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DESPROFISSIONALIZAÇÃO JORNALÍSTICA: RECONTEXTUALIZAÇÃO DA
PRÁTICA SOCIAL DE PRODUÇÃO INFORMATIVA APÓS A DERRUBADA DA
EXIGÊNCIA DO DIPLOMA PARA EXERCÍCIO DO JORNALISMO
MORAIS, Anielle Aparecida Fernandes de 1
MARTINS, Paulo Antonio Rodrigues2
RESUMO
O recrudescimento dos meios digitais e da participação brasileira na utilização da internet
desencadeou, nos últimos anos, um significativo aumento da atuação de pessoas da sociedade
civil como produtores de informação e como comunicadores sociais de questões públicas.
Segundo um relatório divulgado em 2013 pelo ComScore, instituto de pesquisa americano, o
Brasil ocupa a quinta posição no ranking mundial de acesso à internet. A consolidação na web
da chamada “blogosfera” e das redes sociais como veículos de informação apresentam-se
como variáveis de um processo de reconfiguração da atividade de produção informativa na
sociedade contemporânea (KELLNER, 2001). De fato, jornalistas, blogueiros e usuários de
redes sociais guardam características conceituais díspares, no entanto, mais do que a
caracterização exaustiva dos papéis exercidos por esses três atores sociais, interessa-nos
compreender o alcance e os novos paradigmas da atividade de comunicar com a revogação,
em 2009, da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67) e do Decreto-Lei 972/69. O último impunha a
necessidade de diploma e de registro profissional para o exercício do jornalismo no país. Em
nosso estudo, preconizamos que a conjuntura instaurada após o evento apresentado, entre
outras coisas, remonta o cenário da atividade de informar, desmaterializa a profissionalização
da atividade jornalística, reconfigura os conceitos de liberdade de expressão e de liberdade de
imprensa, além de redesenhar novas formas de responsabilização civil e criminal por atos que
excedem o direito de informar (RIZZARDO, 2013).
PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo; Sociedade; Direito; Responsabilidade Civil;
Responsabilidade Criminal.
Introdução
A produção, circulação e consumo de informação na contemporaneidade exige que voltemos
nossos olhos para os processos profissionais que regem o exercício da atividade jornalística
no Brasil. O jornalismo é, há muito tempo, objeto de estudo da antropologia, sociologia,
linguística, psicologia e de outras áreas de conhecimento. O campo da comunicação,
notadamente do jornalismo, apresenta-se como um lócus crucial para as teorizações que se
preocupam com os problemas ideológicos e de mercado, que se transformam no dia a dia e no
curso das relações socioculturais, políticas e econômicas da época em que se inscrevem.
1 Graduada em Comunicação Social/Jornalismo; Mestre em Letras; Professora dos Cursos de Jornalismo e
Publicidade e Propaganda da Faculdade Objetivo – Rio Verde (GO). E-mail: [email protected] 2 Graduado em Direito; Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento; Professor do Curso de
Direito da Faculdade Objetivo – Rio Verde (GO). E-mail: [email protected]
2
Sob essa perspectiva, o presente trabalho pretende refletir sobre os aspectos conjunturais que
norteiam a profissionalização/desprofissionalização3 da atividade jornalística no Brasil,
especialmente após a revogação da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67) e do Decreto-Lei 972/69.
Preconizamos um estudo sobre o impacto da decisão do Supremo Tribunal Federal no que
concerne à derrubada da lei e do decreto mencionados anteriormente e que resultou na
dispensa de exigência de diploma para a prática do jornalismo no Brasil.
O estudo aqui realizado atravessa uma discussão sobre a instabilidade dentro do Direito no
que se refere às decisões relacionadas à prática de atos ilícitos no campo da produção de
informação. De maneira mais específica, partimos do entendimento de que as decisões de
âmbito jurídico relacionadas à prática do jornalismo refletem, de maneira pungente, a
instabilidade vivenciada pela própria profissão jornalística.
1. A profissionalização jornalística
As teorias que analisam o profissionalismo (Dubar, 2005), consideram que a existência de
uma profissão depende, crucialmente, do controle que esta profissão exerce sobre sua própria
base cognitiva (circunscrita, para nós neste trabalho, na esfera deontológica4). Para o
entendimento deste cenário, basta uma comparação com o Direito e a Medicina, profissões
regidas por códigos deontológicos, conselhos profissionais e códigos de ética.
