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DESIGN E ARTESANATO EM PERSPECTIVA:
POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES ENTRE SABERES E TÉCNICAS
NO SUL DE MINAS GERAIS.
Douglas dos Santos Lemos Lima1
RESUMO: Design e Artesanato são áreas do conhecimento humano que sofreram
mudanças significativas na contemporaneidade, sobretudo do ponto de vista de suas
práticas e tecnologias. Discuti-las sob a perspectiva dos Estudos Sociais em Ciência e
Tecnologia se torna além de necessário uma oportunidade, para que possíveis
aproximações entre os termos aconteçam e nos ajudem a obter novas perspectivas para
resolução de problemas complexos, peculiares à vida humana em sociedade. Inserido no
contexto do artesanato regional no Sul do Estado de Minas Gerais, este artigo se propõe
um articulador das diversas proposições, recalcitrâncias e ligações constituídas por
atores em rede, onde artesão e artefato coproduzem relações sociais e determinam a
aplicação de saberes e técnicas. Apresentar-se-á o resultado de uma série de entrevistas
imersivas realizadas junto à associação Casa do Artesão Mariense, no município de
Maria da Fé/MG, buscando diálogos entre conceitos vindos do Design, Artesanato e
Sociologia, para assim formular intercâmbios epistemológicos capazes de lançar novos
olhares sobre os temas em questão, para além dos ditames de mercado ou das clássicas
discussões pautadas em arte e estética.
PALAVRAS-CHAVE: Design, Artesanato, Tecnologia, Sociedade, Perspectiva.
1 Aluno, bolsista CAPES, no programa de mestrado em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade
(DTecS), da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI). Pesquisador no Grupo de Ensino, Pesquisas e
Extensão em Tecnologias e Ciência (GEPETEC). Graduado em Desenho Industrial. -
[email protected] - Currículo Lattes disponível em: http://lattes.cnpq.br/2268504144774422
(acesso em 08/04/2015).
mailto:[email protected]://lattes.cnpq.br/2268504144774422
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PARA REFLETIR O ARTESANATO E O DESIGN
As reflexões que serão travadas durante este texto, apresentam-se como
resultados parciais de uma série de pesquisas desenroladas no sul de Minas Gerais entre
os anos de 2012 e 2015. Trata particularmente sobre o escopo da sociologia das
tecnologias no que tange as demandas advindas do artesanato e do desgin, tanto em
quesitos da “lógica do capital atual”, quando de seus desvios durante a organização de
“atores e projetos sociopolíticos” (MELLO, PIMENTA, 2014)2.
A proposta vincula-se às discussões feitas pelos pesquisadores do Grupo de
Ensino, Pesquisas e Extensão em Tecnologia e Ciência (GEPETEC), inseridos dentro
do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade (PPG
DTecS) da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI), onde busca-se reagregar as
complexas redes sociotécnicas3 que conformam, objetos, pessoas, sociedades, técnicas e
saberes, as quais estão atreladas a uma série de arranjos políticos, econômicos, e
agendas tecnológicas e desenvolvimentistas advindas do poder público (DAGNINO,
2008). Colocando em causa os atuais paradigmas no que diz respeito aos meios
alternativos de geração de renda e desenvolvimento regional.
O objetivo aqui pauta-se então nas possibilidades de se aproximar e elucidar
temas de escopo tão heterogêneos como artesanato e design, alinhavando tais questões
sociotécnicas ao imaginário e às práticas cotidianas vivenciadas nos lares de alguns
artesãos no Sul de Minas, permitindo emergir suas, sociabilidades, processos criativos e,
sobretudo, as muitas mãos e “não-mãos” construtoras de significado e identidades.
2 Artigo seminal escrito pelos professores Adilson da Silva Mello e Carlos Alberto Máximo Pimenta,
ambos do PPG DTecS no ano de 2013. “ENTRE DOCES, PALHAS E FIBRAS: EXPERIÊNCIAS
POPULARES DE GERAÇÃO DE RENDA EM CIDADES DE PEQUENO PORTE NO SUL DE
MINAS GERAIS”, publicado na Revista de Estudos de Sociologia da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) - v. 01, p. 10-21, 2014 – Trata de escopo similar dentro das discussões acerca do
social composto em redes de afetações, circunscrevendo-se às estratégias populares de geração de renda,
por meio de grupos de artesãos presentes nas cidades de Maria da Fé, Piranguçu e Alfenas, todos
localizados no Sul de Minas Gerais, no sentido de capturar os modos de saber-fazer traduzidos, a partir da
experiência popular, em existência de objetos técnicos, dimensões do humano, do não-humano, do
material e do imaterial contidos em suas práticas.
3 O termo “sociotécnica” é amplamente usado pelos teóricos da vertente dos Estudos Sociais da Ciência e
da Tecnologia (ESCT) – alude a um equilíbrio de forças e ações vindas de inúmeras instâncias que
performam o social, onde tecnologias, pessoas, objetos e a natureza colidem-se, recombinam-se,
constroem e desconstroem situações e interesses.
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PARTE 1 - PARA DESVELAR A TEORIA DOS ATORES EM REDE Para discutir os temas postos anteriormente, este artigo se propõe a construir
argumentações tendo como piso teórico-metodológico a Teoria Ator-Rede (TAR), pois
a partir dela teremos uma melhor visualidade dos possíveis vínculos gerados
entre materiais, artesãos, artefatos, saberes e técnicas. Sendo que estes já são frutos de
“redes ordenadas de materiais heterogêneos” (Law, 1992). Esta percepção que a TAR
nos permite ter ante a complexidade das questões que envolvem artesanato e design,
auxilia-nos na construção de metáforas que reagregam uma rede heterogênea de ações,
constituída de elementos díspares, que não simbolizam ou significam nada à priori, mas
que só tomam forma e desenham todo um contexto social quando em rede.
A partir da década de 1980, um grupo de cientistas sociais passava a pensar a
constituição da sociedade para além do determinismo social. Uma corrente tradicional
da sociologia que prevê um mundo onde humanos governam objetos e materiais que
seriam imparciais e desinteressados e, portanto, consideram em seu escopo de
interações apenas os intentos que os humanos lhes impõe. Surge assim, o campo de
estudos denominado de Sociologia das Técnicas (LATOUR, 2012).
Este antigo aparato epistemológico não fora suficiente para explicar uma série
de fatores e ligações que constituem nossa realidade, bem como não considerava uma
outra série de consequências vindas deste modo de pensar a construção do mundo. O
modo modernista de pensar o mundo considerava e entendia o fazer científico também
como neutro, ou seja, desatava-se das produções científicas todos os complexos
emaranhados de interesses particulares que atores diversos articulavam para
a obtenção de resultados específicos.
As instituições científicas não cogitavam que inclinações políticas,
mercadológicas e econômicas estavam sendo exercidas o tempo todo, “dentro e fora dos
laboratórios” (ANDRADE, 2011) e que estas inclinações modificavam todo o processo
formador, conformador e deformador dos artefatos que criávamos.
Andrade (2011, p. 75) explica que:
A sociologia das técnicas desenvolvida principalmente por Latour e
Callon, entende de forma semelhante a relação entre pesquisa e
administração científica. […] os técnicos e cientistas sofrem
ingerências constantes de setores extra científicos a partir de um sem
número de contextos e situações específicas que desenrolam
aleatoriamente dentro e fora dos laboratórios.
