DIDÁTICA, PRÁTICAS DE ENSINO E CONDIÇÕES DE … · na Faculdade de Educação da USP, em 2010....

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1 DIDÁTICA, PRÁTICAS DE ENSINO E CONDIÇÕES DE TRABALHO DOCENTE: UMA EXPERIÊNCIA QUILOMBOLA Maria Walburga dos Santos (UFSCar - São Carlos / CIEI - FEUSP) Resumo: A escola, suas práticas educativas e a própria didática têm, no correr de seu percurso histórico, apresentado preocupações, expectativas e propostas para que as condições de trabalho dos docentes sejam adequadas ao que comumente chamamos de qualidade na educação. Este texto chama a atenção para tais condições em contexto não urbano, pautado em pesquisa de doutorado realizada pela autora em comunidade quilombola. Para tanto, situa o leitor, em primeira instância, para o que são e o que representam as comunidades quilombolas hoje e como se dá a educação em seus espaços. Por meio de metodologia de ordem qualitativa (entrevistas, observação de campo, registros imagéticos) aborda a docência em instituição educativa no interior de uma comunidade, observando seus principais aspectos e organização, atribuições, dificuldades e desafios focando a relação com os estudantes, suas famílias e o desenvolver da prática de ensino. Aponta também diretrizes do campo das políticas públicas que interferem diretamente no cotidiano e fazer dos professores, com consequências refletidas na prática. Entrementes, o texto discute o fazer docente imerso em cultura não urbana, seus principais desafios, dificuldades e expectativas, indicando a urgência de se pensar em termos de prática outras possibilidades educativas que atendam às urgências de nossa sociedade, renunciando a modelos únicos que não contemplam a diversidade de saberes e seus protagonistas. Por fim, toda a estrutura e considerações dessa produção alertam aos profissionais de educação, em especial aos formadores de professores, para os múltiplos aspectos de atuação docente, incluindo espaços não urbanos, reforçando a necessidade de compromisso com a escola pública, laica, gratuita, de qualidade, em respeito à diversidade para todos. Palavras-chave: condições de trabalho docente, docência não urbana, educação quilombola. Introdução Este texto foi estruturado a partir de dados oriundos da tese de Doutorado “O lúdico em Bombas: uma comunidade quilombola (estudo de ca so etnográfico)”, defendida na Faculdade de Educação da USP, em 2010. Visa abordar em que condições docentes ocorrem atividades pedagógicas em uma comunidade quilombola. Para tanto, recorre às descrições previstas para trabalho de cunho etnográfico (ANDRÉ, 2009; GEERTZ, 2009) e, em seu desenvolvimento, marca as dificuldades de uma XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.003572

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DIDÁTICA, PRÁTICAS DE ENSINO E CONDIÇÕES DE TRABALHO

DOCENTE: UMA EXPERIÊNCIA QUILOMBOLA

Maria Walburga dos Santos (UFSCar - São Carlos / CIEI - FEUSP)

Resumo:

A escola, suas práticas educativas e a própria didática têm, no correr de seu percurso

histórico, apresentado preocupações, expectativas e propostas para que as condições

de trabalho dos docentes sejam adequadas ao que comumente chamamos de

qualidade na educação. Este texto chama a atenção para tais condições em contexto

não urbano, pautado em pesquisa de doutorado realizada pela autora em comunidade

quilombola. Para tanto, situa o leitor, em primeira instância, para o que são e o que

representam as comunidades quilombolas hoje e como se dá a educação em seus

espaços. Por meio de metodologia de ordem qualitativa (entrevistas, observação de

campo, registros imagéticos) aborda a docência em instituição educativa no interior

de uma comunidade, observando seus principais aspectos e organização, atribuições,

dificuldades e desafios focando a relação com os estudantes, suas famílias e o

desenvolver da prática de ensino. Aponta também diretrizes do campo das políticas

públicas que interferem diretamente no cotidiano e fazer dos professores, com

consequências refletidas na prática. Entrementes, o texto discute o fazer docente

