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Luiz Alfredo Lilienthal EDUCA-SÃO: UMA POSSIBILIDADE DE ATENÇÃO EM AÇÃO Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Doutor em Psicologia Área de Concentração: Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano Orientadora: Dra. Henriette Tognetti Penha Morato São Paulo 2004

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Luiz Alfredo Lilienthal

EDUCA-SÃO: UMA POSSIBILIDADE DE

ATENÇÃO EM AÇÃO

Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Doutor em Psicologia Área de Concentração: Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano

Orientadora: Dra. Henriette Tognetti Penha Morato

São Paulo 2004

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE PSICOLOGIA

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

EDUCA-SÃO: UMA POSSIBILIDADE DE

ATENÇÃO EM AÇÃO

Candidato: Luiz Alfredo Lilienthal

Orientadora: Dra. Henriette Tognetti Penha Morato

Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Doutor em Psicologia Área de Concentração: Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano

Comissão Examinadora ___________________________________________________________________

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2004

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Ficha Catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Psicologia da USP

Lilienthal, L. A. Educa-são: uma possibilidade de atenção em ação./ Luiz Alfredo Lilienthal. – São Paulo: s.n., 2004. – 217p. Tese (doutorado) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. Orientadora: Henriette Tognetti Penha Morato 1. Saúde 2. Educação 3. Aconselhamento psicoterapêutico 4. Etimologia - Dicionários 5. Ética 6. Política I. Título.

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Por ocasião da minha dissertação de mestrado, fiz a seguinte dedicatória:

Li, certa vez, não pude encontrar onde, uma frase de Fritz Perls que em teor dizia:

“A relação entre pais e filhos estará resolvida, quando o sentimento predominante dos

filhos em relação aos pais for de gratidão”.

A meus pais, Hans e Lotte, cada um à sua maneira, pessoas

absolutamente incríveis! Obrigado!

Agora, passados alguns anos, o que tenho a acrescentar

em relação a eles, é a bem-aventurança que

é saber amar e ser amado.

Assim, dedico este trabalho também a meus filhos, que ainda não tenho,

mas que por certo terei.

E, é claro, antes de mais nada,

à companheira de vida, que vai comigo

viver esse sonho!

A minha avó Hilde, às vésperas de seu 102º aniversário.

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AGRADECIMENTOS

À Dra. Henriette Tognetti Penha Morato pela orientação deste trabalho, pela amizade, paciência e confiança. Registro aqui minha admiração pela sua obra como um todo, mas particularmente pelo detalhe de seu dom de ser uma escultora de textos, uma “Gian Lorenzo Bernini dos textos”, Bernini que ela um dia me confidenciou ser seu escultor predileto. Será que você suportaria me orientar mais uma vez?! À Comissão de Pós-Graduação do IP-USP, por avalizarem este trabalho, na forma da possibilidade de trancamento de matrícula e prorrogação do prazo de entrega, por ocasião de problemas pessoais. À Claudia Baptista Távora. A Yoshiko Aiba, terapeuta sempre presente. Aos amigos que generosamente me ajudaram neste trabalho: a agri-doce Heloisa Antonelli Aun, o brilhante Rodrigo Giannangelo de Oliveira e o talentoso Marcelo Augusto Toniette, todos jovens profissionais de primeira grandeza e encaminhados na vida acadêmica. A Matheus Machado Oliveira pela operação da câmera de vídeo na segunda oficina. A todos os amigos que tiveram a paciência de me suportar (dar suporte!) na confecção deste trabalho, especialmente Myrian Bove Fernandes, Claudia Ranaldi Nogueira, Selma Ciornai, Raphael Cangelli Filho, Syliva van Enck Meira, Roseleide da Silva Santos, Maier Augusto dos Santos, Liz Veronica Vercillo Luisi, Maria Cristina Duarte Ferreira, João Roberto Günzler, Nelson Antonio Viesti, Hans Walter Rüegg, Annie Dymetman, Rubens Hirsel Bergel, Miriam Oellsner, Iracema Soares Corrêa Laurelli, Etienne Miguet e Rodrigo Araês Caldas Farias. Aos amigos e colegas do LEFE-IPUSP, da Universidade São Judas Tadeu, do Instituto Gestalt de São Paulo e aos amigos de consultório Ênio Brito Pinto, Maria Justina Ismael Vaz Pinto (Maju), Mauro Figueiroa e Vera Cristina Silva Stracieri pela infindável paciência de lidar no dia a dia com um doutorando e pelos momentos de descontração e bom humor. A todos os meus professores: aos bons pelo exemplo a ser seguido, aos ruins pelo exemplo a ser abandonado. A todos os meus Mestres. A todos os meus alunos. Aos que foram, aos que são, e aos que serão. A todos meus clientes. Aos que foram, aos que são, e aos que serão. A todos. Um abraço.

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RESUMO

LILIENTHAL, Luiz Alfredo. Educa-são: uma possibilidade de atenção em ação. São Paulo, 2004, 217 p. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Tendo como ponto de partida o sofrimento ou perda de sentido na assim chamada pós-modernidade, este trabalho trilha, através da etimologia, o sentido das noções de saúde e educação, desde sua criação pelos gregos. Identifica que na translação das palavras do grego para o latim, perdeu-se a noção da forma de experienciar o mundo, mostrando que a relação atualmente existente entre saúde e educação passa ao largo de suas proposições originárias. Discute a atual constelação entre saúde e educação, através de uma reflexão das condições para que uma ética se torne exequível e articula algumas possibilidades de compreensão entre ambas através da Gestaltpedagogia, Teoria Organísmica de Kurt Goldstein, dos existenciais da Fenomenologia Existencial na leitura de Eugène Gendlin, e das concepções de “Espelho Mágico”, Supervisão de Apoio Psicológico, oficinas de recursos expressivos e aprendizagem significativa. Propondo oficinas de criatividade, mostra como este recurso pode possibilitar a busca de um outro sentido, através de oficinas realizadas com um grupo de educadores de uma instituição que abriga menores infratores. Finalmente, apresenta reflexões para uma articulação possível entre saúde e educação para a prática psicológica em instituições. Palavras-chave: Saúde; educação; prática psicológica; instituições; etimologia; ética e política

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ABSTRACT

LILIENTHAL, Luiz Alfredo. Sane education: a possibility of attention in action. São Paulo, 2004. 217 p. Thesis (Doctorate). Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Having as its starting point the suffering or loss of meaning in the so-called post-modernity, this paper trails, through etymology, the meaning of the notions of health and education, since their creation by the Greek. It identifies that in the conversion of the words from Greek to Latin, the notion of the manner of experiencing the world was lost, showing that the present relation which exists between health and education is far from its originary propositions. It discusses the present constellation between health and education, through a reflection of the conditions for an ethic to become feasible and articulates some possibilities of understanding between both through Gestaltpedagogy, the Organismic Theory of Kurt Goldstein, the existentials of the Existential Phenomenology in the reading of Eugène Gendlin, and the conceptions of the “Magic Mirror”, Supervision of Psychological Support, workshops of expressive resources and significant learning. Proposing creativity workshops, it shows how this resource can allow the search for another meaning, through workshops held with a group of educators of an institution which shelters transgressors under legal age. Finally, it presents reflections for a possible articulation between health and education for psychological practice in institutions. Key words: Health; education; psychological practice; institutions; etymology; ethics and politics.

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ZUSAMMENFASSUNG LILIENTHAL, Luiz Alfredo. Gesunde Erziehung: eine Zuwendungsmoeglichkeit in Aktion. São Paulo, 2004. 217 S. These (Doktorarbeit). Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Ausgehend von dem Leiden oder dem Sinnverlust in dem sogennanten Post-Modernismus, sucht diese Arbeit, durch die Ethymologie, den Sinn der Begriffe Gesundheit und Erziehung zu verfolgen, seit ihrer Erschaffung durch die Griechen. Sie erkennt, dass in der Umwandlung der Worte von griechisch nach lateinisch das Konzept von dem Ereignis des erlebens der Welt verloren ging, und zeigt, dass das heutige Verhaeltnis zwischen Gesundheit und Erziehung weit von ihren urspruenglichen Vorschlaegen entfernt ist. Die Arbeit diskutiert die heutige Konstellation zwischen Gesundheit und Erziehung, mittels einer Ueberlegung der Bedingungen, so dass eine Ethik ausfuehrbar werde und artikuliert einige Verstaendigungsmoeglichkeiten zwischen beiden, durch die Gestaltpaedagogik, die Organismische Theorie von Kurt Goldstein, die Existenziale der Existenziellen Phaenomenologie durch die Optik von Eugène Gendlin, und die Begriffe des “Zauberspiegels”, Psychologische Unterstuetzungsupervision, Workshops ueber expressive Mittel und bedeutsamer Lehre. Indem Kreativitaetsworkshops vorgeschlagen werden, wird gezeigt wie dieses Hilfsmittel die Suche nach einem anderen Sinn moeglich macht, durch Workshops die mit einer Gruppe Erzieher einer Institution, die minderjaehrige Delinquenten beherbergt, abgehalten werden. Schliesslich werden Ueberlegungen ueber eine moegliche Artikulation zwischen Gesundheit und Erziehung vorgestellt, fuer psychologische Praxis in Institutionen. Schluesselworte: Gesundheit; Erziehung; psychologische Praxis; Institution; Etymologie; Ethik und Politik

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SUMÁRIO 1. APRESENTAÇÃO 1 2. COMPREENDENDO SAÚDE E EDUCAÇÃO 10

2.1 A Pós-Modernidade: sofrimento pós-moderno ou perda de sentido 11 2.2 Léxicos 21 2.3 Saúde e Educação 39

2.3.1 Saúde 39 2.3.2 Educação 45 2.3.3 Saúde e Educação 50

2.4 Gestaltpedagogia 62 3. ARTICULANDO ALGUMAS POSSIBILIDADES ENTRE COMPREENSÃO E AÇÃO 73 3.1 A Teria Organísmica de Kurt GOLDSTEIN 74

3.2 Befindlichkeit, compreensão e fala em Eugene GENDLIN 82 3.3 Interregno 94 3.4 Espelho Mágico 96 3.5 Supervisão de Apoio Psicológico 103 3.6 Oficinas de recursos expressivos – oxigenação 113 3.7 Aprendizagem Significativa 121

4. EXPERIÊNCIA EM AÇÃO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS 127

4.1 Apontando um caminho 127 4.2 Para que? 133 4.3 Com quem? 134 4.4 Como? 134 4.5 Os roteiros que viraram mapas 135

5. COMPREENDENDO A AÇÃO 140

5.1 Descrevendo a Oxigenação, em 22.07.03 140 5.2 Descrevendo a Oxigenação, em 01.08.03 157 5.3 Re-leitura Cromática da Oxigenação, em 22.07.03 172 5.4 Re-leitura Cromática da Oxigenação, em 01.08.03 175 5.5 Compreendendo a Oxigenação 183

6. EDUCA-SÃO COMO PRO-JETO A CONSIDERAR 191 7. ANEXOS 195 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 208

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EDUCA-SÃO: UMA POSSIBILIDADE DE

ATENÇÃO EM AÇÃO

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1. APRESENTAÇÃO

ENTRE UM JOGO DE TÊNIS E UM DE FRESCOBOL: APRESENTANDO UMA QUESTÃO

Aprender a ser saudável... e... ser saudável para aprender... Eis minha

questão! O “casamento” entre saúde e educação, aqui apresentado, primeiramente, sob forma de uma crônica, numa primeira tentativa de articulação, via uma metáfora...

Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.

Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: "Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: `Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?' Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar."

Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O Império dos Sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: "Eu te amo, eu te amo..." Barthes advertia: "Passada a primeira confissão, `eu te amo' não quer dizer mais nada." É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: "Erótica é a alma"

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada - palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro.

O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra - pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir... E o que errou pede desculpas; e o que

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provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos...

A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá... Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Camus anotava no seu diário pequenos fragmentos para os livros que pretendia escrever. Um deles, que se encontra nos primeiros cadernos, é sobre este jogo de tênis:

"Cena: o marido, a mulher, a galeria. O primeiro tem valor e gosta de brilhar. A segunda guarda silêncio, mas, com pequenas frases secas, destrói todos os propósitos do caro esposo. Desta forma marca constantemente a sua superioridade. O outro domina-se, mas sofre uma humilhação e é assim que nasce o ódio. Exemplo: com um sorriso: 'Não se faça mais estúpido do que é, meu amigo'. A galeria torce e sorri pouco à vontade. Ele cora, aproxima-se dela, beija-lhe a mão suspirando: 'Tens razão, minha querida'. A situação está salva e o ódio vai aumentando."

Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão... O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.

Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem - cresce o amor... Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim... (“Tênis X Frescobol”. Rubem ALVES, 2003, p. 25-26)

As origens deste trabalho localizam-se há muitos anos; considero-o uma

metáfora da minha própria trajetória profissional, que se iniciou pelo meu contato

absolutamente casual com a Gestaltpedagogia, que por sua vez descortinou à

minha frente um universo no qual havia uma relação entre educação e saúde, idéia

que tem me movido desde então. Surgiu a proposta de um estudo que se

encaminhava para uma possível articulação entre educação e saúde, e cujo sentido

permitiria compreendê-las não mais como um contínuo, nem mesmo considerando

educação de um lado e saúde de outro; ou seja, buscava discuti-las sem partir da

premissa do ovo ou da galinha. É pois na perspectiva dessa historicidade que se

desenrola esta apresentação.

Trabalhei por quatro anos com Educadores de Rua, a quem me refiro até hoje

por e com maiúsculas! Posso dizer que foi tal trabalho que me ensinou muito a

respeito tanto deles próprios assim como a respeito das Crianças de Rua, isso sem

referir-me ao que me ensinaram sobre mim mesmo e meu próprio fazer profissional.

Compreendia esse trabalho como uma proposta difusa, no sentido de que parecia

que eles e eu fazíamos algo da ordem do não estipulado. Quer dizer, não podia ser

definido pelos parâmetros usualmente reconhecidos como psicologia clinica na

prática psicológica, nem tampouco dentro dos paradigmas da pedagogia moderna.

O único reconhecimento possível tanto na atuação desses Educadores quanto na

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minha apresentava-se pela mesma espinha dorsal: estabelecimento e a defesa da

cidadania das Crianças de Rua. Nessa perspectiva, fazia-se de tudo um pouco para

que tal resgate se tornasse possível, o que implicava desde simplesmente levar a

Criança à Casa Aberta até conseguir-lhe um emprego, passando pela necessidade

de para isso cuidar de sua saúde e educação, como levá-la para atendimento

médico-odontológico e procurar matriculá-la em uma escola ou curso.

Rememorando essa experiência no momento presente, volto-me ao sentido

do trabalho desses Educadores junto às Crianças, através da Supervisão de Apoio

Psicológico que realizei com os Educadores. Aos poucos, foi se revelando a

possibilidade de uma relação bastante intrincada entre saúde e educação pois, na

medida em que seu trabalho se desenvolvia, tornava-se evidente uma mudança nas

Crianças no que se referia ao modo de convivência consigo mesmas e com os

demais. Mas como isso dizia respeito à articulação entre saúde e educação

continuava me intrigando, apesar de intuitivamente acreditar.

Ao reler os dois últimos parágrafos, acentua-se a sensação de que, se por um

lado descrevi sucintamente o trabalho desenvolvido, por outro uma grande parte do

que de fato ocorria não foi contemplada e que, quando falo em saúde e educação,

não é a isto que gostaria de me referir. O sentido que busco parece nelas não se

esgotar.

Retomo o trabalho realizado. Havia três instâncias: as Crianças de Rua, os

Educadores de Rua e o Supervisor de Apoio Psicológico. Entre cada duas se

interpunha uma terceira. Eu entrava em contato com as Crianças apenas através

dos olhos dos Educadores. Aquilo que ocorria com as Crianças e/ou com os

Educadores, chegava até a mim, supervisor, da mesma forma que aquilo que ocorria

comigo, minha visão, durante os trabalhos chegava até as Crianças também via os

Educadores. Portanto, meu trabalho implicava numa dimensão multiplicadora.

Espelho Mágico (MORATO, H.T.P.; BACCHI, C.; PIRES, L.; LILIENTHAL, L.A.;

ROCHA, M.C.; FRISCHER, R.; IACONELLI, V.; in MORATO, 1999)

Se minha direção contemplava possibilitar o resgate da cidadania das

Crianças, em primeiro lugar era necessário trabalhar atitudes e questões relativas à

cidadania dos próprios Educadores, tanto quanto às minhas próprias, para que elas

pudessem se dirigir, posteriormente, às Crianças via Educadores. Mas esta

descrição/explicação ainda não satisfaz. O trabalho dos Educadores se

caracterizava por um cuidar das Crianças. Meu trabalho era caracterizado pelo

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cuidado dispensado aos Educadores, a fim de que, cuidados, eles pudessem estar

em condições de cuidar das Crianças. Nesse sentido, era um modo de

instrumentalizar seu trabalho. Assim compreendido, posso dizer que meu trabalho

chegava até as Crianças. Por outro lado, preciso ainda reconhecer que, para realizar

essa supervisão, eu mesmo necessitava ser cuidado pela supervisão de minha

própria atuação: espelho mágico como fenômeno para encaminhamento e

transformação.

Findo o trabalho com os Educadores de Rua, fui, por mais quatro anos, atuar

junto aos técnicos do Projeto Esporte-Talento (PET), também com Supervisão de

Apoio Psicológico. Aqui a proposta era mais focada, pois o PET objetiva veicular

educação através de práticas esportivas. Portanto, os técnicos tinham nominalmente

uma tarefa bastante clara -- a atividade esportiva – e, embutida nela, procuravam

desenvolver com as crianças uma proposta de educação pelo esporte. Nesse

sentido, eram também educadores, pessoas preocupadas com aprendizagem das

crianças, mas atentos, também, à sua saúde. Ou seja, implicitamente havia a

proposta de resgate e defesa da cidadania, como possibilidade de encaminhamento

e transformação, pela atenção e cuidado à corporeidade do sujeito.