O conhecimento abstrato, controlado pelos grupos profissionais, define uma profissão,
dimensiona novas problemáticas e afirma a legitimidade do campo profissional em questão
(DUBAR, 2005). No processo de aquisição, aprofundamento e certificação do conhecimento
abstrato, o conhecimento acadêmico e a formação científica em escolas especializadas
despontam como alguns dos critérios de afirmação social de uma profissão.
Conforme alerta Traquina (2005), a especialização de um campo profissional e sua
consequente diferenciação de outros campos profissionais implicam no domínio de uma
linguagem especializada e diferenciada em relação aos “não profissionais”. Desse modo, a
3 Neste trabalho, o termo desprofissionalização se filia ao conjunto de fatores que resultam na desintegração
social da profissão jornalística a partir, por exemplo, do fim da obrigatoriedade do diploma para o exercício da
profissão, ocorrida em 2009, mediante decisão do Supremo Tribunal Federal. 4 Grifo nosso.
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especialização significa autoridade e autonomia para aqueles que se dedicam a uma
determinada ocupação.
Greenwood (apud Traquina, 2004) elenca cinco atributos necessários à caracterização de uma
ocupação como profissão, a saber: 1) a existência de um corpo sistemático de teorias que
servem de base para a prática; 2) a preponderância de um sentimento de autoridade
profissional; 3) a ratificação pela comunidade da autoridade dos “agentes especializados”,
inclusive de seu poder de exigir controle sobre a admissão de novos profissionais; 4) a
existência de um código regulador de ética formal e também de um código informal; 5) a
existência de uma cultura profissional.
Informar é diferente de comunicar, embora a produção informativa seja um processo inscrito
dentro dos atos de comunicação. A comunicação sempre foi uma necessidade pessoal e social,
existente já em sociedades primitivas. À comunicação coube a função social de tornar mais
humanas as relações interpessoais, transmitir a ideia de comunidade para os seres humanos e,
além disso, estimular o intercâmbio de experiências sociais e culturais. Informar, por outro
lado, é um trabalho mais restrito à transmissão de dados, relatos e fatos reais. O trabalho de
informar requer, nessa perspectiva, o exercício de uma tarefa elaborada e de valores como
criatividade, planejamento, administração e avaliação do processo informativo. Requer,
portanto, um saber deontológico.
Os problemas da profissionalização jornalística perpassam, dentre outras coisas, o
reconhecimento/auto-reconhecimento, a legitimidade e a afirmação do poder de sua base
cognitiva e deontológica. A afirmação de que um jornalista que se intitula jornalista, mas não
escreve em um jornal, é, ainda assim, jornalista, deságua na conclusão de que basta escrever
no jornal para ser jornalista. Sobre a questão, Correia (2009, p. 5), assevera:
“Numa sociedade extremamente complexa, uma atitude desse gênero dificilmente
proporciona a emergência consistente de um saber reflexivo, isto é, um saber que questione
o saber estabelecido e, particularmente, interrogue as rotinas solidificadas (...) Outro risco é
o de tornar a discussão sobre a profissão, a gestão dos seus conflitos e a definição dos seus
instrumentos conceptuais e das suas práticas, algo que se torna erosivo para a própria
identidade da profissão por ser discutido em instâncias de poder e de saber que lhe são
alheias”.
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A legitimidade de uma profissão se assenta também no esforço de seus profissionais para
reconhecerem instituições educacionais e formas de ensino para estandardização da base
cognitiva necessária ao exercício profissional. No caso do jornalismo no Brasil, assim como
ocorre em outros países, o surgimento de escolas de formação não esteve associado ao esforço
de profissionais de campo, mas de acadêmicos que decidiram aplicar ao domínio jornalístico,
domínios epistemológicos pré-existentes como, por exemplo, as Ciências Sociais e Humanas,
Letras e Humanidades e Ciências da Comunicação (BENEDETI, 2009).
Segundo Benedeti (2009), a forma como o jornalismo se institucionalizou nas sociedades
modernas, está relacionada com o seu papel democrático. Nesse curso, a atividade jornalística
ganha notoriedade e relevância social por: 1) proporcionar um espaço plural e com
abrangência de massa para o debate das questões de interesse público (fórum público
midiático); 2) produzir informações plurais voltadas para o interesse público.