Juntamente a Callon e Latour, descritos por Andrade (2011) como expoentes nas
definições acerca da sociologia das técnicas, surgem vários outros autores que passam a
mudar os rumos de tais pensamentos, cristalizando a área dos Estudos Sociais da
Ciência e da Tecnologia (ESCT). Thomas Kuhn (1998), Isabelle Stengers (2002), Knorr
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Cetina (2005), David Bloor (1991), John Law (1992), entre outros, derrubam o caráter
etnocêntrico das ciências modernas, deixando de lado a estanque ideia de que
poderíamos produzir fatos e artefatos indeléveis e separados de relações sociais. A
exemplo de Stengers (2002) e Knorr-Cetina (2005), esta produção de fatos científicos
ou matter of facts4, funcionam na prática como “ficções científicas bem sucedidas”
(LIMA, MELLO, VEIGA; 2015) e portanto já não faz mas sentido nenhum conferir a
estes processos um status de neutralidade, uma vez que eles acontecem em ambientes
endógenos e exógenos à racionalidade científica.
Pesquisadores, objetos de pesquisa e os resultados que ambos geram são sempre
consequências dos vínculos e afetações que produzem entre si e seus rastros ficam
sempre registrados nas redes que (co)formam.
Para Andrade (2011, p. 75), “dentro dessa linha de argumentação, não é o campo
científico somente que impõe limitações e sanções, mas um conjunto desordenado de
procedimentos e interesses." Ora, nos fica claro que adotar uma linha pensamento onde
se coloca o artesão ou o designer como detentores do supremo domínio e manipulação
sobre os materiais disponíveis para seus trabalhos não é, nem de longe, a melhor
maneira de se contextualizar suas práticas. Conforme aponta André Lemos (2013, p.14),
já não devemos tomar a constituição de uma teoria social pelo “pressuposto epistêmico
da independência e da supremacia do humano sobre a técnica e a natureza”. Será
necessário então tomarmos emprestado de Bruno Latour (2012) sua filosofia dos atores
em rede, afim de estabelecermos algum esclarecimento.
A noção de rede vista em Latour traz consigo a ideia de elos ou ligações
exercidas por diferentes agentes relacionados em conjunto. O interesse latouriano5 em
tal proposição, pousa naquilo que ele chama de "processos de construção de fatos e
artefatos” (LATOUR, 2012). Para elucidar estes processos ele busca atribuir um certo
equilíbrio ou simetria entre ações humanas e materiais. Neste sentido é que se desloca o
termo social, pois este já não pode aludir a um nível estabilizado das coisas, “não temos
certeza se existem relações específicas o suficiente para serem chamadas de sociais”
(LATOUR, 2012, p. 20).
Somente agrupamentos de interesses múltiplos tornam-se palpáveis para serem
chamados de sociedades. A TAR serve-nos como um novo escopo para desvelar
relações sociais, permeadas de ações vindas de humanos e não-humanos6.
A sociologia toma então um caráter de busca por associações, naquilo que
4 O termo “Matters of Facts”, em tradução livre, pode significar “questões de fato”, e traduz uma
realidade construída apenas por “verdades”, indicações que visam estabelecer uma unidade convergente
entre o real e o seu modelo explicativo. Este seria o modelo condicionante da ciência moderna.
5 O termo “latouriano” é um emprego livre para denotar as ideias vindas do autor Bruno Latour.
6 Podemos dizer que “não-humanos”, à luz de Latour, são entendidos tanto como os elementos da
natureza, quanto como os resultados das interações do homem com a natureza e estes levam o nome de
híbridos.
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Latour chama de “associologia” ou sociologia de associações7.
Segundo Latour (2012):
A cada instância precisamos reformular nossas concepções daquilo
que estava associado, pois a definição anterior se tornou praticamente
irrelevante. Já não sabemos o que o termo 'nós' significa; é como se
estivéssemos atados por laços que não lembram em nada os vínculos
sociais. (LATOUR, B. 2012, p. 20)
A TAR então é a base para se desvelar o mundo sob novos prismas, não guiados
pelas afirmações precisas sobre a constituição da realidade (matters of facts) e sim, para
capturar uma realidade composta por proposições articuladas na rede de interações entre
humanos e não-humanos (LIMA, MELLO, VEIGA, 2015).
Desta feita, o social não é algo disposto o tempo todo para análise, é antes uma
configuração específica de atores conectados em rede. Reagregar estes atores e desvelar
estes vínculos é o que buscaria um cientista deste segundo momento do entendimento
social, preconizado por Latour. Descobrir outra definição para o termo social é
descobrir também outras definições possíveis para os termos design e artesanato e é
neste sentido que caminharemos para estabelecer suas possíveis relações.
PARA ARTICULAR PERSPECTIVAS Nesta proposta de uma sociedade conectada em rede, as mediações apontam um
status de constante redefinição da realidade. Fatos tornam-se apenas momentos,
conjecturas específicas, pontos de vista possíveis, onde já não existe maneira alguma de
conferir uma estabilidade pré-definida para os contextos sociais.
Todo elemento mediador é entendido, a partir de Latour (2000), como sendo um
ser actante8, ou seja, todo elemento seja ele material ou não, humano ou não, natural ou
não, é dotado de um caráter mediador de ações.
Neste sentido, não existiria uma maneira sólida de aceder uma essência primária
7 Bruno Latour em seu livro: “Reagregando o Social” (2012, p. 17-37) propõe que termo social,
vulgarmente usado para fornecer uma explicação social das coisas, não faz o menor sentido dentro das
novas questões experenciadas pela humanidade. Assim, os aspectos residuais de determinada área não
podem ser explicados por uma instância social, mas o social é que deve ser compreendido por
associações específicas fornecidas por estas determinadas áreas. A sociologia tomaria então um caráter
de busca por associações, estas são estabelecidas não por uma matéria homogênea, mas por uma série de
ligamentos entre elementos heterogêneos.
8 O termo “actantes sociais” é usado por Latour (2008) em detrimento ao termo “atores sociais” para
indicar que estes elementos só são considerados quando agem de fato. É apenas na ação destes que as
redes de interações podem se constituir.
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das coisas e sendo assim não pode haver equilíbrio ao descrevermos algum elemento da
realidade. O que existe aqui é um jogo de mão dupla, elementos díspares conectam-se
de forma similar e simétrica entre si, concebendo explicações e visões assimétricas
sobre a realidade. Esta, portanto, seria uma construção específica dentre as tantas
possíveis, uma perspectiva dentre muitas. Dependendo apenas do desenho de sua rede,
num dado momento específico das interações criadas, onde estes laços heterogêneos são
o que são e podem, ou não, constituir todo um contexto social quando estabelecem
ligações com outras destas entidades.
Seria como se pudéssemos separar este presente texto em todas as suas partes.
Cada palavra, que existe, e está posta em uso, quando juntadas aqui denotam um
sentido, uma mensagem e uma interpretação específica, que poderiam ser outras, caso
as palavras usadas fossem outras e neste caso articulariam outras nuances para a
mensagem, que por sua vez suscitaria outras interpretações possíveis.
Tais concepções deslocam todo maniqueísmo e todo um complexo moral
vigente no fazer científico, onde áreas inteiras do conhecimento humano tornaram-se
caixas pretas, impermeáveis e blindadas, deixando a evidente sensação de que já não
podem mais serem discutidas ou colocadas em causa. Assim outras perspectivas de
entendimento acerca de tais áreas sempre deixam de se fazer presentes.