imerso em cultura não urbana, seus principais desafios, dificuldades e expectativas,

indicando a urgência de se pensar – em termos de prática – outras possibilidades

educativas que atendam às urgências de nossa sociedade, renunciando a modelos

únicos que não contemplam a diversidade de saberes e seus protagonistas. Por fim,

toda a estrutura e considerações dessa produção alertam aos profissionais de

educação, em especial aos formadores de professores, para os múltiplos aspectos de

atuação docente, incluindo espaços não urbanos, reforçando a necessidade de

compromisso com a escola pública, laica, gratuita, de qualidade, em respeito à

diversidade para todos.

Palavras-chave: condições de trabalho docente, docência não urbana, educação

quilombola.

Introdução

Este texto foi estruturado a partir de dados oriundos da tese de Doutorado “O lúdico

em Bombas: uma comunidade quilombola (estudo de caso etnográfico)”, defendida

na Faculdade de Educação da USP, em 2010. Visa abordar em que condições

docentes ocorrem atividades pedagógicas em uma comunidade quilombola. Para

tanto, recorre às descrições previstas para trabalho de cunho etnográfico (ANDRÉ,

2009; GEERTZ, 2009) e, em seu desenvolvimento, marca as dificuldades de uma

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educação embasada numa “pedagogia da transmissão” (OLIVEIRA-

FORMOSINHO, 2007) e os problemas oriundos de um currículo uniforme

(FORMOSINHO, 2007). Subdivide-se em três momentos:

1. Comunidades quilombolas (apresenta a ideia de quilombo e quilombolas

assumidas pelo trabalho);

2. Escolas quilombolas, seus docentes e estudantes (descrição das condições de

trabalho pedagógico em espaço quilombola);

3. Condições de trabalho docente em espaços não urbanos: desafios da diversidade

(considerações a respeito de ensinar e aprender em nossa sociedade

multicultural).

A intenção geral é que por meio do reconhecimento de outras realidades além da

educação urbana, possamos como pesquisadores e docentes ressignificar práticas

e saberes, que por sua vez encontrem ecos nas políticas para educação e

reafirmem compromisso com a diversidade e qualidade educativa.

1. Comunidades Quilombolas

Até aproximadamente o último quarto do século passado, pensar em quilombos

remetia a uma única ideia: “refúgio de negros escravos fugitivos”. Essa noção,

questionada por historiadores e outros grupos sociais e de pesquisadores, vem perdendo

sistematicamente espaço, muito embora ainda encontre ecos em alguns segmentos da

sociedade centrados em concepções mais tradicionais. Hoje, os quilombos ou as

comunidades quilombolas correspondem aos grupos de maioria negra, visto a grande

diversidade que compõe a população brasileira, espalhados pelo Brasil e que se auto-

determinam como quilombolas. As terras que habitam resultam de processo de compra

por negros livres, pela posse pacífica por ex-escravos de terras abandonadas, pela

ocupação e administração das terras doadas aos santos padroeiros ou ainda por serem

terras entregues ou adquiridas por escravos de outrora organizados em quilombos. Esses

territórios, após se auto-declararem como quilombolas, passam por processo de

reconhecimento e titulação, em que, de acordo com o artigo 68 da Constituição Federal,

“aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras, é

reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.

O conceito historicamente atribuído aos “quilombos” constitui apenas mais um dos

indicadores considerados para se titular as chamadas “terras de uso comum”.

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São várias as comunidades identificadas no Brasil, não sendo possível precisar

seu número. Para a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

(Seppir) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), há

setecentos e quarenta e três comunidades quilombolas oficialmente registradas pela

Fundação Palmares, do Ministério da Cultura, e duzentos e cinquenta e dois processos

de regularização fundiária em curso, contando com trezentas e vinte e nove

comunidades dispersas em vinte e um estados da federação. A Seppir infere que há pelo

menos três mil dessas comunidades em todo território brasileiro (dados apontados pelo

Observatório Quilombola Koinonia www.koinonia.org.br, acesso em 19 de fevereiro de

2012). De acordo com Santos (2010), em São Paulo, o Instituto de Terras do Estado

(ITESP) apontava em agosto de 2009 cinquenta e uma comunidades de quilombo dentre

as reconhecidas, tituladas, em fase de reconhecimento ou apontadas para

reconhecimento. Na região de Eldorado e Iporanga, foco do estudo, eram dezenove

comunidades.