Cotejando ambas as atuações, percebo que o trabalho com os Educadores

de Rua parecia mais “bruto” do que aquele realizado pelos técnicos do PET, pois,

aparentemente, se baseava em proposta mais difusa, mais ingênua, sem uma

direção de propósitos esclarecida. No tocante aos Educadores de Rua, reconheço

que sua atuação dependia muito do próprio grupo de Educadores. Tal constatação

pode ser possível pela experiência com dois grupos distintos desses profissionais:

servidores públicos de uma Secretaria de Estado e funcionários e voluntários de

uma ação comunitária da Igreja Católica. Para relatar isso, recorro a FRISCHER

(1999, p. 413), ao discutir como, a partir de um dispositivo legal, o Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA), profissionais de instituições diversas desenvolvem

suas ações compreendendo-as pelos princípios de sua instituição de origem.

Os educadores falam de trabalhos diferentes. As propostas contemplam o mesmo objetivo básico, ou seja, propiciar a esses meninos e meninas novos espaços de convívio social, resgate da cidadania, descoberta de suas capacidades. No entanto, diferem quanto a diretriz. Um busca na religião o espaço para que esses meninos sejam aceitos. O outro é um trabalho de responsabilidade pública, que tem uma visão laica e fala mais em cidadania e menos em religiosidade. Em comum existe esse espaço institucional que os trata da mesma forma.(...) É somente dentro dessa perspectiva que podemos entender pessoas/instituições com discursos tão parecidos, com objetivos comuns e com práticas tão diferentes. Não podemos esquecer uma diferença básica existente na concepção dessas instituições, que se refere muito mais ao próprio

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modo de entender o que acontece com essas crianças. A religião tem um modo particular de lidar com isso, que acredita que encontrando Deus essas crianças se beneficiarão de uma compreensão maior sobre a vida e sobre a existência, compartilhando com Ele a responsabilidade por sua existência. Enquanto isso, a concepção de um Estado laico devolve ao homem a responsabilidade por sua existência. Têm, portanto, a função de mostrar as possibilidades existentes nessa sociedade, possibilidades estas que muitas vezes essas crianças não tiveram oportunidade de conhecer.

Além disso, havia diferença entre ambas quanto à formação de seus

profissionais. Numa Casa Aberta estatal, os profissionais precisavam ter formação

em curso superior, ao passo que na Pastoral do Menor havia uma variedade e

discrepância muito grande em termos do nível e da forma de capacitação

profissional dos Educadores. Penso que tais diferenças contribuíam para a direção

dos questionamentos que ocorriam durante as supervisões de apoio. Com os

primeiros era muito recorrente a questão de sua articulação política frente à

Secretaria de Estado à qual estavam vinculados. Já no segundo grupo, a ênfase era

na mobilização de recursos pessoais para dar conta das questões, problemas e

situações que as Crianças de Rua suscitavam.

É nesse sentido que reconheço uma semelhança entre o grupo de

educadores ligado ao Governo Estadual e os técnicos do PET, já que os dois grupos

eram formados por profissionais com o terceiro grau completo ou em andamento,

além de compartilharem o exercício profissional em instituição publica. Nessa

medida, posso pensar que a semelhança de questionamentos desses dois grupos,

no tocante a posicionamentos e articulação política, poderia relacionar-se ao fato de

ambos pertencerem a instituições estatais.

Passado um tempo desde o trabalho com estes três grupos de profissionais, a

despeito das diferenças já citadas, percebo, agora, que os três desenvolvem o

mesmo tipo de trabalho, tarefa, o que me leva e pensar que, imerso que estava nos

diversos universos, não tinha eu ainda maturado uma idéia, concepção, que

pudesse dar conta de poder articular uma aproximação entre esses diferentes

trabalhos. Desse modo, é que se evidenciou uma interrogação, tema deste presente

exercício reflexivo. Seria possível compreender, nessas e em outras atividades de educadores, ações contemplando tanto o âmbito da saúde quanto o da educação dos sujeitos beneficiários? Essa inquietação suscitou a criação do termo “educa-são”. Diz respeito a uma

ação de cuidado que envolve, de um ponto de vista formal, concomitantemente,

aspectos de saúde e educação, visando promover ao sujeito apropriar-se de sua

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história de vida, de seus recursos pessoais, resgatando sua morada, seu lugar de

ser si mesmo. Nessa perspectiva, poderia uma ação de supervisão de apoio psicológico promover ao educador uma capacita-são – ser capaz de cuidar de si próprio para se manter saudável e educar cuidando do outro? Assim, neste momento, e depois de tantos anos trabalhando com o que

denomino “educa-são”, por percebê-la como um elemento constituinte em quase em

todas as facetas de meu trabalho, é que compreender a possível articulação entre

saúde e educação surge como questão crucial e crítica. Afinal, sua presença é

recorrentemente uma atualidade no meu percurso profissional, seja como Supervisor

de Projeto na FEBEM, como docente universitário, como psicoterapeuta. Suas

implicações mútuas revelam-se, por outro lado, como também se entrelaçando com

outro fenômeno insistente e im-pertinente: constituição do sujeito, aprendizado de si

mesmo e de seu conviver cidadão. Diz de uma aprendizagem e reconhecimento da

condição humana. Desse modo, refletir acerca da educa-são implicaria em

compreendê-la como situações para a educação profissional, para a vida do ser

humano, simplesmente? Será educa-são uma faceta do cuidar de ser?

Defrontar-me com estas questões não é fácil nem confortável, pois nunca há

uma resposta imediata possível, nem tampouco uma única, para interrogações que

se apresentam quando dizem respeito à condição do homem e da humanidade do

homem. Desafiar-se a compreendê-las demanda do sujeito (criança, profissional,

aluno) atravessar uma experiência que lhe permita dar significado sentido àquilo que

a aflige, ou seja, fazer uma “articulação” entre seu sentir, pensar e agir, como uma

espécie de “fenômeno mágico”, da ordem do ainda não compreendido, pois diz mais

de uma dimensão sentida e com sentido, antes mesmo de se fazer foco para

reflexão. Talvez diga respeito à dimensão do apropriar-se de si, do mundo e dos

outros, permitindo ao sujeito modificar-se, ser diferente ou outro mesmo de si, já

assim se percebendo num nível sensório-afetivo concomitante ao cognitivo

reconhecido.

Para terminar a apresentação de minha questão, volto ao início... O texto de

Rubem ALVES fala magistralmente dos relacionamentos afetivos. Quero ressaltar

que “afetivamente” implica-se em qualquer situação em que haja algum tipo de

relacionamento. Como, por exemplo, no trabalho, no qual o envolvimento do sujeito

é de uma ordem que excede apenas à sobrevivência, para que possa constituir-se

como uma ação correspondente à dignidade do homem.

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Nesse sentido, a citação de NIETZSCHE por ALVES é pertinente para pensar

as relações com o trabalho. Talvez não seja possível garantir que, no futuro, na

velhice, ainda se esteja “conversando” com o mesmo trabalho, ou até com a mesma

profissão. Mas, no momento atual, é necessário que se tenha clareza dessa

possibilidade de conversa, caso contrário, a perspectiva de ocorrência de mudança

na proposta de atividade pode ficar obscurecida. Recorrendo às minhas

experiências, esta foi uma questão fundamental, arduamente discutida com os

Educadores de Rua, com os técnicos do PET e com os participantes dos grupos que

serão discutidos neste trabalho.

Já quando ALVES cita BARTHES, parece implicar-se o sentido da fala

autêntica, como proposto por AMATUZZI (1989), não com sentido dialógico de um

“eu” e um “tu”, mas diacrítico1: aquele que aproxima distinguindo. Fala autêntica é a

fala primeira. No trabalho de esclarecimento da demanda de um homem por sua

apropriação por si mesmo é sempre preciso descobrir e traduzir as falas primeiras.

Caso contrário, as falas se perderão...

É bom lembrar que o esforço para colocar “a bola fora do alcance do outro”

diz respeito a colocá-la ao seu alcance. Nos tempos atuais, é exigido do homem que

ele faça jogadas de tênis; se jogar frescobol será considerado não competitivo. Por

outro lado, simplesmente manter a tensão da ambigüidade, da diacriticidade e da

diferença não é considerado eficiente, tampouco eficaz, por parte de quem é adepto

da forma produtiva de considerar tanto o homem quanto as coisas do mundo. A

aparente objetividade obscurece uma outra forma de perceber a situação do

trabalho feito por homens.

Assim, mesmo no contexto deste trabalho, é difícil referir-me a ele de uma

forma que seja mais “para frescobol que para tênis”... O modelo científico demanda

posicionamentos com exatidão, posturas definidas, “know-how” bem descrito. Difícil

falar dos afetos que me regeram durante todos estes anos sem pasteurizá-los. Difícil

falar de um procedimento a partir do qual eu não possa me apresentar como um

“vencedor”, aquele que conseguiu, aquele que sobrepujou. Difícil me apresentar

como um profissional que joga “a bolinha ao alcance do outro” e ainda diz que é isto

o que há para ser feito, por mais mirabolante que possa ter sido a jogada. Da

1 Diacrítico: gr.

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mesma forma que foi difícil mostrar a todos os educadores, com os quais estive

envolvido, que a questão é “jogar a bolinha ao alcance do outro”, e não promover

uma espetacular jogada “winner”. Falo de uma ética. Ética com o sentido adotado

por Figueiredo (FIGUEIREDO,1995, apud ANDRADE e MORATO, 2004, p. 12), que

se refere ... a conjunto de valores, posturas e hábitos considerados como uma moradia, parte do mundo na qual podemos nos sentir relativamente abrigados, levando-se em conta que o significado etimológico de ethos, palavra da qual se origina ética, refere-se tanto aos costumes quanto à morada.

Contudo, no encontro com o outro, no cotidiano da prática, não parece haver

um lugar seguro nem respostas verdadeiras e precisas. Não há procedimento que

garanta uma certeza frente a inospitalidade angustiante do inesperado que a

alteridade apresenta. Desse modo, nega-se a alteridade reduzindo o outro a interseções bem delimitadas no tempo e no espaço ou, o que é mais raro, acolhe-se a alteridade como irredutível, como fundamento do encontro. No primeiro caso, temos o homem teórico, portador de um saber racional que explica as irracionalidades (os desvios) e acredita deter os meios de controlá-las ou ajustá-las à norma. No segundo, temos o homem ético, que se deixa afetar pelo estranho, por aquilo que não é da ordem do representacional ou de seus códigos familiares, e ao acolher a alteridade e a produção de diferença emergente, vive um processo transformador e instituinte de novos modos de estar no mundo. Transmuta-se do lugar da ‘explicação sobre’ para o lugar do ‘aprender com’ ou ‘aprender entre’. (ANDRADE e MORATO, 2004, p. 7-8)

Acredito que seja a essa questão de uma atitude ética na prática psicológica a

que me refiro. Afinal, com o passar dos anos, aprendi a necessidade de “jogar a

bolinha na mão ou ao fácil alcance do outro”, seja este outro uma pessoa ou uma

situação. Assim, quando falava da dificuldade de trabalhar com os Educadores de

Rua, creio que o que lhes propunha ainda era um jogo de tênis. Porém, junto aos

educadores do PET, comecei a perceber que tal jogo não me satisfazia, e comecei a

propor mudanças para, finalmente, “reinventar” o frescobol. Do trabalho com os

Educadores de Rua ao trabalho com os educadores do PET, é para mim perceptível

um gradiente do tênis ao frescobol, ou de um “você ou eu”, passando para um “você

e eu”, chegando a um “nós” ou talvez um você-eu (diacrítico).

Mas, e quanto ao meu sonho? “E o que é próprio do ser do homem? Para

apontar essa peculiaridade, vou dizer que o homem é um sonhador. Num certo

sentido, o que chamo de existência é a condição de sonhador do homem”

(POMPÉIA & SAPIENZA, 2004, p.18) É, talvez por essa condição de sonhar e que

me leva a recorrer a uma imagem de minha fantasia, que penso que educação e

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saúde “vivem” uma intensa relação afetiva: a educa-são. “Ninguém ganha, para que

os dois ganhem”. Trata-se de cuidar de ser.

Eis apresentada a região de minhas preocupações no contexto deste

trabalho. Explorar essas articulações possíveis será o caminho a ser percorrido

adiante.

2. COMPREENDENDO SAÚDE E EDUCAÇÃO

Era o que ele estudava. “A estrutura, quer dizer, a estrutura”, ele repetia e abria a mão branquíssima ao esboçar o gesto redondo. Eu ficava olhando seu gesto impreciso porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida, nem

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líquida, nem realidade nem sonho. Película e oco. “A estrutura da bolha de sabão, compreende?” Não compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal da minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais tenros, que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor calculado, porque na afobação o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham rebentar na minha boca, a espuma descendo pelo queixo... (Lygia Fagundes TELLES, 1991, p. 197)

Novamente, recorro à literatura como possibilidade de tradução de minha fala

primeira. Como compreender uma articulação entre dois termos que, primeiramente,

parecem contemplar significados tão precisos e aplicáveis no cotidiano da vida?

Nesse sentido, pareceria “non sense” dedicar todo um trabalho para encontrar uma

outra possibilidade de compreensão, uma vez que já estão definidos e assim

plenamente reconhecidos.

Contudo, e como tudo na prática psicológica, descortinam-se algumas

situações em que a verdade de coisas e seus significados apresentam-se como

simples aparência, pois há muito mais desencontros entre o que se apresenta e a

representação que disso se tem, como conhecimento. Entre o saber de algo e sua

compreensão ao se mostrar é sempre uma queda em vôo livre. O cotidiano

demanda, recorrentemente, reinvenção de saberes e práticas.

Considerando que a prática psicológica percorre tanto o âmbito da saúde

quanto o da educação, aventuro-me a percorrer outra compreensão que não apenas

a dos saberes instituídos. Nesse sentido, faz-se necessário empreender um caminho

de contextualização para a questão, buscando, por um lado, compreender o mundo

contemporâneo do humano, e, por outro, uma volta ao contexto originário em que

tais termos surgiram como linguagem, expressando o sentido de sua propriedade.

2.1. A Pós-Modernidade: sofrimento pós-moderno ou perda de sentido

As últimas duas décadas de nosso século vêm registrando um estado de profunda crise mundial. É uma crise complexa, multidimensional, cujas facetas afetam todos os aspectos de nossa vida – a saúde e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente, e das relações sociais, da economia, tecnologia e política. É uma crise de dimensões intelectuais, morais e espirituais; uma crise de escala e premência sem precedentes em toda a história da humanidade. (CAPRA, 1982, p. 13)

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Para compreender saúde e educação em nossos dias é preciso partir de um

sentido possível pelo qual se denomina pós-modernidade: intensa invasão da

tecnologia em todos os âmbitos da atividade humana, notadamente na comunicação

e na informática, promovendo, por isso, uma “redução” das dimensões globais pela

aproximação virtual de distâncias e estilos de vida, dada a saturação de

informações, diversões e serviços. Do ponto de vista sócio-econômico, tende a

reduzir o sujeito a mero consumidor, dada a relevância à valorização da ação de

consumo de sua própria produção tecnológica como sentido de vida, impondo-lhe,

assim, um papel de mero indivíduo numa sociedade massificada

(FIGUEIREDO,1992).

Vivendo num mundo de símbolos, o homem, hoje, prefere a imagem ao

objeto, o simulacro ao real, o hiper-realismo à realidade como possibilidade,

propiciando a perplexidade contemporânea da sociedade do espetáculo. Permeando

a mentira da verdade, o hiper-realismo, por um lado, gera uma sensação de vivência

intensa do cotidiano, enquanto, por outro, impõe um sentimento habitual de

incompletude, inversamente proporcional à possibilidade de crítica que o sujeito se

permita. De fato, não se pode negar que existe um imenso leque de opções, desde

que a escolha indique sempre, de algum modo, o consumir. Referenciando-se por tal

sociedade, ao indivíduo “consumido” resta compreender o não consumo como

sinônimo de “estar à deriva”. Nesta perspectiva, o mundo do homem pós-moderno é

pautado pela indiferença aparente, a qual subjaz no estereótipo do viver plenamente

o presente, tal qual um adolescente deslumbrado, mantendo, a todo custo, um

pseudodesconhecimento do desamparo como sua marca registrada.

A intensa busca por “receitas mágicas” que, de alguma forma, possam

implicar em solução para males diversos que afligem as pessoas no seu cotidiano

de vivências espetaculares, implicou no florescimento de práticas variadas, e mal

compreendidas como sendo esse o sentido de bem estar de vida para os orientais,

para promoção da “auto-realização pessoal” (LASCH, 1977). Observa-se, assim, ao

mesmo tempo em que uma negação do pensamento ocidental, um niilismo pelo

coletivo, gerando um indivíduo apático socialmente e desistente de sonhos

possíveis. Valoriza-se, apenas, tudo o que se refere a sensações voltadas a algum

tipo de sentido além da realidade, sem se dar conta destas como real escapismo.