Se pensarmos aqui no design e no artesanato, como tais áreas do conhecimento
humano, temos um interessante objeto para trabalharmos controvérsias, articularmos
perspectivas e tecermos redes. Uma vez que lhes cabem intencionalidades técnicas,
racionais e construtivas. Relações sociais diversas se desenvolvem na órbita de ambos
os termos, fixando-os e normatizando-os, até o ponto de terem se tornado verdadeiras
caixas pretas de conhecimento, que necessitam agora serem (re)abertas e (re)discutidas.
Para tanto, não se tem a intenção de afirmar nada, apenas de visualizar a
“circulação das agências antes das estabilizações” (LEMOS, 2013, p.25), apresentando
possíveis perspectivas advindas de uma série de associações entre elementos humanos,
não-humanos e natureza. Trata-se de acompanhar a provisória constituição de uma rede-
social formada por artesãos, designers e seus artefatos.
PARTE 2 - PARA APROXIMARMOS SABERES E TÉCNICAS
Nosso locus, do ponto de vista de campo de estudos, é em Maria da Fé. Uma pacata cidadezinha encrustada nas montanhas da Serra da Mantiqueira, ao sul do Estado
de Minas Gerais - Brasil. Estamos aqui, não ao acaso, pois emerge de suas terras, de sua
gente, das tecnologias em uso, uma constituição de identidade de artesanato bastante
peculiar e sóbria, que com o passar dos tempos foi se cristalizando juntamente aos
saberes e técnicas perpetuados por diversos atores em rede.
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Discutir o artesanato é discutir em conjunto o cotidiano, as formas peculiares de
se ver o mundo, e as atitudes de um povo, de uma região, de processos tecnológicos, de
materiais e dos diversos interesses e tensões que lhe articulam um espaço no imaginário
coletivo. O que seria, então, discutir design? Além desta questão, existe maneira de
aproximarmos tais áreas, tão distintas e tão próximas, à priori?
É sobre as práticas artesanais vistas em Maria da Fé que iremos tratar no
decorrer desta segunda parte do texto, vinculando ao assunto em pauta uma rede
afetações sociais que nos permitirão estender esta problemática sob um outro ponto de
vista, submetendo-a a um complexo jogo entre atos e atores díspares em busca de uma
sociologia de associações (Latour, 2012).
Torna-se importante vincular aqui as falas e os depoimentos coletados em
entrevistas com os artesãos em Maria da Fé, pois os artefatos que estes elaboram
também geram controvérsias, estimulam mercados, elevam personalidades e
(des)constroem saberes e técnicas.
Caminhar pelas ruas de pedra de Maria da Fé, entre às suas características e
identitárias árvores de oliva, em direção ao Centro Cultural, já nos faz perceber um
outro ritmo de vida, bastante diferente deste visto em grandes centros urbanizados onde
tudo escapa fugaz. Aparecem as nuances que paulatinamente nos mostram o particular
modo de ser desta cidadezinha, de como o mundo aqui parece ser interpretado, vivido e
compartilhado de uma maneira mais serena. É justamente este o ponto mais interessante
em nosso locus, aqui temos a oportunidade de ainda ter contato com a organização de
uma prática artesã tradicional (HOLANDA, 1995), passada como legado de gerações
em gerações, pelas muitas mãos que construíram um sem número de artefatos.
Conforme podemos endossar pelo depoimento9 da artesã “MI”:
Foi assim, a minha mãe já fazia, sabe, aí depois, ela começou a ensinar a
gente, mas no começo a gente não sabia muito bem [...] mas aí a gente,
praticou, aí começou. (Registro de áudio 01. Artesã “MI” – Outubro/2014).
Ou também pelo discurso da artesã “MF”:
Pequisadores (P): E a senhora aprendeu sozinha?
MF: Ah eu assim é... minha mãe ela... mexia muito cum...cum lâ, essas coisa
sabe? Fazê paletózinho [...] É ela gostava de mexê essas coisa né? Com
artesanato... Então é aí que fiquei vendo ela fazer tudo, então a gente... é...
como se diz... foi meio incentivada por ela né? (Registro de áudio 01. Artesã
“MF” – Outubro/2014).
9 Usaremos aqui uma série de entrevistas com mulheres e homens, artesãos de Maria da Fé, realizadas ao
longo do ano de 2014, afim de contextualizar as aproximações dos termos artesanato e design.
Tomaremos o cuidado de lhes ocultar os nomes, pois não obtivemos até o momento uma autorização para
o uso do conteúdo das gravações de áudio destas referidas entrevistas.
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Segundo Pinho (2013), em meados dos anos 1990, Maria da Fé sofreu uma crise
econômica no setor agropecuário, sobretudo nas monoculturas de batatas, que era até
então sua maior fonte de contribuições em termos de geração de riquezas. Isso leva ao
surgimento de movimentos alternativos para geração de renda e o artesanato entra na
cena econômica mariense como um importante ator constituinte de espaços, liberdades e
emancipações, endossando a orientação do município para o setor turístico e de
economia criativa (leia-se: artesanal).
Este movimento oportunizou outros atores surgirem no plano das ações e
formarem assim novas redes de afetações. Tecnologias, pessoas, materiais, objetos e
interesses múltiplos, aproximaram-se do artesanato no intuito de agrupar
estas potencialidades numa mesma luta contra a parcimônia econômica mariense, onde
fibras de bananeiras e aglomerados de papelão, despontaram-se como meios sólidos de
sobrevivência.
As atividades do setor agropecuário projetam atualmente na bananicultura a
principal atividade agrícola do município. Esta articulação reverbera de forma
contundente nos processos de identidade do artesanato mariense. Grande parte dos
produtos e artefatos manuseados ali são elaborados a partir da fibra das cascas
de bananeiras. Entre bonecas, cestos, pratos, mandalas e luminárias, podemos perceber a
sensibilidade das mulheres e homens marienses ao (re)significarem o uso das matérias
primas vindas de sua própria terra.
Destaca-se, neste contexto, a gênese de tal identidade artesã mariense. Partindo
da análise de uma série de elementos conjugados a propiciar tal demanda. Em primeira
instância cumpre-nos olhar para a história do artesão “DT”. Nascido e criado em Maria
da Fé, “DT” captura desde muito cedo a imanência dos elementos naturais de sua terra,
com mimese incrivelmente particular.
Na época da acentuada crise agropecuária dos anos 1990, “DT”, junto de outras
artesãs da cidade, iniciaram um trabalho de consolidação do artesanato na cidade, para
além do hobby no ato de produzir crochês, bordados, fuxicos, etc.
Segundo “DT”:
“Maria da Fé não tinha nada, não tinha nada. Maria da Fé não tinha nada de
artesanato que fosse uma coisa expressiva, entendeu? Eu comecei, e veio
uma pessoa de Belo Horizonte pra poder ver o que a cidade tinha para
oferecer nesse sentido. Qual artesanato que Maria da Fé tinha? E não tinha.
Tinha era mulher, um tanto de mulher bordando ponto de cruz, fazendo tricô,
crochê, que é uma coisa muito, muito cópia de revista, entendeu? Nada puro
de origem, assim. Aí a gente começou a frequentar algumas reuniões, eu
comecei a frequentar essas reuniões e numa dessas reuniões eu, depois de um
certo tempo, vinha uma consultora de Belo Horizonte pra poder ver, pra
poder fazer uma revitalização do artesanato de Maria da Fé. E não tinha nada.