A informação produzida pelo jornalismo também orienta, emociona, diverte, rompe
preconceitos e expõe curiosidades, além de informar. Essa relevância social exigiu do
jornalismo e da própria sociedade um esforço de normatização da atividade, no campo
profissional e legal, a fim de resguardar o interesse da coletividade (BENEDETI, 2009,
p.22).
Contudo, como afirma Traquina (2005) a história do jornalismo no ocidente tem sido um
processo de profissionalização, lento e difícil, no qual a procura de estatuto social e de
legitimidade por parte dos jornalistas constituem objetivos essenciais.
1.1. O saber jornalístico: de que conhecimento estamos falando?
Como outras atividades profissionais existentes no Brasil, historicamente, o jornalismo foi
consolidando critérios, valores e práticas para definir técnicas e procedimentos. Esses
parâmetros se constituíram e delinearam ao longo dos anos, em consonância não apenas com
as demandas dos públicos, mas também em congruência com aspectos comerciais e de
moralidade pública.
Dentro desse quadro de entendimento, destacamos, para efeitos de composição deste trabalho,
três procedimentos inerentes ao escopo de rotinas jornalísticas, o que também pode ser
entendido como o saber jornalístico. São eles: 1) valores-notícia; 2) news judgement, 3) saber
de procedimento.
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O saber jornalístico está relacionado ao reconhecimento de acontecimentos que possuem valor
como notícia, a partir do que se denomina como critérios de noticiabilidade e valores-notícia
(Traquina, 2005). Sob tal prerrogativa, é considerada notícia aquilo que atende a um conjunto
de critérios que, embora sejam múltiplos e apresentem variações conforme o perfil das
organizações jornalísticas, se comportam como definições consensuais entre os jornalistas.
Os valores-notícia indicam a noticiabilidade dos fatos, isto é, são elementos que sugerem
aquilo que tem valor (o que é significativo, relevante, interessante) para se tornar notícia
(valor de seleção). Os valores-notícia ditam o que tem importância na elaboração de cada
notícia (valor de construção).
O news judgement, termo cunhado por Tuchman (apud Traquina, 1999), designa um
conhecimento sagrado ou a capacidade que o jornalista possui e que o diferencia das outras
pessoas/profissionais. Segundo o autor, o news judgement, na realidade, não é mais do que
uma habilidade profissional e como tal, está fundamentada em questões importantes para a
atividade profissional do jornalista. Essa não é uma habilidade secreta, mas assim como todos
os procedimentos profissionais, está restrita ao domínio do grupo profissional que a criou.
O saber de procedimento, por sua vez, associa-se à identificação e verificação dos dados
utilizados para a construção de relatos jornalísticos e ao conhecimento das regras que regem a
relação entre jornalistas e fontes de informação. Nesse caso, o que está em questão, é a
competência avaliativa e o rigor investigativo do jornalista para lidar com as informações que
manuseia no desempenho do seu trabalho.
1.2. Diploma para jornalistas: um impasse jurídico
Em contraste com o que foi dito até aqui, a respeito da incursão do conhecimento jornalístico
na sociedade contemporânea e a profissionalização da atividade, muitas incertezas, de ordem
jurídica, se apresentam em torno deste campo profissional. Tais incertezas resultam em um
estremecimento dos limites da profissão.
A constituição brasileira julga que liberdade de expressão e direito à informação são direitos
amplos. Com base nisso, o Supremo Tribunal Federal (STF), em junho de 2009, extinguiu
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(por 8 votos contra 1) a obrigatoriedade de diploma para obtenção do registro de jornalista,
fragilizando potencialmente a regulamentação profissional do campo e tornando bastante
flexíveis as regras para a entrada no mercado de trabalho do jornalismo.
A decisão do STF atendeu ao Recurso Extraordinário 511.961, movido pelo Sindicato das
Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo (Sertesp) e pelo Ministério Público
Federal (MPF). Gilmar Mendes, designado relator do caso, entendeu que o Decreto-Lei
972/69, editado durante a ditadura militar, o qual impôs o diploma obrigatório, afrontava a
Constituição Federal de 1988.