Se, por um lado, me percebo um tanto radical tendo apresentado uma tal

descrição do humano pós-moderno, por outro, encontro-a constantemente presente

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e atuante nos mais variados contextos entre sujeitos, com os quais me relaciono em

meu trabalho como psicólogo e educador. Niilismo, o nada, o vazio, a ausência de

valores e de sentido para a vida são as recorrentes marcas registradas do sujeito

destes tempos. O lucro capitalista é, fundamentalmente, produção de poder subjetivo. Isso não implica uma visão idealista da realidade social: a subjetividade não se situa no campo individual, seu campo é o de todos os processos de produção social e material. O que se poderia dizer, usando a linguagem da informática, é que, evidentemente, um indivíduo sempre existe, mas apenas enquanto terminal; esse terminal individual se encontra na posição de consumidor de subjetividade. Ele consome sistemas de representação, de sensibilidade, etc. – sistemas que não têm nada a ver com categorias naturais universais. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 32, apud TÁVORA, 1994, p. 28)

Reconhecendo esse contexto opressor, ocorre-me uma metáfora a partir,

novamente, da literatura. Difícil deixar de lembrar de “1984” de George Orwell, se a

linguagem humana, na atualidade, está permeada pela tecnologia. Afinal, terminal

de um “supercomputador” tem sua ação limitada ao escopo de campo que este lhe

impõe. Assim, dentro desta visão, um cliente adequado passa a ser aquele que

“compra” bem o seu terapeuta, ou seja, aquele que faz o que se espera dele, assim

como o bom aluno é aquele que segue rigorosamente aquilo que a escola solicita

dele, enquanto o bom interno ou presidiário é aquele que segue cegamente as

regras da casa e o bom cidadão aquele que segue as prescrições legais, ao passo

que o bom educador ou saneador é aquele que executa os princípios da

organização na qual trabalha. Tomando-se a normatividade como padrão, não se

procura entender um comportamento “desviante” a não ser como aquilo que está

fora dos padrões. Não ocorre a possibilidade de sua compreensão como sinalização

de mal estar, demandando assim, ser cuidado como um comportamento possível

que, eventualmente, possa estar fazendo sentido para o indivíduo, mas que, na

ausência de leitura contextualizada da situação do sujeito, não é possível

compreender-se seu sentido como apropriado.

É esse homem/cliente que chega ao consultório, chorando suas ilusões, vislumbrando novas possibilidades de existência das quais não consegue, ainda, apropriar-se. Esse homem sofre, sente-se em pânico, pois o script conhecido não mais responde às situações contingenciais com as quais se depara. E eu, homem/psicólogo, também desalojada e chorando a perda das certezas de velhos sistemas teóricos acolho esse homem. Ambos nos abrimos para uma viagem/aventura conjunta, num mar “revolto”, procurando encontrar, nas nossas velhas crenças, a direção a ser seguida. Triste engano, pois na maioria das vezes, os mapas antigos apresentam um contorno dos continentes, mas não indicam possíveis rochedos, novas rotas marítimas, possível presença de icebergs que podem fazer naufragar nossas embarcações. Precisamos apropriar-nos das novas indicações, assumindo voluntariamente o desligamento da ilusão da permanência

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e da estabilidade das rotas conhecidas, para que possamos construir novas possibilidades de viver e de criar. (BARRETO, 2001, p.35)

No âmbito da saúde, isto se revela numa prática da medicina que utiliza toda

sorte de exames para determinar se o paciente está ou não saudável, às vezes até

mesmo determinando se ele é ou não saudável. A figura do médico, que chamando

para si a responsabilidade de apreciar a condição de saúde de seu paciente apenas

através de exame clínico, praticamente desapareceu, deslegitimado que foi pela

tecnologia consumidora. Como diz BALINT (1984), há pouca presença da

“substância médico” e grande profusão de substâncias químicas. Pouco se dá

atenção ao discurso do paciente sobre como se encontra ou sobre como está se

sentindo. Se a bateria de exames não acusar nada e ele continuar com queixas,

será tratado com alguma droga psicotrópica e/ou indicado para um profissional

psicoterapeuta, por causas ditas psicossomáticas. E nem é preciso dizer como tanto

as baterias de exames quanto os medicamentos oneram muito o orçamento da

maioria dos cidadãos/mero indivíduo consumidor.

Assim pensando, pode-se dizer que, nas camadas sociais de poder aquisitivo

mais baixo, apela-se para medicamentos caseiros, curandeiros, crendices familiares

e toda sorte de tratamentos alternativos para fugir dos altos custos de uma visita ao

médico. Contudo, vê-se, também, não ser esta uma prática determinada apenas

pela condição econômica, uma vez que muitos sujeitos privilegiados a elas também

recorrem como expressão do sentido “verdadeiramente sentido como vida/saúde na

visão de mundo oriental”, um modo de ser do espetáculo e da aparência encobridora

do sofrimento e desamparo do homem pós-moderno.

Se, por um lado, há toda uma centralização tecnicista na figura do médico,

pois afinal é ele que tem o poder de fazer as prescrições e suas soluções, por outro,

houve uma grande “popularização” da medicina, através, principalmente, da mídia

como agente patrocinador de políticas públicas a título de campanhas informativas.

Sem dúvida, contribui-se para que “todo mundo eduque-se um pouco” no tocante à

saúde cidadã; mas não se pode deixar de ainda considerar que, muitas vezes, com

propagandas que são ambíguas quanto ao fim a que se destinam, ao cidadão

saudável ou eleitor, acabam sendo banalizadas questões da saúde ela mesma,

visto não serem levadas a sério ou devido a muitos autodiagnósticos imprecisos.

No âmbito da saúde mental, essa situação é ainda mais crítica. Tais

argumentos derivam de minha prática profissional enquanto psicoterapeuta e

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supervisor de estágios em cursos de psicologia. Por um lado, a freqüência de

pessoas, que procuram clínicas psicológicas, após terem passado alguns poucos

dias com tristeza e, assim, queixando-se de depressão, é muito alta. Por outro lado,

depressão, psicose e histeria são tão comuns nos dias de hoje que até caíram no

anedotário popular. Como compreender essa aparente ambivalência?

A prática psicoterápica é vista por grande parte da população como algo

inalcançável devido aos altos preços praticados pelos profissionais. Novamente,

aqui, pode-se encontrar o mero indivíduo consumidor na perspectiva daqueles que

justificam seus honorários pelo custo de sua formação. Entretanto, chama a atenção

que somente uma minoria dos convênios de saúde cobre tal despesa. Seria por que,

afinal, o único material de consumo dos psicoterapeutas é o lenço de papel?! Ou por

que a saúde mental não pode ser considerada como um bem estar humano que

mereça atenção e cuidado? Estaria isso implicando que o mero indivíduo

consumidor é também apenas um corpo que precisa estar saudável para

movimentar-se, para consumir e produzir o que ele mesmo consome? Uma máquina

social ou um sujeito/cidadão? Não havendo atenção ao desamparo, como se

“consumir” o cuidado com o sofrimento?

Contemplando-se, agora, o âmbito da educação, encontra-se a mesma

ambigüidade. Nos dias atuais, educação de qualidade também é sinônimo de altos

custos. Isto porque educar, dada a falência do ensino público, passou a ser produto

para ser consumido como investimento para garantir trabalho e ser consumidor. É

por essa ótica que as instituições de ensino têm se preocupado muito mais com

quantidade que com qualidade, tanto em termos de número de alunos quanto em

termos do montante do que é ensinado: tempos de “escolas-empresa”, garantia de

lucro e de consumo.

Na educação pública o quadro não é muito diverso. Inatingível para grande

parte da população, mesmo que não implique em gastos, a necessidade de ter que

trabalhar para o sustento básico impõe-se como prioridade ao educar-se. Acima da

lei da obrigatoriedade de educação até 14 anos, ou seja, o investimento para ser

mero indivíduo consumidor, a sobrevivência própria e/ou a da família é condição do

verdadeiro sujeito. Nesse contexto, questões como baixa qualidade de ensino e falta

de capacitação de professores da rede pública de ensino nem precisam ser

discutidas em relação à evasão escolar.

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Em termos de educação não formal, aquela passada pela família e pela

comunidade, o quadro é ainda mais desanimador. Os pais ficam fora de casa grande

parte do dia provendo a subsistência. E boa parte deles, quando estão com os filhos,

ou só conseguem passar adiante aquilo que aprenderam, por também serem eles

mesmos fruto destes mecanismos, ou atuam como meros indivíduos consumidores

do que lhes é possível: televisão, futebol ou roda de amigos num bar, em nome de

laser e descanso. Não se dão conta, despessoalizados que são, de que têm algo a

passar para os filhos: certos valores da sua experiência como sentido de vida.

Não é de admirar que os meios de comunicação ocupem um lugar

educacional informal decisivo: não como uma grande “concorrência” para os pais,

mas ocupando o espaço do aprender para filhos, que ficam muito mais tempo

“expostos” à mídia do que na convivência com os familiares. Através dela, tomam

contato com um sentido de pertencimento a uma comunidade de outros meros

indivíduos, na qual a regra de convivência é o poder e o “levar vantagem” como

valores do conviver humano.

Por uma tal cartografia, nem se apresenta a questão da pessoa/singularidade

do aluno. Via de regra, essa “pessoalidade” é vista em sala de aula como

problemática. Afinal, na “fabricação” do mero indivíduo aluno, espera-se dele, a título

de “educação”, que cumpra razoavelmente as tarefas determinadas, consumindo um

rendimento escolar razoável, para não receber o rótulo de mera pessoa com

problemas de aprendizagem e incapaz do aprender para ser consumidor como

sentido de vida. Parece-me pertinente a colocação de TÁVORA a respeito da

inextricabilidade entre “indivíduo” e sua historicidade. Apesar de restringir sua fala à

clínica psicológica, penso ser ela perfeitamente aplicável à aprendizagem. Cumpre, então, estabelecer a relação entre a discussão sobre as relações entre os campos individual e social da experiência humana e o que agora se coloca. Qualificar a psicoterapia como uma práxis implica, mais especificamente, portanto, em reconhecer seu potencial de ação e transformação sobre um real concebido em termos desta separação. Implica, ainda mais diretamente, em tomar este potencial como razão, e não como mero “efeito colateral”; e por isso mesmo, como matéria própria de análise. (...) Nesse sentido, o “indivíduo” é uma construção sócio-histórico-cultural, também o são a sua “crise” e a criação de um lugar para tratá-la; se as continuidades e inovações desse processo escapam ao domínio da consciência individual... coloca-se então, como essencial à produção de uma prática (teórica) crítica em psicoterapia, a difícil tarefa de problematizar as formas de abordagem das “histórias individuais de mal-estar” trazidas à clínica; e de questionar possíveis “oposições” individual-social ai criadas. (TÁVORA, 1994, p. 76)

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Nessa perspectiva crítica do assujeitamento do sujeito na pós-modernidade,

outra questão chama a atenção. Cada vez mais, os indivíduos estão à procura de

algo que comumente se denomina de “espiritualidade”. É um fenômeno que pode

ser observado pela explosão de novas igrejas, templos e, na mídia, por uma

exploração da questão da confiabilidade ou da fé no produto. Buscando-se

compreender a que se dirige o homem, ao optar por essa via de sentido à vida,

recorro a TÁVORA (1994, p. 36-37), que discute a questão a partir de uma

compreensão de DUMONT (1993, p. 39), que

concebe a existência de dois tipos de sociedade. A sociedade holista teria a sociedade como um todo como valor. A sociedade individualista seria aquela no qual o individuo, enquanto ser moral, constitui o valor supremo. (...) Ao contrário do que se poderia imaginar, Dumont vê ligação entre os dois tipos de sociedade, entre duas ideologias aparentemente inconciliáveis. Assim, na sociedade indiana (modelo de sociedade holista) encontram-se, ao lado dos homens marcados por uma estreita interdependência, os “renunciantes”, aqueles aos quais a renúncia ao mundo permite plena independência. É no renunciante que o autor vê semelhança com o indivíduo moderno, porém com a diferença de que o primeiro vive (literalmente) fora do mundo social. Por isso o autor refere-se ao indiano como “indivíduo fora do mundo” e ao indivíduo moderno como “indivíduo no mundo”. Quanto ao primeiro, esclarece que a condição para o seu desenvolvimento (espiritual) individual é o distanciamento do mundo social, com o que ele funciona em oposição à sociedade e “... como uma espécie de suplemento em relação a ela...” (2) Essa relação é, segundo Dumont, caracterizada pela hierarquia e complementaridade (TÁVORA, 1994, p.36-37).

Afastado do mundo, o “renunciante” parece estar aberto ao que DUMONT

chama de desenvolvimento (espiritual), seja sob a forma de atividade religiosa ou

por apego a marcas. O tema em questão é a fé, seja ela “intermediada” por alguém

ou alguma coisa, seja ela direta, fé em si próprio, aliás fundamental, pois se não

houver a fé em si próprio, como poder escolher e reconhecer o que lhe faz sentido?

Mas afinal, o que está por trás de um tal quadro? Encontrei em dois pontos-

chave do sociólogo Zygmunt BAUMAN, grande parte das respostas às minhas

questões/inquietações, que apresentarei a seguir. Até este momento tinha optado

por ficar no lugar comum dos fatos, como que configurando uma cartografia do

cotidiano da situação da contemporaneidade vivida.

Em seu livro Modernidade Líquida, BAUMAN (2001) discorre sobre as

qualidades das substâncias sólidas e líquidas, mostrando que as sólidas têm um

maior poder de coesão, podendo suportar relativamente grandes pressões sem

perder suas características; não se movem nem se adaptam. Já as líquidas se

2 DUMONT, 1993, p.39

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encontram num estágio intermediário entre as sólidas e as gasosas, suportando

compressibilidade, mas incapazes de manter sua forma física. Os líquidos “fluem”, “escorrem”, “respingam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam”; são “filtrados”, “destilados”; diferentemente dos sólidos não são contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com os sólidos emergem intactos, enquanto que os sólidos que encontram, se permanecem sólidos, são alterados – ficam molhados ou encharcados. A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os associa à idéia de “leveza” (BAUMAN, 2001, p. 8).

Aproveitando essa visão como uma metáfora para pensar a modernidade

enquanto uma ordem sólida e a pós-modernidade como uma ordem líquida, parece

fazer sentido e chamar a atenção o fato de que, aparentemente, o momento atual é

tal qual como se estas duas ordens estivessem entrando em choque, “disputando”

os cidadãos. Se, por um lado, a ordem líquida é extremamente ágil por sua rapidez,

capacidade de assimilação e versatilidade, por outro, há falta de algo com o qual se

possa contar, como que uma estável rocha em meio a um rio caudaloso, sobre a

qual o sujeito possa se apoiar e repousar, para pensar, conceber, criar. Se nada na

situação do mundo pode se apresentar como sendo essa rocha, onde poder

encontrar uma possibilidade de ancoragem? Penso que esse tem sido desde

sempre o dilema do homem: seu porto seguro. É nesta perspectiva que SÈRRES

(1993) discute a condição humana como uma aventura pela experiência do existir:

se se impuser a tarefa de atravessar a nado o Canal da Mancha, então é preciso

recorrer às habilidades de nadador, mas também atentar à situação, às margens de

onde se parte e para onde se destina.

No contexto atual, como perceber a possibilidade do homem de encontrar-se

a si mesmo? Quais as margens do rio que lhe servem de referência? Enquanto isso,

a água da ordem líquida vem mais e mais invadindo o que antes era terra firme e

seca, tanto fisicamente quanto humanamente. Para BAUMAN (2001, p. 11), (...) esse efeito não foi alcançado via ditadura, subordinação, opressão ou escravização; nem através da “colonização” da esfera privada pelo “sistema”. Ao contrário: a situação presente emergiu do derretimento radical dos grilhões e das algemas que, certo ou errado, eram suspeitos de limitar a liberdade individual de escolher e de agir. A rigidez da ordem é o artefato e o sedimento da liberdade dos agentes humanos. Essa rigidez é o resultado de “soltar o freio”: da desregulamentação, da liberalização, da “flexibilização”, da “fluidez” crescente, do descontrole dos mercados financeiro, imobiliário e do trabalho, tornando mais leve o peso dos impostos etc. ... ou das técnicas de “velocidade, fuga, passividade” – em outras palavras, técnicas que permitem que o sistema e os agentes livres se mantenham radicalmente desengajados e que se desencontrem em vez de encontrar-se.

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A situação é desestabilizante, conduzindo ao segundo ponto-chave de

BAUMAN. Diz respeito à ambivalência, que ele coloca em termos de ser “a

possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria” (1999, p. 9),

iniciando assim um grande processo de desconforto para quem a sente e percebe.

Seu “outro” seria classificar, ou seja, separar, segregar, colocar numa ordem,

conferir a algo como que uma estrutura. Para BAUMAN, uma situação se torna

ambivalente “quando os instrumentos lingüísticos de estruturação se mostram

inadequados” (1999, p. 10), condição que significa que nenhuma das classes

lingüisticamente discriminada contempla a questão, ou quando ela recai em várias

classes ao mesmo tempo. Nenhum dos padrões aprendidos poderia se adequado numa situação ambivalente – ou mais de um padrão poderia ser aplicado; seja qual for o caso, o resultado é uma sensação de indecisão, de irresolução e, portanto, de perda de controle. As conseqüências da ação se tornam imprevisíveis, enquanto o acaso, de que supostamente nos livramos com o esforço estruturador, parece empreender um retorno indesejado (idem, p. 10).

Que fenômeno seria esse, senão aquele que o do dia a dia... A realidade e a

cotidianidade parecem apresentar-se sempre descontinuadas. Aquilo que hoje se vê

ou pensa, não continuará amanhã. O mundo circundante muda com uma rapidez

muito grande, compreendido agora como globalização, tudo afetando e nada

deixando “a salvo”. Razoavelmente reconhecida como estável, é a sensação que diz

respeito à afetabilidade, na qual a angústia e o sofrimento que se não sabe localizar

de onde vem, é o que se apresenta constantemente. Se a angústia é um afeto que

sobrevém frente a nada poder ser medida de certeza e confiança, a não resposta,

ou mesmo sua impossibilidade, viver só pode ser angustiante. Subtraído das

instâncias confiáveis, resta acreditar em que? Pode o si mesmo ser eleito como

possível referência? Mas será que um tal si mesmo desencontrado pode ser

confiável frente a esta constelação de coisas e de mundo? Podemos dizer que a existência é moderna na medida em que se bifurca entre ordem e caos. A existência é moderna na medida em que contem a alternativa da ordem e do caos3. (...) Com efeito, ordem e caos, ponto. Se é de algum modo visada (quer dizer, na medida em que é pensada), a ordem é visada não como substituto para uma ordem alternativa. A luta pela ordem não é a luta de uma definição contra outra, de uma maneira de articular a realidade contra uma outra concorrente. É a luta da determinação contra a ambigüidade, da precisão semântica contra a ambivalência, da transparência contra a obscuridade, da clareza contra a confusão. A ordem como conceito, como visão, como propósito, só poderia ser concebida para o discernimento da ambivalência total, do acaso do

3 Aqui a meu ver os conceitos-chave “líquido” e “ambivalência” se imbricam a um máximo. (N.do A.)

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caos. A ordem está continuamente engajada na guerra pela sobrevivência. O outro da ordem não é uma outra ordem: sua única alternativa é o caos. (idem, p. 14).4

Caos, cuja etimologia significa “imensidade do espaço”, parece definir

adequadamente a situação do homem na modernidade: um espaço imenso, frente

ao qual se torna difícil decidir que ações assumir. Diz respeito a um grande mal-

estar, imputado por duas instâncias.