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Aí numa das reuniões eu falei: ‘vou criar um projeto então” (Registro de
áudio 01. Artesão “DT” – Outubro/2014).
Diferente da precariedade de recursos e técnicas enfrentada pela maior parte
destas artesãs, “DT” gozava de ambiente e formação especializada para trabalhar sua
arte. Inicia precoce seus estudos de desenho de modelos vivos e passa por uma intensa
formação e trabalho artístico.
“Eu toda vida fui artista, toda vida trabalhei com arte entendeu? Mas fazia
uma arte mais conceitual, uma coisa que fica assim nessa viagem, eu tenho
uma formação acadêmica. Eu fiz desenho de modelo vivo, fiz é, eu passei por
essa coisa acadêmica mesmo, sabe, de arte assim. Só que eu tinha a
necessidade de fazer um trabalho mais conceitual, onde de repente a ideia é
mais importante do que a própria obra, entendeu? Aí você não precisa ter o
objeto, você tem a ideia e a ideia é mais importante. Mas eu gosto de matéria,
entendeu? Eu adoro matéria, e aí o que acontece?” (Registro de áudio 01.
Artesão “DT” – Outubro/2014).
Estes vínculos viriam a ser condicionantes para que se fortalecesse em Maria da
Fé todo um aparato tecnológico no que concerne a confecção de artesanatos. “DT”
articula então, nos idos dos anos 90, um novo composto material que lhe permitira dar
cabo destas todas ideias e alçar assim meios para produção de seus artefatos.
“Eu dava aula de arte para criança e aí eu falei assim: ah eu vou dar uma
massinha de papel machê para eles trabalharem. E aí eu fiz uma massinha de
papelão e dei pras crianças trabalharem, e eu tinha uma caixa de papelão e
falei ah vou desmanchar essa caixa aqui, demorou a massa, porque demora
muito pra desmanchar tudo e o que sobrou eu não joguei fora não. Sobrou um
pouquinho de massa e eu falei: ah eu vou moldar isso aqui num pratinho.
Moldei num pratinho. Aí quando secou aquela matéria, eu gosto de falar
matéria porque matéria tem alma, entendeu? Quando fala material fica uma
coisa tão corriqueira, assim, parece que material é uma coisa tão banal, né?
Matéria tem alma, entendeu? Aí eu vi aquela matéria ai falei: gente que coisa
impressionante, né?” (Registro de áudio 01. Artesão “DT” – Outubro/2014).
O composto articulado por “DT”, é feito de forma similar à técnica amplamente
conhecida do papel machê, porém com variações que lhe garantem maior resistência,
aderência, rigidez. Um aglomerado de papelão, sacos de cimento, cola e água, que
quando prensados e colocados ao sol para secagem transforma-se em uma matéria de
longa vida, não gerando sobras e com custo de produção baixíssimo, já que a maior
parte dos insumos para a produção deste vem de coletas seletivas de lixo na própria
cidade de Maria da Fé ou de cidades vizinhas. Segundo o próprio “é como se essa
matéria voltasse a ser madeira”. Tal articulação com a matéria abriu precedentes para
que outros atores fossem conjugados a este jogo de relações e assegurou a “DT” um
registro de patente junto ao INPI10 (Instituto Nacional da Propriedade Industrial),
10 Disponível para consulta em http://www.inpi.gov.br/images/stories/downloads/pdf/Diretriz_de_MU.pdf
- acesso em 08/04/2014.
http://www.inpi.gov.br/images/stories/downloads/pdf/Diretriz_de_MU.pdf
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numa qualidade de modelo de utilidade, bem como lhe abriu caminho para angariar
apoio financeiro na construção de seu ateliê e showroom, um galpão de pé direito
avantajado, com ares da sofisticada arquitetura modernista e apelo estético Wabi-sabi11,
que aliás se reproduz como uma espécie de leitmotiv em quase tudo que ali se produz.
A partir disso ele passa a ensinar a técnica de beneficiamento do aglomerado de
papelão para uma série de artesãs e elabora com elas uma linha de produtos instituindo
assim o primeiro grupo formalizado de artesãos na cidade, o Gente de Fibra. Este, nasce
já com características distintas no que diz respeito a uma possível identidade de
artesanato, alcançando rapidamente o mercado nacional. Mulheres, bem como homens,
de Maria da Fé, puderam a partir de então emanciparem-se das limitadas tarefas
domésticas ou das pesadas tarefas vindas da vida no campo, inserindo-se de forma
nunca vivida antes na sociedade e na economia.
“Eu já tinha essa história da massa, já tinha conseguido um resultado
maravilhoso que era transformar quase em madeira mesmo, né? Um
aglomerado. Ai eu falei assim, de repente se a gente fazer um trabalho de
artesanato que possa agregar a fibra da bananeira, porque Maria da Fé tem
muita bananeira e a bananeira só dá cacho uma vez, aí vai lá no pasto, corta e
aquele tronco fica apodrecendo lá no meio do pasto. Ai eu falei, ah, vamos
fazer o seguinte, vamos pegar, vamos processar essa bananeira, vamos tirar a
fibra da bananeira e vamos começar a misturar a fibra da bananeira na massa,
porque é uma maneira de ter identidade também quanto material, porque é,
essa história da identidade é fundamental no artesanato. Eu acho que é
importante ter a cara do lugar. O trabalho ficar com a impressão, assim, do
lugar mesmo, né? [...] E aí eu comecei a desenvolver um trabalho com as
mulheres, entendeu? Eu ia fazer um teste de aptidão, só que no dia que eu ia
fazer o teste de aptidão apareceram pouquíssimas pessoas na reunião. Aí eu
fechei com essas seis, sete mulheres que tinha, sabe? E eu sei que eu comecei
e que nunca mais, não teve mais fim a história. Porque começou a
movimentar, aí eu levei para Belo Horizonte os trabalhos que a gente fez Aí
eu implantei essa técnica e aí o Gente de Fibra começou a trabalhar, eu
comecei, eu sempre junto, junto, junto, junto, aí comecei a ensinar a criar, aí
a gente ia na igreja, olhava os barrados decorativos da igreja, que é muito rica
em ornamentos, pra gente pegar um detalhe, entendeu? Colocar no objeto,
tudo isso é identidade.“ (Registro de áudio 01. Artesão “DT” –
Outubro/2014).
Graças a esta primeira iniciativa de consolidação, novos artesãos foram surgindo
na cidade, outras iniciativas nasceram e novos elementos e interesses conjugados em
rede colocaram em voga a identidade artesã de Maria da Fé. Artesanatos, elaborados a
partir de fibras de bananeira, papelão, tinturas, palhas de milho, crochê, EVA, oliveira,
entre outros, ganharam, a partir de 2008, um espaço para serem comercializados
ajudando a constituir a Associação Casa do Artesão Mariense, na qual artesãos e
artefatos organizam-se cotidianamente num intuito não apenas de inserção econômica,
11 Ramo da filosofia estética japonesa, que prega uma visão de mundo centrada na imperfeição das coisas,
sendo este o seu padrão para o belo. (LENNOX, 1999)
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mas de superação dos limites impostos pelo cotidiano rural. Artesãos e artefatos
diversos, que produzem ações materiais e técnicas igualmente diversas.
Assim como nos anos 90 o cultivo de batata deu passagem ao aglomerado de
papelão como novo articulador econômico na cidade, pelas mãos de “DT”, nos anos
2000 o mesmo aglomerado precisa ser visto como o condicionante que abriu caminho
para que a hegemonia de alguns grupos de artesãos, já consolidados no cenário da
cidade, dissolvesse em novas estruturas de produção e vendas de artesanato.