Em julho de 2009, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) elaborou uma proposta de
emenda constitucional (PEC 33/2009) na tentativa de neutralizar a decisão do Supremo
Tribunal Federal. Em novembro de 2011, a PEC foi aprovada em primeiro turno no senado e,
em 6 de agosto de 2014, o Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional emitiu
parecer favorável às Propostas de Emenda à constituição 33/2009 e 386/2009, que
determinam a exigência de diploma para exercício da profissão de jornalista.
Os constantes ataques políticos à Lei de Imprensa contribuíram, e continuam a contribuir,
para disseminar dúvidas a respeito dos limites de ação para os jornalistas. As transformações
das relações de trabalho, a falta de unidade da categoria e as mencionadas incertezas jurídicas,
têm desestabilizado as fronteiras que ajudam a configurar a profissão de jornalista no país. Há
ainda outro fator agravante: os muitos impactos e transformações que o jornalismo vem
passando nas últimas décadas por conta de avanços tecnológicos.
No escopo desses acontecimentos, vale ressaltar um caso curioso. Embora o STF tenha
julgado inconstitucional a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão no Brasil,
o mesmo órgão publicou, em 11 de outubro de 2013, um edital de concurso público para a
função de ‘Analista Judiciário – Comunicação Social’, cujos requisitos para investidura no
cargo eram: “Diploma, devidamente registrado, de curso de nível superior de graduação em
Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, fornecido por instituição de ensino
superior reconhecida pelo MEC e registro na Delegacia Regional do Trabalho”.
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Embora tenha julgado inconstitucional a obrigatoriedade do diploma para exercício do
jornalismo, para a Suprema Corte, o cumprimento de atividades relacionadas à produção de
informação, dentro do órgão, deve ser exercida, ainda, por alguém tecnicamente preparado,
portanto, um profissional.
2. A responsabilização jurídica de profissionais e não profissionais no âmbito virtual
No campo da comunicação social, o direito à liberdade de expressão e à honra, assegurados
pelo artigo 5º da Constituição Federal, podem entrar em colisão, notadamente, quando
profissionais da comunicação expressam suas opiniões nos meios midiáticos mais
tradicionais. Em um ambiente institucionalizado coexistem filtros e moderadores eficazes,
denominados como conselhos editoriais que contribuem, sobremaneira, para evitar, ou pelo
menos minimizar, a prática de atos ilícitos relacionados à ofensa e à imagem de fontes e
personagens de narrativas jornalísticas.
O conselho editorial perpassa, entre outras coisas, a consideração, no ato de produção
jornalística, dos valores-notícia, do news judgement e do saber de procedimento, tal como
apresentado no item 1.1 deste trabalho. Os três elementos ditam aquilo que é noticiável ou não
dentro da perspectiva deontológica da atividade prática do jornalismo.
Por outro lado, a decisão do STF, que dispensou a exigência do diploma para a prática da
atividade jornalística no Brasil, promoveu a abertura para o exercício pleno da manifestação
de ideias e opiniões em nosso país. Não obstante, também facilitou o exercício abusivo de
direitos e a propagação de ofensas e inverdades pelos não profissionais da área de
comunicação.
No Brasil é ainda incipiente a regulamentação jurídica que prevê punição, tanto a
profissionais quanto aos não profissionais, para atos ilícitos praticados no ambiente virtual.
Alguns avanços puderam ser percebidos nos últimos anos no campo do Direito, em direção à
responsabilização dos atores incumbidos de produção informativa ilícita em veículos
informativos institucionalizados e/ou na rede mundial de computadores.
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Exemplo disso, no âmbito civil, foi a aprovação do Marco Civil da Internet (Lei nº
12.965/14), em abril de 2014, cuja promessa é contribuir para a responsabilização de
provedores e produtores de informações levianas e inverídicas.
No que diz respeito ao âmbito penal, a Lei 12.737/2012, mais conhecida como Lei Carolina
Dieckmann, foi sancionada em novembro de 2013 e passou a tipificar como crime a conduta
de:
Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante
violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir
dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou
instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita. Pena: 03 (três) meses a 01 (um) ano de
detenção. (LEI 12.737/2012)
A responsabilidade civil é regulada nos arts. 186 e 927, do Código Civil brasileiro.
