccedila um pertencimento a uma tradiccedilatildeo

cultural eacute possiacutevel que estejamos presos a um certo ideal Haacute crianccedilas que conseguem

comportar-se como alunos idealizados pela escola jaacute que conseguem controlar seus corpos

ficam quietas quando lhe pedem fazem as tarefas quando lhe pedem sem deixar eacute claro de

ter seus momentos de espontaneidade Mas haacute crianccedilas como as diagnosticadas com TDAH

que satildeo tomadas pelo vieacutes psicopatoloacutegico jaacute que natildeo correspondem ao padratildeo Eacute verdade que

noacutes estamos sempre em certa medida distantes de um ideal Nessa medida que se vecirc a

necessidade da medicaccedilatildeo ou natildeo Mas nunca eacute questionado o padratildeo ele eacute dado a priori

Parece-nos que a medicaccedilatildeo poderia fazer o esforccedilo de igualar ou pelo menos aproximar

a crianccedila hiperativa e desatenta ao ideal de comportamento tomando o lugar das palavras Que

sujeitos formamos assim Lajonquiegravere (1997) comenta que haacute em cada adulto uma fantasia que

se realiza ao ver sua infacircncia projetada em uma crianccedila de seu conviacutevio com a esperanccedila de

que ela escape das proibiccedilotildees e obrigaccedilotildees impostas pela realidade

[] cada vez que um adulto se endereccedila a uma crianccedila natildeo eacute improvaacutevel que experimente a queda de vir a poupaacute-la de todo tipo de restriccedilotildees Infelizmente se porventura assim o for a legalidade educativa natildeo pode menos do que acabar sendo embaralhada (LAJONQUIEgraveRE 1997 p 40)

No caso das crianccedilas medicadas haacute de certo modo uma suspensatildeo do dever do adulto

para com a crianccedila em transmitir-lhe palavras ordenadoras capazes de ajudaacute-la a articular seu

desejo agrave realidade agrave cultura compartilhada Eacute como se os adultos delegassem tal tarefa ao

166

especialista ou ao medicamento esperando que ele cumpra a funccedilatildeo da legalidade educativa

Tal forma de conduta livra o adulto de ter que reviver a sua proacutepria histoacuteria com a crianccedila e de

pagar a diacutevida simboacutelica de sua existecircncia

Como o ato educativo eacute possiacutevel na medida do equacionamento de uma diacutevida simboacutelica ou seja do reconhecimento de uma obrigaccedilatildeo por parte do adulto em posiccedilatildeo de mestre entatildeo constitui um paradoxo mortal pretender educar e ao mesmo tempo almejar que as leis percam sua validade perante as crianccedilas Em outras palavras todo ato educativo alimentado pela ilusatildeo de que a crianccedila possa de direito vir a driblar a lei estaacute a priori condenado ao fracasso uma vez que se auto-esvazia Isso eacute inevitaacutevel pois quando o adulto almeja poupar agrave crianccedila das restriccedilotildees inerentes em uacuteltima instacircncia agrave lei da vida humana abre a possibilidade de uma exceccedilatildeo que mina os proacuteprios fundamentos do ato educativo ndash o fato de o adulto estar engajado no mesmo apenas em cumprimento de um dever-ser existencial Natildeo haacute do que nos surpreender ou todos estamos obrigados por igual ou natildeo haacute lei (LAJONQUIEgraveRE 1997 p 40)

41 A medicalizaccedilatildeo como deus ex machina na escola e seus efeitos

O discurso medicalizante participa de nosso laccedilo social e portanto estaacute presente na

escola e em outros ambientes sociais e educacionais Nesse sentido produzimos deus ex

machina na escola a fim de encontrar uma soluccedilatildeo medicalizante para um problema escolar

que venha de um fora de uma exterioridade Para ocupar esse lugar chamamos para a cena

escolar profissionais alheios a ela a fim de resolver problemas que os estudantes manifestam

em seu percurso de aprendizagem No momento em que agentes da educaccedilatildeo como professores

e pedagogos importam para o centro da accedilatildeo uma figura que teraacute como incumbecircncia a resoluccedilatildeo

de um problema que os paralisa que interrompe o fluxo da rotina escolar portam-se como o

autor da trageacutedia que diante de um impasse apela ao deus ex machina eximindo-se da

responsabilidade sobre o uacuteltimo ato

Diante de quais impasses os educadores sentem-se impotentes sentem que chegaram a

um limite intransponiacutevel precisam ldquosair de cenardquo e dar lugar a algueacutem de fora Eacute possiacutevel dizer

que os mais comuns envolvem problemas de aprendizagem e disciplina apresentados pelos

estudantes que frequentemente satildeo nomeados com transtornos disfuncionais a partir de uma

linguagem meacutedica que adentra o discurso de alguns educadores Dessa maneira acreditamos

ser o saber psicopatologizante a figura que frequentemente assume a funccedilatildeo de deus ex machina

na escola instalando-se de tal forma que impossibilita a accedilatildeo e o saber dos educadores

167

Stolzmann e Rickes (1999) confirmam esse argumento ao dizerem que eacute bastante

frequente o encaminhamento de crianccedilas para consultoacuterios da aacuterea ldquopsirdquo por uma iniciativa da

escola As queixas satildeo geralmente em torno de problemas de aprendizagem e de

comportamento forma que alguns entraves da constituiccedilatildeo subjetiva tomam na vivecircncia

escolar e sobre os quais os pais dos alunos ateacute entatildeo natildeo haviam produzido uma questatildeo Dessa

maneira para as autoras ldquoas dificuldades de aprendizagem entraram na ordem do dia

Tornaram-se as vilatildes de todas as mazelas que assolam o cotidiano escolar bem como o das

famiacutelias aiacute envolvidasrdquo (STOLZMANN RICKES 1999 p 40)

Podemos entender que ao longo do seacuteculo XX a medicina desenvolveu-se de forma a

garantir maior longevidade agrave populaccedilatildeo e a diminuir o sofrimento fiacutesico as dores e riscos de

vida em procedimentos meacutedicos graccedilas ao aprimoramento de teacutecnicas e ao avanccedilo da produccedilatildeo

de novos medicamentos para doenccedilas orgacircnicas especiacuteficas No entanto Moyseacutes e Collares

(2015) apontam que esse progresso cientiacutefico do uacuteltimo seacuteculo trouxe tambeacutem uma outra

vertente (que desemboca na escola) responsaacutevel pela exacerbaccedilatildeo diagnoacutestica de doenccedilas

consideradas orgacircnicas e pela consequente prescriccedilatildeo indiscriminada de medicamentos

avalizada pelo crescimento da induacutestria farmacecircutica conforme discutimos no iniacutecio deste

trabalho As autoras datildeo destaque agrave descriccedilatildeo de doenccedilas neuroloacutegicas que ao longo de cem

anos tornaram-se tatildeo especiacuteficas que hoje encontramos na literatura meacutedica transtornos que

envolvem apenas a aprendizagem e o comportamento para os quais haacute um tratamento

medicamentoso previsto

De acordo com Moyseacutes e Collares (2015) o espaccedilo escolar brasileiro jaacute retratado pelo

saber meacutedico desde o iniacutecio do seacuteculo XX ainda recebe atenccedilatildeo dessa aacuterea por ser um campo

de investigaccedilatildeo de ldquopretensas disfunccedilotildees neuroloacutegicasrdquo e nesse sentido atualmente ldquoa quase

totalidade dos discursos medicalizantes referem-se agrave dislexia TDAH (transtorno do deacuteficit de

atenccedilatildeohiperatividade) TOD (transtorno de oposiccedilatildeo desafiadora) e outros supostos

transtornos inventados a cada dia pela Associaccedilatildeo Psiquiaacutetrica Americanardquo (MOYSEacuteS

COLLARES 2015 p 68)

Na medida em que o Manual Diagnoacutestico e Estatiacutestico de Transtornos Mentais o DSM

manual de referecircncia internacional que se encontra em sua quinta ediccedilatildeo recolhe sintomas

presentes no cenaacuterio educativo e os distribui em transtornos mentais eacute compreensiacutevel que tais

classificaccedilotildees despertem o interesse de educadores que observam seus alunos diariamente O

que parece erguer-se como efeito colateral da curiosidade docente eacute com frequecircncia uma

168

desautorizaccedilatildeo do saber proacuteprio aos professores perante um campo do conhecimento

consolidado e criterioso que se propotildee na condiccedilatildeo de saber exatamente o que se passa com o

aluno que apresenta dificuldades em seu percurso escolar Natildeo eacute raro que diante do saber

meacutedico o professor veja minguar o que pode seu saber pedagoacutegico e acabe por recorrer a um

recurso externo ao cenaacuterio educativo como forma de desdobrar os impasses proacuteprios a esse

cenaacuterio ndash qualquer semelhanccedila com o papel desempenhado pelo deus ex machina na trageacutedia a

partir de Euriacutepedes natildeo nos parece mera coincidecircncia

Entendemos que seja assim que expressotildees como ldquohiperativordquo ldquodesatentordquo ldquodisleacutexicordquo

entre outras adentram a cena escolar na tentativa de nomear o sintoma desconhecido que

irrompe no comportamento de dar conta e de entender o que acontece com o estudante que natildeo

aprende Fazem parte de um discurso social patologizante do espaccedilo educativo de nosso tempo

O diagnoacutestico no campo meacutedico pode servir de buacutessola a apontar o norte para

tratamentos e intervenccedilotildees medicamentosas visando agrave sauacutede do paciente No lugar de doentes

tendemos a confiar nos caminhos apontados pelo especialista pois sendo ele delegado do saber

da medicina conhece as causas de nosso padecimento orgacircnico e eacute capaz de indicar as melhores

alternativas para atenuar os sintomas e promover a cura da doenccedila A posiccedilatildeo que meacutedicos

assumem em nossa cultura geralmente eacute a de detentores do saber sobre o que causa nosso

sofrimento Eacute possiacutevel que a presenccedila do especialista na escola se decirc no mesmo arranjo talvez

ele natildeo assuma um novo lugar no jogo de relaccedilotildees entre os agentes da educaccedilatildeo lembrando

que ele eacute convocado na cena escolar a falar a partir desse lugar ou seja de saber sobre o outro

de legislador das accedilotildees educativas Sendo assim ao tomar os sintomas da educaccedilatildeo como

sintomas meacutedicos o discurso psicopatologizante pode nublar o horizonte e paralisar a

caminhada Por quecirc Porque o modo como se organiza o campo meacutedico natildeo eacute o modo como se

arranja o campo educativo

O ofiacutecio de educar eacute um ofiacutecio que depende da fala e das marcas que a palavra pode

produzir sobre quem fala e quem escuta e nesse sentido a educaccedilatildeo constitui um cenaacuterio em

que circulam afetos e significantes abertos a novos sentidos Significantes que emergem num

jogo de relaccedilotildees entre eu e o outro num espaccedilo em que surgem impasses que podem

paradoxalmente carregar em seu enunciado as pistas para o desenho de uma saiacuteda Mas para

que essa saiacuteda seja desenhada seraacute necessaacuterio apostar na dimensatildeo produtiva do conflito que

se natildeo pode ser resolvido de forma integral pode em sua dimensatildeo de impossiacutevel

apaziguamento absoluto relanccedilar o caminho e ver surgir prosseguimentos criativos para a

169

empreitada educativa Eacute desse modo que a arte traacutegica pode nos inspirar a tomarmos caminhos

desejantes

Maria Cristina Kupfer (1999) atenta para a relaccedilatildeo existente entre o sintoma e o discurso

social Eacute possiacutevel considerar o problema de aprendizagem como um sintoma social pois para

a autora ele estaacute inscrito no discurso social dominante do campo da educaccedilatildeo Ou seja os

sintomas manifestados pelos estudantes satildeo produzidos no interior das relaccedilotildees escolares a

partir dos significantes presentes no discurso social da escola e se devem propriamente agraves

interaccedilotildees entre os sujeitos nesse campo Desse modo o aluno natildeo pode ser o uacutenico responsaacutevel

por seu sintoma como se ele portasse individualmente uma doenccedila Eacute preciso entender o

sintoma como produto da cena escolar como um impasse que toca o fazer de todos que

constituem essa rede de relaccedilotildees Considerar o sintoma de aprendizagem escolar como uma

questatildeo individual eacute recalcar o sujeito ndash que se estrutura no laccedilo ao outroOutro ndash como

elemento crucial da equaccedilatildeo que pensa os avatares da relaccedilatildeo ensino-aprendizagem

Na esteira de uma perspectiva que toma o sintoma de aprendizagem como produccedilatildeo de

um indiviacuteduo vemos se instalar no cotidiano escolar uma verdadeira epidemia de diagnoacutesticos

de Transtornos de Hiperatividade com Deacuteficit de Atenccedilatildeo Bernardino (2015) atenta para o

efeito iatrogecircnico da atribuiccedilatildeo de um diagnoacutestico fechado para uma crianccedila que se encontra

num processo de construccedilatildeo de sua identidade jaacute que ela pode se agarrar a um traccedilo

identificatoacuterio que proveacutem de um saber anocircnimo cientiacutefico e imperativo e com isso natildeo

encontrar um lugar de filiaccedilatildeo na rede simboacutelica Dessa forma dizer para a crianccedila que

apresenta dificuldades na escola que ela eacute ou porta um transtorno de aprendizagem eacute contribuir

para a cristalizaccedilatildeo de seu problema jaacute que ldquoo sujeito sofre justamente dessa ausecircncia de

significantes familiares que lhe possam indicar um lugar na filiaccedilatildeordquo (BERNARDINO 2015

p 54)

De acordo com Kupfer (1999) os problemas de aprendizagem vivenciados pelos

estudantes no acircmbito da educaccedilatildeo escolar satildeo produzidos por um conflito um impasse a forma

de aprender do sujeito aluno a qual a autora nomeia de ldquoestilo cognitivordquo choca-se com o

discurso social dominante da escola o qual circunscreve o estilo do aluno em ideais de bom ou

mau desempenho ou comportamento Por exemplo um aluno que se demora na apreciaccedilatildeo de

uma leitura pode ser considerado um aluno lento que natildeo segue um ritmo de aprendizagem

idealizado pela escola pois este se pauta no discurso social da rapidez da prontidatildeo Na

170

tentativa de responder a esse ideal o estudante pode vir a fracassar jaacute que o seu estilo de

aprender natildeo encontra valor no acircmbito da escola

A epidemia diagnoacutestica eacute muitas vezes acompanhada de uma prescriccedilatildeo maciccedila do

metilfenidato mais conhecido pelo seu nome comercial Ritalina conforme discutido na

primeira parte deste trabalho Por se tratar de um psicotroacutepico atua no sistema nervoso central

e seus efeitos aparecem no comportamento do aluno que se modifica enquanto o remeacutedio agir

sobre o organismo

A prescriccedilatildeo maciccedila dessa medicaccedilatildeo acaba por desembocar em chistes entre os

professores que solicitam a adiccedilatildeo de Ritalina agrave caixa drsquoaacutegua da escola Essa forma jocosa de

se referir agrave entrada da medicaccedilatildeo na cena escolar imiscuiacuteda na aacutegua de forma anocircnima sem

estar incluiacuteda em qualquer relaccedilatildeo transferencial chama atenccedilatildeo Eacute a essa indicaccedilatildeo sem rosto

que recalca a dimensatildeo transferencial ndash e com ela o sujeito ndash em causa na prescriccedilatildeo de uma

soluccedilatildeo a um conflito que acaba por corresponder uma suspensatildeo da responsabilidade dos

atores escolares pela construccedilatildeo de uma saiacuteda aos conflitos que emergem no transcurso das

relaccedilotildees de ensino-aprendizagem

Assim o que importa atentar eacute para a posiccedilatildeo que o medicamento vem ocupar no

cotidiano escolar A medicaccedilatildeo entra na cena como a promessa de uma resoluccedilatildeo para o impasse

e acaba desresponsabilizando seus atores a crianccedila que estaacute aprendendo a suspender o interesse

em seu entorno para focar sua atenccedilatildeo na resoluccedilatildeo de uma tarefa de forma a manter-se atenta

mesmo quando algo curioso atravessa seu caminho ou ainda quando se frustra por natildeo conseguir

chegar a bom termo nas primeiras tentativas o professor que estaacute construindo alternativas para

fisgar o desejo de aprender da crianccedila a escola que estaacute elaborando as vias de servir de suporte

para ambos mantendo a aposta em que com o tempo se chegaraacute a um bom termo na empreitada

educativa mesmo quando o avanccedilo tropeccedila nos desequiliacutebrios proacuteprios agrave aprendizagem e

parece patinar sem sair do lugar A reflexatildeo deve recair sobre a forma como a medicaccedilatildeo pode

entrar no jogo de relaccedilotildees entre os atores escolares como um deus ex machina que economiza

o tempo necessaacuterio para que nas idas e vindas por uma arena conflituosa chegue-se a uma

ldquosoluccedilatildeordquo

Outro risco que se acaba por correr eacute de que o estudante se torne condicionado ao uso

do metilfenidato para conseguir ter um miacutenimo de controle sobre o seu corpo e sobre seu objeto

de atenccedilatildeo Ou seja a quietude e a atenccedilatildeo demandadas pela escola natildeo decantam do que se

vive na cena escolar mas satildeo artificialmente produzidas pelo organismo de um indiviacuteduo que

171

pode estar denunciando com seus sintomas a imperfeiccedilatildeo do sistema de ensino (MOYSEacuteS

COLLARES 2015)

Dany-Robert Dufour (2005) fala que quando haacute um fracasso da autoridade da palavra

na arte de educar a alternativa que surge eacute a da prescriccedilatildeo medicamentosa Eacute o que ocorre

quando a escola se abre ao discurso medicalizante a partir do qual pensa que se natildeo

conseguimos educar os alunos a saiacuteda eacute medicaacute-los Para o autor isso faria parte de uma

negaccedilatildeo geracional em que natildeo haacute responsabilidade pela transmissatildeo da cultura que pode

ocorrer pela via da palavra

Maneiro e Minnicelli (2013) chamam atenccedilatildeo para a tendecircncia que existe hoje nos

espaccedilos onde circulam crianccedilas e adolescentes de transmissatildeo pela via do orgacircnico e geneacutetico

ou seja do palpaacutevel e material jaacute que esse modo de transmitir alcanccedila uma melhor compreensatildeo

das pessoas Assim a infacircncia vai se enclausurando em diagnoacutesticos e tratamentos que a

excluem

Monteiro (2013) considera fundamental o jogo de relaccedilotildees formado no espaccedilo escolar

para pensarmos a indicaccedilatildeo de problemas de aprendizagem A autora nos ajuda a problematizar

o encontro do aluno com seu educador atribuindo grande importacircncia agrave posiccedilatildeo ocupada pelo

professor em sua funccedilatildeo de educar Se o professor se apresentar como algueacutem que deteacutem um

saber absoluto fechado que tem o intuito de transmitir apenas certezas e garantias o aluno

pode natildeo encontrar espaccedilo para duacutevidas uma brecha para produzir suas questotildees e assim a

educaccedilatildeo pode natildeo fazer sentido para ele Da mesma forma o aprender na escola pode natildeo ter

sentido pode natildeo propiciar uma experiecircncia de aprendizagem ao aluno quando o educador se

apresentar como algueacutem que natildeo sustenta o lugar de fala que se desautoriza e se sente impotente

em sua funccedilatildeo de transmissatildeo Assim de acordo com Monteiro (2013) muitos sintomas que

constituem o chamado fracasso escolar satildeo decorrentes do modo como o professor se relaciona

com o lugar de saber e de como ele o apresenta aos seus alunos

Talvez os sintomas do TDAH desatenccedilatildeo e hiperatividade deixem de causar

preocupaccedilatildeo quando o educador puder supor que haacute ocasiotildees em que algo de sua fala pode

fisgar os alunos em seu desejo de aprender produzindo como efeito a atenccedilatildeo dos estudantes agrave

sua aula mas que tambeacutem as crianccedilas podem aprender fora dos contornos de sua intervenccedilatildeo

em momentos em que estiverem desatentas agrave aula circulando pela sala ou conversando Ou

seja a escola pode ser rica em momentos nos quais o que desperta o interesse das crianccedilas estaacute

172

para aleacutem da sala de aula e dos conteuacutedos curriculares e tambeacutem nesses momentos eacute possiacutevel

aprender alguma coisa

Ainda que aqui estejamos tomando a figura do professor como equivalente agrave figura do

educador entendemos que o professor eacute um educador na medida em que sua funccedilatildeo social eacute

educar da mesma forma que qualquer adulto que se dirigir a uma crianccedila no intuito de educaacute-

la filiaacute-la a uma tradiccedilatildeo cultural tambeacutem poderaacute ser considerado educador jaacute que seu ato

poderaacute inscrevecirc-la num mundo de coacutedigos compartilhados

Acreditamos que eacute com a trama das relaccedilotildees escolares e das produccedilotildees do estudante no

espaccedilo educativo que ele pode encontrar uma forma de desenlace para os conflitos que

experimenta um desenlace que tambeacutem daacute lugar ao dionisiacuteaco na educaccedilatildeo o qual emana do

jogo entre agentes escolares Eacute possiacutevel pensar um desenlace criado com os personagens que

fazem o enredo sem que seja necessaacuteria a produccedilatildeo de um fora o qual denominamos deus ex

machina e que a medicalizaccedilatildeo vem a ocupar Como a histoacuteria poderia seguir para que o

desenlace se torne ldquoreenlacerdquo

42 A falta como operadora da criaccedilatildeo

Da apreciaccedilatildeo do traacutegico na trageacutedia antiga e do comentaacuterio de Lacan sobre a Antiacutegona

de Soacutefocles apresentados na segunda parte deste trabalho recolhemos a eacutetica psicanaliacutetica e o

operar significante que conduz agrave criaccedilatildeo ex nihilo Para situar este fabricar com o vazio Lacan

toma por metaacutefora a atividade do oleiro ao produzir o vaso talvez o significante mais antigo

modelado pelo humano Na accedilatildeo de fazer esse objeto material o oleiro acaba por criar um

vazio e a perspectiva de preenchecirc-lo o que lhe eacute inerente Nesse sentido o vaso eacute um lugar

vazio de significante que permite que se deslindem outros significantes A partir dessa

representaccedilatildeo entendemos que uma rede simboacutelica se sustenta com um nihilo criado por noacutes

contornado pelo nosso fazer pela nossa accedilatildeo

Lembramos aqui a noccedilatildeo grega de Khocircra apresentada do segundo capiacutetulo entendida

como lugar de passagem onde as coisas tomam forma e se transformam em outras receptaacuteculo

molde Derrida (1995) enfatiza sobretudo o vir a ser o vir a se tornar que tal conceito filosoacutefico

provoca observando a condiccedilatildeo de operar de moldar significantes as potencialidades de criar

uma terceira via um terceiro gecircnero um entrelugar sem secirc-lo

173

Conforme a trageacutedia Antiacutegona tomada como exemplo por Lacan (1959-19601997) ateacute

mesmo o lugar da intervenccedilatildeo divina pode ser situado de acordo com a perspectiva ex nihilo

lugar este situado na fala da personagem como lei simboacutelica que a governa Assim podemos

questionar a presenccedila de um deus ex machina como princiacutepio ordenador na medida em que natildeo

for fruto de nosso fazer e na medida em que natildeo entrar como significante na cadeia mas como

uma significaccedilatildeo total fechada

De acordo com Lacan a criaccedilatildeo ex nihilo remonta agrave criaccedilatildeo de um vazio como o que

decanta da trama significante que o sujeito mobiliza em sua emergecircncia Eacute justo esse vazio que

a resposta medicamentosa procura obturar sem considerar poreacutem que o funcionamento

simboacutelico depende de que esse vazio continue operativo para colocar a maacutequina da vida a girar

Manter a casa do enigma vazia natildeo preenchecirc-la com a resposta medicamentosa

depende da condiccedilatildeo construiacuteda pelo coletivo da escola ndash certamente natildeo se trata de uma

construccedilatildeo de responsabilidade individual do professor ndash de suportar por um periacuteodo de tempo

o impasse que a educaccedilatildeo de certo aluno inscreve e buscar constituir com ele um desenlace A

ldquosoluccedilatildeordquo certamente seraacute fruto de uma invenccedilatildeo e por conta disso por mais que possa orientar

novas invenccedilotildees natildeo teraacute o atributo de poder ser ofertada a todo e qualquer aluno

Por meio de um trabalhar conjuntamente na escola que se faz ex nihilo do nada que

considera os sintomas do TDAH como significantes de outra coisa que bordejam um vazio em

nossa fala que limita um campo possiacutevel e impossiacutevel do nosso dever podemos talvez ir mais

longe mais aleacutem do diagnoacutestico com nossas alternativas educacionais Assim conscientes da

nossa constituiccedilatildeo subjetiva em torno da falta encontramo-nos numa travessia desejante que

pode operar pela via da criaccedilatildeo Uma invenccedilatildeo ocorre pelo operar significante pela produccedilatildeo

de um vazio onde se assenta a condiccedilatildeo de uma experiecircncia subjetiva e o desejo de criar Se no

lugar do vazio o que resultar de nosso fazer eacute uma soluccedilatildeo sob a forma de um deus ex machina

representado por especialistas da sauacutede remeacutedios diagnoacutesticos roacutetulos enfim o que restaria

de condiccedilotildees para a emergecircncia do sujeito no campo escolar

Dissemos que o professor ao se relacionar com o saber de determinada maneira ao

endereccedilar suas palavras aos estudantes iraacute refletir no seu aprendizado no seu desejo pelos

estudos ou em sua dispersatildeo e desrespeito Natildeo queremos contudo responsabilizar

unilateralmente o professor por tudo o que se passa com seus alunos Apenas lembrar que seu

modo de se posicionar ndash do professor e dos outros agentes escolares ndash guarda a potecircncia de

incidir de forma consequente sobre seus alunos

174

Se em seu fazer no endereccedilamento de suas palavras ao aluno ele considerar a forma

como o estudante se apresenta na escola seja atraveacutes da atenccedilatildeo seja atraveacutes da dispersatildeo o

professor se coloca como responsaacutevel sobre os efeitos de seu ensino ainda que os efeitos natildeo

tenham sido necessariamente provocados por ele a princiacutepio Eacute possiacutevel que um estudante com

sintomas de TDAH natildeo esteja ainda fazendo parte do laccedilo social proporcionado pela escola e

isso pode ser em decorrecircncia das questotildees mais diversas No entanto se o professor em seu

fazer agir com o aluno de modo a tomar os sintomas como efeito de sua fala ele pode estar

oferecendo uma possibilidade de laccedilo dando lugar ao sintoma O estudante por sua vez

encontra um outro a quem endereccedilar seu sofrimento e pode com isso sentir-se acolhido

escutado

Sabemos que um educador autorizado em seu saber e em seu fazer natildeo conquista tal

tarefa sozinho precisa de suporte da instituiccedilatildeo de ensino onde trabalha precisa de respaldo e

respeito da comunidade e das poliacuteticas puacuteblicas em educaccedilatildeo A questatildeo natildeo se resolve

facilmente Justamente por conta disso precisamos estar atentos aos deī ex māchinīs que se

instalam na cena escolar com a promessa de resoluccedilatildeo das dificuldades de aprendizagem

quando na verdade privam a possibilidade dos educadores e dos estudantes de descobrirem

juntos uma forma de desenlace ao impasse o que corresponderia no cenaacuterio educativo a uma

forma de laccedilo social na escola

O que nos resta o que a psicanaacutelise nos autoriza a fazer ndash o que atraveacutes da arte de seu

curvar(-se) agrave criaccedilatildeo do poeta como Freud e Lacan fazem diante dos tragedioacutegrafos gregos a

psicanaacutelise nos ensina a fazer ndash eacute construir um saber natildeo sobre o outro mas com o outro e

assim jaacute que Euriacutepides natildeo eacute o mais saacutebio dos poetas mas o segundo mais saacutebio haacute

possibilidade de encontramos as brechas os furos as vias abertas de criaccedilatildeo desejante em suas

peccedilas E nos desafiamos a pensar uma em especial que natildeo eacute qualquer uma mas aquela citada

por Aristoacuteteles aquela que apresenta uma exceccedilatildeo na apariccedilatildeo do deus ex machina quando agrave

espera da puniccedilatildeo divina somos surpreendidos pela divinaccedilatildeo de um ser humano uma mulher

onde talvez podemos encontrar um resiacuteduo do dionisiacuteaco entre elucubraccedilotildees filosoacuteficas

Estamos falando de Medeia

175

5 MEDEIA

51 ldquoAndarilha de incertas geografiasrdquo

De morada e cidade filhos natildeo careceraacute nenhum dos dois ausente a matildee apoacutes o adeus carpido Vou-me andarilha de incertas geografias frustracircnea na visatildeo do regozijo sem lhes doar adorno para o leito nupcial sem soerguer a tocha ao ceacuteu (Medeia vv 1021-1027)

Os estrangeiros deve-se sempre acolhecirc-los Eacute o que dizia a lei da hospitalidade

compartilhada entre gregos Tal lei eacute narrada no episoacutedio da Odisseia em que criados perguntam

ao rei Menelau se devem receber estrangeiros receacutem-chegados ou indicar a casa de algum

vizinho Indignado com a interrogaccedilatildeo o rei ordena que abram as portas sem nem mesmo

perguntar quem eram ou o que queriam os visitantes Um estrangeiro explica Menelau pode

ser um deus disfarccedilado e nesse sentido oferecer hospitalidade eacute tambeacutem respeitar os deuses

Jeanne Marie Gagnebin (2010) nos ajuda a estender a compreensatildeo da hospitalidade

grega Os estrangeiros acolhidos pelos gregos como os de que trata o episoacutedio da Odisseia

pertenciam aos limites geograacuteficos dominados pelos mesmos deuses falavam idioma

semelhante e se submetiam agrave liacutengua e agrave bondade do rei que lhes oferecia abrigo o que contribuiacutea

para reforccedilar seu poder e suas melhores qualidades Nesse sentido o acolhimento do estrangeiro

eacute possiacutevel na medida em que a identidade dos gregos natildeo estiver ameaccedilada pelo outro O que

poderia abalar as estruturas do mundo grego A descoberta de povos regidos por outras crenccedilas

outra liacutengua e cultura tatildeo desenvolvida quanto a grega como eacute o caso dos egiacutepcios Deparar-

se com algueacutem de lugar e de costumes diferentes dignos e vaacutelidos para seu mundo pode causar

no indiviacuteduo a experiecircncia de tambeacutem ver-se como outro estrangeiro para si Afinal o que eacute

mesmo e comum para o outro natildeo o eacute para mim e vice-versa Como restituir os limites e

contornos de minha identidade abalados pela presenccedila do outro

O filoacutesofo Soacutecrates jaacute mencionado neste trabalho como importante influecircncia na

trageacutedia de Euriacutepides eacute condenado agrave morte por sua habilidade em questionar preceitos morais

e costumes Define-se a si mesmo em Apologia de Soacutecrates como um estrangeiro em Atenas

176

ainda que fosse seu fiel cidadatildeo O que podemos entender desse duplo sentimento Eacute possiacutevel

sentir-se um outro em sua proacutepria casa Eacutedipo eacute um homem que preenche essas condiccedilotildees

A heroiacutena Medeia da trageacutedia de Euriacutepides de mesmo nome vive a radicalidade desta

dupla posiccedilatildeo estrangeira em Corinto geograacutefica e culturalmente persona non grata em sua

paacutetria Coacutelquida por ter traiacutedo o rei seu proacuteprio pai Na cidade grega para onde se mudara com

Jasatildeo vive a amargura da traiccedilatildeo do marido e se depara com o conflito de tornar-se uma cidadatilde

grega ou ser uma baacuterbara no sentido mais temido para os coriacutentios Quem eacute Medeia

Gagnebin (2010) lembra o socioacutelogo Georg Simmel para quem um estrangeiro eacute um

andarilho potencial ldquoo que introduz assim uma potencialidade viajante no seio da fixidez

justamente porque ele natildeo se contenta mais em passar mas se estabelece em um lugar que

como se diz natildeo eacute o seu abalando a estabilidade desse proacuteprio lugarrdquo (Gagnebin 2010 p 42)

A estrangeira Medeia perturbava a paz de Corinto pelas notiacutecias que circulavam sobre seu

passado pelo medo de que ela viesse a causar o mal novamente Nesse sentido apoacutes o abandono

de Jasatildeo ela eacute convidada a se retirar ou seja exilada com a cordialidade grega Entre o luto de

ser uma boa esposa e os pensamentos de vinganccedila decorrentes da fuacuteria pela traiccedilatildeo Medeia

coloca em evidecircncia sua estrangeiridade Percebe o quanto se deixou enganar por Jasatildeo e pelos

coriacutentios percebe em si uma cidadatilde quase grega oscila entre desejar a proacutepria morte e realizar

a mais terriacutevel das vinganccedilas Como sustentar sua pertenccedila sem corresponder ao que desejam

dela

Por um momento Medeia pensa em ir embora deixar os filhos na esperanccedila de que

sejam aceitos em Corinto e profere os versos que destacamos na epiacutegrafe O lugar de Medeia

talvez seja esse de ser andarilha potencial andarilha de incertas geografias sem paacutetria na

radicalidade de ser uma outra

De acordo com o tradutor da versatildeo biliacutengue consultada neste trabalho Trajano Vieira

(2010) a personagem Medeia aparece na mitologia grega nas Argonaacuteuticas que contam sobre

expediccedilotildees gregas no mar Negro Eacute atraveacutes do escritor alexandrino Apolocircnio de Rodes que

viveu no seacuteculo III aC que conhecemos a narrativa do mito de Medeia e dos feitos heroicos

de Jasatildeo

Segundo o mito Jasatildeo filho do rei da Tessaacutelia tem seu trono usurpado pelo tio quando

seu pai adoece Seu tio Peacutelias lhe confere uma importante tarefa como condiccedilatildeo de lhe entregar

o reinado recuperar uma reliacutequia de sua famiacutelia que estava sob a posse do rei Eeta da Coacutelquida

Tratava-se do tosatildeo velocino ou velo de ouro pelagem de um carneiro que tem propriedades

177

maacutegicas Quando Jasatildeo chega agrave terra estrangeira o rei Eeta filho do Sol e pai de Medeia

promete devolver a Jasatildeo o velo de ouro se o heroacutei cumprir trecircs difiacuteceis tarefas lavrar um campo

com dois touros monstruosos e semear no campo lavrado os dentes de um dragatildeo Desse plantio

nasceriam guerreiros os quais deveria derrotar Medeia apaixonada ajuda Jasatildeo no

cumprimento das tarefas atraveacutes de sua misteriosa sabedoria na produccedilatildeo de venenos

O rei da Coacutelquida furioso natildeo quer entregar o precircmio mas Medeia consegue mais uma

vez atrapalhar os planos do pai Oferece ao dragatildeo que guardava o velo de ouro uma substacircncia

que o faz dormir Jasatildeo e Medeia conseguem assim fugir para a Tessaacutelia depois de o viajante

ter pedido a princesa em casamento As nuacutepcias ocorrem durante a viagem Apsirto o irmatildeo da

moccedila persegue o casal pelo mar e eacute assassinado pelos argonautas com a ajuda de Medeia Ela

joga o corpo do irmatildeo ao mar para que seu pai se ocupe de buscaacute-lo em vez de persegui-la Na

terra de Jasatildeo Medeia faz com que as filhas do rei na esperanccedila de rejuvenescer o pai matem-

no envenenado Com isso os dois partem e encontram refuacutegio na cidade de Corinto Eacute nesse

lugar que se inicia a accedilatildeo cecircnica da trageacutedia de Euriacutepides Medeia cujo desenrolar conduz

Medeia a assassinar seus proacuteprios filhos o que faz com que fique conhecida como a terriacutevel

matildee infanticida Aleacutem da trageacutedia de Euriacutepides haacute outras versotildees contemporacircneas que

apresentam outras Medeias

Na trageacutedia musical de Chico Buarque Gota drsquoaacutegua haacute a adoccedilatildeo da invenccedilatildeo de

Euriacutepides cometida pela personagem Joana referecircncia clara agrave mulher traiacuteda Medeia Haacute

tambeacutem uma importante versatildeo cinematograacutefica de Pier Paolo Pasolini que se passa na mesma

eacutepoca da peccedila de Euriacutepides e traz o contraste entre o mundo miacutetico de Medeia e o mundo

pragmaacutetico de Jasatildeo

As duas obras citadas satildeo bastante conhecidas mas sabemos que existem outras

encenaccedilotildees propostas de tempos em tempos que optam ou natildeo pelo filiciacutedio O espetaacuteculo

Medeia Vozes da Tribo de Atuadores Oacutei Noacuteis Aqui Traveiz opta por apresentar uma versatildeo

do mito em que Medeia natildeo comete o filiciacutedio Enfatiza as diferenccedilas culturais entre a Coacutelquida

oriental e a Greacutecia ocidental aleacutem de questionar as relaccedilotildees de poder implicadas na

transmissatildeo do mito por Euriacutepides que coloca Medeia como a baacuterbara infanticida a ser banida

Em contraponto a outras versotildees o espetaacuteculo a toma como o bode expiatoacuterio perseguido por

aqueles que detecircm o poder

Na peccedila Medeia diante dos filhos mortos apedrejados pelos cidadatildeos de Corinto fala

que os coriacutentios a acusam de ela mesma ter matado os filhos ldquoQuem acreditaraacute em mimrdquo

178

pergunta ao puacuteblico que passa repensar sobre o mito que conhece Vale dizer que o grupo

teatral inspirou-se no livro homocircnimo da escritora alematilde Christa Wolf para criar a encenaccedilatildeo

Wolf rejeita que Medeia tenha cometido qualquer um dos crimes de que eacute acusada parriciacutedio

fratriciacutedio filiciacutedio entre outros A escritora sustenta que a imagem de uma mulher vingativa

e cruel foi mantida durante milecircnios como forma de apagar a imagem de uma feiticeira poderosa

(MELO 2014)

A encenaccedilatildeo da Tribo de Atuadores Oacutei Noacuteis Aqui Traveiz inova natildeo apenas por livrar

Medeia dos crimes mas tambeacutem na forma como propotildee o desenlace Em vez de sair de cena ex

machina conforme a versatildeo euripidiana protegida por Heacutelios solar Medeia eacute condenada a

vagar sem rumo sem louvores a seu caraacuteter sem aplausos do puacuteblico (pois natildeo retorna para

recebecirc-los) Sai de cena como andarilha errante num lugar de exiacutelio eterno ou como propotildee

Melo (2014) condenada ao natildeo lugar Mesmo destino sem registro de Eacutedipo

52 Medeia de Euriacutepides

A peccedila do tragedioacutegrafo se passa em Corinto A princesa estrangeira e Jasatildeo satildeo casados

e tecircm dois filhos Contudo Jasatildeo trai o laccedilo que tinha com Medeia ao noivar com Glauce filha

do rei Creonte Medeia eacute expulsa pelo rei pois ele a considera uma grande ameaccedila

principalmente agrave sua filha Apesar de ter chegado a Corinto como esposa de Jasatildeo um grego

ela natildeo havia deixado de ser estrangeira O rei reconhece que haacute nela uma cultura diferente

daquela compartilhada entre as pessoas do lugar Haacute um receio de que ela venha causar um mal

jaacute que tem um saber de uma ordem desconhecida conhece o poder das plantas e com elas sabe

produzir remeacutedios e venenos Aleacutem disso no passado foi uma pessoa destrutiva Justificado por

tais ameaccedilas Creonte a manda embora

De acordo com o Dicionaacuterio etimoloacutegico da mitologia grega (2013 p 208) o termo

ldquoMedeiardquo deriva do verbo μήδομαι ldquomeditar um projeto prepararrdquo e significa portanto ldquoa que

medita (um projeto)rdquo De acordo com Trajano Vieira (2010) Medeia deriva de ldquoimaginarrdquo

ldquotramarrdquo ldquoprepararrdquo e tambeacutem de ldquodesiacutegniordquo e ldquopensamentordquo

O que se sucede na histoacuteria Medeia solicita a Creonte apenas mais um dia para

organizar sua partida e pedir a Jasatildeo que aceite ficar com os filhos Apela a Creonte no lugar

de pai para que tenha compaixatildeo Com isso o rei concede mais um dia e Medeia ldquoaquela que

medita que arma um planordquo arranja sua saiacuteda Consegue exiacutelio com o rei Egeu com uma troca

179

que lhe propotildee ldquomeus faacutermacos daratildeo agrave luz os filhos de um sem-filhosrdquo Envenena Glauce e

Creonte que morrem mata os seus dois filhos anuncia a Jasatildeo seu triste fim e sai de cena ex

machina

De acordo com Guinsburg (1992) haacute pelo menos dois erros capitais cometidos por

Euriacutepides em sua trageacutedia Medeia Um quanto agrave forma como nos aponta Aristoacuteteles O outro

aceito pelo filoacutesofo grego mas criticado por Nietzsche eacute uma afronta agrave tradiccedilatildeo miacutetica O

primeiro diz respeito ao desenlace O segundo eacute quanto ao filiciacutedio

Quanto ao desenlace da accedilatildeo Aristoacuteteles comenta o seguinte ldquoEacute pois evidente que

tambeacutem os desenlaces devem resultar da proacutepria estrutura do mito e natildeo do deus ex machina

como acontece em Medeia []rdquo (Poeacutetica XV 1454a 33-36) Acreditamos no entanto com

base em Rebelo (1995) que existe uma diferenccedila importante nesse desenlace quando quem

ocupa o lugar do deus moralizador eacute uma pessoa justamente a heroiacutena do drama Quem entra

em cena atraveacutes da maacutequina eacute a proacutepria Medeia que embora presente desde a primeira cena

(res)surge ao fim na carruagem do Sol com os corpos dos filhos O ex-marido Jasatildeo a

abandonara com a prole para casar com a filha do rei Apesar de ter cometido um ato repulsivo

e impensaacutevel entre as mulheres de Corinto como diz Jasatildeo Medeia consegue ir embora sem

ser atingida por seus inimigos e na posiccedilatildeo divina que ocupa dita acontecimentos futuros

Quanto ao segundo erro natildeo existe referecircncia no mito de Medeia de origem bastante

remota sobre o assassinato dos proacuteprios filhos cometido por ela De acordo com Trajano Vieira

(2010) tradutor de Medeia o filiciacutedio foi uma criaccedilatildeo do tragedioacutegrafo Ou seja por alguma

razatildeo Euriacutepides considerou que seria cabiacutevel que Medeia matasse os filhos que teve com Jasatildeo

Trajano Vieira (2010) conta que eacute muito provaacutevel que Euriacutepides tenha proposto o

filiciacutedio inovando em sua concepccedilatildeo da histoacuteria No mito compartilhado entre os gregos antes

da apresentaccedilatildeo da peccedila euripidiana em 431 aC Medeia fugia de Corinto apoacutes assassinar a

princesa prometida a Jasatildeo e o rei Creonte Assim como apresenta a peccedila Medeia Vozes os

cidadatildeos eacute que matavam as crianccedilas e natildeo a matildee Aristoacuteteles menciona que Euriacutepides

modificava o mito o que eacute uma escolha que fere os preceitos de uma trageacutedia ideal a qual deve

ser fiel ao mito mas ainda assim trata-o como o mais traacutegico dos poetas provavelmente por

ousar trazer agrave cena os limites aos quais os heroacuteis podem chegar com suas accedilotildees Desse modo

na versatildeo apresentada por Euriacutepides o assassinato cometido pela protagonista aparece

superficialmente como uma vinganccedila decorrente da traiccedilatildeo do marido

180

521 Hoacuterkos

De acordo com Vieira (2010) natildeo haacute uma justificativa passional no crime natildeo haacute ciuacuteme

de Medeia em relaccedilatildeo a Jasatildeo pois natildeo fica expliacutecita uma ligaccedilatildeo afetiva forte entre os dois

pelo menos na peccedila euripidiana Medeia mata as crianccedilas assim como comete outros

assassinatos porque Jasatildeo quebra um acordo um comprometimento que os dois tinham

firmado desde a conquista do velo de ouro ldquoNatildeo eacute da manifestaccedilatildeo afetiva que Medeia sente

falta mas da manutenccedilatildeo do compromisso A traiccedilatildeo decorre do fato de o ex-esposo natildeo

preservar o conjunto de favores proporcionados por ela em seu peacuteriplo bem-sucedidordquo

(VIEIRA 2010 p 158) O peacuteriplo bem-sucedido eacute relembrado por Medeia em seu primeiro

diaacutelogo com Jasatildeo apoacutes o edito de expulsatildeo realizado por Creonte

[] quem salvou tua vida os gregos sabem todos os nautas de Argo quando em touros fogo- -arfantes impuseste o jugo quando semeaste o campo que abrigava a morte E a serpente-vigia que abraccedilava com a rosca de aneacuteis o velo de ouro assassinei e fiz jorrar a luz Traiacute morada e pai ao vir contigo [] Homuacutenculo me pagas como Enganando-me ao leito ainda virgem depois que procriei (Medeia vv 475-490)

Qual o motivo da fuacuteria de Medeia com Jasatildeo O fato de ele natildeo ter cumprido a sua

promessa natildeo ter feito exatamente o que Medeia esperava dele Medeia queria que Jasatildeo tivesse

domiacutenio absoluto sobre as suas palavras e accedilotildees Natildeo fica expliacutecito na peccedila precisamente o que

se passou entre os dois na Coacutelquida natildeo haacute uma prova de Jasatildeo dizendo que ficaraacute com Medeia

para sempre que a assumiraacute como digna esposa na Greacutecia e honraraacute eternamente o leito

matrimonial se ela o ajudar em sua difiacutecil jornada Mas eacute assim que Medeia toma a proposta

de Jasatildeo e eacute assim que ela lhe cobra Rompe seus viacutenculos com sua terra e com sua famiacutelia para

constituir novos laccedilos com Jasatildeo em um novo lugar Lembramos Antiacutegona que cumpre com

seu juramento em relaccedilatildeo ao pedido do irmatildeo Polinices o de ser enterrado agrave custa de sua

proacutepria vida honrando as leis natildeo escritas

181

Como Jasatildeo natildeo cumpre a promessa da forma como ela espera ou seja um acolhimento

em solo estrangeiro e o lugar de esposa Medeia se volta para os filhos com uma forccedila destrutiva

vislumbrando neles o que tem que suportar como resto de suas escolhas e de seus planos

ldquoDobrou-me o mal mirar os dois natildeo eacute possiacutevelrdquo ela diz (Medeia vv 1076-1077) Essa eacute uma

maneira de entender o infanticiacutedio

De acordo com Oliveira (2007) o significante principal do drama de Euriacutepides que

amarra todos os outros da peccedila eacute hoacuterkos cujo significado eacute ldquojuramentordquo ou ldquoaquilo que

prenderdquo Ou seja eacute um significante que exerce na obra a funccedilatildeo de amarraccedilatildeo da mesma forma

que isso se refere ao seu significado Para Oliveira o campo do hoacuterkos estaacute fora dos domiacutenios

da Lei que organiza o mundo mitoloacutegico sob o ordenamento do grande Zeus Ou seja dentro

da dimensatildeo do juramento todos os acordos satildeo ainda precaacuterios pois estatildeo na iminecircncia de

natildeo serem cumpridos Com isso

[] a jura ou juramento pertence a um campo onde a Lei ainda natildeo estaacute propriamente instituiacuteda um campo onde ainda natildeo haacute o bem e o mal um campo para aqueacutem ou para aleacutem do bem e do mal e por conseguinte para aqueacutem ou para aleacutem da proacutepria Lei [] Eacute nesse contexto que temos que entender a posiccedilatildeo de Medeia Ela natildeo conhece propriamente o campo da Lei Ela jaacute tinha dado muitas provas disso antes de chegar a Corinto e continuaraacute dando provas disso mesmo quando de laacute partir A uacutenica coisa que organiza sua existecircncia e que lhe daacute um lugar na cidade ela que eacute sem cidade eacute a jura que Jasatildeo lhe fez (OLIVEIRA 2007 p 66)

Dessa forma na medida em que Jasatildeo natildeo honra a jura que tem com Medeia ou seja o

compromisso que tinha firmado por ter recebido ajuda na conquista do velo de ouro ela

experimenta um terriacutevel sentimento a destruiccedilatildeo de tudo o que havia constituiacutedo a partir da

uniatildeo com ele Medeia natildeo eacute grega eacute da Coacutelquida paiacutes baacuterbaro Ela eacute estrangeira sob o ceacuteu

grego e seu casamento com Jasatildeo eacute garantido apenas pelo hoacuterkos Quando desonrada por Jasatildeo

para Medeia natildeo resta garantia alguma a natildeo ser buscar um novo laccedilo que a sustente Oliveira

(2007) demarca os momentos da peccedila em que existe menccedilatildeo agraves juras de forma que organizam

a estrutura dramaacutetica a nutriz e o coro citam o juramento de Jasatildeo chamam Medeia de

desonrada Medeia acusa Jasatildeo de desonrar a diacutevida que deve a ela Medeia clama agrave deusa

Tecircmis guardiatilde das juras para interceder pelo seu destino o que tambeacutem eacute frisado pelo coro e

pela nutriz A respeito disso Oliveira (2007) argumenta que Medeia soacute pode reclamar aos

deuses e natildeo aos homens por seu compromisso desonrado Segundo ele como a jura natildeo

pertence ao campo simboacutelico da Lei a mulher precisa exigir o cumprimento da promessa no

182

campo do real o campo de onde os deuses podem intervir de modo inesperado tatildeo inesperado

quanto o seu ato de matar os proacuteprios filhos

Podemos entender que as accedilotildees de Medeia de matar seus filhos e em seguida fugir na

carruagem de Apolo estatildeo interligadas tomar ambas como inovaccedilotildees do mito O que nos

parece como leitores da peccedila eacute que fazia parte do jogo de relaccedilotildees entre os personagens que

Medeia cometesse sim uma accedilatildeo contra o descumprimento do hoacuterkos por parte de Jasatildeo visto

que ela abandona sua paacutetria ajuda-o na captura da pele dourada do carneiro alado escondida

pelo seu pai ajuda-o tambeacutem a vingar-se do tio tirano ndash todos esses satildeo acontecimentos

anteriores agrave peccedila e aqui caberia caso o autor assim desejasse o recurso deus ex machina de

acordo com a esteacutetica aristoteacutelica jaacute que isso natildeo eacute capaz de modificar o rumo da histoacuteria Mas

quem introduz a peccedila eacute a nutriz mulher cuidadora das crianccedilas registrando outra marca da

inovaccedilatildeo de Euriacutepides ou seja dar voz agraves pessoas sem prestiacutegio social

Aleacutem disso Medeia eacute expulsa de Corinto pelo rei No primeiro diaacutelogo que tem com

Jasatildeo eacute transparente fala de seu oacutedio e desejo de vinganccedila Em posterior conversa com o coro

de mulheres fala em matar a todos e fugir com os filhos mas sabe que natildeo seria acolhida em

lugar algum Ousamos dizer que um dos caminhos possiacuteveis para desenlace da peccedila buscando

o ideal aristoteacutelico seria aquele em que Medeia mataria noiva e pai e tentaria fugir com os

filhos As crianccedilas acabariam mortas pelos cidadatildeos conforme o mito Medeia acabaria morta

ao tentar entrar em nova cidade ou quem sabe tomaria algum veneno ao saber da morte dos

filhos e Jasatildeo sentiria grande dor e arrependimento destinado a uma vida infeliz Essa possiacutevel

versatildeo preservaria o mito e apresentaria a linha de accedilatildeo em decorrecircncia da desmedida de Jasatildeo

As accedilotildees de Medeia mostrariam seu caraacuteter vingativo e furioso e estariam de certa forma

contornadas pelos limites da trama

522 Sopheacute

A escolha de Euriacutepides eacute outra Medeia engana Jasatildeo e Creonte quanto a suas intenccedilotildees

enquanto arma o seguinte plano promete a Egeu um filho em troca de acolhimento em sua

terra Depois disso envia as crianccedilas com presentes envenenados para a princesa que

educadamente os aceita e os veste Ao ver a filha agonizar Creonte tenta tirar-lhe o veneno

mas tambeacutem morre envenenado Haacute expectativa de Medeia de que as crianccedilas tambeacutem fossem

183

acidentalmente atingidas pelo veneno No entanto o personagem que as conduz ao paccedilo real

o pedagogo frustra-a ao revelar que os meninos estatildeo a salvo

Aqui a histoacuteria poderia tomar novo rumo Bem poderia Medeia nesse ponto fugir ilesa

com os filhos Jasatildeo natildeo estaria vingado Natildeo para ela Apoacutes momentos de oscilaccedilatildeo em que

considera preservar a vida dos filhos Medeia parece despertar de repente de uma escolha que

natildeo reconhece como sua

Prejudicar crianccedilas em prejuiacutezo do pai natildeo dobra o mal Faraacute sentido Comigo natildeo adeus projetos aacuterduos O que se passa em mim Acertarei O escaacuternio de inimigos impunidos Que infacircmia ouvir de mim reclamos tiacutepicos de gente frouxa Ao rasgo de ousadia (Medeia vv 1046-1052)

Alegando atingir Jasatildeo pois supotildee que natildeo haveria dor maior do que esta a matildee decide

matar as crianccedilas Como os dois natildeo satildeo atingidos pelo veneno que levam agrave noiva do pai

Medeia acaba por mataacute-los com um punhal antes de sair de cena ex machina

Vieira (2010 p 158) comenta a raridade de tal desenlace ldquoEacute sem duacutevida impressionante

tal desfecho imagem que sugere antes a luminosidade e o futuro alvissareiro do que o pesar e

a puniccedilatildeo pelo ato macabro que estamos acostumados a ler nos epiacutelogos traacutegicosrdquo

Numa outra passagem Vieira (2010) comenta o quatildeo inusitado eacute o recurso do deus ex

machina em tal peccedila pois natildeo eacute propriamente um deus que desce do ceacuteu para exercer o

julgamento final e a puniccedilatildeo sobre os personagens como ocorria costumeiramente em trageacutedias

que terminavam com esse recurso ldquoComo interpretar esse final surpreendente de que estaacute

ausente o mecanismo de puniccedilatildeo divina [] A autonomia humana nos sugere um universo

novo em que a puniccedilatildeo natildeo eacute decorrecircncia necessaacuteria da accedilatildeo desmedidardquo (VIEIRA 2010 p

170)

Estaria mesmo ausente o mecanismo da puniccedilatildeo divina A accedilatildeo impune de Medeia eacute

desmedida ou fora muito bem arquitetada O assassinato dos filhos natildeo foi cometido num

momento de fuacuteria de descontrole das paixotildees mas executado num momento propiacutecio apoacutes o

envenenamento de Glauce apoacutes Medeia ter encontrado um lugar de exiacutelio junto a Egeu no seu

uacuteltimo dia em Corinto Eacute Medeia que encarna tal mecanismo divino ela eacute o deus ex machina

que age muito antes de subir agrave carruagem de Apolo Vieira (2010) parece concordar ao

184

compreender que Euriacutepides o proacuteprio autor eacute quem age atraveacutes de Medeia Tem-se a impressatildeo

de que ela eacute o ponto de articulaccedilatildeo de toda a peccedila pois os personagens agem conforme suas

vontades e sofrem de acordo com suas decisotildees Medeia tem um caraacuteter farsesco em que a

protagonista consegue manipular todos agrave sua volta iludi-los com intenccedilotildees falsas e ser bem-

sucedida em seus planos escapando ilesa

Vieira (2010) aponta que a ciecircncia de Medeia coincide com a ciecircncia de Euriacutepides Isso

aparece atraveacutes do significante sopheacute cujo radical estaacute presente 23 vezes no texto A

protagonista eacute assim denominada pelos outros personagens e por si mesma jaacute que reivindica a

si esse significante e por ele comete seus atos macabros Sopheacute de acordo com Vieira (2010)

eacute tambeacutem utilizado para designar caracteriacutesticas que apontam o autocontrole e a ponderaccedilatildeo de

Medeia aleacutem de indicar criaccedilatildeo e inovaccedilatildeo Eacute nesse ponto que a sua sophiacutea estaacute atrelada agrave de

Euriacutepides pois o ato ldquoinovadorrdquo de Medeia eacute tambeacutem o ato inovador do tragedioacutegrafo O

filiciacutedio ato destrutivo eacute um ato inaugurador inconcebiacutevel e impraticaacutevel pelos demais

cidadatildeos Assim aponta Vieira (2010)

Natildeo haacute nada de heroico em apunhalar crianccedilas indefesas mas natildeo eacute isso que Medeia reivindica O ineditismo de sua accedilatildeo passional confunde-se com o argumento dramaacutetico De certo modo Euriacutepides fala pela voz de sua personagem ao imaginar um enredo que se destaca pela novidade Nesse sentido o autor pode ser considerado um escritor moderno O ineditismo do ato que estaacute para praticar pelo qual Medeia se eterniza confunde-se com a originalidade do tema imaginado pelo autor Que o novo seja o horror eacute um aspecto secundaacuterio para um poeta que inventa uma personagem que insiste no caraacuteter novo da ldquosabedoriardquo implicada na accedilatildeo que estaacute por ocorrer [] (VIEIRA 2010 p 159)

O interesse de Euriacutepides em propor o filiciacutedio em sua obra pode ser motivado mais pela

tentativa de alccedilar uma originalidade do que problematizar o horror No entanto ao natildeo permitir

em sua Medeia que o horror do filiciacutedio seja elaborado em accedilatildeo ao natildeo inscrever um desenlace

que convoque o consolo metafiacutesico Euriacutepides acaba por sugerir outra coisa que a racionalidade

e a ciecircncia expandam seus limites de modo a engolfar dominar justificar legitimar o ato

destrutivo desembocando tal ato num ato criativo Lembremos que aqui o que natildeo tem

reconhecimento ou legitimidade eacute o dionisiacuteaco esse aspecto da trageacutedia que natildeo se define que

transborda lugar de gozo que natildeo tem nome

De acordo com uma leitura nietzschiana de uma obra de Euriacutepides eacute possiacutevel dizer que

Medeia vence sua pura afetaccedilatildeo natildeo permitindo a derrota do raciociacutenio arquitetando e

185

executando o assassinato Isso eacute o novo o moderno O ato de Medeia de matar os filhos motivo

que faz Jasatildeo chamaacute-la de natildeo humana eacute o mesmo que a faz ser racional Assim como

Antiacutegona considerada desumana por acessar um saber inatingiacutevel por uma pessoa comum

Medeia provoca assombro por ter uma sabedoria ou ainda um domiacutenio de conhecimento de

outra ordem Em Antiacutegona haacute lugar para o dionisiacuteaco articulado a um saber que se sabe em

accedilatildeo quando a heroiacutena revela seu iacutempeto sua inflexibilidade sua crueza E o ldquosaberrdquo de

Medeia como eacute

Em Nietzsche (18721992 p 108) como jaacute mencionado o deus ex machina estaacute a

serviccedilo da razatildeo que se impotildee para corrigir o mundo a serviccedilo de ldquouma vida guiada pela

ciecircnciardquo Como tambeacutem jaacute discutido a partir de Vieira (2010) em Medeia o significante sopheacute

ldquosaacutebiardquo eacute atribuiacutedo de igual modo a ldquoponderadardquo ldquoautocontroladardquo No desenvolvimento das

cenas da trageacutedia apoacutes Medeia ser expulsa de Corinto com seus filhos os diaacutelogos que ela

manteacutem com os demais personagens demonstram que estaacute tramando um plano enquanto tenta

convencer seus inimigos que seguiraacute as ordens de Creonte O ldquosaberrdquo de Medeia parece ser algo

que se revela em sua fala ao mesmo tempo que suas palavras mascaram o que estaacute por traacutes das

suas verdadeiras intenccedilotildees Eacute uma consciecircncia enganadora Diferentemente de Antiacutegona que

com sua fala conduz o espectador e os outros personagens para o buraco de sua cova sua eterna

morada

523 Aacutetē

Sabemos que existem outras versotildees para o mito de Medeia em que ela natildeo comete

filiciacutedio ou qualquer outro crime violento No entanto buscamos pensar a estrutura proposta

por Euriacutepides como paradigmaacutetica de uma transiccedilatildeo em que as mudanccedilas de um mundo miacutetico

para um mundo filosoacutefico e poliacutetico passam a aparecer Nesse sentido como entender o ato

filicida de Medeia Parece ser um excesso um ato que natildeo se encontra no jogo formado pela

trama tatildeo bem articulada pela saacutebia mulher mas algo que transborda agrave cena Quando dizemos

excesso natildeo estamos nos referindo agrave hybris grega agrave desmedida do personagem a arrogacircncia de

seu caraacuteter que o leva ao erro de julgamento ou agrave hamartia como comete Creonte em Antiacutegona

de Soacutefocles O caso de Medeia em nossa visatildeo eacute de um excesso natildeo estipulaacutevel nos contornos

da encenaccedilatildeo traacutegica ao menos natildeo haacute nada na histoacuteria contada por Euriacutepides no argumento

do coro que situe o ato final como erro de julgamento ou como falha do caraacuteter Ela sabia o

186

que estava fazendo Diz ldquoNatildeo eacute que ignore a horripilacircncia do que perfarei mas a emoccedilatildeo

derrota raciociacutenios e eacute causa dos mais graves malefiacuteciosrdquo (Medeia vv 1077-1080)

Em nota de rodapeacute Vieira (2010) afirma que nesse trecho existe na opiniatildeo de alguns

comentadores uma menccedilatildeo ao socratismo agrave impossibilidade do homem praticar o mal

conscientemente Isso parece curioso pois Medeia afirma ter consciecircncia do mal que iraacute fazer

ainda que admita que esse mal esteja dominado por um impulso irracional Mas admiti-lo natildeo

freia seu ato O que estaacute aiacute em questatildeo

Sobre a accedilatildeo humana defendida por Soacutecrates Zingano (2009) afirma que

O agente pode ter uma opiniatildeo errada e assim buscar um fim que no fundo eacute para ele um grande mal mas para explicar o seu erro moral basta apelar ao tipo de crenccedila que possuiacutea sem precisar lanccedilar matildeo de qualquer conflito entre o que pensa e emoccedilotildees ou paixotildees que sente A accedilatildeo pode ser acompanhada de emoccedilotildees e paixotildees mas estas em nenhum momento a guiam pois seu elemento determinante eacute a crenccedila que o agente tem no momento em que age Se o agente tiver um saber do fim visto que o saber eacute sempre verdadeiro natildeo haacute como deixar de buscar seu verdadeiro bem (ZINGANO 2009 p 20-21)

Para concluir seu plano para que ele se torne perfeito Medeia precisa matar os filhos

enfrentando a dor e o sofrimento desse terriacutevel ato

Contudo podemos pensar o ato de Medeia por outra via Parece se tratar da aacutetē limite para

onde Antiacutegona se dirige interpretado por Aristoacuteteles como mais uma forma da hamartia e por

Lacan (1959-19601997) como a fronteira que delimita as accedilotildees possiacuteveis agrave vida humana

estando nesse sentido para aleacutem do erro Aleacutem do campo da aacutetē eacute o lugar em que Antiacutegona se

situa para onde se direciona seu desejo Eacute o lugar para onde Medeia acaba por nos conduzir

surpreendentemente com sua accedilatildeo

Atribui-se o horror a Medeia individualmente em seu caraacuteter terriacutevel em sua ldquoacircnima

megaintumescida antidelimitaacutevelrdquo (Medeia vv 108-109) Interessa ao autor justamente a

complexidade dos sentimentos a individualidade dos personagens O que diferencia Medeia

dos demais para que esteja tatildeo soacute em seu ato terriacutevel Ora ela eacute baacuterbara saacutebia e mulher de

caraacuteter furioso (o que Aristoacuteteles natildeo recomendava agraves personagens mulheres) Representa um

estrangeirismo uma alteridade radical em relaccedilatildeo agrave poacutelis grega agrave sua moral e a seus bons

costumes Em nada o espectador grego se identifica com ela No entanto possui uma das

virtudes mais admiraacuteveis e desejaacuteveis do helenismo o discurso Nesse sentido haacute uma

complexidade em seu caraacuteter que divide o espectador mais disponiacutevel Se haacute em Antiacutegona a

187

tensatildeo entre o horror e a beleza que seu ato produz ao atravessar as fronteiras da aacutetē talvez em

Medeia haja tensatildeo entre o horror ao seu ato e admiraccedilatildeo por sua inteligecircncia o desejo de ver

ateacute onde sua armaccedilatildeo nos conduziraacute

O drama euripidiano permanece como o mais conhecido sobrepondo-se ateacute mesmo ao

mito ainda que cause efeitos distintos daqueles imaginados por Aristoacuteteles ou seja de piedade

e temor Natildeo que esses sentimentos natildeo possam ocorrer ao assistir a peccedila mas cabe indagar

de que modo a encenaccedilatildeo fora arranjada para que o puacuteblico grego pudesse sentir piedade da

matildee assassina O que temer se uma mulher terriacutevel como ela escapa agrave puniccedilatildeo divina por um

recurso cecircnico que representa o justo e correto Quais inquietaccedilotildees teratildeo sido provocadas aos

espectadores de uma peccedila que ficou em uacuteltimo lugar no concurso de trageacutedias Satildeo muitas as

inovaccedilotildees e complexidades de Euriacutepides com a trama de Medeia

524 Medeia ex machina como desenlace

Pensemos agora na seguinte fala da nutriz

Acerta quem registre a obtusidade o saber vazio dos antigos inventores de poesia som em que germina a vida no afago do festim Natildeo houve musa que desvendasse em cantos pluricordes a arte de estancar o luto luacutegubre dizimador de moradias com o reveacutes atroz de Tacircnatos Que lucro logro em curar musicalmente o luto Por que a inutilidade da voz no sobretom no acircmbito da festa farta Na plenitude do cardaacutepio disponiacutevel vigora o regozijo (Medeia vv 190-202)

Para Vieira (2010) a criacutetica da nutriz eacute em relaccedilatildeo agrave impossibilidade dos efeitos

prazerosos da poesia prevalecerem sobre a dor do luto De acordo com o autor Euriacutepides fala

aqui atraveacutes de uma personagem com o intuito de criticar a trageacutedia de seus antecessores que

tornavam a morte um ato nobre e admiraacutevel ao passo que deveria ser apresentada com sua

crueza e horror O respeito ao mito a valorizaccedilatildeo do coro elementos fraacutegeis nos dramas

188

euripidianos natildeo satildeo caracteriacutesticas que tornam o luto mais faacutecil em obras de outros

tragedioacutegrafos

Atraveacutes da fala da nutriz Euriacutepides parece criticar os poetas antigos na sua impotecircncia

e irresponsabilidade diante da pulsatildeo destrutiva a pulsatildeo de morte Talvez na leitura de

Euriacutepides a arte traacutegica de seus antecessores buscasse derrotar a anguacutestia e a destrutividade

quando na verdade a trageacutedia operava com a tensatildeo com o jogo de forccedilas apoliacuteneo-donisiacuteaco

sem que um impulso se supervalorize em detrimento do outro Afinal eacute com essa tensatildeo que a

trageacutedia se torna bela No entanto para Euriacutepides atraveacutes de sua Medeia haacute um resto um

excesso que transborda o qual natildeo haacute musa capaz de contornar

Euriacutepides pode expressar a tocircnica de um tempo de transiccedilatildeo de um tempo miacutetico ao

mundo filosoacutefico como aponta Vorsatz (2013) ao reivindicar uma nova forma de lidar com

isso que natildeo se inscreve E ao natildeo se inscrever repete-se como acontece a Medeia em seu ato

de matar filhos que se inscreve em repeticcedilatildeo Eacute possiacutevel que Medeia tenha se eternizado na

radicalidade desse ato mata o filho de seu pai seu irmatildeo mata a filha de Creonte a princesa

por fim mata os filhos de Jasatildeo que satildeo tambeacutem seus

Podemos tambeacutem pensar a partir da fala da nutriz que haacute uma criacutetica ao consolo

metafiacutesico apontado por Nietzsche (18721992) ao apaziguamento final decorrente da tensatildeo

entre a dimensatildeo apoliacutenea e a dionisiacuteaca com a qual Euriacutepides natildeo se conforma Mais um

indiacutecio que justifica a escolha de deus ex machina ao fim do drama Como natildeo eacute possiacutevel agraves

encenaccedilotildees traacutegicas uma cura do luto tambeacutem natildeo eacute possiacutevel uma sensaccedilatildeo de apaziguamento

a catarse decorrente do encadeamento de accedilotildees que formam o drama Embora esse

encadeamento natildeo produza uma soluccedilatildeo final para os conflitos entre os personagens

(ROSENFIELD 2000) o proacuteprio ato de encenar de repetir suscita uma experiecircncia esteacutetica

que produz um saber sobre a vida O deus ex machina teria a funccedilatildeo de solucionar os conflitos

Como a maquinaria trabalha com esse resto com esse gozo que Euriacutepides propotildee

destacar do arranjo cecircnico e transbordar para aleacutem dos fins esteacuteticos No carro alado do deus

Sol Medeia anuncia que iraacute viver em outra terra sob a proteccedilatildeo dos deuses fora do alcance

dos inimigos e que Jasatildeo morreraacute tragicamente Escapa impune por ser sopheacute termo a ela

atribuiacutedo nos diaacutelogos da peccedila (VIEIRA 2010) o qual podemos entender por ldquosaacutebiardquo Em

funccedilatildeo de ter planejado sua fuga e ter sabiamente enganado todos quanto agraves suas intenccedilotildees ela

consegue fugir Utiliza bons argumentos destaca-se pelo bom uso da retoacuterica pelo qual eacute

189

elogiada e temida e com isso conquista tudo o que precisa para permanecer viva e comeccedilar

nova vida com Egeu Nesse sentido a soluccedilatildeo estaacute no discurso no uso que faz do logos

Eacute um novo uso da palavra que Euriacutepides sugere natildeo apenas como palavra posta em accedilatildeo

para garantir a existecircncia divina da qual o heroacutei deriva como sujeito mas palavra que utiliza

seu poder de persuasatildeo e argumentaccedilatildeo para enganar o outro oferecendo aquilo que o outro

deseja ouvir Apoacutes articular com Egeu seu acolhimento em outra terra diz a Jasatildeo iludindo-o

quanto a suas verdadeiras intenccedilotildees ldquoVislumbrei no automergulho a estupidez de meu

ressentimento Me apercebo do quanto te preocupas em nos propiciar parentes nobres Errei

ao me excluir do plano ao natildeocolaborar ao natildeo servir a noiva sorrindo agrave beira-leitordquo

(Medeia vv 882-888)

Podemos tambeacutem tentar entender a problemaacutetica colocada por Euriacutepides em seu drama

sob outra luz Natildeo haacute como natildeo captar a ironia de Medeia ao dizer que errou ao se excluir do

plano proposto por Jasatildeo Quem a excluiu na verdade foi o povo de Corinto O rei ao mandaacute-

la embora Jasatildeo ao natildeo considerar o casamento com ela e noivar com a princesa O motivo eacute

o fato de ser aleacutem de estrangeira e mulher sagaz pessoa terriacutevel No entanto se natildeo coubesse

a ela o caraacuteter furioso a tarefa de matar a quem caberia Se ela natildeo tivesse ajudado Jasatildeo natildeo

teria alcanccedilado seus objetivos podendo ter morrido Nesse sentido ela se vecirc usada e descartada

natildeo acolhida em terra estrangeira Quem a exclui do jogo cecircnico dessa forma desde o princiacutepio

da peccedila satildeo os cidadatildeos que natildeo querem hospedar em sua terra algueacutem como ela

Assim a trageacutedia segue um novo rumo que natildeo se daacute no sentimento do traacutegico que

transcende a polaridade que resulta de um conflito insoluacutevel quando cada um dos polos ocupa

uma posiccedilatildeo legiacutetima O novo drama se daacute pela manipulaccedilatildeo exclusatildeo uso do outro Nesse

sentido natildeo haacute apaziguamento ou consolo final sentimento que emana da experiecircncia traacutegica

da experiecircncia esteacutetica do belo O que haacute eacute vitoacuteria da razatildeo da nova funccedilatildeo da palavra na cena

da trageacutedia

Percebemos a sagacidade de Euriacutepides em propor sua versatildeo em solo ateniense terra

onde crescia o sofismo a arte capaz de argumentar em defesa de uma verdade cientiacutefica contra

as crenccedilas mitoloacutegicas Podemos dizer que sua proposta tem matildeo dupla em primeiro lugar de

certa forma ele mostra a deficiecircncia dos valores e leis da poacutelis grega que ainda que em

referecircncia aos deuses e aos mitos mostram-se insuficientes ao tratar de questotildees que tocam a

alteridade como o estrangeiro a mulher formas outras de saber Em segundo lugar se haacute

exclusatildeo produccedilatildeo de um fora em relaccedilatildeo a Medeia ele torna esse fora a fronteira mais

190

evidente com o deus ex machina com a proteccedilatildeo dos deuses Nesse sentido ele tambeacutem faz

uso do sofismo para combater o sofismo ateniense

O que deus ex machina pode vir a cumprir no fim da peccedila Podemos tentar compreender

isso com a uacuteltima fala do coro a que encerra a trama ldquoDe inuacutemeras accedilotildees Zeus eacute ecocircnomo

deuses forjam inuacutemeras surpresas O previsiacutevel natildeo se concretiza o deus descobre a via do

imprevisto E assim esta performance terminardquo (Medeia vv 1415-1419) Zeus eacute o deus

supremo da mitologia grega que domina a vida humana comanda as demais divindades e

estende seu poder para aleacutem daquilo que podemos prever O previsiacutevel que natildeo se concretiza o

interpretamos como a puniccedilatildeo de Medeia que natildeo acontece Nesse sentido a mensagem final

do coro eacute para Jasatildeo e demais cidadatildeos coriacutentios A via do imprevisto eacute aquilo que nossa

compreensatildeo natildeo alcanccedila que nossa consciecircncia natildeo atinge Nesse sentido somos

surpreendidos por isso que natildeo conseguimos controlar que natildeo dominamos

Conforme Lacan (1960-19611992) os deuses gregos pertencem ao campo do real

compreendido pela psicanaacutelise como o limite da articulaccedilatildeo significante O que essa mensagem

pode nos dizer sobre a eacutetica da psicanaacutelise Apesar de natildeo prevermos e natildeo controlarmos o que

pode nos acontecer uma postura eacutetica condiz com aquela de quem se responsabiliza pelos

efeitos de seus atos ainda que imprevistos Do mal da exclusatildeo que desejavam de Medeia a

cidade de Corinto sofreu os efeitos no entanto dificilmente aceitariam as surpresas forjadas

pelos deuses como resposta ao seu erro de julgamento

A trama de Medeia em vez de ser formada com o outro faz do outro seu oponente

Deseja-se excluir Medeia e o que ela faz eacute excluir de si o que restava de laccedilo com Jasatildeo ou

seja ser matildee de seus filhos quando os assassina Haacute nesse ato uma nova forma de lidar com o

traacutegico o qual ficou sob a incumbecircncia individualizada de Medeia que representa a alteridade

radical Haacute uma transiccedilatildeo de um desenlace traacutegico que deriva da trama para um desfecho que

resulta da exclusatildeo do outro como reduto do horror que natildeo queremos lidar o qual aparece

quando se tenta excluir Medeia ou quando Medeia se exclui levando o que restava de sua

relaccedilatildeo com Jasatildeo

Haacute outro ponto importante a pensar aqui Ainda que a terriacutevel matildee pareccedila sair vitoriosa

da cena protegida pelos deuses gregos ganhando uma nova chance de recomeccedilar a vida

entendemos que haacute uma derrota do domiacutenio do saber racional mesmo que ele parece ter saiacutedo

vitorioso A necessidade de expulsar aquele que representa algo com o qual natildeo consigo lidar

191

conviver eacute a prova disso Os conflitos natildeo se resolvem negando ou excluindo o que os provoca

A tendecircncia eacute que ele retorne sob nova forma talvez mais destruidora

525 Phaacutermakon e pharmakoacutes

Medeia quando solicita exiacutelio em Atenas a Egeu propotildee o seguinte ao pai que natildeo

consegue gerar descendentes ldquoEacute um achado o que achas pois meus faacutermacos daratildeo agrave luz os

filhos de um sem-filhordquo (Medeia vv 717-718) A palavra grega correspondente a ldquofaacutermacosrdquo

traduzida diretamente do grego por Trajano Vieira eacute ϕαρmicroακα relativa a phaacutermakon De

acordo com Fernandes (2001) uma palavra muito semelhante ϕαρmicroακος apenas de sufixo

diferente corresponde a pharmakoacutes ou bode expiatoacuterio pessoa sacrificada em rituais em honra

aos deuses com o intuito de livrar a comunidade de impurezas e malefiacutecios Com isso eacute possiacutevel

pensar que Medeia de certo modo tenha articulado uma troca sinistra oferece faacutermacos em

troca de filhos De quais filhos estaria falando Embora refira-se a futuros filhos de Egeu

parece remeter-se aos seus proacuteprios como bodes expiatoacuterios pagamento de sua saiacuteda da cena

onde eacute hostilizada para entrar numa cena em que encontra hospitalidade Parece haver aqui um

deslizamento significante de phaacutermakon para pharmakoacutes pois ao final Medeia sustenta o

deslocamento que a palavra pode ter lhe produzido no momento do pacto com Egeu antes de

ir embora para Atenas mata os filhos

Os termos phaacutermakon e pharmakoacutes satildeo apresentados por Jacques Derrida (2005) em

seu livro A farmaacutecia de Platatildeo para pensar a ambiguidade e as oscilaccedilotildees da escritura A

segunda palavra vem no fio condutor da primeira o que corrobora a ideia de que o texto escrito

eacute feito de diversas camadas de significaccedilatildeo e abre uma multiplicidade de caminhos Derrida

(2005) toma o texto como tecido pano que oculta as leis da composiccedilatildeo das quais eacute efeito Para

ele um texto eacute somente um texto quando algo nele permanece imperceptiacutevel quando jamais

temos acesso agraves regras de seu jogo Reporta-se assim a Fedro obra de Platatildeo em que Soacutecrates

dialoga com seu interlocutor Fedro sobre a dececircncia ou indececircncia de escrever

Na obra claacutessica de Platatildeo o filoacutesofo Soacutecrates se refere aos escritos que Fedro traz

consigo como uma droga um phaacutermakon que toma e faz com que ele saia de seu lugar

Segundo Derrida (2005 p 14)

Esse Phaacutermakon essa medicina esse filtro ao mesmo tempo remeacutedio e veneno jaacute se introduz no corpo do discurso com toda sua ambivalecircncia Esse

192

encanto essa virtude de fascinaccedilatildeo essa potecircncia de feiticcedilo podem ser alternada ou simultaneamene ndash beneacuteficas ou maleacuteficas [] Operando por seduccedilatildeo o phaacutermakon faz sair dos rumos e das leis gerais naturais ou habituais Aqui ele faz Soacutecrates sair de seu lugar habitual e de seus caminhos costumeiros Estes sempre o retinham no interior da cidade As folhas da escritura agem como um phaacutermakon []

Dessa forma Soacutecrates tem a experiecircncia de sair da cidade do lugar onde gosta de

ensinar e aprender para ler com Fedro Ler textos que fazem efeito agrave medida da leitura na

temporalidade do escrito textos que se guardam em suas letras ocultas diferidos em que a

presenccedila do autor eacute barrada Eacute justamente a equivocidade provocada pela palavra escrita que

seduz o leitor que age sobre ele como um phaacutermakon e o faz sair do lugar se desacomodar

No entanto segundo Derrida (2005) Soacutecrates lembra Fedro que na origem da escrita

havia uma intenccedilatildeo benevolente Um deus oferecera a gramaacutetica de presente ao rei do Egito

como um phaacutermakon no sentido de remeacutedio como modo de preservar e favorecer a memoacuteria

e a instruccedilatildeo do povo egiacutepcio O rei por sua vez contesta a escrita avalia-a para aleacutem do

remeacutedio ressalta o seu aspecto maleacutefico a sua significaccedilatildeo como veneno Pois eacute justamente em

razatildeo da existecircncia do escrito que o indiviacuteduo pode se permitir esquecer Com isso o valor da

escrita eacute atribuiacutedo pelo rei ou ainda pelo pai do logos Sem a presenccedila viva do autor de um

discurso seriacuteamos meros repetidores Ao substituir a fala a escrita indicaria a morte da

memoacuteria do pai do discurso e estaria a serviccedilo desse suposto assassinato

Derrida (2005) observa que mesmo sem a presenccedila do rei que eacute capaz de julgar a escrita

a palavra phaacutermakon por si mesma jamais significaria apenas remeacutedio jaacute que remeacutedio natildeo eacute

somente beneacutefico ele pode ser maleacutefico Phaacutermakon carrega em si essa tensatildeo essa polaridade

que natildeo necessariamente precisa se decidir por uma ou por outra faceta segundo uma

problemaacutetica platocircnica

Mais adiante Derrida (2005) discorre que apesar da palavra pharmakoacutes natildeo estar

presente no texto de Platatildeo ela pode se fazer presente em cadeia associativa com phaacutermakon

Mas o que quer dizer aqui ausente ou presente Como todo texto aquele de ldquoPlatatildeordquo natildeo poderia deixar de estar em relaccedilatildeo de modo ao menos virtual dinacircmico lateral com todas as palavras que compotildeem o sistema da liacutengua grega Forccedilas de associaccedilatildeo unem agrave distacircncia com uma forccedila e segundo vias diversas as palavras ldquoefetivamente presentesrdquo num discurso com todas as outras palavras do sistema lexical quer elas apareccedilam ou natildeo como ldquopalavrasrdquo ou seja como unidades verbais relativas num tal discurso [] Por exemplo ldquophaacutermakonrdquo comunica desde jaacute mas natildeo apenas com todas as

193

palavras da mesma famiacutelia com todas as significaccedilotildees construiacutedas a partir da mesma raiz (DERRIDA 2005 p 78-79)

De acordo com o autor a palavra pharmakoacutes estaacute relacionada a bode expiatoacuterio

personagem de rituais de sacrifiacutecio com ou sem morte na Greacutecia Antiga Representava o mal

e o fora o malefiacutecio que deveria ser expulso colocado para fora do corpo e fora da cidade

atraveacutes da exclusatildeo do bode O indiviacuteduo que encarnava o bode representava ldquosem duacutevida a

alteridade do mal que vem afetar e infectar o dentro irrompendo nele imprevisivelmenterdquo

(DERRIDA 2005 p 80) Mas eacute importante ressaltar que a pessoa escolhida para o sacrifiacutecio

tinha uma funccedilatildeo dentro da comunidade ou seja ele encontrava abrigo alimento sustento no

lado de dentro no seio da comunidade para no momento oportuno ser oferecido no ritual de

purificaccedilatildeo do mal

Segundo Derrida (2005 p 80) ldquoOs parasitas eram como eacute evidente domesticados pelo

organismo vivo que os hospeda a sua proacutepria custardquo Assim sendo quando a cidade era

assolada por um terriacutevel periacuteodo de seca fome e peste dois indiviacuteduos criados pela comunidade

como inuacuteteis degenerados vadios ou melhor como os bodes expiatoacuterios eram sacrificados

em honra aos deuses no intuito de livrar a cidade do mal e reestabelecer a ordem Conforme

Derrida (2005 p 80) ldquoA cerimocircnia do pharmakoacutes se passa pois no limite do dentro e do fora

que ela tem por funccedilatildeo traccedilar e retraccedilar sem cessar Intramurosextramuros Origem da

diferenccedila e da partilha o pharmakoacutes representa o mal introjetado e projetadordquo