A Casa do Artesão Mariense representa uma importante fonte em termos de
especulação, articulação, controvérsias e recalcitrâncias, rumo a um entendimento ou
das aproximações possíveis entre os saberes e técnicas destes artesãos no Sul de Minas
Gerais, onde os termos design e artesanato emaranham-se, gerando novos complexos e
novas agregações do que se pode ser dito sobre ambas áreas do conhecimento humano.
Agora que entendemos um pouco da gênese da constituição de uma rede –
vamos chama-la de sociotécnica artesã mariense - que ainda permanece instável e pode
ser (re)modelada a qualquer instante, podemos prosseguir para alguns vínculos mais
específicos entre artesãos, técnicas e artefatos.
Para a artesã “MF” a prática artesanal se dá da seguinte forma:
“Eu faço várias coisas, quer dizer, meu artesanato é meio diversificado, né?
[...] deu vontade de fazer eu pego... vou fazê, vou tentá fazê... hehe [...]Então,
nas folga minha aí eu vou fazer artesanato... é, eu dou conta da minha
obrigação de manhã, né, cedo, na parte da tarde eu to folgada, aí eu vou e
faço artesanato.” (Registro de áudio 01. Artesã “MF” – Outubro/2014).
Esta noção de não-compromisso com uma produção seriada e massificada
alinha-se estreitamente com a relação diferenciada que os artesãos em Maria da Fé
mantém com o espaço e tempo. Lá os “laboratórios” ou oficinas de grande parte dos
artesãos estão estabelecidos em suas próprias residências. Geralmente algum cômodo
mais amplo da casa, ou até mesmo em uma área externa, sem preocupações excessivas
com armazenagem de matérias primas, logística de materiais ou depósitos de
ferramentais. Assim é que se estabelece todo um aparato processual e tecnológico para a
confecção de seus artefatos.
Ao ser questionada acerca dos moldes que usa para trabalhar, a artesã “M” diz o
seguinte:
“Muita coisa foi eu que criei. Porque o redondo, ninguém sabia fazer, daí eu,
mexendo e mexendo em revista eu vi. Eu vi que tinha um que tinha 4 pregos,
então, quer dizer que o redondo é dividindo com X com a mesma proporção
né? Por exemplo, se for 10 aqui, é 10 aqui e 10 aqui... (se referindo à
distância em cm entre os pregos), faz assim, depois faz assim, e aí arruma os
fios.” (Registro de áudio 01. Artesã “M” – Outubro/2014).
-
A maneira que “M” usa para explicar seu processo de trabalho já deixa entrever
a imensa carga “manual” que seu serviço carrega, bem como as recalcitrâncias que os
materiais utilizados lhe impõe ao manuseio. O molde, que não existia a priori, precisou
ser elaborado manualmente por ela, ao passo que o molde também ia lhe afetando,
fazendo-lhe agir de outras formas. Esta talvez seja uma das noções mais interessantes
vista no pensamento de Latour, a de que não é somente o elemento humano que obriga
os materiais a serem de uma tal forma, mas os materiais e objetos também nos obrigam
a fazer certas coisas, a tomar certas ações. Neste sentido as noções sobre processo
criativo mudam de acordo com os vínculos que estabelecemos com determinados tipos
de materiais, ambientes e recursos disponíveis.
A noção de processo criativo da artesã “MF”, por exemplo, deixa bem claro
algumas destas outras nuances de ações, onde uma intervenção de um híbrido específico
pode até mesmo mudar a sua opinião sobre algo.
“Ah, pra mim eu acho que artesanato, agora tem máquinas que faz... substitui
o lugar de pontos, né, como se diz, cê faz o ponto à mão, mas tem uma
máquina agora que substitui o ponto de mão, também. Fica legal também,
mas tem coisa que ela não consegue fazer, né, aí tem que ser feito à mão
também.
P: Tá, mas se usa máquina ainda é artesanato?
MF: É... um meio artesanato.
P: Meio artesanato?
(risos)
MF: É.... um meio artesanato, porque pra mim o artesanato tem que ser feito
tudo à mão.
P: Todo o processo tem que ser à mão?
MF: Todo o processo tem que começar e até o fim. Né. Cê começa desde o
primeiro passo e vai até o último, tudo à mão. Aí o artesanato original. Tudo
que é à máquina, as pessoa num considera mais que é artesanato, né?”
(Registro de áudio 01. Artesã “MF” – Outubro/2014).
Toda característica manual inerente ao artesanato, na boca dos artesãos aqui
postos parece apartar a presença de máquinas em seus processos de criação e produção,
gerando um sentido de que estas seriam nocivas para uma integralidade e unidade dos
artefatos. Para isso encontramos respaldo direto vindo de Latour (1999, p.136), que
aponta:
Como ele poderia ser ameaçado pelas máquinas? Ele as criou, transportou-se
nelas, repartiu nos membros das máquinas seus próprios membros, construiu
seu próprio corpo com elas. Como poderia ser ameaçado pelos objetos?
A UNESCO12 classifica também um certo nível de interferência mecanizada nas
formas que os produtos são gerados em um contexto artesanal:
12 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO.
-
Produtos artesanais são aqueles confeccionados por artesãos, seja totalmente
a mão, com uso de ferramentas ou até mesmo por meios mecânicos, desde
que a contribuição direta manual do artesão permaneça como o componente
mais substancial do produto acabado. Essas peças são produzidas sem
restrição em termos de quantidade com o uso de matérias primas de recursos
sustentáveis. A natureza especial dos produtos artesanais deriva de suas
características distintas, que podem ser utilitárias, estéticas, artísticas,
criativas, de caráter cultural e simbólicas e significativas do ponto de vista
social. (UNESCO, 1997, apud BORGES, 2011, p.21).
Mesmo o Ministério do Desenvolvimento, Industria e Comércio Exterior do
Brasil, dá para o termo artesanato algumas destas nuances:
Compreende toda a produção resultante da transformação de matérias-
primas, com predominância manual, por indivíduo que detenha o domínio
integral de uma ou mais técnicas, aliando criatividade, habilidade e valor
cultural (possui valor simbólico e identidade cultural), podendo no processo
de sua atividade ocorrer o auxílio limitado de máquinas, ferramentas,
artefatos e utensílios. (BRASIL, Programa do Artesanato Brasileiro. 2012, p.
12)
Em contrapartida quando “M” é questionada sobre uma definição de artesanato,
aparece mais uma vez uma concepção integralmente voltada para a manipulação manual
da matéria prima:
“P: O que é artesanato pra você?
M: Artesanato é aquilo que você cria, que você faz com as mãos, e não o que
você compra pronto.
P: Tá, mas e a máquina de costura? Você tá fazendo com as suas mãos, ou
não?
M: Essa aí é com a mão.
P: Não, não, mas eu digo, se você costurasse na máquina, não seria mais
artesanato?
M: Seria artesanato.
P: E se a gente mandar fazer um bordado no computador? É artesanato?
M: Não.” (Registro de áudio 01. Artesã “M” – Outubro/2014).