Basicamente, todo aquele que comete ato ilícito (contra a lei civil) e cause dano (material e/ou
moral) a outrem é obrigado a reparar o prejuízo. A responsabilização civil acarreta uma
condenação sempre patrimonial e consiste no pagamento de uma indenização à vítima pelos
danos sofridos. (RIZZARDO, 2009)
Entretanto, as penas atribuídas para os crimes descritos nesta lei são relativamente brandas, o
que não têm inibido algumas pessoas de cometerem ilegalidades na esfera de produção
informativa.
Em sua decisão, o STF considerou o jornalismo uma ocupação na qual liberdade de expressão
e liberdade de profissão têm a mesma natureza. Baseado na ideia de que em um país
democrático não deve haver regulamentação prévia da liberdade de expressão, o tribunal
supremo decidiu que não deve existir nenhum tipo de regulamentação estatal na profissão de
jornalista. No jornalismo, especificamente, a profissão é relacionada à liberdade de expressão,
imperando, portanto, o princípio constitucional de não interferência do Estado no setor.
Alguma interferência seria caracterizada como censura e crime contra a liberdade de
expressão no país. Essa é a opinião dos magistrados (NASCIMENTO, 2011).
As disputas judiciais em torno da obrigatoriedade do diploma para o exercício legal da
profissão refletem, de um lado, a relação da profissão com o Estado e com o mercado e, de
outro lado, as complexas práticas sociais que se inserem/modificam com as tecnologias e as
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oportunidades de manifestação de opinião. Via de regra, no Direito, as decisões proferidas
dialogam com costumes sociais enraizados e amadurecidos. Isso revela que quanto mais
regulares forem as práticas, tanto mais definidas e maduras serão as regras do jogo e o tipo de
verdade jurídica que elas criam. Para o Direito, é mais importante estabelecer uma verdade
controlável, uma vez que esta verdade possibilita a pacificação das relações sociais.
Ora, com a instabilidade vivenciada pela profissão ao longo de 13 anos e a crescente
desvalorização do saber deontológico daqueles que informam, o Estado de Direito não
conseguiu, por força de sua dificuldade de jurisdicionar relações sociais instáveis (temerárias),
construir uma verdade jurídica que seja capaz de estabelecer paradigmas claros na distinção
da responsabilização de profissionais e não profissionais da área jornalística. Contudo, a
aprovação do Marco Civil e da Lei Carolina Dieckman, citadas anteriormente, evidenciam a
construção de relações jurídicas mais previsíveis e seguras. Entretanto, constitui-se ainda
como um processo em formação.
A instabilidade replicada no Direito, fruto da própria instabilidade da prática profissional
jornalística, tende a perdurar até o momento em que a pacificação social não estiver
comprometida. Em 2013, a Polícia Federal e o Ministério Público registraram mais de 240 mil
crimes virtuais no Brasil (Rodrigues, 2014), número expressivo para um país onde a
popularização do uso da internet ocorreu há pouco mais de uma década. Em 2013, o instituto
de pesquisa americano, ComScore, divulgou um relatório informando que o Brasil já
ocupava, naquele ano, a quinta posição no ranking mundial de acesso à internet.
Na ausência de uma legalidade específica, os tribunais têm estendido a responsabilidade
tradicional dos profissionais para os não profissionais. Os internautas não profissionais
(proprietários de blogs ou de páginas em redes sociais) podem assumir responsabilidades civis
e criminais quanto ao conteúdo do que é divulgado em suas plataformas, devendo, por esta
razão, exercer um policiamento de suas próprias opiniões, além de uma filtragem do conteúdo
produzido por terceiros. No curso dessas discussões, emerge a seguinte questão: Um código
deontológico, consistente e iluminado pelo saber reflexivo do jornalismo, não seria o
instrumento necessário para prevenir e inibir ilícitos de ordem de produção informativa?
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À medida que as plataformas de informação deixam de ser veículos de expressão e opiniões
individuais ou de pequenos grupos e se constituem como uma instituição social, eles passam a
compartilhar valores profissionais, princípios éticos e, principalmente, responsabilidades. A
principal atividade desenvolvida por um jornalista, no sentido estrito do termo, é a apuração
criteriosa de fatos, que são então transmitidos à população segundo critérios éticos e técnicas
específicas que prezam a imparcialidade e o direito à informação.