As comunidades quilombolas podem se situar em espaços urbanos ou não

urbanos, sendo os primeiros mais raros. A maior parte dessas comunidades encontra-se

nas zonas rurais, ribeirinhas ou agrestes, partilhando inspiração sertaneja e comungando

da cultura local e, ao mesmo tempo, afirmando ou reafirmando sua identidade

quilombola. Em observância à legislação federal, nesses territórios deve haver

instituições públicas de educação.

Bombas, onde ocorreu a pesquisa que embasou os dados deste texto, é uma

comunidade que já realizou a auto-definição como quilombola e aguarda

reconhecimento por parte dos órgãos competentes. É uma comunidade com

características peculiares: situada no município de Iporanga, não usufrui de estradas,

rede elétrica ou de esgoto. Para se chegar a seu interior e acessar as mais de setenta

famílias que lá habitam, é necessária uma caminhada por aproximadamente quatro horas

dentro da floresta que leva a casas simples, a grande maioria construída a pau a pique,

com cobertura de sapé e chão batido. O povoado é considerado como um único bairro,

subdividido em dois por aspectos geográficos: Bombas de Cima e Bombas de Baixo.

Com todas essas particularidades, os moradores de Bombas realizam trânsito

intenso com as cidades vizinhas. Não é um lugar isolado. Por lá há brinquedos

eletrônicos, celulares e até uma televisão em uma das casas, que funciona mediante

captação de energia solar.

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A população local conta com duas escolas públicas de ensino básico mantidas

pelo poder municipal.

2. Escolas quilombolas, seus docentes e estudantes

Geertz (2009) indica que é preciso observar e analisar o saber local

instituído por um determinado grupo para se compreender a realidade e sua diversidade.

Aponta que essa compreensão possibilita “ver-nos, entre outros, como apenas mais um

exemplo que a forma de vida humana adotou em determinado lugar, um caso entre caso,

um mundo entre mundos” (GEERTZ, 2009, p. 30).

A comunidade quilombola de Bombas é “um mundo entre mundos”. Em

seu território as escolas são administradas pela prefeitura e os professores oriundos da

cidade, ou seja, Iporanga. A primeira escola no povoado data da década de 1960 e

funcionava na casa de um dos moradores. Segundo depoimento da Profa. Lucinha,

primeira a ocupar a “cadeira”, ela não era formada e foi só para abrir, garantir a sala

para o próximo ano:

Eu era uma menina quando dei aula em Bombas. Era o ano de

1961 ou 1962. Eu tinha quinze anos e só a quarta-série do ensino

primário. Era professora da zona rural. Naquele tempo podia:

quem sabia um pouco mais ensinava os outros. E eu sempre gostei

de ensinar tudo o que eu sei.

Eu ficava em Bombas de Baixo. Era uma dificuldade chegar lá.

Meu irmão me levava. Eu dava aula na casa de um senhor

chamado Pedro Miguel, antes essa casa era do Senhor Belmiro.

Tinha mais ou menos dezesseis ou dezessete alunos. Todos

crianças. Dava aula de dia. Como eu era muito agitada e sempre

queria fazer alguma coisa, inventei de dar aula à noite também,

para os adultos. Eu dizia a eles: “tragam os lampiõezinhos”. E

eles vinham. Dava duas horas de aula de noite. Era voluntário. Eu

só recebia pelas aulas do dia.

(...) Fui a primeira professora lá de Bombas. Fui para formar a

sala. No ano seguinte, a prefeitura teve meios para manter a sala.