A questão da definição que os artesãos dão para o termo artesanato é tão delicada que
faz surtir discussões acirradas sobre até que ponto algum item é ou não é “artesanato”,
por exemplo, como podemos ver nesta fala de “MA”, enquanto falava da produção de
artefatos de uma colega artesã:
“É, a gente conversa, mas ela é teimosa. Ela fala: ‘Não mas fui eu que fiz’, aí
ontem ela ficou tentando justificar uma caixinha lá que você sabe muito bem
que não foi pintada a mão né? Aí ela disse lá que o marido dela é pintor e
pintou com a pistola de pintura, mas eu não sei não...” (Registro de áudio 01.
Artesã “MA” – Outubro/2014).
O simples fato de um acabamento mais próximo do regular, sem as nuanças
-
ruidosas do trabalho manual, já incita dúvidas quanto à qualidade de “artesanato” que
um artefato carrega. Mostra a existência de uma natureza distinta no que diz respeito à
produção de artefatos, onde a questão manual evidencia-se como a característica
simbólica mais marcante e significativa do ponto de vista produtivo e identitário.
A atividade artesanal aqui mostra-se como sendo não apenas um modo de se
produzir artefatos com as mãos, mas todo um processo criativo que exige do artesão um
olhar não mecanizado e não automatizado, no momento de aplicar técnicas e
desenvolver saberes.
“MA” interpreta isto como sendo uma questão de “identidade artesã”:
“Isso, de identidade. Se você começar a colocar uns produtos assim, daqui a
pouco vai ser uma loja comum, qualquer lugar você vai encontrar o que tem
aqui e não é isso, a gente quer que seja diferente.” (Registro de áudio 01.
Artesã “MA” – Outubro/2014).
A inserção do artesanato na esfera cotidiana da vida destes artesãos engendra
técnicas e processos que são em grande parte improvisados, ajustadas aos seus
ambientes e lares, bem como aos materiais disponíveis para seu trabalho e,
paulatinamente, tornam-se meios de produção coerentes com o estilo de vida que
preconizam. Estes processos ultrapassam os de produtos feitos em série, onde o
artesanato passa a atender, em primeira instância, aos desejos, necessidades,
prioridades, interesses e valores dos artesãos que lhes conformam. Daí a sua clareza ao
descrever tais processos de forma tão simples, pois eles assim o são. Simples atamentos
daquilo que pode ser feito com os materiais e conhecimentos disponíveis.
Este ponto ganha nitidez quando “W” nos descreve um pouco de seus processos
produtivos:
“Então... aqui, primeiro, eu sempre começo pra esticar a cabecinha, aí eu uso
essa bolinha aqui, e vou esquentar no ferro. (ela pega uma bolinha de isopor,
que usa pra dar a circunferência. O ferro é utilizado pra esquentar o EVA na
cor salmão, não a bolinha de isopor) Ele fica elástico. Aí dá pra você fazer
bastante coisa com ele.” (Registro de áudio 01. Artesã “W” – Outubro/2014).
Ao passo em que o artesão, o ambiente, os conceitos e os materiais disponíveis
começam a entrelaçarem-se durante a formatação de objetos, toda uma rede de
interações passa a ser (re)desenhada para suportar estes frames de ações. Não é só do
contexto do artesão que conseguimos extrair visualidades da rede, suas saídas também
denotam vínculos e mudam rumos.
“W: Primeiro a gente passa cola de um lado, esticando né.
P: Aí é cola de isopor?
W: Não. É Tecbond... é cola adesiva instantânea mesmo.
P: Tipo Super Bonder?
W: Só que a Super Bonder no começo eu usava ela, porque não tinha dessa
-
cola. Acaba saindo mais cara, porque o vidro é muito pequenininho.
P: Ah, tá, e essa dura mais.
W: E o Super Bonder deixa marca. Ela resseca, fica esbranquiçada. E essa
aqui não.
P: Porque ela já é pra artesanato mesmo?
W: Isso. É própria.
P: E dá pra achar por aqui mesmo, ou cê tem que ir pra Itajubá?
W: Não, antes tinha, só em São Paulo que tinha dela. Agora não, agora tem
em todas as papelarias. Nossa, eu perguntava ‘mas cê num tem essa cola?
Tem que ter essa cola...’ Que fica mais fácil né? Agora todo mundo tem.”
(Registro de áudio 01. Artesã “W” – Outubro/2014).
Sobre estas conjunturas, “DT” diz o seguinte:
Então, é uma relação muito íntima, muito profunda. Você tem que ter uma
afinidade muito grande com o material que você está trabalhando, a matéria,
né? Porque é um dialogo. Outra vez falando sobre diálogo você começa a
trabalhar e daqui a pouco você está direcionando a matéria, você vai
direcionando a matéria, e daqui a pouco é ela que começa a te levar,
entendeu? Eu acho que isso é uma coisa incrível [...] Ah, material, então é só
material mesmo. Mas aí é o seguinte, é isso, entendeu? Eu acho que tem que
ter uma afinidade, você tem que, né, porque se você vai fazer um trabalho
com uma... agora o artesanato a gente tem muita, é, eu acho bacana você usar
aquilo que você tem perto de você, né? Entendeu? Essa coisa de, na zona
rural, por exemplo, você vai trabalhar com taquara, de repente você tem
bastante taquara, de repente você pode até começar a plantar taquara pra
poder sustentar aquilo, aquele trabalho que você está fazendo. É, porque o
papelão virou máfia, foi horrível. Porque quando, infelizmente existe uma
exploração muito grande porque quando a gente começou trabalhar, aí
começou a dar certo, aí essas pessoas começaram a ver aquilo que estava
dando certo, e começa e explorar muito. (Registro de áudio 01. Artesão “DT”
– Outubro/2014).
Certos tipos de condicionantes materiais exercem ações que podem inclusive
influenciar na ação de outros elementos materiais, bem como nas ações dos seres
humanos quando em contato com estes. Assim compreendemos de maneira um pouco
mais prática aquilo que Latour resgata ao expandir o espectro das ações para além da
separação entre sujeitos autônomos e objetos inertes (LEMOS, 2013). Estes, pelo visto,
não são nada obedientes, mas carregados de controvérsias e recalcitrâncias.
Percebemos também como outras entidades dotadas de ação, mas não de uma
materialidade aparente, carregam neste jogo um conjunto enorme de nuanças e
controvérsias, que são desenhadas a partir de perspectivas específicas. O termo
artesanato, que também é um híbrido13, configura significados e interpretações das mais
diversas dependendo apenas da forma como atrela-se a um emaranhado de materiais,
processos cognitivos, ambientes, instituições e pessoas.
13 Segundo ele, o conceito de híbridos aparece como sendo todo resultado da interação humana com a
natureza, que pode ou não carregar em si uma materialidade tangente. Neste sentido uma lei pode ser um
híbrido, bem como o próprio termo artesanato o é. Ver Latour, 2012.
-
Quem compra os artesanatos, já finalizados, pouco percebe das nuances de
afetações que foram necessárias para que estes chegassem até suas mãos. Perde-se de
vista os inúmeros desenhos de redes e articulações estabelecidas pelos materiais, pelos
processos, pelos “laboratórios”, pelas mãos dos artesãos e seus contatos com os pares.