3. Caso Guarujá Alerta: a informação produzida por não profissionais
O aproveitamento jornalístico da internet como meio de difusão permitiu o aparecimento de
atividades parajornalísticas5 (como a produção de blogs e páginas em redes sociais) que têm
produzido um forte impacto no modo como se pensa a profissão. A internet transformou as
condições de agendamento e de seleção da informação e destronou o jornalista do seu papel
de detentor do procedimento que versa sobre ‘como agir para conseguir uma notícia ou lidar
com uma fonte’.
Em maio de 2014, Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi linchada por moradores motivados
por falsos alertas e denúncias inverossímeis publicadas a partir de uma fanpage chamada
"Guarujá Alerta", hospedada no perfil do Facebook. O perfil circulou um retrato falado de
uma mulher que sequestrava crianças para ritual de magia negra. A imagem divulgada no
retrato falado era, na verdade, de uma acusada de sequestro no Rio de Janeiro. Fabiane foi
confundida com a mulher, espancada e morreu dois dias depois do ocorrido.
A página, com mais de 55 mil seguidores, é uma referência na região como prestadora de
serviço para a população local. Uma visita ao “Guarujá Alerta” revela que se trata de uma
página de avisos de interesse geral, denúncias e boatos, com pretensão a jornalismo.
A divulgação do fato foi feita pela primeira vez em 25/04/2014, conforme mostra a figura 1,
abaixo:
5 Termo defendido por Correia (2009).
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Figura 1
Em apenas oito dias, o post recebeu 130 comentários e outros 765 compartilhamentos dos
seguidores do perfil. Abaixo alguns comentários extraídos do post, conforme pode ser visto
nas figuras 2, 3 e 4 disponibilizadas a seguir:
Figura 2
Figura 3
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Figura 4
Observa-se, tanto no conteúdo publicado pelos administradores da página, quanto nos
comentários subsequentes ao post, sinais de irresponsabilidade e ignorância das regras básicas
do jornalismo, desconhecimento, portanto, do saber jornalístico, tais como os valores-notícia
mencionados aqui mesmo neste artigo. No post é possível observar a mensagem: “Se é boato
ou não, vamos ficar alertas”, evidenciando a infringência do princípio básico do jornalismo de
que, em caso de dúvida, deve-se optar pela não publicação e partir para a investigação. A
escrita dos comentários demonstra a falta de acuidade ou reflexão, condição facilitada pela
fantasia do tempo real, do imediatismo e do julgamento imediato.
A socióloga Ariadne Lima Natal, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da
Universidade de São Paulo, constatou, em pesquisas realizadas durante três décadas, uma
coincidência marcante: os linchamentos se repetem logo após um caso de grande repercussão
na mídia (DANTAS & GUANDELINE, 2014). Sobre a relação de crimes cometidos por uma
coletividade, ela afirma, ainda, que o noticiário intenso sobre um determinado caso acaba
deflagrando uma espécie de epidemia de eventos semelhantes, como por exemplo, formas de
suicídio.
A digitalização da produção informativa é mais um desafio que solicita ao jornalismo e aos
jornalistas um especial cuidado na compreensão do lugar de onde fala: a análise das condições
de enunciação implica não apenas o nível tecnológico e o saber técnico da escrita. A
transformação estrutural da economia e da sociedade se traduziu em uma frenética aquisição
de competências performativas (de saber tecnológico) em detrimento de competências
reflexivas (CORREIA, 2009). Neste sentido, há uma concepção de que a profissão jornalística
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se alimenta da prerrogativa de que basta saber operar a ferramenta da escrita, associada ao
saber tecnológico, para se tornar jornalista.
3.1. A ausência do filtro jornalístico na página “Guarujá Alerta”
Páginas como o “Guarujá Alerta” prestam um serviço à sociedade, dando voz aos que não têm
voz, com reclamações sobre problemas diários da cidade. Contudo, elas falham quando se
propõem a prestar um serviço jornalístico porque trabalham com a tentação da afirmação e
não da verificação. Trabalha-se, assim, com a tentação do sensacionalismo. O grande
equívoco destas páginas que pretendem colaborar com a produção de conteúdo é quando elas
saem da esfera da informação e passam a comunicar fatos (sem verificação e critérios).