A primeira refere-se ao vocabulário que utilizo, pois estou tentando

estabelecer algum tipo de ordem nos meus pensamentos e escritos, para poder

expressar o que desejo. Contudo, fico me questionando sobre a adequação desta

ordem, e se ela é capaz de dar conta daquilo que estou querendo cuidar. Quase que

ao mesmo tempo, fico às voltas com a segunda instância, que diz respeito à qual

ética estou recorrendo para poder pensar/escrever. É a sensação de estar sentado

frente a um teclado de computador, tentando escrever sobre contemporaneidade,

pós-modernismo, líquidos, sólidos, trabalho com Educadores de Rua, com

populações carentes, com jovens infratores, sobre a ética. E aí o caos se faz

presente. Mas que ética é essa? A melhor resposta que encontro é “a ética do bom

senso”. Mas o que é bom senso? Onde encontro bom senso? Envergonhadamente,

tendo a responder que talvez a única forma de poder encontrá-la seria buscando-a

em mim mesmo...

Retomo meu universo para esta pesquisa: educadores de adolescentes

infratores. Parafraseando BAUMAN, a ética é moderna na medida em que contém a

alternativa da ordem e do caos. Vejamos: os educadores procuram instaurar ordem

nas instituições; por outro lado, são humanos, estando sujeitos à ambivalência.

Baseiam-se no que têm: disposição afetiva para com os adolescentes na co-

existência, independente do caráter dessa relação. Por sua vez, os adolescentes

também procuram uma ordem, e se “infiltram” como líquidos nas frestas deixadas

pela ordem de seus educadores e da sociedade majoritária. Só mesmo educadores

capazes de lidar com ambivalências e líquidos podem ter algum sucesso em suas

tarefas nesse meio. E uma coisa é clara e cristalina: os adolescentes, considerando-

se a situação da qual são oriundos, aprenderam mais rapidamente que quaisquer

outros a viverem na modernidade líquida, do mesmo modo que aqueles que

representam os interesses econômico-financeiros do mundo moderno. Como rios, 4 Caos entendido aqui como todas as possibilidades. (N. do A.)

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estão à espreita de margens que lhes forneçam contornos, e não “perdoam”

contornos baixos ou fendidos. Não há como dizer que estão “errados”, da mesma

forma que não há o que se dizer dos comportamentos “duros” de seus educadores.

Então, a que ética recorrer senão à “própria”? E, se assim for, o que isto quer dizer?

Como cuidar eticamente de sujeitos para o bem estar a partir de uma ética do si

mesmo num mundo ambivalente entre ordem sólida e líquida?

Sociedade majoritária e jovens infratores não se toleram. Melhor dizendo,

para se reconhecerem necessitam de uma tensão ambivalente entre si. Seriam eles,

nessa medida, “iguais”, portando-se de modo aproximado? A intolerância é, portanto, a inclinação natural da prática moderna. A construção da ordem coloca os limites à incorporação e à admissão. Ela exige a negação dos direitos e das razões de tudo que não pode ser assimilado – a deslegitimação do outro. Na medida em que a ânsia de pôr termo à ambivalência comanda a ação coletiva e individual, o que resultará é intolerância – mesmo que se esconda, com vergonha, sob a máscara da tolerância (o que muitas vezes significa: você é abominável, mas eu sou generoso e o deixarei viver). (idem, p. 16)

Esmorecimento parece ser questão dominante. Percebi-me muito mobilizado

para o trabalho em campo, pois seus efeitos pareceram bastante perceptíveis. Mas,

ao (d)escrevê-lo, percebo-me como que recorrendo ao óbvio já ultrapassado, cujo

texto, na sua escritura, já revelaria sua obsolescência. BAUMAN (1999) mais uma

vez restaura a propriedade da condição temporal humana, sempre defasada de sua

experiência

Estabelecer uma tarefa impossível significa não amar o futuro, mas desvalorizar o presente. Não ser o que deveria ser é o pecado original e irredimível do presente. O presente está sempre querendo, o que o torna feio, abominável e insuportável. O presente é obsoleto. É obsoleto antes de existir. No momento em que aterrissa no presente, o ansiado futuro é envenenado pelos eflúvios tóxicos do passado perdido. Seu desfrute não dura mais que um momento fugaz, depois do qual (e o depois começa no ponto de partida) a alegria adquire um toque necrofílico, a realização vira pecado e a imobilidade, morte. (idem, p. 19)

Angustiado com minhas próprias discussões de articulações possíveis entre

saúde e educação no registro da pós-modernidade, optei por recorrer à linguagem,

uma vez que é ela que possibilita o diferencial do humano entre os outros seres

vivos. Qual o significado dos termos saúde e educação como expressão própria de

sua humanidade? Poderia o significado semântico contemplar uma outra

compreensão que pudesse apontar sentido para essa articulação?

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2.2 Léxicos A linguagem dos sábios é a saúde.

(WEBSTER, 1983, p. 836)

Recorrendo à metáfora de BAUMAN (2001) a respeito do que é sólido e do

que é líquido, penso que a etimologia é um instrumento interessante para buscar o

que um dia foi a “solidez” da palavra. A etimologia, de etimologia em grego,

etymologia, significa “o verdadeiro valor e análise da palavra”. Étimo, etymos, “o

verdadeiro sentido literal da palavra”. Assim, etimologia vem de etymos, verdadeiro,

e logos, descrição, de legein, dizer (WEBSTER, 1983). Já o Dicionário Eletrônico

Houaiss apresenta, em uma de suas definições para etimologia, que ela é a “origem

de um termo, quer na forma mais antiga conhecida, quer em alguma etapa de sua

evolução; étimo”. 5

Parece-me valioso tentar encontrar estes sentidos originais das palavras, já

que através dos tempos foram sofrendo correções e mais correções (corrigir,

corrigere, de com, junto, e regere, conduzir, dirigir; WEB), perdendo sua solidez.

Essa busca, acredito, pode conduzir a que se resgatem os étimos, dando-lhes o

significado mais apropriado aos tempos atuais, cuidando-se, ao mesmo tempo, em

não tentar lhes sobrepor mais uma correção de seu significado (de significare, dar a

entender por sinais, indicar, mostrar, significar, dar a conhecer, fazer compreender; DEH).

Ao invés de corrigir ou conduzir, parece-me mais interessante tentar derivar (de

derivare, modificar o curso de uma corrente, de seu canal; [WEB]) um outro sentido que

seja significativo neste contexto. Para isso, é preciso tomar o cuidado de não deixar

que nem significantes (imagem acústica, associada a um significado numa língua, para

formar o signo lingüístico; segundo Saussure, essa imagem acústica não é o som material,

ou seja, a palavra falada, mas sim a impressão psíquica desse som, DEH), vivências com

as palavras, passadas, ultrapassadas ou obsoletas, interfiram neste derivar.

Neste trabalho, descubro que a questão da etimologia também se apresenta

por um outro ângulo. Percebo que, em minha atividade como psicoterapeuta,

supervisor e professor, estou, por analogia, sempre às voltas com estas mesmas

questões: restaurar os “étimos pessoais” de cada um, para poder refletir sobre sua

atualidade ou não, e sobre quais seriam as derivações possíveis no momento atual.

5 Os verbetes consultados no Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa serão assinalados com “DEH”, enquanto aqueles consultados no Webster’s New Twentieth Century Dictionary, com “WEB”.

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Se, por um lado, estarei voltando muito no tempo, revisitando o percurso

tomado pelos significantes, por outro, estarei tentando um processo de restaurá-los

como possibilidade de estabelecer uma ponte entre os étimos e os significantes

atuais, desejoso de criar algo novo que me propicie expressar, de uma forma que

considere adequada, a efêmera atualidade do meu pensar. Compreendo que,

segundo MORATO (ANDRADE e MORATO, 2004, p. 18), é da perspectiva da significação da linguagem como criação de sentido que se impõe uma retrospectiva etimológica, para re-encontrar a atribuição de significado a termos recorrentes na compreensão do sentido da condição humana. Isso porque, no percurso histórico de uma língua, tais termos passaram a aderir-se a significados precisos e determinados, destituindo-os de seu uso originário como utensílio para a comunicação de sentido entre homens.

Desse modo, uma forma de me aproximar das questões sobre saúde e

educação, foi procurar suas definições, bem como a de termos relacionados, no

Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa 1.0 (DEH) e em inglês,

constantes do Webster’s New Twentieth Century Dictionary, 1983 (WEB). Como

alguns verbetes têm várias definições, algumas sem sentido neste contexto, vou

manter as definições de interesse e eliminar as demais. Optei por coletar as

definições destes dois dicionários para ampliar a possibilidade do encontro de

étimos, e pelo fato de que, para algumas palavras, os étimos têm origens

diferentes.

O DEH define saúde como

(1) estado de equilíbrio dinâmico entre o organismo e seu ambiente, o qual mantém as características estruturais e funcionais do organismo dentro dos limites normais para a forma particular de vida (raça, gênero, espécie) e para a fase particular de seu ciclo vital (2) estado de boa disposição física e psíquica; bem-estar (3) força física; robustez, vigor, energia [lat. salus,útis salvação, conservação (da vida)]

enquanto o WEB define health como

(1) Bem-estar físico e mental; sanidade; ausência de defeito, dor ou doença; normalidade das funções mentais e físicas. A saúde é diferente da força; é uma boa condição universal – Munger (2) Poder de curar, restaurar ou purificar (raro) (3) Condição do corpo ou mente; como boa ou má saúde [do inglês médio helth; inglês antigo haelth, health, de häl, o todo (whole)

Ambas as definições de saúde referem-se à noção de um processo de

equilibração, partindo, porém, de pontos diferentes. Se no DEH o ponto de partida é

salus, conservação, salvação da vida, para o WEB trata-se de um equilíbrio que visa

a manutenção do todo. Nesse sentido, ambas contemplam as dimensões física e

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psíquica do organismo. Interessantemente, nenhuma das duas ressalta tratar-se de

algo especificamente do ser humano. A definição em inglês faz uma distinção entre

saúde e força, que a em português não apresenta. Ambas falam em normalidade,

citando o bem-estar como um dos aspectos relevantes como índice de saúde, o que

revela que o organismo deve, portanto, estar apropriado de si próprio para poder sair

em busca de saúde.

Educação (1) ato ou processo de educar(-se) (1.1) qualquer estágio desse processo (2) aplicação dos métodos próprios para assegurar a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral de um ser humano; pedagogia, didática, ensino (3) o conjunto desses métodos; pedagogia, instrução, ensino (4) conhecimento e desenvolvimento resultantes desse processo; preparo (5) desenvolvimento metódico de uma faculdade, de um sentido, de um órgão (6) conhecimento e observação dos costumes da vida social; civilidade, delicadeza, polidez, cortesia [lat. educatìo,ónis, ação de criar, de nutrir; cultura, cultivo] (DEH)

Education [L. educatio, de educare, educar] (1) O processo de treinamento e desenvolvimento de conhecimento, habilidade, mente, caráter, etc., especialmente pela educação formal; instrução; treinamento. (2) Conhecimento, habilidade, etc. assim desenvolvidos (a) escolarização formal (b) um tipo ou estágio disto; como educação médica, uma educação superior (3) estudo sistemático dos problemas, métodos e teorias de ensinar e aprender (WEB)

Tais definições mostram pontos de partida diferentes. Se o DEH considera

educatio a ação de criar, nutrir, cultivo, o WEB toma educatio como e+ducere,

conduzir para fora. E isto me parece uma complementaridade interessante. Costumo

dizer aos meus alunos, quando discutimos algum caso relativo a uma criança, que a

função da mãe é parir e “abastecer” a criança de suas necessidades, enquanto que

o pai só vai entrar em cena algum tempo depois, para levar esta criança a conhecer

o mundo, primeiramente em excursões de pouca amplitude, que com o tempo

aumentam mais e mais, mas sempre a devolvendo à mãe para “re-abastecimento”.

São, a meu ver, “educações diferentes”, embora absolutamente complementares e

necessárias para que essa criança possa ir, paulatinamente, se desenvolvendo de

forma a cuidar de suas necessidades, indo em busca de conhecer o mundo

circundante para poder obter dele tudo aquilo de que virá a precisar para a sua

subsistência física e mental.

Nos termos utilizados por Kurt GOLDSTEIN (1995), como apresentarei no

próximo capítulo, isto diz respeito a promover a auto-regulação organísmica ou

homeostase. Assim, penso que uma das formas de compreender educação possa

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ser prover o educando com recursos que poderão lhe permitir cuidar dos fatos de

sua vida (prover, de providere, pro = antes, videre = ver, portanto semelhante a prever).

Parece que, por essa compreensão, surge o sentido de que toda e qualquer

educação procura pro-e-pre-ver aquilo que o educando poderá, ainda que na visão

temporalmente limitada do educador, vir a precisar. Refere-se a uma provisão de

recursos da qual o educando poderá lançar mão para sobreviver (manter sua vida,

sua saúde), caminhando, assim, depois, por seu próprio descobrimento e

conhecimento, em sua existência na convivência entre outros no mundo circundante.

Desse modo, tanto saúde quanto educação implicariam em uma conotação

de cuidado. O DEH propõe como etimologia de cuidado “lat. cogitátus,a,um

'meditado, pensado, refletido', part.pas. de cogitáre, agitar no espírito, remoer no

pensamento, pensar, meditar, projetar, preparar”. Em inglês, os sinônimos para

cuidado podem ser caution, de covere, estar na guarda de alguém, e heed, do inglês

antigo hedan, cuidar de, se importar, considerar com cuidado, estar cuidadosamente

atento a algo (WEB).

As definições acima ainda chamam a atenção para o fato de saúde ser

concebida como algo próprio ao sujeito (não se fala em saúde coletiva), ao passo

que educação pareceria estar mais próxima a algo da ordem da moral e de bons

costumes, relacionando-se, assim, à ordem do social. Seria essa a possibilidade de

uma articulação entre ambas? Seria a saúde algo da dimensão do próprio sujeito,

dirigido a si mesmo como cuidado, para servir-lhe como uma referência (educação)

para lançar-se ao mundo?

Prosseguindo neste passeio etimológico, dirijo-me, agora, a termos que

dizem respeito a formas encontradas pelo humano para orientar-se na direção de

sua saúde. Referem-se aos modos de se cuidar ou ser cuidado, explorando, para

isso, os termos médico e medicina. medicina (1) Rubrica: medicina. conjunto de conhecimentos relativos à manutenção da saúde, bem como à prevenção, tratamento e cura das doenças, traumatismos e afecções, considerada por alguns uma técnica e, por outros, uma ciência (2) Derivação: por extensão de sentido: cada um dos grupos ou sistemas medicais (3) Derivação: por metonímia: a prática ou o estudo dessa técnica ou ciência (4) Derivação: por metonímia: forma de tratamento; remédio (5) o que reconforta, o que alivia sofrimentos morais; remédio, socorro [lat. medicína,ae arte de curar, medicina; medicamento; remédio] (DEH)

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Medicine (L. medicina, medicina, a arte da cura, de medicus, um médico) (1) a ciência e a arte do diagnóstico, tratamento, cura e prevenção de doenças, aliviando o sofrimento melhorando e preservando a saúde. (2) O ramo desta ciência e arte que faz uso de drogas, dietas, etc., como especialidade diferenciada da cirurgia e obstetrícia. (3) (a) Qualquer droga ou outra substância utilizada no tratamento, doença, cura ou alívio de sofrimento; (b) uma droga ou outra substância como veneno, poção do amor, etc., utilizada para outros fins. (4) Entre os índios norte-americanos; (a) qualquer objeto, fala, rito, etc., que supostamente tenham poderes naturais ou sobrenaturais como medicamento, preventivo, protetor, etc. (b) poder mágico ou ritual (5) Um homem da medicina (WEB) médico (1) aquele que se formou em medicina e pode exercê-la; doutor (2) Derivação: sentido figurado. aquilo que cura, que atua como remédio [lat. medìcus,i médico, cirurgião; veterinário, alveitar] (DEH)

Physician (L. physicus; gr. Physikus, um cientista, de physis, natureza) (1) pessoa licenciada a praticar medicina; um doutor em medicina (2) um praticante geral da medicina, distinto de um cirurgião (3) qualquer pessoa ou coisa que cure, alivie ou conforte (WEB)

Os verbetes médico e medicina parecem não oferecer nenhuma outra

possibilidade de compreensão além daquela do lugar comum. Medicina,

apresentada como ciência, pouco diz de um fazer que se apresente como algo mais

específico do que meramente uma técnica. Desse modo, médico seria o técnico que

se apresenta diretamente representante da medicina. Não há referência direta à

prática do médico como efetivamente dirigida a um sujeito específico e ao meio em

que vive, ou seja, que considere o chamado paciente como um ser humano que vive

dentro de um contexto. Há uma única alusão ao bem estar psicológico do paciente,

se forem considerados os “sofrimentos morais” como algo do psicológico. Acredito

que isto seja devido ao fato de que, na definição do DEH, não haver alusão à

medicina como arte (lat. ars, da raiz ar, junção, ligação, confluência; Gr. artunein, arranjar,

arrumar, organizar; harmonizar, combinar, DEH). Neste contexto, não surpreende tanto ao se encontrar a definição inglesa para

médico: physician, do grego physicus, natureza. Refere-se àquele que teria

competência para cuidar da natureza (physis) do homem. Recordo-me das aulas de

Biologia, no primeiro e segundo graus, quando meus colegas e eu nos espantamos

com o fato de o homem ser considerado um animal natural (de naturalis, de

nascimento pertencente à natureza, de natura, nascimento, natureza, DEH), pertencente

ao reino da natureza. Por outro lado, não deixa, também, de ser uma surpresa que,

hoje em dia, o homem seja raramente considerado um ser natural num mundo tão

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metamorfoseado por simulacros, espetáculos e artifícios (de artificium, ramo de

atividade ou profissão, DEH).