O mal que existia em cada um dos cidadatildeos era projetado nos dois homens

representantes do bode Dois homens sacrificados dois filhos de Medeia com Jasatildeo Medeia

conhecedora do poder de ervas e plantas sobre o phaacutermakon remeacutedio e veneno Medeia

estrangeira mulher terriacutevel assassina de dois pai e irmatildeo foi tomada por Creonte como

pharmakoacutes bode expiatoacuterio No entanto em vez de entregar-se ao sacrifiacutecio da expulsatildeo a

partir do qual ficaria sem paacutetria e sem proteccedilatildeo alguma ela faz seus filhos seus dois meninos

morrerem em seu lugar Com amparo garantido por Egeu sai de cena viva com as crianccedilas

mortas No carro do Sol ex machina No limite que separa dentro e fora intramuros e

extramuros

194

526 Ananke

Haacute que se falar tambeacutem da dimensatildeo do sacrifiacutecio presente em Medeia o antigo ritual

de sacrificar indiviacuteduos em nome da proteccedilatildeo divina Medeia pode natildeo ter simplesmente matado

os filhos para se vingar de Jasatildeo mas seu ato pode significar justamente sacrificaacute-los Esta eacute

a interpretaccedilatildeo que nos propotildee o doutor em filosofia Alexandre Costa (2013) em palestra

intitulada Pasolini e a trageacutedia do homem ocidental O ato de matar os filhos eacute interpretado

pelo saber cientiacutefico filosoacutefico e racional do povo ocidental representado por Jasatildeo como um

crime de filiciacutedio No entanto Medeia pertence ao povo oriental cujo saber miacutetico e profano

toma o ato como sacrifiacutecio seguindo leis divinas ou seja respeitando os deuses Por isso

questiona Jasatildeo se ele adota leis ineacuteditas jaacute que ele traiacutera as juras o hoacuterkos

Embora da Coacutelquida os deuses que Medeia segue satildeo os mesmos dos gregos Haacute

contudo uma diferenccedila a ser observada aqui O coro de mulheres de Corinto enquanto estaacute ao

lado de Medeia fala-lhe em algumas passagens que Zeus certamente estaacute do seu lado que

Zeus eacute guardiatildeo das juras Medeia cita Zeus mas clama por Tecircmis deusa da Justiccedila por Geia

ou Gaia deusa da terra por Nike deusa da vitoacuteria por Heacutecate deusa das passagens por Heacutelios

deus do Sol do qual descende Quando fala com Egeu pede para o rei que jure pela estirpe

pandivina em vez de apelar a um deus uno regente de todos Zeus Sabemos que ao final a

fala do coro salienta a imprevisiacutevel via pela qual os deuses gregos agem ainda que Zeus seja o

deus dominante

Aleacutem disso Jasatildeo quando descobre o ato traacutegico de Medeia invoca Zeus pela puniccedilatildeo

da mulher invoca Dike a deusa da justiccedila dos homens mesma de Creonte na peccedila Antiacutegona

de Soacutefocles e natildeo Tecircmis a justiccedila dos deuses Medeia lhe interroga ldquoQue deus ou dacircimon te

daraacute escuta perjurador traidor dos proacuteprios hoacutespedesrdquo (Medeia vv 1391-1392) De acordo

com nota do tradutor haveria uma referecircncia aqui a uma versatildeo do mito em que Jasatildeo teria

raptado Medeia Seja como for Medeia chega agrave Greacutecia como sua mulher ele deve para com

ela o cumprimento da lei divina por ele esquecida da hospitalidade Mais um motivo para que

os deuses protejam Medeia e punam Jasatildeo

De acordo com Costa (2013) com a morte dos filhos Medeia restabelece a ordem

atraveacutes de uma loacutegica sacrificial que devolve resgata agrave terra (deusa Gaia) seus rebentos Se o

destino da vida dos filhos como de todos eacute a morte por que deixaacute-los vivos e fazer com que

sofram as puniccedilotildees dos cidadatildeos de Corinto

195

Nesse sentido Medeia age como Antiacutegona seguindo leis divinas atraveacutes de um ato

traacutegico Antiacutegona enterra seu irmatildeo Medeia mata seus filhos Ambos os atos podem ser

interpretados pela lei dos homens como criminosos A diferenccedila eacute que Antiacutegona presa em sua

alcova decide tirar a proacutepria vida Medeia decide ir embora

Talvez seja na dupla interpretaccedilatildeo da accedilatildeo de matar as crianccedilas ndash crimesalvaccedilatildeo ndash a

origem do sofrimento de Medeia ao menos na segunda parte da peccedila Oscila entre matar e natildeo

matar mas considera a morte dos dois a finalizaccedilatildeo de seu plano Antes dos meninos levarem

os venenos que matam princesa e rei Medeia diz ldquoEstaacute para nascer algueacutem que agrida um filho

meu Se ananke o necessaacuterioimpotildee sua lei indesviaacutevel noacutes daremos fim a quem geramosrdquo

(Medeia vv 1060-1063)

Logo depois da morte de Glauce e Creonte comunica ao coro de mulheres

Estaacute traccedilado amigas mato os filhos E apresso a fuga Natildeo existe um ser ndash um ser somente ndash que suporte ver o braccedilo bruto sobre os seus Natildeo tardo o fim dos dois se impotildee e a matildee os mata se eacute isso o que haacute de ser Oacute coraccedilatildeo- -hoplita descumprir esse ato horriacutevel Se ananke o imperativo o dita (Medeia vv 1236-1243)

Medeia se torna mais certa de sua decisatildeo de matar os filhos nessa passagem Antes a

matildee cumprir o destino do que serem submetidos agrave puniccedilatildeo de outros agrave morte por

apedrejamento No entanto ateacute o momento da morte das crianccedilas vive momentos de anguacutestia

A sua anguacutestia se daacute nesse intervalo que divide duas significaccedilotildees do assassinato a de sacrificar

os filhos para proteger seus corpos dos cidadatildeos tebanos e o filiciacutedio Ao final sentindo a

imposiccedilatildeo divina de Ananke ela se torna outra e quem se compadece somos noacutes

Ananke eacute uma divindade antiga citada por Medeia que fala da inevitabilidade do

destino da forccedila com a qual o destino traacutegico pode se impor Nesse sentido a morte dos filhos

para Medeia se torna uma necessidade um dever que ela mesma como matildee que os gerou

precisa cumprir Aiacute se encontra o paradoxo dessa trageacutedia

Em O mal-estar na cultura Freud (19302012) fala que Ananke junto com Eros satildeo os

pais da nossa civilizaccedilatildeo Eros eacute responsaacutevel pela coesatildeo dos objetos pelo amor que nutrimos

uns pelos outros pelo amor da matildee por seus filhos Jaacute Ananke eacute a imposiccedilatildeo da realidade o

196

compromisso e o dever para com a cultura a necessidade de trabalhar para manter a ordem no

mundo

Em 1920 em Aleacutem do princiacutepio do prazer Freud jaacute havia falado a respeito de Ananke

Na ocasiatildeo ela eacute tomada como forccedila da natureza inevitaacutevel lei natural que se impotildee na

realidade de todos noacutes Ser submetido a esse princiacutepio da realidade significa para o ser humano

a aceitaccedilatildeo de seus limites de sua proacutepria morte Esta lei implacaacutevel eacute apresentada aqui na

articulaccedilatildeo com Eros pulsatildeo de vida e Tacircnatos pulsatildeo de morte e podemos compreendecirc-la no

sentido de entre vida e morte aceitar a proacutepria natureza e enfrentar condiccedilotildees de existecircncia

Na primeira parte da peccedila logo apoacutes Creonte expulsaacute-la de Corinto e conceder um dia

para que Medeia organize sua partida ela diz ldquoNatildeo deixes pelo meio teus projetos Medeia

Nada te demovardquo (Medeia vv 401-402)

Isso nos faz pensar na posiccedilatildeo eacutetica de Medeia Se a eacutetica da psicanaacutelise diz respeito a

uma posiccedilatildeo subjetiva em que o sujeito natildeo recua de seu desejo e para sustentaacute-lo paga com

uma parte de si com uma dose de gozo ou sofrimento se a posiccedilatildeo de Antiacutegona eacute honrar sua

ascendecircncia e por ela morrer Medeia destroacutei a descendecircncia dos outros e por fim deve

(ananke) destruir a sua Eacute possiacutevel perceber que Medeia ldquoaquela que meditardquo ou que ldquoarquiteta

um projeto um planordquo comete assassinato seja do proacuteprio irmatildeo seja dos filhos ou de Glauce

a fim de atingir uma outra pessoa Natildeo escolhe matar o pai Jasatildeo ou Creonte mas torna viacutetimas

os filhos desses adversaacuterios talvez porque a morte deles mesmos natildeo seja uma pena muito dura

natildeo destruiria suas vidas como o sofrimento de perder um filho Medeia eacute uma filicida por

excelecircncia ateacute atingir o ponto traacutegico em que os filhos satildeo dela mesma Aleacutem disso o que pode

significar o aniquilamento da descendecircncia Eacute a impossibilidade de seguir vivendo atraveacutes de

um filho a despeito da proacutepria morte Eacute saber que a vida que se viveu natildeo teraacute uma continuidade

eacute natildeo deixar um legado Talvez a forma escolhida por Medeia de atingir seus inimigos

assassinar os descendentes tenha sido mais fatal mais proacutexima do que significa matar em vez

de atentar diretamente contra a vida deles proacuteprios

Nesse sentido na peccedila de Euriacutepides que leva o seu nome Medeia acaba por pagar a

condiccedilatildeo de sua existecircncia com a morte de seus filhos que deve ser cometida por ela mesma

ao preccedilo de seu sofrimento Havia de certo modo abandonado seu iacutempeto ao chegar em Corinto

com Jasatildeo tornar-se esposa e matildee zelosa ateacute o momento em que percebe que foi traiacuteda E o

que isso significa Que de algum modo abriu matildeo de seu desejo

197

O que chamo de ceder de seu desejo acompanha-se sempre no destino do sujeito ndash observaratildeo isso em cada caso reparem em sua dimensatildeo ndash de alguma traiccedilatildeo Ou o sujeito trai sua via se trai a si mesmo e eacute sensiacutevel a si mesmo Ou mais simplesmente tolera que algueacutem com quem ele se dedicou mais ou menos a alguma coisa tenha traiacutedo sua expectativa natildeo tenha feito com respeito a ele o que o pacto comportava qualquer que seja seu pacto [] (LACAN 1959-19601997 p 384)

Nesse sentido o que o indiviacuteduo faz diante de uma traiccedilatildeo pode definir se ele eacute um heroacutei

ou uma pessoa comum A traiccedilatildeo coloca a pessoa comum na via do serviccedilo dos bens sem que

ele reconheccedila seu desejo nessa via Jaacute o heroacutei eacute ldquoaquele que pode impunemente ser traiacutedordquo

(LACAN 1959-19601997 p 385) e atraveacutes dos bens ele paga o preccedilo de seu acesso ao

desejo ele banca seu desejo Compreendemos Medeia como uma heroiacutena traacutegica que se

percebe traiacuteda por Jasatildeo no descumprimento do horkos o juramento que tinha com ela Aleacutem

de Jasatildeo tecirc-la enganado percebe que ela mesma se deixou trair A linha de accedilatildeo da peccedila eacute a que

reconduz Medeia para a via de seu desejo destruindo por completo seu laccedilo com Jasatildeo ao pagar

com a morte dos filhos

Dessa maneira encontramos a via de abertura que a peccedila Medeia nos deixa Para aleacutem

do saber socraacutetico sofista racional que Euriacutepides apresenta em sua personagem natildeo pensamos

ser essa forma de saber que impera mesmo com o uso do recurso deus ex machina

Vislumbramos uma heroiacutena traacutegica que se impotildee sua proacutepria puniccedilatildeo sofre a perda de seu lugar

de matildee paga com a perda dos filhos o seu caraacuteter terriacutevel Nesse sentido podemos entender

que natildeo escapa impune das accedilotildees terriacuteveis de seu passado do assassinato do rei e da princesa

na medida em que ela mesma deve cometer o homiciacutedio dos filhos talvez mais importante para

ela do que ao proacuteprio Jasatildeo Para feri-lo com a dor mais profunda ela tambeacutem precisa se infligir

a mesma dor suportaacute-la e recomeccedilar nova vida

53 ldquoa raccedila fecircmea ignora como haurir algo elevado saacutebia quando edifica o horror do

fadordquo

No texto ldquoJuventude de Gide ou a letra e o desejordquo em que Lacan comenta um livro do

psiquiatra Jean Delay A juventude de Andreacute Gide ele fala sobre o ato de uma ldquoverdadeira

mulherrdquo Esse ato teria como efeito a abertura de um vazio no homem

Lacan (19581998) compara Andreacute Gide a Jasatildeo personagem da trageacutedia Medeia que

abandona a protagonista para casar com outra mulher Medeia eacute personagem enigmaacutetica que

198

na versatildeo de Euriacutepides mata os filhos que teve com Jasatildeo Jaacute a esposa de Gide Madeleine

queima suas cartas cartas escritas ao longo de uma vida de uma importacircncia tal para o homem

que este chega a tomaacute-las como filhos O ato de queimar as cartas do marido eacute entendido por

Lacan como um ato de mulher

[] de uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher Esse ato foi o de queimar as cartas que eram o que Madeleine possuiacutea ldquode mais preciosordquo Que ela natildeo tenha dado outra razatildeo para isso senatildeo o ter ldquotido que fazer alguma coisardquo acrescenta ao ato o signo da fuacuteria provocada pela uacutenica traiccedilatildeo intoleraacutevel [] o gemido de Andreacute Gide o de uma fecircmea de primata ferida no ventre com o qual ele pranteia a extirpaccedilatildeo do desdobramento de si mesmo que eram suas cartas razatildeo pela qual as chamava de seu filho soacute faz parecer que preenche com exatidatildeo o vazio que o ato da mulher quis abrir em seu ser longamente escavado por uma apoacutes outra das cartas atiradas ao fogo de sua alma flamejante Andreacute Gide revolvendo no coraccedilatildeo a intenccedilatildeo redentora que atribui ao olhar que nos retrata ndash sem dar importacircncia agrave sua respiraccedilatildeo ofegante ndash agravequela passante que atravessa seu trespasse sem cruzar com ele engana-se Pobre Jasatildeo que tendo partido para a conquista do tosatildeo dourado da felicidade natildeo reconhece Medeacuteia (LACAN 19581998 p 772-773 grifos nossos)

Pensamos que Medeia assim como Madeleine eacute certeira na escolha da pior das

vinganccedilas para Jasatildeo Natildeo apenas por atingir sua descendecircncia mas por eliminar tambeacutem a

nova esposa Ao fim da peccedila Jasatildeo retorna desesperado agrave sua casa para proteger os filhos dos

cidadatildeos de Corinto jaacute que os meninos provavelmente seriam punidos por ter envenenado o

rei e a princesa embora ignorassem o que estavam fazendo A fala do coro o alerta ldquoa prole

natildeo existerdquo (Medeia vv 1311) Jasatildeo jamais poderia imaginar ou entender que o ato tinha sido

cometido por Medeia Esta justifica ldquofiz o que devia para te atingir no iacutentimordquo (Medeia vv

1359-1360)

Miller (2010) entende que Medeia quando assassina seus proacuteprios filhos para se vingar

de Jasatildeo vai aleacutem de seu lugar de matildee sustentando o seu lugar de mulher Natildeo haacute explicaccedilotildees

ou palavra alguma do ex-marido que faccedila Medeia voltar atraacutes em sua de-cisatildeo

Mata seus proacuteprios filhos que satildeo tambeacutem de Jasatildeo o que permite dizer que o que haacute de mulher nela supera o que haacute de matildee [] ela constitui o exemplo radical do que significa ser mulher mais aleacutem do que matildee Com esse ato sai de sua depressatildeo Ela estaacute toda nesse ato a partir do qual todas as palavras satildeo inuacuteteis saindo decididamente do registro do significante (MILLER 2010 p 8)

199

Uma ruptura radical entre o ser matildee e ser mulher que gera em decorrecircncia uma ruptura

com sua proacutepria prole ao servirem de bodes expiatoacuterios para que Medeia perfizesse seu plano

de exiacutelio e vinganccedila por um instante as crianccedilas satildeo de Jasatildeo natildeo dela considerando as

contribuiccedilotildees de Lacan e Miller Assim a matildee fala aos filhos em tom de despedida dessa

relaccedilatildeo primordial ldquoNada valeu meninos meu empenho nada valeu sofrer as convulsotildees

doloridiacutessimas do parto Sonhos inuacuteteis que nutri ao vislumbrar nas crias meu amparo na

velhice apuro em ritos funeraacuterios ndash aacutepice do que pode sonhar quem viverdquo (Medeia vv 1029-

1035)

Eacute com seus filhos eacute com o ser matildee que Medeia paga sua liberdade o que se confunde

com o ser puramente uma mulher inteiramente mulher como compreendem Lacan e Miller

Contudo considerando o lamento de despedida de Medeia e a versatildeo que toma seu ato como

sacrifiacutecio seria equivocado pensar que Medeia apareccedila justamente como matildee natildeo como

mulher no traacutegico desenlace Que mulher teria a coragem de sacrificar crianccedilas para salvaacute-las

senatildeo uma matildee

Ora o que significa ser mulher De acordo com Alexandre Costa (2013) natildeo por acaso

Euriacutepides escolheu uma heroiacutena mulher em sua peccedila capaz de ato tatildeo terriacutevel Ser mulher

contrasta com o ser homem que o tragedioacutegrafo deseja expor ao lado de outras polaridades

tais como oriente versus ocidente saber miacutetico versus saber racional magia versus ciecircncia

sociedades arcaicas (matriarcais) versus sociedades modernas (patriarcais) Contudo segundo

Vieira (2010) o interesse de Euriacutepides em representar o mito de Medeia decorre de suas

proacuteprias insatisfaccedilotildees da falta de acolhimento que experimenta em relaccedilatildeo agrave sua sopheacute agrave sua

forma de pensar que como discutimos tem grande influecircncia de sua amizade com o filoacutesofo

Soacutecrates

Encerramos esta seccedilatildeo sobre o mito de Medeia e sobre a Medeia de Euriacutepides com as

palavras da escritora alematilde Christa Wolf autora do livro Medeia Vozes que busca resgatar nas

entrelinhas dos textos sobre esta mulher emblemaacutetica as vozes natildeo ouvidas observando suas

ressonacircncias em tantas outras histoacuterias de mulheres fortes apagadas por um princiacutepio

moralizador

Pronunciamos um nome e como as paredes satildeo permeaacuteveis entramos no tempo que foi o seu encontro desejado Sem hesitaccedilotildees ela responde das profundezas do tempo ao nosso olhar Infanticida Pela primeira vez esta duacutevida [] Mandamos-lhe embora ela vem ao nosso encontro das profundezas do tempo noacutes mergulhamos nele [] E haacute de haver um momento

200

em que nos encontramos Somos noacutes que descemos ateacute os Antigos Satildeo eles que nos apanham Tanto faz Basta estender a matildeo Passam para o nosso mundo com a maior facilidade estranhos hoacutespedes iguais a noacutes Noacutes temos a chave que abre todas as eacutepocas por vezes a usamos sem reservas deitamos um olhar apressado pela fresta da porta aacutevidos de juiacutezos precipitados Mas tambeacutem deve haver maneira de nos aproximarmos passo a passo com um certo pudor diante do tabu dispostos a arrancar dos mortos seu segredo mas assumindo o preccedilo de algum sofrimento O reconhecimento das nossas fraquezas ndash era por aiacute que deviacuteamos comeccedilar (WOLF 1998 p 11)

201

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Com a articulaccedilatildeo entre educaccedilatildeo trageacutedia antiga e psicanaacutelise produzimos uma

extensatildeo teoacuterica para ler a histoacuteria cliacutenica dramatizada na abertura deste trabalho Agora eacute o

momento de recolher os elementos miacutenimos que sustentaram nossa argumentaccedilatildeo e

constituiacuteram uma equaccedilatildeo teoacuterica que nos permite voltar ao cenaacuterio para lecirc-lo novamente e

quiccedilaacute nos ajude a ler outros cenaacuterios

Da apreciaccedilatildeo das trageacutedias gregas de Soacutefocles e de Euriacutepides recolhemos uma

pergunta sobre a eacutetica colocada em cena atraveacutes das accedilotildees dos heroacuteis e heroiacutenas diante dos

conflitos vividos com outros personagens Por meio da leitura psicanaliacutetica da trilogia tebana

em especial Antiacutegona feita por Lacan (1959-19601997) e Vorsatz (2013) entendemos que

somos inteiramente responsaacuteveis por nossas escolhas eacuteticas pelos efeitos traacutegicos dessas

escolhas em nosso destino ainda que seu fundamento seja o desejo inconsciente portanto

inacessiacutevel a nosso comando

Nesse sentido as perdas decorrentes de uma posiccedilatildeo subjetiva em que heroacuteis e heroiacutenas

se veem tomados em accedilatildeo satildeo o preccedilo que pagam para sustentar seu desejo o que significa

afirmarem-se como sujeito de desejo perante os impasses que surgem em cena Pelo estudo das

trageacutedias sabemos que haacute uma diferenccedila substancial entre as obras sofocleanas Eacutedipo Rei e

Antiacutegona A primeira trata-se de uma trageacutedia de destino como aponta Freud (19002015) em

que o heroacutei ignora completamente as consequecircncias de sua postura investigativa e racional

Apenas no uacuteltimo ato quando Eacutedipo descobre ser o proacuteprio criminoso que buscava ser o

sucessor legiacutetimo do trono ser o marido da proacutepria matildee revelando-se o mais terriacutevel dos

homens abraccedila as duras penas pelas quais deve passar o restante de seus dias e em Eacutedipo em

Colono sustenta sua dignidade perante os deuses

Em Antiacutegona jaacute no primeiro ato a heroiacutena conhece o destino traacutegico que a espera por

ter escolhido enterrar o irmatildeo Se em Eacutedipo temos a hybris a arrogacircncia que conduz ao erro de

julgamento e ao infortuacutenio em Antiacutegona temos a aacutetē a fatalidade inevitaacutevel para onde a heroiacutena

deseja caminhar Aqui estaacute o paradoxo de Antiacutegona pois ao sustentar sua posiccedilatildeo eacutetica ela

perde sua proacutepria vida Se sustentasse sua vida obedecendo a Creonte natildeo se afirmaria como

sujeito de desejo Lacan toma dessa trageacutedia justamente a diferenccedila que quer estabelecer entre

a eacutetica da psicanaacutelise a eacutetica do desejo e a obrigaccedilatildeo moral imposta pelas convenccedilotildees sociais

que reprimem o desejo

202

Atraveacutes das criacuteticas de Nietzsche averiguamos que um dos aspectos que levam agrave morte

da trageacutedia antiga eacute o de embasar as escolhas eacuteticas em justificativas filosoacuteficas como ocorre

nas trageacutedias de Euriacutepides influenciadas pelo pensamento de Soacutecrates Nesse sentido aqui se

situa um ponto de virada importante para a nossa forma de representar os conflitos humanos no

teatro pois no lugar de enunciar um desenlace traacutegico que embora natildeo signifique uma

conciliaccedilatildeo provoca um sentimento de apaziguamento final a trageacutedia de Euriacutepides passa a

oferecer finais resolutivos na medida em que modifica os mitos e busca justificativas racionais

para solucionar impasses Uma das formas mais utilizadas por Euriacutepides nessa nova proposta

de desenlace acontece com o uso do dispositivo do deus ex machina

Com Rebelo (1995) entendemos que nem sempre as trageacutedias de Euriacutepides ao

apresentarem tal ferramenta buscam impor uma soluccedilatildeo derradeira para os conflitos sem que

estes se construam ao longo da histoacuteria No entanto conseguimos reconhecer atraveacutes do autor

que haacute no deus ex machina um imperativo moral que passa a participar da cena que pode

influenciar as decisotildees tomadas entre os personagens Assim ocorre na cena traacutegica uma virada

eacutetica importante que reflete as mudanccedilas ocorridas no modo de organizaccedilatildeo de vida na poacutelis

grega que passa de um mundo miacutetico para um mundo filosoacutefico

Entre as peccedilas de Euriacutepides que apresentam o recurso do deus ex machina trabalhamos

com a Medeia citada por Rebelo (1995) como uma exceccedilatildeo pois quem vem a ocupar tal lugar

na maquinaria natildeo eacute um deus mas um ser humano A peccedila destaca-se tambeacutem por ter sido

utilizada por Aristoacuteteles como exemplo do uso desse recurso

Na apreciaccedilatildeo que produzimos acerca da obra euripidiana entendemos que a

personagem Medeia se vale de posiccedilatildeo semelhante agrave de Antiacutegona ao lembrar as leis natildeo escritas

que firmam o laccedilo de matrimocircnio desonrado por Jasatildeo Como a filha de Eacutedipo Medeia natildeo

aceita seguir as leis do rei de mesmo nome Creonte sentindo que o que resta apoacutes a sua funesta

vinganccedila contra o rei e a princesa eacute sua obrigaccedilatildeo para com seus filhos Como podemos

qualificar essa obrigaccedilatildeo Ela remete ao seu desejo subjetivo ou a um dever moral

Medeia nomeia sua eacutetica de ananke e a partir dela coloca em cena o paradoxo traacutegico

mata seus filhos (na versatildeo de Euriacutepides) para salvaacute-los de serem mortos pelos cidadatildeos de

Corinto Ainda que Euriacutepides apresente em Medeia o saber socraacutetico sofista racional natildeo

pensamos ser essa a forma de saber que domina no desenlace da peccedila O saber que aparece em

cena eacute articulado com o dever que se impotildee atraveacutes de ananke uma necessidade que pode advir

203

de sua funccedilatildeo como matildee ainda que proteger os filhos signifique destruiacute-los e nesse sentido

destruir a matildee em Medeia

Aleacutem disso vale pontuar na peccedila de Medeia a estrangeiridade que ela representa O fato

de pertencer a outra cultura acessar um saber diferente do compartilhado no mundo grego ser

uma mulher com atribuiccedilotildees permitidas aos homens (brava saacutebia dominadora) faz com que

ela ocupe diante dos cidadatildeos de Corinto e mesmo dos leitores e dos espectadores o lugar do

estranho radical do qual se deseja distanciamento Ao revelar-se em cena como uma mulher

assassina e filicida a repulsa sentida por ela tende a aumentar e o que se espera do fim da peccedila

eacute uma puniccedilatildeo severa O fato de ter permanecido viva protegida pelos deuses e conquistado o

exiacutelio mesmo apoacutes matar as crianccedilas pode ocasionar aos espectadores uma sensaccedilatildeo muito

distante do indicado apaziguamento final das trageacutedias de Soacutefocles O desenlace em Medeia

natildeo propotildee uma costura das accedilotildees mas um rompimento abrupto de nossas convicccedilotildees um

questionamento moral Talvez esse seja o efeito da presenccedila do deus ex machina na peccedila Para

conseguir trabalhar e entender a proposta de Euriacutepides foi preciso vencer as barreiras que nos

distanciam da terriacutevel personagem e reconhecer nela traccedilos eacuteticos o que permite uma

aproximaccedilatildeo

Partindo da posiccedilatildeo eacutetica apresentada em accedilatildeo pelos heroacuteis do desenlace traacutegico do

deus ex machina como dever moral acessamos a histoacuteria dramatizada no proacutelogo

61 Natildeo definimos o lugar que ocupamos na relaccedilatildeo transferencial

Ler com a distacircncia temporal e o trabalho teoacuterico atravessado o andamento do roteiro

construiacutedo no proacutelogo permite identificar na posiccedilatildeo em que a psicoacuteloga acaba por tomar as

ressonacircncias da posiccedilatildeo ocupada por Eacutedipo ao se descobrir o criminoso que provocava a ruiacutena

de Tebas A psicoacuteloga se vecirc capturada no empenho por responder agrave demanda da escola de dar

respostas e oferecer soluccedilotildees para a crianccedila que apresentava problemas em seu percurso escolar

ainda que se coloque numa posiccedilatildeo de criacutetica dessas mesmas atitudes quando tomadas pelos

outros Nesse sentido parece-nos que a psicoacuteloga eacute capturada no efeito transferencial de

oferecer uma resoluccedilatildeo definitiva para o caso recalcando a posiccedilatildeo de escuta de trabalhar em

conjunto assim como ocorre com Eacutedipo

Embora tenha assumido responsabilidade pelo caso a psicoacuteloga natildeo encontrou as vias

de se movimentar no sentido de escutar a meacutedica ou ainda de reconhecer o esforccedilo da escola

204

Quando mais tarde se flagrou dos efeitos de sua conduta nas sessotildees com a crianccedila na fala da

matildee jaacute estava sozinha Com isso podemos entender que qualquer um pode falar a partir da

posiccedilatildeo de deus ex machina desde que haja em seu modo de conduzir um natildeo reconhecimento

ou um recalcamento do lugar do outro e uma prerrogativa moral que faz o indiviacuteduo acreditar

que sua escolha diante de uma situaccedilatildeo eacute a mais correta

62 O lobo do homem eacute o lobo no homem

A trageacutedia de Medeia evidencia as soluccedilotildees que tomamos ao nos depararmos com uma

parte natildeo domesticaacutevel que nos habita algo que insiste em escapar do projeto civilizatoacuterio Em

vez de olhar para essa porccedilatildeo que havia em si mesmo Creonte expulsa o lobo que conseguia

identificar em Medeia na certeza de que desse modo conseguiria livrar Corinto de sua

influecircncia maleacutefica Ao natildeo acolher a estrangeira Medeia Creonte provoca o efeito contraacuterio

ao que almejava ou seja abrindo caminho para a realizaccedilatildeo de uma pulsatildeo destrutiva

Como trabalhar o lugar do lobo que pode constituir o limite de nossa escuta o limite do

reconhecimento do outro a nossa resistecircncia aos coacutedigos de comportamento dentro da escola

Como dar lugar a esse lobo no seio de nossas relaccedilotildees sem que seja preciso recalcaacute-lo expulsaacute-

lo de nosso conviacutevio o que pode fazer com que ele retorne com ainda mais vigor Satildeo perguntas

que nos ajudaram a constituir um mapeamento teoacuterico de modo a tentar enunciar nosso

problema

Trabalhar com o lobo que existe na crianccedila seja aluno filho paciente exige que

saibamos trabalhar com o lobo que haacute em noacutes Nesse sentido a escuta que a psicoacuteloga conseguiu

promover ao final da histoacuteria eacute fundamental para que possamos interrogar nossa forma de

conduzir O que ela consegue ler da experiecircncia eacute que tanto a escola quanto a meacutedica e a matildee

nos desdobramentos do fazer de cada uma eram chamadas a se colocar em relaccedilatildeo com o lobo

na crianccedila representado no desenho Esse dever nos conduz a um segundo aspecto que podemos

recolher da histoacuteria o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo diante de problemas de aprendizagem e

comportamento apresentados pelos estudantes

205

63 A educaccedilatildeo agrave sombra da medicalizaccedilatildeo

Como adultos responsaacuteveis pelas crianccedilas estamos implicados com seu mal-estar Natildeo

eacute raro que o discurso medicalizante que opera na escola e toma lugar do discurso educativo faccedila

as vezes dessa implicaccedilatildeo constituindo um dever dos adultos para com as crianccedilas No entanto

o que pode resultar dessa operaccedilatildeo no fazer do educador ou seja a operaccedilatildeo de colocar a

educaccedilatildeo em funccedilatildeo do saber meacutedico eacute produzir nos professores uma desautorizaccedilatildeo de seu

lugar de saber eacute produzir na escola uma paralisia em arranjar alternativas pedagoacutegicas para

problemas educacionais como apontam Santos e Freitas (2016) Ao mesmo tempo tal operaccedilatildeo

resulta em produzir um fora em convocar um representante do saber medicalizante a partir de

um lugar de saber impositivo e resolutivo como o recurso deus ex machina que natildeo se tece

com outros saberes

Na pesquisa sobre a medicalizaccedilatildeo descobrimos que a relaccedilatildeo entre saber medicalizante

e escola participa de um processo que vem se construindo haacute muitos anos Na medida em que

coube agrave psiquiatria a autoridade para promover a diferenccedila entre normalidade e patologia e criar

meios para investigar e prevenir anormalidades a medicina foi ganhando espaccedilo no seio das

relaccedilotildees familiares e dentro das escolas para detectar ainda nas crianccedilas possiacuteveis problemas

de desenvolvimento Como ocorre a conquista dessa autoridade

64 Medicalizaccedilatildeo na escola e dever moral

A partir de Foucault (1974-19752001) entendemos que esse processo estaacute a serviccedilo da

manutenccedilatildeo da moral social e com isso justifica-se por si mesmo Os desvios de

comportamento de crianccedilas mesmo em classes consideradas normais que tocavam em alguma

moral estabelecida socialmente como por exemplo a indisciplina eram motivo suficiente para

a escola abrir as portas para o saber constituiacutedo cientificamente pela psiquiatria Entendemos

que a medicalizaccedilatildeo na escola cumpre um dever moral assim como o deus ex machina assumiu

uma funccedilatildeo moralizante na trageacutedia antiga culminando em seu fim de acordo com Nietzsche

(18721992)

Com o estudo e o desenvolvimento dos transtornos mentais chegamos ao TDAH cujo

diagnoacutestico parece ser bastante frequente em estudantes considerando a frequecircncia de

prescriccedilotildees medicamentosas para este puacuteblico (SISTEMA NACIONAL 2012) Acreditamos

206

que o transtorno apresenta sintomas que questionam uma regulaccedilatildeo social em nossos dias que

diz respeito ao modo como lidamos com o tempo A falta de atenccedilatildeo e de concentraccedilatildeo nos

estudos e atividades acadecircmicas bem como a inquietaccedilatildeo que impede o controle sobre o proacuteprio

corpo satildeo vistas como signo de um futuro fracasso escolar na medida em que podem interferir

nos ideais sociais de rendimento e de produtividade que almejamos inscrever em nossas

crianccedilas

Nesse sentido o encaminhamento por parte da escola de um aluno que apresenta

sintomas de desatenccedilatildeo e hiperatividade para um especialista acaba por constituir um dever

moral da escola de nosso tempo Servimo-nos do discurso medicalizante e psicopatologizante

para oferecer soluccedilotildees praacuteticas para problemas educativos ao percebermos a que distancia

nossas crianccedilas se encontram dos ideais de comportamento do perfil desejado na escola

O problema de nos pautarmos em tais ideais na cena escolar eacute que no lugar das palavras

que educam oferecemos diagnoacutesticos e medicamentos como soluccedilatildeo aos problemas de

aprendizagem e comportamento Tais intervenccedilotildees meacutedicas acabam por dispensar as estrateacutegias

pedagoacutegicas da escola ou ao menos colocaacute-las como alternativas temporaacuterias e secundaacuterias agraves

medidas corretas e justas oferecidas pelo saber meacutedico

Parece-nos que compartilhamos da seguinte ideia ao identificarmos em sala de aula

uma crianccedila com dificuldades para se comportar da maneira desejada temos a obrigaccedilatildeo moral

de dizer a seus pais que provavelmente ela sofre de algum transtorno e deve consultar um

especialista Se natildeo o fizermos estaremos em falta com uma moral social O que tentamos

mostrar neste trabalho eacute que tal conduta natildeo eacute dada a priori ela eacute construiacuteda ao longo dos

seacuteculos e o que nos cabe eacute questionar seus efeitos para a legitimaccedilatildeo do saber da escola

65 Solucionar o problema eacute enunciaacute-lo

Na medida em que a conduta da escola de encaminhar um aluno com problemas de

aprendizagem e comportamento para um especialista estiver respondendo a uma obrigaccedilatildeo

moral isso pode constituir uma barreira poderosa agraves alternativas que podem ser arranjadas pelo

desejo de educar considerando que haacute uma diferenccedila importante entre uma lei moralmente

imposta e uma lei que se revela em accedilatildeo sempre e a cada vez

Recuperamos dessa maneira a equaccedilatildeo teoacuterica por noacutes proposta O deus ex machina na

cena traacutegica pode produzir um desenlace de efeito moralizante Do mesmo modo a

207

medicalizaccedilatildeo pode incidir sobre a cena escolar Se num trabalho conjunto seguindo a lei de

nosso desejo conseguirmos rearranjar a disposiccedilatildeo desses elementos em cena podemos

produzir novas formas de desenlace

Se educar eacute um dever social que podemos exercer natildeo sem o desejo que nos move eacute

porque representa um modo de pagar a diacutevida simboacutelica por termos sido inscritos em uma

cultura por um mestre de ocasiatildeo (LAJONQUIEgraveRE 1997) Nesse sentido somente podemos

educar pela via da palavra que nos marcou subjetivamente o que comporta a equivocidade que

lhe eacute inerente Assim entendemos que a educaccedilatildeo se situa numa arena carregada de

potencialidades simboacutelicas e que guarda uma dimensatildeo impossiacutevel limite insuperaacutevel e

inconsciente intriacutenseco ao educar O uacutenico modo de trabalharmos o impossiacutevel eacute sabermos que

natildeo podemos jamais controlaacute-lo ou excluiacute-lo entatildeo podemos arranjar formas de trabalhar com

ele

O TDAH natildeo eacute o impossiacutevel do educar para o professor nem nenhum outro transtorno

de aprendizagem ou comportamento que a psiquiatria encontra na cena escolar Ele tem se

tornado na verdade uma dificuldade na rotina escolar para a qual o saber meacutedico apresenta

uma soluccedilatildeo farmacoloacutegica Tal conduta natildeo eacute capaz de situar ou de ressituar o lugar do

impossiacutevel na cena educativa Essa tarefa pode ser realizada a partir das palavras norteadoras

que dirigimos aos nossos alunos e dos efeitos destas no modo como eles conseguem se situar

na rotina escolar

Podemos trabalhar com o impossiacutevel inerente ao ato educativo na medida em que

tomarmos os sintomas descritos do TDAH vividos em cada histoacuteria singular de nossas crianccedilas

como efeitos da experiecircncia escolar e de outros ambientes onde os estudantes circulam

acolhendo a hiperatividade e a desatenccedilatildeo como parte de um jogo de relaccedilotildees que constituiacutemos

diariamente uns com os outros natildeo como mal individual a ser moralmente combatido

eliminado com medicamentos e exclusatildeo escolar

Aleacutem disso a agitaccedilatildeo e a dispersatildeo que as crianccedilas podem apresentar na escola natildeo

constituem em si mesmas um impedimento para a aprendizagem A tentativa de buscar um

lugar na cena educativa que muitas vezes aparece na forma de sintomas principalmente no

iniacutecio da escolarizaccedilatildeo pode abrir espaccedilo para que a aprendizagem aconteccedila Do mesmo modo

o professor pode reencontrar seu lugar a autorizaccedilatildeo de seu saber se entender que mesmo os

alunos que apresentam dificuldades de comportamento podem estar aprendendo para aleacutem dos

contornos de sua intervenccedilatildeo

208

Em nossas escolas haacute muitas crianccedilas e adolescentes diagnosticados com TDAH ou

com outros transtornos e medicados com metilfenidato alunos com os quais os professores

precisam trabalhar diariamente Embora a agitaccedilatildeo e a dispersatildeo sejam suspensas

temporariamente como efeito decorrente do remeacutedio agindo no Sistema Nervoso Central o

fato de os alunos permanecerem assintomaacuteticos durante as aulas natildeo garante por si soacute o sucesso

acadecircmico Talvez o que a intervenccedilatildeo meacutedica possa garantir eacute que esses alunos natildeo atrapalhem

a rotina escolar e o planejamento do professor

No entanto o trabalho de inscrever a crianccedila no mundo de descobertas que a escola

possibilita tomaacute-la como parte de uma cultura compartilhada com seus colegas tocaacute-la em seu

desejo de aprender constitui a indispensaacutevel e insubstituiacutevel tarefa do educador que a exerce

como desejo e dever como ananke

Acreditamos portanto que constitui tarefa importante para a escola de nosso tempo

para pais e matildees de alunos e para os profissionais meacutedicos e psicoacutelogos que satildeo chamados a

falar a partir do lugar de saber que tenhamos no horizonte de nosso fazer um trabalhar em

conjunto reconhecendo os limites e alcances de nossa atuaccedilatildeo num jogo que em vez de excluir

o outro convoca-o a falar a partir do seu lugar de saber Desejamos com este trabalho contribuir

para o campo da educaccedilatildeo valorizar o fazer dos professores e professoras a cena escolar e as

suas potencialidades na transformaccedilatildeo de vidas

209

EPIacuteLOGO

As passagens que se seguem fizeram parte do cenaacuterio de composiccedilatildeo deste trabalho

ainda que natildeo tenham ingressado nas discussotildees teoacutericas Satildeo histoacuterias vividas em diferentes

escolas narradas de diferentes lugares ocupados pela autora

Jaacute passava das 13h Por descuido de algueacutem ou quem sabe por zelo uma fresta do

portatildeo permanecia aberta por onde era possiacutevel cruzar Sem a sineta da entrada sem a

cantoria de boas-vindas sem as matildeos dos colegas na fila desajeitadamente dadas apertadas

o que fazer Comeccedilava assim um dos segundos dias na escola

Sem muito pensar apoacutes passar pelo portatildeo de entrada o menino subiu os degraus e

atravessou sozinho pelos portotildees do edifiacutecio Teve a sensaccedilatildeo de que algueacutem o vira a sensaccedilatildeo

de ser olhado Laacute de dentro natildeo tinha como sair o teto era tatildeo alto e amplo que chegava a

sufocar mas isso o fez andar os corredores eram tatildeo longos que natildeo se via o seu fim mas

por isso deveria percorrecirc-lo

Enquanto ia as portas das salas de aula proliferavam a cada passo mais e mais Todas

fechadas Ateacute que parou diante de uma que lhe pareceu especialmente familiar Havia um

barulho que vinha laacute de dentro O uacutenico a habitar aquele espaccedilo Um som de batidas leves

ritmadas o giz Comprido e seco receacutem-retirado da caixa O giz riscando o quadro De que

cor Pouco importava pensou meses depois Talvez fosse o quadro a consumir o giz

Embalado pelo som da consumaccedilatildeo agora mais apressado a chegar ao fim da escrita

o aluno perdido deu duas batidas agrave porta O barulho inicial parecia mais expressivo era o

barulho interrompido o barulho da ausecircncia do barulho O menino sentiu que existia naquele

instante A porta se abriu a professora do outro lado sorriu mas antes apertou os laacutebios

Olhou para o reloacutegio e disse estaacute atrasado Indicou uma classe e convidou o aluno a se sentar

Ele entrou olhou para os outros seus colegas que tambeacutem o olharam por um momento

O que havia acontecido Todos estavam tatildeo seacuterios enfileirados uniformizados assombrados

quietos Parecia guardarem um segredo um segredo prometido a jamais ser revelado Algueacutem

tinha falecido

210

O menino pensou que sim estavam todos na primeira seacuterie do ensino fundamental

Todos os alunos faziam o mesmo que a professora fazia com o giz e o quadro mas usando o

laacutepis e a folha respectivamente Olhavam identificavam as formas as letras e as copiavam em

seus cadernos A professora de costas terminou de escrever ao quadro sentou-se agrave sua mesa

e olhou para seu caderno Quando o aluno se sentou em seu lugar entendeu que deveria fazer

o mesmo que os outros Sentiu uma espeacutecie de aliacutevio Agora era tambeacutem um outro Estava a

salvo

Mais ou menos assim se acomodou a escuta das lembranccedilas de escola de alguns alunos

de cursos de licenciatura quando a professora de Psicologia da Educaccedilatildeo lhes pediu para

narrarem cenas vividas na escola Alguns quiseram contar sobre a transiccedilatildeo da educaccedilatildeo infantil

para o ensino fundamental Outros sobre um dia em que chegaram atrasados ou sobre a

atmosfera que sentiam na escola seus espaccedilos ares cores ritmos Outros ainda sobre

professoras especiais sobre projetos cientiacuteficos sobre amizades sobre preconceitos

ldquoPor que fica essa marca de alguma coisa como a morte como uma coisa da qual se

escapa por um trizrdquo pensa inquieta a professora Eacute E se a porta estivesse fechada e se o

aluno natildeo encontrasse a sala e se a professora natildeo o deixasse entrar e se ele se entregasse agrave

imensidatildeo abismal daquele lugar chamado escola Um lugar que paradoxalmente nos eacute

apresentado como salvaccedilatildeo como caminho digno para virarmos pessoas dignas Por que

apesar de os estudantes natildeo terem dito exatamente isso que a professora conseguiu escrever o

que resta a ela tem uma atmosfera sombria de pesar de solidatildeo Natildeo haacute como pedir para os

outros atravessarem lugares esquecidos da memoacuteria sem atravessaacute-los tambeacutem

Mas o preacutedio ndash que edifiacutecio mais excecircntrico e antigo aquele ndash para mim como era verdadeiramente um palaacutecio encantado Natildeo havia de fato fim para seus meandros ndash para suas incompreensiacuteveis subdivisotildees Era difiacutecil a qualquer dado momento dizer com certeza em qual de seus dois andares calhava de se estar De qualquer cocircmodo para qualquer outro acontecia seguramente de se topar com trecircs ou quatro degraus fosse para subir fosse para descer E ainda as passagens laterais eram inumeraacuteveis ndash inconcebiacuteveis ndash e de tal modo desembocando em si mesmas que nossas ideaccedilotildees mais exatas com respeito agrave totalidade da mansatildeo natildeo eram muito diferentes dessas com que ponderaacutevamos sobre o infinito (POE 2012 p 28)

211

O cenaacuterio embora confuso e de difiacutecil compreensatildeo passiacutevel de descriccedilatildeo na pena de

Edgar Allan Poe em seu conto ldquoWilliam Wilsonrdquo poderia ser a escola do pequeno texto

produzido pela professora na tentativa de contornar as imagens provocadas pelos relatos de seus

alunos Eacute tambeacutem uma escola no conto de Poe onde o narrador estudava o lugar onde aparece

um colega de mesmo nome e aparecircncia causador de grande sofrimento Esse cenaacuterio escolar

de possiacutevel emergecircncia da anguacutestia da estranheza eacute o mesmo local onde a crianccedila encontra

possibilidades de lidar com ela acessa um mundo aleacutem de seu lar comeccedila a participar de

relaccedilotildees aleacutem do pequeno universo de familiares vizinhos parentes Conhece outros jeitos

possiacuteveis de ser e estar no mundo conhece outras regras novos valores ganha papeis sociais

Natildeo eacute apenas filho irmatildeo sobrinho natildeo eacute somente crianccedila mas torna-se aluno e colega assume

responsabilidades pelas quais seraacute cobrado avaliado ou pelo menos assim se espera

Ao registrar a escuta a professora se reporta agrave antiga escola onde cursou os primeiros

anos do primeiro grau Parecia estar laacute mais uma vez Quantas alegrias quantas violecircncias

Adorava perambular pelos corredores espiar as outras salas flagrar outras turmas em seus

disfarces de alunos comportados Adorava ir para a cantina da escola conversar com as

cozinheiras sentir aquele cheirinho de mingau ou de caldo de feijatildeo sendo preparado Agraves vezes

apanhava de colegas mais fortes por um motivo ou outro Levou soco chute bolada que hoje

natildeo doem mais Lembra-se de que tinha medo mesmo de natildeo conseguir terminar de copiar tudo

o que estava no quadro O quadro era imenso Dividido em trecircs partes Tinha que terminar de

escrever porque era preciso apagar para escrever mais e noacutes precisaacutevamos registrar tudo

Por que as professoras eram tatildeo quietas Aguardavam pacientemente que a turma

terminasse de copiar e ficavam absortas em seus pensamentos Por observarmos as professoras

em seus jeitos calados ou entatildeo por olharmos os galhos das grandes aacutervores que nos

circundavam pelo lado de fora ou ainda por olharmos a atenccedilatildeo bonita a letra bonita de um ou

outro colega alguns de noacutes natildeo conseguiacuteamos terminar de copiar Isso deixava professoras e

matildees chateadas preocupadas com nossa evoluccedilatildeo Copiar era coisa muito importante

As matildees perguntavam para noacutes seus filhos por que ficaacutevamos olhando para as paredes

em vez de copiar Natildeo era por falta de tempo jaacute que a maioria da turma conseguia As

professoras diziam que eacuteramos dispersos e desatentos Checavam caderno por caderno para ver

se a tarefa do dia anterior havia sido feita para ver se os alunos tinham de fato copiado tudo

para ver como estava a letra para ver se tinham feito orelhas e garranchos Isso nos deixava

nervosos apreensivos achaacutevamos que nunca conseguiriacuteamos aprender

212

Alguns de noacutes passavam esse limite de uma simples falta de atenccedilatildeo ao quadro e ao

caderno Faltava um cuidado tambeacutem com os corpos Natildeo os continham eram conduzidos por

eles de um lado a outro da sala para fora da sala pelos corredores Algumas crianccedilas explodiam

seus corpos na hora do recreio depois de uma eternidade contida poderiam finalmente se

libertar daquele lugar daquele papel de aluno comportado e correr pelo paacutetio jogar-se ao chatildeo

brigar com colegas

Ateacute acalmarem os acircnimos na volta do recreio levava um bocado de tempo Alguns

tomavam advertecircncia saiacuteam da sala para a diretoria choravam gritavam As matildees diziam que

na classe parecia haver um bicho carpinteiro que os impedia de ficarem sentados As

professoras concordavam mas no fundo pensavam que essas matildees natildeo davam limite aos seus

filhos e agora elas eacute que teriam que lidar com isso Deveriam entatildeo envolvecirc-las na educaccedilatildeo

escolar Qualquer deslize dos alunos com o caderno que era disciacutepulo do quadro negro ou com

o comportamento um bilhete era enviado para os pais E naquele tempo as crianccedilas respeitavam

os pais Os pais davam razatildeo para os professores Os professores eram uma referecircncia para que

a educaccedilatildeo acontecesse Eacute o que agraves vezes pensa nostaacutelgica a professora que tem essas

memoacuterias

Lendo esse pequeno texto essa pequena lembranccedila eacute possiacutevel dizer que as professoras

faziam as coisas acontecerem Natildeo sabiam como natildeo sabiam por quecirc mas estavam sempre

referidas ao quadro ao caderno ao giz a pilares que sustentavam seus lugares de saber na sala

de aula e todos noacutes acreditaacutevamos nelas Bem ou mal nos educaacutevamos Alguns chegavam ao

fim do primeiro grau ao ensino meacutedio quando copiaacutevamos menos anotaacutevamos mais a

explicaccedilatildeo do conteuacutedo liacuteamos livros sabiacuteamos quais as mateacuterias favoritas quais as odiadas

e o que nos movia era um laccedilo de amizade um desejo de futuro vou ser artista engenheiro

advogada meacutedico jornalista Para outros a escola deixava de fazer sentido laacute pela quinta ou

sexta seacuterie ou mesmo mais tarde Talvez nunca tivesse feito sentido Por quecirc Faltavam agraves aulas

por dias semanas ateacute desistirem Comeccedilavam a trabalhar cedo formavam uma famiacutelia cedo

Cedo para mim O futuro deles era agora

Uma aluna entre noacutes buscou a sonhada formaccedilatildeo em teatro e depois de um tempo de

procura por trabalho e indecisotildees optou pela carreira acadecircmica mestrado e doutorado em

educaccedilatildeo Numa escola estadual de ensino fundamental e meacutedio um grupo de alunos do

primeiro ao quarto ano foi designado a participar de uma oficina de teatro que ocorreria

semanalmente Assim foi nomeada a atividade pela nossa colega agora proponente da oficina

213

artista e doutoranda em educaccedilatildeo As professoras chamaram de reforccedilo para alunos com

dificuldade para ler e escrever

O retorno agrave escola causou ansiedade agrave ministrante da oficina porque a escola puacuteblica

onde estudou tinha quase a mesma estrutura fiacutesica o mesmo cheiro a mesma umidade nos

corredores Passou de sala em sala para chamar os participantes e se surpreendeu ao ver as

crianccedilas copiando do quadro A professora seacuteria e sentada Haacute quantos anos havia saiacutedo da

escola Numa das turmas a professora entregava folhinhas mimeografadas cheia de atividades

para os alunos completarem O velho mimeoacutegrafo continua trabalhando Numa outra sala a

professora discutia com um aluno que natildeo queria sentar e tinha riscado no caderno de uma

colega Ao ver a oficineira a professora disse ele estaacute impossiacutevel hoje precisa ir para o reforccedilo

O objetivo era oferecer a arte teatral como um dispositivo de expressatildeo e elaboraccedilatildeo de

questotildees subjetivas que possam estar dificultando a aprendizagem e o estabelecimento de laccedilos

A psicopedagoga e a psicoacuteloga da escola adoraram a ideia ldquoTudo o que vem para nos ajudar a

gente aceita A gente precisa de ajuda com os alunos que natildeo sabem ler e escrever e que natildeo

podem repetir de ano Eles satildeo muito agitados e hiperativos Alguns tecircm laudo Natildeo obedecem

mais As matildees natildeo se preocupam mais com a educaccedilatildeo dos filhos Acham que a escola precisa

dar conta de tudo Poreacutem a escola natildeo eacute uma extensatildeo de casardquo

Numa reuniatildeo com responsaacuteveis pelas crianccedilas participantes para explicar o

funcionamento da oficina muitas queixas foram feitas sobre as professoras satildeo riacutegidas

exigentes datildeo tarefa quase todos os dias haacute conteuacutedos que os pais natildeo lembram mais e as

professoras os obrigam a fazer junto com os filhos que o filho chega machucado em casa e

ningueacutem sabe o que aconteceu que tem paacuteginas arrancadas do caderno e a professora natildeo sabe

quem fez que a professora apaga muito raacutepido do quadro e natildeo daacute tempo do filho copiar Muitas

crianccedilas tecircm laudo e natildeo tomam remeacutedio e isso pode ser perigoso porque podem bater nos

colegas e as professoras natildeo cuidam Quanto agrave proposta da oficina adoraram

Os elementos cecircnicos na escola eram praticamente os mesmos talvez as funccedilotildees fossem

ainda as mesmas o cenaacuterio os papeis Mas havia algo novo um novo arranjo um novo

discurso Ouviam-se termos como ldquolaudordquo ldquohiperatividaderdquo ldquoencaminhamento para meacutedicordquo

Havia um pedido de ajuda de algo que operasse entre pais e professores entre professores e

alunos E natildeo era um pedido pela oficina

Logo a ministrante percebeu que as crianccedilas natildeo queriam aprender fundamentos do jogo

cecircnico para que atraveacutes da representaccedilatildeo teatral apresentassem e elaborassem questotildees

214

subjetivas questotildees que ela natildeo sabia quais eram e pensava que natildeo vinham ao caso pois ali

natildeo era uma terapia Suas questotildees subjetivas deveriam aparecer apenas em jogo em cena

Encontrar um tom entre a professora de teatro e uma posiccedilatildeo de escuta era um desafio

uma busca contiacutenua Num desses dias de encontrar um tom uma das meninas respondeu a uma

pergunta oacutebvia da ministrante Ela queria saber como era ser crianccedila como sabiam que eram

crianccedilas ldquoEacute oacutebvio que somos crianccedilas natildeo estaacute vendo Acha que somos o quecirc Cococirc de

cavalordquo

No teatro cococirc de cavalo mais conhecido como merda eacute sinal de que uma encenaccedilatildeo

fez sucesso Quando essa expressatildeo surgiu os espectadores iam ao teatro de charrete puxada

por cavalos Desejava-se que os arredores do local ficassem cheios de merda Por isso que hoje

desejam merda aos atores que vatildeo entrar em cena eacute uma forma de desejar-lhes sorte

Essa foi uma forma de interpretar que a ministrante estava em busca dos resultados do

sucesso de sua proposta Aleacutem disso estava diante de crianccedilas Os alunos com dificuldades

eram antes de tudo crianccedilas Crianccedilas que brincam que pulam que correm Desejam sair desse

lugar de resto excremento constituir-se como sujeitos

Foi assim brincando experimentando de modo caoacutetico impaciente urgente destrutivo

uma atividade apoacutes a outra um livro apoacutes o outro sem tempo para pausas que criaram uma

atividade que os capturou como grupo uma brincadeira de escola Brincar de ser a professora

de ser a diretora de ser a aluna ou o aluno mais inteligente da escola ou o mais perigoso ou

um aluno adolescente do ensino meacutedio Brincar de escrever no quadro brincar de ensinar de

escrever o proacuteprio nome o nome do colega de procurar nos livros as letras do seu nome ou de

palavras que significavam algo importante para eles O faz-de-conta da sala de aula durava todo

o tempo da oficina eles mesmos regulavam criavam regras entravam num acordo de quem

seria a professora e por quanto tempo Agraves vezes retornavam ao caos novos membros entravam

no grupo outros saiacuteam porque jaacute sabiam ler e escrever ou entatildeo porque saiacuteam ou mudavam de

escola

Natildeo sei bem como as oficinas chegaram ao fim a ministrante queria muito que as

professoras vissem os alunos brincando contava para elas durante o intervalo ou na porta da

sala o que os alunos faziam nos encontros Elas sorriam agradeciam perguntavam sobre um

ou outro que lhes causava mais preocupaccedilatildeo Nunca assistiram A ministrante pensou em

formar uma oficina das professoras Propocircs para a coordenadora pedagoacutegica e para a psicoacuteloga

que se reunissem agrave tardinha mas elas jaacute avisaram que as professoras natildeo teriam interesse Natildeo

215

quis insistir Tambeacutem natildeo tinha convicccedilatildeo de que queria mesmo isso Matildees reclamaram que os

filhos estavam perdendo aula para participar das oficinas o que tambeacutem era uma preocupaccedilatildeo

da ministrante mas era o uacutenico horaacuterio possiacutevel A tentativa de marcar meia hora antes da aula

ou apoacutes a aula natildeo funcionou

Apoacutes trecircs semestres de atividades as oficinas terminaram Afinal qual era a funccedilatildeo da

ministrante naquele cenaacuterio Era um trabalho sutil uma ponte das crianccedilas com seu desejo de

aprender algo que pode acontecer de outras formas natildeo com uma oficina ldquoAs crianccedilas acabam

aprendendo de uma forma ou de outrardquo pensava

Nas brincadeiras de sala de aula que as crianccedilas inventavam muitas vezes as professoras

eram brabas furiosas xingavam os alunos por qualquer motivo mandavam sentar calar a boca

ameaccedilavam com bilhete para casa davam nota zero para a maioria mandavam copiar tudo do

quadro e natildeo aguardavam apagavam rapidamente Os alunos favoritos geralmente dois

ganhavam nota dez e eram alvo de chacota Os que faziam os alunos mais rebeldes provocavam

a professora perguntando em demasia reclamando que um colega empurrou pedindo para ir

ao banheiro

Algumas vezes as professoras eram doces inventavam algum conteuacutedo sobre qualquer

coisa explicavam pacientemente os alunos faziam as atividades com calma um desenho

respondiam as perguntas de uma folhinha que a professora entregava Depois ela passava de

classe em classe avaliando o que cada um estava fazendo Estaacute muito bom mas pode melhorar

soacute errou duas ou entatildeo acertou todas nota dez vai ser o ajudante do dia Muitas vezes isso

acontecia com aquelas crianccedilas mais difiacuteceis Havia um menino que era alvo de queixa de toda

a escola porque sempre se metia em confusatildeo Ameaccedilava colegas o tempo todo fazia

comentaacuterios preconceituosos que prontamente eram sinalizados pelos outros que o faziam se

desculpar pedindo o apoio da ministrante Muitas vezes gritava que queria matar sua matildee que

a odiava Gritava que natildeo gostava de sua professora que era brega e chata

Um dia disseram que ele seria o professor Ficou constrangido natildeo sabia como agir

mas aceitou Oscilou entre os dois papeis de um professor perverso e um professor amoroso

A turma divertiu-se muito com ele riam de seu jeito furioso e da imitaccedilatildeo que apareceu na hora

Perverso para demandar tarefas amoroso para corrigir Conferiu o caderno de cada aluno seu e

fez um certinho de laacutepis vermelho Natildeo se sentiu confortaacutevel quis interromper a encenaccedilatildeo

disse que tinha feito errado que natildeo sabia brincar de ser o professor mas a turma o aprovou eacute

216

assim mesmo que acontece as professoras agraves vezes satildeo brabas e agraves vezes satildeo queridas Agraves vezes

elogiam datildeo notas boas agraves vezes gritam e datildeo zero

Algo se passou com o menino difiacutecil e raivoso certamente natildeo uma mudanccedila definitiva

mas se mostrou mais amigo da turma emprestou materiais a quem natildeo tinha oferecia-se para

ajudar a arrumar a sala mas desestabilizava-se facilmente Fugia do grupo corria pelo paacutetio e

voltava O olhar da professora e da escola sobre ele parecia seguir o mesmo natildeo havia

diferenccedila Jaacute haviam pedido para a matildee levaacute-lo a um meacutedico levaacute-lo ao CAPS porque

certamente tinha algum problema era hiperativo com certeza soacute natildeo tinha laudo mas a matildee

pouco se importava Natildeo sabia nem quem era seu pai A psicoacuteloga da escola sabia dessa

situaccedilatildeo conhecia sua histoacuteria de vida mas dizia e defendia que haacute coisas que a escola natildeo

pode e nem deve dar conta vatildeo aleacutem do papel dela e das professoras Aleacutem de um papel de

educar ldquoEducaccedilatildeo vem do berccedilo de casa [] aqui as professoras ensinam a ler a escrever a

fazer contas Tudo o que estaacute aleacutem disso eacute um problema para os pais resolverem [] eu ajudo

escuto encaminho mas eles satildeo os responsaacuteveisrdquo

Nas brincadeiras de sala de aula as aprendizagens de leitura e escrita as contas eram

meras coadjuvantes Brincavam na imprecisatildeo dessas habilidades pouco importava se estava

realmente certo agraves vezes simulavam escritas faziam rabiscos faz de conta que sabiam escrever

O que os movia ali era o jogo de relaccedilotildees era ser algueacutem que sabia ser um aluno comportado

ser a professora

A ministrante sabia que as representaccedilotildees de mestres que apareciam em cena natildeo

correspondiam diretamente ao modo de ser ou agrave personalidade das professoras dos primeiros

anos Quem eram entatildeo essas personagens caricatas Eram produtos de suas relaccedilotildees com as

professoras era o que sustentava esse viacutenculo era um oacutedio e um amor encenados era a

transferecircncia operando para que o desejo de aprender acontecesse

Freud no texto ldquoAlgumas reflexotildees sobre a psicologia do escolarrdquo de 1914 ao discursar

no aniversaacuterio de sua escola primaacuteria fala-nos que como estudantes ele e seus colegas

poderiam tanto amar quanto odiar seus professores inventando simpatias e antipatias que natildeo

provinham dos mestres mas de projeccedilotildees do lugar de aluno em direccedilatildeo a esse lugar ocupado

por aquela figura que organiza uma sala de aula Para Freud

[] eacute difiacutecil dizer se o que exerceu mais influecircncia sobre noacutes e teve importacircncia maior foi a nossa preocupaccedilatildeo pelas ciecircncias que nos eram ensinadas ou pela personalidade de nossos mestres Eacute verdade no miacutenimo que esta segunda preocupaccedilatildeo constituiacutea uma corrente oculta e constante em

217

todos noacutes e para muitos os caminhos das ciecircncias passavam apenas atraveacutes de nossos professores Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos ndash porque natildeo admitir outros tantos ndash ela foi por causa disso definitivamente bloqueada (FREUD 19141996a p 286)

As professoras tinham na escola essa tarefa de dar um suporte de sustentar acolher

projeccedilotildees Difiacutecil oferecer-se assim de matriz a receber inscriccedilotildees demandas que natildeo satildeo suas

Mas eacute assim que a educaccedilatildeo pode acontecer Enquanto ensinam conteuacutedos satildeo suporte de

outras coisas de cada um dos alunos para que a relaccedilatildeo ensino aprendizagem opere E sobre

os alunos o que elas pensavam o que esperavam deles Falavam de um ou de outro

atravessadas por um vieacutes diagnoacutestico que estava aleacutem de sua alccedilada de sua responsabilidade

de seu fazer de seu saber

A maioria dos participantes do grupo havia sido encaminhada pelas professoras em

funccedilatildeo de seu comportamento hiperativo Para elas a dificuldade de aprender estava

relacionada agrave hiperatividade pois se conseguissem parar e prestar atenccedilatildeo certamente

aprenderiam Se pudessem ter um tempo soacute com eles individualmente sentar ao lado ajudar a

organizar o caderno acreditam que conseguiriam fazecirc-los aprender Mas com uma turma de

mais de vinte crianccedilas natildeo conseguem Por isso agradeciam a ajuda da psicoacuteloga da escola e da

ministrante das oficinas que conseguiam dar uma atenccedilatildeo mais individualizada a esses alunos

Ao ler essas passagens registros de uma oficineira parece-me que as pessoas que

trabalham na escola sabem que haacute algo novo que emerge em sala de aula uma urgecircncia que

aparece com alguns alunos e para a qual natildeo se sentem aptas a contornar Entendem que isso

estaacute para aleacutem de suas possibilidades Firmam-se ao protocolar agravequilo que funcionava quando

foram alunos ao que lhes foi transmitido em suas formaccedilotildees docentes O que natildeo se organiza

dentro dessas arestas entendem que natildeo lhes pertence A responsabilidade eacute dos pais a

educaccedilatildeo vem do berccedilo dizem Ou entatildeo a crianccedila tem um problema eacute hiperativa logo a

responsabilidade eacute do meacutedico que iraacute atendecirc-la Mas apesar disso que pode ser nomeado de

hiperatividade apesar dessa coisa que escapa agrave educaccedilatildeo formal haacute um desejo de ensinar

imaginam uma situaccedilatildeo em que sentam ao lado do aluno e lhe datildeo uma atenccedilatildeo diferenciada

Esse gesto seria potente diante da indisciplina Por que natildeo encorajaacute-lo

A posiccedilatildeo da escola de armar bem suas arestas definir seus limites dizer qual seu papel

qual seu lugar eacute digno e responsaacutevel

A proponente da oficina descobriu que os participantes eram crianccedilas ndash um lugar

investido para aleacutem de um resto de uma merda Precisou reconhecer esse lugar para que a

218

oficina ganhasse uma forma criada e inventada em grupo que fez aparecer algo em comum as

coisas que natildeo aparecem quando satildeo alunos que natildeo satildeo vistas Seus afetos seus desejos a

atualizaccedilatildeo da transferecircncia

Na sala de aula poreacutem eles satildeo alunos Devem ser alunos Assim como as professoras

em sala de aula devem ser professoras Eacute esse o papel que pais e sociedade lhes exigem

Quantas coisas invisiacuteveis gostariam tambeacutem de tornar visiacuteveis em suas falas expressar de

alguma forma o que sentem Quem as escuta As professoras resistem A escola resiste com

suas folhinhas mimeografadas cheirando a aacutelcool

219

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Page 4: Desenlace e experiência educativa: o trágico e a medicalização

Nome THONES Ana Paula Bellochio

Tiacutetulo Desenlace e experiecircncia educativa o traacutegico e a medicalizaccedilatildeo

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Educaccedilatildeo

Banca examinadora

_____________________________________________________________

Dra Lucia Serrano Pereira ndash Associaccedilatildeo Psicanaliacutetica de Porto Alegre (APPOA)

_____________________________________________________________

Prof Dr Marcelo de Andrade Pereira ndash Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

______________________________________________________________

Prof Dr Gilberto Icle ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

_____________________________________________________________

Profa Dra Simone Zanon Moschen (orientadora) ndash Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (UFRGS)

Agrave Martina

vida que pulsa

AGRADECIMENTOS

A escrita de um trabalho de doutorado demanda periacuteodos solitaacuterios No entanto entendo

que o escrever se torna possiacutevel em decorrecircncia de momentos compartilhados com pessoas

acolhedoras com pessoas que instigam o pensamento que oferecem novas leituras de mundo

proporcionando agrave escrita movimentos importantes Gostaria de agradecer a algumas dessas

pessoas que estiveram comigo de algum modo durante o curso de doutorado

Ao meu amor Anderson por compreender os periacuteodos em que precisei me ausentar e

apoiar a realizaccedilatildeo deste sonho Pelo pensamento inquieto pelo coraccedilatildeo imenso

Agrave querida prima Fernanda por ter me acolhido em seu lar durante a estadia em Porto

Alegre pela companhia carinhosa pelas longas conversas

Agrave minha famiacutelia por ser a base Embora longe estatildeo sempre presentes

Agrave minha orientadora Simone pela acolhida ao curso e pelo convite inicial a me perder

A traccedilar um caminho para depois descobrir para onde aponta a buacutessola Agradeccedilo pela leitura

cuidadosa e sensiacutevel por ajudar a transformar minhas inquietaccedilotildees em questotildees de pesquisa

pelas perguntas e provocaccedilotildees que me desacomodaram e me ajudaram a encontrar um novo

tom de escrita

Agrave querida Anna Letiacutecia por inspirar delicadeza e criatividade pelo olhar atento e

cuidadoso pelo interesse sincero nas coisas e nas pessoas agrave Patriacutecia pela companhia calma e

agradaacutevel pela parceria afetuosa nas aulas de Educaccedilatildeo Terapecircutica agrave Tatianne pela amizade

de infacircncia apoacutes os 30 anos por apresentar autoras e livros fascinantes agrave Lia por sustentar ao

mesmo tempo ternura e um pensamento vivaz e criacutetico

Aos demais colegas que fazem e fizeram parte do grupo de orientaccedilatildeo agradeccedilo pelos

momentos de um escrever junto(s) Janniny Luiacutesa Pedro Sthefan Thiago Camila Luiacutes

Adriano Luiacutes Henrique Carmela e Daniel

Agraves ldquoamigas geniaisrdquo Helena Karla e mais uma vez Tati e Lia pela parceria no grupo

de leitura da obra de Elena Ferrante e pelo curso de extensatildeo que resultou desses encontros

Aos membros do Nuacutecleo de Pesquisa em Psicanaacutelise Educaccedilatildeo e Cultura (NUPPEC)

agradeccedilo pelos encontros inspiradores pela companhia em jornadas e viagens pela pergunta

sobre como viver junto(s) Agradeccedilo especialmente agrave Claacuteudia e agrave Elaine por serem educadoras

inteligentes e encantadoras agrave Liacutevia e agrave Sofia pela alegria e sensibilidade contagiantes e ao

Jeferson pela admiraacutevel dedicaccedilatildeo ao nuacutecleo de pesquisa pela revisatildeo cuidadosa deste

trabalho

Agradeccedilo ao Marcelo e agrave Luacutecia pelas preciosas contribuiccedilotildees na qualificaccedilatildeo do projeto

e por aceitarem o convite para compor a banca final Ao Gilberto por aceitar fazer parte da

banca de defesa Agrave Carla pela leitura e participaccedilatildeo da banca do projeto

Aos colegas professores e funcionaacuterios do PPGEdu

Agrave CAPES e

Aos professores e agraves professoras que me educaram

Haacute muitas maravilhas mas nenhuma

eacute tatildeo maravilhosa quanto o homem

[]

Soube aprender sozinho a usar a fala

e o pensamento mais veloz que o vento

e as leis que disciplinam as cidades

[]

ocorrem-lhe recursos para tudo

e nada o surpreende sem amparo

somente contra a morte clamaraacute

em vatildeo por um socorro embora saiba

fugir ateacute de males intrataacuteveis

(Coro em Antiacutegona de Soacutefocles)

Os poetas satildeo aliados valiosiacutessimos e seu testemunho deve ser levado

em alta conta pois conhecem muitas coisas entre o ceacuteu e a terra cuja

existecircncia nem sonha nossa sabedoria acadecircmica No conhecimento

da alma [Seele] estatildeo agrave nossa frente homens comuns pois se nutrem

em fontes que ainda natildeo tornamos acessiacuteveis agrave ciecircncia

(Sigmund Freud El delirio y los suentildeos en la Gradiva de W Jensen)

RESUMO

Este trabalho tem iniacutecio com uma narrativa que encena o encontro entre personagens implicadas

com o mal-estar que surge na escola oriundo de problemas de aprendizagem e comportamento

apresentados por uma crianccedila de seis anos O trabalho de pesquisa busca dar desdobramento

aos impasses eacuteticos indicados pela histoacuteria impasses que surgem no embate de personagens

que ocupam posiccedilotildees discursivas diferentes Constata-se que os processos de medicalizaccedilatildeo da

vida que adentram a cena escolar se apresentam como uma soluccedilatildeo possiacutevel oferecida pela

escola a crianccedilas diagnosticadas com TDAH Diante dessa constataccedilatildeo a tese avanccedila no sentido

de se perguntar quais as condiccedilotildees de autorizaccedilatildeo da escola no que se refere agraves dificuldades

com a escolarizaccedilatildeo desses alunos A leitura da situaccedilatildeo vivenciada na escola e na cliacutenica nos

remete aos modos de desenlace operados pelo traacutegico e agrave forma como eram apresentados pelas

trageacutedias claacutessicas ndash como ocorre em Eacutedipo Rei e Antiacutegona de Soacutefocles tomadas

respectivamente por Freud e Lacan ndash e como ao longo dos seacuteculos foram sendo substituiacutedos

por novas esteacuteticas teatrais causa e ao mesmo tempo consequecircncia de transformaccedilotildees

filosoacuteficas e poliacuteticas Como exemplo desse novo modelo temos as trageacutedias de Euriacutepides

autor considerado por Nietzsche como iacutecone da derrocada da arte traacutegica Dessa forma nossa

investigaccedilatildeo interroga o ponto de virada de um arranjo cecircnico para outro A passagem de um

enredo traacutegico no qual a insolubilidade do conflito organiza a trama para o ensinamento moral

como buacutessola dos desdobramentos do roteiro indica elementos que permitem pensar sobre o

que opera no apelo ao saber meacutedico feito pela escola A tese sustenta que podemos aprender

sobre a cena escolar com a anaacutelise da cena traacutegica onde ocorrem encontros e desencontros onde

se travam as relaccedilotildees que abrem ou natildeo espaccedilo ao exerciacutecio do desejo Sustenta-se que constitui

tarefa importante para a escola de nosso tempo para pais e matildees de alunos e para os

profissionais meacutedicos e psicoacutelogos que satildeo chamados a oferecer soluccedilotildees ter no horizonte de

seu fazer um trabalhar em conjunto reconhecendo os limites e alcances implicados na atuaccedilatildeo

de cada um em um jogo que em vez de excluir o outro convoca-o a falar a partir de seu lugar

de saber

Palavras-chave Cena escolar Medicalizaccedilatildeo Trageacutedia antiga Psicanaacutelise

ABSTRACT

Begining this work with a narrative that sets the meeting between characters involved in malaise

that arises at school through learning and behavioral problems presented by a 6 years old child

The research work seeks to unfold the ethical impasses indicated by history impasses that arise

in the clash of characters that occupy different discursive positions When we look at the

processes of medicalization of life that enter the school scene we understand that the appeal to

medical knowing and the consequent medication prescription of methylphenidate is a possible

solution offered by the school to children diagnosed with ADHD In view of this the thesis

advances in order to ask what are the conditions of authorization of the school regarding the

difficulties with the schooling of these students The reading of the situation experienced in the

school and in the clinic reminds us of the modes of denouement operated by the tragic and how

they were presented by classical tragedies - as in Sophocles Oedipus King and Antigone taken

respectively by Freud and Lacan- and how over the centuries it has been replaced by new

theatrical aesthetic cause and at the same time consequence of philosophical and political

transformations As an example of this new model we have the tragedies of Euripides author

considered by Nietzsche as icon of the collapse of tragic art In this way our investigation

questions the turning point of one scenic arrangement to another The transition from a tragic

plot in which the insolubility of the conflict organizes the story to a moral one as a compass

of the script unfolding indicates elements that allow to think about what operates in the appeal

to the medical knowing made by the school The thesis holds that we can learn about the school

scene by analyzing the tragic scene where encounters and mismatches occur where the relations

open or not to the exercise of desire It is argued that it is an important task for the school of

our time for parents and mothers of students and for the medical professionals and

psychologists who are called to offer solutions have in the horizon of their doing a work

together recognizing the limits and scopes implied in the agency of each one in a play that

instead of excluding the other summons it to speak from its place of knowing

Keywords School scene Medicalization Ancient tragedy Psychoanalysis

SUMAacuteRIO

PROacuteLOGO 12

INTRODUCcedilAtildeO 65

Os caminhos da pesquisa 69

1 A MEDICALIZACcedilAtildeO NA CENA EDUCATIVA E A CONSTITUICcedilAtildeO DO TDAH

72

11 MARGUERITE ou um recorte da histoacuteria da RITALINA 81

12 RITALINA e o consumo de metilfenidato por escolares 84

2 A TRAGEacuteDIA ANTIGA E A CONSTITUICcedilAtildeO DA PSICANAacuteLISE 91

21 A trilogia tebana de Soacutefocles Eacutedipo Rei e o inconsciente 92

22 Eacutedipo (e Antiacutegona) em Colono 93

221 O mito de fundaccedilatildeo de Tebas 96

222 O destino dos Labdaacutecidas 99

23 Antiacutegona heroiacutena traacutegica da eacutetica da psicanaacutelise 101

231 Aacutetē Omos Mecircrima 103

232 Desejo do Outro primordial e castraccedilatildeo 107

233 Antiacutegona ex nihilo e as leis natildeo escritas 111

234 A dimensatildeo do belo 117

235 A mulher Antiacutegona 122

3 O TRAacuteGICO 125

31 Noccedilotildees do traacutegico e da trageacutedia 125

311 O conflito insoluacutevel 125

312 Khocircra 128

313 A funccedilatildeo do logos 129

314 O estranho-familiar e a trageacutedia 131

32 A trageacutedia na Poeacutetica de Aristoacuteteles 136

33 A morte da trageacutedia 140

331 Apoliacutenio-dionisiacuteaco 141

332 Euriacutepides por Nietzsche 147

333 Deus ex machina euripidiano 153

4 EDUCAR E SEUS IMPASSES 163

41 A medicalizaccedilatildeo como deus ex machina na escola e seus efeitos 166

42 A falta como operadora da criaccedilatildeo 172

5 MEDEIA 175

51 ldquoAndarilha de incertas geografiasrdquo 175

52 Medeia de Euriacutepides 178

521 Hoacuterkos 180

522 Sopheacute 182

523 Aacutetē 185

524 Medeia ex machina como desenlace 187

525 Phaacutermakon e pharmakoacutes 191

526 Ananke 194

53 ldquoa raccedila fecircmea ignora como haurir algo elevado saacutebia quando edifica o horror do fadordquo

197

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 201

61 Natildeo definimos o lugar que ocupamos na relaccedilatildeo transferencial 203

62 O lobo do homem eacute o lobo no homem 204

63 A educaccedilatildeo agrave sombra da medicalizaccedilatildeo 205

64 Medicalizaccedilatildeo na escola e dever moral 205

65 Solucionar o problema eacute enunciaacute-lo 206

EPIacuteLOGO 209

REFEREcircNCIAS 219

12

PROacuteLOGO

Todo estudo sobre a infacircncia implica o adulto suas reaccedilotildees e preconceitos

(Mannoni 2003 p 30)

Gostariacuteamos de apresentar este estudo que envolve as dificuldades de aprendizagem de

uma crianccedila com essa consideraccedilatildeo inicial feita por Maud Mannoni em seu livro A crianccedila

sua doenccedila e os outros Para a psicanalista embora a ldquodoenccedilardquo falada pelos pais possa ser

localizada na pessoa da crianccedila afinal eacute o filho ou filha que porta os sintomas eacute pela fala dos

pais que a doenccedila se apresenta e nesse sentido eles ldquoos outrosrdquo estatildeo tambeacutem implicados no

mal-estar Mannoni fala que como adulto o psicanalista pode tambeacutem encontrar um limite na

escuta da mensagem que a crianccedila lhe transmite Dessa forma o tiacutetulo da referida obra inspira

o nome que podemos dar ao caso cliacutenico que seraacute contado

A ESCOLA sua PARCEIRA e outra crianccedila com TDAH

A histoacuteria que estaacute prestes a se desenrolar eacute tecida no encontro entre seis personagens

principais encontro no qual todas elas estatildeo implicadas no mal-estar que surge A narrativa

pode apresentaacute-las de acordo com seu papel social de acordo com sua funccedilatildeo para a histoacuteria

para que o caso se construa natildeo esquecendo tampouco o lugar a partir do qual a narramos

lugar que deslinda uma certa forma de contar e uma certa forma de resistir a contar Nesse

sentido escolhemos fazer da seguinte forma

A coordenadora pedagoacutegica da ESCOLA

A meacutedica (a PARCEIRA da escola)

A crianccedila com TDAH (aluno filho paciente)

A psicoacuteloga

A professora

A matildee

Incluiacutemos mais uma personagem Noacutes que estaacute fora de cena e assume o papel de falar

diretamente com o leitor Eacute uma posiccedilatildeo que busca fundar no jogo cecircnico um terceiro espaccedilo

13

Eacute importante tambeacutem situarmos o tempo

Deacutecada de 2010

A duraccedilatildeo da histoacuteria abrange um periacuteodo letivo em trecircs TEMPOS Outono Inverno e

Primavera

E o local

Cidade de Caxias do Sul ou outra no estado do Rio Grande do Sul

Neste instante deixamos a narrativa em primeira pessoa do plural para experimentar

contar a histoacuteria como um texto dramatuacutergico Entramos em cena

TEMPO 1

Outono

CENA 1

Casa da PSICOacuteLOGA Entardecer

O telefone toca Ela corre para atender

Pedagoga

Alocirc aqui quem fala eacute a coordenadora pedagoacutegica do primeiro ciclo da ESCOLA Tem

um aluno nosso do primeiro ano do ensino fundamental que estaacute em tratamento psicoloacutegico

contigo

Psicoacuteloga

Ah sim sei quem eacute Estaacute em atendimento desde agosto Em que posso ajudar

14

Pedagoga

Sim a matildee dele me disse Estou te ligando para falar que noacutes natildeo sabemos mais o que

fazer com ele porque natildeo para quieto natildeo presta atenccedilatildeo nas aulas natildeo estaacute seguindo o ritmo

de aprendizado da turma Desde a educaccedilatildeo infantil ele eacute assim e o mau comportamento soacute

piora

Psicoacuteloga (para si mesma)

Natildeo segue o ritmo de aprendizado Mas quanto ele deveria ter aprendido em poucas

semanas de aula

Noacutes

Eacute preciso considerar que a preocupaccedilatildeo da escola deve ser reconhecida afinal a

pedagoga estaacute dizendo que tais sintomas jaacute haviam sido observados no ano anterior

Pedagoga (continua)