Era preciso começar. Então saí de lá. Chegou outra professora.

(Depoimento Profa. Lucinha, caderno de campo)

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A escola, montada dessa forma, vem atendendo aos moradores desde

então. Sem sede própria, funcionou em casas do bairro e, de acordo com um dos

habitantes mais antigos, o Senhor Juquita, foi ele quem construiu a estrutura de pau a

pique, à moda do lugar, que alugava à Prefeitura e abrigou a escola durante anos. Sem

data precisa, mas possivelmente no decorrer dos anos 1990, foram construídas as duas

estruturas (de alvenaria) que atendem atualmente à comunidade.

Os professores são todos vinculados à Prefeitura, quer seja por concurso

ou contrato, todos com formação específica. Na atribuição de aulas, as turmas de

Bombas “sobram”: raramente são atribuídas em primeira escolha. No ano de 2009, foi a

última sala destinada a professora contratada mediante processo seletivo para

contratação, depois que outros haviam declinado. Por que a resistência docente?

Algumas das possibilidades para compreender essa questão dão-se pelas condições em

que se desenvolvem as atividades pedagógicas.

O docente que atua em Bombas precisa residir lá, dentre outras razões

porque o caminho é longo e as condições de acesso, precárias. Deve viajar em lombo de

animal ou a pé. O clima nem sempre é favorável e certamente haverá altos e baixos,

lama e outras variantes regionais no caminho. Na comunidade, normalmente dorme em

cômodo contiguo a escola. Além de preparar e ministrar as aulas, é responsável pela

limpeza, organização, merenda e almoço dos estudantes. Em 2009, o professor que

lecionava em Bombas de Baixo, fazia o percurso todos os dias a pé, cerca de três horas

entre ida e volta. A professora que atuava em Bombas de Cima chegava segunda-feira à

tarde e voltava à cidade na sexta-feira, depois das aulas, por volta das treze horas. No

início, levava a filha pequena, de quatro anos, com ela. Depois desistiu, deixando-a com

o pai.

Em termos de Didática, a escola observa moldes tradicionais. Os

professores realizavam registros de suas atividades num caderno denominado diário.

Descreviam o conteúdo do dia aplicado a cada ano de escolaridade, pois as salas são

multisseriadas, fixando exemplos das atividades desenvolvidas. Não há copiadoras ou

mimeógrafos. O município fornece material didático, o mesmo utilizado em todas as

escolas: apostilas de uma grande rede de ensino particular. Estudantes e docentes

demonstram dificuldades no trato com o material. Os primeiros porque mal traduzem as

solicitações da apostila, devido às dificuldades com alfabetização. Os segundos, por

terem que cumprir com o término da apostila em detrimento de seus próprios objetivos

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pedagógicos com as turmas. Além desse material, constatam-se em salas de aula poucos

recursos didáticos, poucos livros, nenhuma bibliografia formativa para os professores.

Os docentes participam de reuniões de formação com os outros

professores da rede a cada quinze dias, na cidade. É papel da Secretaria de Educação do

município visitar e acompanhar o trabalho pedagógico, todavia é uma ação rara, que não

ocorreu no ano de 2009. Os professores são responsáveis pelo próprio planejamento, de

acordo com o currículo geral da secretaria com a obrigação de trabalhar os conteúdos

previstos nas apostilas. Não há um plano de trabalho ou ensino direcionado à realidade

quilombola.

Os professores ainda são responsáveis, no convívio diário com a

comunidade, por convocar reuniões com pais e familiares. Apesar dos encargos a mais

(alimentação, limpeza etc.) o salário de um docente em comunidade tradicional é o

mesmo que de outros profissionais que atuam na rede, com estrutura mais adequada:

625,00 (seiscentos e vinte e cinco reais). Há uma gratificação de transporte rural

(GTZR) que aumenta o salário para setecentos e cinquenta reais (Fonte: Secretaria

Municipal de Educação de Iporanga, em maio de 2009).