Obviamente é necessário saber como funcionam as ferramentas digitais, mas interessa não
perder de vista para que servem, quando se utilizam e porque se utilizam essas ferramentas
(saber de procedimento do jornalista). As competências técnicas e tecnológicas não
dispensam o saber humanístico e a competência crítica, elementos que são diferenciadores do
saber universitário e devem integrar o saber jornalístico.
Eugênio Bucci, estudioso das questões éticas do jornalismo, em entrevista ao programa
Observatório da Imprensa, de 13 de maio de 2014 (Linchamento e Mídia, 2014), afirmou que
atualmente, toda pessoa tem poder de mídia, ainda que ela não seja jornalista. O problema,
segundo ele, é que muitos que têm poder de mídia, não aprenderam a ter responsabilidade de
mídia.
A internet reduziu drasticamente o papel dos filtros na transmissão de notícias e informações.
A proliferação de não profissionais que publicam na rede, demonstra a ausência de
intermediários com responsabilidade pela filtragem das notícias. Para o jornalista e professor
Fernando Molica, ao contrário do que muitos pensam, “a internet não é um veículo, ela é, sim,
um mural em que você pode escrever qualquer coisa”. (LINCHAMENTO E MÍDIA, 2014)
3.2. A responsabilização do não profissional no ambiente virtual
Ao divulgar o retrato falado que resultou no linchamento de Fabiane Maria de Jesus, por fim
considerada inocente, o não profissional e administrador da página, pode ter cometido crime
de calúnia. Ao divulgar o boato e publicar imagens (desenhos) de uma mulher que estaria
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cometendo crimes naquela região, o internauta responsável pelo espaço virtual promoveu
sensibilização social, gerando a sensação de insegurança e revolta em muitos moradores.
Nesse caso, o internauta não pode ser responsabilizado pelo crime de homicídio, ao divulgar
as referidas informações. Comprovar o dolo, a intenção de matar, é extremamente difícil e
temerário (incerto); sequer há culpa, uma vez que não é possível demonstrar que aqueles
boatos foram a causa principal da morte. Os mecanismos jurídicos tradicionais, assim, acabam
oferecendo liberdades incontroláveis aos não profissionais.
Este cenário demonstra que caso a atividade de produção de informação fosse designada
exclusivamente a atores que detém conhecimento a respeito de uma apuração criteriosa de
fatos transmitidos à população, segundo critérios que prezam pela imparcialidade, o crime de
homicídio poderia ter sido evitado.
4. Considerações Finais
Diante das discussões produzidas ao longo deste artigo, é possível tecer algumas conclusões.
A área do jornalismo incutiu, desde a primeira decisão que extinguiu a obrigatoriedade do
diploma em jornalismo, um cenário de instabilidade social que culminou em alguns
desdobramentos, a saber: 1) a desprofissionalização do jornalismo como uma área de saber
reflexivo; 2) o recrudescimento de não profissionais exercendo a atividade jornalística sem o
devido conhecimento deontológico e ético da profissão; 3) a instabilidade nas decisões
jurídicas a respeito de ilícitos relacionados à produção informativa, fruto da instabilidade
profissional que vive o jornalismo.
A análise efetivada a respeito da página “Guarujá Alerta” evidencia a problemática discutida a
respeito das questões acima mencionadas. O responsável pela página, que não possui
formação em jornalismo, desprovido de um saber reflexivo que norteia a produção e a
divulgação de informações públicas, gerou, de maneira leviana, a comoção social e a sensação
de perigo iminente oferecido por uma pessoa inocente.
Essa condição demonstra a fragilidade da área jornalística que se deu, a priori, pela apressada
aquisição de competências técnicas em detrimento de competências reflexivas. E, nesse
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contexto, a decisão final do Supremo Tribunal Federal resultou em uma zona de incertezas e
instabilidades nas relações sociais, profissionais e jurídicas.
5. Referências Bibliográficas
BENEDETI, C. A. A qualidade da informação jornalística: do conceito à prática. Série
Jornalismo a Rigor. v.2. Florianópolis: Insular, 2009.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em:
10/09/2014.
BRASIL. Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de
delitos informáticos. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12737.htm>. Acesso em 10/09/2014
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DANTAS, T; GUANDELINE, L. Dona de casa é enterrada no Guarujá sob pedidos de
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