Achamos que ele tem TDAH e precisa de um tratamento A matildee disse que ele jaacute estava

em acompanhamento psicoloacutegico contigo e noacutes sugerimos tambeacutem uma psiquiatra infantil que

eacute PARCEIRA DA ESCOLA

Psicoacuteloga

A meacutedica eacute parceira da escola

Pedagoga

Sim noacutes costumamos encaminhar nossas crianccedilas com TDAH para que ela faccedila uma

avaliaccedilatildeo

15

Psicoacuteloga

Estaacute certo Bom eu acredito que no momento o menino pode ficar apenas com o

atendimento psicoloacutegico jaacute que as aulas comeccedilaram haacute pouco e ele ainda estaacute passando por um

processo de adaptaccedilatildeo A mudanccedila da educaccedilatildeo infantil para o primeiro ano eacute bem marcante

na vida de uma crianccedila

Pedagoga

Claro Mas ele pode seguir os atendimentos contigo sim mas no caso de uma crianccedila

com TDAH quanto mais completo o atendimento quanto mais profissionais envolvidos

melhor Tem vaacuterias psicoacutelogas na cidade que trabalham em parceria com a psiquiatra

Noacutes

Seraacute a medicalizaccedilatildeo um caminho necessaacuterio A psicoacuteloga estaacute tatildeo segura de suas

intervenccedilotildees cliacutenicas de suas conversas com a matildee de entender as causas dos sintomas tatildeo

certa de sua abordagem cliacutenica a psicanaliacutetica Quanto agrave matildee ela tambeacutem estaacute preocupada

com o comportamento do filho pois a inquietaccedilatildeo e a dispersatildeo em sala de aula estatildeo

comeccedilando a aparecer cada vez mais em casa Sua maior preocupaccedilatildeo eacute a aprendizagem da

leitura e da escrita

Psicoacuteloga

Entendo Mas ainda que ele esteja demonstrando agitaccedilatildeo dispersatildeo isso natildeo quer dizer

que ele tenha um transtorno

Pedagoga

Entatildeo tu achas que ele natildeo eacute TDAH

16

Psicoacuteloga

Natildeo podemos afirmar isso soacute com esses dados do comportamento dele na escola

Existem outras coisas acontecendo com ele na famiacutelia na relaccedilatildeo com os pais que podem estar

ocasionando os sintomas

Pedagoga

Entatildeo noacutes vamos fazer o seguinte vou te pedir que me apresente um laudo pode ser

Um laudo bem completo bem fundamentado com revisatildeo do DSM com teste de inteligecircncia

Psicoacuteloga

Eu natildeo costumo trabalhar dessa forma com testes mas eu posso fazer uma avaliaccedilatildeo

psicoloacutegica

Pedagoga

Entatildeo eu posso indicar para a matildee umas psicoacutelogas aqui da cidade que fazem

Psicoacuteloga

Tudo bem Ele eacute meu paciente eu mesma faccedilo

Pedagoga

Eacute importante fazermos porque se ele natildeo for TDAH ele pode ser TOD entatildeo tem que

fazer um diagnoacutestico diferencial

Psicoacuteloga (para si mesma)

Toddy

17

Pedagoga

E tu podes me entregar quando Eu preciso o mais breve possiacutevel

Psicoacuteloga

Pode deixar vou fazer o quanto antes Preciso tambeacutem conversar com a professora para

ver o que ela acha Entro em contato para marcar a conversa

Pedagoga

Estaacute bem Fico no aguardo Vamos tentar resolver esse problema Tchau

Psicoacuteloga

Tchau

Ambas desligam o telefone A psicoacuteloga senta no sofaacute da sala

Psicoacuteloga (para si)

ldquoParceira da ESCOLArdquo uma psiquiatra Isso eacute muito estranho O que seraacute que ela faz

Diagnostica as crianccedilas mais agitadas com TDAH e daacute Ritalina Soacute pode ser isso Assustador

Imagina soacute se uma escola oferece como praacutetica pedagoacutegica o encaminhamento para um

tratamento psiquiaacutetrico tem alguma coisa errada com a ESCOLA Natildeo natildeo Isso natildeo eacute

possiacutevel Teste de inteligecircncia Toddy o que eacute isso Tenho muito trabalho pela frente

Noacutes

Ainda que se dedique a estudar o campo da Educaccedilatildeo a psicoacuteloga parece estar distante

dos saberes que circulam pela escola De que forma conseguiraacute escutaacute-los

18

CENA 2

Escritoacuterio da casa da psicoacuteloga Noite

Psicoacuteloga procura o DSM entre livros encaixotados

Psicoacuteloga (para si)

Por que a professora ou a coordenadora pedagoacutegica natildeo podem elas mesmas ajudar o

menino em seu processo de adaptaccedilatildeo ao ensino fundamental Existem tantas oficinas naquela

ESCOLA pra ele interagir com os colegas Eacute isso que estaacute acontecendo com ele natildeo eacute um

transtorno De resto se ele estaacute mais agitado e disperso como ela disse isso eacute fruto do lugar

que ocupa no desejo da matildee eu bem sei Bom vou escrever isso no laudo Ah achei

Finalmente

Noacutes

Muito se diz sobre o lugar que a crianccedila ocupa no desejo da matildee do investimento

narciacutesico da matildee em seu filho O menino tambeacutem vive com outra pessoa seu pai Por que natildeo

considerar tambeacutem o desejo do pai pelo filho

Psicoacuteloga abre o DSM

Psicoacuteloga

Eu achava que o trabalho da psiquiatra infantil poderia ser solicitado soacute em casos graves

como uma psicose infantil Vamos ver primeiro o TDAH Ah jaacute estaacute aqui logo no iniacutecio

ldquoTranstornos do neurodesenvolvimentordquo Vamos ver a paacutegina Aqui ldquoTranstorno de Deacuteficit

de AtenccedilatildeoHiperatividaderdquo

Psicoacuteloga lecirc os criteacuterios diagnoacutesticos e marca aquilo que mais lhe chama atenccedilatildeo

19

20

Psicoacuteloga (pensa em voz alta)

Bom pelo que conversei com a matildee dele e pelo que consigo observar na cliacutenica ele se

enquadra no subtipo hiperativoimpulsivo Ele contempla todos os criteacuterios a b c d e Mas

os sintomas estatildeo presentes nos uacuteltimos seis meses Acredito que natildeo Para o manual para

fechar o diagnoacutestico basta que a crianccedila tenha no miacutenimo 6 anos Ele acabou de fazer

aniversaacuterio posso escrever isso no laudo Realmente para esse manual o menino se enquadra

no TDAH Isso eacute inegaacutevel e indiscutiacutevel Aqui soacute existem verdades natildeo haacute discussatildeo Quem

sou eu para questionar Dos nove ldquosintomasrdquo tem que preencher no miacutenimo seis Um tatildeo

parecido com o outro Um sinal acaba levando a outro Que coisa olha soacute o sintoma ldquoerdquo acaba

levando ao sintoma ldquoardquo e ao sintoma ldquobrdquo Fazem parte do mesmo comportamento ora Por

que aparecem aqui como eventos diferentes Como uma crianccedila que se sente desconfortaacutevel

em ficar parada natildeo se mexeria na cadeira e nem se levantaria

Noacutes

Haacute sim crianccedilas que se sentem desconfortaacuteveis ao ficarem paradas e nem por isso se

movem No entanto elas acabam aprendendo a controlar seus corpos Haacute seacuteculos as classes

escolares satildeo iacutempares no exerciacutecio dessa habilidade mas nem sempre bem-sucedidas

Psicoacuteloga

Tem outra coisa muito curiosa aqui na descriccedilatildeo dos sintomas haacute uma referecircncia

constante a um outro No sintoma ldquobrdquo ldquose espera que permaneccedila sentadordquo Quem espera No

ldquoerdquo ldquooutros podem ver o indiviacuteduo como inquietordquo No ldquofrdquo ldquotermina a frase dos outrosrdquo Quem

satildeo os outros Incapaz de brincar calmamente Para quem Fala demais Para quem

ldquoInterromperdquo ldquose intrometerdquo o que quem Quem determina essa medida A famiacutelia A

ESCOLA A meacutedica Como esses outros ocupam o lugar de Outro para a crianccedila

21

CENA 3

Cliacutenica de psicoterapia Manhatilde

Psicoacuteloga e matildee conversam

Psicoacuteloga

A coordenadora pedagoacutegica da ESCOLA ligou esta semana para falar do teu filho

Matildee

Sim ela me avisou que ligaria que bom Estatildeo achando que ele eacute TDAH porque ele

anda muito inquieto na sala natildeo quer ficar sentado anda pelos corredores Lembra que eu jaacute

tinha comentado contigo que eu tambeacutem estava achando Aiacute querem uma ajuda com ele

falaram de uma psiquiatra tambeacutem mas eu disse que ele jaacute estava em acompanhamento contigo

por causa daqueles probleminhas de baixa autoestima dele

Psicoacuteloga

Eu queria falar contigo sobre um pedido que ela fez Ela sugeriu que eu faccedila um laudo

para avaliar se ele tem TDAH O que tu achas disso

Matildee

Pois eacute eu tambeacutem estou achando que ele tem alguma coisa pode ser hiperatividade

mesmo Ele estaacute realmente muito agitado principalmente quando chega em casa da escola ele

fica pulando sobe no sofaacute Eu queria que ele fizesse as tarefas mas ele natildeo faz natildeo se

concentra Eu fico com medo que ele natildeo aprenda ler e escrever

Psicoacuteloga

E tu tens observado isso desde quando Como ele estava na eacutepoca das feacuterias

22

Matildee

Natildeo durante as feacuterias ele estava bem fomos para a praia ele aproveitou bastante e aqui

na cidade ele dormia toda a manhatilde agrave tarde brincava sozinho ou com os primos Acho que ele

estaacute entrando num outro ritmo agora neacute Mas jaacute devia ter se adaptado foi o que disseram na

escola

Psicoacuteloga

Estaacute certo Entatildeo eu vou fazer um laudo conforme a coordenadora me pediu a partir das

sessotildees que jaacute tive com ele a partir das nossas conversas considerando a nova rotina dele a

idade e vou conversar com a professora dele na escola e fazer tambeacutem um teste psicoloacutegico

muito simples que consiste num desenho Antes de ficar pronto eu te digo o que escrevi e

entrego para a escola Pode ser

Matildee

Claro estaacute oacutetimo jaacute vou dizer pra ele fazer um desenho bem bonito

Psicoacuteloga

Vou tentar providenciar para semana que vem Vou te pedir agora para falar um pouco

do dia a dia dele como tem sido desde a volta das feacuterias como vocecircs se organizam como estatildeo

os horaacuterios

CENA 4

ESCOLA Periacuteodo da tarde

Na sala da coordenaccedilatildeo a psicoacuteloga aguarda a professora junto com a coordenadora

pedagoacutegica

23

Pedagoga

A professora soacute estaacute aguardando a supervisora ficar cuidando a turma para poder vir

falar contigo

Psicoacuteloga

Claro eu aguardo Preciso conversar com ela para ver o que estaacute acontecendo na sala

isso tambeacutem eacute importante para constar no laudo

Pedagoga

Sim eacute importante Mas as coisas natildeo se modificaram muito desde que eu te liguei ateacute

pioraram Ele teve uma crise esta semana

Psicoacuteloga

Uma crise

Pedagoga

Eu fiquei triste de ver porque ele estaacute sofrendo e a gente natildeo sabe o que fazer Ele queria

ir para casa gritou e chorou muito no corredor Entatildeo eu telefonei para a matildee dele vir buscar

ela veio e soacute assim ele se acalmou

Psicoacuteloga

Vou perguntar para ela depois como ele ficou Mas o que seraacute que aconteceu soube de

alguma coisa

Pedagoga

24

Ele natildeo consegue mais ficar na sala eacute muito hiperativo ele se levanta da cadeira pega

o material de algum colega conversa com outro a professora chama atenccedilatildeo pede para ele

parar quieto ele natildeo para ameaccedila tiraacute-lo da sala e acaba realmente encaminhando para caacute Isso

tem se repetido todos os dias

Noacutes

Ambos professora e aluno sabem de antematildeo o destino de uma cena que se repete todos

os dias a exclusatildeo da sala de aula Mas na repeticcedilatildeo haveria aposta em um resultado novo

Pedagoga

Ele vem ateacute aqui ficar comigo e aqui eu estou conseguindo ajeitar (A pedagoga sorri)

Enquanto eu trabalho ele faz uns desenhos faz a atividade da aula ele eacute um amor de crianccedila

muito cativante

Psicoacuteloga

Sim eacute uma crianccedila muito querida

Noacutes

Eacute acima de tudo ele eacute uma crianccedila todas sabemos disso Sabemos tambeacutem que tem um

dever a cumprir que eacute ser aluno A questatildeo que fica aqui eacute o que faz ele parar e trabalhar na

sala da coordenaccedilatildeo

Pedagoga

Mas natildeo podemos tornar isso um haacutebito Ontem eu natildeo estava na coordenaccedilatildeo quando

a professora tirou ele da sala ele natildeo quis retornar e aiacute teve a crise Noacutes estamos lidando assim

com ele por enquanto mas natildeo podemos seguir por muito tempo

25

Psicoacuteloga

Que bom que vocecircs encontraram uma forma e que ele faz atividades aqui contigo mas

entendo natildeo daacute pra seguir por muito tempo ele tem que se adaptar agrave sala

Pedagoga

Tu achas que eacute soacute uma questatildeo de adaptaccedilatildeo

Psicoacuteloga

Eu acho que essa eacute uma questatildeo importante sim mas estou fazendo o laudo Agora vou

tentar ver com a professora alguma alternativa

Professora entra na sala

Psicoacuteloga

Olaacute tudo bem professora

Professora

Tudo bem natildeo posso demorar (Para a pedagoga) Deixei uma atividade com eles a

supervisora ficou laacute mas daqui a pouco podem se dispersar

Pedagoga

Pode sentar aqui Essa aqui eacute a psicoacuteloga que veio falar da hiperatividade do teu aluno

Psicoacuteloga (para a pedagoga)

26

Eu gostaria de conversar a soacutes com a professora pode ser

Noacutes

Buscando a cumplicidade da professora a psicoacuteloga deixa de escutar a pedagoga

Conseguiria recuperar sua confianccedila

Pedagoga

Pode ser (Para a professora) Aqui estaacute o protocolo da reuniatildeo Vou ficar aqui ao lado

qualquer coisa pode me chamar

Psicoacuteloga (para a pedagoga)

Obrigada

Pedagoga sai

Professora

Noacutes temos que preencher essa folha aqui com o motivo da reuniatildeo o que foi tratado e o

encaminhamento mas eu vou fazendo ligeirinho enquanto a gente conversa

Psicoacuteloga

Certo Eu queria que tu me falasses sobre o teu aluno Como eacute ser professora dele

Professora

Olha eu vou ser bem sincera contigo Estaacute muito difiacutecil ele eacute muito hiperativo e isso

natildeo eacute de agora Ano passado ele jaacute era bastante agitado dava muito trabalho na educaccedilatildeo

infantil era agressivo com os colegas e agora no primeiro ano natildeo mudou muito Ele natildeo

27

consegue ficar quieto e eu falo para ele ficar sentado e ele natildeo fica (Fica nervosa suas matildeos

tremem) Quando eu viro para o quadro para escrever ele apronta alguma coisa mexe com

algum colega pega o material de algueacutem e diz que natildeo foi ele

Psicoacuteloga

E como satildeo as outras crianccedilas satildeo quietas

Professora

Na sala tem de tudo tem os mais quietinhos tem os mais agitados mas ele eacute diferente

ele me tira do seacuterio fica me desafiando quanto mais eu falo mais ele incomoda Estou cansada

saio daqui com dor de cabeccedila

Psicoacuteloga

E o que faz com que ele seja diferente dos outros para ti

Professora

Ele quer chamar atenccedilatildeo uma atenccedilatildeo que ele tem em casa com a matildee que tem contigo

no consultoacuterio que tem aqui com a coordenadora pedagoacutegica mas que eu natildeo posso dar afinal

tenho vinte alunos em sala

Psicoacuteloga

Sim eu entendo natildeo eacute faacutecil Deve ser muito cansativo Eu acho que ele gosta de ti jaacute

falou da professora pra mim das coisas que aprende contigo

Professora

Eu tambeacutem gosto dele Agraves vezes ele eacute carinhoso mas eacute quando ele quer natildeo eacute sempre

28

Psicoacuteloga

Nesses momentos em que ele eacute carinhoso isso eacute dito para ele de alguma forma Como

ele eacute um menino que estaacute com dificuldade de se adaptar ao ambiente escolar seria interessante

que ele tivesse alguns sinais de que as coisas estatildeo funcionando quando tu achar que estatildeo

Porque senatildeo sabe o que acontece Ele acha que estaacute sempre agindo errado e que natildeo vai

conseguir nunca se adequar agraves regras da escola

Professora

Eu tento fazer isso mas como satildeo muitos natildeo consigo dar uma atenccedilatildeo para cada um

Acredito que contigo com a matildee dele com a famiacutelia ele deve ser um amor de crianccedila sempre

porque vocecircs tecircm soacute uma crianccedila de cada vez mas comigo natildeo daacute certo comigo as coisas

funcionam de outro jeito

Psicoacuteloga

Qual jeito

Professora

Na minha aula ele tem que me obedecer respeitar as regras e isso natildeo estaacute acontecendo

Se ele natildeo obedece ele natildeo pode ficar na sala

Noacutes

E se ele natildeo fica na sala ele natildeo se educa No entanto ele soacute pode finalmente ldquoobedecerrdquo

ndash tomar para si coacutedigos de conduta presentes no ambiente ndash se for educado Entatildeo como saiacutemos

disso

Professora

29

Essa semana ele teve uma crise de choro Gritou pelos corredores todo mundo viu Eu

acho que ele estaacute muito imaturo para estar no primeiro ano Mas agora natildeo tem mais como

voltar atraacutes

Psicoacuteloga

O que noacutes podemos fazer para mudar a situaccedilatildeo entatildeo

Professora

Olha eu acho que ele vai seguir em acompanhamento contigo natildeo eacute Ele foi

encaminhado para a meacutedica tambeacutem por causa da hiperatividade

Psicoacuteloga

Pelo que entendi ele estaacute com um problema de socializaccedilatildeo ele natildeo estaacute conseguindo

seguir a rotina da escola pode ser por ser imaturo ainda ele eacute um dos mais jovens da turma

neacute Entatildeo noacutes podiacuteamos tentar ajudaacute-lo com isso a fazer um amigo pedir para ele ajudar em

alguma tarefa na sala de aula o que tu acha

Professora

Eu acho que pode ser eu vou escrever isso na folha como o que ficou combinado

Psicoacuteloga

Certo eu vou falar tambeacutem com os pais dele e com ele sobre isso Obrigada pela

conversa

Professora retorna agrave sala de aula

Pedagoga entra

30

Pedagoga

Foi tudo bem Conseguiram resolver alguma coisa

Psicoacuteloga

Sim noacutes conversamos sobre como ajudaacute-lo a se adaptar agrave escola estimular uma

atividade com um coleguinha fazer com que ele goste daqui

Pedagoga lecirc o protocolo

Pedagoga

Certo Eu conversei com a matildee dele e noacutes tomamos uma decisatildeo fazer uma readaptaccedilatildeo

curricular Ele fica na escola ateacute o horaacuterio do recreio porque no iniacutecio ele costuma estar mais

calmo mas depois do intervalo ele acaba transtornando

Psicoacuteloga

Ele natildeo vai assistir agraves aulas

Pedagoga

Eacute uma decisatildeo temporaacuteria Ele leva as atividades para casa e faz com a matildee Isso jaacute estaacute

acontecendo mas eu natildeo posso ficar cuidando dele Ele tem que entender que se ele natildeo ficar

na sala de aula natildeo vai poder ficar aqui comigo

Psicoacuteloga

Estaacute certo acho que eacute uma medida necessaacuteria para o momento Eu trago o laudo

semana que vem

31

CENA 5

Cliacutenica de psicologia Manhatilde

A psicoacuteloga apresenta o laudo psicoloacutegico agrave matildee

Psicoacuteloga

Inicialmente escrevi algumas caracteriacutesticas que observei na cliacutenica sobre ele ser uma

crianccedila ativa ao mesmo tempo observadora e criacutetica Escrevi sobre o fato de ele perceber que

seu atual modo de ser e de agir natildeo eacute bem aceito nos lugares que frequenta casa e escola

principalmente pois escuta queixas acerca de seu comportamento Ele sente que natildeo existe

outro jeito possiacutevel de ser e experimenta anguacutestia Escrevi que isso aparecia em forma de medo

de monstro de zumbi de ladratildeo e medo de morrer como ocorria com frequecircncia no ano

passado e que agora percebo que ele luta contra essa anguacutestia ao adotar um comportamento

agitado com o qual parece desafiar a professora

Bom tambeacutem escrevi sobre a hipoacutetese diagnoacutestica de TDAH levantada pela escola

Entendo que se tomarmos o DSM como base ele poderia ser classificado com TDAH de

subtipo hiperativoimpulsivo Eacute possiacutevel que haja discordacircncia em reconhecer um ou outro

sintoma dos criteacuterios pois as respostas da famiacutelia e da escola satildeo subjetivas e dizem respeito agraves

atividades que costumamos realizar com o menino e a forma de apresentaccedilatildeo dos sintomas

varia bastante levando em consideraccedilatildeo com quem ele interage e o que ele faz em cada

situaccedilatildeo Sobre o TDAH o DSM identifica reuacutene e descreve os sintomas do transtorno poreacutem

natildeo aponta o que o causa Como modificadores do curso ou seja prognoacutestico o DSM aponta

que padrotildees de interaccedilatildeo familiar podem natildeo causar o TDAH mas podem influenciar o curso

do transtorno Achei interessante essa parte pois significa que as relaccedilotildees na famiacutelia podem

constituir tanto uma resoluccedilatildeo para o transtorno quanto um agravamento Isso quer dizer que

haacute uma saiacuteda Com a ajuda da famiacutelia a crianccedila que hoje eacute considerada TDAH pode com o

tempo natildeo ser mais

32

Aleacutem disso escrevo tambeacutem sobre o diagnoacutestico infantil Eacute preciso levar em

consideraccedilatildeo que a constituiccedilatildeo psiacutequica estaacute curso e aponta tendecircncias para muitas direccedilotildees

Eacute preciso ter muita responsabilidade sobre os atos educativos dirigidos agrave crianccedila pois eles

provocam efeitos em sua formaccedilatildeo Dito isso faccedilo alguns encaminhamentos Recomendo que

seja incluiacutedo em um grupo de atividades extraclasse oferecido pela escola em que possa

conviver com seus colegas de uma outra forma buscando um novo lugar e um novo olhar das

pessoas Eu soube que a escola oferece oficinas de teatro acho que eacute uma boa alternativa Sugiro

tambeacutem passeios pela cidade com algum colega da turma convidar colegas para visitaacute-lo em

casa Conversei tambeacutem com a professora sobre estar atenta a boas iniciativas de seu aluno em

sala de aula e valorizaacute-las Por uacuteltimo recomendo a ti e a teu marido que levem o filho

regularmente a outros ambientes sociais aleacutem da escola buscando lugares em que o menino

possa ver ou entrar em contato com crianccedilas de sua idade Indico a continuidade da psicoterapia

incentivando a criatividade e formas alternativas de lidar com a anguacutestia

Satildeo estes os pontos mais importantes da avaliaccedilatildeo que fiz Quanto ao teste de

inteligecircncia que realizei com ele o desenho da figura humana o resultado apontado pela

interpretaccedilatildeo do teste eacute que ele tem uma inteligecircncia acima da meacutedia para a idade

Matildee

Eu fico muito orgulhosa do meu filho Eu vejo o quanto ele eacute inteligente tem um

raciociacutenio raacutepido eacute muito curioso parece que natildeo estaacute prestando atenccedilatildeo no que a gente diz

mas na verdade estaacute escutando tudo

Psicoacuteloga

Eacute verdade por mais que ele natildeo olhe estaacute sempre muito atento Bom sobre o laudo

tens alguma colocaccedilatildeo a fazer Alguma duacutevida Tenho uma coacutepia para ti e para o pai e hoje agrave

tarde vou levar agrave escola

33

Matildee

Estaacute certo Ele vai seguir aqui contigo sim eacute um espaccedilo em que ele se diverte

conversa e vou convidar um amiguinho dele para ir laacute em casa vamos combinar alguns

passeios juntos soacute ainda natildeo acho uma boa ideia sair para jantar ele natildeo sabe se comportar nos

restaurantes e eu fico com vergonha

Psicoacuteloga

Vamos experimentando aos poucos

Matildee

Eu posso fazer uma coacutepia para entregar para a psiquiatra Eu tenho que te contar como

meu filho natildeo estava muito bem a escola o encaminhou para a psiquiatra quanto mais

profissionais envolvidos melhor Fui conversar com ela semana passada

Psicoacuteloga (se contorce na cadeira)

Pode entregar para ela sim E como foi a consulta

Matildee

Eu falei para ela que ele estava em acompanhamento contigo ela ainda vai entrar em

contato Eacute como tu escreveu no laudo ele tem TDAH e ela disse que no caso dele precisa tomar

Ritalina Noacutes ficamos bem preocupados com a notiacutecia mas aliviados ao mesmo tempo porque

tem tratamento Hoje agrave tarde ele natildeo vai agrave escola e vai fazer uns exames para iniciar o

tratamento

34

Psicoacuteloga (inspira e expira)

Escrevi sobre o TDAH a pedido da escola mas eu acho que ele estaacute agitado em funccedilatildeo

da relaccedilatildeo dele com a professora e com os colegas em funccedilatildeo das diferenccedilas que tem entre a

casa e a escola Ele tem 6 anos estaacute amadurecendo ainda

Matildee

Sim ela falou tudo isso tambeacutem mas com 6 anos jaacute daacute para fazer o diagnoacutestico Ano

passado ele era muito novo ainda

Psicoacuteloga

E como foi o diagnoacutestico

Matildee

Ela conversou comigo e com o pai entregou um teste com umas perguntas para a escola

e para noacutes dois Eu vou pedir um para ti responder tambeacutem O resultado eacute que ele eacute TDAH dos

dois tipos desatento e hiperativo um caso claacutessico Ela tambeacutem avaliou um desenho que ele

fez Ela deu um livrinho para ele de um menino que tem TDAH que explica numa linguagem

acessiacutevel para crianccedilas sobre o problema dele

Psicoacuteloga

E ele jaacute leu

Matildee

Jaacute no mesmo dia Eacute bom para ele ir tentando entender o que ele tem porque eu vejo

que ele anda muito ansioso Para isso o remeacutedio vai ser bom

35

Psicoacuteloga

E o que tu achas do remeacutedio

Matildee

Olha eu natildeo queria mas ela me explicou que natildeo tem problema que o efeito eacute soacute por

umas horinhas soacute para ele se manter calmo enquanto estiver na sala de aula E tu o que acha

do remeacutedio

Psicoacuteloga

Ele vai fazer os exames ainda neacute Eu vou ser sincera contigo Fico preocupada com

a possibilidade da entrada do remeacutedio agora porque o uso do medicamento favorece a tese de

que ele eacute o problema e ele deve se curar quando a questatildeo dele natildeo eacute um problema individual

Esse eacute meu parecer No entanto satildeo vocecircs como pais que vatildeo escolher O que podem fazer eacute

expor para a meacutedica as duacutevidas de vocecircs perguntar para ela sobre os efeitos colaterais por

quanto tempo ele vai precisar tomar como os efeitos da medicaccedilatildeo vatildeo de fato ajudaacute-lo

Tambeacutem natildeo precisam decidir nada imediatamente eacute bom pensar bem

Noacutes

As duacutevidas cogitadas da psicoacuteloga agrave matildee natildeo seriam duacutevidas da psicoacuteloga agrave meacutedica

Matildee

Eacute eu ateacute li uns artigos na internet falando que o remeacutedio pode viciar quanto mais a

crianccedila toma mais ela vai precisar O pai dele natildeo estaacute bem seguro ainda Tu acha que ele tem

que seguir soacute com a terapia e com as recomendaccedilotildees que tu sugeriu

Psicoacuteloga

36

Eu dei minhas sugestotildees de acordo com os atendimentos do que conheccedilo da histoacuteria de

vida das conversas que tive com a pedagoga e com a professora Natildeo cabe a mim falar sobre a

medicaccedilatildeo porque sou psicoacuteloga Mas eu acho que se vocecircs natildeo estatildeo bem seguros eacute bom

pensar e conversar melhor com a meacutedica

Matildee

Eu vou conversar melhor com ela sim Mas eu natildeo sei o que faccedilo se meu filho natildeo

tomar o remeacutedio natildeo vatildeo mais aceitaacute-lo na escola

Noacutes

Seraacute mesmo que a condiccedilatildeo de permanecircncia na escola para que esta possa acolher as

crianccedilas eacute o apagamento dos sintomas efeito possiacutevel do metilfenidato

Psicoacuteloga (consternada)

Se teu filho natildeo tomar remeacutedio natildeo vatildeo mais aceitaacute-lo na escola A escola natildeo pode

obrigaacute-los a tomar essa decisatildeo Tu sentes que a escola quer impor isso como condiccedilatildeo de

permanecircncia do menino

Matildee

Eacute de certa forma estou me sentindo levada a isso sim Mas tu estaacute certa sei que tu

quer o bem do meu filho e acho que o melhor a fazer neste momento eacute pensar antes de tomar

uma decisatildeo Vou falar com a meacutedica de novo

Noacutes

A matildee consegue dizer algo da posiccedilatildeo que a psicoacuteloga ocupa ndash ela quer o bem de seu

paciente Como a psicoacuteloga orientada por uma formaccedilatildeo psicanaliacutetica eacute capturada pelo engodo

de querer o bem da crianccedila De que lugar ela escuta a demanda que lhe eacute dirigida que envolve

37

um mal-estar na escola Ficar capturada nessa ideia de querer o bem pode produzir um ruiacutedo

importante Onde se situa o limite de sua escuta

Fim do tempo 1

TEMPO 2

Inverno

CENA 1

Casa da psicoacuteloga Noite

O telefone toca Eacute a PARCEIRA da ESCOLA

Meacutedica

Boa noite Estou ligando para saber da disfunccedilatildeo

Psicoacuteloga

Boa noite Que disfunccedilatildeo

Meacutedica

Da disfunccedilatildeo do nosso paciente

A psicoacuteloga comeccedila a circular pela casa

38

Psicoacuteloga

Ele estaacute melhorando aos poucos Estaacute frequentando a oficina de teatro da escola fui

ateacute laacute para assisti-lo parece estar gostando Estaacute indo bem na nova turma a nova professora

estaacute conseguindo lidar bem com ele na sala de aula Essa foi uma boa decisatildeo da escola e da

matildee de trocaacute-lo de turma Estaacute aprendendo a ler e escrever

Meacutedica

Escutei algumas queixas da coordenaccedilatildeo da escola quanto ao comportamento dele Noacutes

tiacutenhamos combinado que eu entraria em contato contigo em trecircs meses para rever a questatildeo da

medicaccedilatildeo

Psicoacuteloga

Acho que combinamos seis meses foi o tempo que sugeri para surtir alguma mudanccedila

com a psicoterapia

Noacutes

O que quis a psicoacuteloga ao estipular um prazo para atenuaccedilatildeo dos sintomas Afastar a

meacutedica por seis meses Ou entatildeo estaria capturada pela medida proposta em manuais

psiquiaacutetricos em que encontramos com frequecircncia a enumeraccedilatildeo de um miacutenimo de seis

sintomas por um periacuteodo miacutenimo de seis meses

Meacutedica (suspira)

Natildeo noacutes conversamos sobre trecircs meses A coordenadora me falou que essa semana ele

teve uma crise de ansiedade na escola tu ficaste sabendo

Psicoacuteloga

Natildeo ningueacutem comentou nada comigo O que aconteceu

39

Meacutedica

Ele natildeo estaacute conseguindo lidar sozinho com a hiperatividade dele Soacute a psicoterapia natildeo

ajuda Pelo que vi do caso dele eacute um claacutessico TDAH eacute desatento e hiperativo Tentei falar com

a matildee mas ela natildeo retornou queria ver se noacutes poderiacuteamos marcar um encontro juntas para eu

explicar sobre a medicaccedilatildeo

Psicoacuteloga

Podemos marcar sim Soacute natildeo entendo qual seria o motivo da Ritalina sendo que ele

estaacute melhorando na escola Eu vou tentar me informar sobre essa crise que ele teve Mas na

cliacutenica os sintomas de dispersatildeo e hiperatividade que ele apresentava estatildeo muito mais brandos

Talvez poderias fazer uma reavaliaccedilatildeo

Meacutedica

Ele tem TDAH por conta disso as crises seratildeo recorrentes Mesmo que a psicologia e a

escola faccedilam o seu papel de ajudaacute-lo ele vai seguir tendo o problema natildeo vai resolver a

disfunccedilatildeo Sabe qual o prognoacutestico desses casos Sem a medicaccedilatildeo como ele estaacute agora pode

se tornar um jovem inconsequente violento e ldquodrogaditordquo Se ele comeccedilar a tomar a Ritalina

vai ficar quieto calmo os colegas vatildeo finalmente gostar dele se aproximariam para brincar

natildeo vatildeo ter medo

Psicoacuteloga

Eu aposto no seu proacuteprio potencial de se fazer gostar com seu proacuteprio jeito de ser ele

jaacute estaacute conseguindo com a colaboraccedilatildeo da escola e da famiacutelia

40

Meacutedica

Tua especialidade eacute a psicanaacutelise neacute Eu soacute acho que com a psicanaacutelise as coisas satildeo

muito demoradas Ele eacute um caso de urgecircncia estaacute sofrendo muito

Psicoacuteloga

Eu aguardo teu contato para marcarmos uma conversa com a matildee

Meacutedica

Olha se tu puderes agendar para mim eu agradeccedilo

Psicoacuteloga

Eu vou perguntar para a matildee o que ela acha se ela quiser agendar contigo eu compareccedilo

ao encontro eacute o que posso fazer

Meacutedica (suspira)

Eu lavo as minhas matildeos

Noacutes

O que faz a meacutedica suspirar A psicoacuteloga escuta seu suspiro

CENA 2

Escola Periacuteodo da tarde

Pedagoga e psicoacuteloga conversam

41

Pedagoga

A meacutedica gostou muito do laudo que tu fizeste Ela concorda com tudo Eu tambeacutem Jaacute

dei para a nova professora ler tambeacutem para ela ficar a par da situaccedilatildeo Tu concordas que ele

tem TDAH neacute Agora que jaacute se passaram uns meses natildeo seria o caso de dar uma medicaccedilatildeo

para nos ajudar a lidar com ele

Psicoacuteloga

Eu natildeo decido sobre a medicaccedilatildeo isso compete aos pais com a psiquiatra Eu soacute acho

que ele estaacute conseguindo lidar com a anguacutestia de outras formas eu natildeo tenho relacionado mais

o caso dele com os sintomas do TDAH

Pedagoga

Mas aqui na escola ele segue hiperativo e cada vez mais desatento pelo que tenho

falado com a professora

Psicoacuteloga

Ela tem conseguido ficar com ele na sala natildeo eacute Isso eacute muito importante Ele estaacute com

um bom pertencimento agrave turma Ele me conta dos colegas que satildeo amigos dele

Pedagoga

Sim eu tenho percebido Quando ele natildeo quer colaborar ela fala que a turma natildeo gosta

desse tipo de comportamento que gosta de outro que ele sabe qual eacute Ela tem jeito com ele

isso eacute bom O problema eacute que agraves vezes ele passa mal tem uma crise de ansiedade diz que tem

medo de morrer isso eacute sinal de que as coisas natildeo estatildeo bem resolvidas ainda Por isso eu entrei

em contato com a meacutedica de novo para ver a questatildeo da Ritalina para ele se sentir mais calmo

Psicoacuteloga

42

Estou trabalhando a questatildeo dos medos na cliacutenica ele estaacute conseguindo elaborar com

livros faz-de-conta piadas Soacute natildeo entendo a relaccedilatildeo disso com a medicaccedilatildeo

Pedagoga

Tu eacutes contra neacute Olha aqui na escola noacutes temos em torno de cinquenta alunos

matriculados que tecircm diagnoacutestico de TDAH Temos alguns diagnosticados com TOD no

ensino fundamental e no ensino meacutedio alunos que jaacute foram TDAH mas conseguiram evoluir

graccedilas agrave medicaccedilatildeo A grande maioria dos TDAH toma medicaccedilatildeo e o desempenho melhora

muito depois disso Por experiecircncia sei o sofrimento que passam os natildeo medicados Muitas

vezes o problema evolui para transtornos mais graves a medicaccedilatildeo pode ser uma saiacuteda para

evitar problemas futuros

Psicoacuteloga

Natildeo eacute que eu seja contra soacute acho que ele estaacute tendo mudanccedilas significativas com a ajuda

da famiacutelia e com a terapia A troca de turma por sugestatildeo tua foi uma boa alternativa A forma

como eu costumo trabalhar vai numa via diferente dessa do diagnoacutestico de TDAH como se ele

fosse soacute mais uma crianccedila entre as cinquenta que tecircm esse diagnoacutestico e precisa tomar

medicaccedilatildeo Eu gosto de olhar a singularidade do caso Acho que aqui na escola vocecircs acolheram

bem essa forma buscando alternativas singulares para ele As mudanccedilas ocorrem aos poucos

Pedagoga

Sem duacutevida daacute para ver diferenccedila Mas soacute ele tem um tratamento especial aqui na

escola noacutes eacute que temos que entender a dificuldade dele com os limites como a toleracircncia agrave

frustraccedilatildeo mas ele natildeo se dobra Ele natildeo estaacute vindo nas atividades do teatro A matildee dele disse

que eacute o frio

43

Psicoacuteloga

Estaacute certo Vou falar com ela

Pedagoga

Bom e em funccedilatildeo da inteligecircncia dele acima da meacutedia noacutes sugerimos que ele entrasse

no grupo do xadrez a matildee o trouxe um dia para a aula mas ele natildeo quis ficar natildeo teve muita

paciecircncia para aprender

Psicoacuteloga

Interessante Existem outras formas para ele poder desenvolver a inteligecircncia Talvez

seja muito jovem para o xadrez quem sabe daqui a uns anos vamos ver o que ele acha

CENA 3

Cliacutenica de psicologia Tarde

Psicoacuteloga lecirc alguns registros das sessotildees com seu paciente

ldquoele perguntou para a funcionaacuteria da limpeza o que era TDAHrdquo

ldquoo menino diz vou ter que tomar remeacutedio para cabeccedila porque sou malucordquo

ldquoo menino diz eu natildeo sei o que eacute me comportar soacute sei o que eacute natildeo me comportar Todo

mundo diz que eu natildeo me comporto [] se comportar eacute nada Eacute natildeo fazer nadardquo

ldquoObservaccedilotildees Preciso frisar a importacircncia destas questotildees trazidas pelo meu paciente

na medida em que acredito que ele estava tomando um pouco para si a preocupaccedilatildeo do que os

adultos fariam com ele saindo de uma posiccedilatildeo unicamente objetal para uma posiccedilatildeo ativa de

quem pode fazer alguma coisa por si Dei algumas dicas das coisas que pensava que esperavam

dele na escola como cuidar das suas coisas copiar do quadro fazer as tarefas com calma e que

ele poderia perguntar tambeacutem para seus paisrdquo

ldquoos pais decidiram natildeo medicar o filhordquo

ldquopai soacute quero que meu filho seja felizrdquo

44

ldquopai jogamos Xbox umas trecircs horas por dia eacute muitordquo

ldquomatildee vai comeccedilar artes marciais para descarregar energiardquo

Psicoacuteloga (para si mesma)

Seraacute que eu agi corretamente Seraacute que fiz a melhor escolha pelo bem do menino Seraacute

que ele estaria melhor se estivesse medicado

Noacutes

O que quer dizer agir corretamente fazer a melhor escolha A psicoacuteloga segue

capturada pelo discurso idealizador da escola em relaccedilatildeo agrave sua parceira meacutedica ao qual ela

mesma buscou constituir oposiccedilatildeo Ao combater a medicalizaccedilatildeo ela parece desejar ocupar

esse lugar de domiacutenio para a matildee o pai o menino

A psicoacuteloga entende que a medicaccedilatildeo acaba por assegurar um discurso que localiza no

indiviacuteduo o problema de aprendizagem e comportamento No entanto cabe perguntar a

Ritalina eacute capaz de impedir a escuta cliacutenica Por que a resistecircncia agrave medicaccedilatildeo afinal

Embora o menino natildeo tome Ritalina e conte com as prescriccedilotildees cliacutenicas a escola segue

com a parceira psiquiatra e dezenas de estudantes desatentos e hiperativos medicados Como

constituir um lugar que resiste agrave individualizaccedilatildeo do problema sem fazer oposiccedilatildeo agrave medicaccedilatildeo

jaacute que esta faz parte de nosso laccedilo social contemporacircneo

Psicoacuteloga (para si mesma)

Querem uma resposta desejam uma soluccedilatildeo definitiva Buscam uma alternativa A

medicaccedilatildeo cumpriria essa funccedilatildeo sem ela o que ou quem o faria nesses casos A psicoterapia

natildeo estaacute surtindo efeitos ou os efeitos da psicoterapia natildeo estatildeo sendo reconhecidos O

diagnoacutestico de TDAH cumpre a funccedilatildeo de abrandar a anguacutestia de natildeo saber o que se passa

45

CENA 4

Cliacutenica de psicoterapia Manhatilde

A matildee chega com o filho para a sessatildeo

Matildee

Eu tenho lido sobre o TDAH parece que pode ser geneacutetico Pelo que o pai me conta

ele era hiperativo hoje estaacute muito bem natildeo precisou de medicaccedilatildeo Jaacute eu era bem quieta entatildeo

natildeo fui eu que transmiti deve ter sido o pai Eu queria te contar de uma coisa que aconteceu na

escola semana passada Passaram por cima de mim fiquei furiosa O meu filho se desentendeu

com um colega na hora do recreio e eles brigaram

Crianccedila

Foi ele quem se desentendeu

Matildee

Sim eu sei meu filho Sempre entram em contato comigo mas em vez disso chamaram

o pai Ele teve que sair do serviccedilo e ir ateacute a escola para buscaacute-lo Fiquei com tanta raiva fizeram

um escacircndalo por uma briguinha de crianccedila Eu vou escrever para a escola reforccedilando que

tudo o que acontecer com ele sou eu que resolvo Ah eu natildeo estou levando ele nas aulas de

teatro porque nessa eacutepoca eacute muito frio para ele ficar

Psicoacuteloga

Depois noacutes conversamos melhor Temos que marcar um horaacuterio

Matildee

Estaacute bem Ateacute logo

46

Noacutes

Tudo o que ocorre com o filho eacute a matildee que resolve assim como tudo o que ocorre com

o paciente eacute a psicoacuteloga que quer resolver A posiccedilatildeo da psicoacuteloga ressoa a posiccedilatildeo da matildee

Psicoacuteloga e crianccedila entram na sala Brincam de ldquoHarry Potter versus Voldemortrdquo Ele

conta sobre um jogo novo em que bruxos da histoacuteria de Harry Potter lutam contra os

dementadores fantasmas que os assombram

Psicoacuteloga

E como eacute

Crianccedila

Os bruxos tecircm que usar as varinhas para matar os dementadores eu joguei ontem

Psicoacuteloga

Que interessante

Crianccedila (brinca que usa varinha contra a psicoacuteloga)

Tu acha isso interessante

Psicoacuteloga

O que aconteceu na escola Teu colega se desentendeu contigo

Crianccedila

Sim Foi ele que comeccedilou dessa vez Agraves vezes sou eu mas agraves vezes satildeo os outros

47

Psicoacuteloga

Entendi E aiacute chamaram teu pai

Crianccedila

Sim

Psicoacuteloga

E o que tu achou do teu pai ter ido

Crianccedila

Atildehn Um pouco bom e um pouco ruim Eu fui para casa Entatildeo por isso foi bom Mas

ele ficou brabo entatildeo isso foi ruim

Psicoacuteloga

Entendi Aiacute tu ficou jogando em casa Sozinho

Crianccedila

Eacute Minha matildee jaacute estava em casa

Psicoacuteloga

E o que parece para ti bruxos lutando contra dementadores

Ele representa os personagens Corre pela sala pula joga-se ao chatildeo

48

Crianccedila

Inteligentes contra idiotas Os idiotas tecircm que morrer os inteligentes vencem Eacute assim

olha

Crianccedila representa mais uma vez com mais intensidade alterna expressotildees de

agressividade e de idiotice

Crianccedila

Achou engraccedilado

Noacutes

A crianccedila estaria tentando representar o que desejam dele que corresponda ao

diagnoacutestico de TDAH ou que corresponda a uma crianccedila inteligente Qual a responsabilidade

do laudo da psicoacuteloga sobre isso

Psicoacuteloga

O que seraacute que tu estaacute querendo me contar

Crianccedila

Agraves vezes eu sou idiota e agraves vezes eu sou inteligente Minha matildee quer que eu seja

inteligente

Psicoacuteloga

E a escola

49

Crianccedila

A escola queria que eu fosse inteligente mas acha que eu sou burro Na verdade a escola

eacute idiota eacute para idiotas perdedores eacute inuacutetil Soacute faccedilo coisas inuacuteteis

Psicoacuteloga

Senta aqui comigo um pouco Respira Bom tu acha que querem que tu seja ou idiota

ou inteligente Eacute muito difiacutecil ser totalmente idiota ou totalmente inteligente natildeo acha

Crianccedila

Por isso que eu sou outra coisa eu fico entre o idiota e o inteligente O nome eacute

preocupatoacuterio

Psicoacuteloga (pensa consigo)

Preacute-operatoacuterio

Crianccedila

Eu me preocupo com tudo Eu tenho medo de tudo Sou a pessoa mais medrosa do

mundo

Psicoacuteloga

Do mundo Na verdade todo mundo tem seus medos suas preocupaccedilotildees na vida a

gente vai lidando aos pouquinhos com cada uma

50

Crianccedila

Mas ter medo eacute para idiotas eacute para os fracos os fortes satildeo os inteligentes eu natildeo tenho

medo de nada eu sou o mais forte

O menino se agita mais uma vez corre pela sala brinca de faz de conta numa cena em

que bate em algueacutem mais fraco

Psicoacuteloga (para si)

Por que eu escrevi sobre o TDAH no laudo Por que eu fiz um teste de inteligecircncia

Psicoacuteloga

Conheccedilo pessoas fortes e inteligentes que tecircm muitos medos

Crianccedila

Quem

Psicoacuteloga

Adultos que eu conheccedilo Na verdade os medos tornaram as pessoas mais fortes

Crianccedila

Natildeo os medos satildeo para os fracos

Psicoacuteloga

Bom tu natildeo eacute fraco tu disse que tem preocupaccedilotildees eacute uma situaccedilatildeo diferente estaacute

enfrentando teus medos

51

CENA 5

Casa da psicoacuteloga Noite

Matildee e psicoacuteloga conversam no telefone

Matildee

Ele ficou muito agitado agrave tarde natildeo quis ir agrave escola eu tambeacutem natildeo insisti O que

adianta Ele chega laacute e mandam ele de volta para casa Como eacute que foi a sessatildeo Ele contou

alguma coisa sobre a briga

Psicoacuteloga

Foi uma sessatildeo importante acho que mobilizou questotildees difiacuteceis para ele as

expectativas das pessoas sobre ele o quanto ele consegue responder a isso Natildeo comentou

muito sobre a briga

Matildee

Na escola disseram que foi ele que ele agrediu um colega no intervalo que

aparentemente o colega natildeo provocou nem nada Estou com raiva porque isso tem se repetido

qualquer probleminha que acontece nos chamam Desde que a nova professora dele saiu da

escola

Psicoacuteloga

O que aconteceu com a professora

52

Matildee

Eu achei que tinha comentado contigo ela estaacute com problema de sauacutede estaacute sem voz

descobriu um tumor na garganta e vai operar Meu filho estaacute sentindo falta dela natildeo estaacute se

acertando com a estagiaacuteria Mas hoje passaram dos limites chamando o pai

Psicoacuteloga

Por que seraacute que chamaram o pai

Noacutes

Por que passaram dos limites Quais limites

Matildee

Eu natildeo sei parece que quiseram me dizer que eu natildeo dou conta do meu filho soacute o pai

natildeo contam mais comigo

Psicoacuteloga

E tu concordas com isso

Matildee

Tu concorda com isso

Psicoacuteloga

Natildeo concordo Acho que tem que ver o lado bom disso a escola quis te ajudar pode ter

sido uma iniciativa de envolvecirc-lo fazer participar tambeacutem dos problemas que estatildeo

enfrentando

53

Matildee

Eacute isso que tu acha Mas ele eacute participativo sempre brinca com o filho em casa Parece

que quiseram me atacar E natildeo desistiram de oferecer a medicaccedilatildeo neacute Eu levei vaacuterios artigos

para lerem sobre os efeitos colaterais da Ritalina nem quiseram ler A meacutedica entrou em contato

comigo de novo a pedido da escola Estou pensando em trocar meu filho de escola ano que

vem

Psicoacuteloga

Eacute uma alternativa a ser considerada Vamos ir pensando e seguimos conversando outra

hora

Fim do tempo 2

TEMPO 3

Primavera

CENA 1

Cliacutenica de psicoterapia Tarde

A matildee chega para atendimento

Psicoacuteloga

Pode sentar aqui por favor

Matildee

Obrigada Leu o material que te enviei

54

Psicoacuteloga

Eu dei uma olhada sim

Matildee

Sei que deve ser difiacutecil para ti entender mas eu acho que faz muito sentido

Psicoacuteloga

O que precisamente tu gostarias que eu entendesse

Matildee

Tu pode ateacute achar que eacute loucura mas eu venho lendo sobre o assunto haacute um tempo As

crianccedilas com TDAH podem ser superdotadas elas demonstram tambeacutem agitaccedilatildeo e dispersatildeo

mas em vez de tratarmos como sintomas de uma doenccedila entendemos como um comportamento

tiacutepico dos superdotados As crianccedilas sofrem muito na infacircncia mas na vida adulta eacute que se

realizam deixam sua marca no mundo Os grandes cientistas artistas foram crianccedilas

hiperativas hoje satildeo considerados com uma inteligecircncia muito superior agrave meacutedia

Psicoacuteloga

Entendi Tu achas que teu filho eacute uma crianccedila superdotada

Matildee

Sei que parece estranho mas ele tem todas as caracteriacutesticas eacute muito inteligente

espontacircneo tem sintomas do TDAH mas natildeo eacute TDAH tem dificuldade em obedecer em

entender regras eacute questionador

55

Psicoacuteloga

Sim realmente ele tem todas as caracteriacutesticas Eacute uma forma de entender o que estaacute

acontecendo Como foi que tu encontraste essa classificaccedilatildeo

Matildee

Foi pesquisando o TDAH na internet Encontrei uns artigos assisti uns viacutedeos tambeacutem

e natildeo soacute de neurologistas mas de psicoacutelogos falando sobre o assunto Eu fiquei ceacutetica a

princiacutepio mas quanto mais eu lia mais fazia sentido

Psicoacuteloga

Eu fiquei pensando que talvez tu tenhas pesquisado bastante sobre o assunto porque natildeo

encontrou uma resposta ainda para o que estaacute acontecendo com teu filho A escola e a meacutedica

entendem que ele eacute TDAH eu disse que ele tem sintomas mas natildeo eacute TDAH como tu mesma

falou aleacutem disso eu atesto que ele tem uma inteligecircncia acima da meacutedia Ele natildeo toma

medicaccedilatildeo mas tu achaste necessaacuterio buscar algo que operasse no corpo como as artes marciais

para descarregar energia acumulada

Matildee

Sim eacute que o teatro natildeo deu mais certo natildeo tem mais ningueacutem da turma dele ele

estava ficando mais agitado ainda

Psicoacuteloga

Tudo bem foi soacute uma sugestatildeo Bom o que eu quero dizer eacute Vecirc se faz sentido para

ti Como nem eu e nem a escola te demos um retorno que te ajudasse a entender o que acontece

com teu filho tu buscaste uma terceira opiniatildeo digamos assim Essa classificaccedilatildeo da

superdotaccedilatildeo pode ter funcionado para te deixar mais tranquila quanto ao que acontece com

ele

56

Matildee

Acho que sim Eacute o que estaacute fazendo sentido agora

Psicoacuteloga

A gente pode entender como uma classificaccedilatildeo possiacutevel Podemos chamar de TDAH

de superdotado de TOD Existem outras classificaccedilotildees Mas de que forma podem nos ajudar

Como isso pode ajudar teu filho a lidar com o sofrimento

Matildee

O que eu achei interessante eacute que no material que te enviei tem uma orientaccedilatildeo para os

pais As matildees e os pais das crianccedilas superdotadas natildeo devem dar proibiccedilotildees aos filhos natildeo

devem limitar sua criatividade impondo regras

Psicoacuteloga

Como acontece isso

Matildee

Eacute porque os superdotados natildeo compreendem bem o que eacute proibido entatildeo eacute preciso

explicar bem fazecirc-los entender em vez de brigar e impor regras Eu vejo pelo meu filho ele

tem muita resistecircncia com coisinhas da rotina como escovar os dentes por exemplo entatildeo em

vez de brigar com ele escovar agrave forccedila como muitas matildees fazem eu me agacho olho em seus

olhos explico para ele que ele pode ficar com caacuterie com dor Tudo tem que ser bem explicado

com muito jeito e calma

57

Psicoacuteloga

Parece que a orientaccedilatildeo para os pais e as matildees das crianccedilas superdotadas eacute natildeo serem

pais e matildees Natildeo sei o quanto esse material pode ajudar Tu natildeo precisas ficar com medo de

brigar com teu filho de mostrar regras e proibiccedilotildees por receio de interferir no desenvolvimento

da criatividade e da inteligecircncia dele Eacute disso que tu tem medo

A matildee chora

Psicoacuteloga

Natildeo acredito que seja possiacutevel educar um filho no papel de matildee de pai sem produzir

alguma marca em sua histoacuteria Achar que evitar agir de certo modo para que uma faculdade se

desenvolva plenamente eacute uma ilusatildeo que criamos

Matildee

Eu sei Eacute que a gente fica tatildeo perdida a gente lecirc tanta coisa que natildeo sabe mais se

estaacute fazendo certo ou errado se estaacute prejudicando o desenvolvimento da crianccedila Eu natildeo sei

educar eu natildeo sei o jeito certo

Psicoacuteloga

Eu acho que ningueacutem sabe bem como educar todo mundo tenta Realmente hoje noacutes

lemos de um tudo na internet temos acesso facilitado agrave informaccedilatildeo e natildeo vatildeo faltar artigos de

jornal dizendo como devemos agir Por isso temos que ter cuidado com o que lemos fazer um

discernimento natildeo tomar tudo como verdade Eu quero dizer que ainda que nesse material

sobre superdotaccedilatildeo diga que tu natildeo deves brigar com o teu filho em alguns momentos quando

tu sentires que deves brigar tu podes brigar

Matildee

58

Eu soacute natildeo quero que meu filho se torne um delinquente

Psicoacuteloga

Certo Mas por que dizes isso

Matildee

Porque agraves vezes eacute muito difiacutecil de lidar com ele ele fica agressivo me desafia tenho

medo de que ele se torne uma maacute pessoa

Psicoacuteloga

Quando eu digo brigar natildeo estou falando de ser violenta de bater mas de impor a tua

palavra de falar em nome da lei isso natildeo vai tornaacute-lo uma pessoa maacute E nem te tornar uma

pessoa maacute

Matildee

Eacute eu sei disso eu tenho que ser matildee dele

Psicoacuteloga

Que matildee natildeo gostaria de ter um filho superdotado brilhante que vai mudar o mundo

Acho que todas noacutes queremos isso dos nossos filhos Mas isso natildeo cabe a ningueacutem dizer soacute o

futuro vai mostrar Ningueacutem pode dizer hoje que teu filho vai ser um delinquente ou uma

pessoa que vai mudar o mundo para melhor O que podemos fazer eacute ajudaacute-lo hoje

proporcionando uma vida saudaacutevel organizando o dia a dia mostrando limites sim lidando

com as birras E jaacute satildeo coisas muito difiacuteceis de fazer Agora no que isso vai dar natildeo

sabemos Soacute temos que ficar atentas a como ele estaacute reagindo hoje agraves coisas que pensamos e

queremos dele

59

Matildee

Eu vou fazer o que estiver ao meu alcance

CENA 2

Casa da psicoacuteloga Meio-dia

Psicoacuteloga recebe uma mensagem de texto da matildee

ldquoEscrevo para informar que natildeo vamos seguir com os atendimentos por enquanto Sei

que ainda temos um caminho pela frente mas tivemos que cortar gastos Quando precisarmos

entramos em contato Obrigada PS A profe voltou da licenccedila e estaacute trabalhando sobre os

MEDOS com a turma Meu filho estaacute adorandordquo

CENA 3

Cliacutenica de psicoterapia Entardecer

Psicoacuteloga organiza pastas dos pacientes Encontra um desenho

60

Recorda-se de uma sessatildeo mesa cheia de folhas canetas e laacutepis de cor O paciente e

a psicoacuteloga conversam sobre um passeio que ele fez com a turma

Psicoacuteloga

Entatildeo quer dizer que tu gostou de ir ao museu Foi uma boa ideia da professora

Crianccedila

Na verdade todas as turmas fazem esse passeio

Psicoacuteloga

Bom mas foi uma atividade da escola que tu gostou de fazer

61

Crianccedila

Eacute um pouco

Psicoacuteloga

Vamos fazer um desenho Pode ser da tua escolha

Crianccedila

Entatildeo me daacute tua matildeo Sabe o que eu vou fazer Adivinha

O menino apoia a matildeo da psicoacuteloga sobre uma folha em branco Ele a contorna com

um laacutepis

Psicoacuteloga

Ah que legal que ficou

Crianccedila

Natildeo terminei ainda

Ele faz o contorno de sua proacutepria matildeo ao lado Faz unhas compridas cortes pelos em

ambas as matildeos

Psicoacuteloga

Que matildeos satildeo essas

Crianccedila

Eacute a matildeo de um lobisomem e a do filho do lobisomem o lobisominho

62

Psicoacuteloga

Entendi eles satildeo pai e filho e tecircm as matildeos muito parecidas

Crianccedila escreve um S na matildeo do lobisominho

Crianccedila

Pronto tinha faltado a tatuagem

Psicoacuteloga

Ah o lobisominho tem uma tatuagem S de quecirc

Crianccedila

S de lobi- Somem

Psicoacuteloga

Ah entendi

Ele escreve LOBISOMEM

Crianccedila

Eacute que eacute com S natildeo eacute com Z mas tem som de Z Sabia que tem um bicho chamado sapo-

boi Descobri ontem

Ele escreve SAPA-BOI

63

Psicoacuteloga

Viu o que tu escreveu SapA Tu conheceu esse bicho no passeio

Crianccedila

Sim A Sapa-boi era matildee do lobisominho

Psicoacuteloga

Comeccedila com S do lobi-Somem

Crianccedila

Eacute mas tem som de S mesmo Esse bicho eacute um hiacutebrido

Psicoacuteloga

Um anfiacutebio

Crianccedila

Natildeo um hiacutebrido mesmo uma mistura de sapo com boi Eacute um sapo mas do tamanho

de um boi

Psicoacuteloga

Ah o Lobisomem e o lobisominho tambeacutem satildeo hiacutebridos

Crianccedila

Sim eles satildeo lobo com homem

64

Noacutes

Homo homini lupus est1

Psicoacuteloga guarda o desenho e volta para casa inquieta Tempos depois ela teraacute

escrito

ldquoO lobo e o homem ocupam o mesmo lugar hiacutebrido da condiccedilatildeo humana Natildeo haacute como

apagar o lobo do humano antes haacute contornos formas de conviver com ele Quando Some o

homem irrompe o lobo

lsquoLobi S omemrsquo eacute o registro de um natildeo lugar a escrita do hibridismo do humano com

um S tatuado o que tinha faltado e agora faz marca Um desejo de saber a que espeacutecie pertence

entre o idiota e o inteligente entre o TDAH e o superdotado entre o forte e o fraco entre lobo

e homem entre sapa e boi natildeo um contra o outro

Entre a casa e a escola entre a psicoacuteloga e a meacutedica que saberes se formam Que

maneiras criamos juntos de circunscrever contornar a infacircncia Entre a cultura e o que lhe

escapa seu lobo O que se encontra aiacute o que deriva desse lugar senatildeo a condiccedilatildeo subjetiva

desejante que faz a vida pulsarrdquo

1 O homem eacute o lobo do homem Encontramos a expressatildeo na peccedila Asinaria do dramaturgo romano Plauto (230 aC-180 aC) O filoacutesofo Thomas Hobbes a retoma no trabalho Leviatatilde (1651) bem como Sigmund Freud em O mal-estar na cultura (1930)

65

INTRODUCcedilAtildeO

O escrito que se segue eacute fruto de uma inquietaccedilatildeo que se coloca de discutir o que resta

da histoacuteria contada em forma dramatuacutergica O texto criado eacute inspirado na praacutetica profissional

de psicoacuteloga cliacutenica com orientaccedilatildeo psicanaliacutetica observando o cuidado de preservar o

anonimato das pessoas envolvidas A ficccedilatildeo arranjada eacute uma tentativa de contornar elementos

destoantes conflitos insoluacuteveis impasses no intuito de transmitir a experiecircncia chegar agrave

extremidade das pontas soltas transformaacute-las numa outra coisa

Com isso fizemos uma escolha por apresentar o problema de pesquisa figurado em

escrita de tempos e cenas dramaacuteticas Agora haacute o que conversar com a calma e a objetividade

que um trabalho acadecircmico demanda seguindo procedimentos para que se chegue a uma

compreensatildeo mais alargada acerca dos temas suscitados pelo texto dramaacutetico alguns mais

emergentes outros aventados todos tocados por alguma coisa que diz respeito ao desejo

humano e a como o desejo se faz presente nas relaccedilotildees que estabelecemos uns com os outros

No entanto o trabalho natildeo eacute sobre o desejo muito embora natildeo possa ser realizado sem o desejo

jaacute que eacute por ele que uma linha de tensatildeo a linha de accedilatildeo se manteacutem sempre viva promovendo

ao mesmo tempo implicaccedilotildees e desajustes

Iniciamos o trabalho inspirados em Mannoni (2003) que fala do envolvimento dos

adultos no mal-estar sofrido pela crianccedila Eacute do que resulta de um jogo de implicaccedilotildees dos

adultos que produz efeitos sobre a crianccedila que esse escrito deseja tratar Considerando os

discursos que atravessam o seu fazer quais as condiccedilotildees de autorizaccedilatildeo da escola no que se

refere agraves dificuldades de certos alunos que apresentam sintomas de aprendizagem De que

forma os adultos envolvidos com a educaccedilatildeo de crianccedilas lidam com o sofrimento com o mal-

estar com o ldquolobordquo Haacute nesse sentido nas cenas do proacutelogo um discurso medicalizante que

participa das decisotildees da escola no que concerne aos problemas de aprendizagem e como

veremos respeitando as singularidades do caso essa natildeo eacute uma situaccedilatildeo isolada da histoacuteria

contada mas algo bastante frequente em nossas escolas Esse discurso tomou de surpresa a

personagem da psicoacuteloga jaacute que natildeo considerava que sua escuta ao se estender para aleacutem da

cliacutenica para aleacutem do paciente e sua famiacutelia encontraria na fala da coordenadora pedagoacutegica a

defesa da medicalizaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo de categorias nosoloacutegicas

Maria Cristina Kupfer pesquisadora de psicanaacutelise e educaccedilatildeo comenta

66

Escutar por exemplo um problema de aprendizagem como uma formaccedilatildeo fantasmaacutetica singular sem nenhuma articulaccedilatildeo com o discurso social escolar pode conduzir em alguns casos ao fracasso da accedilatildeo do psicanalista Disto aliaacutes jaacute falaram autores natildeo psicanalistas como M Helena Patto (1990) De outro lado uma leitura que inclua o discurso social que circula em torno do educativo e do escolar [] estaraacute produzindo uma inflexatildeo na accedilatildeo do psicanalista e o levaraacute a uma praacutetica que natildeo coincide mais com a cliacutenica psicanaliacutetica ldquoortodoxardquo pois ele teraacute de se movimentar o suficiente para ouvir pais e escola (KUPFER 1999 p 19)

Pensando hoje sobre o que se desenrola nas cenas assumimos neste trabalho o lugar

do ldquoNoacutesrdquo capaz de produzir um distanciamento necessaacuterio para poder falar do caso espiar suas

minuacutecias olhaacute-lo criticamente e tentar entender como se produzem as medidas e desmedidas

dos personagens Um dia fomos a psicoacuteloga presente em todas as cenas e apenas a partir dessa

posiccedilatildeo podemos testemunhar os acontecimentos Entendemos que a psiquiatra entrou em

contato com a psicoacuteloga por ela ter se tornado um obstaacuteculo agrave sua forma de conduzir pois

talvez se ela tivesse encorajado a medicaccedilatildeo possivelmente natildeo haveria motivo para conversa

Do mesmo modo a intervenccedilatildeo da meacutedica havia se tornado um entrave para a maneira da

psicoacuteloga enxergar as coisas afinal pode ter pensado a psicoacuteloga ldquoSe natildeo fosse a escola a me

atrapalhar com sua parceira eu saberia como tratar o menino mas depois do telefonema da

escola eu perdi o domiacutenio da situaccedilatildeordquo Ao tentar retomar um suposto domiacutenio da situaccedilatildeo o

qual percebeu tomado pela meacutedica a psicoacuteloga encontrava o limite de sua escuta seu ponto

cego

A princiacutepio a situaccedilatildeo configura-se numa forma de embate De um lado psicoacuteloga e

matildee de outro a escola e a meacutedica No centro uma crianccedila objeto de certezas No pano de

fundo o discurso medicalizante operando sobre todos noacutes Na tentativa de promover uma boa

relaccedilatildeo entre a professora e o aluno sustentando uma direccedilatildeo de tratamento que considerava

correta talvez a psicoacuteloga tenha desautorizado a escola em sua responsabilidade de conduzir o

caso do aluno Opondo-se a um discurso psicopatologizante a psicoacuteloga oferece outro discurso

a partir do mesmo lugar de imposiccedilatildeo respaldado por um laudo e um teste de inteligecircncia

Cabe questionar o que faz com que a psicoacuteloga seja capturada pelo desejo de se manter

numa posiccedilatildeo de controle como um agente capaz de fazer as melhores escolhas pelo bom

andamento do caso pelo bem da crianccedila Natildeo haacute como responder de um lugar alheio agrave relaccedilatildeo

transferencial que se estabelece com a crianccedila com a escola com a matildee e com a meacutedica

Interessa pois aproximar-se dos contornos da transferecircncia estabelecida

67

O que fazer diante deste impasse que se forma entre o dever de educar de tomar o

menino como mais um dos mais de vinte alunos que precisam aprender a ler e a escrever

aprender alguns coacutedigos de conduta de convivecircncia na cena escolar e aquilo que escapa agrave

funccedilatildeo civilizatoacuteria da escola o que aponta que o menino natildeo eacute apenas mais um Como

situarmos um espaccedilo entre esses dois lugares Dois lugares que tambeacutem nos constituem como

adultos que cuidam das crianccedilas uma divisatildeo entre o compromisso de educar constituindo

bordas para o gozo e desejo de deixaacute-las usufruir desse gozo sem imposiccedilatildeo de limites Haacute

aqui nesse jogo que produz um ldquoentrerdquo uma implicaccedilatildeo do adulto Um dever de se implicar

O discurso medicalizante que opera tambeacutem na escola e toma lugar do discurso educativo faria

as vezes dessa implicaccedilatildeo Constitui um dever nosso dos adultos para com as crianccedilas O que

resulta dessa operaccedilatildeo no fazer do educador

Este lugar de ldquoentrerdquo natildeo eacute senatildeo o lugar subjetivo de inscriccedilatildeo na cultura inscriccedilatildeo que

ldquocomportardquo o enlace de uma singularidade a um comum Assim como minhas marcas

correspondem agrave minha histoacuteria e somente agrave minha as do outro compreendem a singularidade

de sua histoacuteria no entanto por ldquoportarmosrdquo marcas somos iguais entatildeo ldquoportamos-comrdquo o

outro Eacute esse traccedilo comum que temos de encontrar ou reencontrar em nossas crianccedilas Traccedilo

que em posiccedilatildeo de autoria de sua histoacuteria o menino tambeacutem buscava ao dizer que natildeo sabia o

que era ldquose comportarrdquo e sofrer do horror imaginaacuterio do vazio desse lugar da anguacutestia do nada

A professora da crianccedila com TDAH da histoacuteria sabia um jeito de as coisas funcionarem

mas um jeito que encontrava um limite com o menino No limite estava o TDAH Esse

transtorno que impedia em seu entendimento que ele se comportasse Por ter um problema que

natildeo fazia parte da composiccedilatildeo de seu saber como educadora ela se desautorizava na educaccedilatildeo

de seu aluno jaacute que o problema estava fora de sua alccedilada Esbarrava-se com isto ldquoComo educar

a crianccedila com TDAH se seus sintomas me impedem de educaacute-la da forma que julgo saber que

acontece a educaccedilatildeordquo Parece que a soluccedilatildeo eacute a via da medicalizaccedilatildeo como um saber outro

inquestionaacutevel O que nos resta eacute aprender a abordaacute-lo questionaacute-lo Se nos colocarmos em

oposiccedilatildeo como fez a psicoacuteloga ao negar a referecircncia ao saber meacutedico na escola passamos a

ocupar o mesmo lugar impositivo que desautoriza o saber do outro ainda que (e talvez

justamente por isso) as intenccedilotildees sejam as melhores

Nesse sentido neste trabalho vamos tentar enunciar uma equaccedilatildeo sobre o laccedilo que hoje

sustenta a educaccedilatildeo escolar a fim de fazer aparecer o ponto limite de uma educabilidade que

dispensa o professor de sua funccedilatildeo em relaccedilatildeo a crianccedilas com TDAH Jaacute antecipamos aqui

68

nossa versatildeo embora natildeo iremos discuti-la imediatamente achamos que o que demite o

professor tambeacutem o permite Pensamos que isso pode nos remeter ao traacutegico o que nos

conduziraacute a uma visita agrave trageacutedia antiga

Para iniciar a conversa no primeiro capiacutetulo discutimos como a medicalizaccedilatildeo ingressa

no cenaacuterio educativo e o lugar a partir do qual esse discurso opera Aleacutem disso abordamos a

constituiccedilatildeo do TDAH na aacuterea meacutedica e a sua gradual imersatildeo no campo escolar Apresentamos

tambeacutem um recorte da histoacuteria do faacutermaco metilfenidato mais conhecido pelo nome comercial

Ritalina e como se torna a soluccedilatildeo apresentada para o transtorno de hiperatividade e de

desatenccedilatildeo Na primeira parte do trabalho queremos entatildeo mostrar como os processos de

medicalizaccedilatildeo da vida escolar ocorrem em larga escala saindo da particularidade de um caso

cliacutenico e pensando a dimensatildeo da questatildeo seu caraacuteter epidecircmico

No segundo capiacutetulo apresentamos a dimensatildeo do traacutegico Abordamos como a

psicanaacutelise se apropria de noccedilotildees do traacutegico a partir de trageacutedias claacutessicas para dizer de seu

modo de operar Nesse sentido apresentamos como Sigmund Freud trabalha conceitos da

psicanaacutelise com a trageacutedia de Soacutefocles Eacutedipo Rei e tambeacutem como Jacques Lacan trabalha

com a trageacutedia Antiacutegona do mesmo autor para falar da eacutetica da psicanaacutelise Discorremos

ainda sobre a peccedila Eacutedipo em Colono a qual compotildee com as duas outras trageacutedias uma trilogia

No terceiro capiacutetulo vamos abordar o traacutegico como experiecircncia humana e como gecircnero

teatral conhecendo contribuiccedilotildees de filoacutesofos como Aristoacuteteles e Nietzsche e a esteacutetica de

tragedioacutegrafos como Euriacutepides A visita ao campo do traacutegico tem por intuito recolher elementos

que nos permitam uma aproximaccedilatildeo de um modo de operar de contornar o mal-estar presente

em nossa cultura nomeado de lobo pelo caso cliacutenico de dionisiacuteaco pelo filoacutesofo Nietzsche A

escola da histoacuteria dramatizada contava com uma meacutedica representante de um saber capaz de

apaziguar suas anguacutestias diante do limite do natildeo educar Eacute possiacutevel tomar a situaccedilatildeo vivida na

escola como uma cena e o saber medicalizante que se impotildee ao cenaacuterio educativo capaz de

eliminar os conflitos vividos nele como uma repeticcedilatildeo da imposiccedilatildeo de soluccedilotildees presentes na

dramaturgia do teatro grego que assumem o nome de deus ex machina ndash um deus ou outro

personagem que entra em cena atraveacutes de uma maacutequina provocando o desenlace da histoacuteria de

forma derradeira Na segunda parte do capiacutetulo discutimos entatildeo sobre esse recurso cecircnico

bem como sobre seus efeitos

No quarto capiacutetulo ldquoEducar e seus impassesrdquo apresentamos a dimensatildeo impossiacutevel da

educaccedilatildeo enunciada pela psicanaacutelise e trabalhamos com dois desenlaces possiacuteveis diante de

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conflitos que surgem em cena a medicalizaccedilatildeo como deus ex machina e a falta como operadora

da criaccedilatildeo

Na sequecircncia trabalhamos com uma peccedila de Euriacutepides Medeia ndash citada por Aristoacuteteles

como um mau exemplo de escolha pelo recurso do deus ex machina ndash a fim de discutir a

abordagem do traacutegico os efeitos do desenlace e as vias de abertura que surgem numa obra que

causa de grande inquietaccedilatildeo Tentamos ler Medeia a partir de significantes presentes no texto e

de elementos pensados do encontro entre psicanaacutelise filosofia educaccedilatildeo e traacutegico

De que forma o desenlace em Medeia bem como as vias de abertura nos ajudam a

pensar o modo como lidamos com o traacutegico na cena educativa Abordar essa questatildeo eacute uma

forma de encerrar o trabalho Buscamos trazer agrave frente agrave superfiacutecie os elementos que

trabalhamos ao longo da escrita e que podem compor uma equaccedilatildeo teoacuterica que nos permite ler

a histoacuteria proposta no proacutelogo

Em seguida apresentamos um epiacutelogo constituiacutedo por histoacuterias vividas na escola pela

autora do trabalho ocupando diferentes posiccedilotildees narrativas Eacute a forma que escolhemos de fazer

o desenlace

Os caminhos da pesquisa

Com a psicanaacutelise como meacutetodo de pesquisa acreditamos ser possiacutevel construir um

saber entre os discursos um terceiro espaccedilo uma terceira via que sem intenccedilotildees prescritivas

possibilita a enunciaccedilatildeo dos impasses educativos

O meacutetodo de pesquisa que engendrou este trabalho percorreu duas vias A primeira diz

respeito agrave construccedilatildeo de caso cliacutenico A segunda se pautou na leitura de um acontecimento a

partir de elementos que decantam da anaacutelise de outro campo de experiecircncia

No proacutelogo deste trabalho apresentamos um texto dramatuacutergico inspirado na

experiecircncia cliacutenica da psicoacuteloga da histoacuteria Buscamos atraveacutes do arranjo cecircnico dar lugar aos

impasses vivenciados acerca da escolarizaccedilatildeo da crianccedila num jogo formado pelos lugares

ocupados por cada personagem Criamos um personagem que natildeo participa ativamente das

cenas mas tem o papel de tecer diaacutelogo entre as accedilotildees cecircnicas e o leitor da dramaturgia no

sentido de promover um espaccedilo terceiro entre duas situaccedilotildees entre dois personagens que por

vezes estatildeo em oposiccedilatildeo um em relaccedilatildeo ao outro e buscam de certo modo o apagamento da

demanda do outro a quem se opotildeem O nome que damos a essa voz eacute Noacutes convocando a escrita

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e a leitura do caso a ocuparem um espaccedilo conjunto observando as tensotildees e polaridades da

cena numa tentativa de nos aproximarmos daquilo que concerne ao traacutegico (cujas

particularidades seratildeo discutidas nas proacuteximas paacuteginas)

Deste lugar que nomeamos Noacutes queremos a partir de uma certa distacircncia dos

acontecimentos vislumbrar elementos miacutenimos que formam a conjuntura das cenas a fim de

que dela decante um saber sobre o caso capaz de ser transmitido De acordo com Acircngela

Vorcaro (2010) os elementos que restam de um caso cliacutenico guardam o seu saber constituiacutedo

pelo encontro que se daacute entre o analista e o analisando e tambeacutem por aquilo que transborda

desse encontro permitindo a experiecircncia da cliacutenica interrogar a teoria e a teacutecnica da psicanaacutelise

fazendo com que uma transmissatildeo seja possiacutevel Para a autora cada caso propotildee um saber

singular impedindo tentativas de aplicabilidade do meacutetodo psicanaliacutetico ldquoEfetivamente Freud

decanta a cliacutenica e transmite dela o caso E interessa ressaltar que o caso natildeo se limita ao

paciente mas refere-se ao encontro que a cliacutenica promoverdquo (VORCARO 2010 p 12)

Eacute este ponto de encontro que a cliacutenica promove ponto em que se tece a relaccedilatildeo

transferencial onde cada personagem fala e age a partir dela que buscamos situar a figura do

Noacutes Destacamos tambeacutem a referecircncia de Vorcaro a Freud na transmissatildeo de casos cliacutenicos

Geralmente os casos mais desafiadores ao psicanalista o impeliam agrave escrita os casos que

supostamente ldquonatildeo deram certordquo ou ainda casos com os quais ele natildeo conseguiu trabalhar

Nesse sentido a cada caso escrito transmitia-se um saber singular sobre a cliacutenica psicanaliacutetica

No papel de psicoacuteloga buscamos com a escrita dos recortes cliacutenicos dar lugar agrave relaccedilatildeo

transferencial a partir da qual era possiacutevel agir e fazer dos elementos que restam do caso uma

pesquisa Segundo Vorcaro

[] nessa dobradiccedila em que se identifica num soacute tempo o cliacutenico e o pesquisador interessa localizar nos traccedilos depositados da escrita literal como o pesquisador ultrapassa sua transcriccedilatildeo Afinal um saber se deposita em seu escrito a despeito da consciecircncia do autor Eacute o que permite ao pesquisador ao retornar outras vezes mais sobre a transcriccedilatildeo feita do caso situar propriamente o que o caso fisga de interesse investigativo (VORCARO 2010 p 15)

Da leitura literal do escrito torna-se possiacutevel encontrar traccedilos que conectados formam

uma constelaccedilatildeo estrutura que busca transmitir o saber ainda que o saber comporte um

impossiacutevel um saber inconsciente Buscamos assim os elementos miacutenimos para produzir uma

71

equaccedilatildeo teoacuterica ndash equaccedilatildeo que nos permite voltar ao cenaacuterio para lecirc-lo novamente e almeja

permitir ler tambeacutem outros cenaacuterios

A fim de produzir um distanciamento dos impasses gerados na escolarizaccedilatildeo da crianccedila

situaccedilatildeo vivenciada na cliacutenica e na escola escolhemos uma estrutura dramatuacutergica para contar

a histoacuteria Identificamos que haacute em cena posiccedilotildees discursivas diferentes que em funccedilatildeo da

posiccedilatildeo sintomaacutetica de cada um e do lugar que ocupam em transferecircncia impedem os

deslocamentos necessaacuterios para que se arme um desenlace capaz de transformar essas posiccedilotildees

Haacute na verdade uma ilusatildeo em cada uma (pedagoga psicoacuteloga meacutedica) de que a escolha

tomada individualmente teraacute condiccedilotildees de resolver o problema

A leitura dessa situaccedilatildeo nos remete aos modos de desenlace operados pelo traacutegico a

como era apresentado pelas trageacutedias claacutessicas e como ao longo dos seacuteculos foi sendo

substituiacutedo por novas esteacuteticas teatrais com grande influecircncia das transformaccedilotildees filosoacuteficas e

poliacuteticas Dessa forma nossa investigaccedilatildeo busca captar o ponto de virada de um arranjo cecircnico

para outro

Eacute nesse sentido que adentramos em nossa segunda via metodoloacutegica que consiste em

tomar elementos estruturais de um campo outro para ler uma questatildeo inquietante de nosso

tempo para entendermos como estamos habituados a trabalhar com ela hoje Da passagem do

mundo traacutegico ao ensinamento moral que ocorreu com os gregos pensamos que haacute uma

estrutura possiacutevel de ser tomada para tentar acessar o que opera nesse apelo ao saber meacutedico

feito pela escola Assim o meacutetodo proposto ocorre no sentido de tomar um acontecimento

analisaacute-lo e destacar dele elementos estruturais que permitem acessar um outro acontecimento

Aleacutem disso destacamos que a opccedilatildeo por um texto dramatuacutergico se aproxima da

construccedilatildeo de caso psicanaliacutetico na medida em que ambas as escritas buscam trazer agrave tona as

nuances da histoacuteria as tensotildees e polaridades sustentadas em cena de modo a transmitir ao leitor

um saber sobre a experiecircncia Diferente seria a tendecircncia a oferecer uma soluccedilatildeo aplicaacutevel para

toda e qualquer situaccedilatildeo uma imposiccedilatildeo de verdade Satildeo duas formas conflitantes que tentamos

expor em cena e nas discussotildees teoacutericas deste trabalho

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1 A MEDICALIZACcedilAtildeO NA CENA EDUCATIVA E A CONSTITUICcedilAtildeO DO TDAH

Este trabalho se inscreve entre as discussotildees que vem sendo realizadas no campo da

educaccedilatildeo acerca dos processos de medicalizaccedilatildeo da vida e de como o saber meacutedico se faz

presente no discurso da escola

Na extensatildeo de sua obra Michel Foucault apresenta como a medicina ganhou espaccedilo

na sociedade europeia ao longo dos seacuteculos XVIII XIX e XX atraveacutes dos movimentos de

urbanizaccedilatildeo sanitarizaccedilatildeo higienizaccedilatildeo educaccedilatildeo a fim de zelar pela sauacutede da populaccedilatildeo Na

esteira dessa praacutetica no entanto encontramos a medicina como estrateacutegia de um exerciacutecio de

controle e poder sobre os corpos encarregada de produzir discurso de verdade acerca da

normalidade da sexualidade da educaccedilatildeo nas famiacutelias e instituiccedilotildees sociais Hoje colhemos

os efeitos desse discurso e ainda o produzimos na sociedade e educaccedilatildeo brasileira

Considerando as contribuiccedilotildees de Foucault o pesquisador Irving Zola (1972) propotildee

trazer agrave tona o termo ldquomedicalizaccedilatildeordquo Com isso menciona que a medicina se tornou uma

instituiccedilatildeo de controle social que toma o lugar de instituiccedilotildees tradicionais como a religiatildeo e o

direito Conquistou o poder de proferir e julgar a verdade das coisas a partir de um ponto de

vista supostamente neutro em nome da sauacutede Isso natildeo ocorre atraveacutes do poder poliacutetico que a

pessoa do meacutedico pode ter ou influenciar mas eacute ldquoum fenocircmeno insidioso e natildeo dramaacutetico

implicado em lsquomedicalizarrsquo muito da nossa vida diaacuteria fazendo dos medicamentos e dos roacutetulos

lsquosaudaacutevelrsquo e lsquodoentersquo relevantes a toda parte da existecircncia humanardquo (ZOLA 1972 p 487)