O que podemos perceber até aqui são as maneiras como um jogo de interesses
particulares, vinculados a uma série de materiais, objetos, técnicas e saberes, pôde,
paulatinamente, (co)formar redes de afetações, que por sua vez tem saídas maiores,
mais densas e mais sólidas que suas entradas. “DT” representa na vida artesã de Maria
da Fé uma engrenagem propulsora de sua vocação. Seu quinhão nesta rede de interações
não é desprezível (PINHO 2013), bem como nenhum dos outros elementos igualmente
dispostos a conformarem esta rede não o são. Trata-se de um equação onde todos os
papeis tem igual valor, agem de maneira absoluta dentro de suas capacidades. Não
existe artesanato de Maria da Fé sem os aglomerados de papelão, assim como não
existe sem as permissões que o papelão, a cola, as instituições apoiadoras e os poderes
locais lhe deram para trabalhar, nem mesmo sem o legado que isso engendrou. Um
legado composto da ação de elementos díspares, que quando postos em conjunto
propiciaram uma série de agregações sociais.
PARTE 3 - PARA APROXIMARMOS DESIGN E ARTESANATO Podemos partir de vários caminhos para discutir os termos design e artesanato
na contemporaneidade, bem como para situar o papel do designer e do artesão neste
contexto. Segundo os relatos históricos vistos em Wanderley (2013), o ser humano
haveria transitado de um produtor ferramental que visava exclusivamente a sua
sobrevivência, para um produtor de significados através de seus artefatos. Estes passam
a vincular-se e serem influenciados por diferentes sistemas políticos, culturais,
econômicos, que determinavam o modo de vida humano, bem como o modo de vida dos
próprios objetos que transitavam estes meios.
Diversos campos de conhecimento foram emergindo ao passo em que
emergiam-se novos artefatos e novas maneiras de se produzi-los. Percebe-se uma
homogeneidade no que tange definições gerais sobre artesanato, conforme vimos na
parte 2 deste artigo, onde as mãos ganham notoriedade, bem como os aspectos
vernaculares intrínsecos a esta produção, ou seja, para que algo seja considerado
artesanato é necessário que de certa forma esteja carregado de um simbolismo popular,
com matérias primas não processadas na indústria, sem repetições em série. Uma
espécie de não-arte e concomitantemente um não-produto industrial.
Ao longo do tempo a maneira de se fazer artesanato sofreu mudanças
significativas, nuances de afetações e conexões em rede fizeram este conceito transitar
no campo conceitual e no campo pragmático. Até a revolução industrial o artesão
denotava a figura de um elaborador de sistemas físicos e simbólicos que ainda
-
permanecia próximo dos usuários, de suas necessidades e dos ambientes de uso e era
exatamente por isso que limitava-se o escopo de sua atuação, nunca perdendo de vista
seus modos peculiares de produzir, suas técnicas, suas ferramentas e todo resultado da
experiência artesanal que era vivida cotidianamente.
Paulatinamente, ambientes rústicos de produção tornaram-se oficinas, locais de
produção especializados, onde perícia e destreza aliavam-se a funcionalidades, gostos,
tendências, numa demonstração constante dos modos de vida pertencentes às épocas em
que vingaram. Ali também poderíamos ver os contrastes acontecendo, hierarquias
surgindo, valores estéticos sendo formados, técnicas se consolidando. Evidências de
uma sociedade já composta por articulações de interesses, repletas de recalcitrâncias e
desejos vindos de humanos e não-humanos. A gênese da divisão do trabalho, por
exemplo, resgata um olhar acuidoso para a cisão entre artesão e mestre artesão,
conforme grifa Wanderley (2013, p. 19):
Uma pequena divisão de trabalho é organizada com as oficinas da Idade
Média. Com elas também o processo de ensino prático se inicia, com mestres
transferindo seus conhecimentos aos aprendizes por meio de exercícios
práticos. Por fim, surge ainda a ideia de associação de trabalhadores, com as
Corporações de Ofícios, com o objetivo de estabelecer a cooperação entre
atores da mesma atividade, regulamentação da área, manutenção de padrões,
preços base, entre outros.
Interessa-nos saber que com as modificações na maneira como o ser humano se
organiza, modificam-se também todo um conjunto de processos cognitivos e que estes
influem diretamente na forma como lidamos com ambientes, processos, ações, pessoas,
materiais, objetos e conceitos, que por sua vez condicionam a humanidade a diferentes
estilos de vida no cotidiano. O artesanato contemporâneo, neste sentido, deve ser visto
como uma herança de um sistema social articulado sob outros paradigmas de tempo e
espaço, mas que ainda mantém, paralelamente, uma busca de identificação pessoal,
projeção de status na sociedade, valorações estéticas e inserção econômica.
Deve-se alertar, sobretudo, para os diversos interesses e embates travados no dia
a dia destes processos de produção de artefatos, que acontecem não somente na seara da
técnica, mas a partir de todo um contexto relacionado aos saberes e interpretações que
cada artesão desenvolve em seus ambientes de trabalho, bem como quando se colocam
em conjunto, estabelecendo relações que em nada lembram as ocorridas em instalações
industriais, nos estúdios de design ou dentro dos ateliês de artistas plásticos renomados.
Cumpre visionar de que forma podemos aproximar estes entendimentos, acerca
do artesanato, com aquilo que se entende por design, visto que também é uma área
discute e concebe os processos de formatação de objetos e artefatos do cotidiano.
O termo design surge concomitante à época da revolução industrial. Esta denota
ao mundo sérias transformações nos modos de interação social, consumo de bens, bem
como de produção e organização do trabalho (CARDOSO, 2004). Estas revoluções
-
acontecem no âmbito de um sistema de que visa reestruturar os processos de fabricação,
onde aumentava-se a quantidade de artefatos produzidos ao passo que o custo desta
produção diminuía, gerando uma enorme demanda de bens e elevando-se o consumo.
As oficinas medievais ampliam-se, tomando um caráter mecanizado e
hierarquizado em suas relações produtivas, onde a figura do artesão passa,
paulatinamente, a dar lugar para a figura do especialista.
A primeira terminologia usada para se referir à área do design é gestaltung e
data dos idos de 1920, preconizada na escola alemã Bauhaus, no período dito
modernista. De acordo com Cardoso (2004), este advento concebe o design como algo
isolado nos processos de criação e produção de artefatos do cotidiano, o que
distinguiria-o, crucialmente, dos processos de produção artesanal, criando
inexoravelmente uma cisão entre os termos, distanciando as figuras do artesão e do
designer, onde o primeiro estaria preocupado com o todo, no que diz respeito às
relações de produção de artefatos e o segundo seria um especialista que visa somente
atribuir uma camada específica de qualidades simbólicas aos objetos gerados na
indústria. Esta separação é a base da modernidade e no contexto abordado diz respeito à
construção de artefatos. Design estaria distante de artesanato neste caso. A diferença de
escopo entre as duas áreas mostra-se nítida, neste sentido. Sobretudo pela abrangência
que o termo design tomou na contemporaneidade - fazer design hoje, quer dizer fazer
muito mais coisas que antigamente.
Bem no sentido que explana Latour (2014, p. 01): “se províncias inteiras podem
ser reelaboradas através do design, então o termo já não tem nenhum limite”.
A ideia de considerarmos design como uma atitude projetual, por exemplo, é
uma herança histórica advinda da revolução industrial que podemos problematizar,
partindo de Mizanzuk (2013, et al, p. 100), da seguinte maneira:
Se optarmos por uma visão do design como resultante de um processo
histórico, como uma forma de projetar ligada à produção industrial, que teve
seu início na Europa do século XVIII, acabaremos por ignorar produções de
tempos e lugares que fogem do nosso cânone ocidental. Afinal, podemos
pensar em um design chinês do século XV? E um design egípcio do século II
a.C.? Por que, afinal, devemos privilegiar este ou aquele momento (ou
lugar)?