O funcionamento das escolas no interior dessa comunidade e de outras

em torno na região do Ribeira correu risco de deixar de existir. Nos anos de 1990, havia

um movimento nos municípios ribeirinhos que previa a incorporação dos grupos das

comunidades tradicionais às escolas da cidade, dos bairros. Se vingasse tal perspectiva,

nenhum dos estudantes moradores de Bombas teria frequentaria a escola, considerando

a distância dos equipamentos: ou seus familiares deixavam a terra ou elas não

estudariam. À época, a Secretaria do Meio Ambiente promoveu seminários como o

tema “Educação como Estratégia para a Sustentabilidade no Vale do Ribeira: propostas

educacionais dos municípios”. Instauraram-se debates públicos envolvendo professores

da academia e das redes municipais, além de representantes políticos. Naquele momento

foi possível garantir, considerando as especificidades educativas, as escolas no interior

das comunidades. A ideia era que cada escola torna-se um pólo de sustentabilidade,

denominado como Centro de Desenvolvimento Educacional Sustentável (CEDES). No

caso de sua implementação, o professor seria um agente social na comunidade e a

unidade educativa seria o lugar das grandes demandas comunitárias: reuniões, festas,

atividades coletivas, favorecendo a comunicação e articulando na relação com a cidade,

especialmente com o poder público, visando sustentabilidade e desenvolvimento social.

O CEDES não chegou a se estabelecer, mas as escolas permaneceram nas comunidades.

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De acordo com os professores, os estudantes são tranquilos, menos

agitados que na cidade. As turmas são mistas, mas não numerosas (em torno de nove

estudantes em Bombas de Cima e quatro em Bombas de Baixo), No ano da pesquisa

não havia atendimento à educaçãoinfantil, somente à educação básica, segundo as

justificativas por não haver número suficiente de crianças para serem matriculadas. Os

docentes são unânimes em reconhecer que as crianças possuem várias dificuldades em

aprender, assimilar os conteúdos. Afirmam que são distraídas ou que não têm

perspectivas.

Os estudantes, em geral, dirigem-se sozinhos à escola, mesmo os

pequenos. No deslocamento, vários deles chegam a caminhar por mais de uma hora e

meia para chegar à aula. A maioria ajuda nos trabalhos domésticos e da roça (todas as

famílias dependem da agricultura). Na unidade educativa, fazem o desjejum e mais

tarde, almoçam. Entre uma e outra refeição, realizam as atividades pedagógicas. Fazem

cópias, exercícios ortográficos, colorem desenhos, resolvem contas e problemas

matemáticos, dentre outros. A figura 1, por exemplo, mostra lição de uma criança de

primeiro ano. Trata-se de coordenação motora: reproduzir “bolinhas”. Ela preenche toda

a folha, mas faz auto-crítica “ainda não está muito bem”. Já a figura 2, identifica o tipo

de material didático utilizados pelos professores. Não diferem dos recursos de qualquer

outra escola, mesmo urbana. A figura 3, por sua vez, revela o momento da atividade

individual em sala de aula: carteiras organizadas em fileiras, pouco material disponível

e solicitação de silêncio pela professora.

Considerando as descrições realizadas até aqui e as inferências

oportunizadas pelas imagens, vale apontar uma das atividades propostas pela apostila

em uso nas escolas. O exercício solicita ao professor que coloque para os estudantes

conhecerem e ouvirem certa música do compositor Vila Lobos ao mesmo tempo em que

desenham “a natureza”. O encarte do livro do professor traz o CD com a gravação. Em

Bombas, não foi possível realizar tal tarefa: não havia equipamento de som, nem

energia elétrica (Em Bombas de Cima há captação de energia solar em uma das casas,

mas não foi possível realizar a proposta da apostila).

Duas estudantes oriundas de Bombas que agora habitam em outro

território próximo fazem a seguinte descrição da escola:

A gente sai daqui (de casa) às seis horas (da manhã). A perua

pega a gente às 7 horas. Se perder a perua, volta para casa. Às

vezes a perua não vem, quebra. Aí a gente volta. Pior quando

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quebra no caminho: tem que fazer tudo a pé. Quando chove, faz

frio, então...