O autor fala que esse fenocircmeno comeccedilou a ser percebido atraveacutes da psiquiatria campo

da medicina para o qual criacuteticas e preocupaccedilotildees foram convergidas mas isso natildeo impediu que

a medicalizaccedilatildeo acontecesse Se buscarmos os motivos veremos que tal processo estaacute

ldquoenraizado no avanccedilo do nosso complexo e burocraacutetico sistema tecnoloacutegico que nos levou para

o caminho da relutante confianccedila no especialistardquo (ZOLA 1972 p 487)

Dessa forma Zola (1972) desloca uma possiacutevel culpabilizaccedilatildeo da ciecircncia da medicina

ou da ciecircncia da psiquiatria pela existecircncia dos processos de medicalizaccedilatildeo para um

acontecimento decorrente do progresso cientifico e tecnoloacutegico que acaba por regular as nossas

relaccedilotildees com os outros numa espeacutecie de cuidado e vigilacircncia Natildeo haacute uma entidade ou

indiviacuteduo culpados por implantar os processos de medicalizaccedilatildeo pois estes estatildeo no interior de

nossa cultura

73

Medicalizaccedilatildeo eacute o processo de tornar um problema natildeo meacutedico geralmente um

problema social como algo pertencente ao campo da medicina a qual tem a incumbecircncia de

nomeaacute-lo e trataacute-lo Michel Foucault apresenta no curso Os anormais de que forma a

medicalizaccedilatildeo se constitui no terreno da psiquiatria e lhe confere poder

Despatologizaccedilatildeo do objeto foi essa a condiccedilatildeo para que o poder meacutedico poreacutem da psiquiatria pudesse se generalizar assim Surge entatildeo o problema como pode funcionar um dispositivo tecnoloacutegico um saber-poder tal em que o saber despatologiza de saiacuteda um domiacutenio de objetos que no entanto oferece a um poder que soacute pode existir como poder meacutedico Poder meacutedico sobre o natildeo-patoloacutegico estaacute aiacute a meu ver o problema central ndash mas talvez vocecircs digam evidente ndash da psiquiatria (FOUCAULT 2001 p 394)

Numa perspectiva contemporacircnea da medicalizaccedilatildeo num novo regime de gestatildeo da

vida Seacutergio Carvalho e outros (2015) apontam que os pacientes estatildeo cada vez mais autocircnomos

satildeo agora indiviacuteduos consumidores que natildeo se submetem mais ao meacutedico como um agente de

cuidado mas esperam dele e de outros profissionais implicados com novas tecnologias em

sauacutede prescriccedilotildees e orientaccedilotildees de forma que eles ndash os proacuteprios pacientes ndash possam decidir

sobre o destino de seus corpos No entanto podemos dizer ainda que tenham mudado de

posiccedilatildeo na teia discursiva da medicalizaccedilatildeo seguem fazendo parte desse emaranhado como

consumidores dos produtos da medicina

A medicalizaccedilatildeo com a qual estamos familiarizados hoje ou seja o processo intriacutenseco

ao progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico comeccedilou a aparecer na segunda metade do seacuteculo XX

Poreacutem a praacutetica vem tomando corpo desde o fim do seacuteculo XVIII com o discurso de

normalizaccedilatildeo da existecircncia problematizado na obra de Foucault Se hoje tendemos a traccedilar uma

separaccedilatildeo entre o corpo doente e o corpo saudaacutevel com o desenvolvimento da psiquiatria haacute

dois seacuteculos comeccedilamos a demarcar de forma cada vez mais clara e precisa a fronteira entre o

que eacute normal e o que eacute patoloacutegico

Essa distinccedilatildeo entre a normalidade e a patologia constitui um modo de operar proacuteprio

ao campo da psiquiatria que implica a instituiccedilatildeo de um padratildeo normal de funcionamento

mental e de comportamento ao qual todo indiviacuteduo eacute comparado Tal padratildeo eacute sempre dado a

priori nunca eacute questionado Mas como surge o padratildeo

De acordo com Freitas (2011) a partir de uma heranccedila dos ideais iluministas que

concebe o ser humano como racional e individualizado a psiquiatria durante o seacuteculo XIX

desenvolveu-se no sentido de descobrir funccedilotildees mentais e localizar no ceacuterebro problemas que

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acometiam tais funccedilotildees As descobertas neurofisioloacutegicas possibilitaram a concepccedilatildeo de teorias

acerca das capacidades humanas sendo que cada ser humano como indiviacuteduo deveria zelar

sobre sua mente e adaptaacute-la ao meio externo Aqueles que natildeo conseguiam ter esse cuidado

sobre suas funccedilotildees mentais demonstravam sinais patoloacutegicos de provaacutevel etiologia orgacircnica

Dessa forma o indiviacuteduo normal seria aquele mais adaptado agrave sua realidade e qualquer

desvio de norma poderia indicar uma patologia Entendemos que para a psiquiatria da eacutepoca a

origem de um problema de desajuste social estaacute localizada no organismo de um indiviacuteduo um

ser considerado doente e anormal sem levar em conta as particularidades da vida de cada um

ou entatildeo como a cultura eacute inscrita transmitida a cada sujeito concepccedilotildees que podemos ter hoje

ao nos debruccedilarmos sobre as produccedilotildees de nossos antepassados No seacuteculo XIX eram outros

os elementos que organizavam o discurso social

De acordo com Foucault (2006) nessa eacutepoca o meacutedico acaba por incorporar o poder

psiquiaacutetrico sobre o paciente tornando seu meacutetodo de intervenccedilatildeo a prova do domiacutenio sobre o

saber e sobre o outro A interrogaccedilatildeo que atesta a loucura a prescriccedilatildeo de medicamentos que

controlam o corpo o proacuteprio uso da hipnose satildeo praacuteticas que comprovam o poder psiquiaacutetrico

que tomam por terapecircuticas accedilotildees disciplinares Assim se constituiacuteam relaccedilotildees de poder

operadas por um discurso medicalizante que natildeo pode ser confundido com uma pessoa mas

com a funccedilatildeo que ela exerce num acircmbito relacional

Segundo Chaves e Caliman (2017) havia uma divergecircncia de olhares sobre o indiviacuteduo

doente Enquanto Esquirol pensava que a anormalidade era inata fatalidade bioloacutegica e

hereditaacuteria Seacuteguin acreditava na possibilidade de mudanccedila de comportamento dos indiviacuteduos

se houvesse uma intervenccedilatildeo Seacuteguin trouxe a noccedilatildeo de que o desenvolvimento ocorre a todo

ser humano de modo universal e que alguns apresentam particularidades para as quais uma

intervenccedilatildeo normalizadora eacute possiacutevel Tais particularidades passaram a ser levantadas descritas

e classificadas Nesse sentido a medicina conquista um espaccedilo para atuar de forma pedagoacutegica

e preventiva

Com as noccedilotildees de desenvolvimento e necessidade de prevenccedilatildeo de patologias o cenaacuterio

da psiquiatria passa a abranger tambeacutem a infacircncia de forma a produzir um saber meacutedico sobre

a crianccedila Dessa maneira

[] em torno da crianccedila anormal aquela que natildeo avanccedilava no seu desenvolvimento cresceu a defesa de um tratamento moral e de prevenccedilatildeo dos desvios facilitando a expansatildeo de estrateacutegias disciplinares da psiquiatria

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para aleacutem dos limites asilares aproximando-se das famiacutelias e das escolas (CHAVES CALIMAN 2017 p 141)

Podemos entrever essa ideia em Foucault no curso Os anormais O filoacutesofo aponta que

a psiquiatria proposta por Esquirol tinha um modelo de imitaccedilatildeo ou seja tinha como centro a

doenccedila e o que um conjunto de sintomas poderia representar dessa doenccedila Essa forma de operar

eacute substituiacuteda por uma psiquiatria que desfoca a doenccedila ou natildeo a coloca como causa de suas

investigaccedilotildees mas propotildee como centro um desenvolvimento normativo voltando sua atenccedilatildeo

entatildeo agrave infacircncia Tal modo de fazer psiquiatria eacute para o autor uma correlaccedilatildeo agraves descobertas

cientiacuteficas da neurologia e da biologia com as quais a psiquiatria poderia constituir-se como

saber da medicina

Vocecircs compreendem nessa medida por que e como a psiquiatria pocircde manifestar tanta obstinaccedilatildeo em enfiar o nariz no quarto de crianccedila ou na infacircncia Natildeo eacute porque ela queria acrescentar uma peccedila anexa a seu domiacutenio jaacute imenso natildeo eacute porque queria colonizar mais uma pequena parte de existecircncia em que ela natildeo teria tocado ao contraacuterio eacute que havia aiacute para ela o instrumento de sua universalizaccedilatildeo possiacutevel (FOUCAULT 2001 p 392)

Na infacircncia assim poderiacuteamos averiguar antecipaccedilotildees ou atrasos do desenvolvimento

humano normal que embora natildeo possam ser chamados de doentes eram entendidos como

anomalias Um instinto sexual biologicamente constituiacutedo poderia surgir precocemente na

infacircncia Por outro lado condutas sexuais inapropriadas para adultos de quem se espera um

desenvolvimento normal e controle sobre suas funccedilotildees mentais e instintos eram nomeadas de

infantis A palavra ldquoinfantilrdquo ou ldquoinfantilizadordquo acaba por significar condutas imaturas ou

seja na infacircncia ainda estamos num processo de maturaccedilatildeo orgacircnico e de nossas funccedilotildees

mentais que se bem controlado se bem educado nos conduz a uma normalidade adulta

No acircmbito da escola comeccedilaram a surgir espaccedilos para a educaccedilatildeo de crianccedilas ldquodoentesrdquo

(geralmente classificadas com idiotia ou seja retardo mental) separadas das crianccedilas ditas

normais das classes das escolas regulares No entanto dentro da sala de aula normal

apareceram novas categorias de anormalidade as crianccedilas com problemas morais inquietos e

indisciplinados que atrapalhavam a rotina escolar Dessa forma uma diferenccedila entre

comportamento doentio e conduta anocircmala indesejada no acircmbito da escola passou a ser

estabelecida (CHAVES CALIMAN 2017) Ou entatildeo como pode referir Foucault (2001 p

391)

76

Eacute um contratempo eacute uma sacudida nas estruturas que aparecem em contraste com um desenvolvimento normal e que vatildeo constituir o objeto geral da psiquiatria E eacute soacute secundariamente em relaccedilatildeo a essa anomalia fundamental que as doenccedilas vatildeo aparecer como uma espeacutecie de epifenocircmeno com relaccedilatildeo a esse estado que eacute fundamentalmente um estado de anomalia

Nesse sentido jaacute no seacuteculo XX a psiquiatria sentiu a necessidade de criar compecircndios

e manuais de doenccedilas encontradas nas diferentes fases do desenvolvimento humano e em

diferentes espaccedilos da vida humana a fim de ajudar na sua classificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo Eacute nesse

cenaacuterio que surgem as doenccedilas mentais de causas supostamente fisioloacutegicas que afetam

crianccedilas de acordo com uma concepccedilatildeo que correlaciona a anomalia do desenvolvimento com

achados neuroloacutegicos e bioloacutegicos

Durante a Primeira Guerra Mundial de acordo com Herrera (2015) Europa e Estados

Unidos viveram a epidemia de uma doenccedila misteriosa cujas causa e cura ateacute hoje natildeo foram

satisfatoriamente descobertas a encefalite letaacutergica um tipo de dor de cabeccedila potencialmente

fatal acompanhada de febre letargia tremores perda da fala e psicose entre outros sintomas

Como sintomas residuais foram descritas alteraccedilatildeo do sono hiperatividade teimosia

irritabilidade e problemas de memoacuteria

Entendemos que na eacutepoca muitos agentes etioloacutegicos eram ainda desconhecidos como

viacuterus e bacteacuterias Sabe-se que a doenccedila surgiu em contexto de guerra em que soldados poderiam

entrar em contato com soldados de outros territoacuterios transmitindo ou sendo infectados por

micro-organismos ainda estranhos ao corpo do outro ou ao seu proacuteprio Haacute uma suposiccedilatildeo atual

de que a encefalite letaacutergica tenha se originado por uma bacteacuteria que se alojava na garganta No

entanto na eacutepoca da epidemia quem investigava a doenccedila eram neurologistas por acreditarem

que a origem era um comprometimento das funccedilotildees neuroloacutegicas

No campo da medicina e da neurologia o seacuteculo XX foi marcado por uma importante

mudanccedila na forma de conceber e abordar sintomas de doenccedilas supostamente de origem

orgacircnica Anteriormente agrave Primeira Guerra Mundial meacutedicos viam-se preocupados com casos

de histeria doenccedila que acometia em sua maioria as mulheres e reunia alguns sintomas

semelhantes ao da encefalite letaacutergica aleacutem de paralisias e cegueiras

Sigmund Freud meacutedico formado em Viena atraveacutes do que estudou com Breuer e

Charcot a respeito do meacutetodo hipnoacutetico e com a ajuda de suas pacientes propocircs ao mundo da

medicina um novo meacutetodo de abordagem da histeria a escuta das representaccedilotildees mentais de

77

eventos traumaacuteticos e de histoacuterias de vida relacionadas a esses eventos o que levava agrave remissatildeo

ou ao aliacutevio de sintomas e a uma posiccedilatildeo mais responsaacutevel sobre escolhas de vida Assim no

iniacutecio do seacuteculo XX Freud apresentou a psicanaacutelise como teoria e meacutetodo de tratamento para

as neuroses As neuroses ainda que apresentem manifestaccedilotildees no corpo natildeo se originam de

acometimentos orgacircnicos mas se devem ao recalque a conteuacutedos mentais recalcados

alienados da consciecircncia Nesse sentido o surgimento da psicanaacutelise como teoria e meacutetodo de

tratamento foi a escuta de mulheres histeacutericas mulheres que situaram um limite no campo

meacutedico A partir do pedido de suas pacientes por tomarem a palavra Freud engendrou uma

nova forma de abordagem ao saber meacutedico que encontrou suas resistecircncias

Com o desenvolvimento da psicanaacutelise Freud chegou a alguns pilares de sua teoria

como o conceito de Trieb traduzido no Brasil por ldquopulsatildeordquo Na proposta de Freud (19152004)

a pulsatildeo evidenciaria a exigecircncia do trabalho imposto ao psiacutequico por sua articulaccedilatildeo ao corpo

referindo-se a impulsos que brotam do interior do corpo e demandam uma representaccedilatildeo

psiacutequica Aqui pode haver referecircncia agrave forma de abordagem das anormalidades discutida por

Foucault Haacute um trabalho psiacutequico em estabelecer uma articulaccedilatildeo entre as representaccedilotildees e o

que lateja no corpo Mannoni (2003) tambeacutem comenta que as produccedilotildees freudianas no iniacutecio

de sua vida como psicanalista eram tomadas na via de um paralelismo psicofiacutesico observado

em outros estudiosos Mas o corpo trazido agrave tona pelo discurso psicanaliacutetico a partir da escuta

de pacientes eacute o mesmo corpo da neurologia e da biologia objeto de investigaccedilatildeo e controle

da medicina Talvez uma das inovaccedilotildees de Freud para o campo da medicina seja a inauguraccedilatildeo

de uma nova noccedilatildeo de corpo atraveacutes de uma nova abordagem

Nesse sentido acreditamos que haacute aqui um contraste entre formas de abordagem dos

sintomas no campo da medicina Contudo natildeo queremos igualar histeria e encefalite letaacutergica

identificando-as numa mesma categoria nosoloacutegica pois sabemos que natildeo satildeo a mesma coisa

Apenas queremos dizer que para doenccedilas com sintomas neuroloacutegicos semelhantes que

desafiavam o campo meacutedico existiam modos distintos de investigaccedilatildeo que produziam modos

diferentes de conceber o corpo

Na deacutecada de 1930 alguns pesquisadores preocupados com uma nova epidemia de

encefalite letaacutergica voltaram-se agrave investigaccedilatildeo da gecircnese das condiccedilotildees neuroloacutegicas que

caracterizavam a doenccedila e estudaram o comportamento de crianccedilas com supostas lesotildees

cerebrais Jaacute em 1947 de acordo com Herrera (2015) Strauss e Werner criaram o termo Lesatildeo

78

Cerebral Miacutenima (LCM) para descrever crianccedilas com problemas de comportamento e com

dificuldades para aprender que natildeo se encaixavam em outras patologias da infacircncia

Poreacutem ao natildeo ser constatada lesatildeo alguma no ceacuterebro de crianccedilas supostamente

doentes o termo LCM foi substituiacutedo por DCM Disfunccedilatildeo Cerebral Miacutenima nova categoria

que foi amplamente divulgada nos Estados Unidos por meio da publicaccedilatildeo de um manual

explicativo em 1964 que traccedilava uma histoacuteria dos problemas de aprendizagem ateacute se chegar

ao DCM O projeto foi financiado pelo governo americano e consistia tambeacutem na distribuiccedilatildeo

de panfletos e na transmissatildeo de curtas-metragens que orientavam a populaccedilatildeo para a detecccedilatildeo

da disfunccedilatildeo (HERRERA 2015)

Em 1968 o Manual diagnoacutestico e estatiacutestico dos transtornos mentais (DSM) era

lanccedilado em sua segunda ediccedilatildeo na qual apresentava outra categoria de transtorno do aprender

chamada Transtorno de Reaccedilatildeo Hipercineacutetica ou Hipercinesia que continha os principais

sintomas da DCM as saber a hiperatividade desatenccedilatildeo e impulsividade

O nome da disfunccedilatildeo foi modificado para Distuacuterbio de Deacuteficit de Atenccedilatildeo na ediccedilatildeo do

DSM-III e para Transtorno do Deacuteficit de Atenccedilatildeo Com ou Sem Hiperatividade (TDAH) ou de

tipo combinado no DSM-IV Aparece com a mesma nomenclatura no DSM-V Jaacute outro manual

de classificaccedilatildeo de desordens mentais o Coacutedigo Internacional de Doenccedilas (CID-10) chama um

distuacuterbio similar ao TDAH de Transtornos Hipercineacuteticos

Segundo o DSM-V o TDAH eacute um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado

por dificuldades no desenvolvimento que se manifestam desde a infacircncia e influenciam no

desempenho estudantil familiar e social O diagnoacutestico pode ser realizado a partir dos 6 anos

de idade Consiste num padratildeo persistente de desatenccedilatildeo eou hiperatividade e impulsividade

que caracterizam uma disfunccedilatildeo no desenvolvimento Tanto o tipo desatento quanto o tipo

hiperativo exigem que no miacutenimo seis sintomas de nove listados de cada um estejam presentes

e persistam por pelo menos seis meses de modo incompatiacutevel com o niacutevel de desenvolvimento

e que tenham prejuiacutezos sobre a vida estudantil profissional e social do indiviacuteduo (AMERICAN

PSYCHIATRY ASSOCIATION 2014)

Freitas (2011) em sua tese de doutorado propotildee pensar o que caracteriza o TDAH Se

nesse transtorno o sujeito eacute marcado por um deacuteficit importante da atenccedilatildeo a autora sugere

investigar este conceito e sua construccedilatildeo histoacuterica Haveria um consenso sobre seu significado

Freitas aponta que natildeo

79

A ausecircncia de uma definiccedilatildeo mais clara do conceito de atenccedilatildeo em muitos escritos pode parecer aparentemente irrelevante como se esse fosse um dado que se pudesse tomar a priori Mas natildeo eacute Entendo que esse conceito vem sendo usado como se todos tiveacutessemos propriedade sobre ele ou mesmo um entendimento padratildeo para seu uso Mas natildeo temos (FREITAS 2011 p 42)

Frisamos que Freud no iniacutecio do seacuteculo XX situando a teacutecnica da escuta analiacutetica

aborda a atenccedilatildeo Ele a teoriza da seguinte forma

[] poupamos de esforccedilo violento nossa atenccedilatildeo a qual de qualquer modo natildeo poderia ser mantida por vaacuterias horas diariamente e evitamos um perigo que eacute inseparaacutevel do exerciacutecio da atenccedilatildeo deliberada Pois assim que algueacutem deliberadamente concentra bastante a atenccedilatildeo comeccedila a selecionar o material que lhe eacute apresentado um ponto fixar-se-aacute em sua mente com clareza particular e algum outro seraacute correspondentemente negligenciado e ao fazer essa seleccedilatildeo estaraacute seguindo suas expectativas ou inclinaccedilotildees Isto contudo eacute exatamente o que natildeo deve ser feito Ao efetuar a seleccedilatildeo se seguir suas expectativas estaraacute arriscado a nunca descobrir nada aleacutem do que jaacute sabe e se seguir as inclinaccedilotildees certamente falsificaraacute o que possa perceber Natildeo se deve esquecer que o que se escuta na maioria satildeo coisas cujo significado soacute eacute identificado posteriormente (FREUD 19121996c p 70)

Sabemos que haacute aqui uma diferenccedila importante a ser situada entre a atenccedilatildeo demandada

na escuta psicanaliacutetica voltada para a literalidade do que se escreve na fala e uma atenccedilatildeo

voluntaacuteria que pertence aos processos conscientes Para Freitas (2011) cada tempo de nossa

histoacuteria apresentou um modo de conceber a atenccedilatildeo de controlaacute-la de julgaacute-la e de medi-la Eacute

possiacutevel entender que a atenccedilatildeo eacute um conceito em transformaccedilatildeo constante inseparaacutevel das

mudanccedilas de paradigma ao longo da nossa histoacuteria

Por exemplo a autora aponta a importacircncia da atenccedilatildeo durante o seacuteculo XIX e o quanto

o desenvolvimento dessa funccedilatildeo psicoloacutegica ficou atrelado agraves possibilidades da ciecircncia de

medi-la pensar formas de estimulaacute-la e controlaacute-la Nesse sentido a concepccedilatildeo de atenccedilatildeo

adequava-se aos limites das teacutecnicas de mediccedilatildeo Coube agrave educaccedilatildeo como papel fundamental

nesse processo entrever as condiccedilotildees de fixar a atenccedilatildeo das crianccedilas para os modelos morais

respeitaacuteveis da eacutepoca

Com o desenvolvimento do conceito de atenccedilatildeo pelo discurso meacutedico as noccedilotildees de

impulsividade e de falta de controle se tornam indiacutecios de patologia Isso pode ter colaborado

para a descriccedilatildeo de uma entidade nosoloacutegica como o TDAH que reuacutene sintomas de desatenccedilatildeo

hiperatividade e impulsividade

80

Santos e Freitas (2016) entrevistando Ilina Singh uma importante pesquisadora inglesa

sobre o TDAH contam que o transtorno ficou conhecido no Brasil nos anos 1990 quando

professores passaram a identificar alunos hiperativos em suas salas de aula e encaminhaacute-los

para diagnoacutesticos meacutedicos Hoje os diagnoacutesticos de TDAH atingiram niacuteveis epidecircmicos no

Brasil

Os pesquisadores afirmam que a miacutedia tem um importante papel nessa mudanccedila de

cenaacuterio No entanto hoje na cidade de Porto Alegre professores recebem treinamento e

capacitaccedilatildeo especiacuteficos para detectar a presenccedila de sintomas de TDAH nos estudantes e satildeo

orientados a fazer o devido encaminhamento para especialistas em sauacutede

Para os autores essa situaccedilatildeo evidencia o quanto a escola brasileira estaacute se tornando

dependente da presenccedila do saber meacutedico para legislar sobre problemas de aprendizagem

Em outras palavras as escolas estatildeo delegando agrave medicina a autoridade para legislar sobre problemas ou questotildees que poderiam ser vistos como escolares ou sociais num claro processo de medicalizaccedilatildeo Neste sentido entendemos que as escolas estatildeo deixando um espaccedilo vazio em termos pedagoacutegicos no que se refere agraves suas possiacuteveis accedilotildees ou praacuteticas [] (SANTOS FREITAS 2016 p 1079)

O fato de o nuacutemero de crianccedilas e de pessoas de diferentes idades ter atingido um

patamar considerado epidecircmico no Brasil eacute algo que causa bastante preocupaccedilatildeo e necessidade

de investigar as causas do transtorno sejam elas orgacircnicas fisioloacutegicas educacionais e sociais

em diversas pesquisas no Paiacutes assim como um dia pesquisadores se ocuparam de estudar a

encefalite letaacutergica no iniacutecio do seacuteculo passado

De acordo com Freitas (2011) uma epidemia eacute assim chamada quando um evento ou

uma doenccedila aparece repentinamente e atinge rapidamente uma parcela consideraacutevel da

populaccedilatildeo A autora aponta que a prevalecircncia de crianccedilas com TDAH no mundo varia de 3 a

6 dependendo do paiacutes ou da regiatildeo E percebe tal realidade quando numa turma de vinte

alunos quatro ou cinco tecircm o diagnoacutestico e os professores natildeo se impressionam com tal fato

As formas de abordar a epidemia do TDAH satildeo bastante diversas de acordo com a aacuterea

de pesquisa e a trajetoacuteria acadecircmica Haacute aqueles que se questionam sobre a existecircncia do

transtorno ndash natildeo seria uma invenccedilatildeo da American Psychiatry Association (APA) Temos uma

epidemia de acometidos ou de diagnoacutesticos ndash e haacute outros que apresentam registros de uma

doenccedila semelhante ao TDAH descrita no seacuteculo XVIII e afirmam que as crianccedilas tecircm o direito

de serem diagnosticadas e tratadas

81

Ilina Singh (apud SANTOS FREITAS 2016) fala da importacircncia de tratarmos da

questatildeo de modo multifatorial como um problema de sauacutede puacuteblica que coloca as diversas

aacutereas a trabalharem juntas Hoje eacute conhecido amplamente que o principal encaminhamento que

se faz a uma crianccedila com TDAH eacute a avaliaccedilatildeo meacutedica para o iniacutecio de tratamento com o

metilfenidato um psicoestimulante criado nos anos 1950 na Suiacuteccedila vendido e consumido no

mundo inteiro

No entanto Singh considera como algo importante no tratamento a escuta das crianccedilas

e de suas famiacutelias a fim de registrar e de divulgar o que elas podem dizer sobre isso que lhes

acontece isso que chamamos TDAH Nada mais justo do que dar voz agravequeles que sofrem os

sintomas assim como no fim do seacuteculo XIX Freud deu voz agraves histeacutericas constituindo um

meacutetodo que permitiu aos sujeitos narrarem as particularidades de suas histoacuterias para aleacutem dos

achados cientiacuteficos Eacute importante na escuta de crianccedilas com TDAH lembrar o que nos disse a

psicanalista Maud Mannoni (2003) natildeo podemos usar a crianccedila para comprovar as verdades

de uma teoria ou seja natildeo devemos querer encontrar na crianccedila os sintomas previstos de

desatenccedilatildeo e hiperatividade mas buscar construir com ela uma narrativa que sirva de ponte

para outras formas de ser e estar no mundo

11 MARGUERITE ou um recorte da histoacuteria da RITALINA

O nome Marguerite tem sua importacircncia para a histoacuteria da psicanaacutelise teoria e meacutetodo

a partir dos quais se pretende traccedilar as linhas desta pesquisa O psicanalista Jacques Lacan

apresentou em sua tese de doutorado em psiquiatria o ldquoCaso Aimeacuteerdquo nome fictiacutecio de

Marguerite uma mulher que sofria de paranoia A partir da escuta de seus deliacuterios Lacan

desloca uma concepccedilatildeo organicista e sintomaacutetica acerca da paranoia para uma concepccedilatildeo

psicanaliacutetica dando ecircnfase aos significantes que organizam e desorganizam o deliacuterio

Gostariacuteamos no entanto de apresentar outra Marguerite natildeo a partir de um caso cliacutenico

mas como sua histoacuteria inspirou o nome de um faacutermaco

Marguerite era uma jovem mulher que vivia com seu marido Leandro Panizzon em

Basel Suiacuteccedila Os dois haviam nascido e crescido na Itaacutelia Ela jogava tecircnis Leandro era quiacutemico

na empresa CIBA Na eacutepoca ele sintetizava compostos de nitrogecircnio

Certo dia no ano de 1944 ele fez experimentos com a piperidina uma amina encontrada

em plantas e criou um composto molecular muito semelhante agraves anfetaminas que satildeo poderosos

82

estimulantes No entanto a empresa onde trabalhava entendeu que Panizzon havia produzido

um estimulante leve uma espeacutecie de ldquopsicotocircnicordquo (SHORTER 2008)

Dessa forma o que ele havia descoberto era diferente dos estimulantes que se conheciam

ateacute entatildeo derivados das anfetaminas Um importante estimulante com essa derivaccedilatildeo

sintetizado em 1932 na Franccedila foi a benzedrina muito utilizada durante a Segunda Guerra

Mundial com o intuito de aumentar a resistecircncia e eliminar o cansaccedilo dos soldados (BRANT

CARVALHO 2012)

Por questatildeo de honra o quiacutemico resolveu experimentar sua criaccedilatildeo para averiguar seus

efeitos Poreacutem ele natildeo sentiu nada digno de nota Resolveu entatildeo oferecer o composto agrave sua

esposa Diferentemente de Leandro Marguerite se sentiu estimulada e disposta quando provou

a droga Passou a usaacute-la com frequecircncia e notou melhora em seu problema de pressatildeo baixa

Aleacutem disso comeccedilou a tomaacute-la antes de suas partidas de tecircnis o que a ajudou a aprimorar seu

desempenho (SHORTER 2008)

Panizzon passou a trabalhar com seu colega Hartmann no aprimoramento da moleacutecula

que havia inventado e em 1950 obtiveram o metilfenidato A patente para sua comercializaccedilatildeo

veio em 1954 O faacutermaco comeccedilou a ser vendido na Suiacuteccedila como um psicoestimulante leve para

agir sobre a fadiga crocircnica a letargia alguns estados depressivos psicose associada agrave depressatildeo

e a narcolepsia (HERRERA 2015)

Considerando o apreccedilo de Marguerite pela droga que criara Leandro resolveu nomeaacute-

la de Ritaline em homenagem agrave sua mulher cujo apelido era Rita (SHORTER 2008)

A Ritalina como a chamamos no Brasil pode ser representada pela seguinte foacutermula

83

De acordo com Herrera (2015) com a patente norte-americana que Panizzon e

Hartmann conseguiram a Ritalina foi importada para os Estados Unidos em 1955 e comeccedilou a

ser utilizada em hospitais para o tratamento de adultos depressivos

Dos anos 1950 ateacute os nossos dias o composto foi crescendo em produccedilatildeo e

comercializaccedilatildeo passando a ser indicado para diferentes puacuteblicos De homens deprimidos a

Ritalina teve bons efeitos sobre idosos depressivos alcoolistas mulheres fatigadas meninos

desobedientes ateacute chegar a crianccedilas e adolescentes com desordens do aprender

Isso eacute o que nos mostra um importante estudo realizado por Herrera (2015) que analisa

propagandas do metilfenidato feitas pelas induacutestrias farmacecircuticas e publicadas em revistas

cientiacuteficas desde sua criaccedilatildeo ateacute 1979 A partir das propagandas o autor constata a mudanccedila

de puacuteblico-alvo As uacuteltimas propagandas analisadas indicam a Ritalina para crianccedilas com

problemas na escrita e na matemaacutetica prometendo melhora no rendimento escolar Aleacutem disso

apontam como puacuteblico-alvo meninos problemaacuteticos inquietos e hiperativos provavelmente

portadores de disfunccedilatildeo cerebral miacutenima

Ainda que a moleacutecula tenha sido aperfeiccediloada no intuito de diminuir os efeitos

colaterais o princiacutepio do metilfenidato eacute o mesmo desde os anos 1950 ateacute hoje uma substacircncia

psicotroacutepica que atua no sistema nervoso central mais precisamente no sistema da dopamina

impedindo sua recaptaccedilatildeo bem como a recaptaccedilatildeo de outros neurotransmissores fazendo com

que eles prolonguem seus estiacutemulos eleacutetricos Poreacutem se na segunda metade do seacuteculo XX o

metilfenidato foi prescrito como estimulante leve capaz de agir contra a depressatildeo e a fadiga

hoje ele eacute indicado a pessoas que apresentam comportamentos diferentes de estados

depressivos ou seja eacute indicado para quem tem hiperatividade e deacuteficit de atenccedilatildeo oferecendo

melhora na concentraccedilatildeo das tarefas escolares

Coincidentemente ou natildeo a eacutepoca da mudanccedila de puacuteblico consumidor do metilfenidato

foi a mesma de descoberta do composto da fluoxetina antidepressivo consumido ateacute hoje com

este fim moleacutecula que tem como diferencial atuar sobre a recaptaccedilatildeo exclusiva do

neurotransmissor serotonina produzindo efeitos colaterais menos nocivos (SHORTER 2008)

No entanto ainda que os pacientes para quem o medicamento eacute indicado tenham

mudado ao longo dos anos haacute um puacuteblico que consome o metilfenidato da eacutepoca de sua criaccedilatildeo

ateacute a atualidade com o mesmo fim Marguerite usava a droga que recebeu seu apelido para

aprimorar seu rendimento nos jogos de tecircnis e hoje existem pessoas que o tomam para obter um

84

bom desempenho nas mais diversas atividades Melhorar a produtividade e a performance satildeo

objetivos natildeo meacutedicos

Isso eacute o que nos apontam Brant e Carvalho (2012) ao dizerem que o puacuteblico que tem

como finalidade melhorar o desempenho eacute bastante diverso como estudantes universitaacuterios

especialmente em eacutepocas de provas profissionais da sauacutede empresaacuterios atletas e motoristas

de caminhatildeo Com o uso natildeo meacutedico por um grupo heterogecircneo como esse os autores sugerem

que haacute venda ou prescriccedilatildeo descontrolada do medicamento a pessoas saudaacuteveis que buscam

melhoria das funccedilotildees cognitivas

Os autores apontam que ao contraacuterio do que se pode imaginar o consumo do

metilfenidato estaacute para aleacutem de fins recreativos como o prazer causado por um estado de

euforia ou uma sensaccedilatildeo de bem-estar Visa responder agraves demandas do mundo do trabalho

competitivo e globalizado Defendem que a Ritalina seria um medicamento gadget da

contemporaneidade o que significa que ocupa um lugar na economia de gozo do nosso tempo

O gadget eacute entendido como um produto criado pela induacutestria que oferece um ganho ldquoum

prolongamento das capacidades humanasrdquo mas sempre insuficiente e limitado no tempo

O uso contemporacircneo do metilfenidato estaacute aleacutem da triacuteade doenccedila sauacutede e cuidado Compreende a busca incessante do homem para superar seus limites e viver bem em sociedade o que torna esse medicamento um gadget um fetiche capaz de aproximar ainda mais o usuaacuterio de sua fraacutegil condiccedilatildeo do ser-aiacute-no-mundo (BRANT CARVALHO 2012 p 632)

12 RITALINA e o consumo de metilfenidato por escolares

Os pais dizem incontrolaacutevel desastrado impulsivo Seus professores dizem hiperativo se distrai com facilidade impulsivo Os meacutedicos diriam PFC (Problema Funcional de Comportamento) DCM (Disfunccedilatildeo Cerebral Miacutenima) LCM (Lesatildeo Cerebral Miacutenima) Hipercinesia Ritalina ajuda a ldquocrianccedila problemardquo a se tornar amaacutevel de novo

(Canadian Family Phisician 1971 traduccedilatildeo nossa)

Em 1971 a CIBA induacutestria farmacecircutica fabricante do metilfenidato publicou uma

propaganda na revista Canadian Family Phisician com os dizeres em epiacutegrafe Conforme

Herrera (2015) esse eacute um dentre vaacuterios anuacutencios publicados em revistas meacutedicas canadenses

85

e norte-americanas para a promoccedilatildeo da Ritalina como um medicamento para crianccedilas com

problemas tanto em casa quanto na escola

Qual a validade do saber da famiacutelia e da escola nessa propaganda Parece que o saber

meacutedico que visa um diagnoacutestico ganha um valor sobredeterminante na conduta com a crianccedila

que apresenta tais caracteriacutesticas com os pais e na sala de aula jaacute que eacute com uma das opccedilotildees

diagnoacutesticas apresentadas que o caminho do medicamento eacute indicado A Ritalina eacute oferecida

como aquilo que vai tornar a crianccedila com problema uma crianccedila amaacutevel como uma ponte entre

uma crianccedila indesejaacutevel porque hiperativa impulsiva desatenta e uma crianccedila amaacutevel digna

de amor pela famiacutelia e pela escola

O anuacutencio cita diferentes diagnoacutesticos jaacute conhecidos pela classe meacutedica na eacutepoca como

a lesatildeo cerebral miacutenima e cita tambeacutem novas nomenclaturas como a disfunccedilatildeo cerebral

miacutenima Dessa forma acaba convocando meacutedicos que nomeiam de formas diferentes a mesma

questatildeo que desejam promover

De acordo com a anaacutelise de Herrera (2015) a CIBA promoveu a Ritalina e o transtorno

receacutem-nomeado de DCM de forma conjunta Se dos anos 1950 ateacute iniacutecio de 1970 o

medicamento era voltado para o puacuteblico adulto conforme mostravam comerciais da eacutepoca a

partir dos anos 1970 o puacuteblico-alvo da induacutestria farmacecircutica mudou para os meninos com

problemas escolares devido agrave impulsividade e agrave inquietaccedilatildeo identificadas tambeacutem em casa

Segundo o autor ldquoo material publicitaacuterio desenvolvido na deacutecada de 1970 reforccedila a associaccedilatildeo

do comportamento inquieto e impulsivo com o gecircnero masculino e consolida efetivamente a

Ritalina como a droga de escolha para o tratamento do comportamento impulsivo em meninosrdquo

(HERRERA 2015 p 123)

No Brasil a Ritalina produzida pela Novartis chegou nos anos 1990 periacuteodo em que

a palavra ldquohiperativordquo tambeacutem passou a ser frequente no discurso social da escola Importante

lembrar que o termo ldquocrianccedila problemardquo citado na propaganda da CIBA foi veiculado no

Brasil nos anos 1930 atraveacutes do livro de mesmo nome do meacutedico alagoano Arthur Ramos no

qual aborda os serviccedilos de higiene mental no estado do Rio de Janeiro e propotildee uma diferenccedila

entre anormalidade da crianccedila e o problema que vive em seu contexto social e cultural O

meacutedico propotildee chamar de ldquocrianccedila problemardquo aquela que experimenta dificuldades de

aprendizagem e de adaptaccedilatildeo agrave escola que natildeo se devem a um problema orgacircnico ou a uma

anomalia jaacute que essas constituem realmente um impedimento uma barreira a uma educaccedilatildeo

comum como eacute o caso nos dias de hoje dos alunos com necessidades educativas especiais A

86

crianccedila problema corresponde agravequela produzida pelo discurso dos pais e educadores Para o

autor

[] as crianccedilas ldquocaudas de classerdquo nas Escolas insubordinadas desobedientes instaacuteveis mentirosas fujonas [] na sua grande maioria natildeo satildeo portadoras de nenhuma ldquoanomaliardquo moral no sentido constitucional do termo Elas foram ldquoanormalizadasrdquo pelo meio Como o homem primitivo cuja ldquoselvageriardquo foi uma criaccedilatildeo de civilizados tambeacutem na crianccedila o conceito de ldquoanormalrdquo foi antes de tudo o ponto de vista adulto a consequumlecircncia de um enorme sadismo inconsciente de pais e educadores (RAMOS 1950 p 18)

Compreendendo o sentido de ldquomeiordquo menos pelo vieacutes behaviorista e mais atrelado agrave

teoria da psicanaacutelise e da antropologia Ramos buscou mostrar o quanto noacutes educadores pais

psicoacutelogos meacutedicos podemos fazer com que alunos respondam a uma expectativa de

anormalidade com sintomas que cabem agrave forma de organizaccedilatildeo social da escola Nesse sentido

busca desconstruir o discurso que patologiza a crianccedila escolar e fala dos problemas vividos no

contexto social brasileiro daquela eacutepoca

No entanto a partir da propaganda da CIBA e da apropriaccedilatildeo que fazemos dos

significantes que designam os transtornos eacute possiacutevel dizer que o conceito utilizado por Ramos

(1950) de ldquocrianccedila problemardquo acabou engolfado pelo processo de medicalizaccedilatildeo da escola

brasileira e ressignificado como um problema individual Agrave diferenccedila de Ramos (1950) que

faz uma criacutetica agrave conduta anormalizadora na escola o anuacutencio da Ritalina propotildee uma

alternativa teacutecnica agrave fala de pais e educadores aleacutem de apresentar a soluccedilatildeo para a ldquodoenccedilardquo da

crianccedila

Nesse sentido hoje o metilfenidato eacute tanto importado quanto produzido no Brasil e

vendido sob o nome comercial Ritalina e Concerta Haacute tambeacutem a opccedilatildeo de medicamento

geneacuterico

Segundo Bianchi e outros (2017) entre 1996 e 2012 a quantidade de metilfenidato

produzido aqui e importado passou de 9 para 578 kg o que representa um aumento de 6322

comparando com a fabricaccedilatildeo mundial de metilfenidato entre 1998 e 2012 a qual variou de

13493 kg a 63236 kg representando um aumento de 369 O relatoacuterio teacutecnico de fabricaccedilatildeo

de substacircncias psicotroacutepicas feito pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e publicado em 2017

ressalta que em 2016 ocorreu o maior registro de fabricaccedilatildeo mundial de metilfenidato no

mundo ou seja 74 toneladas Em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo de 2012 haacute um aumento de 17 Ainda

87

que seja possiacutevel perceber uma certa estabilidade registra-se um crescimento na produccedilatildeo do

medicamento

Se a fabricaccedilatildeo mundial tem aumentado cada vez mais isso pode indicar que a

necessidade de consumo pode estar aumentando Em 2018 registrou-se no Brasil uma procura

maior do que a oferta O jornal mineiro O Tempo publicou uma reportagem em outubro sobre

a falta do medicamento que atingiu todo o Paiacutes desde maio A justificativa da Novartis

fabricante da Ritalina para o desabastecimento foi a burocracia para importaccedilatildeo da mateacuteria-

prima o que gerou um atraso na produccedilatildeo aleacutem disso houve uma procura maior que a prevista

De acordo com a repoacuterter Thuanny Motta como forma de garantir o acesso ao

medicamento nas farmaacutecias brasileiras a empresa resolveu duplicar a produccedilatildeo nacional de

150 mil caixas para 300 mil por mecircs pelo menos durante um periacuteodo de trecircs meses aleacutem de

otimizar a via de distribuiccedilatildeo Lembramos que o metilfenidato natildeo eacute vendido apenas para

pessoas diagnosticadas com o TDAH Como discutido o consumo tambeacutem ocorre entre aqueles

que desejam aprimorar seu desempenho em atividades acadecircmicas e profissionais No entanto

eacute preciso considerar que de acordo com Bianchi e outros (2017) o metilfenidato eacute o estimulante

mais vendido no Brasil para o tratamento do TDAH entre crianccedilas jovens e adultos

A Agecircncia Nacional de Vigilacircncia Sanitaacuteria (Anvisa) preocupada com o aumento do

consumo de Ritalina nos anos 2000 divulgou um boletim informativo sobre o puacuteblico

consumidor do metilfenidato O oacutergatildeo constatou um aumento do consumo de Ritalina por

crianccedilas de 6 a 16 anos no Brasil entre os anos de 2009 a 2011 Natildeo haacute divulgaccedilatildeo de um

boletim com dados mais recentes

No entanto a partir da reportagem do jornal O Tempo eacute possiacutevel fazer uma constataccedilatildeo

Se no boletim divulgado em 2012 o maior consumo mensal de metilfenidato considerando a

Ritalina a Ritalina de longa duraccedilatildeo e o Concerta foi de aproximadamente 140 mil caixas no

mecircs de agosto de 2011 (Figura 1) parece que hoje a produccedilatildeo normal apenas de Ritalina e

Ritalina de longa duraccedilatildeo tem sido de 150 mil caixas por mecircs

Para ter dados mais representativos da real produccedilatildeo do metilfenidato seria necessaacuterio

estimar a produccedilatildeo de Concerta e do geneacuterico fabricado pelo laboratoacuterio EMS aleacutem de

relacionar os dados da produccedilatildeo com os dados do consumo Sobre esta relaccedilatildeo no mecircs de

novembro de 2018 a empresa Novartis revelou a pedido do jornal baiano Correio que a

demanda meacutedia de Ritalina eacute de 150 a 160 mil unidades por ano A cada ano haacute aumento de

15 na procura

88

Eacute interessante levar em consideraccedilatildeo a periodicidade da dispensa do metilfenidato no

Brasil conforme o Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC)

Segundo Bianchi e outros (2017) a comercializaccedilatildeo do metilfenidato diminui com o fim do

ano letivo o que pode ser interpretado como uma diminuiccedilatildeo da prescriccedilatildeo meacutedica durante as

feacuterias escolares Podemos observar essa constataccedilatildeo no graacutefico a seguir divulgado no boletim

farmacoepidemioloacutegico do SNGPC (2012)

Figura 1ndash Consumo mensal de metilfenidato industrializado no Brasil entre 2009 e 2011

Fonte SNGPCCSGPCNUVIGAnvisa

A relaccedilatildeo do consumo de metilfenidato ao longo do ano letivo pode ficar um pouco mais

clara se olharmos o graacutefico que informa as caixas de medicamentos consumidas por crianccedilas e

jovens em idade escolar na cidade de Porto Alegre que de acordo com o SNGPC (2012) eacute a

cidade brasileira que registrou o maior consumo desse medicamento no triecircnio

89

Figura 2 ndash Consumo mensal de metilfenidato em Porto Alegre entre 2009 e 2011

Fontes SNGPCCSGPCNUVIGAnvisa DATASUSMinisteacuterio da Sauacutede

Podemos verificar com o graacutefico que existe um aumento no consumo de metilfenidato

com o iniacutecio das aulas e salvo algumas variaccedilotildees haacute uma tendecircncia de crescimento ao longo

do ano Os meses de maior consumo parecem ser outubro e novembro eacutepoca em que os alunos

podem estar realizando as avaliaccedilotildees finais Nos trecircs anos haacute uma ligeira queda no mecircs de julho

mecircs das feacuterias de inverno e logo em seguida um aumento de consumo com o iniacutecio do segundo

semestre

Tais interpretaccedilotildees satildeo confirmadas pelo SNGPC ao analisar um conjunto de dados do

consumo e prescriccedilatildeo meacutedica em todo o paiacutes A agecircncia conclui que ldquotem havido um aumento

no consumo de metilfenidato no paiacutes com um comportamento aparentemente variaacutevel com

destaque para reduccedilatildeo do consumo nos meses de feacuterias e aumento no segundo semestre dos

anos estudadosrdquo (SISTEMA NASCIONAL 2012 p 13)

Aleacutem disso outro importante dado informado pela agecircncia foi o de que a maioria dos

meacutedicos que prescrevem o faacutermaco tem especialidade no atendimento de crianccedilas e jovens

como neurologia pediaacutetrica e pediatria ldquoEntre as especialidades meacutedicas informadas houve

um predomiacutenio daquelas relacionadas com assistecircncia agrave crianccedila e ao adolescente e que tratam

de problemas do sistema nervoso centralrdquo (SISTEMA NACIONAL 2012 p 13) Dessa

90

forma a maior parte das prescriccedilotildees controladas do faacutermaco tem sido realizada para o puacuteblico

infantil e juvenil provavelmente em funccedilatildeo de um diagnoacutestico de TDAH

O consumo de metilfenidato associado agrave escolarizaccedilatildeo eacute um fato que descobrimos pela

anaacutelise dos graacuteficos O medicamento estaria ganhando o espaccedilo escolar de forma a se tornar

condiccedilatildeo para a educaccedilatildeo No final do boletim farmacoepidemioloacutegico o SNGPC nos alerta

para o fato de que o uso do medicamento metilfenidato tem sido feito de forma equivocada

divulgado como a ldquodroga da obediecircnciardquo e que em paiacuteses como os Estados Unidos utiliza-se o

medicamento ldquopara moldar as crianccedilas afinal eacute mais faacutecil modificaacute-las que ao ambienterdquo

(SISTEMA NACIONAL 2012 p 13) Recomenda que o metilfenidato seja utilizado como

mais uma estrateacutegia ldquoaliado a outras medidas como educacionais sociais e psicoloacutegicasrdquo

(SISTEMA NACIONAL 2012 p 13)

Nesse sentido contamos a histoacuteria do diagnoacutestico de TDAH e do consumo de

metilfenidato para aleacutem da questatildeo singular pela qual fomos convocados na cliacutenica

Conhecemos um pouco de seu caraacuteter epidecircmico e das proporccedilotildees que a medicalizaccedilatildeo tomou

em nossa vida como modo de regular nossas relaccedilotildees uns com os outros

Nas paacuteginas seguintes iremos pensar a questatildeo a partir de outra perspectiva a qual traz

agrave tona os embaraccedilos que aparecem na histoacuteria contada no proacutelogo formados quando

interrogamos as escolhas que tomamos junto a crianccedilas com problemas de comportamento na

escola Essa perspectiva eacute a da relaccedilatildeo entre o traacutegico e a psicanaacutelise como formas discursivas

que nos possibilitam enunciar uma questatildeo de modo a criar bordas ao impossiacutevel de nosso

fazer

91

2 A TRAGEacuteDIA ANTIGA E CONSTITUICcedilAtildeO DA PSICANAacuteLISE

Flectere si nequeo superos Acheronta movebo

Virgiacutelio Eneida

Em 1900 Freud publica a obra inaugural da psicanaacutelise chamada A interpretaccedilatildeo dos

sonhos com essa frase de apresentaccedilatildeo a qual significa ldquoSe natildeo posso mover os ceacuteus moverei

o infernordquo ou ainda ldquoSe natildeo puder dobrar os deuses de cima moverei o Aqueronterdquo

Encontramos tal citaccedilatildeo no livro VII verso 312 do poema eacutepico Eneida do poeta romano

Virgiacutelio O Aqueronte referido por Freud eacute o um rio subterracircneo que representa os deuses que

habitam a parte de baixo da terra Deuses que muitas vezes pisaram o palco das trageacutedias

antigas por meio de uma escada situada sob um alccedilapatildeo conhecida por escada de Caronte ou

de Aqueronte

Pensamos o que faz com que Freud escolha tal frase como podemos dizer um oraacuteculo

de abertura agrave sua ciecircncia Preserva o latim liacutengua enigmaacutetica aos falantes das liacutenguas que dela

derivam Os sonhos satildeo justamente isso enigmas aos seus sonhadores figuraccedilotildees que brotam

na consciecircncia e causam surpresa e inquietaccedilatildeo a quem as produz O que Freud mostra na obra

que introduz o seu meacutetodo de escuta dos sonhos eacute o trabalho psiacutequico de encenar o desejo

inconsciente e o trabalho de interpretaccedilatildeo das cenas tornando o desconhecido conhecido o

estranho familiar o conteuacutedo inconsciente consciente

Em vez de incidir sobre o que aparece conscientemente no discurso ndash ou seja o

significado corrente do que o paciente diz ndash situando o falante numa rede discursiva

distanciada sem que se construa um percurso ateacute ela uma rede que o identifica como mais um

indiviacuteduo que sofre de mesmos sintomas Freud escuta o como como o paciente diz o que diz

a dimensatildeo invisiacutevel presente em seu discurso e nesse sentido aproxima-se de um discurso

outro que daacute voz ao sujeito que cinde o indiviacuteduo que o atravessa que mostra como um aspecto

sintomaacutetico compartilhado por muitos o toca singularmente Freud chega ao rio subterracircneo

move o Aqueronte constroacutei a travessia com o sujeito que lhe fala de um modo de dizer a outro

Nesse sentido traz agrave cena o inconsciente comprova sua existecircncia para aleacutem dos sintomas

neuroacuteticos ou seja apresenta os sonhos como manifestaccedilotildees dessa instacircncia alienante

92

21 A trilogia tebana de Soacutefocles Eacutedipo Rei e o inconsciente

Falando de sonhos infantis que retratam o desejo por um dos progenitores e a aversatildeo

ao outro Freud se aproxima de outra histoacuteria claacutessica grega desta vez que se torna emblemaacutetica

da proacutepria psicanaacutelise

Essa descoberta eacute confirmada por uma lenda da Antiguidade claacutessica que chegou ateacute noacutes uma lenda cujo poder profundo e universal de comover soacute pode ser compreendido se a hipoacutetese que propus com respeito agrave psicologia infantil tiver validade igualmente universal O que tenho em mente eacute a lenda do Rei Eacutedipo e a trageacutedia de Soacutefocles que traz o seu nome (FREUD 19002015 p 178)

A histoacuteria de Soacutefocles Oedipus Tiranus tem iniacutecio com a peste que toma conta de

Tebas terra de Cadmo antigo cidade que jaacute conheceu seus momentos de gloacuteria O oraacuteculo do

deus Apolo revela que a terra poderaacute ser purificada quando o assassino do rei antecessor Laio

for descoberto e punido O rei Eacutedipo que assumira o trono de Tebas e se casara com a rainha

Jocasta como recompensa apoacutes desvendar o enigma da Esfinge lanccedila-se na empreitada de

descobrir e combater o assassino de Laio Eacutedipo que chegara agrave terra de Tebas por fugir de seu

destino uma profecia de que seria o assassino de seu pai e desposaria a proacutepria matildee acaba por

se descobrir filho e algoz do antigo rei Ao fugir de seu destino cumpre-o sem sabecirc-lo Aiacute reside

a dimensatildeo do inconsciente

A accedilatildeo da peccedila natildeo consiste em nada aleacutem do processo de revelaccedilatildeo com engenhosos adiamentos e sensaccedilatildeo sempre crescente - um processo que pode ser comparado ao trabalho de uma psicanaacutelise - de que o proacuteprio Eacutedipo eacute o assassino de Laio mas tambeacutem de que eacute o filho do homem assassinado e de Jocasta Estarrecido ante o ato abominaacutevel que inadvertidamente perpetrara Eacutedipo cega a si proacuteprio e abandona o lar A prediccedilatildeo do oraacuteculo fora cumprida (FREUD 19002015 p 179)

O que Freud nos mostra ao apresentar a trageacutedia de Soacutefocles eacute que se essa peccedila nos

comove incomparavelmente em relaccedilatildeo a outras peccedilas mesmo de dramaturgos modernos aleacutem

do amor e da hostilidade em relaccedilatildeo agraves figuras parentais a razatildeo disso reside no fato de que noacutes

somos alheios ao discurso do qual somos feitos e quanto mais tentarmos escapar de nosso

destino buscando culpados ou responsabilizando outrem pelos rumos de nossa vida tanto mais

cairemos na armadilha que noacutes mesmos nos arranjamos

93

O saacutebio e cego Tireacutesias personagem da peccedila declara a Eacutedipo o grande decifrador de

enigmas ldquoVeraacutes num mesmo dia teu princiacutepio e teu fimrdquo (Eacutedipo Rei v 528) Esta profecia se

refere ao momento da peccedila quando o infeliz Eacutedipo descobre ser casado com sua matildee e ter

gerado frutos do incesto concluindo assim a terriacutevel descoberta de sua origem Em suas

palavras ldquoos deuses desprezam-me agora por ser filho de seres impuros e porque fecundei ndash

miseraacutevel ndash as entranhas de onde saiacuterdquo (Eacutedipo Rei vv 1610-1613) Ao natildeo suportar ver a

verdade fura os proacuteprios olhos A frase de Tireacutesias o horror descoberto por Eacutedipo pode ter um

importante sentido para a noccedilatildeo do traacutegico Por ora podemos dizer que de acordo com Tireacutesias

Eacutedipo natildeo eacute um estrangeiro salvador que apareceu em Tebas para livrar a cidade do mal ao

contraacuterio eacute um filho da terra sucessor legiacutetimo do trono que toma o lugar que lhe cabe e se

torna o responsaacutevel pela desgraccedila da cidade

Nesse sentido a psicanaacutelise se aproxima da trageacutedia grega para de certa forma dizer

do seu modo de operar Se Freud recorreu a Eacutedipo Rei e com ele conseguimos nos aproximar

da noccedilatildeo de inconsciente o freudiano Lacan elege Antiacutegona e com ela nos apresenta a eacutetica da

psicanaacutelise O que podemos compreender de pensamento em comum entre os dois psicanalistas

eacute que ainda que sejamos inconscientes de nosso desejo e de nosso destino somos responsaacuteveis

por ele Ao fim da peccedila Eacutedipo diz que jamais teria voluntariamente feito o que fez No entanto

deve arcar com as consequecircncias do destino determinado pelos deuses Ainda iremos conversar

sobre a funccedilatildeo dos deuses na trageacutedia ao que ela corresponde do que ela participa

Gostariacuteamos antes de prosseguirmos com a apreciaccedilatildeo de Lacan da trageacutedia de

apresentar algumas passagens que sucedem Eacutedipo Rei e antecedem Antiacutegona na composiccedilatildeo da

trilogia tebana de Soacutefocles

22 Eacutedipo (e Antiacutegona) em Colono

Na trageacutedia Eacutedipo em Colono2 vemos Eacutedipo sair de Tebas sem rumo Sem a garantia

dos deuses sobre qual o melhor destino a um parricida incestuoso (mataacute-lo por seus crimes

2 Eacutedipo e Antiacutegona apoacutes caminharem por muito tempo chegam a Colono pequeno povoado perto de Atenas onde governa o rei Teseu Ismene chega ao lugar para dar notiacutecias da cidade de Tebas Os irmatildeos Polinices e Eteacuteocles em vez de aceitarem o reinado de Creonte irmatildeo de Jocasta para livrar os tebanos das desgraccedilas dos Labdaacutecidas decidem disputar entre si o trono Ao mesmo tempo o oraacuteculo havia previsto infortuacutenios para a cidade caso o corpo de Eacutedipo fosse violado Dessa forma Creonte parte agrave sua procura para conferir o tuacutemulo nas fronteiras de Tebas e zelar por seu cadaacutever Em solo tebano Eacutedipo natildeo poderia ser enterrado por ter cometido assassinato de um rei crime tambeacutem de parriciacutedio Eacutedipo fica muito decepcionado com os dois filhos por estarem mais preocupados com o poder do que com o destino do pai e lanccedila sobre os dois uma praga a de que morreriam nas

94

Enterrar seu corpo Expulsaacute-lo de Tebas) o que Creonte seu cunhado decide eacute libertar a

cidade de sua maldiccedilatildeo contrariando o pedido de Eacutedipo para que Creonte ponha fim agrave sua vida

No entanto como o corpo de Eacutedipo pode vir a desgraccedilar ainda mais a cidade de Tebas a soluccedilatildeo

encontrada eacute mandaacute-lo embora Dessa maneira Eacutedipo vaga ateacute encontrar um lugar que aceite

acolhecirc-lo

Antiacutegona uma de suas filhas com Jocasta escolhe acompanhar o pai na difiacutecil jornada

em busca de uma terra que possa refugiar o cadaacutever de um homem jaacute assolado pela desgraccedila

Antiacutegona parece ocupar o lugar dos olhos furados do pai pois ao longo da caminhada ela lhe

narra tudo o que vecirc tornando-se os proacuteprios olhos do pai Nas palavras de Eacutedipo falando da

coragem da filha Antiacutegona

[] ainda crianccedila sentindo seus membros mais firmes decidiu guiar um anciatildeo em suas longas caminhadas sempre errante descalccedila percorrendo os bosques perigosos faminta atormentada repetidamente pelas aacuteguas das chuvas pelo sol ardente jaacute esquecida do conforto de seu lar cuidando apenas de dar alimento ao pai (Eacutedipo em Colono vv 366-373)

Eacutedipo tambeacutem elogia a atitude de Ismene de ter saiacutedo da proteccedilatildeo de Tebas para ir a seu

encontro e com isso compara as duas filhas aos dois filhos Apesar do lugar desigual que

ocupam na Greacutecia Antiga ou seja o de ser mulher ambas satildeo mais corajosas desafiam-se em

terras distantes enquanto os outros esquecem do pai e se resguardam ao lar e objetivam ocupar

o trono de Tebas Somente apoacutes um tempo em outro episoacutedio da peccedila aparece Polinices para

matildeos um do outro maldiccedilatildeo que se concretiza e antecede a trageacutedia Antiacutegona Com essa decisatildeo Eacutedipo se coloca ao lado de Teseu e promete a ele que sua terra seraacute bendita e protegida pelos deuses se sepultar o seu corpo Isso havia sido pronunciado tambeacutem pelo oraacuteculo de acordo com Ismene Mesmo sabendo a origem desgraccedilada de Eacutedipo Teseu se interessa pela notiacutecia do oraacuteculo e manda edificar uma sepultura a Eacutedipo Numa tentativa frustrada Creonte aparece em Colono com seus soldados captura Ismene e Antiacutegona que satildeo salvas pelos homens de Teseu Depois disso quem aparece eacute Polinices pedindo piedade ao pai em sua retomada do trono Ele conta que Eteacuteocles o irmatildeo mais jovem banira-o de Tebas apoacutes ter convencido os cidadatildeos de que ele deveria ser o novo rei Em Argos Polinices organizara um grupo de guerreiros para invadir Tebas e tomar o trono usurpado pelo irmatildeo No entanto Eacutedipo conta que fora ele proacuteprio banido por Polinices quando lhe entregou o trono e agora que este estava em situaccedilatildeo de anguacutestia ameaccedilado pela maldiccedilatildeo e pelos oraacuteculos lembrou-se da existecircncia do pai Dessa forma Eacutedipo natildeo perdoa o filho e o manda embora assombrado com maldiccedilotildees Polinices retorna em direccedilatildeo a seu fim traacutegico Eacutedipo ao sentir que seu fim se aproxima pede para Teseu segui-lo a um local oculto de sua escolha Apoacutes encontrar o local Eacutedipo eacute chamado pelos deuses e morre misteriosamente Teseu ficara encarregado de natildeo permitir jamais que qualquer mortal mesmo as filhas se aproximasse do misterioso tuacutemulo (SOacuteFOCLES 441aC2014)

95

pedir ao pai que volte atraacutes na maldiccedilatildeo do duplo assassinato que havia proclamado aos filhos

pedido este imediatamente negado por Eacutedipo Certo de sua desgraccedila futura Polinices suplica

agraves irmatildes

[] Ah Minhas queridas irmatildes Ao menos voacutes que ouvistes as imprecaccedilotildees impiedosas deste pai natildeo me afronteis Em nome de todos os deuses vos suplico se um dia sua maldiccedilatildeo se consumar e se tiverdes meios de voltar a Tebas dai-me sepultura e oferendas fuacutenebres Assim aos elogios que hoje recebeis por vossa caridosa ajuda a este homem somar-se-atildeo outros louvores natildeo menores pelos cuidados que me houverdes dispensado (Eacutedipo em Colono vv 1661-1671)

Apoacutes Antiacutegona ter sugerido ao irmatildeo Polinices que desistisse de enfrentar o reino de

Tebas com seu exeacutercito ele afirma que natildeo haacute mais como voltar atraacutes acovardar-se pois se

contasse aos seus homens a maldiccedilatildeo do pai natildeo lutariam mais com ele e seu dever era assumir

o comando das tropas seguir seu caminho e enfrentar a realizaccedilatildeo da profecia do pai caso esta

de fato se cumprisse Por fim diz para as irmatildes esquivando-se de seus abraccedilos ldquoqueira Zeus

conduzir-vos por caminhos bons se apoacutes a minha morte me proporcionardes os funerais

pedidos jaacute que natildeo podeis fazer por mim ainda em vida coisa algumardquo (Eacutedipo em Colono vv

1701-1704) E entatildeo Antiacutegona se lamenta por antever o final traacutegico de seu irmatildeo por jaacute vecirc-

lo caminhar em direccedilatildeo ao outro mundo

Eacutedipo sofre uma morte carregada de misteacuterio Recebe um aviso dos deuses de que sua

morte estaria proacutexima Sua sepultura natildeo eacute apresentada na accedilatildeo cecircnica mas eacute narrada Antiacutegona

e Ismene participam das honras fuacutenebres conferem um ritual de sepultamento ao pai No

entanto o lugar onde Eacutedipo eacute enterrado fica sob os cuidados de Teseu apenas dele Eacutedipo

oferece seu corpo a Teseu com a promessa divina de proteccedilatildeo agrave sua terra

A princesa tebana se desespera por natildeo saber o que fazer manifesta o desejo de ir ao

encontro do pai de conhecer sua morada de perder sua vida Suas lamentaccedilotildees recebem o

consolo do coro ateacute a chegada de Teseu para quem solicita ver o sepulcro do pai Ao saber que

Eacutedipo havia interditado qualquer pessoa de visitaacute-lo e tirar-lhe a paz a filha respeita sua decisatildeo

e diz ao rei do lugar ldquoSe eacute este o seu desejo que assim seja Manda-nos logo de retorno a

96

Tebas nossa antiga cidade para que se for possiacutevel consigamos ambas [Antiacutegona e Ismene]

deter a marcha da carnificina funesta para nossos dois irmatildeosrdquo (Eacutedipo em Colono vv 2084-

2089)

Dessa forma as duas conseguem retornar a Tebas No entanto como narra o iniacutecio da

trageacutedia Antiacutegona natildeo conseguem impedir que a maldiccedilatildeo de Eacutedipo se concretize e Eteacuteocles

e Polinices morrem pelas matildeos um do outro Eacute aiacute que o desejo de Antiacutegona segue seu caminho

no dever para com o irmatildeo de conferir-lhe o sepultamento devido conforme por ele suplicado

Assim Antiacutegona que acompanhou os uacuteltimos passos de Eacutedipo como uma testemunha

de seus uacuteltimos feitos nesse mundo que partiu com ele em busca de um lugar que abrigasse o

corpo eacute impedida de ver o local onde jaz seu pai e tambeacutem irmatildeo algo indispensaacutevel para que

se imponha uma diferenccedila entre os que ainda vivem e os que jaacute morreram De acordo com

Guyomard (1996 p 21) ldquoos funerais separam os vivos dos mortos e permitem aos vivos viver

sem ser assombrados por seus fantasmasrdquo Com isso o que resulta da morte de Eacutedipo para

Antiacutegona eacute uma indiferenciaccedilatildeo entre a vida e a morte e eacute com a urgecircncia de impor uma

separaccedilatildeo entre os dois termos que ela inicia a peccedila intitulada com o seu nome

Interessante visitar a histoacuteria pregressa da famiacutelia de Antiacutegona ver de certo modo a

reincidecircncia de questotildees de seus antepassados em sua vida o que a relaciona ao avocirc Laio ao

seu irmatildeo e ao mesmo tempo pai Eacutedipo Aleacutem disso o destino dos personagens da trilogia

tebana estaacute de certo modo ligada ao mito de fundaccedilatildeo da cidade de Tebas por seu primeiro

rei Cadmo Na proacutexima seccedilatildeo visitamos algumas partes que compotildeem a histoacuteria em que se

inscreve a trilogia tebana

221 O mito de fundaccedilatildeo de Tebas

O helenista Francis Vian realizou uma pesquisa cuidadosa sobre a histoacuteria da fundaccedilatildeo

de Tebas em sua obra As origens de Tebas Cadmo e os espartos Segundo Vian (1963) uma

das referecircncias mais completas sobre a histoacuteria do personagem Cadmo se encontra na Biblioteca

de Apolodoro uma importante fonte de pesquisa sobre mitologia grega datada do seacuteculo I

Dessa maneira um dos livros se dedica a contar as aventuras dos descendentes de Agenor pai

de Cadmo Fecircnix e Europa Segundo o livro Cadmo consulta o oraacuteculo de Delfos para saber o

paradeiro de sua irmatilde Europa que havia sido raptada por Zeus O oraacuteculo lhe diz que natildeo eacute

preciso se preocupar com ela e lhe atribui uma importante tarefa Cadmo deve encontrar uma

97

vaca e segui-la ateacute o ponto onde ela cairia de cansaccedilo Neste ponto da queda ele fundaria uma

cidade

Desse modo Cadmo caminha ateacute encontrar a vaca e faz o que o oraacuteculo havia solicitado

A vaca caminha ele a segue ateacute que ela se deita num lugar apoacutes atravessar a Beoacutecia Cadmo

pede para que um de seus companheiros procure aacutegua na fonte de Ares No entanto cada

homem que ele envia para buscar aacutegua acaba morto pelo guardiatildeo da fonte um dragatildeo Furioso

Cadmo vai ateacute a fonte e mata o dragatildeo A deusa Atena lhe diz para arrancar seus dentes e semeaacute-

los Assim que Cadmo cumpre o que a deusa lhe pede guerreiros armados surgem da terra os

semeados ou espartos Cadmo joga pedras nos guerreiros os quais acreditam terem sido

atacados pelos proacuteprios companheiros Assim eles acabam guerreando uns com os outros ateacute

restarem apenas cinco Para expiar o que havia feito Cadmo eacute obrigado a servir o deus Ares

por um ano o que equivale a oito anos dos nossos atuais Haacute uma variaccedilatildeo nessa histoacuteria

segundo Vian (1963) que suprime a parte do surgimento dos guerreiros e no lugar conta que

nasceram os filhos da terra Ares teria punido Cadmo natildeo pelo massacre mas pela morte do

dragatildeo

De acordo com a Biblioteca de Apolodoro apoacutes a servidatildeo por um ano a deusa Atena

torna Cadmo rei e Zeus lhe concede a matildeo de Harmonia filha de Afrodite e de Ares Todos os

deuses celebram o casamento

Segundo fragmento de texto do helecircnico Fereacutecides (VIAN 1963) o episoacutedio dos

guerreiros espartos ocorre apoacutes a fundaccedilatildeo da cidade de Tebas e do casamento de Cadmo com

Harmonia e natildeo antes Cadmo estabelecido em Tebas teria recebido de Ares e Atena metade

dos dentes do dragatildeo e os teria semeado por ordem dos deuses De acordo com Vian (1963)

uma importante contribuiccedilatildeo deixada por Fereacutecides eacute oferecer uma relaccedilatildeo entre o mito de

Cadmo e o mito de Jasatildeo visto que a outra metade dos dentes do dragatildeo eacute dada ao rei Eetes da

Coacutelquida Retomaremos esse episoacutedio quando nos ocuparmos da histoacuteria de Medeia

De acordo com Vian (1963) a princiacutepio Eacutedipo e Cadmo natildeo tinham ligaccedilatildeo alguma

entre eles Eacute num tempo posterior que inserimos os dois numa genealogia comum Uma ligaccedilatildeo

possiacutevel indica o parentesco de Cadmo agrave famiacutelia de Eacutedipo da seguinte forma Cadmo teve

Polidoro que governou Tebas e foi morto pelas Bacantes Polidoro teve Laacutebdaco tambeacutem

morto pelas Bacantes este era pai de Laio morto pelo proacuteprio filho Eacutedipo Todos foram reis

de Tebas

98

Nossa principal fonte de informaccedilatildeo satildeo as trageacutedia com Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides

as quais no entanto apresentam versotildees diferentes de filiaccedilatildeo entre os descendentes de Cadmo

e dos guerreiros filhos do dragatildeo e da terra Construir uma genealogia lendaacuteria eacute uma tarefa que

implica artificialidade Ou ainda ficccedilatildeo Sobretudo no que se refere aos espartos que muito

mais do que pertencerem a uma mesma famiacutelia pertencem a uma mesma classe social militar

Eacute dessa classe espartana dos filhos da terra de Tebas que parece descender Creonte

personagem recorrente nas trageacutedias De acordo com Vian (1963) a rivalidade existente entre

Creonte e a famiacutelia de Eacutedipo que podemos averiguar sobretudo na trilogia tebana deve-se a

uma antiga rivalidade entre um Creonte primeiro filho de um dos cinco espartanos que

restaram da batalha lendaacuteria e Cadmo que provocou o massacre e fundou a cidade de Tebas

Sem ser filho da terra torna-se seu primeiro rei Nesse ponto podemos supor uma relaccedilatildeo de

Cadmo com Eacutedipo Ao assumirem o trono de Tebas ambos satildeo considerados estrangeiros

Cadmo era filho de Agenor da Feniacutecia Jaacute Eacutedipo era tebano mas esse fato era desconhecido

por ele e pelos cidadatildeos de Tebas quando assumira o trono

Nas trageacutedias de Soacutefocles a relaccedilatildeo entre Creonte e Eacutedipo parece cordial no entanto o

tragedioacutegrafo se recusa a chamar Creonte de rei nas duas primeiras peccedilas da trilogia tebana Em

vez disso toma-o como tutor dos filhos de Eacutedipo Em Eacutedipo em Colono Creonte eacute citado como

regente natildeo como rei legiacutetimo Eacute tido como rei apenas em Antiacutegona em funccedilatildeo de seu laccedilo de

sangue com os filhos mortos de Eacutedipo Contudo ningueacutem o considera um rei legiacutetimo em

funccedilatildeo da tirania com a qual governa nem seu proacuteprio filho Hecircmon Na trageacutedia de Eacutedipo da

versatildeo contada por Euriacutepides a rivalidade se torna mais evidente visto que eacute Creonte quem

investiga o assassino de Laio e ordena seus seguidores a ferirem os olhos do assassino Eacutedipo

(VIAN 1963)

Francis Vian capta uma estrutura clara das aventuras de Cadmo que faz dele um heroacutei

Tal estrutura parece ter um caraacuteter religioso Para ele o heroacutei estaacute em busca de um lugar para

fundar ex nihilo uma nova cidade Ele eacute guiado por um animal encarnado por uma divindade

e se sacrifica para tornar a nova terra um solo sagrado Em seguida ele luta bravamente com o

dragatildeo Assim temos na histoacuteria de Cadmo um mito de criaccedilatildeo com trecircs atos principais ldquoo

combate vitorioso com o monstro primordial a expiaccedilatildeo ritual do assassinato e o triunfo final

marcado por uma hierogamiardquo (VIAN 1963 p 232)

Podemos observar tal estrutura ou ao menos os trecircs atos heroicos na histoacuteria de Eacutedipo

O heroacutei mata a esfinge que assolava Tebas Com isso ganha a matildeo natildeo de uma deusa mas da

99

rainha Jocasta Ao final de Eacutedipo Rei na versatildeo de Soacutefocles expia sua culpa furando seus olhos

e exilando-se de Tebas Outra relaccedilatildeo que podemos identificar entre Cadmo e Eacutedipo se daacute em

Eacutedipo em Colono A relaccedilatildeo que fazemos ocorre na verdade mais especificamente entre Eacutedipo

e a vaca Tal como o animal sagrado Eacutedipo caminha errante acompanhado de Antiacutegona ateacute

cansar e encontrar um lugarejo colonizado por Atenas O ponto onde a vaca cai e falece se torna

o comeccedilo ex nihilo de toda histoacuteria de Tebas Jaacute o local onde Eacutedipo morre misteriosamente

nas fronteiras de Atenas parece tornar-se siacutembolo do fechamento de um ciclo iniciado haacute

muitas geraccedilotildees

222 O destino dos Labdaacutecidas

No livro Eacutedipo ao peacute da letra Antonio Quinet (2015) nos conta uma histoacuteria anterior agrave

trageacutedia de Eacutedipo e de Antiacutegona buscando se aproximar da origem da maldiccedilatildeo dos

Labdaacutecidas aquela que fez gerar o terriacutevel oraacuteculo que assolou a famiacutelia ou seja o oraacuteculo que

proferiu que o filho de Laio o mataria e se casaria com sua esposa Tal histoacuteria pertence agrave

mitologia grega e narra circunstacircncias da vida de Laio

Labdaco rei de Tebas reprimiu o culto ao deus Dioniso que vinha ganhando cada vez

mais forccedila na cidade Em funccedilatildeo disso foi morto pelas bacantes mulheres que honravam o

deus em rituais Laio filho de Labdaco era ainda muito jovem para assumir o trono o qual

ficou sob regecircncia de Lico cunhado de Labdaco Poreacutem tiranos tomaram o reino e mataram o

novo rei Para proteger o pequeno Laio dos ataques seu avocirc Nicteu o enviou para a corte do

reino da Friacutegia e o deixou aos cuidados do rei Peacutelops

Com o passar dos anos Laio se apaixonou por Criacutesipo filho do rei e herdeiro do trono

Quinet (2015) conta que o jovem filho de Labdaco planejou uma fuga resolveu raptar seu

amado e retornar com ele para Tebas com a intenccedilatildeo de assumir o reinado deixado por seu pai

Peacutelops tentou recuperar o filho mas sem sucesso culpou Laio por tecirc-lo sequestrado e lanccedilou

uma maldiccedilatildeo parte da que jaacute conhecemos Laio seria assassinado pelo proacuteprio filho

Os deuses do Olimpo reconheceram a legitimidade das palavras proferidas pelo rei

friacutegio jaacute que Laio desonrou a lei da hospitalidade de grande valor entre os gregos Embora

tenha encontrado um lugar seguro para viver na corte de Peacutelops Laio raptou e fugiu com

Criacutesipo traindo o reino da Friacutegia importante aliado do reino de Tebas Sobre o destino de

100

Criacutesipo as histoacuterias divergem uns dizem que ele teria sido morto ou que teria se matado

Outros dizem que teria chegado em Tebas com Laio

Ainda que natildeo se saiba ao certo o que acontecera ao amado de Laio o priacutencipe tebano

casa-se com Jocasta e com a morte do rei tirano reassume o trono de Tebas e daacute seguimento agrave

linhagem real de sua famiacutelia Poreacutem segundo Quinet (2015) como puniccedilatildeo pelo crime de

sequestro a deusa Hera envia a Tebas a Esfinge criatura mitoloacutegica constituiacuteda por um corpo

de leatildeo asas de paacutessaro e cabeccedila de mulher Como diria a crianccedila de nosso Proacutelogo um hiacutebrido

Misterioso hiacutebrido que lanccedila ao outro uma pergunta sobre o ser Liberta somente o cidadatildeo que

decifrar seu enigma devorando aquele que natildeo resolvecirc-lo O rei Laio consulta o oraacuteculo de

Delfos para saber o que fazer diante da terriacutevel ameaccedila e eacute orientado a natildeo ter filhos caso

quisesse salvar a cidade Sabemos o desfecho dessa histoacuteria e curiosamente aquele que eacute capaz

de desvendar o enigma da esfinge eacute Eacutedipo filho de Laio e Jocasta

Natildeo ter filhos significaria dar um fim em sua proacutepria geraccedilatildeo agrave maldiccedilatildeo apregoada

por Peacutelops e reconhecida pelos deuses libertando Tebas de uma dinastia condenada ao

sofrimento No entanto para um rei natildeo ter filhos eacute renunciar ao poder entregaacute-lo a outra

famiacutelia

Laio bem que tentou natildeo ter filhos de acordo com Quinet (2015) Ainda assim Eacutedipo

foi concebido num dia em que cedeu aos prazeres de Dioniso mesmo deus combatido pelo seu

pai Dessa maneira quando o bebecirc nasceu Laio mandou que lhe furassem o peacute e que o

abandonassem no monte Citeron Eacutedipo nome que significa ldquopeacute inchadordquo foi encontrado por

um pastor que o entregou para ser adotado pelos reis de Corinto Poacutelibo e Meacuterope

Assim a maldiccedilatildeo lanccedilada a Laio se torna a maldiccedilatildeo das geraccedilotildees seguintes dos

Labdaacutecidas porque agrave medida que foi sendo concretizada ainda que sua realizaccedilatildeo tenha

ocorrido na tentativa de evitaacute-la mais o fado foi sendo relanccedilado para as geraccedilotildees seguintes

Laio cometeu um crime contra a hospitalidade e foi amaldiccediloado Seu filho Eacutedipo consumou a

maldiccedilatildeo cometendo o parriciacutedio e por consequecircncia o incesto Os dois netos homens gerados

pelo crime de incesto carregaram a maldiccedilatildeo ateacute se destruiacuterem um ao outro O que resta a

Antiacutegona envolvida nesse imbroacuteglio familiar Com Ismene ela eacute a uacuteltima da terriacutevel linhagem

dos Labdaacutecidas

A maldiccedilatildeo se encerra com ela Talvez sim pois o que conhecemos da histoacuteria de

Antiacutegona contada por Soacutefocles na terceira parte da trilogia tebana eacute que ela acolhe a sina dos

Labdaacutecidas em vez de fugir lutar contra ela assim como faz seu pai no fim da vida Eacutedipo

101

como o pai Laio fora acolhido em solo estrangeiro recebido por Teseu sem receio de que o

amaldiccediloado labdaacutecida pudesse trazer a sua terra algum mal Grato por sua acolhida escolhe

um lugar incerto uma regiatildeo sem limites definidos prometendo a Teseu que o ato do enterro

traria proteccedilatildeo a seu reino Aleacutem disso Eacutedipo renega seus filhos homens os quais como o avocirc

Laio tinham como preocupaccedilatildeo reinar sobre Tebas perpetuando o poder da famiacutelia

O nome Antiacutegona de acordo com o Dicionaacuterio etimoloacutegico da mitologia grega (2013

p 36) eacute composto pela preposiccedilatildeo ἀντί que pode significar ldquode frenterdquo ldquoem frente derdquo e γονή

que indica a descendecircncia O segundo termo corresponde ainda ao tema verbal γεν- ldquonascerrdquo

A primeira parte do composto poderia remontar ao sacircnscrito aacutenti no latim ante cuja raiz ant

teria tido como significado original ldquode frenterdquo para passar ao grego com o sentido de ldquoopor-

se encontrar-serdquo

Conforme o dicionaacuterio ainda que apareccedilam interpretaccedilotildees como ldquocontra o nascimentordquo

ou ldquocontra o uacuteterordquo ou tentativas de relacionar o nome com a ldquooposiccedilatildeo ao nascimentordquo pelo

fato de a heroiacutena ter sido fruto de um incesto Antiacutegona significa ldquonascida no lugar derdquo ldquopara

tomar o lugar derdquo algum antepassado algum familiar

Nesse sentido o proacuteprio nome jaacute apresenta a implicaccedilatildeo da princesa na sina da famiacutelia

ou seja ela nasceu para ocupar o lugar de um familiar ou para velar um familiar De que lugar

se fala aqui O lugar da morte

Eacutedipo natildeo deveria ter nascido pois foi recomendado a Laio que natildeo tivesse filhos

Mesmo assim ainda que soubessem da recomendaccedilatildeo do oraacuteculo Laio e Jocasta o

desobedeceram e Eacutedipo foi originado na transgressatildeo de um interdito Toda a famiacutelia carrega

esse signo de negaccedilatildeo da lei pois cada um de seus frutos natildeo deveria ter nascido Mas que lei

eacute esta que a famiacutelia tenta burlar ao longo das geraccedilotildees Talvez a lei divina que Antiacutegona honra

Dessa forma tambeacutem Antiacutegona natildeo deveria ter nascido mas nasceu Ela cumpre o conselho

que o oraacuteculo de Delfos deu ao avocirc pois natildeo se casou e natildeo teve filhos e enfatiza tal sacrifiacutecio

em seus lamentos finais Aleacutem disso o que se pode dizer Como isso ressoa em sua histoacuteria

23 Antiacutegona heroiacutena traacutegica da eacutetica da psicanaacutelise

[] um leito nupcial jamais terei nem ouvirei hinos de bodas nem sentirei as alegrias conjugais nem filhos amamentarei hoje sozinha

102

sem nenhum amigo parto ndash ai infeliz de mim ndash ainda viva para onde os mortos moram (Antiacutegona vv 1021-1026)

Em seu seminaacuterio A eacutetica da psicanaacutelise Lacan (1959-19601997) a exemplo de Freud

recorre agrave trageacutedia grega para enunciar o que se articula como eacutetica psicanaliacutetica a qual estaacute

sustentada pela noccedilatildeo de que o sujeito para viver sua vida com suas escolhas pode ceder de

qualquer fonte de que dispor soacute natildeo pode ceder de seu proacuteprio desejo