Continuando a problematizar, ainda segundo Mizanzuk (2013, et al, p. 100 –
101), temos:
Esta definição apesar de visar uma deselitização do termo, carregando em si
uma proposta mais democrática da questão, o que possibilitaria uma série de
problematizações interessantes (defender o artesanato ou a sinalização de
cidades da Europa medieval como possíveis objetos de design, por exemplo)
carrega um problema: ao chamarmos tudo de design, nada é design.
Perdemos os limites e referências. Pior: se levarmos em conta o “peso”
-
linguístico-histórico que a palavra design carrega consigo, estaríamos,
inevitavelmente, reduzindo toda a dimensão simbólica dos exemplos citados
à visão de uma forma de pensar projetos.
Bruno Latour aparece mais uma vez como elemento balizador de uma possível
estabilização destas discussões, uma vez que escreve, em meados de 2008, um artigo14
propondo alguns passos ruma a uma filosofia que lhes seja pertinente. Portugal (2014),
traduzindo este artigo para a língua portuguesa, define que o termo design, em sua
conotação mais aceita, poderia significar em português algo próximo de “projetar”,
conforme discutido.
Esta é uma ideia que parte de uma proposta modernista do design, uma
concepção dicotômica que separa a materialidade - função - daquilo que esta para além
disto - forma - a estética, o simbólico, o subjetivo. Preconizada pela velha máxima
funcionalista: “A forma segue a função”, de Louis Sullivan15. Neste sentido, design
funcionaria como uma espécie de película simbólica que reveste toda materialidade,
eficiência e neutralidade dos objetos, conferindo a estes apenas noções subjetivas,
estéticas e simbólicas.
Podemos perceber, pela tradução de Portugal (2014), que o termo mais coerente
em português para a palavra design, à luz de Latour e na sugestão do próprio tradutor,
seria: “Elaborar”. Já aqui podemos perceber um forte cuidado de Portugal, ao traduzir o
termo deixando-o ligado, intrinsecamente, aos pressupostos da TAR. A palavra
elaborar alude a uma maneira articulada de se projetar a realidade.
Um ponto interessante visto em Latour, nesta conjuntura, é a forma como mostra
que as mudanças que o termo design sofreu não mostram apenas uma “carreira”
peculiar traçada por um ser actante que está sendo remodelado com o passar do tempo,
mas também que essas mudanças só puderam acontecer pois a humanidade em geral
está mudando. Nas palavras de Latour (2014, p. 03): “Um indício fascinante de uma
mudança na forma como lidamos com objetos e ações de uma maneira geral”.
A própria fala de “DT”, quando interpelado sobre a relação entre artesanato e
design, mostra de forma clara este movimento:
“Hoje não tem mais fronteira...e é isso que é bacana, eu adoro essa ideia de
não ter mais fronteira, porque aí isso dá uma liberdade muito grande pra
você, entendeu?...É, e não, outra coisa, design é design, lógico, design é
indústria, e artesanato é artesanato, arte, quer dizer arte, o artesanato é cada
coisa no seu lugar, mas não impede de que possam andar de mãos dadas,
entendeu? O trabalho que eu faço aqui é arte e design. Você tem a emoção e
tem a função, tem as duas coisas juntas. A emoção aliada à função, entendeu?
14 Refere-se ao artigo: “Um Prometeu Cauteloso? Alguns passos rumo a uma filosofia do design com
atenção especial a Peter Sloterdijk”, escrito por Latour em 2008 como resultado de uma palestra conferida
a um congresso de história do design em Fallmouth, Cornualha. 15 Arquiteto norte-americano precursor do movimento modernista.
-
Porque só design, você faz o desenho de uma peça e põe na indústria e aquilo
vai sair em série. E quando você tem essa coisa de fazer mesmo, do artesanal,
o design artesanal, você tem a impressão digital de quem faz.” (Registro de
áudio 01. Artesão “DT” – Outubro/2014).
Para Latour (2014), já não há de se conotar o sentido de “transformação”
inerente ao termo design, mas de articulação ou elaboração. Um objeto, assim, teria
nuances de interesse, hora para mais, hora para menos. Os artefatos seriam concebidos
como conjuntos complexos de questões contraditórias - a função é absorvida pela
forma. A questão acerca daquilo que é real torna-se apenas uma questão de
interpretação. Assim, design passa a ser uma forma de articular significado para a
realidade. Mas oras, partindo do ponto de vista da construção de artefatos cotidianos,
não seria artesanato, em sua base conceitual, esta mesma forma de articulação de
significados para a realidade?
Esta noção de aproximação entre os termos torna-se por demais importante ao
iniciarmos discussões acerca do papel destes sujeitos-elaboradores, sobretudo no que
diz respeito a uma suposta responsabilidade de “direcionar o mundo”, onde designer e
artesãos diferenciam-se apenas por escopo e por suas preocupações sobre: o que
elaborar?
Podemos dizer que estes sujeitos lançam sempre olhares inveterados,
sistemáticos e interpretativos sobre o mundo ao seu redor, visando diferentes modos de
elaborá-lo. Quem se lança a elaborar o mundo está descrevendo-o e moldando-o a seu
modo, de acordo com as possibilidades que as condições materiais e os específicos elos
e interesses em rede lhes dão. Consequentemente as atividades do designer e do artesão
confundem-se, emaranham-se, distinguindo-se apenas pelas redes que performam ao
apontarem um modelo interpretativo da realidade, ou seja, a única aproximação possível
entre os termos torna-se sociotécnica.
Ainda nesta seara e com vistas a endossar a sentença de Latour (2008, p.43), da
mesma forma que o artesão estaria preocupado em manipular controvérsias e articular
artefatos para o cotidiano, o designer, conforme argumentado acima, também estaria
preocupado. Ambos atuando como articuladores e elaboradores das relações entre os
seres humanos, os objetos e as aparências dos seres humanos e dos objetos.
Fica claro que não estamos nem perto de chegar a um consenso, nem mesmo
sabemos se é possível que exista um consenso. Ficam abertas as possibilidades.
Um dos caminhos possíveis é o que traçamos neste artigo. Pensar o design e
artesanato como elementos que colocam a prova não somente a materialidade, mas a
imaterialidade das coisas (CARDOSO, 2012). Cabendo questionar não os objetos em
si, mas o porque destes objetos existirem como tais ou mesmo a rede que está por trás
destes objetos.
-
Em última análise. cabe compreender que (a) não há maneira de aproximar
design e artesanato sem reagregar os fragmentos históricos, técnicos e os saberes locais;
e (b) que relacionar estes saberes e técnicas é conectar antes uma complexa rede de
ligações heterárquicas, exercidas por atores em rede.
Sabendo que uma rede é sempre um conjunto de posições nas quais um artefato
adquire um significado e assim um artefato só pode se constituir dentro de uma rede de
associações específicas. Dar voz a estes artefatos, que antes eram entendidos apenas
como “meros condicionantes materiais”, é condição primordial para que apareçam suas
controvérsias, recalcitrâncias e discursos, passando a assumir um status de actante,
estabelecendo relações complexas e conflituosas com os seres humanos e a natureza,
num ambiente em que também possuam políticas e que, portanto, deveriam ser
reagregados no que entendíamos como “social”, ou seja, que uma democracia estendida
aos artefatos não é somente possível como necessária, para que possamos pensar tais
aproximações.
-
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