Considerado como ser da natureza, no tocante ao seu bem estar, não seria de

estranhar os modos como esse ser possa ser compreendido em seu dirigir-se ao

mundo. Assim, cabe a pergunta formal acerca de onde e com quem aprendeu o que

se conhece como educação?

O verbete escola não apresenta novidades em termos da forma como é

utilizado no senso comum, percebendo-se em seu significante algo de muito antigo,

beirando o anacrônico. Parece indicar para o fato de que a escola enquanto

instituição está carecendo de uma atualização que a torne menos estática e, assim,

menos vulnerável à grande evasão escolar observável principalmente na rede

pública. Parece existir um descompasso entre aquilo que sua clientela procura e o

que ela oferece. Nesse sentido, a escola não parece ter sofrido correções, no

sentido utilizado acima. Escola (1) estabelecimento público ou privado onde se ministra ensino coletivo (2) conjunto de professores, alunos e funcionários de uma escola (3) prédio em que a escola está estabelecida (4) sistema, doutrina ou tendência estilística ou de pensamento de pessoa ou grupo de pessoas que se notabilizou em algum ramo do saber ou da arte (5) conjunto de pessoas que segue um sistema de pensamento, uma doutrina, um princípio estético etc. [lat. schòla,ae 'lugar nos banhos onde cada um espera a sua vez; ocupação literária, assunto, matéria; escola, colégio, aula; divertimento, recreio', do gr. skholê,ês 'descanso, repouso, lazer, tempo livre; estudo; ocupação de um homem com ócio, livre do trabalho servil, que exerce profissão liberal, ou seja, ocupação voluntária de quem, por ser livre, não é obrigado a; escola, lugar de estudo'; para comentários do ponto de vista semântico, ver escol-] Escol- elemento de composição antepositivo, do gr. skholê,ês 'descanso, repouso, lazer, tempo livre; estudo; ocupação de um homem com ócio, livre do trabalho servil, que exerce profissão liberal; escola, lugar de estudo', pelo lat. schòla,ae 'lição, escola'; a evolução semântica é explicada pelo gramático Festo (sIII): "O termo schòla não é sinônimo de ócio e lazer; significa, isto sim, que, deixando de parte as demais ocupações, as crianças devem dar-se aos estudos próprios de homens livres"; ocorre já em voc. orign. greco-latinos, como escola, escolar e escolástico; para a conexão semântica com o lat. otìum, ver1oci- (DEH)

Interessante notar a formação etimológica da palavra escola: um lugar onde

devem estar as pessoas no momento em que não estão no ócio. Apresenta uma

noção ainda contemplada na atualidade como a grande preocupação dos

educadores, ao proporem que crianças e adolescentes, em idade escolar, passem a

maior parte possível do tempo nas escolas, como alternativa outra à sua

permanência nas ruas, lugar propenso ao ócio e, assim, “escola” para hábitos

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socialmente inadequados. Nessa perspectiva, escola implicaria em um lugar para o

desenvolvimento de atitudes morais, oferecendo-se, como diz o verbete, a uma

paródia dos dias atuais, ao explicitar que as crianças devem se dar aos estudos

próprios de homens livres. Parece tratar-se, ainda, do ideal grego de polis,

reservando a educação a aqueles que não necessitam cuidar das necessidades da

sobrevivência, a cargo das mulheres e escravos. Essa conotação leva-me a pensar

nas crianças de rua e nos adolescentes infratores. Mas, este tema merece uma

consideração mais detalhada, a ser apresentada em capítulos que estão por vir.

Por sua vez, no WEB, o vocábulo school não acrescenta nada a estes verbetes

vistos. Passemos, pois, aos modos de cuidado pela educação.

À semelhança do verbete escola, o professor, principal personagem da escola

depois do aluno, também se apresenta por anacronismos. Apesar de suas

definições mostrarem o papel de destaque e reverência a essa figura, certamente diz

de uma característica que com o tempo se perdeu, recorrendo-se à mesma crítica

feita acima à tecnicidade do médico; refere-se à ausência da “arte de ensinar”. Professor (1) aquele que professa uma crença, uma religião (2) aquele cuja profissão é dar aulas em escola, colégio ou universidade; docente, mestre (2.1) aquele que dá aulas sobre algum assunto (2.2) Derivação: por extensão de sentido. Aquele que transmite algum ensinamento a outra pessoa (3) aquele que tem diploma de algum curso que forma professores (como o normal, alguns cursos universitários, o curso de licenciatura etc.) (4) Derivação: sentido figurado. Indivíduo muito versado ou perito em (alguma coisa) [lat. professor,óris 'o que faz profissão de, o que se dedica a, o que cultiva; professor de, mestre', do rad. de professum, supn. de prof itéri 'declarar perante um magistrado, fazer uma declaração, manifestar-se; declarar alto e bom som, afirmar, assegurar, prometer, protestar, obrigar-se, confessar, mostrar, dar a conhecer, ensinar, ser professor] (DEH) Professor (L. professore, um professor, de professus, pp de profiteri, admitir, declarar publicamente; de pro, à frente, e fateri, declarar) (1) pessoa que professa alguma coisa; especialmente alguém que (2) abertamente declara seus sentimentos, crenças religiosas, etc. (3) um professor; especificamente professor universitário do mais alto grau, usualmente em um campo específico (4) Qualquer pessoa que reivindique ou admita ser especialmente hábil ou experiente em alguma arte, esporte, etc.; uma utilização popular ou humorística. (WEB)

Teacher (inglês médio, techen; inglês antigo, teacan, mostrar, ensinar) (1) aquele que ensina ou instrui; um instrutor; um preceptor; um tutor; alguém cuja ocupação é instruir os outros (2) alguém que instrui religião aos outros; um pregador; um ministro de gospel (3) alguém que prega sem ser ordenado. (WEB)

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As definições relativas a professor mantêm sua seriedade e circunspeção. Na

sua maioria, não é difícil imaginar um professor dando uma aula magna a partir de

um púlpito, manifestando, em alto e bom tom, seu conhecimento e a certeza de

virtudes. Nesse sentido, parecem estar impregnadas da “escolástica” medieval e de

sua fundamentação religiosa: a íntima relação entre o professor e a pregação

religiosa, muito provavelmente rastros do percurso histórico da utilização do termo. A

nota dissonante está na definição de origem inglesa, pela qual a tarefa do professor

é mostrar e ensinar. Importante assinalar a distância entre professor e aluno (lat.

alumnus,i 'criança de peito, lactente, menino, aluno, discípulo', der. do v. alère 'fazer

aumentar, crescer, desenvolver, nutrir, alimentar, criar, sustentar, produzir, fortalecer etc.',

DEH), que se mantém, ainda, em grande parte das situações de aprendizagem (de

apprehendere, pegar, agarrar, apanhar, DEH).

Na perspectiva etimológica, pedagogia e educação têm uma proximidade

muito grande: intenção de “levar a algum lugar”, de ser agente. Muito atento a

possíveis aproximações entre saúde e educação, chama a atenção a possibilidade

de uma das acepções do étimo, desses dois novos termos, poder ser “cuidados com

uma planta ou com um doente”. Assim, a articulação dos significantes saúde e

educação poderia ocorrer pelo cuidado (lat. cogitátus,a,um 'meditado, pensado, refletido',

part.pas. de cogitáre 'agitar no espírito, remoer no pensamento, pensar, meditar, projetar,

preparar'; ver cuid-, DEH).

Pedagogia (1) ciência que trata da educação dos jovens, que estuda os problemas relacionados com o seu desenvolvimento como um todo (2) Derivação: por extensão de sentido. Conjunto de métodos que asseguram a adaptação recíproca do conteúdo informativo aos indivíduos que se deseja formar (3) tratamento de crianças ou adolescentes com dificuldades escolares (4) Ciência que trata da educação e da instrução das crianças e adolescentes inadaptados (5) Método pedagógico utilizado esp. na reeducação, educação especializada e na educação de adultos [gr. paidagógía,as 'direção ou educação de crianças; p. ext. 'cuidados com uma planta ou um doente', cp. lat. paedagóga (lex) 'lei que serve de guia'; ver 1ped(o)- e –agogia] (DEH) -agogia, pospositivo, do gr. agógê,ês 'ação de transportar, transporte, ação de conduzir, dirigir; direção do espírito; direção dos negócios públicos, maneira de tratar uma questão, método' (do v. gr. ágó 'conduzir, dirigir, guiar, governar, comandar') + o suf. -ia formador de subst. abstratos, conexo com a noção de 'guia, que guia, conduz', em comp. já gregos, já de form. analógica, da nomenclatura científica do sXIX em diante: anagogia, antropagogia, apagogia, demagogia, falagogia, hemagogia, litagogia, mistagogia, pedagogia, psicagogia, psicopedagogia; há uma constelação mórfica do tipo -agogia (subst.): -agógico (adj. conexo com os anteriores e os seguintes): -agogo (subst. agente ou adj. agente) (DEH)

Pedagogy (Gr. Paidagogos; pais, paidos, uma criança, e agein, conduzir)

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(1) a profissão ou função de um professor; ensinar. (2) a arte ou ciência de ensinar; especialmente instrução de métodos de ensino. (WEB)

O verbete professor apresenta uma noção absolutamente técnica da

profissão. Fala de um detentor do saber, de um status, que passa esse

conhecimento adiante. É interessante notar que se a definição de médico está

vinculada à medicina, por sua vez, a de professor não se refere em nenhum

momento à pedagogia, que contempla o tema desenvolvimento, mas apenas

vinculado ao adolescente. Contudo, suas outras acepções apresentam a pedagogia

como uma ciência para tratamento daqueles que não são normais.

Mais uma vez emerge a questão do acento excessivo tecnicista nas

definições dos verbetes, conduzindo, novamente, à ausência do sentido da arte de

ensinar, somente contemplada pelo verbete em inglês, apesar de, nos dois idiomas,

a etimologia ser a mesma. Interessante notar que esse sentido seja contemplado

justamente pelo idioma de um povo conhecido por seu formalismo e tecnicismo,

como é o inglês.

Por fim, recorre-se às definições de psicologia e psicólogo, que dizem

respeito à especificidade discutida por este trabalho.

Psicologia (1) Rubrica: psicologia. Ciência que trata dos estados e processos mentais (2) Rubrica: psicologia. Estudo do comportamento humano ou animal (3) conjunto dos traços psicológicos característicos de um indivíduo ou de um povo, uma comunidade, uma geração etc. (4) Curso universitário onde se ensinam os principais ramos da psicologia, bem como ciências afins, e que forma o psicólogo (5) atividade psicológica ou mental característica de uma pessoa ou situação (6) capacidade inata ou aprendida para lidar com outras pessoas, levando em conta suas características psicológicas; tato, compreensão, jeito (DEH) Psychology (1) (a) a ciência que lida com a mente e os processos mentais, sentimentos, desejos, etc.; (b) a ciência do comportamento humano e animal (2) a soma das ações pessoais, traços, atitudes, pensamentos, etc.; como a psicologia do adolescente. (3) Um tratado de psicologia (4) Um sistema de psicologia (WEB) Psicólogo (1) especialista em psicologia; psicologista (2) indivíduo formado em psicologia e que a aplica no seu trabalho (3) indivíduo que entende muito da alma humana, embora não seja formado em psicologia (DEH) Psychologist alguém que estuda ou é versado em psicologia (WEB)

Como definições, ainda encontram-se elementos fortemente tecnicistas, que

não contemplam, no meu modo de ver, de forma alguma a complexidade da

profissão. Principalmente, ressalta-se esse aspecto se for considerada a tônica da

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necessidade de ter bem desenvolvida a capacidade de relacionamento com aqueles

com os quais trabalha. Revela um reducionismo apresentá-la como a ciência que

trata dos estados e processos mentais.

Procurando por um verbete que pudesse trazer em seu bojo os pontos de

vista que considero importantes neste trabalho, aquele que deles mais se aproximou

foi “educar”, já visto. Assim, insatisfeito com o que havia encontrado, procurei pelo

verbete psicoterapeuta.

Psicoterapeuta profissional que aplica psicoterapia (2) especialista em psicoterapia [psic(o)- + -terapeuta] (DEH) psic(o) elemento de composição antepositivo, do gr. psukh(o)-, der. do gr. psukhê,ês 'sopro', donde 'sopro de vida', donde 'alma, como princípio de vida; ser vivo, pessoa; alma p.opos. a corpo; alma, como sede dos desejos; alma de um morto, sombra, espírito'; ocorre já em voc. orign. gregos, como psicagogo, psicomaquia, psicopompo, psicose e psicostasia, já em numerosos cultismos do sXIX em diante, com as acp. de: 1) 'alma', em termos conexos com a religião e a metafísica: psicagogo, psicopompo; 2) 'espírito, princípio pensante, atividade mental': psicanálise, psicologia, psicose; 3) 'como equivalente de psicológico ou psíquico', associado a um adj. ou a um subst. (DEH)

Encontrei mais uma definição pobre, até mesmo redundante. Já ao procurar

pelo elemento de composição “psic(o)”, encontra-se, praticamente, a história do

sentido de psico, desvelando, inclusive, possíveis razões pelas quais a psicologia foi

considerada como qualquer coisa menos ciência ou arte. Pela etimologia e sua

correção, ao longo da história do conhecimento humano, pode-se compreender a

necessidade de tornar a psicologia um conjunto de idéias e conceitos de cunho

positivista, para que se pudesse fazer como ciência. Por outro lado, também é

perceptível um certo cunho místico e/ou de religiosidade, que por muito tempo a

impregnou e ainda se faz presente, caso se atente ao étimo em si: a noção de

“sopro de vida” e “alma como princípio de vida”, “ser vivo” e “pessoa”. Por essa

ambigüidade implícita, seria possível resgatar sua aproximação com saúde e

educação, referindo-se a condições de vida, de saúde, bem estar com qualidade?

Chama a minha atenção o quanto estes verbetes são estanques, fechados

em si próprios, refletindo, até certo ponto, a real situação em que se encontram

saúde e educação na nossa realidade. Há ausência de uma articulação entre elas,

algo da dimensão de arte, (lat. ars, junção, ligação, confluência, DEH). Poderia isso ser

entendido como uma desarticulação proposital visando interesses humanos

variados, ambíguos, contraditórios? Parece-me que “psicólogo” e “psicologia”

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situam-se entre “saúde” e “educação”, responsáveis pela possível articulação entre

essas dimensões, na medida em que atentam à subjetividade de seus agentes,

possibilitando uma apropriação mais humana do que é mais propriamente humano e

não natural. Parece-me interessante pensar psicólogo e psicologia como agentes de

arte, como agentes de junções, ligações, confluências, arranjos, arrumações,

organizações, harmonizações, combinações, visto que estas são manifestações da

criatividade que, via de regra, é um dos temas centrais do trabalho do psicólogo, no

sentido de promover no outro o recurso da criatividade frente aos fatos da vida.

É interessante notar que o termo arte está, em nossos dias, quase que

indissoluvelmente ligado a atividades que passam longe de concepções correntes

de ciência. Ciência (1) conhecimento atento e aprofundado de alguma coisa (1.1) esse conhecimento como informação, noção precisa; consciência (1.2) conhecimento amplo adquirido via reflexão ou experiência (2) processo racional us. pelo homem para se relacionar com a natureza e assim obter resultados que lhe sejam úteis (3) corpo de conhecimentos sistematizados que, adquiridos via observação, identificação, pesquisa e explicação de determinadas categorias de fenômenos e fatos, são formulados metódica e racionalmente (4) atividade, disciplina ou estudo voltado para qualquer desses ramos do conhecimento (5) conjunto de conhecimentos teóricos, práticos ou técnicos voltados para determinado ramo de atividades; talento; mestria (6) erudição, saber (7) conhecimento puro independente da aplicação (8) conhecimento que, em constante interrogação de seu método, suas origens e seus fins, procura obedecer a princípios válidos e rigorosos, almejando esp. coerência interna e sistematicidade (8.1) na metafísica grega ou no hegelianismo moderno, conhecimento filosófico racional, absoluto e sistemático a respeito da essência do real, culminância de todos os saberes particulares e específicos (8.2) cada um dos inúmeros ramos particulares e específicos do conhecimento, caracterizados por sua natureza empírica, lógica e sistemática, baseada em provas, princípios, argumentações ou demonstrações que garantam ou legitimem a sua validade [Menos importante na filosofia grega, tal sentido da palavra tornou-se hegemônico no decorrer do pensamento filosófico moderno.] (9) conhecimentos ou disciplinas que mantêm articulações, semelhanças ou conexões sistemáticas, tendo em vista o estudo de determinado tema (10) disciplinas voltadas para o estudo sistemático da natureza ou para o cálculo matemático [lat. scientìa,ae 'conhecimento, saber, ciência, arte, habilidade, prenda'; ver cien(c/t)-]6 (DEH) cien(c/t)-

elemento de composição antepositivo, do lat. scio,scis,scívi ou scíi,scítum,scíre 'saber, conhecer, ter conhecimento, notar, reparar, compreender, reconhecer', com derivados como scibilis,e 'que se pode saber', sciens,entis 'que sabe, que está informado, ciente', scientìa,ae 'conhecimento, saber, ciência, arte, habilidade, prenda'. 7 (DEH)

As definições de ciência apresentadas pelo DEH ficam dentro do esperado,

não apresentando nenhuma idéia que pudesse ser considerada nova. No entanto,

os itens 8, 8.1 e 8.2 chamam a atenção por conterem as concepções mais 6 Grifos meus. 7 Grifos meus.