Nesse sentido Lacan elege Antiacutegona filha de Eacutedipo a heroiacutena da eacutetica cuja histoacuteria

visita na versatildeo homocircnima de Soacutefocles Patrick Guyomard (1996) em seu livro O gozo do

traacutegico realiza uma leitura do seminaacuterio de Lacan sobre a eacutetica e oferece tambeacutem a dimensatildeo

do desejo em Antiacutegona em que aponta as caracteriacutesticas que fazem com que a heroiacutena adentre

o universo do traacutegico

Sua irredutibilidade sua coragem diante da morte seu desafio em favor de uma causa que lhe eacute vital sua lucidez diante das condiccedilotildees de sua vida que ela natildeo pode salvar ao preccedilo da perda de suas razotildees de viver tudo isso satildeo traccedilos essenciais a qualquer eacutetica do desejo (GUYOMARD 1996 p 21)

A fim de buscar elementos que nos ajudem a pensar a questatildeo dos limites e

possibilidades no cenaacuterio da educaccedilatildeo escolar vamos conhecer a histoacuteria de Antiacutegona heroiacutena

que inspira o trabalho de Lacan sobre a eacutetica da psicanaacutelise

Soacutefocles em Antiacutegona uacuteltima parte da trilogia tebana apresenta inicialmente um

diaacutelogo entre Antiacutegona e Ismene filhas de Eacutedipo e Jocasta em que narram os uacuteltimos

acontecimentos Seus dois irmatildeos Eteacuteocles e Polinices acabam por matar um ao outro na

disputa pelo trono de Tebas Com a morte dos dois eacute o seu tio Creonte que assume o reinado

Creonte confere um sepultamento digno a Eteacuteocles pois ele era o rei de Tebas mas proiacutebe sob

pena de morte o enterro de Polinices pois ele cometeu um atentado contra o governo ao matar

o rei seu proacuteprio irmatildeo Proclama Creonte

[] fique insepulto o seu cadaacutever e o devorem catildees e aves carniceiras em nojenta cena Satildeo estes os meus sentimentos e jamais concederei aos homens vis maiores honras que as merecidas tatildeo somente pelos justos Soacute quem quiser o bem de Tebas haacute de ter a minha estima em vida e mesmo apoacutes a morte

103

(Antiacutegona vv 235-241)

Ao edito de Creonte o corifeu responde ldquo[] tens o poder ndash eu reconheccedilo ndash para impor

a lei de tua escolha seja em relaccedilatildeo aos mortos seja a noacutes que ainda estamos vivosrdquo (Antiacutegona

vv 244-246)

Antiacutegona se recusa a se submeter agraves leis do Estado pois vatildeo contra as leis divinas

Sabendo que iraacute pagar com a proacutepria vida enterra seu irmatildeo Polinices com as proacuteprias matildeos e

natildeo nega sua accedilatildeo quando descoberta Em diaacutelogo com Creonte lembra a ele das leis natildeo

escritas aquelas que os regem desde os tempos mais remotos ou seja natildeo se deve negar enterro

a um corpo natildeo importando quem seja Desafiado por Antiacutegona sua sobrinha questionado

pelo coro enfrentado pelo filho Hecircmon Creonte insiste em imprimir agrave princesa um destino

terriacutevel o emparedamento ainda viva numa caverna fora da cidade

Tireacutesias o saacutebio cego diz a Creonte que a cidade de Tebas estaacute amaldiccediloada pela carniccedila

espalhada por catildees e aves e pode perder a proteccedilatildeo dos deuses caso o rei natildeo volte atraacutes de sua

decisatildeo Dessa forma Creonte vai com seus guardas soltar Antiacutegona Um mensageiro anuncia

ao coro o suiciacutedio de Hecircmon noivo de Antiacutegona que jazia abraccedilado ao corpo pendente da

princesa estrangulada com um laccedilo de seu vestido Ao saber do filho morto Euriacutedice retorna

ao palaacutecio para cometer sua morte

Ao fim Creonte carrega o corpo do filho e vecirc o corpo da mulher Deseja a proacutepria

morte mas natildeo eacute esse seu destino A fala que encerra a trageacutedia eacute do coro que ensina sobre a

prudecircncia das palavras

231 Aacutetē Omos Mecircrima

Lacan aponta que Antiacutegona eacute levada por uma paixatildeo pois sua accedilatildeo natildeo eacute simplesmente

defender o direito sagrado do morto e de sua famiacutelia e muito menos se justifica por uma suposta

santidade De acordo com o autor existe uma palavra no texto da trageacutedia que se repete vinte

vezes aacutetē ou ldquoo limite que a vida humana natildeo poderia transpor por muito tempordquo (LACAN

1959-19601997 p 318) e eacute justamente onde Antiacutegona deseja estar ou seja o lugar que deve

ocupar por destino desde o seu nascimento

Ela natildeo suporta viver sob as leis de Creonte sob as leis do homem pois tem algo de

desumano em sua conduta Para Lacan esse caraacuteter desumano fica claro toma forma no

104

tratamento que dirige agrave irmatilde Ismene que interroga a decisatildeo de Antiacutegona de enterrar o irmatildeo

das duas jaacute que a conduta da heroiacutena eacute romper a ligaccedilatildeo com a irmatilde tomaacute-la por inimiga e natildeo

a querer mais ainda que volte atraacutes no que disse Mesmo quando Ismene quer acompanhar o

destino de Antiacutegona esse rompimento se manteacutem pois esta a trata com desprezo O coro utiliza

a palavra omos para referir-se agrave heroiacutena que pode significar inflexiacutevel e que Lacan diz ser

literalmente cru ou natildeo civilizado ldquoQue Antiacutegona saia deste modo dos limites humanos o que

isso quer dizer para noacutes ndash senatildeo que seu desejo visa precisamente isto ndash para aleacutem da Ateacuterdquo3

(LACAN 1959-19601997 p 319)

Oliveira (2007 p 63) se ocupa em investigar a palavra aacutetē repetida tantas vezes na

trageacutedia de Antiacutegona

Como traduzir essa palavra intraduziacutevel O dicionaacuterio diz ldquoflagelo enviado pelos deuses particularmente cegueira do espiacuterito desvario loucura ruiacutena infelicidade pesterdquo Como nome proacuteprio Aacutete eacute a Fatalidade a deusa do infortuacutenio O substantivo aacutete estaacute por sua vez relacionado ao verbo aaacuteo que quer dizer ldquoperturbar o espiacuterito abater de vertigem e de loucura ter o espiacuterito desvairado e abater com uma calamidade causar um infortuacuteniordquo

Parece existir uma tendecircncia a relacionar a palavra aacutetē com erro ou hamartia cometido

quando a pessoa estaacute tomada pela loucura ou como resultado do erro levando o indiviacuteduo agrave

ruiacutena e ao infortuacutenio Essa eacute a visatildeo que Aristoacuteteles aponta de acordo com Oliveira (2007) No

entanto segundo o autor Lacan natildeo toma a aacutetē como hamartia e discorda do argumento de

Aristoacuteteles

Para Lacan (1959-19601997) a aacutetē natildeo pode se referir a um erro cometido por um

sujeito jaacute que se encontra num campo aleacutem de suas possibilidades no que concerne ao campo

do Outro A aacutetē eacute um vazio que resta no sujeito de sua relaccedilatildeo com o Outro ou seja refere-se

ao que resta do Outro na emergecircncia do sujeito Hamartia para o autor eacute o que ocorre a

Creonte que natildeo eacute o heroacutei da peccedila ao querer fazer valer uma lei para todos a lei da cidade

Com seu erro traacutegico comete um transbordamento de limites de outro tipo A aacutetē diz respeito

a um limite que separa o sujeito do Outro

3 A ediccedilatildeo brasileira do seminaacuterio A eacutetica da psicanaacutelise traz a forma Ateacute para referir-se ao termo grego Ἄτη (Aacutetē) Trata-se de uma variaccedilatildeo de ἄτη (aacutetē) que consta no texto original de Soacutefocles (fonte httpwwwperseustuftsedu) Ver na sequecircncia o comentaacuterio de Oliveira (2007) sobre a traduccedilatildeo dessas palavras

105

Ao se aproximar da aacutetē do limite deste lugar aleacutem do humano Antiacutegona entra numa

cadeia que corre em cascata e o que estaacute no fundo eacute um meacuterimna uma palavra designada por

Lacan (1959-19601997) como algo ambiacuteguo que estaacute entre o objetivo e o subjetivo o que

permite pensar no meacuterimna como significante da cadeia como a desgraccedila da famiacutelia de

Antiacutegona como a maldiccedilatildeo dos Labdaacutecidas lanccedilada e relanccedilada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo

Dessa maneia o que impulsiona a heroiacutena para as fronteiras da aacutetē eacute o meacuterimna de sua

famiacutelia Antiacutegona toma o lugar de seus antepassados sendo esse lugar a proacutepria aacutetē o limite

humano que deseja ultrapassar fronteira entre a vida e a morte Seu desejo de morrer eacute

impulsionado pelo meacuterimna que a conduz agrave morte ao destino de seus familiares com exceccedilatildeo

da traidora Ismene Para ela a interpretaccedilatildeo do meacuterimna familiar parece ser menos fatal

Sobre a etimologia do nome Antiacutegona que podemos designar como ldquonascida no lugar

derdquo ainda questionamos Antiacutegona veio ao mundo substituindo o quecirc Nasceu no lugar de

quem Ela parece carregar a proacutepria condiccedilatildeo de nascer no lugar de algo de substituir algueacutem

de ocupar um lugar Eacute como se em suas accedilotildees ela tomasse para si a responsabilidade do meacuterimna

de sua famiacutelia como se a sua funccedilatildeo no mundo fosse essa a de promover o desenlace do

meacuterimna conforme demonstra em seus lamentos finais

[] Ah Horrores do taacutelamo materno Ah Teus abraccedilos incestuosos minha matildee com o pai de quem nasci Como sou infeliz E para eles vou assim maldita sem ter chegado agraves bodas Meu irmatildeo infortunado Que uniatildeo a nossa Transformas-me morrendo em morta viva (Antiacutegona vv 961-961)

Prestes a morrer no lugar intransponiacutevel ao qual ela se prende a aacutetē Antiacutegona se lembra

de sua origem incestuosa e sugere ir para o mesmo caminho dos pais ao sugerir uma uniatildeo

incestuosa com o irmatildeo Torna-se uma morta-viva ao ocupar este lugar entre vida e morte ao

doar-se como o limite que pode promover essa separaccedilatildeo entre vida e morte Justamente essa

barreira que foi negada desde o princiacutepio aos Labdaacutecidas Nasceram sob o interdito de jamais

existirem Eacutedipo que natildeo deveria ter nascido simplesmente desaparece Natildeo ter sepultura eacute

uma forma de apagar o seu nascimento Polinices natildeo ganha o direito de ser enterrado Ao

106

contraacuterio do corpo de Eacutedipo objeto miacutestico o corpo de Polinices fica exposto em sua crueza

de carne abjeto

Dessa forma o limite entre vida e morte fica confuso e eacute essa barreira que Antiacutegona

busca fazer com o miacutenimo que lhe resta com a univocidade de sua metaacutefora com seu corpo e

com sua morte Garantir o passado a histoacuteria da famiacutelia com um presente fatal Garantir o

direito de existecircncia da famiacutelia mesmo em sua negatividade Garantir a vida da famiacutelia com a

sua morte

Em que Antiacutegona se diferencia de seus familiares ao mesmo passo que se alia a eles

Em vez de fugir de seu destino das profecias do oraacuteculo do mandamento das divindades

Antiacutegona encara sua sina deseja-a Confere sepultamento ao irmatildeo criminoso selando natildeo

apenas o fim deste mas o fim do proacuteprio Eacutedipo a quem foi negada num primeiro momento a

sepultura em Tebas Assume o enterro do irmatildeo como de sua responsabilidade acolhendo

dando um lugar em sua existecircncia ao fado familiar

Nesse sentido entendemos que Lacan (1959-19601997) situa Antiacutegona no lugar ex

nihilo zona limite da linguagem a partir da qual acontece a criaccedilatildeo A expressatildeo atribui-se a

ldquodo nadardquo vazio e para o psicanalista haacute uma correspondecircncia entre a modelaccedilatildeo significante

o que fazemos com os significantes que nos marcam como sujeitos e a criaccedilatildeo ex nihilo ldquoa

introduccedilatildeo no real de uma hiacircncia de um furordquo (LACAN 1959-19601997 p 153)

Antiacutegona se apresenta como autocircnomos pura e simples relaccedilatildeo do ser humano com

aquilo que ocorre de ele ser miraculosamente portador ou seja do corte significante que lhe

confere o poder intransponiacutevel de ser o que eacute contra tudo e contra todos (LACAN 1959-

19601997)

Guyomard (1996 p 31) aponta que ela ldquoeacute autoacutenomos ela que daacute a si mesma a lei de

sua fidelidade agrave famiacutelia e aceita sofrer-lhe os efeitosrdquo De acordo com Vieira (2010) Antiacutegona

natildeo tem pretensatildeo alguma de se manter viva mas de sustentar a sobrevida de seu ideal de

conduta de sua eacutetica ldquo[] a morte natildeo significa impossibilidade mas necessidade natildeo

simboliza o final da vida mas seu coroamentordquo (VIEIRA 2010 p 157) Ou seja Antiacutegona

preserva o significante uacuteltimo de sua eacutetica que faz valer sua proacutepria passagem pelo mundo

nem que para isso precise morrer A morte para ela natildeo eacute o limite mas seu limite eacute o seu

significante eacutetico

107

Sem fugir agraves consequecircncias de seu ato de enterrar o irmatildeo (diga-se de passagem duas

vezes) Antiacutegona assume a Creonte increacutedulo da desobediecircncia da sobrinha ser a criminosa

desafiadora da lei ldquoFui eu a autora Digo e nunca negariardquo (Antiacutegona v 503)

232 Desejo do Outro primordial e castraccedilatildeo

O desejo da matildee o texto faz a ele alusatildeo eacute a origem de tudo O desejo da matildee eacute o desejo fundador de toda a estrutura aquele que fez vir agrave luz seus rebentos uacutenicos Eteocleacutes Polinices Antiacutegona e Ismene mas ao mesmo tempo eacute um desejo criminoso [] Nenhuma mediccedilatildeo eacute aqui possiacutevel a natildeo ser esse desejo seu caraacuteter radicalmente destruidor A descendecircncia da uniatildeo incestuosa se desdobrou em dois irmatildeos um que representa o poderio o outro que representa o crime Natildeo haacute ningueacutem para assumir o crime e a validade do crime senatildeo Antiacutegona Entre os dois Antiacutegona escolhe ser pura e simplesmente a guardiatilde do ser criminoso como tal [] Eacute na medida em que a comunidade se recusa a isso [perdoar] que Antiacutegona deve fazer o sacrifiacutecio de seu ser para a manutenccedilatildeo desse ser essencial que eacute a Ateacute familiar ndash motivo eixo verdadeiro em torno do qual gira toda essa trageacutedia Antiacutegona perpetua eterniza imortaliza essa Ateacute (LACAN 1959-19601997 p 342)

A condiccedilatildeo de Antiacutegona ser como eacute o lugar que lhe cabe na linhagem familiar deve-se

ao desejo destruidor do Outro primordial Jocasta Parece ser isso que Lacan tenta propor jaacute

que entende que o desejo da matildee eacute criminoso e destrutivo responsaacutevel por ter gerado filhos

criminosos cabendo ao desejo puro de Antiacutegona a condiccedilatildeo de zelar fielmente a aacutetē familiar

Eacute Guyomard (1996) quem constroacutei uma criacutetica ao argumento de Lacan pois acredita

que Jocasta natildeo pode carregar em seus ombros sozinha a culpa do desejo desmedido de seus

filhos soacute pelo fato de ser a matildee o Outro primordial Como se os pais Laio e Eacutedipo natildeo tivessem

nada a ver com os crimes da famiacutelia e fossem apenas viacutetimas de uma mulher-matildee terriacutevel De

acordo com a tese de Lacan supomos que Antiacutegona sacrifica-se morre em decorrecircncia do

desejo materno incestuoso ao qual se alia purificando seu ser num eterno zelo pelo corpo do

irmatildeo

Acreditamos que haacute outro aspecto a ser pensado nessa passagem de Lacan que diz

respeito agraves inscriccedilotildees significantes que possibilitariam Antiacutegona construir um caminho outro

para a sua vida uma medida uma inflexatildeo ao desejo do Outro primordial Natildeo haacute realmente

nada em seu ato que possa vir a constituir uma medida uma funccedilatildeo simboacutelica ao puro desejo

materno por meio da constituiccedilatildeo da falta

108

Guyomard (1996) aborda essa questatildeo ao propor pensarmos na diferenccedila entre o desejo

de Antiacutegona (o qual para Lacan eacute puro desejo materno) e a operaccedilatildeo de castraccedilatildeo operaccedilatildeo esta

que junto agrave frustraccedilatildeo e agrave privaccedilatildeo concede ao sujeito uma condiccedilatildeo desejante marcada pela

falta Para o autor eacute fundamental

[] saber se se trata de seu desejo ou de sua castraccedilatildeo da afirmaccedilatildeo de sua onipotecircncia aleacutem da morte ou do reconhecimento de seus limites Essa diferenccedila eacute essencial O desejo puro realmente remete agrave castraccedilatildeo pensada como puro corte o puro poder de dizer natildeo de Antiacutegona [] como saber se o poder da recusa o natildeo do sujeito eacute ele mesmo aceitaccedilatildeo ou recusa da castraccedilatildeo (de um limite para seus desejos) Seraacute que Antiacutegona apoia sua recusa na aceitaccedilatildeo ou na recusa de sua castraccedilatildeo (GUYOMARD 1996 p 16-17)

A recusa de que Guyomard fala eacute a recusa do interdito de Creonte Sendo assim sua

questatildeo eacute provavelmente quanto ao valor da lei proposta pelo rei para Antiacutegona como tal

interdito se compotildee no ato de Antiacutegona Pensamos que se trata de uma aceitaccedilatildeo de algo que

poderia cumprir a funccedilatildeo da castraccedilatildeo na medida em que no ato de recusar a lei de Creonte

enterrando o irmatildeo Antiacutegona estipula qual a lei que ela segue a lei divina anterior agrave proibiccedilatildeo

de Creonte Eacute essa lei que a constitui como sujeito de desejo e sujeito de linguagem na tentativa

de demarcar a diferenccedila entre vida e morte o traccedilado entre a vida e a morte Eacute a essa lei que ela

se dobra No entanto acreditamos que natildeo haacute limite para seu desejo em seu ato ela se lanccedila a

um destino mortiacutefero de reencontro com o vazio de sua constituiccedilatildeo de reencontro com seus

familiares Deseja esse destino natildeo recua diante dele mas ainda assim experimenta anguacutestia

Ao final acaba por lamentar sua proacutepria morte mas a aceita natildeo foge dela Toma-a como uma

vantagem Desse modo diz a Creonte

[] Eu jaacute sabia que teria de morrer (e como natildeo) antes ateacute de o proclamares Mas se me leva a morte prematuramente Digo que para mim soacute haacute vantagem nisso Assim cercada de infortuacutenios como vivo A morte natildeo seria entatildeo uma vantagem (Antiacutegona vv 524-530)

109

Sabe que um dia iraacute morrer sabe que sua vida e de seus familiares estaacute desgraccedilada para

sempre e nesse sentido escolhe um motivo para morrer Faz de seu ato um ato simboacutelico ao

escolher morrer por algo por alguma coisa Doa-se completamente a isso

No seminaacuterio 10 chamado A anguacutestia em que Lacan (1962-19632005) trabalha esse

conceito fundamental motor da cliacutenica psicanaliacutetica o psicanalista fala da relaccedilatildeo do sujeito

neuroacutetico com a anguacutestia de castraccedilatildeo Ele nos diz que aquilo do qual o neuroacutetico recua natildeo eacute

a castraccedilatildeo mas fazer de sua castraccedilatildeo aquilo que preencheria a falta do Outro ceder uma parte

positivada de si como forma de garantir o Outro Chega a esta formulaccedilatildeo a partir do que Freud

diz sobre a cliacutenica que o ponto intransponiacutevel o ponto de chegada da elaboraccedilatildeo da experiecircncia

do neuroacutetico eacute a anguacutestia de castraccedilatildeo

No entanto Lacan acredita que o limite eacute mais aleacutem do ponto situado por Freud

Dedicar sua castraccedilatildeo agrave garantia do Outro eacute diante disso que o neuroacutetico se deteacutem Ele se deteacutem aiacute por uma razatildeo como que interna agrave anaacutelise e que decorre de que eacute a anaacutelise que o leva a esse encontro A castraccedilatildeo no fim das contas nada mais eacute que o momento da interpretaccedilatildeo da castraccedilatildeo (LACAN 1962-19632005 p 56)

Lembramos aqui que a castraccedilatildeo eacute uma das operaccedilotildees que constituem o sujeito como

ldquoem-faltardquo sendo uma operaccedilatildeo que implica uma perda de uma parte de si para o Outro O que

o sujeito perde eacute a miragem de uma relaccedilatildeo totalizada com a dimensatildeo primordial do Outro

representada por quem exerce a funccedilatildeo materna ou seja o que ele perde eacute justamente ser aquilo

capaz de preencher a falta deste Outro

Na castraccedilatildeo pode-se dizer ele perde a identificaccedilatildeo a uma dimensatildeo objetal

assumindo uma dimensatildeo subjetiva Isso ocorre porque resta uma potecircncia que lanccedila o sujeito

para fora dessa relaccedilatildeo o significante da falta que ele passa a situar numa alteridade simboacutelica

natildeo mais ocupada pela matildee mas pela linguagem pela cultura O sujeito neuroacutetico natildeo deseja

mais ser o objeto que pode completar o Outro mas ter ou natildeo ter esse objeto capaz de

causarcompletar a falta no Outro A dimensatildeo da alteridade precisa permanecer faltante falta

esta realizada pelo sujeito que busca completaacute-la de alguma forma nunca totalmente com os

objetos de que dispotildee ou de que natildeo dispotildee Se a falta for totalmente preenchida o sujeito se

flagra a si mesmo como fixado em uma dimensatildeo totalmente objetal Em vez de doar uma parte

de si uma cessatildeo de objeto ele doa-se por inteiro e da relaccedilatildeo com a alteridade nada resta para

que ele siga desejante percorrendo e produzindo-se em uma cadeia simboacutelica

110

O sujeito para desejar precisa manter o falo como significante da falta do Outro com

o qual pode inventar uma diversidade de representaccedilotildees Nesse sentido seu limite estaacute para

aleacutem da operaccedilatildeo da castraccedilatildeo na medida em que desta operaccedilatildeo natildeo decorra advir como puro

objeto que obtura a falta do Outro o que colocaria em questatildeo ateacute mesmo a sustentaccedilatildeo da

diferenccedila mas advir sempre como sujeito desejante para aleacutem do gozo do Outro

Dessa maneira questionamos o que faz com que Antiacutegona seja a heroiacutena traacutegica que a

psicanaacutelise recupera ao pensar a eacutetica considerando que ela doa seu corpo sua proacutepria vida

falece em nome da garantia do Outro um lugar ocupado pelos deuses gregos O trabalho da

cliacutenica psicanaliacutetica pode ocorrer no sentido de conduzir o sujeito a esse enfrentamento

experimentado natildeo sem anguacutestia de averiguar quais satildeo os contornos que conformam seu

desejo ao que responde sua castraccedilatildeo com o que ou como ele paga a diacutevida simboacutelica de sua

existecircncia Para Lacan o sujeito pode pagar com o que for uma cessatildeo de si de algo de si de

seu gozo soacute natildeo pode pagar com o seu proacuteprio desejo ldquoA uacutenica coisa da qual se pode ser

culpado eacute de ter cedido de seu desejordquo (LACAN 1959-19601997 p 385) Pois pensamos que

a sua condiccedilatildeo desejante eacute a uacutenica coisa que o sujeito realmente pode ter Desse modo o puro

desejo de Antiacutegona eacute a uacutenica coisa que permanece com ela ateacute o fim Ela perde sua vida seu

futuro um casamento alegrias conjugais os filhos e Ismene sua irmatilde mas natildeo perde tudo

pois sustenta seu desejo e com ele vai ateacute a morte atravessa a fronteira entre vida e morte a

aacutetē

Talvez a personagem Antiacutegona mostre para noacutes a dimensatildeo paradoxal inerente a essa

relaccedilatildeo do sujeito com o Outro O que eacute da ordem subjetiva o que eacute da ordem objetal na medida

em que em verdade inventamos o que o Outro supostamente desejaria de noacutes e decidimos o

quanto respondemos ou natildeo a tal demanda Antiacutegona nos diz que natildeo tem nada a perder pois

em sua vida cheia de infortuacutenios a morte se inscreveria como vantagem A morte para noacutes

meros leitores espectadores da cena eacute a perda de tudo eacute mergulho na radicalidade do ser

objetal Talvez para Ismene para Creonte para os demais cidadatildeos tebanos tambeacutem Para

Antiacutegona morte eacute ganho torna-se radicalmente um ganho subjetivo

111

233 Antiacutegona ex nihilo e as leis natildeo escritas

A accedilatildeo traacutegica de Antiacutegona para Lacan (1959-19601997) ocupa um lugar limite lugar

de antecipaccedilatildeo da morte da experiecircncia da proacutepria morte em vida O espectador testemunha ao

mesmo tempo que eacute conduzido a uma travessia neste lugar que situa os limites do simboacutelico

Dessa maneira Antiacutegona situa-se num lugar ex nihilo ou seja com sua accedilatildeo de enterrar

Polinices a heroiacutena vai ao limite da linguagem atribuindo ateacute as uacuteltimas consequecircncias valor

ao significante irmatildeo que impera sobre tudo o que ele possa ter feito pelo bem ou pelo mal E

desse lugar no belo enfrentamento de Antiacutegona contra as leis de Creonte ela diz

Mas Zeus natildeo foi o arauto delas para mim nem essas leis satildeo as ditadas entre os homens pela Justiccedila companheira de morada dos deuses infernais e natildeo me pareceu que tuas determinaccedilotildees tivessem forccedila para impor aos mortais ateacute a obrigaccedilatildeo de transgredir normas divinas natildeo escritas inevitaacuteveis natildeo eacute de hoje natildeo eacute de ontem eacute desde os tempos mais remotos que elas vigem sem que ningueacutem possa dizer quando surgiram (Antiacutegona 511-520)

De que leis Antiacutegona fala aqui construindo uma arguiccedilatildeo alternativa agrave imposiccedilatildeo de

Creonte Satildeo leis de tempos remotos anteriores ao bem que o rei quer para a cidade Satildeo leis

aleacutem do bem natildeo escritas mas que se fazem presentes entre os cidadatildeos Em seu livro Antiacutegona

e a eacutetica traacutegica da psicanaacutelise Ingrid Vorsatz (2013) nos diz que as leis natildeo escritas nomina

diferenciavam-se da lei escrita nomos As nomina dependem da accedilatildeo de cada indiviacuteduo do

quanto cada um consegue inscrever em ato as leis natildeo escritas que segue Apenas por adesatildeo

singular as nomina podem ter validade Isso vale tambeacutem para as imposiccedilotildees divinas As

verdades dos deuses gregos soacute tecircm valor no momento em que um cidadatildeo escolher segui-las

em ato

As leis natildeo escritas nomina satildeo aquelas que vigem desde os tempos imemoriais e sua validade reside exclusivamente na forccedila de sua enunciaccedilatildeo a despeito de sua origem divina Sua incidecircncia eacute real ela ex-siste eacute exterior ao mundo humano que por sua vez se constitui na e atraveacutes da submissatildeo a essas leis Para que tenha validade a lei natildeo escrita convoca o ato singular

112

de cada um ndash no caso da heroiacutena traacutegica ndash a cada vez (VORSATZ 2013 p 114)

Jaacute o nomos a escrita da lei surge de uma necessidade de organizaccedilatildeo da poacutelis numa

tentativa de registrar a legislaccedilatildeo divina Uma vez escrita a lei dispensaria a escolha individual

para adquirir validade e deveria ser respeitada por todos sem exceccedilatildeo pelo bem comum

Vorsatz (2013) argumenta que o universo em que a trageacutedia se estabelece natildeo eacute ainda

o conhecido acircmbito da filosofia acessiacutevel ao nosso modo de organizaccedilatildeo contemporacircneo que

se faz com a razatildeo e o conhecimento em que o indiviacuteduo eacute senhor em sua proacutepria casa Esse

modo de vida comeccedila a se desenvolver na histoacuteria da humanidade no seacuteculo IV antes de Cristo

que corresponde ao surgimento da democracia com o ideal de bem para todos Na trageacutedia natildeo

satildeo motivaccedilotildees racionais e de algum sistema de conhecimento que sustentam a vida dos

homens

A trageacutedia antiga que surgiu e se dissipou ao longo do seacuteculo V antes de Cristo situa-

se no mundo dos deuses gregos e sendo assim a palavra tomada pelo heroacutei traacutegico leva em

consideraccedilatildeo a alteridade divina Para Vorsatz (2013 p 22) ldquoo heroacutei traacutegico determinado pelo

campo real dos deuses dele se extrai por intermeacutedio de seu atordquo Assim o heroacutei surge no

momento em que com sua accedilatildeo garante a presenccedila e a ordem divina Poreacutem sua accedilatildeo implica

sua proacutepria perda

Antiacutegona garante no ato de enterrar Polinices com suas proacuteprias matildeos o lugar das leis

natildeo escritas da Justiccedila companheira dos deuses de baixo da terra como se estivessem na origem

de sua escolha Em seguida mostra-se responsaacutevel pelas consequecircncias de seu ato que implica

a proacutepria morte Com seu ato e com suas palavras Antiacutegona move o Aqueronte

Eacute importante entender que o ato de Antiacutegona aleacutem de corresponder ao seu desejo

inscreve-se numa tradiccedilatildeo grega de entregar os corpos ao mundo dos deuses de baixo Para

fazecirc-lo em respeito e honra aos deuses os corpos passam por um ritual de purificaccedilatildeo as

libaccedilotildees fuacutenebres Aleacutem disso os corpos precisam de sepultura para que possa ocorrer um

esquecimento jaacute que ldquoas almas errantes se transformariam em fantasmas que perseguiriam os

vivosrdquo (VORSATZ 2013 p 64)

Natildeo permitir as honras fuacutenebres e o sepultamento de Polinices eacute uma desmedida de

Creonte ldquoA mutilaccedilatildeo do corpo aleacutem de enfraquecer o espiacuterito do morto atinge gravemente a

honra da estirpe O sepultamento eacute um dever sagrado que faz o morto descer ao Hades onde

ele se torna um numen (espiacuterito ou gecircnio) protetor da linhagemrdquo (VORSATZ 2013 p 64)

113

A purificaccedilatildeo do corpo e o seu enterro correspondem desse modo a uma operaccedilatildeo

simboacutelica que permite estabelecer uma separaccedilatildeo entre os vivos e os mortos Antiacutegona age em

funccedilatildeo da morte simboacutelica de Polinices no entanto as honras fuacutenebres que concede a ele

levam-na agrave sua proacutepria morte simboacutelica ao ponto extremo onde a vida alcanccedila a morte Presa

entre duas mortes conforme define Lacan

Vorsatz (2013 p 67) aponta que Creonte

em seu afatilde legiferante faz com que as funccedilotildees e os lugares sejam subvertidos os vivos satildeo enterrados os mortos jazem insepultos A situaccedilatildeo resulta no chaos a proacutepria natureza desordenou-se e a ordem coacutesmica tatildeo cara ao grego antigo foi revirada pelo avesso A sentenccedila do soberano sobre o ato de Antiacutegona apenas redobra a anterior a proibiccedilatildeo do sepultamento de Polinices este condenado a apodrecer entre os vivos aquela a viver entre os mortos

De acordo com a autora Creonte natildeo ordena a morte de Antiacutegona conforme havia

prometido ao traidor do decreto Natildeo esperava ele que a pessoa a trair seria ela sua sobrinha

sangue de seu sangue Temendo a revolta dos deuses decide pelo seu emparedamento viva A

morte seria uma consequecircncia pela qual ele natildeo quer se responsabilizar

O destino traacutegico de Antiacutegona eacute o de seu corpo no lugar do corpo do irmatildeo Ela aparece

como carne como morta embora viva O que mais ela consegue realizar ainda que

simbolicamente Como jaacute mencionado em Eacutedipo em Colono trageacutedia que antecede Antiacutegona

Eacutedipo eacute enterrado por Teseu em lugar desconhecido seu corpo natildeo pertence a lugar nenhum

natildeo protege a sua linhagem Antiacutegona e a irmatilde Ismene fazem os rituais de purificaccedilatildeo poreacutem

satildeo impedidas de ver e de saber sobre o local da sepultura

Antiacutegona ao dizer os motivos pelos quais enterra Polinices afirma

[] Se houvera sido matildee de filhos ou se o esposo morto apodrecesse exposto jamais enfrentaria eu tamanhas penas tendo de opor-me a todos os concidadatildeos Que leis me fazem pronunciar estas palavras Fosse eu casada e meu esposo falecesse bem poderia encontrar outro e de outro esposo teria um filho se antes perdesse algum mas morta minha matildee morto meu pai jamais outro irmatildeo meu viria ao mundo (Antiacutegona vv 1008-1017)

114

Para Guyomard (1996) Antiacutegona ao enterrar o irmatildeo o uacutenico que lhe resta estaacute

honrando tambeacutem algo que diz respeito agrave sua proacutepria condiccedilatildeo de ter nascido do incesto ldquoA

questatildeo de Antiacutegona eacute que essa unicidade inclui o incesto Um incesto que a fez nascer ndash sem

metaacutefora ndash e que a faz morrer Ela coloca tragicamente a questatildeo da confusatildeo entre a vida e a

morte como entre a lei e o incestordquo (GUYOMARD 1996 p 32)

Como o autor aponta Antiacutegona conhece apenas uma metaacutefora pura que a conduz agrave

morte Eacute tambeacutem o que a faz ver em Polinices a unicidade de ser um irmatildeo o que a faz por

outro lado tomar-se na unicidade de ser uma irmatilde De acordo com Guyomard (1996 p 31)

[] a unicidade do irmatildeo morto converte-se na relaccedilatildeo pura (isto eacute esvaziada de qualquer outro interesse) de Antiacutegona com o que faz dela um sujeito falante ela se identifica com o corte da linguagem ndash a partir desse nada para onde retorna ndash sendo apenas a irmatilde de seu irmatildeo

Dessa maneira podemos depreender disso que o lugar do irmatildeo morto eacute o lugar do

desejo de Antiacutegona O desejo que se revela no cadaacutever de Polinices De acordo com Lacan

(1959-19601997) o valor do ser irmatildeo se torna um valor de linguagem que acaba por mostrar

o corte instaurado em Antiacutegona o corte de linguagem o limite o ex nihilo em que ela fica

presa

Jamais outro irmatildeo de Antiacutegona viria ao mundo estando seu pai Eacutedipo e sua matildee Jocasta

mortos Eacute importante lembrar que Eacutedipo aleacutem de pai eacute tambeacutem irmatildeo de Antiacutegona e nessa

medida ao enterrar Polinices podemos entender que ela enterra tambeacutem o que resta de irmatildeo

em Eacutedipo

Nesse sentido Eacutedipo e Polinices parecem estar ligados por um significado oculto que

diz respeito a ambos serem irmatildeos de Antiacutegona Outra ligaccedilatildeo possiacutevel eacute o dever de enterrar

Eacutedipo (corpo que some subtraiacutedo) deslocado ao dever de enterrar Polinices (corpo exposto

que aparece em demasia) Nessa relaccedilatildeo ela manteacutem a metoniacutemia de seu desejo ateacute as uacuteltimas

consequecircncias apontando o que sustenta essa relaccedilatildeo as leis divinas Os termos morfoloacutegicos

que constituem o nome Antiacutegona em grego ἀντί e γονή aludem agrave funccedilatildeo da metaacutefora a

condiccedilatildeo de substituir uma coisa por outra tomar o lugar de algum familiar nascer no lugar de

algo ou alguma coisa O ato com o qual se afirma como sujeito ao mesmo tempo que se coloca

em perda ou seja o ato de enterrar o irmatildeo ao lembrar das leis natildeo escritas como dissemos

ocorre por meio da tentativa de garantir simbolicamente o enterro de Eacutedipo pelo enterro de

Polinices

115

Contudo como consequecircncia de seu ato Antiacutegona se torna a proacutepria coisa que substitui

o irmatildeo morto eacute enterrada como cadaacutever sem secirc-lo eacute tomada como morta sem secirc-lo sem que

nada reste como diferenccedila como qualquer outra coisa torna-se totalmente metaacutefora Puro corte

significante pura metaacutefora Doa-se como parte fundamental da constituiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo

simboacutelica capaz de marcar a diferenccedila entre dois mundos o mundo dos vivos e o mundo dos

mortos o mundo dos humanos e o mundo dos deuses No entanto Creonte provoca nova

confusatildeo ao natildeo permitir o enterro de um morto e ao ordenar o enterro de uma pessoa viva

A proacutepria trageacutedia grega para Kathrin Rosenfield (2000) eacute uma arte que se apresenta

como metaacutefora quer dizer representaccedilatildeo Eacute um lugar de passagem entre lugares irredutiacuteveis

um ao outro a natureza e a cultura

Enquanto metaacutefora de uma intuiccedilatildeo intelectual a trageacutedia potildee em cena a passagem ndash o meio (termo) indefinido e insuperaacutevel ndash entre mundo estranhos entre si e que satildeo ao mesmo tempo figuras de niacuteveis distintos do entendimento e da razatildeo Nesta perspectiva a trageacutedia eacute inteiramente no momento no instante da representaccedilatildeo transporte infinitamente prolongado entre niacuteveis irredutiacuteveis um ao outro (ROSENFIELD 2000 p 168)

A trageacutedia Antiacutegona permite a realizaccedilatildeo dessa passagem dessa travessia que conduz

de um plano a outro sem que nenhum possa prevalecer sobre o outro Para fazer tal travessia

a qual se prolonga em metoniacutemia desejante faz-se necessaacuteria a construccedilatildeo de uma metaacutefora

nem que para sua garantia o preccedilo a pagar a libra de carne seja a proacutepria existecircncia

Nessa linha de pensamento Vorsatz (2013) nos mostra que aleacutem da temaacutetica proposta

na trageacutedia Antiacutegona a proacutepria esteacutetica traacutegica sua forma de apresentaccedilatildeo linguiacutestica compotildee-

se de modo a trabalhar a linha de tensatildeo entre planos distintos e nesse sentido favorece o

pensamento poeacutetico justamente esse que natildeo visa um argumento racional e loacutegico mas uma

forma de pensamento alargada em que os sentidos vatildeo sendo produzidos em decorrecircncia das

passagens de um termo a outro

Vemos que a proacutepria estrutura de linguagem poeacutetica da trageacutedia caracteriza uma forma de pensamento singular distinta e anterior ao pensamento logico-conceitual em que as contradiccedilotildees natildeo se anulam reciprocamente e diferentes patamares de temporalidade coexistem sem que haja primazia de uns sobre outros A linguagem poeacutetica natildeo subsumida ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo seria aparentada ao funcionamento inconsciente Talvez seja possiacutevel supor que em seu funcionamento o inconsciente tem uma forma poeacutetica de proceder de acordo com sua estrutura de linguagem assinalada por Lacan ndash metaacutefora e

116

metoniacutemia satildeo mecanismos anaacutelogos agrave condensaccedilatildeo e ao deslocamento postulados por Freud (VORSATZ 2013 p 41)

Condensaccedilatildeo e deslocamento satildeo mecanismos que Freud descobre operarem na

deformaccedilatildeo que conteuacutedos inconscientes sofrem na tentativa de figurar o sonho a linguagem

o sintoma O trabalho de interpretar os sonhos vai nesse sentido de averiguar essas operaccedilotildees

com o paciente que captam traccedilos aspectos em comum de diferentes objetos pessoas espaccedilos

e tempos e os fazem participar de uma mesma cena sem que haja uma anulaccedilatildeo ou contradiccedilatildeo

entre eles A condensaccedilatildeo tomada por Lacan como metaacutefora eacute uma operaccedilatildeo simboacutelica que

permite ao sujeito a construccedilatildeo de um novo sentido pela substituiccedilatildeo de um significante por

outro Ele trabalha com essa questatildeo no seminaacuterio As formaccedilotildees do inconsciente (LACAN

1957-19581998)

Nesse sentido na constituiccedilatildeo do sujeito como ser de linguagem Lacan propotildee a

ocorrecircncia de metaacutefora paterna que teria por funccedilatildeo a substituiccedilatildeo do significante do desejo da

matildee pelo significante do nome do pai Isso implicaria uma alienaccedilatildeo ao desejo do Outro uma

pergunta necessaacuteria e fundante sobre o que o Outro quer de mim sendo este uma alusatildeo agrave matildee

como Outro primordial Nesse sentido Antiacutegona desliza a uma rede significante com a qual

interpela esse Outro como metaacutefora o qual corresponde aos deuses gregos ldquoQue mandamentos

transgredi das divindadesrdquo (Antiacutegona v 1027)

Pensamos se na trageacutedia grega natildeo haveria uma intenccedilatildeo nesse sentido uma tentativa

conjunta de criar um dispositivo uma operaccedilatildeo cultural uma metaacutefora que pudesse representar

o desejo humano na cultura Uma tentativa de fundar um saber da civilizaccedilatildeo sempre falha

sempre traacutegica jaacute que por ela todos morrem no final em cadeia Seria uma tentativa de que a

representaccedilatildeo alcanccedilasse um ponto impossiacutevel Como aponta Vorsatz (2013) fazer o simboacutelico

cortar o real

Lacan no complemento ao seu comentaacuterio sobre a trageacutedia Antiacutegona fala que

ldquoAntiacutegona diante de Creonte se situa como a sincronia oposta agrave diacroniardquo (LACAN 1959-

19601997 p 344) Com seu ato de enfrentar Creonte Antiacutegona faz um corte sincrocircnico na

lei proferida pelo rei Ao nomear Polinices como inimigo criminoso escravo o que resulta no

edito de deixar seu corpo exposto a princesa mostra o que ele eacute para ela um irmatildeo antes de

tudo O que o rei faz com isso Natildeo mata o traidor pois eacute sua sobrinha mas a enterra viva para

manter em parte sua palavra Ao ouvir o adivinho Tireacutesias muda de ideia ordena que

desenterrem Antiacutegona Poreacutem jaacute estava morta enforcada com um laccedilo de linho de seu vestido

117

Ao vecirc-la o filho de Creonte noivo da princesa mata-se com uma espada Ao saber da morte

do filho a mulher de Creonte tambeacutem comete suiciacutedio

O rei desesperado implora para que a morte chegue ateacute ele jaacute que ele mesmo natildeo

consegue fazecirc-lo ldquoVenha Aconteccedila a uacuteltima das mortes ndash a minha ndash e traga o meu dia final

o mais feliz de todos Venha Venha pois natildeo quero viver nem mais um diardquo (Antiacutegona vv

1468-1471)

Agrave suacuteplica de Creonte o corifeu diz ldquoisto eacute o futuro antes cuidemos do presenterdquo

(Antiacutegona v 1472) Entendemos que haacute na trageacutedia uma invenccedilatildeo um fazer com a linguagem

e a relaccedilatildeo da temporalidade com a linguagem O saber na trageacutedia um saber que natildeo se revela

a priori que se faz com o ato um saber insabido pode ser transmitido com esses termos

234 A dimensatildeo do belo

No lugar em que Antiacutegona sustenta seu desejo ex nihilo Lacan (1959-19601997) fala

de seu brilho de sua luz que em parte se reflete causando um cegamento no espectador e em

parte se reteacutem e se prolonga O psicanalista menciona especialmente uma imagem de Antiacutegona

que se destaca dentre as outras imagem de sua lamentaccedilatildeo ao entrar viva no tuacutemulo de sua

morte

Pois bem sabemos que para aleacutem dos diaacutelogos para aleacutem da famiacutelia e da paacutetria para aleacutem dos desenvolvimentos moralizadores eacute ela que nos fascina em seu brilho insuportaacutevel naquilo que ela tem que nos reteacutem e ao mesmo tempo nos interdita no sentido em que isso nos intimida no que ela tem de desnorteante ndash essa viacutetima tatildeo terrivelmente voluntaacuteria (LACAN 1959-19601997 p 300)

Nesse sentido para aleacutem da discussatildeo que compreende as leis do Estado opostas agraves leis

familiares no que diz respeito aos deveres para com os mortos que por si soacute jaacute nos coloca numa

dimensatildeo de tensionamento o ato de Antiacutegona nos atravessa ao problematizar a via desejante

que em seu caso sobrevive mesmo ao conduzi-la agrave morte Haacute aiacute um lugar para aleacutem dos limites

eacuteticos que nossa consciecircncia atinge alccedilamos uma experiecircncia esteacutetica compreendida como a

zona do belo que estaacute num ponto aleacutem da zona do bem

O belo diz Lacan pode dar forma ao desejo inconsciente poreacutem haacute uma relaccedilatildeo

ambiacutegua entre os termos ldquodesejordquo e ldquobelordquo Uma vez que o nosso desejo tome forma bela a

partir de um certo arranjo de elementos miacutenimos chegamos a um ponto de suspensatildeo do

118

horizonte do desejo pois ele encontra no belo uma experiecircncia esteacutetica tal que favorece a

satisfaccedilatildeo desejante e natildeo a relanccedila Nesse sentido o belo guarda a condiccedilatildeo tanto de expressatildeo

do desejo quanto de suspendecirc-lo

A verdadeira barreira que deteacutem o sujeito diante do campo inominaacutevel do desejo radical uma vez que eacute o campo da destruiccedilatildeo absoluta [] eacute o fenocircmeno esteacutetico propriamente dito uma vez que eacute identificaacutevel com a experiecircncia do belo (LACAN 1959-19602007 p 265)

A uacutenica maneira possiacutevel de transmitir a experiecircncia do ex nihilo de onde Antiacutegona

situa seu ato simboacutelico eacute a via do belo que para Lacan eacute o verdadeiro limite do desejo para

aleacutem dele nada resta a natildeo ser destruiccedilatildeo Esse limite Antiacutegona o toca e nos comove

Talvez aqui seja interessante fazer um esboccedilo da diferenccedila proposta por Lacan (1959-

19602007) entre o bem e o belo jaacute que o psicanalista compara a barreira do bem com a barreira

do belo O limite do belo situa-se num ponto aleacutem do limite do bem embora por sermos

constantemente iludidos na dimensatildeo do bem por muitas vezes em nossas relaccedilotildees cotidianas

em nossas escolhas de vida paralisamos diante da barreira do bem enganando-nos de que aiacute

reside o que eacute da ordem do nosso desejo ou entatildeo ao menos o que eacute da ordem do justo

Lacan aponta que no fazer do psicanalista eacute preciso pensar sobre como o desejo e o bem

se articulam O desejo de curar em psicanaacutelise seria um desejo de libertar o sujeito das ilusotildees

do bem e dessa forma ir na via contraacuteria da ldquofalcatrua beneacutefica do querer-o-bem-do-sujeitordquo

(LACAN1959-19602007 p 267) Para o psicanalista francecircs o bem eacute o que reteacutem o desejo

ilude o sujeito na realizaccedilatildeo de seu desejo quando na verdade o silencia

Lacan nos aponta que o bem estaacute sempre em referecircncia agrave noccedilatildeo freudiana de princiacutepio

do prazer atraveacutes do qual buscamos satisfaccedilatildeo e com o princiacutepio de realidade que faz com

que nos deparemos com os caminhos equivocados para onde o prazer nos conduz Nesse

sentido o bem estaacute relacionado a um conflito fruto do embate entre esses dois princiacutepios Entre

o prazer e a realidade sabemos que como neuroacuteticos tendemos a entrar num acordo atraveacutes

do qual conseguimos adquirir satisfaccedilatildeo atraveacutes dos compromissos que a realidade nos coloca

sem precisarmos muitas vezes escolher e bancar o que eacute da ordem de nosso desejo Tendemos

a buscar uma parcela de prazer atraveacutes do investimento nos objetos do mundo enganando-nos

na via da realizaccedilatildeo de nosso desejo Isso nos livra da responsabilidade de arcar com a

consequecircncia de seguirmos a via desejante jaacute que esse caminho natildeo nos traz satisfaccedilatildeo da

119

ordem do principio do prazer ou da articulaccedilatildeo deste com o princiacutepio de realidade A satisfaccedilatildeo

seria de outra ordem difiacutecil de bancar aliada agrave pulsatildeo de morte

Dessa maneira o psicanalista apresenta a noccedilatildeo de praacutexis no duplo sentido que ela

evoca a dimensatildeo eacutetica a nossa accedilatildeo como agimos de acordo com nosso lugar na linguagem

e a dimensatildeo ex nihilo a fabricaccedilatildeo o que produzimos com os significantes que nos posicionam

como sujeitos de desejo Antes do surgimento da noccedilatildeo de necessidade do que realmente

precisamos para viver e para realizar nossos desejos antes de qualquer intenccedilatildeo de suprir uma

necessidade no princiacutepio eacute como significante que qualquer coisa se articula Nesse sentido que

Lacan traz a ideia da necessidade de sermos seres vestidos Antes de se pensar na funccedilatildeo do

encobrimento do corpo ou de alguma coisa no iniacutecio estaacute a invenccedilatildeo produtora ex nihilo com

a qual o ser humano organiza-se ao longo dos seacuteculos como um ser vestido Dessa maneira

primeiramente ele cria a roupa (ex nihilo) e com isso surge a necessidade de cobrir-se bem

como o direito de ter suas necessidades satisfeitas as quais tem um valor uacutetil Sendo assim a

praacutexis do homem o coloca a fabricar com alguma coisa que tem valor significante e com isso

o homem descobre a utilidade do que criou numa perspectiva coletiva

De acordo com Lacan (1959-19602007 p 280) ldquoA dimensatildeo do bem levanta uma

muralha poderosa na via do nosso desejordquo Eacute nessa perspectiva que ele apresenta a dimensatildeo

do belo para aleacutem da barreira do bem O belo diferente do bem natildeo nos engana sobre o desejo

natildeo nos oferece uma ilusatildeo de fazer o bem com nossos bens Eacute uma funccedilatildeo que nos abre os

olhos

Se o bem estaacute em relaccedilatildeo ao que nos satisfaz com o princiacutepio do prazer o belo se refere

a algo mais aleacutem desse princiacutepio a pulsatildeo de morte e nesse sentido embora seja o verdadeiro

limite do desejo o mais aleacutem pode de certo modo se conjugar ao desejo Eacute isso que Antiacutegona

realiza

Pensamos nessas contribuiccedilotildees do pensamento psicanaliacutetico para a aacuterea da educaccedilatildeo ou

sobre como podem se articular A experiecircncia educativa parece se aliar melhor a uma ideia de

laccedilo social de construccedilatildeo do conhecimento de tradiccedilatildeo cultural o que podemos prontamente

relacionar ao que produz vida ao que manteacutem o desejo vivo ao que visa preservar o laccedilo as

relaccedilotildees com o outro Contudo Lacan nos fala que se a pulsatildeo de morte para aleacutem de uma

perspectiva que remete a algo da destruiccedilatildeo potildee em causa tudo o que existe ldquoeacute igualmente

vontade de criaccedilatildeo a partir de nada vontade de recomeccedilarrdquo (LACAN 1959-19602007 p 260)

120

Somos impelidos assim a adotar uma atitude questionadora a pensar que as relaccedilotildees

que se cristalizam no cenaacuterio educativo embora possam mobilizar algo da satisfaccedilatildeo de uma

necessidade manter nossas relaccedilotildees aparentemente coesas natildeo satildeo relaccedilotildees estanques ou

necessaacuterias mas podem ser desmontadas e rearranjadas na medida em que modelamos

elementos que significam na cena o que nos coloca no lugar de criadores produtores de uma

outra coisa que pode gerar um novo laccedilo como efeito

Estou-lhes mostrando a necessidade de um ponto de criaccedilatildeo ex nihilo do qual nasce o que eacute histoacuterico na pulsatildeo No comeccedilo era o Verbo o que quer dizer o significante Sem o significante no comeccedilo eacute impossiacutevel articular a pulsatildeo como histoacuterica E isso basta para introduzir a dimensatildeo ex nihilo na estrutura do campo analiacutetico (LACAN 1959-19601997 p 261)

Dessa maneira a pulsatildeo que nos move remonta agrave ideia de fazer com o significante o

que fabricamos com ele

O belo permite alcanccedilar uma zona aleacutem do limite do bem aborda nossas tendecircncias

disjuntivas e de modo misterioso une-se ao nosso desejo Desse modo entendemos que a funccedilatildeo

do belo eacute um tanto paradoxal Diz respeito agrave relaccedilatildeo fundamental do sujeito com seus proacuteprios

limites com a proacutepria morte ao mesmo tempo que figura o desejo Conforme comenta Lacan

remetendo-nos agrave funccedilatildeo do vestir do encobrir-se o uacuteltimo veacuteu antes do horror eacute o belo

Trabalhando significantes soacute conseguimos nos aproximar do horror do vazio de nossa

constituiccedilatildeo com o belo e com ele retirarmos uma dose de satisfaccedilatildeo Para aleacutem disso temos

a dimensatildeo destrutiva que nos faz sofrer que nos retira a possibilidade de fazer com o

significante que nos retira a proacutepria condiccedilatildeo desejante Eacute a esse lugar paradoxal aleacutem do bem

e aleacutem do belo que Antiacutegona se encaminha e em funccedilatildeo disso de passar totalmente dos limites

confundindo o lugar de sujeito com o lugar de objeto ela encontra a proacutepria morte Noacutes leitores

e espectadores atravessamos os limites com ela salvaguardados pelo veacuteu da cena que nos diz

que natildeo passa de ficccedilatildeo o que nos ajuda a colher os efeitos cecircnicos de horror e piedade

O filoacutesofo Eugenio Triacuteas em seu livro El bello y lo siniestro nos fala da relaccedilatildeo

existente entre o horror e o belo fazendo um comentaacuterio especial sobre o belo na trageacutedia grega

Para o autor a trageacutedia formalizou uma esteacutetica tal que nos fez e nos faz admiraacute-la e trabalhaacute-

la ateacute hoje Eacute um modelo artiacutestico indiscutiacutevel A resposta para isso pode ter sido levantada por

Freud quando adotou Eacutedipo como figura exemplar de sua teorizaccedilatildeo no que tange ao desejo

inconsciente No entendimento de Triacuteas haacute para Freud uma estrutura antropoloacutegica

121

inconsciente sustentada e revelada pela trageacutedia especialmente a de Eacutedipo e eacute decorrente do

que a trageacutedia mobiliza do inconsciente humano que sentimos os efeitos esteacuteticos do belo

A antiguidade grega engendrou uma esteacutetica enigmaacutetica que os padrotildees de beleza que

foram sendo estabelecidos nos seacuteculos posteriores natildeo conseguem alccedilar Nesses ideais haacute uma

noccedilatildeo de proporccedilatildeo simplicidade contraste e familiaridade os quais nosso entendimento

racional eacute capaz de captar e reproduzir No entanto a trageacutedia pode abarcar esses ideias e ir

aleacutem deles a um ponto um limite que escapa agrave nossa racionalidade Justamente nesse ponto

aleacutem que toca no inconsciente ponto captado por Freud eacute que reside o belo da trageacutedia Para

Triacuteas (2010) pode-se atingir um ponto tal de familiaridade que sugere um tom de

estranhamento Nesse sentido o filoacutesofo se interessa em estudar o artigo freudiano Das

Unheimliche (1919) para com ele buscar transmitir algo da potecircncia da obra de arte

Para Triacuteas (2010) o unheimlich nomeado na liacutengua espanhola de siniestro pode ser

suscitado pelo reconhecimento de algo familiar na beleza um objeto do mundo reconheciacutevel

pertencente ao nosso meio um rosto de algueacutem conhecido O autor nos diz que esse algo

familiar e harmonioso que identificamos de repente se apresenta como revelador de conteuacutedos

pertencentes a noacutes mesmos portador de misteacuterios que esquecemos e desejamos que

permaneccedilam esquecidos e que pertencem a fantasias forjadas por nosso desejo inconsciente A

forccedila da obra de arte seu efeito de belo reside nessa conjunccedilatildeo do familiar com o siniestro em

sua representaccedilatildeo sensiacutevel e real sendo entatildeo que careceria de forccedila a obra que natildeo contivesse

essa hiacircncia familiarestranho

Por meio do conceito de siniestro Triacuteas buscou comprovar sua hipoacutetese de que o efeito

de belo numa obra de arte depende do jogo entre o familiar e o estranho ao mesmo tempo que

o estranho tambeacutem faz com que a obra perca o efeito do belo Em outras palavras o autor afirma

que o estranho eacute condiccedilatildeo e limite do belo Sendo assim natildeo poderia haver belo sem que o

estranho estivesse presente na obra artiacutestica No entendimento de Triacuteas o estranho deve estar

presente sob forma de ausecircncia velado sob a forma de familiaridade e harmonia natildeo podendo

ser desvelado Com isso o autor presume que o estranho eacute o poder da obra sua magia seu

misteacuterio a fascinaccedilatildeo que causa Nesse sentido a revelaccedilatildeo do estranho implicaria natildeo

obstante a destruiccedilatildeo do efeito esteacutetico (TRIacuteAS 2010)

Assim podemos entender que o belo se transmite pela via da experiecircncia esteacutetica ou

entatildeo que somente por essa vida atingimos o efeito do belo capaz de tocar de tal modo a nos

transformar a nos colocar na via desejante Se o nosso entendimento racional se a nossa

122

consciecircncia tomar o lugar de domiacutenio da compreensatildeo de uma obra corre-se o risco de natildeo

sermos atingidos por ela transformados ela se torna mais um conteuacutedo objetivo que passa pelo

crivo do racional

O arranjo cecircnico que favorece o estranhamento se revela o estranho jaacute natildeo eacute mais

estranho tampouco familiar eacute compreensiacutevel dele nos distanciamos e ele natildeo nos diz mais

respeito como seres humanos Isso depende tambeacutem pensamos da atitude que assumimos

diante de uma obra de arte do quatildeo disponiacuteveis estamos se nos defendemos do que ela suscita

se ela toma parte da nossa vida como bem de consumo se buscamos com ela uma completude

imaginaacuteria enfim Mas haacute tambeacutem obras de arte como Antiacutegona que nos tomam

desprevenidos que nos fazem falar e seguir falando seacuteculos e seacuteculos depois de sua criaccedilatildeo

como supomos a um claacutessico (na concepccedilatildeo de Italo Calvino) que ainda natildeo terminou de dizer

o que tinha para dizer

235 A mulher Antiacutegona

Em muitos momentos Creonte se refere a Antiacutegona como uma mulher num tom

depreciativo Diz que ele nunca obedeceria a uma mulher Acusa Hecircmon seu filho de estar

submetido a uma mulher Fala a Antiacutegona que ela eacute uma mulher que quer fazer o papel de

homem ao enfrentaacute-lo O que quer dizer isso

O lugar da mulher na Greacutecia Antiga era resguardado ao lar a ser esposa gerar filhos e

cuidar da casa Natildeo participavam da vida poliacutetica natildeo estudavam Natildeo participavam da

encenaccedilatildeo das trageacutedias os papeis de mulheres eram realizados por homens jovens com

maacutescaras femininas O papel da corajosa Antiacutegona foi interpretado por um homem

Assim de modo diferente ao que esperavam dela por ser mulher a personagem

Antiacutegona enfrentou a decisatildeo do rei provocando um questionamento sobre sua poliacutetica e

justiccedila Aleacutem disso natildeo se casou e natildeo teve filhos Esse fato eacute algo marcado por ela em sua

fala quando lamenta sua morte precoce

[] Se houvera sido matildee de filhos ou se o esposo morto apodrecesse exposto jamais enfrentaria eu tamanhas penas tendo de opor-me a todos os concidadatildeos Que leis me fazem pronunciar estas palavras Fosse eu casada e meu esposo falecesse bem poderia encontrar outro e de outro esposo

123

teria um filho se antes perdesse algum [] um leito nupcial jamais terei nem ouvirei hinos de bodas nem sentirei as alegrias conjugais nem filhos amamentarei [] (Antiacutegona vv 1008-1015 1021-1024)

Entendemos com essa passagem que se Antiacutegona se tornasse esposa e matildee o laccedilo

existente com marido e possiacuteveis filhos natildeo seria um laccedilo tatildeo fundamental como o que a prende

aos seus antecessores familiares especialmente ao seu irmatildeo Natildeo morreria para sustentar a

existecircncia de um esposo pois arranjaria outro com o qual teria outros filhos O lugar de marido

e descendentes para ela parece ser mais um compromisso social uma obrigaccedilatildeo facilmente

restituiacuteda Um destino certo para qualquer mulher sem escolhas que faccedilam aparecer o desejo

Parece-nos haver para Antiacutegona uma separaccedilatildeo da ideia de ser esposa e matildee da ideia de

ser um sujeito Esse lugar estaacute mais aleacutem dos deveres sociais Sua eacutetica natildeo eacute uma moral social

eacute a eacutetica de seu desejo Isso eacute o que Creonte natildeo admite ver em Antiacutegona Ele a vecirc sair do lugar

circunscrito a uma mulher e chamando-a de mulher tenta evocar essas obrigaccedilotildees

Assim Antiacutegona provoca um corte nas accedilotildees de Creonte especialmente quando ao

morrer faz com que ele perca filho e esposa mortes pelas quais ele se responsabiliza ao final

da peccedila Acreditamos que esse aspecto da relaccedilatildeo entre Creonte e Antiacutegona da diferenccedila entre

o lugar de homem e o lugar de mulher na sociedade tebana eacute um ponto importante a ser

mencionado ainda que seja num trabalho em que o tema central natildeo eacute esse Natildeo podemos

ignoraacute-lo como temaacutetica capaz de dialogar com discursos vivos correntes de nossa atualidade

acerca do feminismo Eacute disso que se trata em um claacutessico haacute sempre um aspecto capaz de falar

diretamente ao contemporacircneo

Dissemos no iniacutecio da seccedilatildeo sobre a trageacutedia Antiacutegona que gostariacuteamos de abordaacute-la

para entender a questatildeo dos limites e das possibilidades na cena educativa Pois bem o que

podemos dizer para o momento eacute que a crianccedila que apresenta sintomas relativos agrave escola como

hiperatividade dificuldades de atenccedilatildeo e de aprendizagem talvez precise realizar uma operaccedilatildeo

simboacutelica que se decirc ao niacutevel de uma invenccedilatildeo para aleacutem das obrigaccedilotildees e medidas

preestabelecidas de bom comportamento no ciacuterculo social da qual participa Com Antiacutegona

entendemos que haacute um laccedilo que nos sustenta para aleacutem de discursos que se impotildeem sobre a

cena no intuito de organizaacute-la um laccedilo mais proacuteximo agraves nossas condiccedilotildees inventivas agraves

possibilidades de rearranjo da cena Mas como satildeo ldquoleis natildeo escritasrdquo escrevemos e criamos a

124

cada vez pela modelaccedilatildeo dos significantes presentes na cena escolar os quais ao serem

trabalhados bordejam um vazio circunscrito por fronteiras que natildeo excluem o outro mas se

formam com ele

Nas proacuteximas paacuteginas discutiremos como algumas questotildees identificadas pela

psicanaacutelise na trageacutedia grega participam de noccedilotildees e conceitos do traacutegico e da trageacutedia trazendo

novos elementos para a conversa

125

3 O TRAacuteGICO

Como sondar o traacutegico o que lhe eacute proacuteprio Elegemos como uma primeira aproximaccedilatildeo

sua definiccedilatildeo no dicionaacuterio afinal haacute de se comeccedilar por algum caminho Buscamos logo um

dicionaacuterio de teatro e seguimos com ele Patrice Pavis indica em seu Dicionaacuterio de teatro que

quanto ao traacutegico eacute preciso estabelecer uma diferenccedila entre o gecircnero literaacuterio da trageacutedia e o

traacutegico como aquilo que se refere a um ldquoprinciacutepio antropoloacutegico e filosoacutefico que se encontra

em vaacuterias outras formas artiacutesticas e mesmo na existecircncia humanardquo (PAVIS 2015 p 416)

Haacute dessa forma o gecircnero chamado trageacutedia nascido no seacuteculo V aC e sistematizado

pelo filoacutesofo Aristoacuteteles em sua obra Poeacutetica no seacuteculo IV aC Como exemplos podemos citar

as trageacutedias antigas dos claacutessicos Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides as quais foram propostas no

seacuteculo V aC Tambeacutem fazem parte do gecircnero traacutegico as trageacutedias modernas de poetas como

Shakespeare Corneille e Racine

Jaacute o traacutegico deriva de uma apreciaccedilatildeo filosoacutefica da existecircncia humana a qual pode ter

uma essecircncia traacutegica Tal concepccedilatildeo aparece a partir do seacuteculo XIX atraveacutes das filosofias de

Hegel Schopenhauer Nietzsche entre outros No entanto eacute preciso considerar segundo Pavis

(2015) que a essecircncia do traacutegico apresentada por filoacutesofos soacute eacute possiacutevel a partir do que foi

capturado por eles na trageacutedia em forma de poesia e representaccedilatildeo Dentre os filoacutesofos vamos

abordar um pouco da apreciaccedilatildeo que Nietzsche faz da trageacutedia por considerar que sua

contribuiccedilatildeo traz agrave tona o tensionamento essencial para compreender a forma do traacutegico

31 Noccedilotildees do traacutegico e da trageacutedia antiga

311 O conflito insoluacutevel

A partir de Pavis (2015) podemos entender que o conflito inevitaacutevel e insoluacutevel

proposto pela trageacutedia antiga se transforma ao longo da histoacuteria possibilitando dramas soluacuteveis

reflexotildees filosoacuteficas e o sentimento do absurdo da existecircncia temas propostos em outros

gecircneros teatrais Talvez o que a trageacutedia antiga tenha inaugurado no cenaacuterio teatral como

essecircncia do traacutegico que se relanccedila e se renova seja uma relaccedilatildeo intriacutenseca agrave fatalidade da

experiecircncia humana O traacutegico nos coloca diante da condiccedilatildeo humana dos limites de nossa

126

existecircncia da falta de garantia sobre o sucesso de nossas escolhas da dimensatildeo da fragilidade

e vulnerabilidade do humano

Diante da dimensatildeo insoluacutevel da existecircncia eacute possiacutevel adotar diferentes formas de se

posicionar Com as noccedilotildees do traacutegico podemos ler a vida cotidiana as relaccedilotildees humanas que

estabelecemos nos mais diferentes espaccedilos de conviacutevio que por muitas vezes resultam em

conflitos Tais conflitos bem poderiam ser tomados como insoluacuteveis mostrarem-se verdadeiros

impasses pois as pessoas que os formam podem ter propoacutesitos legiacutetimos No entanto o quanto

estamos comprometidos com nossas escolhas com os efeitos de nosso fazer sobre o outro

O cenaacuterio escolar eacute uma arena rica em conflitos e impasses ndash lhe eacute inerente como locus

da vida a presenccedila de choques embaraccedilos empecilhos subversotildees Nesse sentido com a

aproximaccedilatildeo do traacutegico queremos destacar elementos que possibilitem compor diferentes

equaccedilotildees para o desdobramento possiacutevel a partir do encontro com a dimensatildeo insoluacutevel da

(ex)sistecircncia refletindo sobre suas consequecircncias para a relaccedilatildeo dos atores escolares com a

praacutexis educativa

Segundo Rosenfield (2000) a trageacutedia antiga coloca em cena o impasse dando enredo

a situaccedilotildees em que natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel entre as posiccedilotildees dos personagens jaacute que suas

escolhas mesmo quando antagocircnicas podem se sustentar como legiacutetimas Nos enredos

traacutegicos assistimos aos percalccedilos de um heroacutei ou de uma heroiacutena cujo destino aparece como

cifrado jaacute desde o iniacutecio da peccedila Trata-se dos desdobramentos de um percurso de vida que

encerra opccedilotildees que bem poderiam ser nomeadas de ldquoescolha forccediladardquo tal como indicou Lacan

(19642008) ao renomear a ldquoescolha pela neuroserdquo proposta por Freud (19132014) como uma

escolha forccedilada entre a ldquobolsa ou a vidardquo Assim os impasses impostos pelo traacutegico colocaratildeo

o sujeito diante de embaraccedilos eacuteticos o que observou muito bem Lacan (1959-19601997) ao

retomar a Antiacutegona de Soacutefocles

Eacute a Antiacutegona que Lacan recorreraacute quando se ocupa da eacutetica da psicanaacutelise

estabelecendo-a sustentada em preceitos que de forma alguma respondem a uma obrigaccedilatildeo a

um ordenamento preacutevio ou a uma moral social Da eacutetica da psicanaacutelise decanta um uacutenico

princiacutepio que indica a necessidade do sujeito natildeo ceder de seu desejo Natildeo eacute demais relembrar

que a dimensatildeo do desejo pode um sem nuacutemero de vezes impelir o sujeito a atos que natildeo se

coadunam com sua vontade Nem sempre desejamos aquilo do que podemos dizer que temos

vontade E justo aiacute reside a complexidade desse preceito eacutetico Respondendo ao ditame

inconsciente o desejo natildeo eacute algo passiacutevel de controle ou antecipaccedilatildeo mas ainda assim de

127

acordo com os caminhos abertos pela psicanaacutelise requer que o sujeito natildeo recue diante de sua

emergecircncia e que possa se responsabilizar por suas consequecircncias

Lacan se interessaraacute por esquadrinhar o percurso de Antiacutegona que escolhe agrave revelia de

sua morte alinhar-se aos preceitos dos deuses em oposiccedilatildeo agrave lei da cidade da qual Creonte se

apresenta como guardiatildeo Como nos lembra Vorsatz (2013) a posiccedilatildeo tomada pelo heroacutei

traacutegico leva em consideraccedilatildeo a alteridade divina ldquoo heroacutei traacutegico determinado pelo campo real

dos deuses dele se extrai por intermeacutedio de seu atordquo (VORSATZ 2013 p 22) O heroacutei se

inscreve como tal atraveacutes de uma accedilatildeo que garante a presenccedila e a ordem divina Poreacutem sua

accedilatildeo implica sua proacutepria perda

O heroacutei alccedila uma posiccedilatildeo digna comovente admiraacutevel bela pois mesmo sabendo de

sua mortalidade de sua infelicidade de seu destino traacutegico natildeo cede de sua decisatildeo e eacute nesse

instante de natildeo ceder que ele atinge a potecircncia possiacutevel a um ser humano a responsabilidade

sobre suas escolhas pelas perdas que derivam dessas escolhas Tatildeo humano que parece divino

O Coro em Antiacutegona de Soacutefocles nos diz que ldquoHaacute muitas maravilhas mas nenhuma eacute tatildeo

maravilhosa quanto o homemrdquo (Antiacutegona vv 384-385)

As accedilotildees do heroacutei satildeo definidas por Aristoacuteteles ndash quem primeiro propocircs uma

sistematizaccedilatildeo da trageacutedia ndash como de caraacuteter elevado superiores agraves dos homens comuns Para

ele a trageacutedia eacute uma representaccedilatildeo dessas belas accedilotildees que suscitam no espectador o terror e a

piedade tendo como efeito a purificaccedilatildeo dessas emoccedilotildees Nesse sentido ao final do drama o

espectador experimenta um apaziguamento uma sensaccedilatildeo de que tudo retornou a uma suposta

ordem inicial ainda que o impasse tenha conduzido o heroacutei a um destino traacutegico sem

conciliaccedilatildeo possiacutevel entre as partes que formam o conflito

Aleacutem dos efeitos destacados por Aristoacuteteles o heroacutei traacutegico tem a funccedilatildeo de convidar o

expectador a habitar uma arena conflituosa em que os personagens se situam entre dois mundos

distintos o ritual antigo e o poliacutetico novo De acordo com Melo (2014) a qualidade desse

conflito eacute poliacutetica e coletiva e natildeo moralista e individual como podem se caracterizar muitos

conflitos que vivenciamos no mundo contemporacircneo Isso caracterizaria para ela um desafio

na representaccedilatildeo de trageacutedias antigas ao puacuteblico de hoje jaacute que o heroacutei natildeo tornaria seu impasse

como se pretende o impasse tambeacutem do outro mas seria simplesmente julgado como algueacutem

que tomou uma decisatildeo errada

A tensatildeo do conflito o compartilhamento da questatildeo eacutetica inerentes ao efeito traacutegico

da trageacutedia antiga tornam-se dificuldades para quem propotildee essa forma artiacutestica Para Melo

128

(2014) muito aleacutem dos afetos que a trageacutedia pretende suscitar segundo paracircmetros

aristoteacutelicos o que se impotildee como essencial eacute a dimensatildeo eacutetica na qual o heroacutei estaacute envolvido

a qual o dilacera e o transforma A funccedilatildeo da trageacutedia seria essa possibilitar um pensamento

eacutetico ao puacuteblico natildeo moral o que conduziria ao refinamento e agrave responsabilidade sobre as

escolhas eacuteticas em suas vivecircncias

De acordo com Rosenfield (2000) o paradoxo para onde o destino traacutegico conduz

desencadeia uma experiecircncia que natildeo cabe em qualquer polaridade ou dualismo A escolha que

os personagens estatildeo em vias de fazer natildeo eacute equacionaacutevel por um isso ou aquilo mas distende-

se com mais precisatildeo no diapasatildeo do ldquoisso e aquilordquo Na trageacutedia antiga vemos se desdobrar

uma narrativa que localiza um veacutertice impossiacutevel desenhando uma terceira margem para a

travessia do heroacutei

Dessa terceira margem partimos para outra palavra para um nome Sondamos um

conceito apresentado por Platatildeo em seu diaacutelogo Timeu trabalhado por Jacques Derrida Esta

palavra se chama khocircra

312 Khocircra

Na referida obra Platatildeo apresenta discussotildees sobre a origem do mundo a criaccedilatildeo da

natureza e dos seres humanos Entre as possibilidades um princiacutepio divino e um processo de

transformaccedilatildeo das coisas Platatildeo apresenta o conceito de khocircra importante para pensarmos a

respeito do traacutegico Jacques Derrida (1995) dedica um livro para discutir o diaacutelogo platocircnico e

amplia o entendimento acerca de khocircra para aleacutem das definiccedilotildees que a localizam e a

essencializam Enfatiza seu aspecto de indefiniccedilatildeo e as condiccedilotildees que a tornam uma terceira

via possiacutevel natildeo apenas um espaccedilo localizado entre dois pontos

De acordo com Derrida (1995) khocircra desafia a loacutegica de natildeo contradiccedilatildeo da filosofia

que precisa definir o que eacute e o que natildeo eacute um conceito justamente porque ela pode satisfazer

ambas as condiccedilotildees e nenhuma Sabe-se que khocircra estaacute entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel entre o

mito e o logos e eacute desta condiccedilatildeo de ocupar um entrelugar ou de vir a ser um entrelugar que

traccedilamos uma relaccedilatildeo com o traacutegico

No entanto com Derrida (1995) temos que khocircra acaba por situar embora natildeo se situe

entre esses dois lugares num movimento de oscilaccedilatildeo em que sua conceituaccedilatildeo escapa Derrida

nos diz que natildeo se trata de uma oscilaccedilatildeo como qualquer outra entre polos opostos jaacute que na

129

verdade khocircra natildeo eacute nem sensiacutevel nem inteligiacutevel ou pode ser ao mesmo tempo as duas

coisas isto e aquilo

Platatildeo apresenta a khocircra palavra feminina como lugar de passagem como regiatildeo e

apresenta metaacuteforas que descrevem o conceito como receptaacuteculo como matildee ama capaz de

acolher e transformar as coisas Entendemos com a criacutetica de Derrida que a diferenccedila que ele

busca acentuar estaacute na ideia de devir relacionada ao deslocamento metoniacutemico agrave condiccedilatildeo de

transformaccedilatildeo pela qual algo passa e natildeo o lugar em que isso eacute transformado natildeo o molde

mas a condiccedilatildeo de moldar

Khocircra natildeo eacute sobretudo natildeo eacute um suporte ou um sujeito que daria lugar recebendo ou concebendo ou ateacute mesmo se deixando conceber Como lhe denegar essa significaccedilatildeo essencial de receptaacuteculo jaacute que esse mesmo nome eacute dado por Platatildeo Eacute difiacutecil [] Talvez seja a partir de khocircra que comeccedilaremos a aprendecirc-lo ndash a recebecirc-lo a receber dela o que seu nome denomina A recebecirc-lo senatildeo a compreendecirc-lo a concebecirc-lo (DERRIDA 1995 p 20)

A relaccedilatildeo que se molda nesta breve paacutegina entre trageacutedia e khocircra ocorre no sentido de

construir as bordas tomar o traacutegico como efeito como um desenrolar ou entatildeo um devir de um

gesto de criaccedilatildeo

313 A funccedilatildeo do logos

Segundo Vorsatz (2013) a trageacutedia se desenvolve durante o seacuteculo V aC e se situa

num lugar entre tempo de transiccedilatildeo da histoacuteria da humanidade do mundo mitoloacutegico ao mundo

poliacutetico Diante disso os mitos misturam-se a uma tentativa de constituiccedilatildeo das leis na polis

grega

Com o surgimento da democracia e da filosofia no seacuteculo IV aC a relaccedilatildeo do ser

humano com a palavra sofre uma mudanccedila Em vez de estar referenciada a um saber outro

inacessiacutevel e intuitivo como na trageacutedia a funccedilatildeo do logos passa a se atribuir agrave razatildeo e ao

conhecimento acessiacuteveis agrave consciecircncia humana O ser humano sai de uma posiccedilatildeo de

imprevisibilidade de falta de garantia e alcanccedila uma posiccedilatildeo de domiacutenio com sua linguagem

A trageacutedia propotildee um modo singular de incidecircncia da palavra jaacute que esta acontece eacute

colocada em ato Tem um encontro com a accedilatildeo um acontecimento Para Vorsatz (2013) a

130

palavra aqui natildeo quer demonstrar alguma coisa ela mostra Nesse sentido os atos da trageacutedia

satildeo atos de linguagem

O que precisamente a palavra mostra em ato Ela mostra que haacute uma tentativa de unir

costurar linguagem e accedilatildeo pois haacute uma cisatildeo entre nossos desejos com as accedilotildees que tomamos

uma cisatildeo que hoje natildeo queremos ver os impasses eacuteticos entre o fazer e o falar na tentativa

traacutegica de coincidir a palavra e a accedilatildeo Desse modo Vorsatz (2013 p 40) afirma que ldquoa arte

traacutegica consistiria propriamente em tornar simultacircneo o que eacute sucessivo [] O resultado seria

uma accedilatildeo cuja causa eacute exterior ao heroacutei traacutegico mas em relaccedilatildeo agrave qual ele eacute inteiramente

responsaacutevelrdquo

Antiacutegona realiza suas accedilotildees a partir desse lugar onde os tempos se cruzam a aacutetē atraveacutes

da sua criaccedilatildeo com o significante ex nihilo Nesse sentido ela provoca um corte nas accedilotildees de

Creonte que se tecem numa sucessatildeo de fatos numa linha que natildeo consegue que natildeo pode

alccedilar o eixo onde se situa Antiacutegona sendo que para ele um traidor da paacutetria merece castigo e

quem ajudaacute-lo natildeo importando o motivo sofreraacute tambeacutem as consequecircncias Ao fim da peccedila

quando Creonte sofre tantas perdas aquilo que era mais importante para ele ele implora para

que aconteccedila sua morte buscando com suas palavras dominar a simultaneidade dominar o

ponto onde os tempos se cruzam e a resposta que ouve do corifeu eacute que sua morte eacute o futuro

cabe a ele cuidar do presente O que isso pode significar Natildeo haacute como querer controlar a

simultaneidade nem mesmo um rei como Creonte pode fazer isso Noacutes podemos traccedilar a linha

das sucessotildees apenas com nosso desejo Poreacutem o que podemos fazer como Antiacutegona eacute nos

responsabilizarmos pela causa de nossos atos e de nossa fala ainda que sobre ela natildeo possamos

exercer domiacutenio

Podemos entender a relaccedilatildeo disso com o conflito insoluacutevel que caracteriza a trageacutedia

natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel justamente porque natildeo podemos exercer domiacutenio sobre todos os

eventos e dele retirar uma verdade uma resposta ou uma moral da histoacuteria Podemos apenas

dizer enunciar que haacute e sempre haveraacute um aspecto do qual natildeo podemos saber sobre o qual

natildeo temos controle pois somos apenas mais um elemento de cena somos controlados por uma

forccedila inconsciente e nos cabe apenas estar cientes disso Assim natildeo haacute uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

entre Antiacutegona e Creonte mas a enunciaccedilatildeo de um jogo de forccedilas e de um conflito irresoluacutevel

Haacute outro importante aspecto que podemos abordar no que tange agrave simultaneidade de

eventos no tempo Eacute o que esse encontro de elementos que geram um acontecimento e

131

suspendem a cronologia pode suscitar a quem o vivencia ou a quem assiste a isso Trata-se do

Unheimliche

314 O estranho-familiar e a trageacutedia

O que pode causar um efeito de estranhamento a uma pessoa eacute a simultaneidade de fatos

de modo que se flagra envolvida numa trama de acontecimentos que natildeo eacute capaz de controlar

ou prever No andamento ndash sucessivo ndash da vida o sujeito pode se ver surpreendido pela

atualizaccedilatildeo de sentidos sobrepostos em camadas ndash simultacircneas ndash de tal forma com tal arranjo

cecircnico que isso faz com que ele experimente uma sensaccedilatildeo de unheimlich ao perceber por um

momento que algo estranho e tambeacutem familiar lhe ocorre interrompendo suas associaccedilotildees e

suas certezas Eacute o que pode ter sucedido a Creonte ao deparar-se com a morte de Hecircmon e

Euriacutedice seus preciosos bens ao se dar conta de que escolheu inconscientemente colocaacute-los

em perda Eacute o que pode ter ocorrido a Eacutedipo apoacutes buscar incansavelmente o assassino de Laio

e descobrir que fora ele mesmo ao desvelar seu terriacutevel destino de matar o pai e casar com a

matildee na tentativa de justamente fugir do que o oraacuteculo pregara

Pois bem o que eacute unheimlich Eacute um termo que qualifica alguma coisa ao mesmo tempo

como assustadora e familiar Em seu artigo de 1919 Das Unheimliche Freud se propotildee a

investigar essa temaacutetica que atribui ao campo da esteacutetica a partir do olhar da teoria

psicanaliacutetica e das contribuiccedilotildees da literatura Apresenta ao leitor uma investigaccedilatildeo em

dicionaacuterios em que busca o sentido da palavra no alematildeo e em outros idiomas Descobre que o

verbete unheimlich refere algo misterioso sobrenatural que desperta horriacutevel temor Para

Freud referindo-se a Schelling o estranho diz respeito a tudo aquilo que deveria permanecer

secreto oculto mas veio agrave luz (FREUD 19191969)