Na escola a gente tem livro. Precisa devolver no final de ano.

Agora tem um curso novo (da apostila). Tem muita cópia para

fazer. Às vezes, cansa. (Depoimento de Thaine, in SANTOS, 2010,

p. 262 ).

Estudei até o ano passado. Agora parei um pouco para

descansar. Não é fácil, não. A escola é muito longe. A aula vai

até às 5h45 (17h45). Quando o carro quebrava, tinha que fazer

todo esse caminho a pé. Então chegava em casa lá pelas 10 da

noite. Sem quebrar, dá para chegar às 7 horas (19h). Fiz até a

sétima série. Falta um só para terminar, a oitava. Esse ano eu

vou descansar um pouco. (Depoimento de Ironilde, in SANTOS,

2010, p. 262),

Em Bombas de Cima a presença diária da professora não significa

participação efetiva da comunidade. O contato com as famílias é mais eficiente com as

que residem mais perto (as casas na comunidade são dispersas e apresentam boa

distância uma da outra, às vezes significando caminhadas de duas horas pela mata). De

algumas crianças, ela mal conhece os responsáveis. A turma é composta por nove

alunos. Dentre eles, de acordo com a docente, dois “não vão bem” e os demais

apresentam muitas dificuldades em relação ao que se espera da aprendizagem: a leitura

e a escrita dos estudantes apresentam muitas lacunas, sendo privilegiadas em sala de

aula (ensino de português e matemática) enquanto as demais áreas do conhecimento são

trabalhadas de forma a cumprir o currículo.

O professor de Bombas de Baixo também aponta as dificuldades, apesar

de ter apenas quatro alunos. Tais dificuldades referem-se às expectativas geradas em

torno do que seria a aprendizagem ideal e às respostas insuficientes dos alunos e

comunidade a elas.

Há um descompasso evidente entre os ritmos da escola e da comunidade.

3. Condições de trabalho docente em espaços não urbanos: desafios da

diversidade

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Na maioria das escolas que conhecemos, herança dos séculos XIX e XX,

a reprodução de conceitos é constante, inspirada ainda pelo modelo positivista de

educação. Tal reprodução desconsidera o ritmo acelerado do agora e o movimento de

mudança (invenção-reinvenção) pelo qual passa nossa sociedade. Mulheres, homens,

crianças são dispensados da complexidade das relações em contextos culturais diversos,

para seguir o padrão determinado pela escola. A ideia premente é formatar pensamento

e ações pelo silêncio das vozes e corpos dos estudantes, com o condicionamento de seu

espaço físico, cultural e social e pelas fórmulas acadêmicas em descompasso com a

vida.

Se as condições de trabalho docente já são um grande desafio desde

Comenius e sua “Didática Magna”, quiçá pensá-las em meio à diversidade e em

situações específicas, “mundo nos mundos”, como no caso de comunidades

quilombolas. A reinvenção da prática pedagógica, considerando crianças, famílias,

docentes, como protagonistas de contextos multiculturais, com perspectivas que não

podem ser esquecidas pelas instituições de educação ou pelas políticas públicas. O caso

de Bombas, singular em tantos aspectos, ajuda-nos a entrever que não basta o professor,

o prédio, a apostila.

Estudantes quilombolas, antes de serem estudantes na escola, são

crianças e experimentam em seu cotidiano aprendizagens que levam a conhecimento

particular da natureza que as circunda e estabelecem uma relação com seus corpos no

que diz respeito à coordenação, motricidade, em outras palavras, domínio do corpo

muito diferente do que propõe a vida na cidade. São saberes da vida no quilombo que

garantem às crianças seu pertencimento e trânsito no grupo e ajudam-nas em seu

processo de conhecimento de mundo. É importante ouvir Vilas Lobos, mas não da

forma estabelecida pela apostila, adotada pela política pública municipal e longe de

qualquer significação naquele momento para aquela turma e docentes. Reforça,

concomitantemente, os saberes que são essenciais para assegurar a essas crianças seu

pertencimento a um grupo, a um coletivo.