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conhecidas, mais “aceitas”, embora, ao mesmo tempo, mais estéreis, mais restritas,

mais limitantes, e mais distantes do étimo da palavra. São eminentemente

tecnicistas.

Aqui, claramente algo se perdeu no “tempo etimológico”, pois o étimo de

ciência contempla arte, habilidade e prenda. Assim, é perfeitamente cabível que se

conceba o cientista como um hábil artista. Afinal, saber, conhecer, ter conhecimento,

notar, reparar, compreender, reconhecer são noções que, do ponto de vista de seus

étimos, e na minha compreensão destas atividades, cabem tanto ao cientista quanto

ao artista. Artista (1) aquele que estuda ou se dedica às belas-artes e/ou delas faz profissão (2) aquele que tem o sentimento ou o gosto pelas artes (3) aquele que interpreta papéis em teatro, cinema, televisão ou rádio; ator (4) aquele que é dotado de habilidades ou particularidades físicas especiais e as exibe em circos, feiras etc. (5) aquele que é exímio no desempenho de seu ofício (6) operário ou artesão que trabalha em determinados ofícios; artífice (7) que tem o sentimento ou o gosto da arte (8) diz-se de pessoa que tem talento, engenho (9) astuto, artificioso, manhoso [prov. do it. artista (a1321) 'artesão, aquele que exercita uma das artes liberais'; há quem afirme já estar o voc. artista registrado no lat.medv.; ver art(i)-] (DEH) Art(i)-

elemento de composição antepositivo, do lat. ars,artis 'maneira de ser ou de agir (natural ou adquirida, boa ou má)'; designa quase sempre uma habilidade adquirida pelo estudo ou pela prática, um conhecimento técnico (p.opos. a natúra 'habilidade natural'); depois 'talento, qualidades adquiridas' (p.opos. a ingenìum 'engenho, qualidades naturais'); pejorativamente, significa 'artifício, ardil'; da acp. de 'talento, qualidades adquiridas' deriva a de 'ofício, profissão'; em retórica, 'tratado, obra importante'; ars é voc. ant. e usual; panromânico (salvo romn.): it.logd. arte, engad.fr.provç.cat. art, esp.port. arte; a cognação lat. inclui artìfex,ìcis 'artífice, operário, indivíduo que exerce uma arte (médico, orador, escritor etc.), artista; autor, criador', artificìum,ìi 'ocupação (de um artista), profissão, mister, emprego; perícia, competência, habilidade; teoria, sistema; artifício, ardil, manha, astúcia', e seus der. artificiósus,a,um 'feito com arte, artístico; hábil, engenhoso' e artificiális,e 'artificial, cheio de artifício'; a ars prendem-se os adj. iners,ertis 'inábil, incapaz, preguiçoso, inativo, inerte; improdutivo, estéril, ineficaz; tímido, fraco, sem coragem' (DEH)

Note-se que, à exceção da definição 3, todas podem ser aplicadas também

ao cientista. O elemento de composição art(i)- nos fala de habilidade, talento,

perícia, competência, arte, criação e artificial(idade) entre outros sentidos, que se

aplicam à ciência. E aqui encontramos, também, uma possível razão para uma série

de conotações pejorativas que muitas vezes são relacionadas aos artistas: inábil,

incapaz, preguiçoso, inativo, inerte, improdutivo, estéril, ineficaz, tímido, fraco, sem

coragem.

Percebo que arte e ciência aparecem citadas conjuntamente num grande

número de vezes, ao mesmo tempo em que parecem também acentuar sua

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separação. Nesse sentido, à semelhança de saúde e educação, poderiam implicar-

se numa relação diacrítica.

Não quero deixar de mencionar, aqui, o desapontamento com as definições

dos verbetes psicologia e psicólogo, visto que revelam distorção de étimos

fundamentais para o sentido humano e sua existência. Desse modo, sua não

legitimação procede por perceber a pobreza de tais definições como expressão do

viver cotidiano de cidadão e profissionais. Esperava encontrar na etimologia, pelo

menos um vetor humanamente cultural, que pudesse abranger diferentes

significados, para essas ciências e profissões entre as diversas culturas e nos

diferentes tempos da história da humanidade. Resgato essa questão, via uma leitura

mais próxima ao cotidiano do existir. Diz da difícil arte da co-existência pela

inevitabilidade da afetação que um homem provoca no outro e de dilemas

decorrentes. Certa vez escrevi em um livro uma frase: dar de menos é roubo; dar demais é assassinato. Se dou demais à criança, a morte estará na criança. A criança para a qual dou demais, desaprende sua humanidade. Isto é, ela não desenvolve sua humanidade, e isto é a morte de ser humano. Se dou tudo à criança, de forma que ela não precise mais pensar, fazer ou se dar socialmente, então eu assassino a humanidade dela e também a minha, em mim. (Cohn, 1993, p. 147) Bem, meu tema predileto é: “O que faço comigo quando o outro não é do jeito que eu gostaria?” Na realidade esse não é o tema em si: “Como posso modificar o outro?”, mas o que faço comigo quando o outro não é da forma que o desejo. Experienciei e me convenci que, se eu puder me colocar em uma situação de forma diferente da usual, que o outro de alguma forma se modifica. (Cohn, 1993, p. 106)

Desse modo, reconhecendo a questão da diversidade e da temporalidade,

pensei em buscar, ainda, outros verbetes para encaminhar uma possível articulação

entre saúde e educação. São veredas pelo sentido do humano e não pela ciência

tecnicista. O verbete visitado é, agora, cultura.

cultura ação, processo ou efeito de cultivar a terra; lavra, cultivo (1.1) parte cultivada de um sítio, unidade produtiva ou região (1.2) produto de tal cultivo; plantação, criação ou desenvolvimento com cuidados especiais (2) m.q. cultivo ('produção com técnicas especiais') (3) cultivo de célula ou tecido vivos em uma solução contendo nutrientes adequados e em condições propícias à sobrevivência (4) criação de alguns animais (5) o cabedal de conhecimentos, a ilustração, o saber de uma pessoa ou grupo social (6) conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social (7) forma ou etapa evolutiva das tradições e valores intelectuais, morais, espirituais (de um lugar ou período específico); civilização (8) complexo de atividades, instituições, padrões sociais ligados à criação e difusão das belas-artes, ciências humanas e afins [lat. cultúra,ae 'ação de cuidar, tratar, venerar (no sentido físico e moral)'; ver cult-] (DEH)

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cult- elemento de composição antepositivo, do v.lat. colo,is,colùi,cultum,colère 'cultivar; habitar, morar em; cuidar de, tratar de, preparar; honrar, venerar, respeitar', com cog. em lat. como inquilínus e comp. com o el.comp. pospositivo do tipo agricòla; como o v.lat. incòlo,is,incolùi,incultum,incolère 'habitar, residir, morar (em que o pref. in- tem o valor intensivo e não de in- 'não' que é o que se adota no port. e línguas modernas de cultura com base no adj.lat. incultus,a,um 'não cultivado, inculto'); como, talvez, no lat. domicilìum, formado de *domicola; como no lat. colónus,i 'o que substitui o proprietário, o que cultiva em seu lugar' (p.opos. ao lat. patrónus,i 'o que faz a função do pai (< lat. pater,patris), donde o lat. colonìa,ae 'fazenda, granja, colônia'; como o lat. cultúra,ae, no sentido físico e moral (e em opos. ao lat. natúra), o lat. cultus,us 'cultura, culto, cultivo', lat. cultor/cultrix 'cultor(a), habitante, cultivador(a)', o v.lat. culto,as,ávi,átum,áre 'cultuar, cultivar' (DEH) Culture (do L. culture, cultivo, cuidado, de cultus, pp de colere, cultivar a terra) (1) O ato ou processo de cultivar e preparar a terra para a produção; cultivo do solo. (2) Criar, melhorar ou desenvolvimento de alguma planta, animal ou produto. (3) O crescimento de bactérias ou outros microorganismos numa substância nutritiva especialmente preparada, como Agar. (4) Uma colônia de microorganismos assim desenvolvidos. (5) Melhora, refinamento ou desenvolvimento pelo estudo ou treino, etc. (6) O treinamento e refinamento da mente, emoções, hábitos, gostos, etc. (7) O resultado disso; refinamento do pensamento, emoção, hábitos, gostos, etc. (8) Os conceitos, hábitos, habilidades, artes, instrumentos, instituições, etc., de um dado povo num dado período; civilização (WEB)

A princípio, essas definições não trazem nada de inesperado. A palavra

cultura usualmente tem o sentido de algo ligado à agricultura, à produção humana

de artes e valores, ao conjunto de hábitos e pensares de um povo. No âmbito deste

trabalho, no entanto, parece-me que a acepção mais interessante é aquela que

define cultura como “cultivo de célula ou tecido vivos em uma solução contendo

nutrientes adequados e em condições propícias à sobrevivência”, pois, pensando no

humano, é justamente de condições propícias para a sobrevivência aquilo de que

necessita. Nesse sentido, é possível compreender cultura como conjunto de valores

de um povo, aquilo que cria condições propícias de vida organizada para

determinado povo.

Atentando-se à etimologia, encontra-se a noção de cuidado, cuidado para que

uma (agri)cultura tenha condições de se desenvolver, para que o meio propicie

situações para que o homem se encontre com a sua condição própria, necessária e

saudável. A falta dessas situações implica numa ambiência insatisfatória para a

condição humana, propícias ao adoecer, encontrar-se doente (doença, do lat.

dolentìa,ae 'dor', der. do lat. dolens,éntis 'que se aflige, que causa dor', ambos ligados ao

v.lat. dolére 'doer, sentir dor, sofrer (física e moralmente)'; divg. pop. de dolência; ver dol-,

DEH). A falta de cultura, como cuidado, implica, assim, em dor e sofrimento.

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sentido, e não significados como as definições apresentam. Trata-se de recorrer à

linguagem como meio de expressão e não de conceito.

Para encaminhar re-significadamente os demais, comecemos por saúde e educação. Segundo WEBSTER (1974), saúde vem do latim salus, significando condição (orgânica ou organizacional) benéfica, de bem-estar, de segurança. Refere-se à cura (healein, em inglês antigo), como promoção de integridade e/ou cuidado.Talvez seja por isso que desse termo tenha se derivado saudação; implica numa forma de demonstrar respeito e reconhecimento àquele do qual nos aproximamos. Aproxima-se, assim, de clínica e de cuidado, tarefas cotidianas e pertinentes ao universo do fazer psicológico no âmbito da saúde. (...) Por outro lado, educação vem do latim educere, de e+ducere, ou seja, e=para fora, e ducere=conduzir, trazer, fazer movimento em direção a alguém. Nesse sentido, implica em debruçar-se ou inclinar-se a uma forma de cuidar para que o outro se conduza adiante. Desse modo, ambos parecem articular-se à prática psicológica clínica. Dizem respeito a dirigir-se a alguém de modo a fazê-lo conduzir-se adiante em sua experiência, destinando-se ao seu bem-estar. Assim, saúde e educação aproximam-se tanto pelo sentido de promoção de cuidado e integridade quanto de demonstração de respeito e reconhecimento, via saudação.

Como tentativa de compreender essa articulação, penso que o existir, ou seja,

a vida demanda um cuidado, saúde, para que a educação, possa, sua vez,

constituir-se como atenção para manutenção da saúde. Em outras palavras, a partir

do existir, saúde e educação são constituintes para a condução de existência com

sentido.

Mas qual seria esse sentido? Talvez pudesse ser considerando a condição

humana de desamparo e sofrimento como que imprimindo a origem da ação das

ciências da saúde e educação, não alcançadas pelas definições lingüísticas.

Falta, contudo, ainda, para encerrar esta visita ao universo dos léxicos e das

etimologias, dedicar aos léxicos sofrimento e sofrer, o espaço devido que

contemplam na esfera do humano. sofrimento (1) ação ou processo de sofrer (2) dor causada por ferimento ou doença; padecimento (3) dor moral; amargura, ansiedade, angústia (4) vida miserável; miséria, penúria, dificuldade [sofrer + -i- + -mento; ver sofr-] (DEH) sofrer (1) sentir dores físicas ou morais; padecer (2) ser alvo de (golpe, pancada etc.); receber, levar (3) padecer de (alguma doença) (4) experimentar com resignação e paciência; suportar, tolerar, agüentar (5) não evitar ou criar impedimento para; admitir, permitir, aceitar (6) passar por, experimentar (7) ter danos ou prejuízos; decair, degradar, perder (8) não reagir violentamente; conter-se, sofrear-se, agüentar-se (DEH) sofr- elemento de composição. Antepositivo, do v.lat. suffèro,sustùli, sublátum,sufferre 'suportar, sofrer' (DEH) Suffer (L. sufferre, suportar, resistir; sub, embaixo e ferre, suportar) (WEB)

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Cabe, aqui, notar que essas definições e étimos não apresentam surpresas, o

que pode ser um indicador de que, talvez, o sentido venha se mantendo intacto ao

longo do tempo. Quase que a totalidade das definições contêm a noção de aflição e

dor (física e moral), o que remete ao étimo de dor/angústia, como visto acima,

desvelando a angústia própria ao humano. Quase todas as definições implicam em

submissão (lat. submissìo,ónis 'abaixamento (da voz); simplicidade (de estilo);

inferioridade', der. de submissum supn. de submittère 'submeter'; ver met-, DEH) a algo.

Num modo de experienciar tais definições, a tônica estaria na palavra resignação ngústia, com1 Tfa09 p1 1gna pa118 emefe

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partir do todo circundante formado pelo horizonte global da linguagem. O que se pensa assim como ente não é propriamente objeto de enunciados, mas “vem à fala em enunciados”. Com isso, conquista sua verdade, sua manifestação no pensamento humano, Assim, a ontologia grega se fundamenta na objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, concebendo a essência da linguagem a partir do enunciado (GADAMER, 1997, p. 575)

Creio que a denominação deste item como LÉXICOS, encontra, agora, um

sentido apropriado. Afinal, léxico relação de palavras empr. com sentido diferente do da língua comum, com as respectivas explicações, ou relação das palavras us. por um autor, um grupo social etc.; vocabulário [gr. leksikós,ê,ón 'que diz respeito às palavras'; ver lex(e/i)-] lex(e/i)- elemento de composição antepositivo, do gr. léksis,eós 'palavra, ação de falar, elocução, léxico' (DEH)

Assim, para não perder possibilidades no trato das questões relativas a este

“abrir mão” como possível experiência originária dessa condição de com-viver,

resgato um afastamento possível entre ars (de origem latina) e techné (de origem

grega). É nesse sentido que se buscará uma articulação possível entre saúde e

educação. Desse modo, apresento o léxico techné. techno- [do grego techné, uma arte, artifício9] (a) arte, ciência, habilidade; (b) técnico, tecnológico. (WEB) 10

2.3 Saúde e Educação

“O homem físico não é uma combinação de pensamento, fala, volição e sentimento... ao contrário, ele é um homem pensante, falante, que sente experiências e situações”

Kurt Goldstein11 9 Com o sentido de arte do artífice. N.do A. 10 Grifos meus. 11 GOLDSTEIN apud HELLER, 1979, p. 21

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No trajeto percorrido, até o momento, vou questionando minha preocupação

com a saúde, com a educação e com as questões que as circundam. Cabe, agora,

uma apresentação de ambas em outra perspectiva, e uma reflexão sobre se, e

como, estas dimensões da existência do sujeito na contemporaneidade podem

articular-se.

2.3.1 Saúde Ao abordar as tecnologias que incidem sobre o sujeito na

contemporaneidade, vale ressaltar que nelas se incluem, além daquelas que se

referem à dimensão social do termo, as práticas de saúde: Medicina, Psiquiatria,

Psicologia. A reflexão, proposta por FOUCAULT (1990) acerca da “História da

Loucura” e de “O Nascimento da Clínica” sobre a constituição dessas práticas,

evidenciou o modo de produção histórica de uma divisão entre razão e des-razão,

saúde e doença, saber e não-saber, a partir da qual se retirou do louco e do enfermo

todo e qualquer saber e poder.

Uma vez que acima foram referenciados alguns termos não contemplados

pelo item 2.2, passo, agora, a apresentar léxicos implicados mais diretamente ao

real do âmbito da saúde e sua especificidade. Parto daqueles que, recorrentemente,

são atribuídos quando da referência ao fazer em saúde.

clínica gr. klinikê,ês 'cuidados médicos a um doente acamado', fem.substv. de klinikós,ê,ón 'relativo ao leito', der. do v. klínó 'inclinar-se, deitar-se', pelo lat. clinìce,es 'medicina racional (oposta à empírica)' (DEH) prática gr. praktikê (sc. epistêmé) 'a ciência prática (em oposição à ciência especulativa)', pelo lat. practìce,es 'id.'; ver prax(i)- (DEH) prax(i)-

elemento de composição antepositivo, do gr. prâksis,eós 'ação, o fato de agir' [em oposição a páthos,eos-ous 'o que se experimenta' - ver pat(o)-], p.ext. 'execução, realização; empresa, condução de um caso (de guerra, de política); comércio, negócio; intriga; maneira de agir, conduta, maneira de ser; resultado de uma ação, conseqüência', der. do v.gr. prásso (prátto) 'ir através, percorrer, atravessar; ir até o fim, acabar; cumprir, executar; fazer executar, realizar'; a cognação gr. inclui praktêr,êros 'que executa, autor de alguma coisa', praktikós,ê,ón 'próprio para agir, donde atuante, ativo; eficaz; habituado a agir', praktós,ê,ón 'que pode ou deve ser feito'; os der. e comp. vernáculos são: impraticabilidade, impraticável; prática, praticabilidade, praticante, praticar, praticável, prático; praxe, praxeologia, praxia, práxico, praxiologia, praxiológico, praxiologista, praxiólogo, praxioscópio, práxis, praxista, praxiterapeuta, praxiterapia, praxiterápico; tb. der. do v. prásso, há o subst. gr. prâgma,atos 'negócio, coisa por fazer, o que se faz; ação, atividade' e

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considerados como simples técnicas de “tratamento” psíquico de si, podem ser

compreendidos e incluídos entre as técnicas de “produção” de si.