Freud acaba por descobrir em sua investigaccedilatildeo um encontro do unheimlich (estranho

assustador) com o heimlich (familiar) chegando a um ponto em que as palavras que num

primeiro momento parecem opostas antocircnimas tornam-se coincidentes sinocircnimas O

dicionaacuterio Wortebuch der Deutschen Sprache escrito por Daniel Sanders (1860) traz como

primeira definiccedilatildeo de heimlich familiar domeacutestico iacutentimo amistoso obsoleto alegre

disposto Na segunda definiccedilatildeo o termo eacute designado como oculto escondido dos outros dos

olhares dos outros encontro ou caso de amor lugar ou comportamento estranho No dicionaacuterio

de Grimm (1877) Freud encontra heimlich como aleacutem do tradicional significado de ldquofamiliarrdquo

132

definiccedilotildees como afastado dos olhos de estranhos secreto miacutestico alegoacuterico e por fim

inconsciente

Nesse sentido Freud (19191969) entende que a palavra que investigava unheimlich

podia ser uma subespeacutecie de heimlich colocando em questatildeo a concepccedilatildeo dos opostos Ou seja

elas podem ser compreendidas como termos e situaccedilotildees opostas uma a outra mas haveria um

ponto original de encontro ou reencontro entre as duas e eacute isso que o motivava a investigar ou

trazer agrave luz Acreditamos que isso pode ter relaccedilatildeo com a simultaneidade que a trageacutedia

apresenta

Freud recorre agrave literatura fantaacutestica para tentar entender em que circunstacircncia o familiar

e o assustador coincidem Visita o conto O Homem de Areia de E T A Hoffmann autor que

possui na visatildeo de Freud (19191969) grande criatividade para inventar situaccedilotildees e descobrir

elementos que fazem surgir a sensaccedilatildeo de estranheza No referido conto eacute o que acontece com

o aparecimento da personagem Oliacutempia (que na verdade eacute um autocircmato) pela qual o

protagonista Nathanael se apaixona O autor escreve seu conto de maneira que os leitores se

questionem sobre a humanidade de Oliacutempia fazendo-os sentir um estranhamento Contudo

Freud retira do mesmo texto outro fragmento que eacute tomado por ele como algo que merece mais

atenccedilatildeo do que a duacutevida em relaccedilatildeo agrave vida de Oliacutempia Esse fragmento se refere agrave ideia de ter

os olhos roubados que aparece ligada agrave figura do Homem de Areia

A fantasia que ocorre a Nathanael eacute para Freud o que realmente torna o conto estranho

A tese freudiana eacute pautada em sua teoria psicanaliacutetica do medo ou ameaccedila de castraccedilatildeo O medo

de ficar cego de perder os olhos eacute para Freud um substituto do medo de ser castrado medo este

recalcado mas que veio agrave luz por meio de um substituto metafoacuterico ndash medo de cegar

Nesse sentido o Homem de Areia eacute uma das figuraccedilotildees da castraccedilatildeo criatura de quem

se teme uma terriacutevel accedilatildeo A figura do Homem de Areia eacute temida porque este deseja arrancar

os olhos dos meninos que natildeo dormem dos meninos vigilantes que desejam ter o controle de

tudo para alimentar seus filhos que moram na Lua

Como dissemos na seccedilatildeo anterior para Lacan o neuroacutetico recua natildeo da castraccedilatildeo em si

mas da ameaccedila de castraccedilatildeo da ameaccedila de dispor de uma parte de si para propiciar a completude

do Outro Essa proposiccedilatildeo nos abre caminho para articular a sensaccedilatildeo terriacutevel do unheimlich agrave

anguacutestia tal como delineada por Lacan

O desejo que nos conduz a buscar objetos do mundo de modo a retirar deles uma parcela

de satisfaccedilatildeo estaacute velado e marcado por uma falta No entanto em certas circunstacircncias eacute

133

possiacutevel que algo venha a ocupar esse lugar da falta sem que o sujeito possa saber jaacute que se

trata de algo que estaacute em um lugar inapreensiacutevel

Nesse lugar da falta onde algo pode aparecer [] aqui se perfila uma relaccedilatildeo com a reserva libidinal ou seja com esse algo que natildeo se projeta natildeo se investe no niacutevel da imagem especular que eacute irredutiacutevel a ela em razatildeo de permanecer profundamente investido no niacutevel do proacuteprio corpo do narcisismo primaacuterio daquilo a que chamamos de auto-erotismo de um gozo autista (LACAN 1962-19632005 p 55)

Quando algo efetivamente aparece no lugar da falta irrompe a anguacutestia

[] a anguacutestia surge quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar que chamarei para me fazer entender de natural ou seja o lugar (-phi) que corresponde [] ao lugar ocupado [] pelo a do objeto do desejo Eu disse alguma coisa ndash entendam uma coisa qualquer (LACAN 1962-19632005 p 51)

Lacan nomeia essa alguma coisa que pode produzir anguacutestia do seguinte modo ldquoa

Unheimlichkeit eacute aquilo que aparece no lugar em que deveria estar o menos -phirdquo (LACAN

1962-19632005 p 51) No lugar em que a falta que possibilita a condiccedilatildeo desejante deveria

estar resguardada percebemos irromper alguma coisa seja qual for Qualquer coisa que ao

lugar assinalado pela falta venha lhe conferir uma imagem eacute inquietante Quando a proacutepria falta

falta o que resta a desejar A falta da falta desencadeia a anguacutestia

Retornando agraves contribuiccedilotildees freudianas o personagem que inspira a versatildeo do

complexo de Eacutedipo da peccedila Eacutedipo Rei de Soacutefocles cega-se para expiar sua culpa por ter se

casado com a matildee (FREUD 19001969) Nesse sentido a castraccedilatildeo que Eacutedipo se impotildee eacute no

olhar uma vez que eacute no niacutevel da imagem que algo lhe causa perturbaccedilatildeo O unheimlich parece

estar invariavelmente relacionado a uma questatildeo do olhar Nesse sentido o elemento que causa

estranhamento surge sempre enquadrado numa cena numa janela ou numa cortina que se abre

no recorte de visatildeo de onde vemos e somos vistos

Como comenta Lacan natildeo pode ser dito aparece de repente de suacutebito ldquoapresenta-se

atraveacutes de claraboiasrdquo (LACAN 1962-19632005 p 86) Eacute interessante pensar a partir desse

comentaacuterio de Lacan a relaccedilatildeo que se estabelece entre o heroacutei traacutegico e os deuses gregos

supondo que um vecirc o outro pela claraboia celeste O ato de Eacutedipo de se privar da visatildeo furando

os olhos cortando o eixo da relaccedilatildeo de ver-e-ser-visto eacute uma representaccedilatildeo do limite a que

chegou em sua vida da impossibilidade de seguir vivendo do mesmo modo apoacutes descobrir a

134

terriacutevel verdade Precisaria transformar alguma coisa perder uma parte de si para garantir da

ordem do mundo a supremacia divina

Haacute uma relaccedilatildeo que podemos averiguar entre a trilogia traacutegica de Soacutefocles e o conto

fantaacutestico comentado por Freud no ensaio sobre o estranho Embora de estilos narrativos e

eacutepocas bem diferentes e distantes haacute uma peculiar semelhanccedila A boneca Oliacutempia surge no

quadro ou ainda o estudante Nathanael a vecirc atraveacutes da janela e se apaixona por ela sem saber

que se trata de um autocircmato Quem teve a oportunidade de ler a histoacuteria sabe que o estudante

cai em estado de loucura quando descobre que misteriosamente seus olhos foram roubados e

estatildeo na boneca Oliacutempia Eacutedipo por sua vez apoacutes furar os olhos e sair dos limites de Tebas eacute

acompanhado por Antiacutegona que ocupa o lugar de seus olhos ou seja vecirc o mundo atraveacutes dela

A semelhanccedila que notamos eacute o fato de as duas figuras femininas estarem de certa forma cada

uma a seu modo com os olhos ou com o olhar das figuras masculinas de quem os olhos foram

arrancados ndash de forma metafoacuterica ou em realidade Ocupam esse ponto esse objeto olhar que

eacute compreendido por Lacan como uma das formas do objeto a que vinculam o sujeito ao Outro

Como vimos Freud (19001969) apresenta a teoria sobre Eacutedipo tomando a trageacutedia de

Soacutefocles como uma forma de simbolizaccedilatildeo dos desejos fundamentais de incesto e parriciacutedio

realizados por Eacutedipo que recebe de si mesmo o seu devido castigo Para ele o desejo humano

desdobra-se em diferentes vertentes chegando a um ponto de ambivalecircncia amor-oacutedio A forccedila

da proibiccedilatildeo universal que percorre diferentes culturas em relaccedilatildeo ao duplo desejo incestuoso

e parricida demonstra a forccedila tambeacutem existente nesses desejos Freud reconhece em Eacutedipo a

realizaccedilatildeo daquilo que supotildee a todos noacutes em fantasia o drama que vivenciamos em nossas

vidas na relaccedilatildeo com nossos pais e por isso essa trageacutedia em especiacutefico possui uma forccedila tatildeo

grande Apesar das diferenccedilas culturais entre o povo grego e noacutes as barreiras sociais e histoacutericas

satildeo ultrapassadas e com isso a trageacutedia Eacutedipo Rei apresenta uma estrutura antropoloacutegica

Pois bem de acordo com a teoria freudiana ao assistir agrave peccedila tomamos conhecimento

do conflito que guardamos no inconsciente o qual conseguimos atingir em uma experiecircncia de

reconhecimento por meio da arte No decorrer da trageacutedia nos identificamos com o heroacutei (no

caso Eacutedipo) que padece de um drama muito familiar mas ao realizar o desejo suscita em noacutes

o sentimento de temor por desvendar estranhamente nossas fantasias inconscientes Em funccedilatildeo

da experiecircncia de reconhecimento e estranheza do caraacuteter fictiacutecio da representaccedilatildeo traacutegica que

torna possiacutevel uma accedilatildeo impossiacutevel chegamos agrave purificaccedilatildeo das paixotildees que eacute tomada tambeacutem

como conhecimento sobre noacutes mesmos sobre a direccedilatildeo de nossos desejos

135

Rosenfield (2000) faz uma leitura da obra de Soacutefocles a partir do poeta Houmllderlin que

realiza uma traduccedilatildeo que manteacutem a densidade da letra sofocliana o que pode contribuir para o

entendimento do unheimlich implicado na arte traacutegica De acordo com Rosenfield (2000) a

abordagem houmllderliniana de Eacutedipo Rei ressalta o conflito entre duas diferentes formas de saber

Um saber que se mostra atraveacutes da investigaccedilatildeo do exame racional e do conhecimento que ele

gera e um saber de outra ordem profeacutetico oracular inacessiacutevel agrave razatildeo falho quando utilizado

na praacutetica

A trageacutedia de Eacutedipo comeccedila justamente aiacute ao natildeo diferenciar as formas de saber jaacute que

o heroacutei aspira agrave revelaccedilatildeo desse saber outro ao domiacutenio do saber profeacutetico que estaacute no limite

da existecircncia humana natildeo lhe pertence assim como o saber sobre o proacuteprio destino natildeo lhe

pertence Eacutedipo ao desconhecer a proacutepria origem eacute tomado pelo intenso desejo de alcanccedilar o

domiacutenio absoluto da proacutepria existecircncia o que se refere agrave ldquometaacutefora do desejo fundamentalmente

desmedido que caracteriza a condiccedilatildeo humanardquo (ROSENFIELD 2000 p 102)

Na tentativa de dominar e ao mesmo tempo negar aquilo que de alguma forma

(inconsciente) jaacute sabia o saber profeacutetico da existecircncia Eacutedipo deseja um saber racional e

consciente Eacute este iacutempeto por querer conhecer o assassino de Laio por promover uma busca

incessante atraacutes do culpado para impor-lhe as devidas penas devorando todo o conteuacutedo

profeacutetico como a Esfinge devora quem ignora a resposta para seu enigma que acaba por tornar

Eacutedipo presa objeto no quadro da anguacutestia da trageacutedia Ele se vecirc vendo ele se sabe sabendo

cena perturbadora e insuportaacutevel que o leva a se automutilar

A exatidatildeo a verdade a ciecircncia desautorizam o saber profeacutetico sobre o sujeito e ao fim

resta o estranhamento Na perspectiva de Houmllderlin supotildee Rosenfield (2000) Soacutefocles

apresenta a linguagem como dimensatildeo autocircnoma responsaacutevel por fazer brotar sentidos

independentes do domiacutenio racional de seus agentes O heroacutei se apresenta como errante que

perambula entre sentidos distantes do que a inteligecircncia ediacutepica pode identificar e pretender

Portanto o que visa compreender pelo vieacutes do racional natildeo eacute alcanccedilado pois o sentido eacute apenas

total e ateacute mesmo excessivo quando na aceitaccedilatildeo e no jogo com o saber das premoniccedilotildees e

oraacuteculos inacessiacuteveis a noacutes (ROSENFIELD 2000)

Os personagens da trageacutedia Eacutedipo Rei satildeo desse modo assombrados pela antecipaccedilatildeo

de algo terriacutevel que natildeo pode ser representado que natildeo cabe agrave simbolizaccedilatildeo Haacute algo inquietante

que se pronuncia atraveacutes de suas accedilotildees e de sua linguagem para aleacutem de suas intenccedilotildees

voluntaacuterias (ROSENFIELD 2000)

136

Feita esta apreciaccedilatildeo do unheimlich freudiano na trageacutedia seguimos com a esteacutetica de

Aristoacuteteles

32 A trageacutedia na Poeacutetica de Aristoacuteteles

Na Poeacutetica Aristoacuteteles apresenta o gecircnero traacutegico seu contexto de nascimento os

elementos que o compotildee suas caracteriacutesticas explanando o que seria em sua visatildeo o ideal de

trageacutedia Para o filoacutesofo grego esta arte eacute superior agrave epopeia ou seja aos poemas eacutepicos que

narram mitos e feitos heroicos como eacute o caso da Iliacuteada e da Odisseia atribuiacutedas ao poeta

Homero Aleacutem de contemplar todos os aspectos das narrativas eacutepicas como a meacutetrica o ritmo

o mito a trageacutedia consegue reunir ainda o espetaacuteculo e a muacutesica Nesse sentido conseguimos

entender a ecircnfase que atribui agrave trageacutedia em sua apreciaccedilatildeo de uma forma praacutetica do pensamento

humano uma forma poeacutetica Natildeo podemos contudo desconsiderar o fato consabido da perda

de uma importante parte do texto aristoteacutelico em que ele supostamente trabalharia as

especificidades da comeacutedia e sua relaccedilatildeo com a catarse

Ao fim do texto Aristoacuteteles justifica a superioridade da trageacutedia em relaccedilatildeo agrave epopeia

tambeacutem em funccedilatildeo da finalidade a trageacutedia seria a arte que melhor consegue atingir o propoacutesito

artiacutestico Na sexta parte da Poeacutetica o filoacutesofo define o gecircnero traacutegico e fala de sua finalidade

a qual seria a imitaccedilatildeo ou a representaccedilatildeo de accedilotildees

[] o elemento mais importante eacute a trama dos fatos pois a trageacutedia natildeo eacute imitaccedilatildeo dos homens mas de accedilotildees e de vida de felicidade [e infelicidade mas felicidade] e infelicidade reside na accedilatildeo e a proacutepria finalidade da vida eacute uma accedilatildeo natildeo uma qualidade Ora os homens possuem tal ou tal qualidade conformemente ao caraacuteter mas satildeo bem ou mal-aventurados pelas accedilotildees que praticam Daqui se segue que na trageacutedia natildeo agem as personagens para imitar caracteres mas assumem caracteres para efetuar certas accedilotildees por isso as accedilotildees e o mito constituem a finalidade da trageacutedia e a finalidade eacute de tudo o que mais importa (Poeacutetica VI 1450a 16-22)

A partir do que Aristoacuteteles define como finalidade da trageacutedia ou seja a representaccedilatildeo

de accedilotildees podemos tentar entender qual o seu interesse por essa temaacutetica no contexto de sua

obra Lacan (1959-19601997) ao apresentar seu programa da eacutetica da psicanaacutelise reporta-se

agrave eacutetica aristoteacutelica as accedilotildees do ser humano tendem a um bem e o bem uacuteltimo eacute a felicidade a

qual pode ser entendida como um bem supremo A essecircncia humana se expressa nessa busca

pela felicidade embora de acordo com Freud (19302012) natildeo haja nada na civilizaccedilatildeo que

137

garanta ao ser humano a realizaccedilatildeo do desejo de ser feliz Por sua vez Aristoacuteteles parecia

preocupar-se com isso de que modo o homem poderia encontrar o caminho para a felicidade

que garantia poderia a poacutelis grega dar agrave felicidade dos cidadatildeos Nesse sentido a trageacutedia

poderia cumprir uma funccedilatildeo social numa educaccedilatildeo para a vida feliz ao retratar accedilotildees que

conduzem da felicidade agrave infelicidade ou vice-versa Lembrando que se a finalidade da accedilatildeo

humana eacute um bem eacute a felicidade a finalidade da trageacutedia eacute tatildeo somente a accedilatildeo

Na Poliacutetica Aristoacuteteles fala de um ideal de vida em sociedade de uma educaccedilatildeo moral

para se atingir a felicidade Haacute uma retomada do efeito cataacutertico mas dessa vez o filoacutesofo o

menciona como suscitado pela muacutesica Essa arte eacute capaz de provocar emoccedilotildees distintas eacute capaz

de apaixonar comover e acalmar dependendo do modo como nos aproximamos dela Fala de

estilos e harmonias diferentes e de tipos de instrumentos

Como lembra Lacan a muacutesica assume um papel na trageacutedia o efeito cataacutertico de

purificar temor e piedade provocando um certo prazer e permitindo o retorno a um certo estado

normal um apaziguamento interno

Qual eacute entatildeo esse prazer ao qual se retorna depois de uma crise que se desenvolve numa outra dimensatildeo que num dado momento o ameaccedila pois sabe-se a que extremos uma muacutesica entusiasmadora pode levar Eacute aqui que a topologia que definimos do prazer como sendo a lei do que se desenrola aqueacutem do aparelho onde o temiacutevel centro de aspiraccedilotildees do desejo nos atrai permite-nos talvez convergir melhor do que se fez ateacute aqui com a intuiccedilatildeo aristoteacutelica (LACAN 1959-19601997 p 298)

Podemos entender que embora o desejo inconsciente do qual fala Freud o mesmo que

participa da formulaccedilatildeo da eacutetica da psicanaacutelise segundo Lacan natildeo faccedila parte do que Aristoacuteteles

pretendeu definir como eacutetica eacute possiacutevel encontraacute-lo no que o filoacutesofo chamou de prazer obtido

na experiecircncia da trageacutedia sistematizada na Poeacutetica Isso porque o que importa para Lacan na

eacutetica eacute a conformidade das accedilotildees com o desejo inconsciente a quem age ou seja o desejo

aparece em accedilatildeo mas dele o indiviacuteduo nada sabe

Da mesma forma para Aristoacuteteles o que importa na bela arte traacutegica eacute a accedilatildeo e ela eacute

quem define as caracteriacutesticas do heroacutei ou seja podemos entender com isso que a accedilatildeo antecipa

a posiccedilatildeo subjetiva natildeo o contraacuterio e essa noccedilatildeo estaacute em conformidade com a eacutetica da

psicanaacutelise No entanto se formos analisar o entendimento de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave sua

noccedilatildeo de eacutetica haacute um distanciamento do que fala sobre a trageacutedia pois o foco estaacute na moral e

nos bons costumes dos cidadatildeos conscientes de seus atos

138

Quanto agrave catarse ou seja agrave purificaccedilatildeo do temor e da piedade efeitos da trageacutedia cabem

algumas colocaccedilotildees De acordo com Aristoacuteteles ldquosuscitando o terror e a piedade [a trageacutedia]

tem por efeito a purificaccedilatildeo dessas emoccedilotildeesrdquo (Poeacutetica VI 1449b 25-28) Lacan nos fornece o

termo no original grego ldquodirsquo eleou kai phobou perainousa ten ton toiouton pathematon

kaacutetharsinrdquo (LACAN 1959-19601997 p 297) O psicanalista designa o termo kaacutetharsin ou

catarse como purificaccedilatildeo ou purgaccedilatildeo Na eacutepoca em que foi sugerida por Aristoacuteteles tal

expressatildeo era conhecida no campo meacutedico e se referia a eliminaccedilotildees do organismo com o

objetivo de retorno a um estado normal

No entanto Lacan reconhece que tal forma de nomear a meta da trageacutedia natildeo era

exclusiva do campo meacutedico jaacute que haacute estudiosos que a relacionam a uma purificaccedilatildeo ritual o

que teria mais proximidade com o proacuteprio surgimento da arte Qualquer conclusatildeo no sentido

de conhecer a origem do termo empregado por Aristoacuteteles eacute precipitada na medida em que haacute

uma parte da Poeacutetica perdida na qual se supotildee que o filoacutesofo teria trabalhado mais

detalhadamente sobre esse conceito

Destacamos a lembranccedila de Lacan da catarse na tradiccedilatildeo meacutedica termo utilizado

seacuteculos mais tarde na experiecircncia psicanaliacutetica com Freud e Breuer A catarse teria a funccedilatildeo

de uma descarga motora em ato de afetos que ficariam em suspensatildeo no aparelho psiacutequico

desligados do evento que os teria originado

Triacuteas (2010) nos ajuda a ampliar o entendimento do que seriam tais paixotildees humanas

O temor fobos em alguns casos traduzido para o portuguecircs como ldquoterrorrdquo designa um

sentimento de medo do espectador em relaccedilatildeo ao heroacutei traacutegico agraves suas accedilotildees e ao destino que

jaacute pode ser entrevisto agrave medida que se acompanha a linha de accedilatildeo O espectador sente um

impulso por se afastar da cena Ao mesmo tempo sente tambeacutem compaixatildeo piedade o eacuteleos

ao se identificar com o desejo do heroacutei ao admirar sua coragem seu iacutempeto sua forccedila

qualidades que pode ter como ideais das quais deseja se aproximar

Nesse sentido o jogo de tensotildees a ambiguidade de paixotildees que o percurso heroico

provoca nos espectadores lembra a duplicidade afetiva do unheimlich estranho e familiar

Ainda que a cena desperte inquietaccedilatildeo perturbaccedilatildeo afastamento haacute alguma trama

acontecendo aos poucos de cena a cena que prende que costura com a histoacuteria de vida de

cada um que assiste agrave trageacutedia que lecirc o que favorece a transmissatildeo da experiecircncia traacutegica o

reconhecimento do outro a noccedilatildeo de alteridade o entendimento de que aquele drama poderia

ocorrer a qualquer um de noacutes Assim se constroacutei uma forma de saber sobre a vida

139

Lacan (1959-19601997 p 300) ao estudar a peccedila Antiacutegona nos diz que ldquopelo

intermeacutedio da piedade e do temor somos purgados purificados de tudo o que eacute dessa ordem

Essa ordem podemos entatildeo reconhececirc-la ndash eacute a seacuterie do imaginaacuterio propriamente dita E somos

dela purgados pelo intermeacutedio de uma imagem dentre outrasrdquo Lacan nos explica que essa

imagem eacute a da beleza de Antiacutegona no lugar entre a vida e a morte A sua contribuiccedilatildeo a esse

entendimento da purgaccedilatildeo das paixotildees eacute quanto ao desejo articulado a elas Diz ele que na

travessia do lugar onde a heroiacutena fica presa ldquoo raio do desejo se reflete e ao mesmo tempo se

retrai chegando a nos dar esse efeito tatildeo singular o mais profundo que eacute o efeito do belo no

desejordquo (LACAN 1959-19601997 p 302) Nesse sentido eacute o desejo humano que estaacute

implicado nos efeitos de temor e piedade da trageacutedia

Aristoacuteteles define o desenlace como o periacuteodo da trageacutedia que se inicia com a ocorrecircncia

de uma mudanccedila de sorte e termina com o final da peccedila Para o filoacutesofo o desenlace traacutegico eacute

fruto do jogo entre os elementos presentes na histoacuteria desde o iniacutecio dispensando o uso de

novos recursos cecircnicos para propor o final da cena traacutegica O desenlace assim decorre emana

da trama traacutegica

Um dos recursos cecircnicos propostos na trageacutedia antiga era o deus ex machina Para

Aristoacuteteles sua intervenccedilatildeo natildeo deveria fazer parte da cena traacutegica pois as accedilotildees dos

personagens eram de certa forma alheias a esse recurso bem como o modo como

encaminhavam o desenlace do drama Acerca do deus ex machina Aristoacuteteles propotildee

Ao deus ex machina [] natildeo se deve recorrer senatildeo em acontecimentos que se passam fora do drama ou nos do passado anteriores aos que se desenrolam em cena ou nos que ao homem eacute vedado conhecer ou nos futuros que necessitam ser preditos ou prenunciados ndash pois que aos deuses atribuiacutemos noacutes o poder de tudo verem (Poeacutetica XV 1454b 1-7 grifos nossos)4

No entanto algumas peccedilas da trageacutedia antiga contrariando a esteacutetica aristoteacutelica

apresentada no seacuteculo IV aC apresentavam o deus ex machina como artifiacutecio para conferir

uma soluccedilatildeo aos conflitos traacutegicos um deus grego descia ao centro da accedilatildeo atraveacutes de uma

maquinaria a fim de dar um encaminhamento definitivo aos impasses do drama O recurso ao

deus ex machina proposto como elemento exterior ao enredo capaz de nele ingressar para

desenhar uma soluccedilatildeo derradeira aos conflitos contraria o que no dizer de Aristoacuteteles

caracteriza a trageacutedia

4 A referecircncia do texto de Aristoacuteteles segue a numeraccedilatildeo Bekker estabelecida pela Revised Oxford Translation

140

Entrevemos o nascedouro do decliacutenio da dimensatildeo traacutegica da experiecircncia humana

localizada em sua forma narrativa na esteacutetica da trageacutedia grega no surgimento de peccedilas que

apresentavam o deus ex machina como forma intervir sobre os impasses como foi o caso de

peccedilas do tragedioacutegrafo Euriacutepides Nietzsche (18721992) em seu trabalho O nascimento da

trageacutedia situa nesse dramaturgo o fim da trageacutedia antiga e elenca como um de seus motivos

a forma como propunha esse dispositivo cenograacutefico

Mas como um recurso cecircnico pode ser capaz de modificar a esteacutetica dramaacutetica o modo

de o humano representar o traacutegico De que forma um autor pode ser responsaacutevel pelo fim de

um gecircnero tatildeo aclamado em seu tempo Eacute importante questionar o contexto social grego quais

laccedilos sustentavam as relaccedilotildees entre os cidadatildeos quais mudanccedilas poliacuteticas e de pensamento

vivenciavam jaacute que isso pode ter contribuiacutedo para que Euriacutepides inovasse em sua forma de

interpretar os mitos de apresentar o que considerava essencial nas histoacuterias que escolhia colocar

em cena Ainda assim eacute importante considerar que se para Nietzsche Euriacutepides eacute responsaacutevel

pelo fim da trageacutedia claacutessica para Aristoacuteteles ele eacute o mais traacutegico dos poetas

Nesse sentido nas linhas que se seguem vamos conhecer como o filoacutesofo Nietzsche

compreende a trageacutedia de que modo em sua visatildeo o drama euripidiano acaba com esse gecircnero

traacutegico e como o uso deus ex machina estaacute implicado nessa mudanccedila Interessa a este trabalho

fazer tal apreciaccedilatildeo a fim de tentar compreender o modo como noacutes hoje lidamos com a

dimensatildeo do traacutegico no laccedilo social educativo visto que muitas vezes apelamos a uma soluccedilatildeo

desta natureza para intervir na escolarizaccedilatildeo de crianccedilas

33 A morte da trageacutedia

Em seu livro O nascimento da trageacutedia Nietzsche apresenta a origem desse gecircnero

dramaacutetico sua ascensatildeo e seu decliacutenio Chamamos esta parte da escrita de ldquomorte da trageacutediardquo

porque desejamos destacar de que modo o filoacutesofo entende a transiccedilatildeo da representaccedilatildeo claacutessica

para outras formas de representar a arte da cena Mas antes elencamos alguns pontos do texto

de Nietzsche que abordam a trageacutedia em vida

141

331 Apoliacutenio-dionisiacuteaco

O desenvolvimento da arte da trageacutedia depende da tensatildeo entre os opostos apoliacuteneo e

dionisiacuteaco os quais raramente encontram uma conciliaccedilatildeo O universo artiacutestico apoliacuteneo se

refere ao deus grego Apolo e representa o sonho humano projetado pela arte plaacutestica e o

universo artiacutestico dionisiacuteaco do deus grego Dioniacutesio refere-se agrave embriaguez da arte natildeo

figurada da muacutesica (NIETZSCHE 18721992)

Segundo o filoacutesofo alematildeo ldquoApolo na qualidade de deus dos poderes configuradores

eacute ao mesmo tempo o deus divinatoacuterio Ele segundo a raiz do nome o lsquoresplendentersquo a divindade

da luz reina tambeacutem sobre a bela aparecircncia do mundo interior da fantasiardquo (NIETZSCHE

18721992 p 29) A forccedila do deus da luz caracteriza o impulso apoliacuteneo ou seja a beleza da

aparecircncia das coisas a confianccedila e a tranquilidade diante de um mundo de tormentos a partir

do princiacutepio de individuaccedilatildeo Esse princiacutepio o autor o retira da filosofia de Schopenhauer e

pode se referir agrave crenccedila numa essecircncia uacutenica e indivisiacutevel que natildeo se deixa abalar Assim

[] tampouco deve faltar agrave imagem de Apolo aquela linha delicada que a imagem oniacuterica natildeo pode ultrapassar a fim de natildeo atuar de um modo patoloacutegico pois do contraacuterio a aparecircncia nos enganaria como realidade grosseira isto eacute aquela limitaccedilatildeo mensurada aquela liberdade em face das emoccedilotildees mais selvagens aquela sapiente tranquilidade do deus plasmador (NIETZSCHE 18721992 p 30)

Natildeo obstante quando a delicada linha se rompe cedendo ao oniacuterico um lugar para o

patoloacutegico para o abjeto ou seja quando o terror atinge o homem rompendo esse princiacutepio de

individuaccedilatildeo e um poderoso ecircxtase adveacutem com essa quebra eacute o impulso dionisiacuteaco que se

apodera do humano anaacutelogo a uma sensaccedilatildeo de embriaguez A forccedila de Dioniacutesio potildee o humano

a cantar e danccedilar a conciliar-se com os outros de forma a romper com os limites que

diferenciam os homens unindo-os num soacute O ser humano sente-se parte da natureza funde-se

a ela aos animais e plantas sente-se como um deus enlevado extasiado Como aponta

Nietzsche (18721992 p 31) no impulso dionisiacuteaco

O homem natildeo eacute mais artista tornou-se obra de arte a forccedila artiacutestica de toda a natureza para a deliciosa satisfaccedilatildeo do Uno-primordial revela-se aqui sob o frecircmito da embriaguez A argila mais nobre a mais preciosa pedra de maacutermore eacute aqui amassada e moldada []

142

Dessa forma habita no homem duas tendecircncias opostas regidas pelas forccedilas de Apolo e

Dioniacutesio do mesmo modo que o humano se sente impelido por criar coisas belas por afirmar

sua essecircncia como indiviacuteduo uacutenico lutando contra os tormentos da vida ele tambeacutem se deixa

moldar pelas matildeos do mundo chegando ao seu estado de argila pronto a ser fundido com a

natureza pronto a fazer-se obra de arte

De acordo com Nietzsche (18721992) a trageacutedia grega originou-se da conciliaccedilatildeo

desses dois impulsos A sua tese compartilhada por outros pensadores da eacutepoca eacute a de que suas

primeiras formas de expressatildeo apareceram com o coro do ditirambo um coro que se

diferenciava de qualquer outro pois as pessoas que cantavam e danccedilavam em honra a Dioniacutesio

suspendiam qualquer marca civilizatoacuteria qualquer funccedilatildeo social e encarnavam saacutetiros seres

sublimes e divinos que tinham a forma hiacutebrida homem-bode e que possuiacuteam uma visatildeo

desvelada da natureza por serem a representaccedilatildeo da forccedila do impulso do deus Dioniacutesio A forma

final do coro da trageacutedia eacute a imitaccedilatildeo artiacutestica desse protoacutetipo do qual surgiu tambeacutem a figura

do ator No periacuteodo mais antigo da trageacutedia Dioniacutesio natildeo estava presente em cena

verdadeiramente mas era representado pelo coro que deu origem agrave proacutepria trageacutedia

Esse coro contempla em sua visatildeo o seu senhor e mestre Dioniacutesio e eacute por isso eternamente o coro servente ele vecirc como este o deus padece e se glorifica e por isso ele proacuteprio natildeo atua Nessa posiccedilatildeo de absoluto servimento em face do deus o coro eacute pois literalmente a mais alta expressatildeo da natureza e profere como esta em seu entusiasmo sentenccedilas de oraacuteculo e de sabedoria como compadecente ele eacute ao mesmo tempo o saacutebio que do coraccedilatildeo do mundo enuncia a verdade (NIETZSCHE 18721992 p 61)

Nietzsche (18721992) aponta o quanto o coro dos primoacuterdios da arte traacutegica chamado

de espectador ideal difere-se dos espectadores de sua eacutepoca jaacute que esses natildeo habitam a cena

traacutegica tal como o coro apesar de este representar a multidatildeo o homem comum e simples O

coro sofre com o heroacutei traacutegico pois antevecirc e profere a sua ruiacutena Lacan (1959-19601997 p

305) aborda o papel do coro no seu comentaacuterio sobre Antiacutegona afirmando que ldquoo Coro satildeo as

pessoas que se emocionamrdquo O espectador comum para ele estaacute livre de qualquer preocupaccedilatildeo

ou comprometimento em se emocionar Eacute o coro quem assume o papel da emoccedilatildeo que se supotildee

ser expressa pelo povo que assiste agrave cena

A partir de Schiller Nietzsche afirma que o coro eacute como uma muralha viva que se coloca

sobre a realidade atroz jaacute que entrevecirc a vida de forma mais crua e real ldquomais completa do que

o homem civilizado que comumente julga ser a uacutenica realidaderdquo (NIETZSCHE 18721992 p

143

57) Ou seja eacute como se o coro formasse uma barreira de proteccedilatildeo aos olhos do homem

civilizado que natildeo pode sentir ou ver a olho nu a crueza de um mundo miacutetico que o antecedeu

E com isso as pessoas do coro conhecem uma verdade inacessiacutevel ao espectador comum talvez

porque tal acesso seja simplesmente impossiacutevel

Todos os elementos cecircnicos que surgem posteriormente ao coro revelando sua

diferenciaccedilatildeo e seus contrastes expressam a dimensatildeo apoliacutenea da aparecircncia das coisas O

apoliacuteneo aparece no diaacutelogo da trageacutedia de forma clara e bela E assim o coro tambeacutem participa

de um diaacutelogo a partir do qual pode transmitir ao puacuteblico aquilo que o vento sopra em seus

ouvidos aquilo que a luz irradia em seus olhos

Nietzsche faz especial alusatildeo agrave dimensatildeo apoliacutenea na trageacutedia de Soacutefocles pois a

linguagem do heroacutei eacute tatildeo clara e precisa que acaba por conduzir o espectador por um caminho

surpreendentemente curto ao mais iacutentimo e ao mais fundo do heroacutei O que isso significa Que

o heroacutei traacutegico consegue aproximar o espectador de seu desejo por meio do arranjo de suas

palavras sem dizecirc-lo Aquilo que surge na superfiacutecie a aparecircncia a imagem luminosa do heroacutei

pode se revelar como resultante de um olhar que mira o mais fundo do ser como o autor mostra

na seguinte passagem

Quando numa tentativa eneacutergica de fitar de frente o Sol nos desviamos ofuscados surgem diante dos olhos como uma espeacutecie de remeacutedio manchas escuras inversamente as luminosas apariccedilotildees dos heroacuteis de Soacutefocles em suma o apoliacuteneo da maacutescara satildeo produtos necessaacuterios de um olhar no que haacute de mais iacutentimo e horroroso na natureza como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite medonha (NIETZSCHE 18721992 p 63)

A noite medonha a dimensatildeo dionisiacuteaca da trageacutedia eacute revestida pela luz apoliacutenea

Soacutefocles parece oferecer no apoliacuteneo de sua trageacutedia a beleza de sua obra Bela agrave medida do

horror que ela oculta

E o que ela oculta eacute o proacuteprio deus Dioniacutesio sob a maacutescara de tantos outros heroacuteis que

representam o seu sofrimento E de que sofrem os heroacuteis Nietzsche fala sobre Eacutedipo Em Eacutedipo

Rei em que busca investigar o assassino de Laio seu pai bioloacutegico Eacutedipo ignora que ele mesmo

o fizera e que se casara com Jocasta sua matildee ele atenta contra a natureza ao decifrar o enigma

da Esfinge ao ousar conhecer segredos da natureza Em funccedilatildeo disso destroacutei aquilo que deve

ser sua proacutepria natureza revelando que havia cometido os crimes de parriciacutedio e incesto

144

Haacute uma antiquiacutessima crenccedila popular persa sobretudo segundo a qual um saacutebio mago soacute podia nascer do incesto o que noacutes em relaccedilatildeo a Eacutedipo o decifrador do enigma e desposante de sua matildee devemos interpretar imediatamente no sentido de que laacute onde por meio das forccedilas divinatoacuterias e maacutegicas foi quebrado o sortileacutegio do presente e do futuro a riacutegida lei da individuaccedilatildeo e mesmo o encanto proacuteprio da natureza laacute deve ter-se antecipado como causa primordial uma monstruosa transgressatildeo da natureza ndash como era ali o incesto pois como se poderia forccedilar a natureza a entregar seus segredos senatildeo resistindo-lhe vitoriosamente isto eacute atraveacutes do inatural Este conhecimento eu o vejo cunhado naquela espantosa triacuteade do destino edipiano aquele que decifra o enigma da natureza ndash essa esfinge biforme ndash ele mesmo tem de romper tambeacutem como assassino do pai e esposo da matildee as mais sagradas ordens da natureza (NIETZSCHE 18721992 p 65)

Eacute possiacutevel dizer que desse rompimento adveacutem o dionisiacuteaco o saber dionisiacuteaco A partir

do que Nietzsche propotildee sobre Eacutedipo o que podemos pensar sobre outra trageacutedia de Soacutefocles

que compotildee a trilogia tebana Antiacutegona em tal armadilha do inatural

A princesa de Tebas eacute filha de Eacutedipo e de Jocasta filha de seu proacuteprio irmatildeo materno

filha de sua proacutepria avoacute paterna ou seja fruto de uma monstruosa genealogia que deve honrar

com sua proacutepria morte Sua destruiccedilatildeo eacute o preccedilo que escolhe pagar por ser ela mesma

transgressatildeo da natureza Parece-nos que viver em seu caso eacute violar o natural Paradoxalmente

ao escolher quando morrer ou seja ao natildeo deixar que sua vida flua em direccedilatildeo ao matrimocircnio

e agrave maternidade a jovem Antiacutegona pode tambeacutem transgredir a natureza

Antiacutegona porta em si mesma um antinatural e natildeo um princiacutepio natural suposto pelos

gregos O fato de ter nascido de existir resistir eacute ultrapassar um limite humano a aacutetē lugar de

seu destino final para onde caminha seu desejo Origem e destino convergem em Antiacutegona Ao

mesmo tempo que paga o preccedilo de ser um crime ela o comete

Qual o crime contra a natureza que ela mesma comete para aleacutem do crime contra o

interdito de enterrar o irmatildeo Talvez o de saber ser uma morta-viva Rumo agrave sua morte a

proacutepria Antiacutegona questiona ldquoQue mandamentos transgredi das divindadesrdquo (Antiacutegona v

1027) Talvez o mandamento de preservar a ignoracircncia sobre o proacuteprio destino pois a heroiacutena

o sabe opta por morrer de causas natildeo naturais impede que a natureza haja em seu corpo

permitindo casar ter filhos envelhecer Antiacutegona antecipa sua morte morada final de todos

noacutes De acordo com Nietzsche (18721992 p 65) ldquoa sabedoria e precisamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute um horror antinatural que aquele que por seu saber precipita a natureza no abismo

da destruiccedilatildeo haacute de experimentar tambeacutem em si proacuteprio a desintegraccedilatildeo da naturezardquo

145

O saber sobre a proacutepria natureza deve permanecer intacto como um eterno misteacuterio

enigma a ser desvendado durante uma vida mas que de fato nunca pode ser

Assim Antiacutegona natildeo age de acordo com a mesma natureza suposta nos demais cidadatildeos

tebanos O rei Creonte a acusa de agir de modo diferente do povo ao recusar seguir a lei que

impocircs agrave cidade ou seja as palavras de interdito contra aquele que ousar enterrar o traidor do

reino Polinices Antiacutegona eacute chamada de desumana Para o povo de Tebas natureza e

humanidade satildeo valores ausentes na heroiacutena

Uma questatildeo que se coloca agora e que vale uma breve discussatildeo eacute sobre o natural no

homem Existe uma natureza especificamente humana que se violada torna o homem

antinatural digno de destruiccedilatildeo Estaacute na natureza a humanidade do homem O que torna o

homem ser humano A filosofia desde a Antiguidade buscou responder qual seria o proacuteprio

do humano Natildeo eacute o propoacutesito deste trabalho discorrer sobre as mais variadas teorias que

buscam dar conta dessa inquietante questatildeo que por si soacute nos mobiliza Mas buscamos olhaacute-la

a partir do entendimento da psicanaacutelise A escolha por pensar a partir desse campo eacute em funccedilatildeo

da abertura que este saber oferece ao conhecimento que concerne agrave trageacutedia antiga ou seja agrave

sua relaccedilatildeo com a palavra e com o fazer

Num artigo em que aborda o brincar no iniacutecio da escolarizaccedilatildeo como um exerciacutecio que

permite agrave crianccedila a entrada no universo do simboacutelico Moschen (2011) argumenta que o que

podemos chamar de humano dificilmente encontra suas bases na natureza A autora explica que

Qualquer raciociacutenio que se desdobre reivindicando sua legitimidade numa suposta Natureza dos homens seraacute facilmente derrubado por uma simples reflexatildeo histoacuterica capaz de nos mostrar que os homens se produzem como homens quando satildeo assujeitados agraves condiccedilotildees de uma ancestralidade que configura um campo de possibilidades e de limitaccedilotildees para a sua realizaccedilatildeo (MOSCHEN 2011 p 91)

O ser humano natildeo parece ter em si um coacutedigo de conduta natural para ser o que eacute Sua

fisiologia e sua geneacutetica podem importar para determinar questotildees condizentes ao organismo

mas natildeo agrave humanidade Ele se torna humano ao se submeter agravequilo que o precede aos seus

ancestrais e a uma linha que separa seus limites e possibilidades Mas como o homem pode

acessar esse legado Como ele se sujeita a uma ancestralidade De acordo com Moschen

(2011) os homens se tornam humanos quando satildeo assim chamados por outros seres humanos

antecessores Somente eacute possiacutevel a estes dar as boas-vindas aos pequenos homens que chegam

ao mundo nomeando seus iguais porque eles mesmos se submetem agrave linguagem Com efeito

146

A humanizaccedilatildeo do organismo vai se dar no entre-lugares de um assujeitamento agraves condiccedilotildees histoacutericas transmitidas pelos adultos proacuteximos agraves crianccedilas e da tomada de posiccedilatildeo do pequeno frente a esses determinantes que lhe chegam vindos de uma ancestralidade que ele natildeo domina (MOSCHEN 2011 p 91)

Ser humano eacute a possibilidade de ir aleacutem da condiccedilatildeo de organismo atraveacutes da

transmissatildeo da ancestralidade feita pelos adultos ou seja por aqueles jaacute submetidos agrave

linguagem e atraveacutes da postura diante de tal transmissatildeo o que ocorre no entre-lugar onde

emerge o sujeito Parece natildeo haver nada na natureza que defenda o caraacuteter humano do homem

A humanidade se encontra nos contornos simboacutelicos que a definem que para Antiacutegona

estatildeo num ponto mais aleacutem em relaccedilatildeo agraves leis compartilhadas pelos tebanos Ela o ultrapassa

com o seu desejo de morte sustentando as origens de sua famiacutelia a aacutetē familiar

Eacute nesse sentido que a princesa de Tebas sofre o julgamento dos cidadatildeos tebanos pois

como seres humanos que satildeo natildeo a reconhecem como parte de um legado compartilhado entre

eles Para os tebanos Antiacutegona eacute cruel e inflexiacutevel caracteriacutesticas que situam uma

impossibilidade de tomaacute-la como pertencente ao que os humaniza Mas eacute justamente aiacute que

Antiacutegona parece fundar uma humanidade a sua no firme terreno de sua eacutetica que a faz honrar

a ancestralidade que lhe foi transmitida ao enterrar o irmatildeo ao mesmo tempo que torna

manifesta sua posiccedilatildeo subjetiva a de ser uma morta-viva a de querer morrer

O que assombra a cidade de Tebas talvez seja o pano de fundo de suas accedilotildees a dimensatildeo

dionisiacuteaca escondida em sua linguagem apoliacutenea a sua plena convicccedilatildeo do que deseja morrer

sem desvios sem enganos ou ilusotildees uma linha reta traccedilada de seus peacutes ateacute o tuacutemulo ou seja

manifestaccedilatildeo plena da pulsatildeo de morte Assusta a sua plena ldquoconsciecircnciardquo demonstrada em

accedilatildeo sobre seu proacuteprio destino tanto que a chamam de desumana Talvez seja mesmo

desumana por sustentar seu desejo para aleacutem dos limites simboacutelicos que contornam a vida na

polis grega a vida compartilhada com os outros inscritos em uma cultura Talvez seja ldquohumana

demaisrdquo atribuiccedilatildeo dos heroacuteis e heroiacutenas caracterizados com as melhores disposiccedilotildees dos

homens e mulheres conforme Aristoacuteteles considerando que dentre tais disposiccedilotildees esteja a

fidelidade a seu proacuteprio desejo e agrave luta para sua realizaccedilatildeo

Nos entrelugares da servidatildeo agrave ancestralidade e da posiccedilatildeo diante do legado rumo ao

leito de morte viva e humana o que ela faz eacute se lamentar Um lamento apoliacuteneo que expressa

147

sorrateiramente o horror dionisiacuteaco Antiacutegona nasce como sujeito autocircnomos num espaccedilo curto

de tempo na trageacutedia encabeccedilada por seu nome proacuteprio

[] um leito nupcial jamais terei nem ouvirei hinos de bodas nem sentirei as alegrias conjugais nem filhos amamentarei hoje sozinha sem nenhum amigo parto ndash ai infeliz de mim ndash ainda viva para onde os mortos moram (Antiacutegona vv 1021-1026)

Tecendo em belo discurso apoliacuteneo Antiacutegona expressa o dionisiacuteaco colocando em cena

o tensionamento das duas forccedilas que formam o que eacute essencial na trageacutedia na visatildeo de

Nietzsche como heroiacutena legiacutetima do aclamado Soacutefocles Faccedilamos agora algumas

consideraccedilotildees sobre Euriacutepides no que tange agraves duas dimensotildees traacutegicas

332 Euriacutepides por Nietzsche

Nietzsche (18721992) aponta que Euriacutepides foi responsaacutevel por excluir o dionisiacuteaco da

trageacutedia grega e com isso responsaacutevel tambeacutem pela morte do gecircnero que dependia de uma

conciliaccedilatildeo possiacutevel entre os impulsos de Apolo e os de Dioniacutesio Em suas palavras

Excisar da trageacutedia aquele elemento dionisiacuteaco originaacuterio e onipotente e voltar a construiacute-la de novo puramente sobre uma arte uma moral e uma visatildeo do mundo natildeo dionisiacuteacas ndash tal eacute a tendecircncia de Euriacutepides que agora se nos revela em luz meridiana (NIETZSCHE 18721992 p 78)

Como seria uma arte uma moral e uma visatildeo de mundo natildeo dionisiacuteacas Um aspecto

apontado por Nietzsche (18721992) diz respeito ao lugar conferido por Euriacutepides ao homem

comum em suas trageacutedias ele que colocou no centro da cena a imitaccedilatildeo do cotidiano com todas

as caracteriacutesticas e psicologismos dos personagens o que foi muito caro ao surgimento da

comeacutedia nova Poreacutem isso demarcou o fim da trageacutedia antiga De acordo com Nietzsche pelo

intermeacutedio de Euriacutepides

[] o homem da vida cotidiana deixou o acircmbito dos espectadores e abriu caminho ateacute o palco o espelho em que antes apenas os traccedilos grandes e audazes chegavam agrave expressatildeo mostrou agora aquela desagradaacutevel exatidatildeo

148

que tambeacutem reproduz conscienciosamente as linhas mal traccediladas na natureza (NIETZSCHE 18721992 p 73-74)

Para sustentar a realidade dionisiacuteaca na trageacutedia eacute preciso manter uma certa imprecisatildeo

uma atmosfera enigmaacutetica uma inexatidatildeo da imitaccedilatildeo dos personagens e natildeo expor na

superfiacutecie da fala e das accedilotildees um personagem comum que poderia ser visto todos os dias por

qualquer um desvelado na vida cotidiana

Um certo enigma um inatingiacutevel um natildeo clarificaacutevel do homem deveria ser mantido

como a forccedila do drama decorrente da sua origem em Dioniacutesio ou seja num mundo que natildeo

conhece fronteiras entre os seres Era justamente aiacute que residia a potecircncia dos dramas

inventados pelos tragedioacutegrafos antigos

O filoacutesofo alematildeo alega que Euriacutepides como um pensador buscou estudar e

compreender a estrutura das obras-primas da trageacutedia de seus antecessores Eacutesquilo e Soacutefocles

mas se deparou com muitas incertezas ldquo[] percebeu alguma coisa de incomensuraacutevel em cada

traccedilo e em cada linha uma certa precisatildeo enganadora e ao mesmo tempo uma profundidade

enigmaacutetica sim uma infinitude do fundordquo (NIETZSCHE 18721992 p 77)

Ora o que eacute essa coisa incomensuraacutevel essa infinitude essa profundidade intrigante a

Euriacutepides senatildeo a percepccedilatildeo da proacutepria dimensatildeo dionisiacuteaca O autor buscou dar forma

controlar domesticar algo que resiste agrave domesticaccedilatildeo que deve permanecer ali borrado no

desenho do quadro da cena traacutegica Como ele natildeo pocircde explicar racionalmente tal sensaccedilatildeo

tratou-a como exagerada como desnecessaacuteria como inimiga da criaccedilatildeo e resolveu eliminar de

suas obras traacutegicas os arranjos atraveacutes dos quais o dionisiacuteaco parecia ganhar expressatildeo

Ao abordar o espiacuterito traacutegico presente na traduccedilatildeo de Antiacutegona de Soacutefocles feita pelo

poeta alematildeo Holderlin Rosenfield (2000) enfatiza essa dupla dimensatildeo com a qual a trageacutedia

se fazia A poesia se articula com a dimensatildeo do cognosciacutevel da experiecircncia empiacuterica e com

a apresentaccedilatildeo poeacutetica ela mesma o que faz surgir ldquoum movimento cujo ponto de fuga reside

aleacutem das determinaccedilotildees numa dimensatildeo radicalmente irredutiacutevel aos conceitos do

entendimentordquo (ROSENFIELD 2000 p 167)

Segundo a autora o que resulta desse jogo do cognosciacutevel com o poeacutetico eacute uma

sabedoria de outra ordem que faz marcas ao conhecimento comum situando um limite do nosso

discurso em poder transpor essa sabedoria a um dizer Ela permanece como um misteacuterio que

encanta e inquieta que natildeo se deixa dominar pela compreensatildeo Talvez seja justamente esse

149

ponto inalcanccedilaacutevel pela razatildeo essa sabedoria obscura causa do belo da experiecircncia que

Euriacutepides desejou excluir de seus dramas

Assim Nietzsche (18721992 p 77) nos revela os incocircmodos de Euriacutepides em relaccedilatildeo

agrave trageacutedia dos consagrados Eacutesquilo e Soacutefocles

[] quatildeo duvidosa permanecia para ele a soluccedilatildeo dos problemas eacuteticos Quatildeo questionaacutevel o tratamento dos mitos Quatildeo desigual a reparticcedilatildeo de ventura e desventura Mesmo na linguagem da trageacutedia antiga havia para ele muita coisa de ofensiva ao menos enigmaacutetica em especial achava haver demasiada pompa para relaccedilotildees muito comuns demasiados tropos e monstruosidades para a simplicidade dos caracteres Assim cismando intranquilo ficava sentado no teatro e ele o espectador confessava a si mesmo que natildeo entendia seus grandes predecessores

A trageacutedia de Euriacutepides Medeia talvez uma de suas obras mais instigantes que nos

propomos a estudar na sequecircncia deste trabalho contempla as caracteriacutesticas citadas pelo

filoacutesofo alematildeo Podemos nos perguntar antes de uma apreciaccedilatildeo mais pontual de sua Medeia

por que Euriacutepides natildeo compartilhava da esteacutetica de seus predecessores Podemos

responsabilizaacute-lo pela derrocada da trageacutedia antiga pelo fim da representaccedilatildeo dos mitos ou

entatildeo tentar entender que talvez expressasse atraveacutes da arte as mudanccedilas poliacuteticas e filosoacuteficas

de seu tempo numa Atenas que abrigava o movimento sofista e as condiccedilotildees para a constituiccedilatildeo

da democracia numa cidade ideal

De acordo com Vorsatz (2013) a trageacutedia antiga situa-se entre dois momentos histoacutericos

fundamentais ou seja divide um tempo miacutetico e um tempo poliacutetico sucede o tempo do ideal

homeacuterico e antecede o tempo do ideal filosoacutefico A trageacutedia claacutessica eacute expressatildeo de um mundo

em transformaccedilatildeo encenaccedilatildeo da genuiacutena experiecircncia humana num mundo agrave mercecirc da vontade

divina recortado com a insuficiecircncia da palavra do heroacutei no jogo cantado e contado pelo coro

Nesse sentido Euriacutepides ao viver em tal periacuteodo de transiccedilatildeo pode ter pertencido ao

grupo dos que aspiravam a uma inovaccedilatildeo das ideias uma nova forma de interpretar os mitos a

escuta de questotildees humanas sob um acircngulo diferente da estrutura enigmaacutetica dos poemas

homeacutericos e da tradiccedilatildeo oral Talvez mais interessado em explorar as pequenezas dos

sentimentos e as sutilezas do pensamento como um contraponto a feitos admiraacuteveis e

grandiosos Hoje Euriacutepides eacute considerado junto com Eacutesquilo e Soacutefocles um dos principais

tragedioacutegrafos da Greacutecia Antiga e ainda que sua esteacutetica seja questionada pelos ideais de beleza

aristoteacutelicos eacute considerado por Aristoacuteteles o mais traacutegico dos poetas traacutegicos

150

Dessa forma indagamos sem buscar suas bases no terreno dionisiacuteaco onde se funda o

drama de Euriacutepides Como pode restar o elemento apoliacuteneo sem o seu contraponto Para

Nietzsche (18721992) o tragedioacutegrafo propotildee uma nova tensatildeo entre dimensotildees opostas uma

tensatildeo natildeo artiacutestica mas realista no lugar do apoliacuteneo versus dionisiacuteaco Euriacutepides parece

inaugurar a frieza do pensamento versus o fervor do afeto conflito que encontramos em

Medeia

Outro modo de ver a proposta de Euriacutepides segundo o filoacutesofo alematildeo refere-se ao que

ele chamou de ldquosocratismo esteacuteticordquo (NIETZSCHE 18721992 p 81) Na luta pela expulsatildeo

do inquietante impulso dionisiacuteaco da trageacutedia o que se ergue contra ele eacute o pensamento

socraacutetico que visa colocar tudo o que existe sob o exame do racional do inteligiacutevel Aquilo

que passar por tal provaccedilatildeo eacute considerado bom Do mesmo modo Euriacutepides acreditou que a

trageacutedia deveria passar por um exame da inteligecircncia O que resultasse desse crivo da razatildeo

seria belo Ou seja para ele o que natildeo era compreensiacutevel justificaacutevel pela racionalidade

tampouco tinha beleza

O filoacutesofo alematildeo aborda a relaccedilatildeo entre Soacutecrates e Euriacutepides e a importacircncia dessa

relaccedilatildeo para a esteacutetica proposta pelo tragedioacutegrafo Em Atenas circulava a ideia de que Soacutecrates

ajudava Euriacutepides na escrita uma lenda contada por aqueles mais saudosos de tempos passados

que sentiam os valores tradicionais ruiacuterem pelos sofistas que eram os representantes de um

pensamento racional que buscavam destituir os mitos do discurso dos cidadatildeos Na visatildeo

desses cidadatildeos Soacutecrates poderia sustentar uma linha filosoacutefica que preservava as tradiccedilotildees e

utilizava a razatildeo pelo bem em nome do saber e da consciecircncia Sem eliminar os mitos buscava

apenas trazecirc-los agrave luz da razatildeo e do conhecimento Nesse sentido Soacutecrates que natildeo apreciava

a arte traacutegica costumava assistir apenas agraves peccedilas de Euriacutepides em funccedilatildeo do questionamento e

tratamento racional que imprimia aos mitos

Nietzsche (18721992) destaca uma importante passagem da vida de Soacutecrates

fundamental para o surgimento de sua filosofia para sua circulaccedilatildeo pela via puacuteblica O oraacuteculo

de Delfos oraacuteculo do deus Apolo diz a um amigo de Soacutecrates que ele eacute o mais saacutebio dentre os

saacutebios Quando o amigo conta as palavras do oraacuteculo o filoacutesofo volta sua vida agrave busca de

algueacutem mais dotado de sabedoria questionando conceitos e valores construiacutedos por saacutebios

reconhecidos na cidade professores e sofistas No entanto a cada encontro que tecia no intuito

de refutar tal prenuacutencio Soacutecrates colocava seu interlocutor diante da contradiccedilatildeo de seus

pensamentos provando a si mesmo o acerto do oraacuteculo Passou a buscar a verdade desejava

151

fazecirc-la brotar vir ao mundo atraveacutes dos diaacutelogos que tecia com os outros Assim tornou-se ele

mesmo um saacutebio admirado por muitos desprezado por outros tantos

Tal ocasiatildeo da vida de Soacutecrates eacute relatada num texto de Platatildeo Apologia de Soacutecrates o

qual apresenta a defesa do enigmaacutetico saacutebio condenado agrave morte hoje considerado um dos

fundadores da filosofia ocidental Mas Nietzsche conta ainda e eacute isso que desejamos frisar que

se o primeiro saacutebio eacute Soacutecrates o segundo eacute Euriacutepides No entanto Euriacutepides natildeo alcanccedilou a

notoriedade de seu suposto mestre

Do mesmo modo Lacan (1960-19611992) menciona Euriacutepides no seminaacuterio A

transferecircncia Numa das passagens situa o tragedioacutegrafo como um saacutebio nada mal lembrando

tambeacutem as prediccedilotildees do oraacuteculo poreacutem Soacutecrates eacute o mais saacutebio dentre todos Essa questatildeo (a

de Soacutecrates ser o mais saacutebio) Lacan comenta logo na apresentaccedilatildeo de seu seminaacuterio como a

questatildeo que Soacutecrates sustentou durante toda sua vida colocando o filoacutesofo na origem da mais

longa transferecircncia da histoacuteria jaacute que a sustentou como verdade ateacute o fim da vida

Soacutecrates antes de morrer concorda com deus Apolo sim ele era o mais saacutebio por

duvidar de sua sabedoria por saber que nada sabia o que o diferenciava de outros sofistas que

se julgavam saacutebios a priori Isso fazia com que defendessem qualquer ideia como verdade

buscando argumentos racionais para isso Faziam mal-uso da razatildeo Ao ser julgado como

destruidor dos mitos por desprezar os deuses Soacutecrates diz que o proacuteprio deus Apolo o

considerava o mais saacutebio e que apenas ele Apolo saberia se sua condenaccedilatildeo agrave morte era justa

ou injusta

Em decorrecircncia da influecircncia socraacutetica em suas obras os mitos histoacuterias compartilhadas

entre o povo grego que davam origem aos dramas traacutegicos para Euriacutepides deveriam ser bem

justificados sem deixar espaccedilos vazios ou margem para duacutevidas Nesse sentido natildeo havia uma

supressatildeo dos mitos ou uma supressatildeo da presenccedila divina em favor da razatildeo humana A

diferenccedila consistia em integrar a mitologia agrave racionalidade engolfaacute-la Para Vieira (2010) eacute

feitio de Euriacutepides construir accedilotildees com propoacutesitos inovadores que para ele beiram o absurdo

em vez de tomar tais accedilotildees como decorrentes do mito em que os deuses interferem de modo

enigmaacutetico sobre o ser humano Sobre a diferenccedila de Euriacutepides na trageacutedia Nietzsche

(18721992 p 72) o critica por tecirc-la eliminado e o indaga pessoalmente

E assim como o mito morreu para ti tambeacutem morreu para ti o gecircnio da muacutesica e mesmo se saqueaste com presas aacutevidas todos os jardins da muacutesica ainda assim soacute pudeste chegar a uma arremedada muacutesica mascarada E porque abandonaste Dioniacutesio por isso Apolo tambeacutem te abandonou afugenta todas

152

as paixotildees de seu covil e as conjura em teu ciacuterculo afila e aguccedila como se deve uma dialeacutetica sofiacutestica para as falas de teus heroacuteis ndash tambeacutem os teus heroacuteis tecircm paixotildees arremedadas e mascaradas e proferem apenas falas arremedadas e mascaradas

Por ignorar o dionisiacuteaco Euriacutepides natildeo compreende o mito Em consequecircncia desse

abandono ignora tambeacutem o apoliacuteneo O que eacute a figura sem o que lhe faz pano de fundo

Subjugar a arte da trageacutedia a questionamentos filosoacuteficos acarretou numa montagem de heroacuteis

e heroiacutenas que apenas imitam accedilotildees e falas de heroacuteis e heroiacutenas sem secirc-los A dialeacutetica

socraacutetica que busca trazer a verdade agrave luz tem lugar no teatro euripidiano o que tem por efeito

uma nova forma de apresentar a palavra em cena

De acordo com Vorsatz (2013) haacute uma diferenccedila fundamental na forma de trabalhar

com a palavra na trageacutedia antiga e na filosofia Os tragedioacutegrafos colocam a palavra em cena

de modo a circunscrever um lugar subjetivo uma zona onde o dizer do heroacutei e da heroiacutena muito

mais que significar alguma coisa eacute um ato aparece em accedilatildeo Segundo a autora eacute desta palavra

como accedilatildeo que deriva a posiccedilatildeo subjetiva O heroacutei e a heroiacutena garantem com seu ato a presenccedila

divina sujeitam-se a ela e ao mesmo tempo satildeo responsaacuteveis pelo destino traacutegico a eles

imposto ainda que dele nada saibam Eacute justamente essa condiccedilatildeo subjetiva apresentada pela

heroiacutena Antiacutegona na peccedila de Soacutefocles que inspira Lacan (1959-19601997) a trabalhar sobre

a eacutetica da psicanaacutelise uma eacutetica essencialmente traacutegica pois se configura numa travessia em

que o sujeito natildeo cede de seu desejo desejo inconsciente ao qual eacute alienado

Jaacute na filosofia encontramos a tendecircncia de colocar a palavra na eterna busca de uma

verdade uacutenica e universal passiacutevel de ser dominada pela consciecircncia do indiviacuteduo

[] a filosofia grega eleva o homem agrave categoria de ser de razatildeo atraveacutes da constituiccedilatildeo de um saber sobre ele e sobre o mundo que o cerca Por sua vez a trageacutedia antiga parece colher aquilo mesmo que escaparaacute ao domiacutenio filosoacutefico o fato de que o homem natildeo eacute senhor em sua proacutepria casa pois haacute um campo imperscrutaacutevel domiacutenio dos deuses a cujas injunccedilotildees ele deveraacute responder por meio da libra de carne que lhe cabe pagar cessatildeo de uma parte de si (VORSATZ 2013 p 24)

Nos dramas de Euriacutepides com o surgimento de uma filosofia que comeccedilava a atravessar

o espaccedilo puacuteblico a tomar parte da organizaccedilatildeo poliacutetica da cotidianidade das pessoas que

passava a permear o campo das artes com seus atributos de tomar o indiviacuteduo como ser dotado

de razatildeo com o uso da ironia da busca pela verdade encontramos a mudanccedila de relaccedilatildeo com

a palavra que aparece nos textos do coro e dos personagens

153

333 Deus ex machina euripidiano

A mudanccedila na trageacutedia a partir de Euriacutepides se expressa de modo mais evidente no

desenlace do drama de acordo com Nietzsche (18721992) a partir do recurso deus ex machina

utilizado como forma de resolver impasses e ldquopontas soltasrdquo da trama Eacutesquilo Soacutefocles e

outros tragedioacutegrafos tambeacutem apresentaram o deus ex machina em algumas de suas trageacutedias

A diferenccedila estaacute na intervenccedilatildeo dos deuses trazidos pela maacutequina nos rumos da cena traacutegica

Nesse sentido ao final das trageacutedias de Eacutesquilo e Soacutefocles o espectador poderia se

confortar com um prazer inerente ao traacutegico uma sensaccedilatildeo de conciliaccedilatildeo com o mundo que

apresenta um equiliacutebrio do dionisiacuteaco e do apoliacuteneo Lembramos que a conciliaccedilatildeo eacute uma

experiecircncia esteacutetica que emana da trama traacutegica no entanto natildeo haacute um acordo entre os

personagens da cena

No Dicionaacuterio de teatro Pavis (2015 p 21) nomeia este prazer de ldquoapaziguamento

finalrdquo e o toma como um produto da estrutura narrativa que indica o final da peccedila a impressatildeo

de que o heroacutei resolveu de algum modo seus conflitos e de que tudo retornou a uma suposta

ordem inicial No caso da trageacutedia a sensaccedilatildeo experimentada pelo espectador eacute a de uma

ldquojusticcedila transcendente do universo traacutegicordquo (PAVIS 2015 p 22)

Poreacutem com as modificaccedilotildees euripidianas que produzem uma intervenccedilatildeo divina

derradeira sobre a cena haacute apaziguamento final

De acordo com Nietzsche (18721992 p 107)

[] o heroacutei depois de bastante martirizado pelo destino colhia uma bem merecida recompensa em um magniacutefico casamento em algumas homenagens divinas O heroacutei se tornara um gladiador a quem apoacutes ter sido bastante maltratado e estar coberto de ferimentos era ocasionalmente doada a liberdade O deus ex machina tomou o lugar do reconforto metafiacutesico Natildeo quero dizer que a consideraccedilatildeo traacutegica do mundo tenha sido destruiacuteda em toda parte e por completo pelo acossante espiacuterito natildeo dionisiacuteaco sabemos apenas que precisou fugir da arte para refugiar-se por assim dizer no mundo iacutenfero numa degeneraccedilatildeo em culto secreto

Deus ex machina entra como substituto do ldquoreconforto metafiacutesicordquo mas sem provocar

tal sensaccedilatildeo Ele eacute uma presenccedila que dita o futuro dos heroacuteis

154

[] uma consonacircncia terrena [] o deus das maacutequinas e crisoacuteis vale dizer as forccedilas dos espiacuteritos naturais conhecidas e empregadas a serviccedilo do egoiacutesmo superior que acredita em uma correccedilatildeo do mundo pelo saber em uma vida guiada pela ciecircncia [] (NIETZSCHE 18721992 p 108)

Dessa forma o deus ex machina proposto inicialmente por Eacutesquilo torna-se em

Euriacutepides a marca mais visiacutevel da mudanccedila de sua trageacutedia que se coloca no lugar da sensaccedilatildeo

de um conforto transcendente tiacutepico das trageacutedias antigas que dependiam da tensatildeo apoliacuteneo-

dionisiacuteaco A entrada do deus ex machina se torna signo de um desenlace que natildeo se constroacutei

ao longo do drama que natildeo emana das relaccedilotildees entre os personagens da histoacuteria de acordo

com a criacutetica nietzschiana Eacute um recurso que por carregar a funccedilatildeo de fazer justiccedila de conhecer

a verdade e a razatildeo sobre o mundo justifica-se por si mesmo Encontra em sua funccedilatildeo de

correccedilatildeo e julgamento do certo e do errado do bem e do mal seu direito de intervir e impor o

desenlace da histoacuteria (NIETZSCHE 18721992)

Eacute possiacutevel dizer desse modo que a entrada do deus ex machina na trageacutedia de Euriacutepides

tem o intuito de encaminhar o impasse traacutegico produzido entre os personagens para a soluccedilatildeo

que defenda o justo a razatildeo o correto e conforme apontado por Nietzsche (18721992) a

ciecircncia Tais finalidades estatildeo em consonacircncia com os objetivos da filosofia que se expandia

cada vez mais na via puacuteblica encontrando lugar na cena traacutegica

Entendemos esse dispositivo teatral como uma soluccedilatildeo a partir da qual uma atitude de

autoria fica suspensaA impressatildeo da suspensatildeo do lugar de autor pode ser decorrente da

suspensatildeo da criaccedilatildeo incitada pelo proacuteprio desfecho da cena Quando entra em cena um deus

ex machina para impor um fim a sensaccedilatildeo eacute de que os conflitos produzidos entre os

personagens natildeo satildeo realmente solucionados Parecem em vez disso suspensos silenciados

amortecidos por uma imposiccedilatildeo moral

De acordo com Antonio Rebelo (1995) em artigo sobre a peccedila euripidiana Ifigecircnia em

Tauris o deus ex machina eacute comparado aos ensinamentos filosoacuteficos de Soacutecrates no diaacutelogo

Clitofonte atribuiacutedo a Platatildeo e nesse sentido o dispositivo assumiria uma funccedilatildeo moralizante

O autor nos ajuda a pensar a funccedilatildeo do deus ex machina para aleacutem das concepccedilotildees

criacuteticas de Aristoacuteteles e de Nietzsche

A anaacutelise aristoteacutelica foi determinante para conferir uma carga depreciativa agrave utilizaccedilatildeo do deus ex machina Toda a criacutetica posterior ateacute os nossos dias foi fortemente influenciada pelas normas que o Estagirita estabeleceu para a trageacutedia Do ponto de vista teoacuterico o deus ex machina passou a ser

155

considerado uma violaccedilatildeo do princiacutepio aristoteacutelico da verossimilhanccedila e coerecircncia entre o desenvolvimento da intriga e o seu desenlace Soacute recentemente o deus ex machina tem vindo a ser reabilitado e revalorizado apoacutes a rejeiccedilatildeo de antigos preconceitos (REBELO 1995 p 170-171)

Nesse sentido o autor diz que na anaacutelise de Aristoacuteteles em que o filoacutesofo deprecia o

uso do deus ex machina haacute tambeacutem recomendaccedilatildeo de como usar o recurso sem que a accedilatildeo

dramaacutetica seja prejudicada A presenccedila dos deuses funciona na cena para situar certos

acontecimentos sobre o passado eou sobre o futuro simplesmente porque os heroacuteis ou outros

personagens os desconhecem

No entanto quem deve desenhar um destino em cena ateacute o momento de desenlace da

accedilatildeo ainda que fracassem ainda que o fim seja traacutegico satildeo os personagens Natildeo eacute o fato de

uma trageacutedia apresentar ou natildeo apresentar o deus ex machina que necessariamente a accedilatildeo dos

heroacuteis estaraacute em prejuiacutezo Deuses situam o tempo o lugar as circunstacircncias da accedilatildeo Quando

uma trageacutedia atribui aos deuses um papel que natildeo este como por exemplo decidir sobre o

destino das personagens pode haver uma mudanccedila abrupta de rumo desnecessaacuteria eou

inverossiacutemil que vai contra um caminho tecido pelo drama

De acordo com Rebelo (1995) eacute esta a criacutetica que costumamos encontrar aos dramas de

Euriacutepides Poreacutem para o autor das trageacutedias de Euriacutepides agraves quais temos acesso duas se

encerram com um deus ex machina que encaminha o desenlace de modo a resolver o conflito

insoluacutevel que satildeo Orestes e Hipoacutelito Nas trageacutedias Medeia Heacutecuba Heacuteracles e Os

Heraclidas satildeo mortais que surgem ex machina impondo o desenlace e assim natildeo satildeo

comparaacuteveis aos deuses quando estatildeo nesse lugar Dessa maneira as peccedilas Androcircmaca As

Suplicantes Electra Ifigecircnia entre os Tauros Ion Helena As Bacantes e Ifigecircnia em Aulide

ainda que apresentem deuses num plano exterior ao da cena ou que entram em cena por meio

de uma maquinaria sua intervenccedilatildeo natildeo modifica os rumos da trama pois o desenlace ocorre

como um fruto da trama e a funccedilatildeo divina consiste em dar uma palavra final uma costura

O entendimento de Lacan (1959-19601997) a respeito desse recurso cecircnico vai ao

encontro dessa definiccedilatildeo pois para o psicanalista o deus ex machina ldquoserve somente de

enquadramento e de limite da trageacutediardquo (LACAN 1959-19601997 p 384) e natildeo devemos

levar em conta esse recurso mais do que as vigas que estatildeo na volta do que sustenta realmente

o palco

O psicanalista faz esse comentaacuterio ao citar a peccedila de Soacutefocles Filoctetes em que o heroacutei

eacute salvo por Heacutercules ex machina de uma ilha onde o haviam abandonado Poreacutem para Rebelo

156

(1995) justamente nessa peccedila haacute uma diferenccedila no uso do recurso pois assume funccedilatildeo de

intervir de modo inesperado e definitivo Eacute importante esse apontamento de Rebelo (1995) pois

ele mostra que o dispositivo cecircnico em questatildeo tambeacutem aparece em peccedilas de Soacutefocles de

maneira a mudar os rumos da histoacuteria Tambeacutem podemos destacar a peccedila de Eacutesquilo Orestes

cujo desfecho ocorre com a intervenccedilatildeo divina de Apolo o qual interrompe um final traacutegico

Orestes mata a proacutepria matildee para vingar a morte do pai arranjada por ela Como provavelmente

ele seraacute condenado agrave morte pede a seu tio Menelau que interceda por ele em seu julgamento

Quem acaba por ajudaacute-lo eacute o proacuteprio deus Apolo que entra em cena no carro do Sol e confere

um novo ordenamento agraves accedilotildees dos homens Essa eacute a primeira vez que o recurso ex machina eacute

utilizado na trageacutedia grega Desse modo Rebelo (1995) esclarece que o sentido de atribuir o

uso desse recurso por Euriacutepides se justifica apenas por sua escolha na maioria de suas peccedilas

mas natildeo pela vinculaccedilatildeo do desenlace das peccedilas do tragedioacutegrafo ao dispositivo

Para Otto Maria Carpeaux (2010) haacute uma diferenccedila crucial entre Eacutesquilo e Euriacutepides

decorrente das transformaccedilotildees sociais e espirituais que os separam que eacute o modo como

apresentam o mito e a divindade pois enquanto ldquoEacutesquilo parecia ser representante do

conservadorismo religioso Euriacutepides eacute representante do individualismo filosoacutefico [] Eacutesquilo

eacute coletivista Euriacutepides individualistardquo (CARPEAUX 2010 p 188) Talvez essas diferenccedilas

caracterizem de modo mais sutil o que os autores desejavam transmitir com o uso do deus ex

machina pois ldquoem Eacutesquilo falam montanhas em Euriacutepides almasrdquo (CARPEAUX 2010 p

190)

Para Rebelo (1995 p 167) ldquouma das finalidades se natildeo uacutenica do deus ex machina

seria a parecircnese a exortaccedilatildeo aos espectadores para agirem de acordo com os preceitos divinosrdquo

Dessa maneira a funccedilatildeo do dispositivo teria como propoacutesito uma expansatildeo de sua intervenccedilatildeo

para aleacutem dos limites da cena Entendemos que o alvo do deus ex machina satildeo os espectadores

natildeo os personagens de forma a impor se o final da histoacuteria ldquoa moral da histoacuteriardquo

Eacute nesse sentido que o desenlace da histoacuteria adquire uma marca diferente na maioria das

peccedilas de Euriacutepides conforme comenta Nietzsche (18721992) pois a transmissatildeo da

experiecircncia do traacutegico daacute lugar agrave imposiccedilatildeo moral atraveacutes da presenccedila e da palavra divina que

encerram a trama Ainda que Soacutefocles e Eacutesquilo tenham utilizado esse recurso algumas vezes

tendo como consequecircncia o efeito moralizador para o filoacutesofo alematildeo satildeo as trageacutedias de

Euriacutepides que marcam o fim do gecircnero O tradutor de O nascimento da trageacutedia Jacoacute

Guinsburg ajuda-nos a entender o motivo

157

No teatro de Euriacutepides Nietzsche identifica o ponto de inflexatildeo do processo que conduziu ao esvaziamento da trageacutedia grega e ao advento da Comeacutedia Nova Muito embora consigne um tardio arrependimento ao gecircnio criador de As bacantes atribui-lhe em face das dramatizaccedilotildees tidas como as mais expressivas do tragicismo helecircnico pelo menos quatro pecados capitais a eacutepica desmitificada o realismo mimeacutetico o socratismo criacutetico e o otimismo cientifista (GUINSBURG 1992 p 163)

O abandono do dionisiacuteaco jaacute dava notiacutecias antes mesmo da reinvenccedilatildeo dos mitos feita

por Euriacutepides pois jaacute com Soacutefocles podemos ver a modificaccedilatildeo do papel do coro que passa

da musicalidade (talvez um dos uacutenicos elementos da trageacutedia que preservavam a relaccedilatildeo com o

ritual em honra a Dioniso de onde o gecircnero deriva) para a personalizaccedilatildeo caracteriacutestica que se

torna mais marcante nas peccedilas euripidianas No coro haacute um ator o corifeu que o representa em

alguns diaacutelogos

Isso pode ser compreendido como uma evoluccedilatildeo que acompanha mudanccedilas na

organizaccedilatildeo cultural Se natildeo fosse assim talvez o gecircnero traacutegico natildeo teria nascido e teriacuteamos

ainda os rituais dionisiacuteacos como forma de arte O nascimento da trageacutedia permanece como um

misteacuterio uma faacutebula miacutetica para todos noacutes como lembra Pierre-Aimeacute Touchard (1970)

Sabemos que por volta do ano 492 aC uma pessoa resolveu se separar do coro e dizer ldquoagora

sou Dionisordquo representando o bode expiatoacuterio causa dos cantos da comoccedilatildeo do temor e da

piedade O primeiro ator Theacutespis separou-se do coro e aprimorou a arte de imitar viajando

sozinho encenando suas proacuteprias peccedilas utilizando maacutescaras para diferenciar uma personagem

da outra Tornou-se o primeiro dramaturgo de teatro e criou a possibilidade do ator contracenar

com o coro inventando a figura do protagonista Desse modo as encenaccedilotildees seguiram um

processo de transformaccedilatildeo que acompanha as transformaccedilotildees da vida puacuteblica em um fluxo de

criaccedilatildeo que vai se tecendo com cada vez mais elementos cecircnicos

Contudo a partir de Guinsburg (1992) podemos dizer que satildeo as alternativas

encontradas por Euriacutepides dentro desse processo cultural de transformaccedilotildees artiacutesticas que o

localizam como grande responsaacutevel pelo fim da trageacutedia na opiniatildeo de Nietzsche O

tragedioacutegrafo encaminhou a arte traacutegica para uma criacutetica aos seus contemporacircneos que

buscavam o equiliacutebrio apoliacuteneo-dionisiacuteaco tornando-a uma forma de divulgar sua indignaccedilatildeo

e apresentar sua concepccedilatildeo iluminista do traacutegico Aleacutem disso Nietzsche acredita que Euriacutepides

em sua trageacutedia promoveu uma campanha ideoloacutegica em favorecimento de Soacutecrates

158

[] fala por sua boca o filoacutesofo racionalista que esgota no conceito e na loacutegica o conhecimento e a verdade do ser Euriacutepides e Soacutecrates satildeo pois na perspectiva de O nascimento da trageacutedia duas faces da mesma maacutescara que eacute no entanto primordialmente a do Sofista (GUINSBURG 1992 p 164)

Considerando a influecircncia de Soacutecrates na trageacutedia de Euriacutepides entendemos que o deus

ex machina euripidiano acaba por legitimar o domiacutenio do conhecimento filosoacutefico ndash jaacute que

divino verticalizado metafiacutesico ndash sobre a arte traacutegica sobre as possibilidades de criaccedilatildeo

Fizemos essa digressatildeo teoacuterica em torno do traacutegico para entender o que resta dele como

ele resta apoacutes a morte da trageacutedia grega bem como para fundamentar nossa tese de que hoje

haacute sobre noacutes outros nomes para o deus ex machina cujo ldquoforardquo e cuja ldquomaacutequinardquo noacutes mesmos

produzimos Um eacute portanto a medicalizaccedilatildeo requerida para que nossas relaccedilotildees dentro dos

mais diferentes espaccedilos de convivecircncia funcionem bem e deem um destino para o dionisiacuteaco

que haacute em noacutes o qual por mais arcaico que seja por mais distante cronologicamente natildeo eacute

passiacutevel de ser completamente recoberto pelos recursos simboacutelicos de que a cultura dispotildee a

cada tempo em cada territoacuterio Ainda que o dionisiacuteaco tenha sido aparentemente expulso

varrido da cultura ocidental ele subsiste como diz Nietzsche na sombra num mundo iacutenfero

Vimos que as alteraccedilotildees culturais que datildeo ensejo agrave filosofia socraacutetica satildeo proacuteximas agraves

que estabelecem o deus ex machina como um dispositivo a oferecer uma aprovaccedilatildeo moral dos

atos das personagens da cena que significa um juiacutezo de valor a atestaccedilatildeo de uma verdade

Entendemos que na cena escolar diante de um problema de comportamento ou de

aprendizagem apresentado por uma crianccedila muitas vezes a escola pode julgar ter a obrigaccedilatildeo

moral de chamar para a cena um personagem que representa o saber meacutedico de modo que este

costure um desenlace com uma palavra diagnosticadora sobre o mal-estar A partir de testes e

consultas cliacutenicas o especialista pode dizer se a crianccedila apresenta uma dificuldade de

aprendizagem como dislexia um transtorno mental como o TDAH ou o TOD e a partir do

diagnoacutestico muitas vezes definir os rumos da rotina escolar desse estudante como por

exemplo para crianccedilas com TDAH o horaacuterio da medicaccedilatildeo combinado ao horaacuterio de estudos

No proacuteximo capiacutetulo discutiremos os efeitos do saber meacutedico no campo escolar Antes

queremos apresentar outro argumento que leva a pensar que a medicalizaccedilatildeo pode ser acionada

como uma instacircncia moral

Haacute um comentaacuterio de Lacan no seminaacuterio A transferecircncia no qual trabalha com o texto

de Platatildeo O banquete que indica uma aproximaccedilatildeo de Soacutecrates ao saber meacutedico

159

Jaacute se observou que haacute em Soacutecrates uma referecircncia ambiente agrave medicina Com muita frequecircncia quando quer levar seu interlocutor ao plano de diaacutelogo no qual entende dirigi-lo rumo agrave percepccedilatildeo de um percurso rigoroso ele se refere a tal arte de teacutecnico Se sobre tal assunto quiserem saber a verdade pergunta frequentemente a quem se dirigiratildeo E dentre estes o meacutedico estaacute longe de ser excluiacutedo Ele eacute mesmo tratado com uma reverecircncia particular (LACAN 1960-19611992 p 73)