O processo de educação na comunidade de Bombas apresenta

características de conhecimento transmissivo (pela oralidade, convivência comunitária e

com os mais velhos), mas que em muito difere da “pedagogia transmissiva”

(OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007). Enquanto as experiências da comunidade se

configuram em aprendizagens práticas por meio da observação e participação dos

meninos e meninas em seu cotidiano, indo além da oralidade, a “pedagogia

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transmissiva” recorre a uma única forma de se aprender: a partir do discurso do

professor, sem a participação ou interação dos alunos e é nessa perspectiva que se

assenta o outro momento de aprendizagem na comunidade.

Esse outro momento de aprendizagem é no espaço escolar. Marcado por

práticas tradicionais de um currículo uniforme (FORMOSINHO, 2007), na escola da

comunidade estão os livros didáticos, tabuadas, carteiras e cadeiras envelhecidas, o giz e

quadro negro. Há também os professores que precisam cumprir, durante o ano letivo, a

pauta estabelecida pelos objetivos do município em relação ao ensino e aprendizagem.

Tais professores foram formados para trabalhar sob os preceitos de um ensino urbano,

nem sempre escolhem as comunidades como campo de trabalho. Muitos deles exercem

seu ofício nesses espaços não por opção considerando a própria sobrevivência.

Na escola os saberes da terra praticamente não têm lugar. É lugar para

ficar sentado, prestando atenção e aprendendo os conteúdos formais dos livros, agora

por sistema apostilado. Esses conteúdos são descontextualizados, sem significados

práticos, desprovidos das necessidades dos meninos e meninas que moram em Bombas

ou em comunidades com perfil semelhante. O saber, na sala de aula, está vinculado

exclusivamente ao domínio da escrita, da leitura, das continhas, do silêncio.

Reconhece-se a real necessidade e função da escola e seu desafio

legítimo de ensinar a leitura e escrita, principalmente ao considerar que ler e escrever

são instrumentos de inclusão social e garantia de acesso e divulgação de saberes a

qualquer outro grupo, viabilizando processo de luta e prevalecimento dos direitos

definidos por lei. O que não confere são seus métodos ortodoxos nos contextos mais

heterodoxos.

Uma última observação faz-se necessária: não é possível culpar os

docentes ou simplesmente atribuir à escola e às condições de trabalho docente pelo

insucesso de muitas de suas práticas. Há uma situação criada que precisa ser

transformada. Pela diversidade e espaços cada vez mais democráticos de educação

precisamos enxergar outros saberes e formas de fazer educação para além do urbano. É

nosso compromisso com a qualidade da educação em cada “mundo dos nossos

mundos”.

Referências bibliográficas

ANDRÉ, Maria Eliza Dalmazo Afonso de. Tendências atuais da pesquisa na escola.

Cad. CEDES.vol.18. n. 43 Campinas Dec. 1997. Disponível em

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<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0101-32621997000200005>.

Acesso em 18/02/2012.

FORMOSINHO, João. O currículo uniforme, pronto a vestir, de tamanho único.

Mangualde (Portugal): Edições Pedago, 2007.

GEERTZ, Cliford. O saber local. Petrópolis, Rio de Janeiro: LTC, 2009.

SANTOS, Maria Walburga dos. Saberes da terra: o lúdico em Bombas, uma

comunidade quilombola (estudo de caso etnográfico). Tese de Doutorado. São Paulo:

FEUSP, 2010.

Sites:

www.koinonia.org.br. Acesso em 18/02/2012.

Imagens (In: SANTOS, M. W: Saberes da terra: o lúdico em Bombas, uma

comunidade quilombola (estudo de caso etnográfico).

Figura 1 - lição primeiro ano Figura 2 - material didático professor

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Figura 3 - Atividade individual em sala de aula

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