Ao falar de tecnologias de “produção de si”, portanto, intenta-se trazer à luz o

fato de que o sujeito, alvo das intervenções em saúde, está longe de ser uma

categoria ou dado “puro”, um ser dotado de essência ou fixidez em si mesmo, como

gostaria de ser visto pelas tecnologias da “verdade”. É uma produção, mais da

ordem do coletivo do que do individual, pois dela participam inúmeros universos de

discurso e diversos poderes disciplinares. Esses poderes incluem, além das práticas

médicas e psicológicas, também a família e a educação, sendo todos eles poderes

locais e específicos, ligados de forma não-direta ao Estado, mas indispensáveis à

sua sustentação. Assim compreendido o ser humano como uma “produção”,

garantiria que, apesar de atuando de forma periférica, tais poderes disciplinares

pudessem desenvolver um controle minucioso do corpo, em seus gestos, atitudes,

hábitos e comportamentos (FOUCAULT, 1979, Cap. XII).

Ao se discutir questões da pós-modernidade, faz-se, então, necessário

pensar como um dos eixos paradigmáticos da modernidade – o do indivíduo livre e

autônomo – se mostrou incapaz de sustentar-se plenamente. Se as qualidades de

liberdade e autonomia existem em alguma medida, é preciso considerar que elas se

encontram marcadas por uma outra qualidade, o poder disciplinar e disciplinador,

pelo qual o indivíduo se torna simples consumidor de um tipo de subjetividade

fabricada em série, tendo sua sensibilidade, comportamento e relações assim

modeladas de modo quase industrial.

FIGUEIREDO (1992, p. 141) fala do modo pelo qual a regulação das

existências individuais passa a ser mesmo solicitada pelos indivíduos, relacionando

esse efeito a uma relação perversa entre o liberalismo do moderno estado capitalista

e o regime disciplinar. Quando a individualidade entra em crise, isso, na prática

clínica psicológica, se traduz em questões (nomeadas ou não) de identidade,

desamparo, fragmentação e desencontro, as quais, se tomadas pelos profissionais

da área sem a apropriada referência aos contextos coletivos de sua gênese, podem

acabar contribuindo para uma espécie de culpabilização dos sujeitos e,

conseqüentemente, de maior restrição de suas possibilidades existenciais

(TÁVORA, 1994).

Pode-se indagar, então, sobre qual seria o espaço para pensar questões

como conhecimento e cuidado de si, autonomia e escolha, uma vez que a questão

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da subjetividade se encontra tão marcada por aspectos de cunho econômico,

político, social e tecnológico, dentre outros. É por essa perspectiva que se legitima a

questão sobre a possibilidade de uma prática em saúde que contemple a amplitude

e diversidade de aspectos envolvidos nesse universo, simultaneamente mantendo-

se aberta às críticas e mudanças necessárias. Isto aponta para a necessidade de

redimensionar a implicação da responsabilidade social entre profissionais de saúde,

como expressei em um trabalho anterior: As questões do homem contemporâneo mudaram; conseqüentemente as práticas psicoterapêuticas também estão tendo que mudar sua ótica individualizada – e o Zeitgeist individualista dos últimos tempos é talvez o grande responsável pela não leitura de conteúdos sociais da Gestalt – para uma ótica mais social que contemple estas novas questões do homem com respostas igualmente novas. Estas mudanças implicam em que nos voltemos aos valores individuais e sociais. (LILIENTHAL, 1997b)

Que lugar ocuparia, então, o saber dos profissionais de saúde, no momento

atual? Dadas as relações íntimas entre saber e poder, é preciso considerar que o

saber “teria de maneira imediata e mediata um alcance ético e uma implicação

política“ (BIRMAN, 2000, p. 25). Somente nesse contexto, é que qualquer “idéia de

verdade deveria ser efetivamente inscrita, para que as suas dimensões estratégica e

tática pudessem ser rigorosamente destacadas” (idem, p. 26). Segundo BIRMAN, há

que se atentar para cuidar de que tais implicações sejam contempladas pelo

profissional de saúde.

Nessa mesma direção, FIGUEIREDO (1995, p. 40) apresenta uma reflexão

acerca da ética, dizendo que a “clínica define-se, portanto, por um dado ethos; em

outras palavras o que define a clínica psicológica como clínica é a sua ética: ela está

comprometida com a escuta do interditado e com a sustentação das tensões e dos

conflitos”. Orientado nessa direção, afirma que a saúde pode ser pensada para

além de qualquer critério médico ou psicológico, como “o usufruto do corpo (e da

mente)” (idem, p.46), como “usufruto e incremento dos poderes do corpo” (idem, p.

47). Pontua que, para constituir-se como sujeito ético nos dias de hoje, “nem a ética

liberal, nem a romântica, nem a disciplinar são alternativas viáveis e cada uma delas

exclui parcelas significativas da experiência de cada um de nós que acabam

retornando como sintomas e mal-estar” (idem, p. 63).

Questiona, desse modo, a possibilidade de que um tal sujeito ético possa

desenvolver a capacidade de edificar sua própria morada, entendida como “o habitar

sereno e confiado proporcionado pela casa e a saúde” (idem, p. 46), com uma

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relativa independência e autonomia para, assim, assumir certas funções antes

exercidas pelos outros (idem, p. 49). Para essa compreensão, toma de empréstimo

da filosofia o termo “Serenidade (Heidegger) – o habitar sereno e confiado como

condição para a abertura e o encontro; Amor facti (Nietszche) – amor aos fatos e

aos fados, acolhimento do inesperado e aleatório, escuta paciente de outras vozes

apenas entreouvidas, espera do outro que nos vem ao encontro e desaloja.” (idem,

p. 73)13

Como, então, pensar conceitos e intervenções em saúde que permitam abrir

ao outro a possibilidade do “encontro de si” e, ao mesmo tempo, proteja e permita a

abertura à alteridade? Como resgatar ao sujeito o “saber e cuidado de si” não

alienados do outro e dos contextos de vida? Como conceber e tratar o “sofrimento”

do outro?

Considerando-se a etimologia de prática e clínica, acima citadas, procede

perguntar-se pelo sentido de intervenção, uma vez que é por seu intermédio que a

ação se realiza como prática. Em que medida esse sentido acompanha ou se

distancia da ação clínica? Intervenção diz de um modo de realização ou refere-se a

um fazer determinado como procedimento ou técnica? intervenção lat.imp. interventìo,ónis 'abono, fiança, garantia', rad. de interventum, supn. de interveníre 'estar entre, sobrevir, assistir; entremeter-se, ingerir-se, intervir, meter-se de permeio, embaraçar-se, impedir'; ver –vir. (DEH)

Tomando-se o sentido do verbo intervenire, dizendo de estar entre, assistir,

meter-se de permeio, pode-se compreender intervenção como garantia de se

entrepor os bons ofícios como ação para cuidar daquele que padece, que

experimenta uma afecção. Diz de um modo de realizar o cuidado com direção ao

sofrimento de alguém.

Procede, nessa compreensão, um olhar ao que se entende como o sofrer do homem. O

sofrimento faz parte do drama humano, como sendo sua própria condição, incluindo tanto as

paixões quanto os deveres, as prescrições e interdições da cultura. Nessa medida, constitui-se

como uma constante tensão entre busca de sentido, exposto ao inesperado e

coerência/permanência para as experiências situadas do sujeito. Para BARUS-MICHEL

(2001, p. 26), o “sofrimento é a perda de sentido, desordem das emoções, dos sintomas, a

impossibilidade de colocar em palavras, de se explicar, de se representar, de simbolizar

13 Grifos do autor.

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(sofrimento ‘indescritível, não passível de ser traduzido, não dizível’, ‘os grandes sofrimentos

são mudos’).”

Mas é preciso considerar que o sofrimento surge num ponto de articulação entre a

subjetividade e a realidade, entre o individual e o social. Pois, ainda de acordo com essa

autora, o “sofrimento, sentido como infelicidade, mal-estar, desordem, injustiça, depende do meio social e cultural, do sistema de representações e simbolização, de sua solidez, força e riqueza (...) O sofrimento assume as formas propostas pela cultura. A sensibilidade ao sofrimento varia de acordo com as épocas e as sociedades. A capacidade de resistir à dor física é ela mesma sujeita a variações. O sofrimento moral depende dos objetos de apego propostos numa dada cultura. (idem, p.27)

Então, se o sofrimento está associado a uma demanda não articulável, implica em algo

que tem dificuldade de se expressar e, nessa perspectiva, o aspecto a ser valorizado é o de

quando ele é dirigido ao outro como um pedido de tradução de si mesmo para si mesmo.

Revela-se, assim, simultaneamente, ausência de sentido e um pedido de sentido, de

restauração do poder de dizer, e, em se dizendo, poder reconhecer-se e apropriar-se de si e de

sua situação entre outros. Nessa perspectiva, o “tratamento”, melhor dizendo o cuidado, pode

ser compreendido como possibilidade de reinscrição do sujeito no diálogo consigo mesmo

entre outros, abrindo, desse modo, possível reinscrição na cadeia de sentido. Porém, como

existem diferentes formas de “permitir, propor ou impor sentidos” (idem, p. 37), assim

também as formas de tratamento vão se diferenciar essencialmente pela “capacidade de

enunciação concedida ao sujeito (de criar seu sentido ou de recebê-lo de outro lugar).”

(idem, p. 37)

Retomando a discussão final do ítem 2.2, pela qual se apontava a dor, angústia e

submissão como algo do âmbito do estar lançado, des-amparado, des-enraizado, abrindo mão

de certezas e controle, procede, então, debruçar-se sobre o tema educação, visto que o

concebo numa relação diacrítica com saúde, ou seja, numa relação pela qual se definem

mutuamente, ao mesmo tempo em que mantêm suas diferenças, como que duas peças

contíguas de um quebra-cabeças.

2.3.2 Educação

Assim, a criança, objeto da educação, possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é um ser em formação. Esse duplo aspecto não é de maneira alguma evidente por si mesmo, e não se aplica às formas de vida animais; corresponde a um duplo relacionamento, o relacionamento com o mundo, de um lado, e com a vida, de outro. (ARENDT, 1972, p. 235) (...) Na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade. A autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa. Embora

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certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só a autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. Face à criança, é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: - Isso é o nosso mundo. (idem, p.239)

Enquanto refletia acerca da tarefa de escrever sobre educação, ocorreu-me a

lembrança de um estágio que fiz em 1992 na Hochschule der Künste em Berlin,

Alemanha. Na ocasião, participei de inúmeros Workshops, dos quais um foi

particularmente relevante para a discussão aqui pretendida. Dele participavam cerca

de 30 jovens, estudantes da universidade; havia, apenas, uma única aluna oriunda

da então recém-extinta Alemanha Oriental. A certa altura do Workshop, os alunos

começaram a tecer pesados comentários sobre o que consideravam ser as

péssimas condições materiais da universidade que cursavam. Em determinado

momento, a aluna “oriental” apresentou uma grande explosão, dirigindo ofensas aos

colegas. Lembro-me claramente de duas frases: “O que vocês querem mais? Um

jardim tropical cheio de palmeiras no topo do edifício para vocês poderem passar as

suas tardes de verão?” e “Vocês não têm idéia do que estão falando; vocês querem

mais e mais facilidades materiais. Ao invés disto, vocês deveriam estar pensando

em solicitar professores mais bem preparados, vocês deveriam se preocupar com a

própria formação”. Desta mesma viagem, mais uma lembrança me marcou em forma

de uma frase, dita pelo orientador de meu estágio, Dr. Olaf-Axel Burow: “O homem

precisa aprender a angariar segurança a partir do que não é material”.

Tais observações não têm o intuito de confrontar valores tradicionalmente

atribuídos às culturas ocidental e oriental. Busco, simplesmente, chamar atenção

para um acontecimento que pode servir como parâmetro possível aos diversos

aspectos envolvidos na formulação de expectativas por parte dos atores

institucionais, no caso, alunos, em relação à instituição formadora. A primeira

situação citada diz respeito a atitudes que podem fornecer subsídios para pensar um

desses aspectos, tomando-se em consideração o do tipo de posicionamento dos

alunos como jovens em processo de educação. Assim, ao reclamar das condições

materiais, estariam eles revelando uma atitude crítica de cidadãos exigindo direitos

legítimos, ou ao contrário, uma atitude de meros indivíduos consumidores dos

valores de consumo predominantes?

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Por certo, as frases proferidas pela aluna oriental refletem um olhar

ideológico, se for considerado que a queda do Muro de Berlin tinha ocorrido há cerca

de dois anos. Contudo, não pode ser desconsiderada sua preocupação como

autêntica para com a população em geral, a universidade, os colegas, a qualidade

do conhecimento, consigo mesma. Refletiria, assim, uma ação ética com

implicações políticas, conforme discutido por BIRMAN (2000, p. 25), no tocante à

responsabilidade de profissionais de saúde.

Na Europa, tanto quanto no Brasil, o acesso à universidade ainda é privilégio

de uma pequena parte da população, via de regra, provinda da elite social. Embora

seja esse um fato amplamente conhecido e criticado, é freqüente que permaneça

“oculto”, ou melhor dizendo, excluído. Com-formados por valores vigentes de bem

estar como aquele promovido pela aparência e exterioridade, alunos se assujeitam

como indivíduos consumidores na sociedade do espetáculo. É o que o relato acima

demonstra, na medida em que houve a necessidade da presença de uma

representante de “outra Europa” para chamar a atenção para a predominância de

um valor superficial de aparência. Parafraseando GOLDSTEIN (1995, p. 22),

afirmando que “conhecimento pedagógico é uma forma pedagógica de ser”, pode-se

questionar como foram compreendidas, no âmbito pedagógico, por alunos e

professores, a apropriação dos espaços de formação, como se defrontaram com

aquilo que é diferente das expectativas, com a noção de coletivo e conceitos

relativos a indivíduo-instituição-sociedade. Em resumo, questiona-se não apenas

sua forma de pensar, mas como foi possível compreender o impasse apresentado

via uma transformação de atitudes.

Segundo SANTOS (1995, p.193), A centralidade da universidade enquanto lugar privilegiado da produção de alta cultura e conhecimento científico avançado é um fenômeno do século XIX, do período do capitalismo liberal e o modelo de universidade que melhor o traduz é o modelo alemão, a universidade de Humboldt. A exigência posta no trabalho universitário, a excelência de seus produtos culturais e científicos, a criatividade da atividade cultural, a liberdade de discussão, o espírito crítico, a autonomia e o universalismo dos objetivos fizeram da universidade uma instituição única, relativamente isolada das restantes instituições sociais, dotada de grande prestígio social e considerada imprescindível para a formação das elites. Esta concepção da universidade, que já no período do capitalismo liberal estava em relativa dessintonia com as “exigência sociais” emergentes, entrou em crise no pós-guerra e sobretudo a partir dos anos sessenta. Esta concepção repousa numa série de pressupostos cuja vigência se tem vindo a mostrar cada vez mais problemática à medida que nos aproximamos de nossos dias. Estes pressupostos podem formular-se nas seguintes dicotomias: alta cultura – cultura popular; educação – trabalho; teoria – prática.

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Esta passagem de Santos, fez lembrar o edifício onde ocorreu o episódio

acima descrito: antigo, sisudo e belo. Naquela época, eu me perguntava como

alguém poderia ter queixas a respeito de uma universidade com aquelas

características, que, além de tudo, ainda era rica em recursos (equipamentos para

os professores – naquela época cada professor tinha a sua sala com computador e

impressora laser à disposição; rica o suficiente para poder pagar bons salários para

os professores; rica em história; rica em alunos com, teoricamente, boa formação no

ensino equivalente ao primeiro e segundo graus). Sem contar que isto acontecera no

que antes havia sido uma ilha ocidental em meio ao mundo europeu oriental: a

cidade de Berlim. Nesse sentido, os três pressupostos apontados por SANTOS

parecem expressar aquilo que ocorria nesta universidade: um ambiente destacado

no seu meio, num isolacionismo cultural que dificultava a transposição do aprendido

e produzido, para a vida do mar de cidadãos que a envolvia..

Uma outra dimensão desta questão, talvez mais dramática por envolver

questões ligadas ao poder ideológico e financeiro, é abordada pelo mesmo SANTOS

(idem, p.203), quando afirma que

O imaginário universitário é dominado pela idéia de que os avanços de conhecimento científico são propriedade da comunidade científica, ainda que sua autoria possa ser individualizada. A discussão livre dos procedimentos e etapas da investigação e a publicidade dos resultados são consideradas imprescindíveis para sustentar o dinamismo e a competitividade da comunidade científica. A “comunidade” industrial tem outra concepção de dinamismo, assente nas perspectivas de lucro, e outra concepção de competitividade, assente nos ganhos de produtividade. Se as suas concepções se sobrepuserem às da comunidade científica, teremos em vez da publicidade dos resultados, o secretismo, em vez da discussão enriquecedora, o mutismo sobre tudo o que é verdadeiramente importante no trabalho em curso, em vez da livre circulação, as patentes. As investigações mais interessantes e os dados mais importantes serão mantidos em segredo para não destruir as vantagens competitivas da empresa financiadora e os resultados só serão revelados quando forem patenteáveis. Os sinais de uma tal “perversão” têm vindo a acumular-se e a perturbação que estão a causar em alguns setores da comunidade científica já está presente, e até com insistência, nos relatórios oficiais.”