Lacan logo assinala que o meacutedico ao qual Soacutecrates se refere na ocasiatildeo do texto de

Platatildeo eacute Erixiacutemaco o qual toma a medicina como a maior de todas as artes Natildeo entraremos

no discurso sobre o amor do personagem de O banquete no entanto queremos apresentar alguns

pontos trabalhados por Lacan no que concerne ao discurso meacutedico Ainda que a histoacuteria da

medicina seja bastante longa dividida mesmo na antiguidade por diferentes escolas haacute um

aspecto que lhe atravessa A medicina sempre busca alcanccedilar uma precisatildeo cientiacutefica sendo

esta uma necessidade intriacutenseca agrave sua proacutepria existecircncia Para Lacan (1960-19611992) essa

busca acaba por natildeo enfrentar poreacutem assuntos elementares como a definiccedilatildeo de sauacutede

Quando haacute desejo de entender as diferenccedilas entre normal e patoloacutegico geralmente isso

eacute realizado por um saber das ciecircncias humanas por exemplo poreacutem natildeo constitui questatildeo de

pesquisa na aacuterea da medicina Ainda assim Lacan busca desvendar especialmente no discurso

de Erixiacutemaco a noccedilatildeo de sauacutede para o discurso meacutedico no qual se inclui como psiquiatra e

psicanalista

[] qualquer que seja a natureza da sauacutede e a boa forma que seria a da sauacutede somos levados a postular no seio desta boa forma estados paradoxais ndash e o miacutenimo que se pode dizer ndash estes mesmos cuja manipulaccedilatildeo em nossas terapecircuticas eacute responsaacutevel pelo retorno a um equiliacutebrio que permanece no conjunto muito pouco criticado enquanto tal Aiacute estaacute portanto o que encontramos no niacutevel dos postulados menos acessiacuteveis a demonstraccedilatildeo sobre a posiccedilatildeo meacutedica E justamente esta que seraacute consagrada aqui no discurso de Erixiacutemaco sob o nome de harmonia Natildeo sabemos de que harmonia se trata mas a noccedilatildeo eacute bastante fundamental para toda a posiccedilatildeo meacutedica como tal (LACAN 1960-19611992 p 75)

Nesse sentido ao contextualizar o discurso do personagem meacutedico com o pensamento

de Heraacuteclito e de Soacutecrates Lacan entende que a ideia da sauacutede como harmonia meacutedica estaacute

ligada ao saber da fiacutesica agrave metaacutefora da comunicaccedilatildeo entre um vaso cheio com um vazio por

um fio de latilde e agrave arte da muacutesica no que diz respeito aos acordes

O que podemos destacar aqui eacute a criacutetica de Lacan agrave definiccedilatildeo de Erixiacutemaco sobre o que

eacute a ciecircncia meacutedica

160

Existe ali uma parcialidade de que natildeo partilhamos Todas as espeacutecies de modelos da fiacutesica nos trouxeram a ideia de uma fecundidade dos contraacuterios dos contrastes das oposiccedilotildees e de uma natildeo-contradiccedilatildeo absoluta do fenocircmeno com seu princiacutepio conflitual Toda a fiacutesica tende muito mais para o lado da imagem da onda do que para o lado da forma da Gestalt da boa forma natildeo importa o que disso tenha feito a psicologia moderna Natildeo podemos deixar de nos surpreender digo eu tanto nessa passagem quanto em vaacuterias outras de Platatildeo ao ver sustentada a ideia de natildeo sei que impasse que aporia de natildeo sei que preferecircncia a ser dada ao lado do caraacuteter forccedilosamente fundamental do acorde com o acorde da harmonia com a harmonia (LACAN 1960-19611992 p 79)

Entrever a potecircncia das contrariedades dos impasses eacuteticos que surgem em cena eacute o que

o traacutegico tem a transmitir visando natildeo agrave harmonia agrave boa forma mas daando lugar agrave dimensatildeo

da anguacutestia em cena dos limites humanos do que perdemos em nossa posiccedilatildeo desejante

subjetiva Haacute uma distacircncia talvez uma antinomia entre o que se busca transmitir com o

discurso socraacutetico ndash aparentado em certo ponto ao discurso meacutedico ndash presente em trageacutedias de

Euriacutepides e o traacutegico que se transmite em trageacutedias sofocleanas como Antiacutegona cuja eacutetica eacute

partilhada com a psicanaacutelise

Natildeo que natildeo haja nas noccedilotildees visitadas do traacutegico uma tendecircncia de encaminhar uma

transformaccedilatildeo um retorno a um suposto equiliacutebrio ou estado anterior Como vimos esta noccedilatildeo

cataacutertica aparece em textos meacutedicos como expurgaccedilatildeo das impurezas do corpo assim como na

noccedilatildeo de harmonia meacutedica haacute o entendimento de evacuar alguma coisa do corpo ou preencher

o corpo com alguma coisa Sabemos que haacute tal noccedilatildeo tambeacutem nos primoacuterdios da histoacuteria da

psicanaacutelise com Freud e Breuer no sentido de que o tratamento das histeacutericas consistia na

descarga dos afetos conforme mencionado anteriormente

Em que reside na diferenccedila de uma posiccedilatildeo para outra Da harmonia meacutedica ao

apaziguamento final das trageacutedias antigas Acreditamos que a operaccedilatildeo meacutedica tende a veicular

um ideal de corpo saudaacutevel Jaacute a conciliaccedilatildeo final das trageacutedias o equiliacutebrio entre apoliacuteneo e

dionisiacuteaco demarca um reposicionamento dos personagens em cena fruto do jogo de tensotildees

e de desacordos que ocorre num movimento contraacuterio ao da idealizaccedilatildeo Vemos heroacuteis e

heroiacutenas se deslocarem de um lugar admiraacutevel para uma posiccedilatildeo que os arruiacutena Mas haacute sempre

algo que permanece vivo a uacutenica coisa que resta para de certa forma restaurar a cena o desejo

A presenccedila de uma ilusatildeo de harmonia operada atraveacutes da liberaccedilatildeo dos afetos presente

nos primoacuterdios da psicanaacutelise vai em sua histoacuteria cedendo lugar a uma concepccedilatildeo que indica

o mal-estar como inerente agrave condiccedilatildeo humana O sujeito elabora certos eventos de sua vida

161

numa perspectiva inventiva junto com seu analista ldquorecriandordquo memoacuterias com as quais produz

novos sentidos Isso eacute o que nos aponta Freud (19371975) no texto Construccedilotildees em anaacutelise

Nesse sentido entendemos que a eacutetica da psicanaacutelise sendo uma eacutetica do desejo que situa os

limites do sujeito encontra ressonacircncia na eacutetica transmitida com o traacutegico em trageacutedias gregas

do seacuteculo IV aC anteriores agrave virada proposta por Euriacutepides que de acordo com Nietzsche

(18721992) calca sua dramaturgia na moral socraacutetica moral que acaba por servir ao saber

meacutedico conforme exposiccedilatildeo de Lacan (1960-19611992)

Na equaccedilatildeo por noacutes proposta a medicalizaccedilatildeo estaacute para o deus ex machina assim como

a cena escolar estaacute para a cena traacutegica respeitando as devidas temporalidades Na cena traacutegica

os heroacuteis e heroiacutenas em sua relaccedilatildeo traacutegica com o desejo situam os limites entre a vida e a

morte os limites desejantes em si mesmos abrem outras vias de criaccedilatildeo para e por noacutes nos

comovem nos fazem sentir um plano mais aleacutem que ocorre na horizontalidade metoniacutemica do

desejo dando expressatildeo ao dionisiacuteaco este que pode ser subjugado na cena euripidiana por

um modo de conhecimento moralizante que surge ex machina

Sendo assim podemos aprender sobre a cena escolar com a anaacutelise da cena traacutegica onde

ocorrem encontros e desencontros onde se travam as relaccedilotildees que abrem ou natildeo espaccedilo ao

exerciacutecio do desejo conflitos entre seus agentes professores alunos funcionaacuterios Entendemos

que a medicalizaccedilatildeo eacute muito frequentemente um saber que se impotildee sobre a escola tal qual um

deus ex machina nas circunstacircncias em que seus agentes se esbarram com o limite de seu fazer

e delegam seu posto a um outro saber ndash reconhecido cientiacutefico justificado bem-vindo ndash o

saber meacutedico Cabe agrave medicalizaccedilatildeo confirmar que seu saber fala a partir desse lugar divino

legitimado para que uma moral se instaure uma moral sobre corpos inquietos e dispersos que

satildeo os corpos das crianccedilas com TDAH No proacuteximo capiacutetulo nos aproximamos da forma como

autores da interface educaccedilatildeo e psicanaacutelise transmitem essa questatildeo e tentamos entender os

efeitos de um discurso medicalizante a partir do lugar do deus ex machina na cena escolar

Queremos destacar aqui o meacutetodo que utilizamos na escrita deste trabalho que consiste

em tomar elementos estruturais de um campo outro para ler uma questatildeo inquietante de nosso

tempo Haacute uma transiccedilatildeo do mundo traacutegico ao ensinamento moral Dessa passagem que ocorreu

com os gregos pensamos que haacute uma estrutura possiacutevel de ser tomada para ler o que opera

162

nesse apelo ao saber meacutedico na escola Percorremos nosso caminho de pesquisa tomando um

acontecimento para ao analisaacute-lo destacar dele elementos estruturais que permitem fazer

emergir novos sentidos em um outro acontecimento

163

4 EDUCAR E SEUS IMPASSES

No primeiro capiacutetulo deste trabalho mostramos que o mal-estar que atinge as crianccedilas

em idade escolar nomeado de TDAH chegou a patamares epidecircmicos Diante disso haacute muitas

prescriccedilotildees de metilfenidato para esse problema que localizamos no corpo Nesse sentido a

alternativa que parecemos buscar para educar as crianccedilas desatentas e hiperativas de nosso

discurso eacute a medicalizaccedilatildeo diagnosticando e medicando os alunos reais considerando que haacute

segundo Mannoni (2003) as crianccedilas faladas e as crianccedilas em carne e osso A intervenccedilatildeo

medicamentosa sobre o aluno em pessoa produz efeitos sobre o aluno falado

Como dissemos este trabalho pretende se guiar pela psicanaacutelise com o que atraveacutes dela

tambeacutem portamos de limites Haacute para essa teoria um limite insuperaacutevel na educaccedilatildeo um

impossiacutevel do educar De acordo com Freud (19251996b) educar eacute uma profissatildeo como

psicanalisar e governar impossiacutevel Os trecircs fazeres se datildeo por meio da linguagem de palavras

que guardam em si contradiccedilotildees jaacute que podem constituir sentidos diversos na medida em que

vatildeo sendo encadeadas de acordo com quem fala e quem escuta

No entanto ainda que haja uma impossibilidade como lembra Leandro de Lajonquiegravere

soacute eacute possiacutevel educar com as palavras

[] natildeo haacute educaccedilatildeo que natildeo se sirva de uma liacutengua e portanto que natildeo pressuponha a linguagem Mais ainda como a estrutura da linguagem eacute de natureza remissiva ou seja trata-se de uma rede de diferenccedilas o transmitido via uma liacutengua estaacute condenado tanto a se repetir quanto a diferir [] Com efeito essa contradiccedilatildeo insuperaacutevel inviabiliza o fato do aprendiz vir a ser uma reacuteplica do mestre e natildeo como agraves vezes se pensa a mesmiacutessima transmissatildeo educativa [] Assim agrave medida que essa tensatildeo contraditoacuteria eacute equacionada a educaccedilatildeo vira um fato ou em outras palavras o equacionamento da impossibilidade de fabricar replicantes torna a priori possiacutevel que a educaccedilatildeo venha de fato a acontecer (LAJONQUIEgraveRE 1997 p 39)

O reconhecimento do limite das nossas palavras em direccedilatildeo ao outro pode permitir a

elaboraccedilatildeo de uma equaccedilatildeo para o educar na qual estaraacute contida a impossibilidade da educaccedilatildeo

O ponto em que se situa a crianccedila com TDAH eacute o ponto em que justamente se encontra um

limite ao fazer do professor pois a crianccedila natildeo se comporta do modo como o professor lhe

pede e eacute muitas vezes natildeo se comportando da forma esperada que ela busca de algum modo

atender inconscientemente agraves demandas do Outro agrave linguagem agrave qual estaacute submetida na

tentativa de articular seu lugar subjetivo em diferentes espaccedilos em casa e na escola No entanto

164

na medida em que sua forma de interpretar o que dela desejam estiver distante da conduta

compartilhada entre seus pares na escola ndash que ainda que de modos diferentes conseguem

acompanhar a rotina cumprir tarefas ndash ela assume uma posiccedilatildeo tal que potildee em evidecircncia o

limite do educar

A resistecircncia aos moldes que nossa cultura arranja representada pela crianccedila hiperativa

eou desatenta pode fazer alguns professores ou professoras chegarem ao ponto de fracasso de

sua profissatildeo A professora do caso apresentado poderia ter pensado ldquoSe com todo arranjo

escolar e com minhas palavras em lugar de autoridade a crianccedila natildeo se ordena haacute um limite

meu mas porque certamente haacute um impossibilidade nela o TDAHrdquo E com isso a professora

renunciaria a seu papel encaminharia a crianccedila para a coordenaccedilatildeo acionaria matildee e psicoacuteloga

O fracasso portanto para a escola tomada pelo discurso medicalizante parece estar no

organismo do aluno O aluno com TDAH eacute causa do fracasso do professor e se natildeo fosse por

ele tudo correria bem (assim como pensou inicialmente a psicoacuteloga da histoacuteria ldquose natildeo fosse

pela escola e sua parceira teria dado tudo certordquo)

Tomando por referecircncia uma anaacutelise sobre o fenocircmeno do fracasso escolar realizada

por Lajonquiegravere (1997) para quem o fracasso eacute fruto de uma tentativa sintomaacutetica de situar o

impossiacutevel da fala entendemos que no caso da crianccedila com TDAH acontece algo semelhante

ela eacute tomada como causa do impossiacutevel do fazer do professor e nesse sentido haacute um

impedimento agrave sua presenccedila em sala de aula e por consequecircncia agraves palavras norteadoras do

educador que podem ingressaacute-la na educaccedilatildeo escolar Se pedir para o aluno sair da sala

encaminhaacute-lo para coordenaccedilatildeo e por fim medicaacute-lo fosse o modo de equacionar a educaccedilatildeo

escolar ou ainda se esse transtorno fosse realmente o impossiacutevel da educaccedilatildeo com o qual

devemos lidar talvez hoje trabalhariacuteamos melhor com o mal-estar natildeo haveria educadores

adoecidos por conta disso e o mal-estar gerado pelas crianccedilas com TDAH natildeo existiria O

sintoma quando natildeo escutado tende a se repetir

O ponto de limite enunciado pela escola o que faz com que peccedila ajuda eacute produzido por

um discurso que se trama com o discurso medicalizante Natildeo eacute o mesmo lugar em que estaacute a

impossibilidade da educaccedilatildeo da qual fala a psicanaacutelise Entendemos que as coisas se formam

da seguinte maneira atraveacutes da psicanaacutelise Freud diz que o ato educativo se faz com o

impossiacutevel intriacutenseco ao educar A escola com o discurso medicalizante parece querer educar

sem o impossiacutevel Mas como natildeo se educa sem a impossibilidade intriacutenseca ao educar ndash

165

lembrando que se educa com palavras ndash a escola parece renunciar agrave sua tarefa com aquelas

crianccedilas que representam para ela um limite

Produzimos um impedimento que toma o lugar do impossiacutevel da linguagem justamente

porque natildeo podemos com ele O limite produzido em nosso discurso ou seja a

psicopatologizaccedilatildeo eacute um limite sanado pela medicaccedilatildeo que dispensa a implicaccedilatildeo com o ato

educativo

Natildeo eacute tarefa faacutecil se fazer suporte dos limites da linguagem pois disso depende que

reconheccedilamos os limites de nosso proacuteprio acontecer como sujeito De certo modo em casos

que natildeo se bastam com os dispositivos educativos que criamos que precisam de uma funccedilatildeo a

mais temos que como educadores reviver a cena da imposiccedilatildeo de nossos limites tomar o lugar

do mestre que sabe por delegaccedilatildeo e de certa forma pagar a diacutevida simboacutelica de nossa filiaccedilatildeo

a uma cultura (LAJONQUIEgraveRE 1997)

No entanto se natildeo conseguimos reconhecer na crianccedila um pertencimento a uma tradiccedilatildeo

cultural eacute possiacutevel que estejamos presos a um certo ideal Haacute crianccedilas que conseguem

comportar-se como alunos idealizados pela escola jaacute que conseguem controlar seus corpos

ficam quietas quando lhe pedem fazem as tarefas quando lhe pedem sem deixar eacute claro de

ter seus momentos de espontaneidade Mas haacute crianccedilas como as diagnosticadas com TDAH

que satildeo tomadas pelo vieacutes psicopatoloacutegico jaacute que natildeo correspondem ao padratildeo Eacute verdade que

noacutes estamos sempre em certa medida distantes de um ideal Nessa medida que se vecirc a

necessidade da medicaccedilatildeo ou natildeo Mas nunca eacute questionado o padratildeo ele eacute dado a priori

Parece-nos que a medicaccedilatildeo poderia fazer o esforccedilo de igualar ou pelo menos aproximar

a crianccedila hiperativa e desatenta ao ideal de comportamento tomando o lugar das palavras Que

sujeitos formamos assim Lajonquiegravere (1997) comenta que haacute em cada adulto uma fantasia que

se realiza ao ver sua infacircncia projetada em uma crianccedila de seu conviacutevio com a esperanccedila de

que ela escape das proibiccedilotildees e obrigaccedilotildees impostas pela realidade

[] cada vez que um adulto se endereccedila a uma crianccedila natildeo eacute improvaacutevel que experimente a queda de vir a poupaacute-la de todo tipo de restriccedilotildees Infelizmente se porventura assim o for a legalidade educativa natildeo pode menos do que acabar sendo embaralhada (LAJONQUIEgraveRE 1997 p 40)

No caso das crianccedilas medicadas haacute de certo modo uma suspensatildeo do dever do adulto

para com a crianccedila em transmitir-lhe palavras ordenadoras capazes de ajudaacute-la a articular seu

desejo agrave realidade agrave cultura compartilhada Eacute como se os adultos delegassem tal tarefa ao

166

especialista ou ao medicamento esperando que ele cumpra a funccedilatildeo da legalidade educativa

Tal forma de conduta livra o adulto de ter que reviver a sua proacutepria histoacuteria com a crianccedila e de

pagar a diacutevida simboacutelica de sua existecircncia

Como o ato educativo eacute possiacutevel na medida do equacionamento de uma diacutevida simboacutelica ou seja do reconhecimento de uma obrigaccedilatildeo por parte do adulto em posiccedilatildeo de mestre entatildeo constitui um paradoxo mortal pretender educar e ao mesmo tempo almejar que as leis percam sua validade perante as crianccedilas Em outras palavras todo ato educativo alimentado pela ilusatildeo de que a crianccedila possa de direito vir a driblar a lei estaacute a priori condenado ao fracasso uma vez que se auto-esvazia Isso eacute inevitaacutevel pois quando o adulto almeja poupar agrave crianccedila das restriccedilotildees inerentes em uacuteltima instacircncia agrave lei da vida humana abre a possibilidade de uma exceccedilatildeo que mina os proacuteprios fundamentos do ato educativo ndash o fato de o adulto estar engajado no mesmo apenas em cumprimento de um dever-ser existencial Natildeo haacute do que nos surpreender ou todos estamos obrigados por igual ou natildeo haacute lei (LAJONQUIEgraveRE 1997 p 40)

41 A medicalizaccedilatildeo como deus ex machina na escola e seus efeitos

O discurso medicalizante participa de nosso laccedilo social e portanto estaacute presente na

escola e em outros ambientes sociais e educacionais Nesse sentido produzimos deus ex

machina na escola a fim de encontrar uma soluccedilatildeo medicalizante para um problema escolar

que venha de um fora de uma exterioridade Para ocupar esse lugar chamamos para a cena

escolar profissionais alheios a ela a fim de resolver problemas que os estudantes manifestam

em seu percurso de aprendizagem No momento em que agentes da educaccedilatildeo como professores

e pedagogos importam para o centro da accedilatildeo uma figura que teraacute como incumbecircncia a resoluccedilatildeo

de um problema que os paralisa que interrompe o fluxo da rotina escolar portam-se como o

autor da trageacutedia que diante de um impasse apela ao deus ex machina eximindo-se da

responsabilidade sobre o uacuteltimo ato

Diante de quais impasses os educadores sentem-se impotentes sentem que chegaram a

um limite intransponiacutevel precisam ldquosair de cenardquo e dar lugar a algueacutem de fora Eacute possiacutevel dizer

que os mais comuns envolvem problemas de aprendizagem e disciplina apresentados pelos

estudantes que frequentemente satildeo nomeados com transtornos disfuncionais a partir de uma

linguagem meacutedica que adentra o discurso de alguns educadores Dessa maneira acreditamos

ser o saber psicopatologizante a figura que frequentemente assume a funccedilatildeo de deus ex machina

na escola instalando-se de tal forma que impossibilita a accedilatildeo e o saber dos educadores

167

Stolzmann e Rickes (1999) confirmam esse argumento ao dizerem que eacute bastante

frequente o encaminhamento de crianccedilas para consultoacuterios da aacuterea ldquopsirdquo por uma iniciativa da

escola As queixas satildeo geralmente em torno de problemas de aprendizagem e de

comportamento forma que alguns entraves da constituiccedilatildeo subjetiva tomam na vivecircncia

escolar e sobre os quais os pais dos alunos ateacute entatildeo natildeo haviam produzido uma questatildeo Dessa

maneira para as autoras ldquoas dificuldades de aprendizagem entraram na ordem do dia

Tornaram-se as vilatildes de todas as mazelas que assolam o cotidiano escolar bem como o das

famiacutelias aiacute envolvidasrdquo (STOLZMANN RICKES 1999 p 40)

Podemos entender que ao longo do seacuteculo XX a medicina desenvolveu-se de forma a

garantir maior longevidade agrave populaccedilatildeo e a diminuir o sofrimento fiacutesico as dores e riscos de

vida em procedimentos meacutedicos graccedilas ao aprimoramento de teacutecnicas e ao avanccedilo da produccedilatildeo

de novos medicamentos para doenccedilas orgacircnicas especiacuteficas No entanto Moyseacutes e Collares

(2015) apontam que esse progresso cientiacutefico do uacuteltimo seacuteculo trouxe tambeacutem uma outra

vertente (que desemboca na escola) responsaacutevel pela exacerbaccedilatildeo diagnoacutestica de doenccedilas

consideradas orgacircnicas e pela consequente prescriccedilatildeo indiscriminada de medicamentos

avalizada pelo crescimento da induacutestria farmacecircutica conforme discutimos no iniacutecio deste

trabalho As autoras datildeo destaque agrave descriccedilatildeo de doenccedilas neuroloacutegicas que ao longo de cem

anos tornaram-se tatildeo especiacuteficas que hoje encontramos na literatura meacutedica transtornos que

envolvem apenas a aprendizagem e o comportamento para os quais haacute um tratamento

medicamentoso previsto

De acordo com Moyseacutes e Collares (2015) o espaccedilo escolar brasileiro jaacute retratado pelo

saber meacutedico desde o iniacutecio do seacuteculo XX ainda recebe atenccedilatildeo dessa aacuterea por ser um campo

de investigaccedilatildeo de ldquopretensas disfunccedilotildees neuroloacutegicasrdquo e nesse sentido atualmente ldquoa quase

totalidade dos discursos medicalizantes referem-se agrave dislexia TDAH (transtorno do deacuteficit de

atenccedilatildeohiperatividade) TOD (transtorno de oposiccedilatildeo desafiadora) e outros supostos

transtornos inventados a cada dia pela Associaccedilatildeo Psiquiaacutetrica Americanardquo (MOYSEacuteS

COLLARES 2015 p 68)

Na medida em que o Manual Diagnoacutestico e Estatiacutestico de Transtornos Mentais o DSM

manual de referecircncia internacional que se encontra em sua quinta ediccedilatildeo recolhe sintomas

presentes no cenaacuterio educativo e os distribui em transtornos mentais eacute compreensiacutevel que tais

classificaccedilotildees despertem o interesse de educadores que observam seus alunos diariamente O

que parece erguer-se como efeito colateral da curiosidade docente eacute com frequecircncia uma

168

desautorizaccedilatildeo do saber proacuteprio aos professores perante um campo do conhecimento

consolidado e criterioso que se propotildee na condiccedilatildeo de saber exatamente o que se passa com o

aluno que apresenta dificuldades em seu percurso escolar Natildeo eacute raro que diante do saber

meacutedico o professor veja minguar o que pode seu saber pedagoacutegico e acabe por recorrer a um

recurso externo ao cenaacuterio educativo como forma de desdobrar os impasses proacuteprios a esse

cenaacuterio ndash qualquer semelhanccedila com o papel desempenhado pelo deus ex machina na trageacutedia a

partir de Euriacutepedes natildeo nos parece mera coincidecircncia

Entendemos que seja assim que expressotildees como ldquohiperativordquo ldquodesatentordquo ldquodisleacutexicordquo

entre outras adentram a cena escolar na tentativa de nomear o sintoma desconhecido que

irrompe no comportamento de dar conta e de entender o que acontece com o estudante que natildeo

aprende Fazem parte de um discurso social patologizante do espaccedilo educativo de nosso tempo

O diagnoacutestico no campo meacutedico pode servir de buacutessola a apontar o norte para

tratamentos e intervenccedilotildees medicamentosas visando agrave sauacutede do paciente No lugar de doentes

tendemos a confiar nos caminhos apontados pelo especialista pois sendo ele delegado do saber

da medicina conhece as causas de nosso padecimento orgacircnico e eacute capaz de indicar as melhores

alternativas para atenuar os sintomas e promover a cura da doenccedila A posiccedilatildeo que meacutedicos

assumem em nossa cultura geralmente eacute a de detentores do saber sobre o que causa nosso

sofrimento Eacute possiacutevel que a presenccedila do especialista na escola se decirc no mesmo arranjo talvez

ele natildeo assuma um novo lugar no jogo de relaccedilotildees entre os agentes da educaccedilatildeo lembrando

que ele eacute convocado na cena escolar a falar a partir desse lugar ou seja de saber sobre o outro

de legislador das accedilotildees educativas Sendo assim ao tomar os sintomas da educaccedilatildeo como

sintomas meacutedicos o discurso psicopatologizante pode nublar o horizonte e paralisar a

caminhada Por quecirc Porque o modo como se organiza o campo meacutedico natildeo eacute o modo como se

arranja o campo educativo

O ofiacutecio de educar eacute um ofiacutecio que depende da fala e das marcas que a palavra pode

produzir sobre quem fala e quem escuta e nesse sentido a educaccedilatildeo constitui um cenaacuterio em

que circulam afetos e significantes abertos a novos sentidos Significantes que emergem num

jogo de relaccedilotildees entre eu e o outro num espaccedilo em que surgem impasses que podem

paradoxalmente carregar em seu enunciado as pistas para o desenho de uma saiacuteda Mas para

que essa saiacuteda seja desenhada seraacute necessaacuterio apostar na dimensatildeo produtiva do conflito que

se natildeo pode ser resolvido de forma integral pode em sua dimensatildeo de impossiacutevel

apaziguamento absoluto relanccedilar o caminho e ver surgir prosseguimentos criativos para a

169

empreitada educativa Eacute desse modo que a arte traacutegica pode nos inspirar a tomarmos caminhos

desejantes

Maria Cristina Kupfer (1999) atenta para a relaccedilatildeo existente entre o sintoma e o discurso

social Eacute possiacutevel considerar o problema de aprendizagem como um sintoma social pois para

a autora ele estaacute inscrito no discurso social dominante do campo da educaccedilatildeo Ou seja os

sintomas manifestados pelos estudantes satildeo produzidos no interior das relaccedilotildees escolares a

partir dos significantes presentes no discurso social da escola e se devem propriamente agraves

interaccedilotildees entre os sujeitos nesse campo Desse modo o aluno natildeo pode ser o uacutenico responsaacutevel

por seu sintoma como se ele portasse individualmente uma doenccedila Eacute preciso entender o

sintoma como produto da cena escolar como um impasse que toca o fazer de todos que

constituem essa rede de relaccedilotildees Considerar o sintoma de aprendizagem escolar como uma

questatildeo individual eacute recalcar o sujeito ndash que se estrutura no laccedilo ao outroOutro ndash como

elemento crucial da equaccedilatildeo que pensa os avatares da relaccedilatildeo ensino-aprendizagem

Na esteira de uma perspectiva que toma o sintoma de aprendizagem como produccedilatildeo de

um indiviacuteduo vemos se instalar no cotidiano escolar uma verdadeira epidemia de diagnoacutesticos

de Transtornos de Hiperatividade com Deacuteficit de Atenccedilatildeo Bernardino (2015) atenta para o

efeito iatrogecircnico da atribuiccedilatildeo de um diagnoacutestico fechado para uma crianccedila que se encontra

num processo de construccedilatildeo de sua identidade jaacute que ela pode se agarrar a um traccedilo

identificatoacuterio que proveacutem de um saber anocircnimo cientiacutefico e imperativo e com isso natildeo

encontrar um lugar de filiaccedilatildeo na rede simboacutelica Dessa forma dizer para a crianccedila que

apresenta dificuldades na escola que ela eacute ou porta um transtorno de aprendizagem eacute contribuir

para a cristalizaccedilatildeo de seu problema jaacute que ldquoo sujeito sofre justamente dessa ausecircncia de

significantes familiares que lhe possam indicar um lugar na filiaccedilatildeordquo (BERNARDINO 2015

p 54)

De acordo com Kupfer (1999) os problemas de aprendizagem vivenciados pelos

estudantes no acircmbito da educaccedilatildeo escolar satildeo produzidos por um conflito um impasse a forma

de aprender do sujeito aluno a qual a autora nomeia de ldquoestilo cognitivordquo choca-se com o

discurso social dominante da escola o qual circunscreve o estilo do aluno em ideais de bom ou

mau desempenho ou comportamento Por exemplo um aluno que se demora na apreciaccedilatildeo de

uma leitura pode ser considerado um aluno lento que natildeo segue um ritmo de aprendizagem

idealizado pela escola pois este se pauta no discurso social da rapidez da prontidatildeo Na

170

tentativa de responder a esse ideal o estudante pode vir a fracassar jaacute que o seu estilo de

aprender natildeo encontra valor no acircmbito da escola

A epidemia diagnoacutestica eacute muitas vezes acompanhada de uma prescriccedilatildeo maciccedila do

metilfenidato mais conhecido pelo seu nome comercial Ritalina conforme discutido na

primeira parte deste trabalho Por se tratar de um psicotroacutepico atua no sistema nervoso central

e seus efeitos aparecem no comportamento do aluno que se modifica enquanto o remeacutedio agir

sobre o organismo

A prescriccedilatildeo maciccedila dessa medicaccedilatildeo acaba por desembocar em chistes entre os

professores que solicitam a adiccedilatildeo de Ritalina agrave caixa drsquoaacutegua da escola Essa forma jocosa de

se referir agrave entrada da medicaccedilatildeo na cena escolar imiscuiacuteda na aacutegua de forma anocircnima sem

estar incluiacuteda em qualquer relaccedilatildeo transferencial chama atenccedilatildeo Eacute a essa indicaccedilatildeo sem rosto

que recalca a dimensatildeo transferencial ndash e com ela o sujeito ndash em causa na prescriccedilatildeo de uma

soluccedilatildeo a um conflito que acaba por corresponder uma suspensatildeo da responsabilidade dos

atores escolares pela construccedilatildeo de uma saiacuteda aos conflitos que emergem no transcurso das

relaccedilotildees de ensino-aprendizagem

Assim o que importa atentar eacute para a posiccedilatildeo que o medicamento vem ocupar no

cotidiano escolar A medicaccedilatildeo entra na cena como a promessa de uma resoluccedilatildeo para o impasse

e acaba desresponsabilizando seus atores a crianccedila que estaacute aprendendo a suspender o interesse

em seu entorno para focar sua atenccedilatildeo na resoluccedilatildeo de uma tarefa de forma a manter-se atenta

mesmo quando algo curioso atravessa seu caminho ou ainda quando se frustra por natildeo conseguir

chegar a bom termo nas primeiras tentativas o professor que estaacute construindo alternativas para

fisgar o desejo de aprender da crianccedila a escola que estaacute elaborando as vias de servir de suporte

para ambos mantendo a aposta em que com o tempo se chegaraacute a um bom termo na empreitada

educativa mesmo quando o avanccedilo tropeccedila nos desequiliacutebrios proacuteprios agrave aprendizagem e

parece patinar sem sair do lugar A reflexatildeo deve recair sobre a forma como a medicaccedilatildeo pode

entrar no jogo de relaccedilotildees entre os atores escolares como um deus ex machina que economiza

o tempo necessaacuterio para que nas idas e vindas por uma arena conflituosa chegue-se a uma

ldquosoluccedilatildeordquo

Outro risco que se acaba por correr eacute de que o estudante se torne condicionado ao uso

do metilfenidato para conseguir ter um miacutenimo de controle sobre o seu corpo e sobre seu objeto

de atenccedilatildeo Ou seja a quietude e a atenccedilatildeo demandadas pela escola natildeo decantam do que se

vive na cena escolar mas satildeo artificialmente produzidas pelo organismo de um indiviacuteduo que

171

pode estar denunciando com seus sintomas a imperfeiccedilatildeo do sistema de ensino (MOYSEacuteS

COLLARES 2015)

Dany-Robert Dufour (2005) fala que quando haacute um fracasso da autoridade da palavra

na arte de educar a alternativa que surge eacute a da prescriccedilatildeo medicamentosa Eacute o que ocorre

quando a escola se abre ao discurso medicalizante a partir do qual pensa que se natildeo

conseguimos educar os alunos a saiacuteda eacute medicaacute-los Para o autor isso faria parte de uma

negaccedilatildeo geracional em que natildeo haacute responsabilidade pela transmissatildeo da cultura que pode

ocorrer pela via da palavra

Maneiro e Minnicelli (2013) chamam atenccedilatildeo para a tendecircncia que existe hoje nos

espaccedilos onde circulam crianccedilas e adolescentes de transmissatildeo pela via do orgacircnico e geneacutetico

ou seja do palpaacutevel e material jaacute que esse modo de transmitir alcanccedila uma melhor compreensatildeo

das pessoas Assim a infacircncia vai se enclausurando em diagnoacutesticos e tratamentos que a

excluem

Monteiro (2013) considera fundamental o jogo de relaccedilotildees formado no espaccedilo escolar

para pensarmos a indicaccedilatildeo de problemas de aprendizagem A autora nos ajuda a problematizar

o encontro do aluno com seu educador atribuindo grande importacircncia agrave posiccedilatildeo ocupada pelo

professor em sua funccedilatildeo de educar Se o professor se apresentar como algueacutem que deteacutem um

saber absoluto fechado que tem o intuito de transmitir apenas certezas e garantias o aluno

pode natildeo encontrar espaccedilo para duacutevidas uma brecha para produzir suas questotildees e assim a

educaccedilatildeo pode natildeo fazer sentido para ele Da mesma forma o aprender na escola pode natildeo ter

sentido pode natildeo propiciar uma experiecircncia de aprendizagem ao aluno quando o educador se

apresentar como algueacutem que natildeo sustenta o lugar de fala que se desautoriza e se sente impotente

em sua funccedilatildeo de transmissatildeo Assim de acordo com Monteiro (2013) muitos sintomas que

constituem o chamado fracasso escolar satildeo decorrentes do modo como o professor se relaciona

com o lugar de saber e de como ele o apresenta aos seus alunos

Talvez os sintomas do TDAH desatenccedilatildeo e hiperatividade deixem de causar

preocupaccedilatildeo quando o educador puder supor que haacute ocasiotildees em que algo de sua fala pode

fisgar os alunos em seu desejo de aprender produzindo como efeito a atenccedilatildeo dos estudantes agrave

sua aula mas que tambeacutem as crianccedilas podem aprender fora dos contornos de sua intervenccedilatildeo

em momentos em que estiverem desatentas agrave aula circulando pela sala ou conversando Ou

seja a escola pode ser rica em momentos nos quais o que desperta o interesse das crianccedilas estaacute

172

para aleacutem da sala de aula e dos conteuacutedos curriculares e tambeacutem nesses momentos eacute possiacutevel

aprender alguma coisa

Ainda que aqui estejamos tomando a figura do professor como equivalente agrave figura do

educador entendemos que o professor eacute um educador na medida em que sua funccedilatildeo social eacute

educar da mesma forma que qualquer adulto que se dirigir a uma crianccedila no intuito de educaacute-

la filiaacute-la a uma tradiccedilatildeo cultural tambeacutem poderaacute ser considerado educador jaacute que seu ato

poderaacute inscrevecirc-la num mundo de coacutedigos compartilhados

Acreditamos que eacute com a trama das relaccedilotildees escolares e das produccedilotildees do estudante no

espaccedilo educativo que ele pode encontrar uma forma de desenlace para os conflitos que

experimenta um desenlace que tambeacutem daacute lugar ao dionisiacuteaco na educaccedilatildeo o qual emana do

jogo entre agentes escolares Eacute possiacutevel pensar um desenlace criado com os personagens que

fazem o enredo sem que seja necessaacuteria a produccedilatildeo de um fora o qual denominamos deus ex

machina e que a medicalizaccedilatildeo vem a ocupar Como a histoacuteria poderia seguir para que o

desenlace se torne ldquoreenlacerdquo

42 A falta como operadora da criaccedilatildeo

Da apreciaccedilatildeo do traacutegico na trageacutedia antiga e do comentaacuterio de Lacan sobre a Antiacutegona

de Soacutefocles apresentados na segunda parte deste trabalho recolhemos a eacutetica psicanaliacutetica e o

operar significante que conduz agrave criaccedilatildeo ex nihilo Para situar este fabricar com o vazio Lacan

toma por metaacutefora a atividade do oleiro ao produzir o vaso talvez o significante mais antigo

modelado pelo humano Na accedilatildeo de fazer esse objeto material o oleiro acaba por criar um

vazio e a perspectiva de preenchecirc-lo o que lhe eacute inerente Nesse sentido o vaso eacute um lugar

vazio de significante que permite que se deslindem outros significantes A partir dessa

representaccedilatildeo entendemos que uma rede simboacutelica se sustenta com um nihilo criado por noacutes

contornado pelo nosso fazer pela nossa accedilatildeo

Lembramos aqui a noccedilatildeo grega de Khocircra apresentada do segundo capiacutetulo entendida

como lugar de passagem onde as coisas tomam forma e se transformam em outras receptaacuteculo

molde Derrida (1995) enfatiza sobretudo o vir a ser o vir a se tornar que tal conceito filosoacutefico

provoca observando a condiccedilatildeo de operar de moldar significantes as potencialidades de criar

uma terceira via um terceiro gecircnero um entrelugar sem secirc-lo

173

Conforme a trageacutedia Antiacutegona tomada como exemplo por Lacan (1959-19601997) ateacute

mesmo o lugar da intervenccedilatildeo divina pode ser situado de acordo com a perspectiva ex nihilo

lugar este situado na fala da personagem como lei simboacutelica que a governa Assim podemos

questionar a presenccedila de um deus ex machina como princiacutepio ordenador na medida em que natildeo

for fruto de nosso fazer e na medida em que natildeo entrar como significante na cadeia mas como

uma significaccedilatildeo total fechada

De acordo com Lacan a criaccedilatildeo ex nihilo remonta agrave criaccedilatildeo de um vazio como o que

decanta da trama significante que o sujeito mobiliza em sua emergecircncia Eacute justo esse vazio que

a resposta medicamentosa procura obturar sem considerar poreacutem que o funcionamento

simboacutelico depende de que esse vazio continue operativo para colocar a maacutequina da vida a girar

Manter a casa do enigma vazia natildeo preenchecirc-la com a resposta medicamentosa

depende da condiccedilatildeo construiacuteda pelo coletivo da escola ndash certamente natildeo se trata de uma

construccedilatildeo de responsabilidade individual do professor ndash de suportar por um periacuteodo de tempo

o impasse que a educaccedilatildeo de certo aluno inscreve e buscar constituir com ele um desenlace A

ldquosoluccedilatildeordquo certamente seraacute fruto de uma invenccedilatildeo e por conta disso por mais que possa orientar

novas invenccedilotildees natildeo teraacute o atributo de poder ser ofertada a todo e qualquer aluno

Por meio de um trabalhar conjuntamente na escola que se faz ex nihilo do nada que

considera os sintomas do TDAH como significantes de outra coisa que bordejam um vazio em

nossa fala que limita um campo possiacutevel e impossiacutevel do nosso dever podemos talvez ir mais

longe mais aleacutem do diagnoacutestico com nossas alternativas educacionais Assim conscientes da

nossa constituiccedilatildeo subjetiva em torno da falta encontramo-nos numa travessia desejante que

pode operar pela via da criaccedilatildeo Uma invenccedilatildeo ocorre pelo operar significante pela produccedilatildeo

de um vazio onde se assenta a condiccedilatildeo de uma experiecircncia subjetiva e o desejo de criar Se no

lugar do vazio o que resultar de nosso fazer eacute uma soluccedilatildeo sob a forma de um deus ex machina

representado por especialistas da sauacutede remeacutedios diagnoacutesticos roacutetulos enfim o que restaria

de condiccedilotildees para a emergecircncia do sujeito no campo escolar

Dissemos que o professor ao se relacionar com o saber de determinada maneira ao

endereccedilar suas palavras aos estudantes iraacute refletir no seu aprendizado no seu desejo pelos

estudos ou em sua dispersatildeo e desrespeito Natildeo queremos contudo responsabilizar

unilateralmente o professor por tudo o que se passa com seus alunos Apenas lembrar que seu

modo de se posicionar ndash do professor e dos outros agentes escolares ndash guarda a potecircncia de

incidir de forma consequente sobre seus alunos

174

Se em seu fazer no endereccedilamento de suas palavras ao aluno ele considerar a forma

como o estudante se apresenta na escola seja atraveacutes da atenccedilatildeo seja atraveacutes da dispersatildeo o

professor se coloca como responsaacutevel sobre os efeitos de seu ensino ainda que os efeitos natildeo

tenham sido necessariamente provocados por ele a princiacutepio Eacute possiacutevel que um estudante com

sintomas de TDAH natildeo esteja ainda fazendo parte do laccedilo social proporcionado pela escola e

isso pode ser em decorrecircncia das questotildees mais diversas No entanto se o professor em seu

fazer agir com o aluno de modo a tomar os sintomas como efeito de sua fala ele pode estar

oferecendo uma possibilidade de laccedilo dando lugar ao sintoma O estudante por sua vez

encontra um outro a quem endereccedilar seu sofrimento e pode com isso sentir-se acolhido

escutado

Sabemos que um educador autorizado em seu saber e em seu fazer natildeo conquista tal

tarefa sozinho precisa de suporte da instituiccedilatildeo de ensino onde trabalha precisa de respaldo e

respeito da comunidade e das poliacuteticas puacuteblicas em educaccedilatildeo A questatildeo natildeo se resolve

facilmente Justamente por conta disso precisamos estar atentos aos deī ex māchinīs que se

instalam na cena escolar com a promessa de resoluccedilatildeo das dificuldades de aprendizagem

quando na verdade privam a possibilidade dos educadores e dos estudantes de descobrirem

juntos uma forma de desenlace ao impasse o que corresponderia no cenaacuterio educativo a uma

forma de laccedilo social na escola

O que nos resta o que a psicanaacutelise nos autoriza a fazer ndash o que atraveacutes da arte de seu

curvar(-se) agrave criaccedilatildeo do poeta como Freud e Lacan fazem diante dos tragedioacutegrafos gregos a

psicanaacutelise nos ensina a fazer ndash eacute construir um saber natildeo sobre o outro mas com o outro e

assim jaacute que Euriacutepides natildeo eacute o mais saacutebio dos poetas mas o segundo mais saacutebio haacute

possibilidade de encontramos as brechas os furos as vias abertas de criaccedilatildeo desejante em suas

peccedilas E nos desafiamos a pensar uma em especial que natildeo eacute qualquer uma mas aquela citada

por Aristoacuteteles aquela que apresenta uma exceccedilatildeo na apariccedilatildeo do deus ex machina quando agrave

espera da puniccedilatildeo divina somos surpreendidos pela divinaccedilatildeo de um ser humano uma mulher

onde talvez podemos encontrar um resiacuteduo do dionisiacuteaco entre elucubraccedilotildees filosoacuteficas

Estamos falando de Medeia

175

5 MEDEIA

51 ldquoAndarilha de incertas geografiasrdquo

De morada e cidade filhos natildeo careceraacute nenhum dos dois ausente a matildee apoacutes o adeus carpido Vou-me andarilha de incertas geografias frustracircnea na visatildeo do regozijo sem lhes doar adorno para o leito nupcial sem soerguer a tocha ao ceacuteu (Medeia vv 1021-1027)

Os estrangeiros deve-se sempre acolhecirc-los Eacute o que dizia a lei da hospitalidade

compartilhada entre gregos Tal lei eacute narrada no episoacutedio da Odisseia em que criados perguntam

ao rei Menelau se devem receber estrangeiros receacutem-chegados ou indicar a casa de algum

vizinho Indignado com a interrogaccedilatildeo o rei ordena que abram as portas sem nem mesmo

perguntar quem eram ou o que queriam os visitantes Um estrangeiro explica Menelau pode

ser um deus disfarccedilado e nesse sentido oferecer hospitalidade eacute tambeacutem respeitar os deuses

Jeanne Marie Gagnebin (2010) nos ajuda a estender a compreensatildeo da hospitalidade

grega Os estrangeiros acolhidos pelos gregos como os de que trata o episoacutedio da Odisseia

pertenciam aos limites geograacuteficos dominados pelos mesmos deuses falavam idioma

semelhante e se submetiam agrave liacutengua e agrave bondade do rei que lhes oferecia abrigo o que contribuiacutea

para reforccedilar seu poder e suas melhores qualidades Nesse sentido o acolhimento do estrangeiro

eacute possiacutevel na medida em que a identidade dos gregos natildeo estiver ameaccedilada pelo outro O que

poderia abalar as estruturas do mundo grego A descoberta de povos regidos por outras crenccedilas

outra liacutengua e cultura tatildeo desenvolvida quanto a grega como eacute o caso dos egiacutepcios Deparar-

se com algueacutem de lugar e de costumes diferentes dignos e vaacutelidos para seu mundo pode causar

no indiviacuteduo a experiecircncia de tambeacutem ver-se como outro estrangeiro para si Afinal o que eacute

mesmo e comum para o outro natildeo o eacute para mim e vice-versa Como restituir os limites e

contornos de minha identidade abalados pela presenccedila do outro

O filoacutesofo Soacutecrates jaacute mencionado neste trabalho como importante influecircncia na

trageacutedia de Euriacutepides eacute condenado agrave morte por sua habilidade em questionar preceitos morais

e costumes Define-se a si mesmo em Apologia de Soacutecrates como um estrangeiro em Atenas

176

ainda que fosse seu fiel cidadatildeo O que podemos entender desse duplo sentimento Eacute possiacutevel

sentir-se um outro em sua proacutepria casa Eacutedipo eacute um homem que preenche essas condiccedilotildees

A heroiacutena Medeia da trageacutedia de Euriacutepides de mesmo nome vive a radicalidade desta

dupla posiccedilatildeo estrangeira em Corinto geograacutefica e culturalmente persona non grata em sua

paacutetria Coacutelquida por ter traiacutedo o rei seu proacuteprio pai Na cidade grega para onde se mudara com

Jasatildeo vive a amargura da traiccedilatildeo do marido e se depara com o conflito de tornar-se uma cidadatilde

grega ou ser uma baacuterbara no sentido mais temido para os coriacutentios Quem eacute Medeia

Gagnebin (2010) lembra o socioacutelogo Georg Simmel para quem um estrangeiro eacute um

andarilho potencial ldquoo que introduz assim uma potencialidade viajante no seio da fixidez

justamente porque ele natildeo se contenta mais em passar mas se estabelece em um lugar que

como se diz natildeo eacute o seu abalando a estabilidade desse proacuteprio lugarrdquo (Gagnebin 2010 p 42)

A estrangeira Medeia perturbava a paz de Corinto pelas notiacutecias que circulavam sobre seu

passado pelo medo de que ela viesse a causar o mal novamente Nesse sentido apoacutes o abandono

de Jasatildeo ela eacute convidada a se retirar ou seja exilada com a cordialidade grega Entre o luto de

ser uma boa esposa e os pensamentos de vinganccedila decorrentes da fuacuteria pela traiccedilatildeo Medeia

coloca em evidecircncia sua estrangeiridade Percebe o quanto se deixou enganar por Jasatildeo e pelos

coriacutentios percebe em si uma cidadatilde quase grega oscila entre desejar a proacutepria morte e realizar

a mais terriacutevel das vinganccedilas Como sustentar sua pertenccedila sem corresponder ao que desejam

dela

Por um momento Medeia pensa em ir embora deixar os filhos na esperanccedila de que

sejam aceitos em Corinto e profere os versos que destacamos na epiacutegrafe O lugar de Medeia

talvez seja esse de ser andarilha potencial andarilha de incertas geografias sem paacutetria na

radicalidade de ser uma outra

De acordo com o tradutor da versatildeo biliacutengue consultada neste trabalho Trajano Vieira

(2010) a personagem Medeia aparece na mitologia grega nas Argonaacuteuticas que contam sobre

expediccedilotildees gregas no mar Negro Eacute atraveacutes do escritor alexandrino Apolocircnio de Rodes que

viveu no seacuteculo III aC que conhecemos a narrativa do mito de Medeia e dos feitos heroicos

de Jasatildeo

Segundo o mito Jasatildeo filho do rei da Tessaacutelia tem seu trono usurpado pelo tio quando

seu pai adoece Seu tio Peacutelias lhe confere uma importante tarefa como condiccedilatildeo de lhe entregar

o reinado recuperar uma reliacutequia de sua famiacutelia que estava sob a posse do rei Eeta da Coacutelquida

Tratava-se do tosatildeo velocino ou velo de ouro pelagem de um carneiro que tem propriedades

177

maacutegicas Quando Jasatildeo chega agrave terra estrangeira o rei Eeta filho do Sol e pai de Medeia

promete devolver a Jasatildeo o velo de ouro se o heroacutei cumprir trecircs difiacuteceis tarefas lavrar um campo

com dois touros monstruosos e semear no campo lavrado os dentes de um dragatildeo Desse plantio

nasceriam guerreiros os quais deveria derrotar Medeia apaixonada ajuda Jasatildeo no

cumprimento das tarefas atraveacutes de sua misteriosa sabedoria na produccedilatildeo de venenos

O rei da Coacutelquida furioso natildeo quer entregar o precircmio mas Medeia consegue mais uma

vez atrapalhar os planos do pai Oferece ao dragatildeo que guardava o velo de ouro uma substacircncia

que o faz dormir Jasatildeo e Medeia conseguem assim fugir para a Tessaacutelia depois de o viajante

ter pedido a princesa em casamento As nuacutepcias ocorrem durante a viagem Apsirto o irmatildeo da

moccedila persegue o casal pelo mar e eacute assassinado pelos argonautas com a ajuda de Medeia Ela

joga o corpo do irmatildeo ao mar para que seu pai se ocupe de buscaacute-lo em vez de persegui-la Na

terra de Jasatildeo Medeia faz com que as filhas do rei na esperanccedila de rejuvenescer o pai matem-

no envenenado Com isso os dois partem e encontram refuacutegio na cidade de Corinto Eacute nesse

lugar que se inicia a accedilatildeo cecircnica da trageacutedia de Euriacutepides Medeia cujo desenrolar conduz

Medeia a assassinar seus proacuteprios filhos o que faz com que fique conhecida como a terriacutevel

matildee infanticida Aleacutem da trageacutedia de Euriacutepides haacute outras versotildees contemporacircneas que

apresentam outras Medeias

Na trageacutedia musical de Chico Buarque Gota drsquoaacutegua haacute a adoccedilatildeo da invenccedilatildeo de

Euriacutepides cometida pela personagem Joana referecircncia clara agrave mulher traiacuteda Medeia Haacute

tambeacutem uma importante versatildeo cinematograacutefica de Pier Paolo Pasolini que se passa na mesma

eacutepoca da peccedila de Euriacutepides e traz o contraste entre o mundo miacutetico de Medeia e o mundo

pragmaacutetico de Jasatildeo

As duas obras citadas satildeo bastante conhecidas mas sabemos que existem outras

encenaccedilotildees propostas de tempos em tempos que optam ou natildeo pelo filiciacutedio O espetaacuteculo

Medeia Vozes da Tribo de Atuadores Oacutei Noacuteis Aqui Traveiz opta por apresentar uma versatildeo

do mito em que Medeia natildeo comete o filiciacutedio Enfatiza as diferenccedilas culturais entre a Coacutelquida

oriental e a Greacutecia ocidental aleacutem de questionar as relaccedilotildees de poder implicadas na

transmissatildeo do mito por Euriacutepides que coloca Medeia como a baacuterbara infanticida a ser banida

Em contraponto a outras versotildees o espetaacuteculo a toma como o bode expiatoacuterio perseguido por

aqueles que detecircm o poder

Na peccedila Medeia diante dos filhos mortos apedrejados pelos cidadatildeos de Corinto fala

que os coriacutentios a acusam de ela mesma ter matado os filhos ldquoQuem acreditaraacute em mimrdquo

178

pergunta ao puacuteblico que passa repensar sobre o mito que conhece Vale dizer que o grupo

teatral inspirou-se no livro homocircnimo da escritora alematilde Christa Wolf para criar a encenaccedilatildeo

Wolf rejeita que Medeia tenha cometido qualquer um dos crimes de que eacute acusada parriciacutedio

fratriciacutedio filiciacutedio entre outros A escritora sustenta que a imagem de uma mulher vingativa

e cruel foi mantida durante milecircnios como forma de apagar a imagem de uma feiticeira poderosa

(MELO 2014)

A encenaccedilatildeo da Tribo de Atuadores Oacutei Noacuteis Aqui Traveiz inova natildeo apenas por livrar

Medeia dos crimes mas tambeacutem na forma como propotildee o desenlace Em vez de sair de cena ex

machina conforme a versatildeo euripidiana protegida por Heacutelios solar Medeia eacute condenada a

vagar sem rumo sem louvores a seu caraacuteter sem aplausos do puacuteblico (pois natildeo retorna para

recebecirc-los) Sai de cena como andarilha errante num lugar de exiacutelio eterno ou como propotildee

Melo (2014) condenada ao natildeo lugar Mesmo destino sem registro de Eacutedipo

52 Medeia de Euriacutepides

A peccedila do tragedioacutegrafo se passa em Corinto A princesa estrangeira e Jasatildeo satildeo casados

e tecircm dois filhos Contudo Jasatildeo trai o laccedilo que tinha com Medeia ao noivar com Glauce filha

do rei Creonte Medeia eacute expulsa pelo rei pois ele a considera uma grande ameaccedila

principalmente agrave sua filha Apesar de ter chegado a Corinto como esposa de Jasatildeo um grego

ela natildeo havia deixado de ser estrangeira O rei reconhece que haacute nela uma cultura diferente

daquela compartilhada entre as pessoas do lugar Haacute um receio de que ela venha causar um mal

jaacute que tem um saber de uma ordem desconhecida conhece o poder das plantas e com elas sabe

produzir remeacutedios e venenos Aleacutem disso no passado foi uma pessoa destrutiva Justificado por

tais ameaccedilas Creonte a manda embora

De acordo com o Dicionaacuterio etimoloacutegico da mitologia grega (2013 p 208) o termo

ldquoMedeiardquo deriva do verbo μήδομαι ldquomeditar um projeto prepararrdquo e significa portanto ldquoa que

medita (um projeto)rdquo De acordo com Trajano Vieira (2010) Medeia deriva de ldquoimaginarrdquo

ldquotramarrdquo ldquoprepararrdquo e tambeacutem de ldquodesiacutegniordquo e ldquopensamentordquo

O que se sucede na histoacuteria Medeia solicita a Creonte apenas mais um dia para

organizar sua partida e pedir a Jasatildeo que aceite ficar com os filhos Apela a Creonte no lugar

de pai para que tenha compaixatildeo Com isso o rei concede mais um dia e Medeia ldquoaquela que

medita que arma um planordquo arranja sua saiacuteda Consegue exiacutelio com o rei Egeu com uma troca

179

que lhe propotildee ldquomeus faacutermacos daratildeo agrave luz os filhos de um sem-filhosrdquo Envenena Glauce e

Creonte que morrem mata os seus dois filhos anuncia a Jasatildeo seu triste fim e sai de cena ex

machina

De acordo com Guinsburg (1992) haacute pelo menos dois erros capitais cometidos por

Euriacutepides em sua trageacutedia Medeia Um quanto agrave forma como nos aponta Aristoacuteteles O outro

aceito pelo filoacutesofo grego mas criticado por Nietzsche eacute uma afronta agrave tradiccedilatildeo miacutetica O

primeiro diz respeito ao desenlace O segundo eacute quanto ao filiciacutedio

Quanto ao desenlace da accedilatildeo Aristoacuteteles comenta o seguinte ldquoEacute pois evidente que

tambeacutem os desenlaces devem resultar da proacutepria estrutura do mito e natildeo do deus ex machina

como acontece em Medeia []rdquo (Poeacutetica XV 1454a 33-36) Acreditamos no entanto com

base em Rebelo (1995) que existe uma diferenccedila importante nesse desenlace quando quem

ocupa o lugar do deus moralizador eacute uma pessoa justamente a heroiacutena do drama Quem entra

em cena atraveacutes da maacutequina eacute a proacutepria Medeia que embora presente desde a primeira cena

(res)surge ao fim na carruagem do Sol com os corpos dos filhos O ex-marido Jasatildeo a

abandonara com a prole para casar com a filha do rei Apesar de ter cometido um ato repulsivo

e impensaacutevel entre as mulheres de Corinto como diz Jasatildeo Medeia consegue ir embora sem

ser atingida por seus inimigos e na posiccedilatildeo divina que ocupa dita acontecimentos futuros

Quanto ao segundo erro natildeo existe referecircncia no mito de Medeia de origem bastante

remota sobre o assassinato dos proacuteprios filhos cometido por ela De acordo com Trajano Vieira

(2010) tradutor de Medeia o filiciacutedio foi uma criaccedilatildeo do tragedioacutegrafo Ou seja por alguma

razatildeo Euriacutepides considerou que seria cabiacutevel que Medeia matasse os filhos que teve com Jasatildeo

Trajano Vieira (2010) conta que eacute muito provaacutevel que Euriacutepides tenha proposto o

filiciacutedio inovando em sua concepccedilatildeo da histoacuteria No mito compartilhado entre os gregos antes

da apresentaccedilatildeo da peccedila euripidiana em 431 aC Medeia fugia de Corinto apoacutes assassinar a

princesa prometida a Jasatildeo e o rei Creonte Assim como apresenta a peccedila Medeia Vozes os

cidadatildeos eacute que matavam as crianccedilas e natildeo a matildee Aristoacuteteles menciona que Euriacutepides

modificava o mito o que eacute uma escolha que fere os preceitos de uma trageacutedia ideal a qual deve

ser fiel ao mito mas ainda assim trata-o como o mais traacutegico dos poetas provavelmente por

ousar trazer agrave cena os limites aos quais os heroacuteis podem chegar com suas accedilotildees Desse modo

na versatildeo apresentada por Euriacutepides o assassinato cometido pela protagonista aparece

superficialmente como uma vinganccedila decorrente da traiccedilatildeo do marido

180

521 Hoacuterkos

De acordo com Vieira (2010) natildeo haacute uma justificativa passional no crime natildeo haacute ciuacuteme

de Medeia em relaccedilatildeo a Jasatildeo pois natildeo fica expliacutecita uma ligaccedilatildeo afetiva forte entre os dois

pelo menos na peccedila euripidiana Medeia mata as crianccedilas assim como comete outros

assassinatos porque Jasatildeo quebra um acordo um comprometimento que os dois tinham

firmado desde a conquista do velo de ouro ldquoNatildeo eacute da manifestaccedilatildeo afetiva que Medeia sente

falta mas da manutenccedilatildeo do compromisso A traiccedilatildeo decorre do fato de o ex-esposo natildeo

preservar o conjunto de favores proporcionados por ela em seu peacuteriplo bem-sucedidordquo

(VIEIRA 2010 p 158) O peacuteriplo bem-sucedido eacute relembrado por Medeia em seu primeiro

diaacutelogo com Jasatildeo apoacutes o edito de expulsatildeo realizado por Creonte

[] quem salvou tua vida os gregos sabem todos os nautas de Argo quando em touros fogo- -arfantes impuseste o jugo quando semeaste o campo que abrigava a morte E a serpente-vigia que abraccedilava com a rosca de aneacuteis o velo de ouro assassinei e fiz jorrar a luz Traiacute morada e pai ao vir contigo [] Homuacutenculo me pagas como Enganando-me ao leito ainda virgem depois que procriei (Medeia vv 475-490)

Qual o motivo da fuacuteria de Medeia com Jasatildeo O fato de ele natildeo ter cumprido a sua

promessa natildeo ter feito exatamente o que Medeia esperava dele Medeia queria que Jasatildeo tivesse

domiacutenio absoluto sobre as suas palavras e accedilotildees Natildeo fica expliacutecito na peccedila precisamente o que

se passou entre os dois na Coacutelquida natildeo haacute uma prova de Jasatildeo dizendo que ficaraacute com Medeia

para sempre que a assumiraacute como digna esposa na Greacutecia e honraraacute eternamente o leito

matrimonial se ela o ajudar em sua difiacutecil jornada Mas eacute assim que Medeia toma a proposta

de Jasatildeo e eacute assim que ela lhe cobra Rompe seus viacutenculos com sua terra e com sua famiacutelia para

constituir novos laccedilos com Jasatildeo em um novo lugar Lembramos Antiacutegona que cumpre com

seu juramento em relaccedilatildeo ao pedido do irmatildeo Polinices o de ser enterrado agrave custa de sua

proacutepria vida honrando as leis natildeo escritas

181

Como Jasatildeo natildeo cumpre a promessa da forma como ela espera ou seja um acolhimento

em solo estrangeiro e o lugar de esposa Medeia se volta para os filhos com uma forccedila destrutiva

vislumbrando neles o que tem que suportar como resto de suas escolhas e de seus planos

ldquoDobrou-me o mal mirar os dois natildeo eacute possiacutevelrdquo ela diz (Medeia vv 1076-1077) Essa eacute uma

maneira de entender o infanticiacutedio

De acordo com Oliveira (2007) o significante principal do drama de Euriacutepides que

amarra todos os outros da peccedila eacute hoacuterkos cujo significado eacute ldquojuramentordquo ou ldquoaquilo que

prenderdquo Ou seja eacute um significante que exerce na obra a funccedilatildeo de amarraccedilatildeo da mesma forma

que isso se refere ao seu significado Para Oliveira o campo do hoacuterkos estaacute fora dos domiacutenios

da Lei que organiza o mundo mitoloacutegico sob o ordenamento do grande Zeus Ou seja dentro

da dimensatildeo do juramento todos os acordos satildeo ainda precaacuterios pois estatildeo na iminecircncia de

natildeo serem cumpridos Com isso

[] a jura ou juramento pertence a um campo onde a Lei ainda natildeo estaacute propriamente instituiacuteda um campo onde ainda natildeo haacute o bem e o mal um campo para aqueacutem ou para aleacutem do bem e do mal e por conseguinte para aqueacutem ou para aleacutem da proacutepria Lei [] Eacute nesse contexto que temos que entender a posiccedilatildeo de Medeia Ela natildeo conhece propriamente o campo da Lei Ela jaacute tinha dado muitas provas disso antes de chegar a Corinto e continuaraacute dando provas disso mesmo quando de laacute partir A uacutenica coisa que organiza sua existecircncia e que lhe daacute um lugar na cidade ela que eacute sem cidade eacute a jura que Jasatildeo lhe fez (OLIVEIRA 2007 p 66)

Dessa forma na medida em que Jasatildeo natildeo honra a jura que tem com Medeia ou seja o

compromisso que tinha firmado por ter recebido ajuda na conquista do velo de ouro ela

experimenta um terriacutevel sentimento a destruiccedilatildeo de tudo o que havia constituiacutedo a partir da

uniatildeo com ele Medeia natildeo eacute grega eacute da Coacutelquida paiacutes baacuterbaro Ela eacute estrangeira sob o ceacuteu

grego e seu casamento com Jasatildeo eacute garantido apenas pelo hoacuterkos Quando desonrada por Jasatildeo

para Medeia natildeo resta garantia alguma a natildeo ser buscar um novo laccedilo que a sustente Oliveira

(2007) demarca os momentos da peccedila em que existe menccedilatildeo agraves juras de forma que organizam

a estrutura dramaacutetica a nutriz e o coro citam o juramento de Jasatildeo chamam Medeia de

desonrada Medeia acusa Jasatildeo de desonrar a diacutevida que deve a ela Medeia clama agrave deusa

Tecircmis guardiatilde das juras para interceder pelo seu destino o que tambeacutem eacute frisado pelo coro e

pela nutriz A respeito disso Oliveira (2007) argumenta que Medeia soacute pode reclamar aos

deuses e natildeo aos homens por seu compromisso desonrado Segundo ele como a jura natildeo

pertence ao campo simboacutelico da Lei a mulher precisa exigir o cumprimento da promessa no

182

campo do real o campo de onde os deuses podem intervir de modo inesperado tatildeo inesperado

quanto o seu ato de matar os proacuteprios filhos

Podemos entender que as accedilotildees de Medeia de matar seus filhos e em seguida fugir na

carruagem de Apolo estatildeo interligadas tomar ambas como inovaccedilotildees do mito O que nos

parece como leitores da peccedila eacute que fazia parte do jogo de relaccedilotildees entre os personagens que

Medeia cometesse sim uma accedilatildeo contra o descumprimento do hoacuterkos por parte de Jasatildeo visto

que ela abandona sua paacutetria ajuda-o na captura da pele dourada do carneiro alado escondida

pelo seu pai ajuda-o tambeacutem a vingar-se do tio tirano ndash todos esses satildeo acontecimentos

anteriores agrave peccedila e aqui caberia caso o autor assim desejasse o recurso deus ex machina de

acordo com a esteacutetica aristoteacutelica jaacute que isso natildeo eacute capaz de modificar o rumo da histoacuteria Mas

quem introduz a peccedila eacute a nutriz mulher cuidadora das crianccedilas registrando outra marca da

inovaccedilatildeo de Euriacutepides ou seja dar voz agraves pessoas sem prestiacutegio social

Aleacutem disso Medeia eacute expulsa de Corinto pelo rei No primeiro diaacutelogo que tem com

Jasatildeo eacute transparente fala de seu oacutedio e desejo de vinganccedila Em posterior conversa com o coro

de mulheres fala em matar a todos e fugir com os filhos mas sabe que natildeo seria acolhida em

lugar algum Ousamos dizer que um dos caminhos possiacuteveis para desenlace da peccedila buscando

o ideal aristoteacutelico seria aquele em que Medeia mataria noiva e pai e tentaria fugir com os

filhos As crianccedilas acabariam mortas pelos cidadatildeos conforme o mito Medeia acabaria morta

ao tentar entrar em nova cidade ou quem sabe tomaria algum veneno ao saber da morte dos

filhos e Jasatildeo sentiria grande dor e arrependimento destinado a uma vida infeliz Essa possiacutevel

versatildeo preservaria o mito e apresentaria a linha de accedilatildeo em decorrecircncia da desmedida de Jasatildeo

As accedilotildees de Medeia mostrariam seu caraacuteter vingativo e furioso e estariam de certa forma

contornadas pelos limites da trama

522 Sopheacute

A escolha de Euriacutepides eacute outra Medeia engana Jasatildeo e Creonte quanto a suas intenccedilotildees

enquanto arma o seguinte plano promete a Egeu um filho em troca de acolhimento em sua

terra Depois disso envia as crianccedilas com presentes envenenados para a princesa que

educadamente os aceita e os veste Ao ver a filha agonizar Creonte tenta tirar-lhe o veneno

mas tambeacutem morre envenenado Haacute expectativa de Medeia de que as crianccedilas tambeacutem fossem

183

acidentalmente atingidas pelo veneno No entanto o personagem que as conduz ao paccedilo real

o pedagogo frustra-a ao revelar que os meninos estatildeo a salvo

Aqui a histoacuteria poderia tomar novo rumo Bem poderia Medeia nesse ponto fugir ilesa

com os filhos Jasatildeo natildeo estaria vingado Natildeo para ela Apoacutes momentos de oscilaccedilatildeo em que

considera preservar a vida dos filhos Medeia parece despertar de repente de uma escolha que

natildeo reconhece como sua

Prejudicar crianccedilas em prejuiacutezo do pai natildeo dobra o mal Faraacute sentido Comigo natildeo adeus projetos aacuterduos O que se passa em mim Acertarei O escaacuternio de inimigos impunidos Que infacircmia ouvir de mim reclamos tiacutepicos de gente frouxa Ao rasgo de ousadia (Medeia vv 1046-1052)

Alegando atingir Jasatildeo pois supotildee que natildeo haveria dor maior do que esta a matildee decide

matar as crianccedilas Como os dois natildeo satildeo atingidos pelo veneno que levam agrave noiva do pai

Medeia acaba por mataacute-los com um punhal antes de sair de cena ex machina

Vieira (2010 p 158) comenta a raridade de tal desenlace ldquoEacute sem duacutevida impressionante

tal desfecho imagem que sugere antes a luminosidade e o futuro alvissareiro do que o pesar e

a puniccedilatildeo pelo ato macabro que estamos acostumados a ler nos epiacutelogos traacutegicosrdquo

Numa outra passagem Vieira (2010) comenta o quatildeo inusitado eacute o recurso do deus ex

machina em tal peccedila pois natildeo eacute propriamente um deus que desce do ceacuteu para exercer o

julgamento final e a puniccedilatildeo sobre os personagens como ocorria costumeiramente em trageacutedias

que terminavam com esse recurso ldquoComo interpretar esse final surpreendente de que estaacute

ausente o mecanismo de puniccedilatildeo divina [] A autonomia humana nos sugere um universo

novo em que a puniccedilatildeo natildeo eacute decorrecircncia necessaacuteria da accedilatildeo desmedidardquo (VIEIRA 2010 p

170)

Estaria mesmo ausente o mecanismo da puniccedilatildeo divina A accedilatildeo impune de Medeia eacute

desmedida ou fora muito bem arquitetada O assassinato dos filhos natildeo foi cometido num

momento de fuacuteria de descontrole das paixotildees mas executado num momento propiacutecio apoacutes o

envenenamento de Glauce apoacutes Medeia ter encontrado um lugar de exiacutelio junto a Egeu no seu

uacuteltimo dia em Corinto Eacute Medeia que encarna tal mecanismo divino ela eacute o deus ex machina

que age muito antes de subir agrave carruagem de Apolo Vieira (2010) parece concordar ao

184

compreender que Euriacutepides o proacuteprio autor eacute quem age atraveacutes de Medeia Tem-se a impressatildeo

de que ela eacute o ponto de articulaccedilatildeo de toda a peccedila pois os personagens agem conforme suas

vontades e sofrem de acordo com suas decisotildees Medeia tem um caraacuteter farsesco em que a

protagonista consegue manipular todos agrave sua volta iludi-los com intenccedilotildees falsas e ser bem-

sucedida em seus planos escapando ilesa

Vieira (2010) aponta que a ciecircncia de Medeia coincide com a ciecircncia de Euriacutepides Isso

aparece atraveacutes do significante sopheacute cujo radical estaacute presente 23 vezes no texto A

protagonista eacute assim denominada pelos outros personagens e por si mesma jaacute que reivindica a

si esse significante e por ele comete seus atos macabros Sopheacute de acordo com Vieira (2010)

eacute tambeacutem utilizado para designar caracteriacutesticas que apontam o autocontrole e a ponderaccedilatildeo de

Medeia aleacutem de indicar criaccedilatildeo e inovaccedilatildeo Eacute nesse ponto que a sua sophiacutea estaacute atrelada agrave de

Euriacutepides pois o ato ldquoinovadorrdquo de Medeia eacute tambeacutem o ato inovador do tragedioacutegrafo O

filiciacutedio ato destrutivo eacute um ato inaugurador inconcebiacutevel e impraticaacutevel pelos demais

cidadatildeos Assim aponta Vieira (2010)

Natildeo haacute nada de heroico em apunhalar crianccedilas indefesas mas natildeo eacute isso que Medeia reivindica O ineditismo de sua accedilatildeo passional confunde-se com o argumento dramaacutetico De certo modo Euriacutepides fala pela voz de sua personagem ao imaginar um enredo que se destaca pela novidade Nesse sentido o autor pode ser considerado um escritor moderno O ineditismo do ato que estaacute para praticar pelo qual Medeia se eterniza confunde-se com a originalidade do tema imaginado pelo autor Que o novo seja o horror eacute um aspecto secundaacuterio para um poeta que inventa uma personagem que insiste no caraacuteter novo da ldquosabedoriardquo implicada na accedilatildeo que estaacute por ocorrer [] (VIEIRA 2010 p 159)

O interesse de Euriacutepides em propor o filiciacutedio em sua obra pode ser motivado mais pela

tentativa de alccedilar uma originalidade do que problematizar o horror No entanto ao natildeo permitir

em sua Medeia que o horror do filiciacutedio seja elaborado em accedilatildeo ao natildeo inscrever um desenlace

que convoque o consolo metafiacutesico Euriacutepides acaba por sugerir outra coisa que a racionalidade

e a ciecircncia expandam seus limites de modo a engolfar dominar justificar legitimar o ato

destrutivo desembocando tal ato num ato criativo Lembremos que aqui o que natildeo tem

reconhecimento ou legitimidade eacute o dionisiacuteaco esse aspecto da trageacutedia que natildeo se define que

transborda lugar de gozo que natildeo tem nome

De acordo com uma leitura nietzschiana de uma obra de Euriacutepides eacute possiacutevel dizer que

Medeia vence sua pura afetaccedilatildeo natildeo permitindo a derrota do raciociacutenio arquitetando e

185

executando o assassinato Isso eacute o novo o moderno O ato de Medeia de matar os filhos motivo

que faz Jasatildeo chamaacute-la de natildeo humana eacute o mesmo que a faz ser racional Assim como

Antiacutegona considerada desumana por acessar um saber inatingiacutevel por uma pessoa comum

Medeia provoca assombro por ter uma sabedoria ou ainda um domiacutenio de conhecimento de

outra ordem Em Antiacutegona haacute lugar para o dionisiacuteaco articulado a um saber que se sabe em

accedilatildeo quando a heroiacutena revela seu iacutempeto sua inflexibilidade sua crueza E o ldquosaberrdquo de

Medeia como eacute

Em Nietzsche (18721992 p 108) como jaacute mencionado o deus ex machina estaacute a

serviccedilo da razatildeo que se impotildee para corrigir o mundo a serviccedilo de ldquouma vida guiada pela

ciecircnciardquo Como tambeacutem jaacute discutido a partir de Vieira (2010) em Medeia o significante sopheacute

ldquosaacutebiardquo eacute atribuiacutedo de igual modo a ldquoponderadardquo ldquoautocontroladardquo No desenvolvimento das

cenas da trageacutedia apoacutes Medeia ser expulsa de Corinto com seus filhos os diaacutelogos que ela

manteacutem com os demais personagens demonstram que estaacute tramando um plano enquanto tenta

convencer seus inimigos que seguiraacute as ordens de Creonte O ldquosaberrdquo de Medeia parece ser algo

que se revela em sua fala ao mesmo tempo que suas palavras mascaram o que estaacute por traacutes das

suas verdadeiras intenccedilotildees Eacute uma consciecircncia enganadora Diferentemente de Antiacutegona que

com sua fala conduz o espectador e os outros personagens para o buraco de sua cova sua eterna

morada

523 Aacutetē

Sabemos que existem outras versotildees para o mito de Medeia em que ela natildeo comete

filiciacutedio ou qualquer outro crime violento No entanto buscamos pensar a estrutura proposta

por Euriacutepides como paradigmaacutetica de uma transiccedilatildeo em que as mudanccedilas de um mundo miacutetico

para um mundo filosoacutefico e poliacutetico passam a aparecer Nesse sentido como entender o ato

filicida de Medeia Parece ser um excesso um ato que natildeo se encontra no jogo formado pela

trama tatildeo bem articulada pela saacutebia mulher mas algo que transborda agrave cena Quando dizemos

excesso natildeo estamos nos referindo agrave hybris grega agrave desmedida do personagem a arrogacircncia de

seu caraacuteter que o leva ao erro de julgamento ou agrave hamartia como comete Creonte em Antiacutegona

de Soacutefocles O caso de Medeia em nossa visatildeo eacute de um excesso natildeo estipulaacutevel nos contornos

da encenaccedilatildeo traacutegica ao menos natildeo haacute nada na histoacuteria contada por Euriacutepides no argumento

do coro que situe o ato final como erro de julgamento ou como falha do caraacuteter Ela sabia o

186

que estava fazendo Diz ldquoNatildeo eacute que ignore a horripilacircncia do que perfarei mas a emoccedilatildeo

derrota raciociacutenios e eacute causa dos mais graves malefiacuteciosrdquo (Medeia vv 1077-1080)

Em nota de rodapeacute Vieira (2010) afirma que nesse trecho existe na opiniatildeo de alguns

comentadores uma menccedilatildeo ao socratismo agrave impossibilidade do homem praticar o mal

conscientemente Isso parece curioso pois Medeia afirma ter consciecircncia do mal que iraacute fazer

ainda que admita que esse mal esteja dominado por um impulso irracional Mas admiti-lo natildeo

freia seu ato O que estaacute aiacute em questatildeo

Sobre a accedilatildeo humana defendida por Soacutecrates Zingano (2009) afirma que

O agente pode ter uma opiniatildeo errada e assim buscar um fim que no fundo eacute para ele um grande mal mas para explicar o seu erro moral basta apelar ao tipo de crenccedila que possuiacutea sem precisar lanccedilar matildeo de qualquer conflito entre o que pensa e emoccedilotildees ou paixotildees que sente A accedilatildeo pode ser acompanhada de emoccedilotildees e paixotildees mas estas em nenhum momento a guiam pois seu elemento determinante eacute a crenccedila que o agente tem no momento em que age Se o agente tiver um saber do fim visto que o saber eacute sempre verdadeiro natildeo haacute como deixar de buscar seu verdadeiro bem (ZINGANO 2009 p 20-21)

Para concluir seu plano para que ele se torne perfeito Medeia precisa matar os filhos

enfrentando a dor e o sofrimento desse terriacutevel ato

Contudo podemos pensar o ato de Medeia por outra via Parece se tratar da aacutetē limite para

onde Antiacutegona se dirige interpretado por Aristoacuteteles como mais uma forma da hamartia e por

Lacan (1959-19601997) como a fronteira que delimita as accedilotildees possiacuteveis agrave vida humana

estando nesse sentido para aleacutem do erro Aleacutem do campo da aacutetē eacute o lugar em que Antiacutegona se

situa para onde se direciona seu desejo Eacute o lugar para onde Medeia acaba por nos conduzir

surpreendentemente com sua accedilatildeo

Atribui-se o horror a Medeia individualmente em seu caraacuteter terriacutevel em sua ldquoacircnima

megaintumescida antidelimitaacutevelrdquo (Medeia vv 108-109) Interessa ao autor justamente a

complexidade dos sentimentos a individualidade dos personagens O que diferencia Medeia

dos demais para que esteja tatildeo soacute em seu ato terriacutevel Ora ela eacute baacuterbara saacutebia e mulher de

caraacuteter furioso (o que Aristoacuteteles natildeo recomendava agraves personagens mulheres) Representa um

estrangeirismo uma alteridade radical em relaccedilatildeo agrave poacutelis grega agrave sua moral e a seus bons

costumes Em nada o espectador grego se identifica com ela No entanto possui uma das

virtudes mais admiraacuteveis e desejaacuteveis do helenismo o discurso Nesse sentido haacute uma

complexidade em seu caraacuteter que divide o espectador mais disponiacutevel Se haacute em Antiacutegona a

187

tensatildeo entre o horror e a beleza que seu ato produz ao atravessar as fronteiras da aacutetē talvez em

Medeia haja tensatildeo entre o horror ao seu ato e admiraccedilatildeo por sua inteligecircncia o desejo de ver

ateacute onde sua armaccedilatildeo nos conduziraacute

O drama euripidiano permanece como o mais conhecido sobrepondo-se ateacute mesmo ao

mito ainda que cause efeitos distintos daqueles imaginados por Aristoacuteteles ou seja de piedade

e temor Natildeo que esses sentimentos natildeo possam ocorrer ao assistir a peccedila mas cabe indagar

de que modo a encenaccedilatildeo fora arranjada para que o puacuteblico grego pudesse sentir piedade da

matildee assassina O que temer se uma mulher terriacutevel como ela escapa agrave puniccedilatildeo divina por um

recurso cecircnico que representa o justo e correto Quais inquietaccedilotildees teratildeo sido provocadas aos

espectadores de uma peccedila que ficou em uacuteltimo lugar no concurso de trageacutedias Satildeo muitas as

inovaccedilotildees e complexidades de Euriacutepides com a trama de Medeia

524 Medeia ex machina como desenlace

Pensemos agora na seguinte fala da nutriz

Acerta quem registre a obtusidade o saber vazio dos antigos inventores de poesia som em que germina a vida no afago do festim Natildeo houve musa que desvendasse em cantos pluricordes a arte de estancar o luto luacutegubre dizimador de moradias com o reveacutes atroz de Tacircnatos Que lucro logro em curar musicalmente o luto Por que a inutilidade da voz no sobretom no acircmbito da festa farta Na plenitude do cardaacutepio disponiacutevel vigora o regozijo (Medeia vv 190-202)

Para Vieira (2010) a criacutetica da nutriz eacute em relaccedilatildeo agrave impossibilidade dos efeitos

prazerosos da poesia prevalecerem sobre a dor do luto De acordo com o autor Euriacutepides fala

aqui atraveacutes de uma personagem com o intuito de criticar a trageacutedia de seus antecessores que

tornavam a morte um ato nobre e admiraacutevel ao passo que deveria ser apresentada com sua

crueza e horror O respeito ao mito a valorizaccedilatildeo do coro elementos fraacutegeis nos dramas

188

euripidianos natildeo satildeo caracteriacutesticas que tornam o luto mais faacutecil em obras de outros

tragedioacutegrafos

Atraveacutes da fala da nutriz Euriacutepides parece criticar os poetas antigos na sua impotecircncia

e irresponsabilidade diante da pulsatildeo destrutiva a pulsatildeo de morte Talvez na leitura de

Euriacutepides a arte traacutegica de seus antecessores buscasse derrotar a anguacutestia e a destrutividade

quando na verdade a trageacutedia operava com a tensatildeo com o jogo de forccedilas apoliacuteneo-donisiacuteaco

sem que um impulso se supervalorize em detrimento do outro Afinal eacute com essa tensatildeo que a

trageacutedia se torna bela No entanto para Euriacutepides atraveacutes de sua Medeia haacute um resto um

excesso que transborda o qual natildeo haacute musa capaz de contornar

Euriacutepides pode expressar a tocircnica de um tempo de transiccedilatildeo de um tempo miacutetico ao

mundo filosoacutefico como aponta Vorsatz (2013) ao reivindicar uma nova forma de lidar com

isso que natildeo se inscreve E ao natildeo se inscrever repete-se como acontece a Medeia em seu ato

de matar filhos que se inscreve em repeticcedilatildeo Eacute possiacutevel que Medeia tenha se eternizado na

radicalidade desse ato mata o filho de seu pai seu irmatildeo mata a filha de Creonte a princesa

por fim mata os filhos de Jasatildeo que satildeo tambeacutem seus

Podemos tambeacutem pensar a partir da fala da nutriz que haacute uma criacutetica ao consolo

metafiacutesico apontado por Nietzsche (18721992) ao apaziguamento final decorrente da tensatildeo

entre a dimensatildeo apoliacutenea e a dionisiacuteaca com a qual Euriacutepides natildeo se conforma Mais um

indiacutecio que justifica a escolha de deus ex machina ao fim do drama Como natildeo eacute possiacutevel agraves

encenaccedilotildees traacutegicas uma cura do luto tambeacutem natildeo eacute possiacutevel uma sensaccedilatildeo de apaziguamento

a catarse decorrente do encadeamento de accedilotildees que formam o drama Embora esse

encadeamento natildeo produza uma soluccedilatildeo final para os conflitos entre os personagens

(ROSENFIELD 2000) o proacuteprio ato de encenar de repetir suscita uma experiecircncia esteacutetica

que produz um saber sobre a vida O deus ex machina teria a funccedilatildeo de solucionar os conflitos

Como a maquinaria trabalha com esse resto com esse gozo que Euriacutepides propotildee

destacar do arranjo cecircnico e transbordar para aleacutem dos fins esteacuteticos No carro alado do deus

Sol Medeia anuncia que iraacute viver em outra terra sob a proteccedilatildeo dos deuses fora do alcance

dos inimigos e que Jasatildeo morreraacute tragicamente Escapa impune por ser sopheacute termo a ela

atribuiacutedo nos diaacutelogos da peccedila (VIEIRA 2010) o qual podemos entender por ldquosaacutebiardquo Em

funccedilatildeo de ter planejado sua fuga e ter sabiamente enganado todos quanto agraves suas intenccedilotildees ela

consegue fugir Utiliza bons argumentos destaca-se pelo bom uso da retoacuterica pelo qual eacute

189

elogiada e temida e com isso conquista tudo o que precisa para permanecer viva e comeccedilar

nova vida com Egeu Nesse sentido a soluccedilatildeo estaacute no discurso no uso que faz do logos

Eacute um novo uso da palavra que Euriacutepides sugere natildeo apenas como palavra posta em accedilatildeo

para garantir a existecircncia divina da qual o heroacutei deriva como sujeito mas palavra que utiliza

seu poder de persuasatildeo e argumentaccedilatildeo para enganar o outro oferecendo aquilo que o outro

deseja ouvir Apoacutes articular com Egeu seu acolhimento em outra terra diz a Jasatildeo iludindo-o

quanto a suas verdadeiras intenccedilotildees ldquoVislumbrei no automergulho a estupidez de meu

ressentimento Me apercebo do quanto te preocupas em nos propiciar parentes nobres Errei

ao me excluir do plano ao natildeocolaborar ao natildeo servir a noiva sorrindo agrave beira-leitordquo

(Medeia vv 882-888)

Podemos tambeacutem tentar entender a problemaacutetica colocada por Euriacutepides em seu drama

sob outra luz Natildeo haacute como natildeo captar a ironia de Medeia ao dizer que errou ao se excluir do

plano proposto por Jasatildeo Quem a excluiu na verdade foi o povo de Corinto O rei ao mandaacute-

la embora Jasatildeo ao natildeo considerar o casamento com ela e noivar com a princesa O motivo eacute

o fato de ser aleacutem de estrangeira e mulher sagaz pessoa terriacutevel No entanto se natildeo coubesse

a ela o caraacuteter furioso a tarefa de matar a quem caberia Se ela natildeo tivesse ajudado Jasatildeo natildeo

teria alcanccedilado seus objetivos podendo ter morrido Nesse sentido ela se vecirc usada e descartada

natildeo acolhida em terra estrangeira Quem a exclui do jogo cecircnico dessa forma desde o princiacutepio

da peccedila satildeo os cidadatildeos que natildeo querem hospedar em sua terra algueacutem como ela

Assim a trageacutedia segue um novo rumo que natildeo se daacute no sentimento do traacutegico que

transcende a polaridade que resulta de um conflito insoluacutevel quando cada um dos polos ocupa

uma posiccedilatildeo legiacutetima O novo drama se daacute pela manipulaccedilatildeo exclusatildeo uso do outro Nesse

sentido natildeo haacute apaziguamento ou consolo final sentimento que emana da experiecircncia traacutegica

da experiecircncia esteacutetica do belo O que haacute eacute vitoacuteria da razatildeo da nova funccedilatildeo da palavra na cena

da trageacutedia

Percebemos a sagacidade de Euriacutepides em propor sua versatildeo em solo ateniense terra

onde crescia o sofismo a arte capaz de argumentar em defesa de uma verdade cientiacutefica contra

as crenccedilas mitoloacutegicas Podemos dizer que sua proposta tem matildeo dupla em primeiro lugar de

certa forma ele mostra a deficiecircncia dos valores e leis da poacutelis grega que ainda que em

referecircncia aos deuses e aos mitos mostram-se insuficientes ao tratar de questotildees que tocam a

alteridade como o estrangeiro a mulher formas outras de saber Em segundo lugar se haacute

exclusatildeo produccedilatildeo de um fora em relaccedilatildeo a Medeia ele torna esse fora a fronteira mais

190

evidente com o deus ex machina com a proteccedilatildeo dos deuses Nesse sentido ele tambeacutem faz

uso do sofismo para combater o sofismo ateniense

O que deus ex machina pode vir a cumprir no fim da peccedila Podemos tentar compreender

isso com a uacuteltima fala do coro a que encerra a trama ldquoDe inuacutemeras accedilotildees Zeus eacute ecocircnomo

deuses forjam inuacutemeras surpresas O previsiacutevel natildeo se concretiza o deus descobre a via do

imprevisto E assim esta performance terminardquo (Medeia vv 1415-1419) Zeus eacute o deus

supremo da mitologia grega que domina a vida humana comanda as demais divindades e

estende seu poder para aleacutem daquilo que podemos prever O previsiacutevel que natildeo se concretiza o

interpretamos como a puniccedilatildeo de Medeia que natildeo acontece Nesse sentido a mensagem final

do coro eacute para Jasatildeo e demais cidadatildeos coriacutentios A via do imprevisto eacute aquilo que nossa

compreensatildeo natildeo alcanccedila que nossa consciecircncia natildeo atinge Nesse sentido somos

surpreendidos por isso que natildeo conseguimos controlar que natildeo dominamos

Conforme Lacan (1960-19611992) os deuses gregos pertencem ao campo do real

compreendido pela psicanaacutelise como o limite da articulaccedilatildeo significante O que essa mensagem

pode nos dizer sobre a eacutetica da psicanaacutelise Apesar de natildeo prevermos e natildeo controlarmos o que

pode nos acontecer uma postura eacutetica condiz com aquela de quem se responsabiliza pelos

efeitos de seus atos ainda que imprevistos Do mal da exclusatildeo que desejavam de Medeia a

cidade de Corinto sofreu os efeitos no entanto dificilmente aceitariam as surpresas forjadas

pelos deuses como resposta ao seu erro de julgamento

A trama de Medeia em vez de ser formada com o outro faz do outro seu oponente

Deseja-se excluir Medeia e o que ela faz eacute excluir de si o que restava de laccedilo com Jasatildeo ou

seja ser matildee de seus filhos quando os assassina Haacute nesse ato uma nova forma de lidar com o

traacutegico o qual ficou sob a incumbecircncia individualizada de Medeia que representa a alteridade

radical Haacute uma transiccedilatildeo de um desenlace traacutegico que deriva da trama para um desfecho que

resulta da exclusatildeo do outro como reduto do horror que natildeo queremos lidar o qual aparece

quando se tenta excluir Medeia ou quando Medeia se exclui levando o que restava de sua

relaccedilatildeo com Jasatildeo

Haacute outro ponto importante a pensar aqui Ainda que a terriacutevel matildee pareccedila sair vitoriosa

da cena protegida pelos deuses gregos ganhando uma nova chance de recomeccedilar a vida

entendemos que haacute uma derrota do domiacutenio do saber racional mesmo que ele parece ter saiacutedo

vitorioso A necessidade de expulsar aquele que representa algo com o qual natildeo consigo lidar

191

conviver eacute a prova disso Os conflitos natildeo se resolvem negando ou excluindo o que os provoca

A tendecircncia eacute que ele retorne sob nova forma talvez mais destruidora

525 Phaacutermakon e pharmakoacutes

Medeia quando solicita exiacutelio em Atenas a Egeu propotildee o seguinte ao pai que natildeo

consegue gerar descendentes ldquoEacute um achado o que achas pois meus faacutermacos daratildeo agrave luz os

filhos de um sem-filhordquo (Medeia vv 717-718) A palavra grega correspondente a ldquofaacutermacosrdquo

traduzida diretamente do grego por Trajano Vieira eacute ϕαρmicroακα relativa a phaacutermakon De

acordo com Fernandes (2001) uma palavra muito semelhante ϕαρmicroακος apenas de sufixo

diferente corresponde a pharmakoacutes ou bode expiatoacuterio pessoa sacrificada em rituais em honra

aos deuses com o intuito de livrar a comunidade de impurezas e malefiacutecios Com isso eacute possiacutevel

pensar que Medeia de certo modo tenha articulado uma troca sinistra oferece faacutermacos em

troca de filhos De quais filhos estaria falando Embora refira-se a futuros filhos de Egeu

parece remeter-se aos seus proacuteprios como bodes expiatoacuterios pagamento de sua saiacuteda da cena

onde eacute hostilizada para entrar numa cena em que encontra hospitalidade Parece haver aqui um

deslizamento significante de phaacutermakon para pharmakoacutes pois ao final Medeia sustenta o

deslocamento que a palavra pode ter lhe produzido no momento do pacto com Egeu antes de

ir embora para Atenas mata os filhos

Os termos phaacutermakon e pharmakoacutes satildeo apresentados por Jacques Derrida (2005) em

seu livro A farmaacutecia de Platatildeo para pensar a ambiguidade e as oscilaccedilotildees da escritura A

segunda palavra vem no fio condutor da primeira o que corrobora a ideia de que o texto escrito

eacute feito de diversas camadas de significaccedilatildeo e abre uma multiplicidade de caminhos Derrida

(2005) toma o texto como tecido pano que oculta as leis da composiccedilatildeo das quais eacute efeito Para

ele um texto eacute somente um texto quando algo nele permanece imperceptiacutevel quando jamais

temos acesso agraves regras de seu jogo Reporta-se assim a Fedro obra de Platatildeo em que Soacutecrates

dialoga com seu interlocutor Fedro sobre a dececircncia ou indececircncia de escrever

Na obra claacutessica de Platatildeo o filoacutesofo Soacutecrates se refere aos escritos que Fedro traz

consigo como uma droga um phaacutermakon que toma e faz com que ele saia de seu lugar

Segundo Derrida (2005 p 14)

Esse Phaacutermakon essa medicina esse filtro ao mesmo tempo remeacutedio e veneno jaacute se introduz no corpo do discurso com toda sua ambivalecircncia Esse

192

encanto essa virtude de fascinaccedilatildeo essa potecircncia de feiticcedilo podem ser alternada ou simultaneamene ndash beneacuteficas ou maleacuteficas [] Operando por seduccedilatildeo o phaacutermakon faz sair dos rumos e das leis gerais naturais ou habituais Aqui ele faz Soacutecrates sair de seu lugar habitual e de seus caminhos costumeiros Estes sempre o retinham no interior da cidade As folhas da escritura agem como um phaacutermakon []

Dessa forma Soacutecrates tem a experiecircncia de sair da cidade do lugar onde gosta de

ensinar e aprender para ler com Fedro Ler textos que fazem efeito agrave medida da leitura na

temporalidade do escrito textos que se guardam em suas letras ocultas diferidos em que a

presenccedila do autor eacute barrada Eacute justamente a equivocidade provocada pela palavra escrita que

seduz o leitor que age sobre ele como um phaacutermakon e o faz sair do lugar se desacomodar

No entanto segundo Derrida (2005) Soacutecrates lembra Fedro que na origem da escrita

havia uma intenccedilatildeo benevolente Um deus oferecera a gramaacutetica de presente ao rei do Egito

como um phaacutermakon no sentido de remeacutedio como modo de preservar e favorecer a memoacuteria

e a instruccedilatildeo do povo egiacutepcio O rei por sua vez contesta a escrita avalia-a para aleacutem do

remeacutedio ressalta o seu aspecto maleacutefico a sua significaccedilatildeo como veneno Pois eacute justamente em

razatildeo da existecircncia do escrito que o indiviacuteduo pode se permitir esquecer Com isso o valor da

escrita eacute atribuiacutedo pelo rei ou ainda pelo pai do logos Sem a presenccedila viva do autor de um

discurso seriacuteamos meros repetidores Ao substituir a fala a escrita indicaria a morte da

memoacuteria do pai do discurso e estaria a serviccedilo desse suposto assassinato

Derrida (2005) observa que mesmo sem a presenccedila do rei que eacute capaz de julgar a escrita

a palavra phaacutermakon por si mesma jamais significaria apenas remeacutedio jaacute que remeacutedio natildeo eacute

somente beneacutefico ele pode ser maleacutefico Phaacutermakon carrega em si essa tensatildeo essa polaridade

que natildeo necessariamente precisa se decidir por uma ou por outra faceta segundo uma

problemaacutetica platocircnica

Mais adiante Derrida (2005) discorre que apesar da palavra pharmakoacutes natildeo estar

presente no texto de Platatildeo ela pode se fazer presente em cadeia associativa com phaacutermakon

Mas o que quer dizer aqui ausente ou presente Como todo texto aquele de ldquoPlatatildeordquo natildeo poderia deixar de estar em relaccedilatildeo de modo ao menos virtual dinacircmico lateral com todas as palavras que compotildeem o sistema da liacutengua grega Forccedilas de associaccedilatildeo unem agrave distacircncia com uma forccedila e segundo vias diversas as palavras ldquoefetivamente presentesrdquo num discurso com todas as outras palavras do sistema lexical quer elas apareccedilam ou natildeo como ldquopalavrasrdquo ou seja como unidades verbais relativas num tal discurso [] Por exemplo ldquophaacutermakonrdquo comunica desde jaacute mas natildeo apenas com todas as

193

palavras da mesma famiacutelia com todas as significaccedilotildees construiacutedas a partir da mesma raiz (DERRIDA 2005 p 78-79)

De acordo com o autor a palavra pharmakoacutes estaacute relacionada a bode expiatoacuterio

personagem de rituais de sacrifiacutecio com ou sem morte na Greacutecia Antiga Representava o mal

e o fora o malefiacutecio que deveria ser expulso colocado para fora do corpo e fora da cidade

atraveacutes da exclusatildeo do bode O indiviacuteduo que encarnava o bode representava ldquosem duacutevida a

alteridade do mal que vem afetar e infectar o dentro irrompendo nele imprevisivelmenterdquo

(DERRIDA 2005 p 80) Mas eacute importante ressaltar que a pessoa escolhida para o sacrifiacutecio

tinha uma funccedilatildeo dentro da comunidade ou seja ele encontrava abrigo alimento sustento no

lado de dentro no seio da comunidade para no momento oportuno ser oferecido no ritual de

purificaccedilatildeo do mal

Segundo Derrida (2005 p 80) ldquoOs parasitas eram como eacute evidente domesticados pelo

organismo vivo que os hospeda a sua proacutepria custardquo Assim sendo quando a cidade era

assolada por um terriacutevel periacuteodo de seca fome e peste dois indiviacuteduos criados pela comunidade

como inuacuteteis degenerados vadios ou melhor como os bodes expiatoacuterios eram sacrificados

em honra aos deuses no intuito de livrar a cidade do mal e reestabelecer a ordem Conforme

Derrida (2005 p 80) ldquoA cerimocircnia do pharmakoacutes se passa pois no limite do dentro e do fora

que ela tem por funccedilatildeo traccedilar e retraccedilar sem cessar Intramurosextramuros Origem da

diferenccedila e da partilha o pharmakoacutes representa o mal introjetado e projetadordquo

O mal que existia em cada um dos cidadatildeos era projetado nos dois homens

representantes do bode Dois homens sacrificados dois filhos de Medeia com Jasatildeo Medeia

conhecedora do poder de ervas e plantas sobre o phaacutermakon remeacutedio e veneno Medeia

estrangeira mulher terriacutevel assassina de dois pai e irmatildeo foi tomada por Creonte como

pharmakoacutes bode expiatoacuterio No entanto em vez de entregar-se ao sacrifiacutecio da expulsatildeo a

partir do qual ficaria sem paacutetria e sem proteccedilatildeo alguma ela faz seus filhos seus dois meninos

morrerem em seu lugar Com amparo garantido por Egeu sai de cena viva com as crianccedilas

mortas No carro do Sol ex machina No limite que separa dentro e fora intramuros e

extramuros

194

526 Ananke

Haacute que se falar tambeacutem da dimensatildeo do sacrifiacutecio presente em Medeia o antigo ritual

de sacrificar indiviacuteduos em nome da proteccedilatildeo divina Medeia pode natildeo ter simplesmente matado

os filhos para se vingar de Jasatildeo mas seu ato pode significar justamente sacrificaacute-los Esta eacute

a interpretaccedilatildeo que nos propotildee o doutor em filosofia Alexandre Costa (2013) em palestra

intitulada Pasolini e a trageacutedia do homem ocidental O ato de matar os filhos eacute interpretado

pelo saber cientiacutefico filosoacutefico e racional do povo ocidental representado por Jasatildeo como um

crime de filiciacutedio No entanto Medeia pertence ao povo oriental cujo saber miacutetico e profano

toma o ato como sacrifiacutecio seguindo leis divinas ou seja respeitando os deuses Por isso

questiona Jasatildeo se ele adota leis ineacuteditas jaacute que ele traiacutera as juras o hoacuterkos

Embora da Coacutelquida os deuses que Medeia segue satildeo os mesmos dos gregos Haacute

contudo uma diferenccedila a ser observada aqui O coro de mulheres de Corinto enquanto estaacute ao

lado de Medeia fala-lhe em algumas passagens que Zeus certamente estaacute do seu lado que

Zeus eacute guardiatildeo das juras Medeia cita Zeus mas clama por Tecircmis deusa da Justiccedila por Geia

ou Gaia deusa da terra por Nike deusa da vitoacuteria por Heacutecate deusa das passagens por Heacutelios

deus do Sol do qual descende Quando fala com Egeu pede para o rei que jure pela estirpe

pandivina em vez de apelar a um deus uno regente de todos Zeus Sabemos que ao final a

fala do coro salienta a imprevisiacutevel via pela qual os deuses gregos agem ainda que Zeus seja o

deus dominante

Aleacutem disso Jasatildeo quando descobre o ato traacutegico de Medeia invoca Zeus pela puniccedilatildeo

da mulher invoca Dike a deusa da justiccedila dos homens mesma de Creonte na peccedila Antiacutegona

de Soacutefocles e natildeo Tecircmis a justiccedila dos deuses Medeia lhe interroga ldquoQue deus ou dacircimon te

daraacute escuta perjurador traidor dos proacuteprios hoacutespedesrdquo (Medeia vv 1391-1392) De acordo

com nota do tradutor haveria uma referecircncia aqui a uma versatildeo do mito em que Jasatildeo teria

raptado Medeia Seja como for Medeia chega agrave Greacutecia como sua mulher ele deve para com

ela o cumprimento da lei divina por ele esquecida da hospitalidade Mais um motivo para que

os deuses protejam Medeia e punam Jasatildeo

De acordo com Costa (2013) com a morte dos filhos Medeia restabelece a ordem

atraveacutes de uma loacutegica sacrificial que devolve resgata agrave terra (deusa Gaia) seus rebentos Se o

destino da vida dos filhos como de todos eacute a morte por que deixaacute-los vivos e fazer com que

sofram as puniccedilotildees dos cidadatildeos de Corinto

195

Nesse sentido Medeia age como Antiacutegona seguindo leis divinas atraveacutes de um ato

traacutegico Antiacutegona enterra seu irmatildeo Medeia mata seus filhos Ambos os atos podem ser

interpretados pela lei dos homens como criminosos A diferenccedila eacute que Antiacutegona presa em sua

alcova decide tirar a proacutepria vida Medeia decide ir embora

Talvez seja na dupla interpretaccedilatildeo da accedilatildeo de matar as crianccedilas ndash crimesalvaccedilatildeo ndash a

origem do sofrimento de Medeia ao menos na segunda parte da peccedila Oscila entre matar e natildeo

matar mas considera a morte dos dois a finalizaccedilatildeo de seu plano Antes dos meninos levarem

os venenos que matam princesa e rei Medeia diz ldquoEstaacute para nascer algueacutem que agrida um filho

meu Se ananke o necessaacuterioimpotildee sua lei indesviaacutevel noacutes daremos fim a quem geramosrdquo

(Medeia vv 1060-1063)

Logo depois da morte de Glauce e Creonte comunica ao coro de mulheres

Estaacute traccedilado amigas mato os filhos E apresso a fuga Natildeo existe um ser ndash um ser somente ndash que suporte ver o braccedilo bruto sobre os seus Natildeo tardo o fim dos dois se impotildee e a matildee os mata se eacute isso o que haacute de ser Oacute coraccedilatildeo- -hoplita descumprir esse ato horriacutevel Se ananke o imperativo o dita (Medeia vv 1236-1243)

Medeia se torna mais certa de sua decisatildeo de matar os filhos nessa passagem Antes a

matildee cumprir o destino do que serem submetidos agrave puniccedilatildeo de outros agrave morte por

apedrejamento No entanto ateacute o momento da morte das crianccedilas vive momentos de anguacutestia

A sua anguacutestia se daacute nesse intervalo que divide duas significaccedilotildees do assassinato a de sacrificar

os filhos para proteger seus corpos dos cidadatildeos tebanos e o filiciacutedio Ao final sentindo a

imposiccedilatildeo divina de Ananke ela se torna outra e quem se compadece somos noacutes

Ananke eacute uma divindade antiga citada por Medeia que fala da inevitabilidade do

destino da forccedila com a qual o destino traacutegico pode se impor Nesse sentido a morte dos filhos

para Medeia se torna uma necessidade um dever que ela mesma como matildee que os gerou

precisa cumprir Aiacute se encontra o paradoxo dessa trageacutedia

Em O mal-estar na cultura Freud (19302012) fala que Ananke junto com Eros satildeo os

pais da nossa civilizaccedilatildeo Eros eacute responsaacutevel pela coesatildeo dos objetos pelo amor que nutrimos

uns pelos outros pelo amor da matildee por seus filhos Jaacute Ananke eacute a imposiccedilatildeo da realidade o

196

compromisso e o dever para com a cultura a necessidade de trabalhar para manter a ordem no

mundo

Em 1920 em Aleacutem do princiacutepio do prazer Freud jaacute havia falado a respeito de Ananke

Na ocasiatildeo ela eacute tomada como forccedila da natureza inevitaacutevel lei natural que se impotildee na

realidade de todos noacutes Ser submetido a esse princiacutepio da realidade significa para o ser humano

a aceitaccedilatildeo de seus limites de sua proacutepria morte Esta lei implacaacutevel eacute apresentada aqui na

articulaccedilatildeo com Eros pulsatildeo de vida e Tacircnatos pulsatildeo de morte e podemos compreendecirc-la no

sentido de entre vida e morte aceitar a proacutepria natureza e enfrentar condiccedilotildees de existecircncia

Na primeira parte da peccedila logo apoacutes Creonte expulsaacute-la de Corinto e conceder um dia

para que Medeia organize sua partida ela diz ldquoNatildeo deixes pelo meio teus projetos Medeia

Nada te demovardquo (Medeia vv 401-402)

Isso nos faz pensar na posiccedilatildeo eacutetica de Medeia Se a eacutetica da psicanaacutelise diz respeito a

uma posiccedilatildeo subjetiva em que o sujeito natildeo recua de seu desejo e para sustentaacute-lo paga com

uma parte de si com uma dose de gozo ou sofrimento se a posiccedilatildeo de Antiacutegona eacute honrar sua

ascendecircncia e por ela morrer Medeia destroacutei a descendecircncia dos outros e por fim deve

(ananke) destruir a sua Eacute possiacutevel perceber que Medeia ldquoaquela que meditardquo ou que ldquoarquiteta

um projeto um planordquo comete assassinato seja do proacuteprio irmatildeo seja dos filhos ou de Glauce

a fim de atingir uma outra pessoa Natildeo escolhe matar o pai Jasatildeo ou Creonte mas torna viacutetimas

os filhos desses adversaacuterios talvez porque a morte deles mesmos natildeo seja uma pena muito dura

natildeo destruiria suas vidas como o sofrimento de perder um filho Medeia eacute uma filicida por

excelecircncia ateacute atingir o ponto traacutegico em que os filhos satildeo dela mesma Aleacutem disso o que pode

significar o aniquilamento da descendecircncia Eacute a impossibilidade de seguir vivendo atraveacutes de

um filho a despeito da proacutepria morte Eacute saber que a vida que se viveu natildeo teraacute uma continuidade

eacute natildeo deixar um legado Talvez a forma escolhida por Medeia de atingir seus inimigos

assassinar os descendentes tenha sido mais fatal mais proacutexima do que significa matar em vez

de atentar diretamente contra a vida deles proacuteprios

Nesse sentido na peccedila de Euriacutepides que leva o seu nome Medeia acaba por pagar a

condiccedilatildeo de sua existecircncia com a morte de seus filhos que deve ser cometida por ela mesma

ao preccedilo de seu sofrimento Havia de certo modo abandonado seu iacutempeto ao chegar em Corinto

com Jasatildeo tornar-se esposa e matildee zelosa ateacute o momento em que percebe que foi traiacuteda E o

que isso significa Que de algum modo abriu matildeo de seu desejo

197

O que chamo de ceder de seu desejo acompanha-se sempre no destino do sujeito ndash observaratildeo isso em cada caso reparem em sua dimensatildeo ndash de alguma traiccedilatildeo Ou o sujeito trai sua via se trai a si mesmo e eacute sensiacutevel a si mesmo Ou mais simplesmente tolera que algueacutem com quem ele se dedicou mais ou menos a alguma coisa tenha traiacutedo sua expectativa natildeo tenha feito com respeito a ele o que o pacto comportava qualquer que seja seu pacto [] (LACAN 1959-19601997 p 384)

Nesse sentido o que o indiviacuteduo faz diante de uma traiccedilatildeo pode definir se ele eacute um heroacutei

ou uma pessoa comum A traiccedilatildeo coloca a pessoa comum na via do serviccedilo dos bens sem que

ele reconheccedila seu desejo nessa via Jaacute o heroacutei eacute ldquoaquele que pode impunemente ser traiacutedordquo

(LACAN 1959-19601997 p 385) e atraveacutes dos bens ele paga o preccedilo de seu acesso ao

desejo ele banca seu desejo Compreendemos Medeia como uma heroiacutena traacutegica que se

percebe traiacuteda por Jasatildeo no descumprimento do horkos o juramento que tinha com ela Aleacutem

de Jasatildeo tecirc-la enganado percebe que ela mesma se deixou trair A linha de accedilatildeo da peccedila eacute a que

reconduz Medeia para a via de seu desejo destruindo por completo seu laccedilo com Jasatildeo ao pagar

com a morte dos filhos

Dessa maneira encontramos a via de abertura que a peccedila Medeia nos deixa Para aleacutem

do saber socraacutetico sofista racional que Euriacutepides apresenta em sua personagem natildeo pensamos

ser essa forma de saber que impera mesmo com o uso do recurso deus ex machina

Vislumbramos uma heroiacutena traacutegica que se impotildee sua proacutepria puniccedilatildeo sofre a perda de seu lugar

de matildee paga com a perda dos filhos o seu caraacuteter terriacutevel Nesse sentido podemos entender

que natildeo escapa impune das accedilotildees terriacuteveis de seu passado do assassinato do rei e da princesa

na medida em que ela mesma deve cometer o homiciacutedio dos filhos talvez mais importante para

ela do que ao proacuteprio Jasatildeo Para feri-lo com a dor mais profunda ela tambeacutem precisa se infligir

a mesma dor suportaacute-la e recomeccedilar nova vida

53 ldquoa raccedila fecircmea ignora como haurir algo elevado saacutebia quando edifica o horror do

fadordquo

No texto ldquoJuventude de Gide ou a letra e o desejordquo em que Lacan comenta um livro do

psiquiatra Jean Delay A juventude de Andreacute Gide ele fala sobre o ato de uma ldquoverdadeira

mulherrdquo Esse ato teria como efeito a abertura de um vazio no homem

Lacan (19581998) compara Andreacute Gide a Jasatildeo personagem da trageacutedia Medeia que

abandona a protagonista para casar com outra mulher Medeia eacute personagem enigmaacutetica que

198

na versatildeo de Euriacutepides mata os filhos que teve com Jasatildeo Jaacute a esposa de Gide Madeleine

queima suas cartas cartas escritas ao longo de uma vida de uma importacircncia tal para o homem

que este chega a tomaacute-las como filhos O ato de queimar as cartas do marido eacute entendido por

Lacan como um ato de mulher

[] de uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher Esse ato foi o de queimar as cartas que eram o que Madeleine possuiacutea ldquode mais preciosordquo Que ela natildeo tenha dado outra razatildeo para isso senatildeo o ter ldquotido que fazer alguma coisardquo acrescenta ao ato o signo da fuacuteria provocada pela uacutenica traiccedilatildeo intoleraacutevel [] o gemido de Andreacute Gide o de uma fecircmea de primata ferida no ventre com o qual ele pranteia a extirpaccedilatildeo do desdobramento de si mesmo que eram suas cartas razatildeo pela qual as chamava de seu filho soacute faz parecer que preenche com exatidatildeo o vazio que o ato da mulher quis abrir em seu ser longamente escavado por uma apoacutes outra das cartas atiradas ao fogo de sua alma flamejante Andreacute Gide revolvendo no coraccedilatildeo a intenccedilatildeo redentora que atribui ao olhar que nos retrata ndash sem dar importacircncia agrave sua respiraccedilatildeo ofegante ndash agravequela passante que atravessa seu trespasse sem cruzar com ele engana-se Pobre Jasatildeo que tendo partido para a conquista do tosatildeo dourado da felicidade natildeo reconhece Medeacuteia (LACAN 19581998 p 772-773 grifos nossos)

Pensamos que Medeia assim como Madeleine eacute certeira na escolha da pior das

vinganccedilas para Jasatildeo Natildeo apenas por atingir sua descendecircncia mas por eliminar tambeacutem a

nova esposa Ao fim da peccedila Jasatildeo retorna desesperado agrave sua casa para proteger os filhos dos

cidadatildeos de Corinto jaacute que os meninos provavelmente seriam punidos por ter envenenado o

rei e a princesa embora ignorassem o que estavam fazendo A fala do coro o alerta ldquoa prole

natildeo existerdquo (Medeia vv 1311) Jasatildeo jamais poderia imaginar ou entender que o ato tinha sido

cometido por Medeia Esta justifica ldquofiz o que devia para te atingir no iacutentimordquo (Medeia vv

1359-1360)

Miller (2010) entende que Medeia quando assassina seus proacuteprios filhos para se vingar

de Jasatildeo vai aleacutem de seu lugar de matildee sustentando o seu lugar de mulher Natildeo haacute explicaccedilotildees

ou palavra alguma do ex-marido que faccedila Medeia voltar atraacutes em sua de-cisatildeo

Mata seus proacuteprios filhos que satildeo tambeacutem de Jasatildeo o que permite dizer que o que haacute de mulher nela supera o que haacute de matildee [] ela constitui o exemplo radical do que significa ser mulher mais aleacutem do que matildee Com esse ato sai de sua depressatildeo Ela estaacute toda nesse ato a partir do qual todas as palavras satildeo inuacuteteis saindo decididamente do registro do significante (MILLER 2010 p 8)

199

Uma ruptura radical entre o ser matildee e ser mulher que gera em decorrecircncia uma ruptura

com sua proacutepria prole ao servirem de bodes expiatoacuterios para que Medeia perfizesse seu plano

de exiacutelio e vinganccedila por um instante as crianccedilas satildeo de Jasatildeo natildeo dela considerando as

contribuiccedilotildees de Lacan e Miller Assim a matildee fala aos filhos em tom de despedida dessa

relaccedilatildeo primordial ldquoNada valeu meninos meu empenho nada valeu sofrer as convulsotildees

doloridiacutessimas do parto Sonhos inuacuteteis que nutri ao vislumbrar nas crias meu amparo na

velhice apuro em ritos funeraacuterios ndash aacutepice do que pode sonhar quem viverdquo (Medeia vv 1029-

1035)

Eacute com seus filhos eacute com o ser matildee que Medeia paga sua liberdade o que se confunde

com o ser puramente uma mulher inteiramente mulher como compreendem Lacan e Miller

Contudo considerando o lamento de despedida de Medeia e a versatildeo que toma seu ato como

sacrifiacutecio seria equivocado pensar que Medeia apareccedila justamente como matildee natildeo como

mulher no traacutegico desenlace Que mulher teria a coragem de sacrificar crianccedilas para salvaacute-las

senatildeo uma matildee

Ora o que significa ser mulher De acordo com Alexandre Costa (2013) natildeo por acaso

Euriacutepides escolheu uma heroiacutena mulher em sua peccedila capaz de ato tatildeo terriacutevel Ser mulher

contrasta com o ser homem que o tragedioacutegrafo deseja expor ao lado de outras polaridades

tais como oriente versus ocidente saber miacutetico versus saber racional magia versus ciecircncia

sociedades arcaicas (matriarcais) versus sociedades modernas (patriarcais) Contudo segundo

Vieira (2010) o interesse de Euriacutepides em representar o mito de Medeia decorre de suas

proacuteprias insatisfaccedilotildees da falta de acolhimento que experimenta em relaccedilatildeo agrave sua sopheacute agrave sua

forma de pensar que como discutimos tem grande influecircncia de sua amizade com o filoacutesofo

Soacutecrates

Encerramos esta seccedilatildeo sobre o mito de Medeia e sobre a Medeia de Euriacutepides com as

palavras da escritora alematilde Christa Wolf autora do livro Medeia Vozes que busca resgatar nas

entrelinhas dos textos sobre esta mulher emblemaacutetica as vozes natildeo ouvidas observando suas

ressonacircncias em tantas outras histoacuterias de mulheres fortes apagadas por um princiacutepio

moralizador

Pronunciamos um nome e como as paredes satildeo permeaacuteveis entramos no tempo que foi o seu encontro desejado Sem hesitaccedilotildees ela responde das profundezas do tempo ao nosso olhar Infanticida Pela primeira vez esta duacutevida [] Mandamos-lhe embora ela vem ao nosso encontro das profundezas do tempo noacutes mergulhamos nele [] E haacute de haver um momento

200

em que nos encontramos Somos noacutes que descemos ateacute os Antigos Satildeo eles que nos apanham Tanto faz Basta estender a matildeo Passam para o nosso mundo com a maior facilidade estranhos hoacutespedes iguais a noacutes Noacutes temos a chave que abre todas as eacutepocas por vezes a usamos sem reservas deitamos um olhar apressado pela fresta da porta aacutevidos de juiacutezos precipitados Mas tambeacutem deve haver maneira de nos aproximarmos passo a passo com um certo pudor diante do tabu dispostos a arrancar dos mortos seu segredo mas assumindo o preccedilo de algum sofrimento O reconhecimento das nossas fraquezas ndash era por aiacute que deviacuteamos comeccedilar (WOLF 1998 p 11)

201

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Com a articulaccedilatildeo entre educaccedilatildeo trageacutedia antiga e psicanaacutelise produzimos uma

extensatildeo teoacuterica para ler a histoacuteria cliacutenica dramatizada na abertura deste trabalho Agora eacute o

momento de recolher os elementos miacutenimos que sustentaram nossa argumentaccedilatildeo e

constituiacuteram uma equaccedilatildeo teoacuterica que nos permite voltar ao cenaacuterio para lecirc-lo novamente e

quiccedilaacute nos ajude a ler outros cenaacuterios

Da apreciaccedilatildeo das trageacutedias gregas de Soacutefocles e de Euriacutepides recolhemos uma

pergunta sobre a eacutetica colocada em cena atraveacutes das accedilotildees dos heroacuteis e heroiacutenas diante dos

conflitos vividos com outros personagens Por meio da leitura psicanaliacutetica da trilogia tebana

em especial Antiacutegona feita por Lacan (1959-19601997) e Vorsatz (2013) entendemos que

somos inteiramente responsaacuteveis por nossas escolhas eacuteticas pelos efeitos traacutegicos dessas

escolhas em nosso destino ainda que seu fundamento seja o desejo inconsciente portanto

inacessiacutevel a nosso comando

Nesse sentido as perdas decorrentes de uma posiccedilatildeo subjetiva em que heroacuteis e heroiacutenas

se veem tomados em accedilatildeo satildeo o preccedilo que pagam para sustentar seu desejo o que significa

afirmarem-se como sujeito de desejo perante os impasses que surgem em cena Pelo estudo das

trageacutedias sabemos que haacute uma diferenccedila substancial entre as obras sofocleanas Eacutedipo Rei e

Antiacutegona A primeira trata-se de uma trageacutedia de destino como aponta Freud (19002015) em

que o heroacutei ignora completamente as consequecircncias de sua postura investigativa e racional

Apenas no uacuteltimo ato quando Eacutedipo descobre ser o proacuteprio criminoso que buscava ser o

sucessor legiacutetimo do trono ser o marido da proacutepria matildee revelando-se o mais terriacutevel dos

homens abraccedila as duras penas pelas quais deve passar o restante de seus dias e em Eacutedipo em

Colono sustenta sua dignidade perante os deuses

Em Antiacutegona jaacute no primeiro ato a heroiacutena conhece o destino traacutegico que a espera por

ter escolhido enterrar o irmatildeo Se em Eacutedipo temos a hybris a arrogacircncia que conduz ao erro de

julgamento e ao infortuacutenio em Antiacutegona temos a aacutetē a fatalidade inevitaacutevel para onde a heroiacutena

deseja caminhar Aqui estaacute o paradoxo de Antiacutegona pois ao sustentar sua posiccedilatildeo eacutetica ela

perde sua proacutepria vida Se sustentasse sua vida obedecendo a Creonte natildeo se afirmaria como

sujeito de desejo Lacan toma dessa trageacutedia justamente a diferenccedila que quer estabelecer entre

a eacutetica da psicanaacutelise a eacutetica do desejo e a obrigaccedilatildeo moral imposta pelas convenccedilotildees sociais

que reprimem o desejo

202

Atraveacutes das criacuteticas de Nietzsche averiguamos que um dos aspectos que levam agrave morte

da trageacutedia antiga eacute o de embasar as escolhas eacuteticas em justificativas filosoacuteficas como ocorre

nas trageacutedias de Euriacutepides influenciadas pelo pensamento de Soacutecrates Nesse sentido aqui se

situa um ponto de virada importante para a nossa forma de representar os conflitos humanos no

teatro pois no lugar de enunciar um desenlace traacutegico que embora natildeo signifique uma

conciliaccedilatildeo provoca um sentimento de apaziguamento final a trageacutedia de Euriacutepides passa a

oferecer finais resolutivos na medida em que modifica os mitos e busca justificativas racionais

para solucionar impasses Uma das formas mais utilizadas por Euriacutepides nessa nova proposta

de desenlace acontece com o uso do dispositivo do deus ex machina

Com Rebelo (1995) entendemos que nem sempre as trageacutedias de Euriacutepides ao

apresentarem tal ferramenta buscam impor uma soluccedilatildeo derradeira para os conflitos sem que

estes se construam ao longo da histoacuteria No entanto conseguimos reconhecer atraveacutes do autor

que haacute no deus ex machina um imperativo moral que passa a participar da cena que pode

influenciar as decisotildees tomadas entre os personagens Assim ocorre na cena traacutegica uma virada

eacutetica importante que reflete as mudanccedilas ocorridas no modo de organizaccedilatildeo de vida na poacutelis

grega que passa de um mundo miacutetico para um mundo filosoacutefico

Entre as peccedilas de Euriacutepides que apresentam o recurso do deus ex machina trabalhamos

com a Medeia citada por Rebelo (1995) como uma exceccedilatildeo pois quem vem a ocupar tal lugar

na maquinaria natildeo eacute um deus mas um ser humano A peccedila destaca-se tambeacutem por ter sido

utilizada por Aristoacuteteles como exemplo do uso desse recurso

Na apreciaccedilatildeo que produzimos acerca da obra euripidiana entendemos que a

personagem Medeia se vale de posiccedilatildeo semelhante agrave de Antiacutegona ao lembrar as leis natildeo escritas

que firmam o laccedilo de matrimocircnio desonrado por Jasatildeo Como a filha de Eacutedipo Medeia natildeo

aceita seguir as leis do rei de mesmo nome Creonte sentindo que o que resta apoacutes a sua funesta

vinganccedila contra o rei e a princesa eacute sua obrigaccedilatildeo para com seus filhos Como podemos

qualificar essa obrigaccedilatildeo Ela remete ao seu desejo subjetivo ou a um dever moral

Medeia nomeia sua eacutetica de ananke e a partir dela coloca em cena o paradoxo traacutegico

mata seus filhos (na versatildeo de Euriacutepides) para salvaacute-los de serem mortos pelos cidadatildeos de

Corinto Ainda que Euriacutepides apresente em Medeia o saber socraacutetico sofista racional natildeo

pensamos ser essa a forma de saber que domina no desenlace da peccedila O saber que aparece em

cena eacute articulado com o dever que se impotildee atraveacutes de ananke uma necessidade que pode advir

203

de sua funccedilatildeo como matildee ainda que proteger os filhos signifique destruiacute-los e nesse sentido

destruir a matildee em Medeia

Aleacutem disso vale pontuar na peccedila de Medeia a estrangeiridade que ela representa O fato

de pertencer a outra cultura acessar um saber diferente do compartilhado no mundo grego ser

uma mulher com atribuiccedilotildees permitidas aos homens (brava saacutebia dominadora) faz com que

ela ocupe diante dos cidadatildeos de Corinto e mesmo dos leitores e dos espectadores o lugar do

estranho radical do qual se deseja distanciamento Ao revelar-se em cena como uma mulher

assassina e filicida a repulsa sentida por ela tende a aumentar e o que se espera do fim da peccedila

eacute uma puniccedilatildeo severa O fato de ter permanecido viva protegida pelos deuses e conquistado o

exiacutelio mesmo apoacutes matar as crianccedilas pode ocasionar aos espectadores uma sensaccedilatildeo muito

distante do indicado apaziguamento final das trageacutedias de Soacutefocles O desenlace em Medeia

natildeo propotildee uma costura das accedilotildees mas um rompimento abrupto de nossas convicccedilotildees um

questionamento moral Talvez esse seja o efeito da presenccedila do deus ex machina na peccedila Para

conseguir trabalhar e entender a proposta de Euriacutepides foi preciso vencer as barreiras que nos

distanciam da terriacutevel personagem e reconhecer nela traccedilos eacuteticos o que permite uma

aproximaccedilatildeo

Partindo da posiccedilatildeo eacutetica apresentada em accedilatildeo pelos heroacuteis do desenlace traacutegico do

deus ex machina como dever moral acessamos a histoacuteria dramatizada no proacutelogo

61 Natildeo definimos o lugar que ocupamos na relaccedilatildeo transferencial

Ler com a distacircncia temporal e o trabalho teoacuterico atravessado o andamento do roteiro

construiacutedo no proacutelogo permite identificar na posiccedilatildeo em que a psicoacuteloga acaba por tomar as

ressonacircncias da posiccedilatildeo ocupada por Eacutedipo ao se descobrir o criminoso que provocava a ruiacutena

de Tebas A psicoacuteloga se vecirc capturada no empenho por responder agrave demanda da escola de dar

respostas e oferecer soluccedilotildees para a crianccedila que apresentava problemas em seu percurso escolar

ainda que se coloque numa posiccedilatildeo de criacutetica dessas mesmas atitudes quando tomadas pelos

outros Nesse sentido parece-nos que a psicoacuteloga eacute capturada no efeito transferencial de

oferecer uma resoluccedilatildeo definitiva para o caso recalcando a posiccedilatildeo de escuta de trabalhar em

conjunto assim como ocorre com Eacutedipo

Embora tenha assumido responsabilidade pelo caso a psicoacuteloga natildeo encontrou as vias

de se movimentar no sentido de escutar a meacutedica ou ainda de reconhecer o esforccedilo da escola

204

Quando mais tarde se flagrou dos efeitos de sua conduta nas sessotildees com a crianccedila na fala da

matildee jaacute estava sozinha Com isso podemos entender que qualquer um pode falar a partir da

posiccedilatildeo de deus ex machina desde que haja em seu modo de conduzir um natildeo reconhecimento

ou um recalcamento do lugar do outro e uma prerrogativa moral que faz o indiviacuteduo acreditar

que sua escolha diante de uma situaccedilatildeo eacute a mais correta

62 O lobo do homem eacute o lobo no homem

A trageacutedia de Medeia evidencia as soluccedilotildees que tomamos ao nos depararmos com uma

parte natildeo domesticaacutevel que nos habita algo que insiste em escapar do projeto civilizatoacuterio Em

vez de olhar para essa porccedilatildeo que havia em si mesmo Creonte expulsa o lobo que conseguia

identificar em Medeia na certeza de que desse modo conseguiria livrar Corinto de sua

influecircncia maleacutefica Ao natildeo acolher a estrangeira Medeia Creonte provoca o efeito contraacuterio

ao que almejava ou seja abrindo caminho para a realizaccedilatildeo de uma pulsatildeo destrutiva

Como trabalhar o lugar do lobo que pode constituir o limite de nossa escuta o limite do

reconhecimento do outro a nossa resistecircncia aos coacutedigos de comportamento dentro da escola

Como dar lugar a esse lobo no seio de nossas relaccedilotildees sem que seja preciso recalcaacute-lo expulsaacute-

lo de nosso conviacutevio o que pode fazer com que ele retorne com ainda mais vigor Satildeo perguntas

que nos ajudaram a constituir um mapeamento teoacuterico de modo a tentar enunciar nosso

problema

Trabalhar com o lobo que existe na crianccedila seja aluno filho paciente exige que

saibamos trabalhar com o lobo que haacute em noacutes Nesse sentido a escuta que a psicoacuteloga conseguiu

promover ao final da histoacuteria eacute fundamental para que possamos interrogar nossa forma de

conduzir O que ela consegue ler da experiecircncia eacute que tanto a escola quanto a meacutedica e a matildee

nos desdobramentos do fazer de cada uma eram chamadas a se colocar em relaccedilatildeo com o lobo

na crianccedila representado no desenho Esse dever nos conduz a um segundo aspecto que podemos

recolher da histoacuteria o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo diante de problemas de aprendizagem e

comportamento apresentados pelos estudantes

205

63 A educaccedilatildeo agrave sombra da medicalizaccedilatildeo

Como adultos responsaacuteveis pelas crianccedilas estamos implicados com seu mal-estar Natildeo

eacute raro que o discurso medicalizante que opera na escola e toma lugar do discurso educativo faccedila

as vezes dessa implicaccedilatildeo constituindo um dever dos adultos para com as crianccedilas No entanto

o que pode resultar dessa operaccedilatildeo no fazer do educador ou seja a operaccedilatildeo de colocar a

educaccedilatildeo em funccedilatildeo do saber meacutedico eacute produzir nos professores uma desautorizaccedilatildeo de seu

lugar de saber eacute produzir na escola uma paralisia em arranjar alternativas pedagoacutegicas para

problemas educacionais como apontam Santos e Freitas (2016) Ao mesmo tempo tal operaccedilatildeo

resulta em produzir um fora em convocar um representante do saber medicalizante a partir de

um lugar de saber impositivo e resolutivo como o recurso deus ex machina que natildeo se tece

com outros saberes

Na pesquisa sobre a medicalizaccedilatildeo descobrimos que a relaccedilatildeo entre saber medicalizante

e escola participa de um processo que vem se construindo haacute muitos anos Na medida em que

coube agrave psiquiatria a autoridade para promover a diferenccedila entre normalidade e patologia e criar

meios para investigar e prevenir anormalidades a medicina foi ganhando espaccedilo no seio das

relaccedilotildees familiares e dentro das escolas para detectar ainda nas crianccedilas possiacuteveis problemas

de desenvolvimento Como ocorre a conquista dessa autoridade

64 Medicalizaccedilatildeo na escola e dever moral

A partir de Foucault (1974-19752001) entendemos que esse processo estaacute a serviccedilo da

manutenccedilatildeo da moral social e com isso justifica-se por si mesmo Os desvios de

comportamento de crianccedilas mesmo em classes consideradas normais que tocavam em alguma

moral estabelecida socialmente como por exemplo a indisciplina eram motivo suficiente para

a escola abrir as portas para o saber constituiacutedo cientificamente pela psiquiatria Entendemos

que a medicalizaccedilatildeo na escola cumpre um dever moral assim como o deus ex machina assumiu

uma funccedilatildeo moralizante na trageacutedia antiga culminando em seu fim de acordo com Nietzsche

(18721992)

Com o estudo e o desenvolvimento dos transtornos mentais chegamos ao TDAH cujo

diagnoacutestico parece ser bastante frequente em estudantes considerando a frequecircncia de

prescriccedilotildees medicamentosas para este puacuteblico (SISTEMA NACIONAL 2012) Acreditamos

206

que o transtorno apresenta sintomas que questionam uma regulaccedilatildeo social em nossos dias que

diz respeito ao modo como lidamos com o tempo A falta de atenccedilatildeo e de concentraccedilatildeo nos

estudos e atividades acadecircmicas bem como a inquietaccedilatildeo que impede o controle sobre o proacuteprio

corpo satildeo vistas como signo de um futuro fracasso escolar na medida em que podem interferir

nos ideais sociais de rendimento e de produtividade que almejamos inscrever em nossas

crianccedilas

Nesse sentido o encaminhamento por parte da escola de um aluno que apresenta

sintomas de desatenccedilatildeo e hiperatividade para um especialista acaba por constituir um dever

moral da escola de nosso tempo Servimo-nos do discurso medicalizante e psicopatologizante

para oferecer soluccedilotildees praacuteticas para problemas educativos ao percebermos a que distancia

nossas crianccedilas se encontram dos ideais de comportamento do perfil desejado na escola

O problema de nos pautarmos em tais ideais na cena escolar eacute que no lugar das palavras

que educam oferecemos diagnoacutesticos e medicamentos como soluccedilatildeo aos problemas de

aprendizagem e comportamento Tais intervenccedilotildees meacutedicas acabam por dispensar as estrateacutegias

pedagoacutegicas da escola ou ao menos colocaacute-las como alternativas temporaacuterias e secundaacuterias agraves

medidas corretas e justas oferecidas pelo saber meacutedico

Parece-nos que compartilhamos da seguinte ideia ao identificarmos em sala de aula

uma crianccedila com dificuldades para se comportar da maneira desejada temos a obrigaccedilatildeo moral

de dizer a seus pais que provavelmente ela sofre de algum transtorno e deve consultar um

especialista Se natildeo o fizermos estaremos em falta com uma moral social O que tentamos

mostrar neste trabalho eacute que tal conduta natildeo eacute dada a priori ela eacute construiacuteda ao longo dos

seacuteculos e o que nos cabe eacute questionar seus efeitos para a legitimaccedilatildeo do saber da escola

65 Solucionar o problema eacute enunciaacute-lo

Na medida em que a conduta da escola de encaminhar um aluno com problemas de

aprendizagem e comportamento para um especialista estiver respondendo a uma obrigaccedilatildeo

moral isso pode constituir uma barreira poderosa agraves alternativas que podem ser arranjadas pelo

desejo de educar considerando que haacute uma diferenccedila importante entre uma lei moralmente

imposta e uma lei que se revela em accedilatildeo sempre e a cada vez

Recuperamos dessa maneira a equaccedilatildeo teoacuterica por noacutes proposta O deus ex machina na

cena traacutegica pode produzir um desenlace de efeito moralizante Do mesmo modo a

207

medicalizaccedilatildeo pode incidir sobre a cena escolar Se num trabalho conjunto seguindo a lei de

nosso desejo conseguirmos rearranjar a disposiccedilatildeo desses elementos em cena podemos

produzir novas formas de desenlace

Se educar eacute um dever social que podemos exercer natildeo sem o desejo que nos move eacute

porque representa um modo de pagar a diacutevida simboacutelica por termos sido inscritos em uma

cultura por um mestre de ocasiatildeo (LAJONQUIEgraveRE 1997) Nesse sentido somente podemos

educar pela via da palavra que nos marcou subjetivamente o que comporta a equivocidade que

lhe eacute inerente Assim entendemos que a educaccedilatildeo se situa numa arena carregada de

potencialidades simboacutelicas e que guarda uma dimensatildeo impossiacutevel limite insuperaacutevel e

inconsciente intriacutenseco ao educar O uacutenico modo de trabalharmos o impossiacutevel eacute sabermos que

natildeo podemos jamais controlaacute-lo ou excluiacute-lo entatildeo podemos arranjar formas de trabalhar com

ele

O TDAH natildeo eacute o impossiacutevel do educar para o professor nem nenhum outro transtorno

de aprendizagem ou comportamento que a psiquiatria encontra na cena escolar Ele tem se

tornado na verdade uma dificuldade na rotina escolar para a qual o saber meacutedico apresenta

uma soluccedilatildeo farmacoloacutegica Tal conduta natildeo eacute capaz de situar ou de ressituar o lugar do

impossiacutevel na cena educativa Essa tarefa pode ser realizada a partir das palavras norteadoras

que dirigimos aos nossos alunos e dos efeitos destas no modo como eles conseguem se situar

na rotina escolar

Podemos trabalhar com o impossiacutevel inerente ao ato educativo na medida em que

tomarmos os sintomas descritos do TDAH vividos em cada histoacuteria singular de nossas crianccedilas

como efeitos da experiecircncia escolar e de outros ambientes onde os estudantes circulam

acolhendo a hiperatividade e a desatenccedilatildeo como parte de um jogo de relaccedilotildees que constituiacutemos

diariamente uns com os outros natildeo como mal individual a ser moralmente combatido

eliminado com medicamentos e exclusatildeo escolar

Aleacutem disso a agitaccedilatildeo e a dispersatildeo que as crianccedilas podem apresentar na escola natildeo

constituem em si mesmas um impedimento para a aprendizagem A tentativa de buscar um

lugar na cena educativa que muitas vezes aparece na forma de sintomas principalmente no

iniacutecio da escolarizaccedilatildeo pode abrir espaccedilo para que a aprendizagem aconteccedila Do mesmo modo

o professor pode reencontrar seu lugar a autorizaccedilatildeo de seu saber se entender que mesmo os

alunos que apresentam dificuldades de comportamento podem estar aprendendo para aleacutem dos

contornos de sua intervenccedilatildeo

208

Em nossas escolas haacute muitas crianccedilas e adolescentes diagnosticados com TDAH ou

com outros transtornos e medicados com metilfenidato alunos com os quais os professores

precisam trabalhar diariamente Embora a agitaccedilatildeo e a dispersatildeo sejam suspensas

temporariamente como efeito decorrente do remeacutedio agindo no Sistema Nervoso Central o

fato de os alunos permanecerem assintomaacuteticos durante as aulas natildeo garante por si soacute o sucesso

acadecircmico Talvez o que a intervenccedilatildeo meacutedica possa garantir eacute que esses alunos natildeo atrapalhem

a rotina escolar e o planejamento do professor

No entanto o trabalho de inscrever a crianccedila no mundo de descobertas que a escola

possibilita tomaacute-la como parte de uma cultura compartilhada com seus colegas tocaacute-la em seu

desejo de aprender constitui a indispensaacutevel e insubstituiacutevel tarefa do educador que a exerce

como desejo e dever como ananke

Acreditamos portanto que constitui tarefa importante para a escola de nosso tempo

para pais e matildees de alunos e para os profissionais meacutedicos e psicoacutelogos que satildeo chamados a

falar a partir do lugar de saber que tenhamos no horizonte de nosso fazer um trabalhar em

conjunto reconhecendo os limites e alcances de nossa atuaccedilatildeo num jogo que em vez de excluir

o outro convoca-o a falar a partir do seu lugar de saber Desejamos com este trabalho contribuir

para o campo da educaccedilatildeo valorizar o fazer dos professores e professoras a cena escolar e as

suas potencialidades na transformaccedilatildeo de vidas

209

EPIacuteLOGO

As passagens que se seguem fizeram parte do cenaacuterio de composiccedilatildeo deste trabalho

ainda que natildeo tenham ingressado nas discussotildees teoacutericas Satildeo histoacuterias vividas em diferentes

escolas narradas de diferentes lugares ocupados pela autora

Jaacute passava das 13h Por descuido de algueacutem ou quem sabe por zelo uma fresta do

portatildeo permanecia aberta por onde era possiacutevel cruzar Sem a sineta da entrada sem a

cantoria de boas-vindas sem as matildeos dos colegas na fila desajeitadamente dadas apertadas

o que fazer Comeccedilava assim um dos segundos dias na escola

Sem muito pensar apoacutes passar pelo portatildeo de entrada o menino subiu os degraus e

atravessou sozinho pelos portotildees do edifiacutecio Teve a sensaccedilatildeo de que algueacutem o vira a sensaccedilatildeo

de ser olhado Laacute de dentro natildeo tinha como sair o teto era tatildeo alto e amplo que chegava a

sufocar mas isso o fez andar os corredores eram tatildeo longos que natildeo se via o seu fim mas

por isso deveria percorrecirc-lo

Enquanto ia as portas das salas de aula proliferavam a cada passo mais e mais Todas

fechadas Ateacute que parou diante de uma que lhe pareceu especialmente familiar Havia um

barulho que vinha laacute de dentro O uacutenico a habitar aquele espaccedilo Um som de batidas leves

ritmadas o giz Comprido e seco receacutem-retirado da caixa O giz riscando o quadro De que

cor Pouco importava pensou meses depois Talvez fosse o quadro a consumir o giz

Embalado pelo som da consumaccedilatildeo agora mais apressado a chegar ao fim da escrita

o aluno perdido deu duas batidas agrave porta O barulho inicial parecia mais expressivo era o

barulho interrompido o barulho da ausecircncia do barulho O menino sentiu que existia naquele

instante A porta se abriu a professora do outro lado sorriu mas antes apertou os laacutebios

Olhou para o reloacutegio e disse estaacute atrasado Indicou uma classe e convidou o aluno a se sentar

Ele entrou olhou para os outros seus colegas que tambeacutem o olharam por um momento

O que havia acontecido Todos estavam tatildeo seacuterios enfileirados uniformizados assombrados

quietos Parecia guardarem um segredo um segredo prometido a jamais ser revelado Algueacutem

tinha falecido

210

O menino pensou que sim estavam todos na primeira seacuterie do ensino fundamental

Todos os alunos faziam o mesmo que a professora fazia com o giz e o quadro mas usando o

laacutepis e a folha respectivamente Olhavam identificavam as formas as letras e as copiavam em

seus cadernos A professora de costas terminou de escrever ao quadro sentou-se agrave sua mesa

e olhou para seu caderno Quando o aluno se sentou em seu lugar entendeu que deveria fazer

o mesmo que os outros Sentiu uma espeacutecie de aliacutevio Agora era tambeacutem um outro Estava a

salvo

Mais ou menos assim se acomodou a escuta das lembranccedilas de escola de alguns alunos

de cursos de licenciatura quando a professora de Psicologia da Educaccedilatildeo lhes pediu para

narrarem cenas vividas na escola Alguns quiseram contar sobre a transiccedilatildeo da educaccedilatildeo infantil

para o ensino fundamental Outros sobre um dia em que chegaram atrasados ou sobre a

atmosfera que sentiam na escola seus espaccedilos ares cores ritmos Outros ainda sobre

professoras especiais sobre projetos cientiacuteficos sobre amizades sobre preconceitos

ldquoPor que fica essa marca de alguma coisa como a morte como uma coisa da qual se

escapa por um trizrdquo pensa inquieta a professora Eacute E se a porta estivesse fechada e se o

aluno natildeo encontrasse a sala e se a professora natildeo o deixasse entrar e se ele se entregasse agrave

imensidatildeo abismal daquele lugar chamado escola Um lugar que paradoxalmente nos eacute

apresentado como salvaccedilatildeo como caminho digno para virarmos pessoas dignas Por que

apesar de os estudantes natildeo terem dito exatamente isso que a professora conseguiu escrever o

que resta a ela tem uma atmosfera sombria de pesar de solidatildeo Natildeo haacute como pedir para os

outros atravessarem lugares esquecidos da memoacuteria sem atravessaacute-los tambeacutem

Mas o preacutedio ndash que edifiacutecio mais excecircntrico e antigo aquele ndash para mim como era verdadeiramente um palaacutecio encantado Natildeo havia de fato fim para seus meandros ndash para suas incompreensiacuteveis subdivisotildees Era difiacutecil a qualquer dado momento dizer com certeza em qual de seus dois andares calhava de se estar De qualquer cocircmodo para qualquer outro acontecia seguramente de se topar com trecircs ou quatro degraus fosse para subir fosse para descer E ainda as passagens laterais eram inumeraacuteveis ndash inconcebiacuteveis ndash e de tal modo desembocando em si mesmas que nossas ideaccedilotildees mais exatas com respeito agrave totalidade da mansatildeo natildeo eram muito diferentes dessas com que ponderaacutevamos sobre o infinito (POE 2012 p 28)

211

O cenaacuterio embora confuso e de difiacutecil compreensatildeo passiacutevel de descriccedilatildeo na pena de

Edgar Allan Poe em seu conto ldquoWilliam Wilsonrdquo poderia ser a escola do pequeno texto

produzido pela professora na tentativa de contornar as imagens provocadas pelos relatos de seus

alunos Eacute tambeacutem uma escola no conto de Poe onde o narrador estudava o lugar onde aparece

um colega de mesmo nome e aparecircncia causador de grande sofrimento Esse cenaacuterio escolar

de possiacutevel emergecircncia da anguacutestia da estranheza eacute o mesmo local onde a crianccedila encontra

possibilidades de lidar com ela acessa um mundo aleacutem de seu lar comeccedila a participar de

relaccedilotildees aleacutem do pequeno universo de familiares vizinhos parentes Conhece outros jeitos

possiacuteveis de ser e estar no mundo conhece outras regras novos valores ganha papeis sociais

Natildeo eacute apenas filho irmatildeo sobrinho natildeo eacute somente crianccedila mas torna-se aluno e colega assume

responsabilidades pelas quais seraacute cobrado avaliado ou pelo menos assim se espera

Ao registrar a escuta a professora se reporta agrave antiga escola onde cursou os primeiros

anos do primeiro grau Parecia estar laacute mais uma vez Quantas alegrias quantas violecircncias

Adorava perambular pelos corredores espiar as outras salas flagrar outras turmas em seus

disfarces de alunos comportados Adorava ir para a cantina da escola conversar com as

cozinheiras sentir aquele cheirinho de mingau ou de caldo de feijatildeo sendo preparado Agraves vezes

apanhava de colegas mais fortes por um motivo ou outro Levou soco chute bolada que hoje

natildeo doem mais Lembra-se de que tinha medo mesmo de natildeo conseguir terminar de copiar tudo

o que estava no quadro O quadro era imenso Dividido em trecircs partes Tinha que terminar de

escrever porque era preciso apagar para escrever mais e noacutes precisaacutevamos registrar tudo

Por que as professoras eram tatildeo quietas Aguardavam pacientemente que a turma

terminasse de copiar e ficavam absortas em seus pensamentos Por observarmos as professoras

em seus jeitos calados ou entatildeo por olharmos os galhos das grandes aacutervores que nos

circundavam pelo lado de fora ou ainda por olharmos a atenccedilatildeo bonita a letra bonita de um ou

outro colega alguns de noacutes natildeo conseguiacuteamos terminar de copiar Isso deixava professoras e

matildees chateadas preocupadas com nossa evoluccedilatildeo Copiar era coisa muito importante

As matildees perguntavam para noacutes seus filhos por que ficaacutevamos olhando para as paredes

em vez de copiar Natildeo era por falta de tempo jaacute que a maioria da turma conseguia As

professoras diziam que eacuteramos dispersos e desatentos Checavam caderno por caderno para ver

se a tarefa do dia anterior havia sido feita para ver se os alunos tinham de fato copiado tudo

para ver como estava a letra para ver se tinham feito orelhas e garranchos Isso nos deixava

nervosos apreensivos achaacutevamos que nunca conseguiriacuteamos aprender

212

Alguns de noacutes passavam esse limite de uma simples falta de atenccedilatildeo ao quadro e ao

caderno Faltava um cuidado tambeacutem com os corpos Natildeo os continham eram conduzidos por

eles de um lado a outro da sala para fora da sala pelos corredores Algumas crianccedilas explodiam

seus corpos na hora do recreio depois de uma eternidade contida poderiam finalmente se

libertar daquele lugar daquele papel de aluno comportado e correr pelo paacutetio jogar-se ao chatildeo

brigar com colegas

Ateacute acalmarem os acircnimos na volta do recreio levava um bocado de tempo Alguns

tomavam advertecircncia saiacuteam da sala para a diretoria choravam gritavam As matildees diziam que

na classe parecia haver um bicho carpinteiro que os impedia de ficarem sentados As

professoras concordavam mas no fundo pensavam que essas matildees natildeo davam limite aos seus

filhos e agora elas eacute que teriam que lidar com isso Deveriam entatildeo envolvecirc-las na educaccedilatildeo

escolar Qualquer deslize dos alunos com o caderno que era disciacutepulo do quadro negro ou com

o comportamento um bilhete era enviado para os pais E naquele tempo as crianccedilas respeitavam

os pais Os pais davam razatildeo para os professores Os professores eram uma referecircncia para que

a educaccedilatildeo acontecesse Eacute o que agraves vezes pensa nostaacutelgica a professora que tem essas

memoacuterias

Lendo esse pequeno texto essa pequena lembranccedila eacute possiacutevel dizer que as professoras

faziam as coisas acontecerem Natildeo sabiam como natildeo sabiam por quecirc mas estavam sempre

referidas ao quadro ao caderno ao giz a pilares que sustentavam seus lugares de saber na sala

de aula e todos noacutes acreditaacutevamos nelas Bem ou mal nos educaacutevamos Alguns chegavam ao

fim do primeiro grau ao ensino meacutedio quando copiaacutevamos menos anotaacutevamos mais a

explicaccedilatildeo do conteuacutedo liacuteamos livros sabiacuteamos quais as mateacuterias favoritas quais as odiadas

e o que nos movia era um laccedilo de amizade um desejo de futuro vou ser artista engenheiro

advogada meacutedico jornalista Para outros a escola deixava de fazer sentido laacute pela quinta ou

sexta seacuterie ou mesmo mais tarde Talvez nunca tivesse feito sentido Por quecirc Faltavam agraves aulas

por dias semanas ateacute desistirem Comeccedilavam a trabalhar cedo formavam uma famiacutelia cedo

Cedo para mim O futuro deles era agora

Uma aluna entre noacutes buscou a sonhada formaccedilatildeo em teatro e depois de um tempo de

procura por trabalho e indecisotildees optou pela carreira acadecircmica mestrado e doutorado em

educaccedilatildeo Numa escola estadual de ensino fundamental e meacutedio um grupo de alunos do

primeiro ao quarto ano foi designado a participar de uma oficina de teatro que ocorreria

semanalmente Assim foi nomeada a atividade pela nossa colega agora proponente da oficina

213

artista e doutoranda em educaccedilatildeo As professoras chamaram de reforccedilo para alunos com

dificuldade para ler e escrever

O retorno agrave escola causou ansiedade agrave ministrante da oficina porque a escola puacuteblica

onde estudou tinha quase a mesma estrutura fiacutesica o mesmo cheiro a mesma umidade nos

corredores Passou de sala em sala para chamar os participantes e se surpreendeu ao ver as

crianccedilas copiando do quadro A professora seacuteria e sentada Haacute quantos anos havia saiacutedo da

escola Numa das turmas a professora entregava folhinhas mimeografadas cheia de atividades

para os alunos completarem O velho mimeoacutegrafo continua trabalhando Numa outra sala a

professora discutia com um aluno que natildeo queria sentar e tinha riscado no caderno de uma

colega Ao ver a oficineira a professora disse ele estaacute impossiacutevel hoje precisa ir para o reforccedilo

O objetivo era oferecer a arte teatral como um dispositivo de expressatildeo e elaboraccedilatildeo de

questotildees subjetivas que possam estar dificultando a aprendizagem e o estabelecimento de laccedilos

A psicopedagoga e a psicoacuteloga da escola adoraram a ideia ldquoTudo o que vem para nos ajudar a

gente aceita A gente precisa de ajuda com os alunos que natildeo sabem ler e escrever e que natildeo

podem repetir de ano Eles satildeo muito agitados e hiperativos Alguns tecircm laudo Natildeo obedecem

mais As matildees natildeo se preocupam mais com a educaccedilatildeo dos filhos Acham que a escola precisa

dar conta de tudo Poreacutem a escola natildeo eacute uma extensatildeo de casardquo

Numa reuniatildeo com responsaacuteveis pelas crianccedilas participantes para explicar o

funcionamento da oficina muitas queixas foram feitas sobre as professoras satildeo riacutegidas

exigentes datildeo tarefa quase todos os dias haacute conteuacutedos que os pais natildeo lembram mais e as

professoras os obrigam a fazer junto com os filhos que o filho chega machucado em casa e

ningueacutem sabe o que aconteceu que tem paacuteginas arrancadas do caderno e a professora natildeo sabe

quem fez que a professora apaga muito raacutepido do quadro e natildeo daacute tempo do filho copiar Muitas

crianccedilas tecircm laudo e natildeo tomam remeacutedio e isso pode ser perigoso porque podem bater nos

colegas e as professoras natildeo cuidam Quanto agrave proposta da oficina adoraram

Os elementos cecircnicos na escola eram praticamente os mesmos talvez as funccedilotildees fossem

ainda as mesmas o cenaacuterio os papeis Mas havia algo novo um novo arranjo um novo

discurso Ouviam-se termos como ldquolaudordquo ldquohiperatividaderdquo ldquoencaminhamento para meacutedicordquo

Havia um pedido de ajuda de algo que operasse entre pais e professores entre professores e

alunos E natildeo era um pedido pela oficina

Logo a ministrante percebeu que as crianccedilas natildeo queriam aprender fundamentos do jogo

cecircnico para que atraveacutes da representaccedilatildeo teatral apresentassem e elaborassem questotildees

214

subjetivas questotildees que ela natildeo sabia quais eram e pensava que natildeo vinham ao caso pois ali

natildeo era uma terapia Suas questotildees subjetivas deveriam aparecer apenas em jogo em cena

Encontrar um tom entre a professora de teatro e uma posiccedilatildeo de escuta era um desafio

uma busca contiacutenua Num desses dias de encontrar um tom uma das meninas respondeu a uma

pergunta oacutebvia da ministrante Ela queria saber como era ser crianccedila como sabiam que eram

crianccedilas ldquoEacute oacutebvio que somos crianccedilas natildeo estaacute vendo Acha que somos o quecirc Cococirc de

cavalordquo

No teatro cococirc de cavalo mais conhecido como merda eacute sinal de que uma encenaccedilatildeo

fez sucesso Quando essa expressatildeo surgiu os espectadores iam ao teatro de charrete puxada

por cavalos Desejava-se que os arredores do local ficassem cheios de merda Por isso que hoje

desejam merda aos atores que vatildeo entrar em cena eacute uma forma de desejar-lhes sorte

Essa foi uma forma de interpretar que a ministrante estava em busca dos resultados do

sucesso de sua proposta Aleacutem disso estava diante de crianccedilas Os alunos com dificuldades

eram antes de tudo crianccedilas Crianccedilas que brincam que pulam que correm Desejam sair desse

lugar de resto excremento constituir-se como sujeitos

Foi assim brincando experimentando de modo caoacutetico impaciente urgente destrutivo

uma atividade apoacutes a outra um livro apoacutes o outro sem tempo para pausas que criaram uma

atividade que os capturou como grupo uma brincadeira de escola Brincar de ser a professora

de ser a diretora de ser a aluna ou o aluno mais inteligente da escola ou o mais perigoso ou

um aluno adolescente do ensino meacutedio Brincar de escrever no quadro brincar de ensinar de

escrever o proacuteprio nome o nome do colega de procurar nos livros as letras do seu nome ou de

palavras que significavam algo importante para eles O faz-de-conta da sala de aula durava todo

o tempo da oficina eles mesmos regulavam criavam regras entravam num acordo de quem

seria a professora e por quanto tempo Agraves vezes retornavam ao caos novos membros entravam

no grupo outros saiacuteam porque jaacute sabiam ler e escrever ou entatildeo porque saiacuteam ou mudavam de

escola

Natildeo sei bem como as oficinas chegaram ao fim a ministrante queria muito que as

professoras vissem os alunos brincando contava para elas durante o intervalo ou na porta da

sala o que os alunos faziam nos encontros Elas sorriam agradeciam perguntavam sobre um

ou outro que lhes causava mais preocupaccedilatildeo Nunca assistiram A ministrante pensou em

formar uma oficina das professoras Propocircs para a coordenadora pedagoacutegica e para a psicoacuteloga

que se reunissem agrave tardinha mas elas jaacute avisaram que as professoras natildeo teriam interesse Natildeo

215

quis insistir Tambeacutem natildeo tinha convicccedilatildeo de que queria mesmo isso Matildees reclamaram que os

filhos estavam perdendo aula para participar das oficinas o que tambeacutem era uma preocupaccedilatildeo

da ministrante mas era o uacutenico horaacuterio possiacutevel A tentativa de marcar meia hora antes da aula

ou apoacutes a aula natildeo funcionou

Apoacutes trecircs semestres de atividades as oficinas terminaram Afinal qual era a funccedilatildeo da

ministrante naquele cenaacuterio Era um trabalho sutil uma ponte das crianccedilas com seu desejo de

aprender algo que pode acontecer de outras formas natildeo com uma oficina ldquoAs crianccedilas acabam

aprendendo de uma forma ou de outrardquo pensava

Nas brincadeiras de sala de aula que as crianccedilas inventavam muitas vezes as professoras

eram brabas furiosas xingavam os alunos por qualquer motivo mandavam sentar calar a boca

ameaccedilavam com bilhete para casa davam nota zero para a maioria mandavam copiar tudo do

quadro e natildeo aguardavam apagavam rapidamente Os alunos favoritos geralmente dois

ganhavam nota dez e eram alvo de chacota Os que faziam os alunos mais rebeldes provocavam

a professora perguntando em demasia reclamando que um colega empurrou pedindo para ir

ao banheiro

Algumas vezes as professoras eram doces inventavam algum conteuacutedo sobre qualquer

coisa explicavam pacientemente os alunos faziam as atividades com calma um desenho

respondiam as perguntas de uma folhinha que a professora entregava Depois ela passava de

classe em classe avaliando o que cada um estava fazendo Estaacute muito bom mas pode melhorar

soacute errou duas ou entatildeo acertou todas nota dez vai ser o ajudante do dia Muitas vezes isso

acontecia com aquelas crianccedilas mais difiacuteceis Havia um menino que era alvo de queixa de toda

a escola porque sempre se metia em confusatildeo Ameaccedilava colegas o tempo todo fazia

comentaacuterios preconceituosos que prontamente eram sinalizados pelos outros que o faziam se

desculpar pedindo o apoio da ministrante Muitas vezes gritava que queria matar sua matildee que

a odiava Gritava que natildeo gostava de sua professora que era brega e chata

Um dia disseram que ele seria o professor Ficou constrangido natildeo sabia como agir

mas aceitou Oscilou entre os dois papeis de um professor perverso e um professor amoroso

A turma divertiu-se muito com ele riam de seu jeito furioso e da imitaccedilatildeo que apareceu na hora

Perverso para demandar tarefas amoroso para corrigir Conferiu o caderno de cada aluno seu e

fez um certinho de laacutepis vermelho Natildeo se sentiu confortaacutevel quis interromper a encenaccedilatildeo

disse que tinha feito errado que natildeo sabia brincar de ser o professor mas a turma o aprovou eacute

216

assim mesmo que acontece as professoras agraves vezes satildeo brabas e agraves vezes satildeo queridas Agraves vezes

elogiam datildeo notas boas agraves vezes gritam e datildeo zero

Algo se passou com o menino difiacutecil e raivoso certamente natildeo uma mudanccedila definitiva

mas se mostrou mais amigo da turma emprestou materiais a quem natildeo tinha oferecia-se para

ajudar a arrumar a sala mas desestabilizava-se facilmente Fugia do grupo corria pelo paacutetio e

voltava O olhar da professora e da escola sobre ele parecia seguir o mesmo natildeo havia

diferenccedila Jaacute haviam pedido para a matildee levaacute-lo a um meacutedico levaacute-lo ao CAPS porque

certamente tinha algum problema era hiperativo com certeza soacute natildeo tinha laudo mas a matildee

pouco se importava Natildeo sabia nem quem era seu pai A psicoacuteloga da escola sabia dessa

situaccedilatildeo conhecia sua histoacuteria de vida mas dizia e defendia que haacute coisas que a escola natildeo

pode e nem deve dar conta vatildeo aleacutem do papel dela e das professoras Aleacutem de um papel de

educar ldquoEducaccedilatildeo vem do berccedilo de casa [] aqui as professoras ensinam a ler a escrever a

fazer contas Tudo o que estaacute aleacutem disso eacute um problema para os pais resolverem [] eu ajudo

escuto encaminho mas eles satildeo os responsaacuteveisrdquo

Nas brincadeiras de sala de aula as aprendizagens de leitura e escrita as contas eram

meras coadjuvantes Brincavam na imprecisatildeo dessas habilidades pouco importava se estava

realmente certo agraves vezes simulavam escritas faziam rabiscos faz de conta que sabiam escrever

O que os movia ali era o jogo de relaccedilotildees era ser algueacutem que sabia ser um aluno comportado

ser a professora

A ministrante sabia que as representaccedilotildees de mestres que apareciam em cena natildeo

correspondiam diretamente ao modo de ser ou agrave personalidade das professoras dos primeiros

anos Quem eram entatildeo essas personagens caricatas Eram produtos de suas relaccedilotildees com as

professoras era o que sustentava esse viacutenculo era um oacutedio e um amor encenados era a

transferecircncia operando para que o desejo de aprender acontecesse

Freud no texto ldquoAlgumas reflexotildees sobre a psicologia do escolarrdquo de 1914 ao discursar

no aniversaacuterio de sua escola primaacuteria fala-nos que como estudantes ele e seus colegas

poderiam tanto amar quanto odiar seus professores inventando simpatias e antipatias que natildeo

provinham dos mestres mas de projeccedilotildees do lugar de aluno em direccedilatildeo a esse lugar ocupado

por aquela figura que organiza uma sala de aula Para Freud

[] eacute difiacutecil dizer se o que exerceu mais influecircncia sobre noacutes e teve importacircncia maior foi a nossa preocupaccedilatildeo pelas ciecircncias que nos eram ensinadas ou pela personalidade de nossos mestres Eacute verdade no miacutenimo que esta segunda preocupaccedilatildeo constituiacutea uma corrente oculta e constante em

217

todos noacutes e para muitos os caminhos das ciecircncias passavam apenas atraveacutes de nossos professores Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos ndash porque natildeo admitir outros tantos ndash ela foi por causa disso definitivamente bloqueada (FREUD 19141996a p 286)

As professoras tinham na escola essa tarefa de dar um suporte de sustentar acolher

projeccedilotildees Difiacutecil oferecer-se assim de matriz a receber inscriccedilotildees demandas que natildeo satildeo suas

Mas eacute assim que a educaccedilatildeo pode acontecer Enquanto ensinam conteuacutedos satildeo suporte de

outras coisas de cada um dos alunos para que a relaccedilatildeo ensino aprendizagem opere E sobre

os alunos o que elas pensavam o que esperavam deles Falavam de um ou de outro

atravessadas por um vieacutes diagnoacutestico que estava aleacutem de sua alccedilada de sua responsabilidade

de seu fazer de seu saber

A maioria dos participantes do grupo havia sido encaminhada pelas professoras em

funccedilatildeo de seu comportamento hiperativo Para elas a dificuldade de aprender estava

relacionada agrave hiperatividade pois se conseguissem parar e prestar atenccedilatildeo certamente

aprenderiam Se pudessem ter um tempo soacute com eles individualmente sentar ao lado ajudar a

organizar o caderno acreditam que conseguiriam fazecirc-los aprender Mas com uma turma de

mais de vinte crianccedilas natildeo conseguem Por isso agradeciam a ajuda da psicoacuteloga da escola e da

ministrante das oficinas que conseguiam dar uma atenccedilatildeo mais individualizada a esses alunos

Ao ler essas passagens registros de uma oficineira parece-me que as pessoas que

trabalham na escola sabem que haacute algo novo que emerge em sala de aula uma urgecircncia que

aparece com alguns alunos e para a qual natildeo se sentem aptas a contornar Entendem que isso

estaacute para aleacutem de suas possibilidades Firmam-se ao protocolar agravequilo que funcionava quando

foram alunos ao que lhes foi transmitido em suas formaccedilotildees docentes O que natildeo se organiza

dentro dessas arestas entendem que natildeo lhes pertence A responsabilidade eacute dos pais a

educaccedilatildeo vem do berccedilo dizem Ou entatildeo a crianccedila tem um problema eacute hiperativa logo a

responsabilidade eacute do meacutedico que iraacute atendecirc-la Mas apesar disso que pode ser nomeado de

hiperatividade apesar dessa coisa que escapa agrave educaccedilatildeo formal haacute um desejo de ensinar

imaginam uma situaccedilatildeo em que sentam ao lado do aluno e lhe datildeo uma atenccedilatildeo diferenciada

Esse gesto seria potente diante da indisciplina Por que natildeo encorajaacute-lo

A posiccedilatildeo da escola de armar bem suas arestas definir seus limites dizer qual seu papel

qual seu lugar eacute digno e responsaacutevel

A proponente da oficina descobriu que os participantes eram crianccedilas ndash um lugar

investido para aleacutem de um resto de uma merda Precisou reconhecer esse lugar para que a

218

oficina ganhasse uma forma criada e inventada em grupo que fez aparecer algo em comum as

coisas que natildeo aparecem quando satildeo alunos que natildeo satildeo vistas Seus afetos seus desejos a

atualizaccedilatildeo da transferecircncia

Na sala de aula poreacutem eles satildeo alunos Devem ser alunos Assim como as professoras

em sala de aula devem ser professoras Eacute esse o papel que pais e sociedade lhes exigem

Quantas coisas invisiacuteveis gostariam tambeacutem de tornar visiacuteveis em suas falas expressar de

alguma forma o que sentem Quem as escuta As professoras resistem A escola resiste com

suas folhinhas mimeografadas cheirando a aacutelcool

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