Pode-se, assim, considerar no Brasil a constatação dessa afirmação de

SANTOS. O dito secretismo já se observa nos ambientes universitários e agências

de fomento científico, privilegiando investigações para a tecnologia de ponta: um

conhecimento e uma educação praticados na direção do poder e do lucro de alguns.

Pensando no todo do sistema escolar, percebo que, guardadas as devidas

proporções, tais críticas também a ele se aplicam, e não somente à universidade. A

atualidade da escola, no mundo contemporâneo, parece assujeitar-se aos

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mecanismos e padrões econômicos, com reflexos evidentes na formação de alunos,

despersonalizados. Faz-se evidente um modo de educação indo na contra-mão do

que poderia ser uma política de educação no dizer de Hannah ARENDT acima.

Colocados em salas de aula com um grande número de alunos, passando por uma

série de processos seletivos, pelos quais ser aprovado em provas e exames se

constitui no fim último do ensino, alija-os da condição de sujeitos que aprendem para

se formarem cidadãos responsáveis pelo cuidado de suas vidas e do coletivo. Tal

situação permite entrever a educação como produtora de massa crítica para a

produção de produtos consumíveis para lucro.

Paulo FREIRE (1998, p. 52) aborda estas mesmas questões na perspectiva

dos cuidados que o educador deve ter para evitar a situação acima citada. As considerações ou reflexões até agora feitas vêm sendo desdobramentos de um primeiro saber inicialmente apontado como necessário à formação docente, numa perspectiva progressista. Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, e suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho – a de ensinar e não a de transferir conhecimento. É preciso insistir: este saber necessário ao professor – que ensinar não é transferir conhecimento – não apenas precisa ser aprendido por ele e pelos educandos nas suas razões de ser – ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa ser constantemente testemunhado, vivido.14

FREIRE chama a atenção para o fato de que ensinar é ao mesmo tempo

aprender a ensinar, pois isto torna o aprendido constantemente testemunhado, vivo,

na medida em que docentes e discentes possam ter disponível espaço para

indagações, curiosidade e inquietações. Assim, o aprender-ensinar tem para

educadores e educandos razões de ser, razões de sentido, ou seja, aprender-

ensinar é uma forma de busca de sentido.

Por sua vez, Rubem ALVES (1999, p. 9) apresenta a concepção de que

existem dois tipos de idéias: as idéias que não são suas mas sim propriedade

universal, como, por exemplo, conhecimentos matemáticos, filosóficos e históricos,

podendo sempre estar à mão, disponíveis de serem encontradas em livros, em caso

de utilidade. Nessa perspectiva, tais idéias, geralmente entendidas como

conhecimento encontrar-se-iam a partir de um sentido pragmático. Alerta, assim, os

educadores que mais importante que saber é saber onde encontrar. Se eles soubessem disso, o ensino e os vestibulares seriam totalmente diferentes. Mas há outras idéias que

14 Grifos do autor.

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são parte de mim. Nietzsche dizia amar somente os livros que haviam sido escritos com sangue. Livros escritos com sangue são aqueles em que as palavras são apenas a carne de idéias nascidas do corpo. A diferença entre os livros escritos com sangue e os outros escritos com conceitos é fácil de ser percebida. Os livros escritos com sangue mexem com o corpo e a alma. Os outros mexem só com a cabeça. O corpo fica do jeito que sempre foi.

Por perspectivas muito diferentes, FREIRE e ALVES apontam para a questão

de que educação precisa ser viva, sentida cujo sentido brotaria de sua propriedade

de afetar o sujeito que, afetado, criaria um sentido pertinente e próprio de uma

aprendizagem. Ambos conseguem transmitir, cada um ao seu estilo, um autêntico

envolvimento com a questão educação, justamente por terem se disposto a viver

aquilo a que se propuseram.

À grande distância das compreensões de FREIRE e ALVES, as perturbações

que ocorrem em sala de aula, ao invés de serem utilizadas pelos professores como

matéria a ser aprendida, são reprimidas, perdendo-se, assim, a possibilidade de uma

tematização de questões amplas e envolvidas com o sujeito/aluno e sua condição de

humano. Uma tal abertura permitiria conduzir os alunos a se indagarem quanto ao

âmbito das razões de ser, como propõe FREIRE. Contudo, a desconsideração por

esse aspecto apenas desnuda um outro elemento presente na esfera da educação:

o despreparo do professor para situar temas que não estejam vinculados

especificamente à sua disciplina.

Num tal contexto, não é de estranhar que o ambiente quer esccolar como

educacional implica-se de um modo que pouco motiva o aluno/aprendiz/educando.

Na contra-mão da educação como formação de sujeito/cidadão, o que se mostra é a

alta evasão escolar, a produção em massa de alunos que, esterelizados pelo

sistema educacional des-educador, não se encontram em situação para se

(re)produzirem de forma a cuidarem de si mesmos e das questões de sua existência.

2.3.3 Saúde e Educação

A tentativa de elaboração a partir da integração dos conceitos de saúde e educação,

que intento realizar ao longo do presente trabalho, visa a fundamentação de uma prática que

permita ao sujeito melhor apropriar-se de sua capacidade de enunciação de sentido. Para

tanto, penso ser necessária uma reflexão sobre como os conceitos saúde e educação podem ser

articulados, considerando-se suas dimensões ética e moral.

Em um artigo intitulado “A Dimensão Ética (e Moral) das Práticas Institucionais”,

ANDRADE e MORATO (2004) promovem uma ampla discussão sobre estes temas.

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Ética aparece, em geral, na história da filosofia, como a ciência da conduta que se apresenta em duas concepções fundamentais: 1) a Ética considerada como ciência do fim para o qual a conduta dos homens se deve dirigir e dos meios para atingir tal fim, deduzindo tanto o fim quanto os meios da natureza do homem; 2) a Ética considerada como ciência do móvel da conduta humana, procurando determinar tal móvel com vistas a dirigir ou disciplinar tal conduta. São duas linguagens diferentes e, enquanto a primeira fala do ideal a que o homem está dirigido pela sua natureza, supondo assim uma essência ou substância do homem, a segunda fala dos motivos ou das causas da conduta humana e pretende se ater ao conhecimento dos fatos. (ABBAGNAMO, 1962 apud ANDRADE e MORATO, 2004, p. 5)

De fato, ética pode ser considerada sob muitas perspectivas diferentes,

conduzindo a conclusões diferentes. No entanto, seja ela considerada como for,

inclusive como sinônimo de moral, chama a atenção o fato de como se dirige para

além de ser apenas uma “carta de princípios”, a ser ou não posta em ação.

Muitos foram e são os autores, cientistas e pensadores que se

debruçaram/debruçam sobre a questão da ética, o que a coloca entre uma das

questões mais relevantes da história da humanidade, revelada pela sempre não

possível forma única de ser exercida como uma ação para os cidadãos das mais

diferentes culturas. Permitindo expressar-se apenas como exercício de um agir de

valores, descortina a pluralidade humana para além da singularidade pretendida por

discussões de intelectuais, que a mantém distante da realidade e do alcance do

modo como se apresenta entre os homens em geral: dispor-se como ação e não de

mera proposição.

Debrucemo-nos sobre os verbetes constantes do DEH relativos a ética, éthos,

etos e moral, agora não editados por mim, para que apareçam, neste ponto do

trabalho, na íntegra. Chama a atenção o fato de todos apresentarem-se por

definições racionalistas, acerca de hábitos e costumes, de preceitos de como

deveria ser o comportamento humano, de virtuosismos. Mesmo suas raízes

etimológicas contêm esses significados, havendo nos étimos considerável repetição

de definições, abrindo, assim, a possibilidade de facilmente serem tomados um pelo

outro. ética (1) parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo esp. a respeito da essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social (1.1) Rubrica: filosofia. em doutrinas racionalistas e metafísicas, estudo das finalidades últimas, ideais e, em alguns casos, transcendentes, que orientam a ação humana para o máximo de harmonia, universalidade, excelência ou perfectibilidade, o que implica a superação de paixões e desejos irrefletidos (1.2) Rubrica: filosofia. no empirismo, materialismo ou positivismo, estudo dos fatores concretos (afetivos, sociais etc.) que determinam a

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conduta humana em geral, estando tal investigação voltada para a consecução de objetivos pragmáticos e utilitários, no interesse do indivíduo e da sociedade (2) Derivação: por extensão de sentido. conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade [subst. lat. ethìca 'ética, moral natural, parte da filosofia que estuda a moral', do adj. gr. éthikós,fem. sing. éthikê 'ético, relativo à moral', substv. no neutro pl. tà éthicá 'tratado sobre a moral, ética', conexo com o gr. êthos,eos-ous 'modo de ser, caráter, costume'; ver et(o)-] (DEH) êthos (1) caráter pessoal; padrão relativamente constante de disposições morais, afetivas, comportamentais e intelectivas de um indivíduo (2) Rubrica: teatro. temperamento predominante de uma personagem, caracterizável pela vontade, paixões e hábitos que determinam seu comportamento em um enredo dramático (3) et personalidade humana apta a exercer, na plenitude de suas faculdades morais, auto-controle racional sobre paixões, inclinações e afetos desordenados [gr. êthos,ous 'morada, covil habitual (falando-se de animais); maneira de ser habitualmente, caráter'; segundo Chantraine, desde o grego antigo, êthos não se confunde de modo algum com éthos; o rad. i.-e. swédh sai o gr. êthos, da sua var. swèdh sai éthos] (DEH)

éthos (1) conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (instituições, afazeres etc.) e da cultura (valores, idéias ou crenças), característicos de uma determinada coletividade, época ou região (1.1) Rubrica: antropologia. na antropologia norte-americana, reunião de traços psicossociais que definem a identidade de uma determinada cultura; personalidade de base (2) Rubrica: retórica. parte da retórica clássica voltada para o estudo dos costumes sociais (3) conjunto de valores que permeiam e influenciam uma determinada manifestação (obra, teoria, escola etc.) artística, científica ou filosófica [éthos,ous 'hábito, costume'; ver êthos] (DEH)

moral adjetivo de dois gêneros

(1) concernente a ou próprio da moral (2) pertencente ao domínio do espírito do homem (3) orientado pela moral (fil); proveniente dos estudos filosóficos sobre a moral (fil) (4) que segue princípios socialmente aceitos (4.1) que denota bons costumes, boa conduta, segundo os preceitos socialmente estabelecidos pela sociedade ou por determinado grupo social (4.2) que denota honestidade; correto (4.3) que ensina, educa; edificante

substantivo masculino (5) estado de espírito (5.1) disposição de espírito que uma pessoa apresenta para agir com maior ou menor vigor diante de circunstâncias difíceis; espírito de luta (5.2) sentimento de confiança; coragem

substantivo feminino (6) conjunto de valores como a honestidade, a bondade, a virtude etc., considerados universalmente como norteadores das relações sociais e da conduta dos homens (6.1) conjunto das regras, preceitos etc. característicos de determinado grupo social que os estabelece e defende (6.2) conjunto dos princípios, ger. virtuosos, adotados por um indivíduo, e que, em última análise, norteia o seu modo de agir e pensar (7) Rubrica: filosofia. cada um dos sistemas variáveis de leis e valores estudados pela ética (disciplina autônoma da filosofia), caracterizados por organizarem a vida das múltiplas comunidades humanas, diferenciando e definindo comportamentos proscritos, desaconselhados, permitidos ou ideais (8) Rubrica: filosofia. parte da filosofia que estuda o comportamento humano à luz dos valores e prescrições que regulam a vida das

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sociedades; ética (9) Derivação: por metonímia. obra ou tratado sobre a moral (10) qualquer teoria, doutrina (não necessariamente defensora de um padrão de comportamento) que se fundamenta em certos princípios (11) Regionalismo: Brasil. Uso: informal. capacidade de se impor, de influenciar ou ter ascendência, hegemonia sobre outrem [lat. moraális,e 'moral, relativo aos costumes'] (DEH)

Nessas definições, o que surge como mais marcante é nenhuma delas conter a noção

de ação. Neste sentido, apresentam uma estaticidade, ou seja, uma ausência de ânimo (lat.

anìmus,i (f. masc. de anima): 'princípio espiritual da vida intelectual e moral do homem, vida, alma,

princípio vital, espírito, razão, bom senso, senso comum, pensamento, intenção, disposição, vontade,

inclinação, qualquer movimento impetuoso da alma, paixão, desejo'; 15 ver anim(i/o)-, DEH).

Carecem, portanto, de algo que as aproxime da vida, daquilo que pulsa, age e acontece,

apresentando-se como que isentas de afetos, não contemplando nenhum tipo de afetabilidade

ou disponibilidade afetiva. Nessa perspectiva de carecentes de paixões implica-se o sentido de

criação humana para ser freio para as paixões ilusionantes da razão. Além disso, os valores prescritos pela sociedade e/ou selecionados por nós mesmos – e por isso a preservação e a extensão de nosso ser moral – muitas vezes colidem com os nossos sentimentos particulares. A maior parte do tempo (mas de nenhuma maneira o tempo todo) este conflito se torna consciente como tensão entre “verdadeiro”, “saber”, “verdade” de um lado e sentimentos do outro. Um tal conflito ocorre, antes de tudo, em nossa avaliação de outros. Em nossas avaliações nós nos esforçamos rumo a “objetividade”, rumo a “justiça”, ou pelo menos fingimos fazê-lo. “Apesar de que eu odeio X, tenho que conceder que ele se portou de maneira irrepreensível neste caso”. Ou: “meu pai estava certo quando ele ralhou comigo”. Certamente, apesar do fato que este conflito pode se tornar consciente como sendo de saber versus sentimento, não pretendo inferir que “saber” ou “verdade” estão destituídos de envolvimento (de sentimentos). Pelo contrário, só podemos aproximar-nos de “imparcialidade” e “probidade” se estivermos, direta ou indiretamente, envolvidos em imparcialidade e probidade. Diretamente envolvidos se amamos justiça, se experienciamos imparcialidade como um valor pessoal; indiretamente envolvidos se sabemos que podemos obter o respeito de outros (sempre importante para o Ego) somente pela nossa avaliação imparcial, por probidade (Heller, 1979, p.14).

A reflexão sobre estas questões remeteu-me à história de Moisés. Após ter estado no

Monte Sinai por um tempo, recebendo de Deus leis, ensinamentos e preceitos, redundantes

nos Dez Mandamentos, ele desceu as encostas do Monte e, ao ver seu povo cultuando um

bezerro de ouro feito por Arão, “acendendo-se-lhe a ira, arrojou das mãos as tábuas e

quebrou-as ao pé do monte” (BÍBLIA, Êxodo:33:19). Ora, um dos preceitos que Moisés

recebera consistia em não cultuar imagens; além disso, o bezerro havia sido “confeccionado”

com ouros recolhidos do povo que, lançados no fogo, formaram a imagem. Algum tempo

depois, Moisés voltou ao topo do Monte para novamente buscar outras tábuas com os Dez

Mandamentos. A esse respeito, Agnes HELLER comenta: “Mais tarde, no entanto, ele sobe a

montanha para obter novas tábuas. Terá sido por ter ficado pensando? Não! Foi por sua 15 Grifos meus.

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paixão dominante ter sido seu amor pela lei e por Deus, e pelo fato disto ter se tornado

senhor sobre sua ira.” (HELLER, 1979, p. 14).

Compreendendo os dez mandamentos como uma das mais antigas proposições em

termos de ética e moral, a reação de Moisés pode parecer quase que arquetípica, precursora e

criadora de uma jurisprudência de comportamentos até atuais. Metaforicamente, autores,

cientistas e pensadores que se dedicam a estudar, criar e compor uma ética estariam no alto

dos Montes Sinais acadêmicos. Quando esses portadores procurariam levá-la para o povo,

defrontar-se-iam com barbáries cometidas contra ela e, lançando ao chão sua carga,

despedaça-la-iam pela sua ira. O passo seguinte seria abandonar qualquer tentativa de

“etificar” seu povo, ou, mais simplesmente, juntarem-se a eles já que não podem combatê-los

(as figuras públicas são um exemplo disso). À exceção, são abnegados compelidos à repetição

(tanto cultivadores quanto mensageiros da ética), cegos pela pureza de suas intenções, pela

fidelidade àquilo que consideram inquestionável, apesar das claras evidências de que seus

intentos caem no vazio. Contudo, nessa queda não se angustiam, apesar de impossibilitados

de emprestar às suas empreitadas o ânimo capaz de viabilizá-las num tal universo duro, bruto,

inóspito, em que reina, soberano, o culto ao bezerro de ouro. Assim, retomo, agora, uma

direção já apontada no Capítulo 2, ao perguntar: “Então, a que ética recorrer senão à

‘própria’?”

Penso numa “sociedade de caramujos”. Cada qual carrega consigo sua habitação nas

costas, podendo decidir o que e como fazer no território sob sua jurisdição, ou seja, sua casa,

sua morada, seu assento. Justa em si mesma, a morada do caramujo não possibilita nem a

presença nem a acolhida de mais ninguém. A morada é sagrada (do L. sacer, sagrado, raiz

também vista em sanus, são, e no Gr. saos, seguro, são, WEB). Lentamente, os caramujos vão

escorregando pela sua existência, encontrando-se com outros caramujos, relacionando-se com

alguns, desentendendo-se com outros, reproduzindo-se, trabalhando. Suas moradas “éticas”

contêm tudo o que precisam para conviver com os outros; autônomos, fazem o que querem,

vivem segundo seus próprios princípios. Poderia este ser um retrato possível de uma grande

parte da sociedade ocidental de nossos tempos?

Per-seguindo essa metáfora da sociedade de caramujos, o que é que lhes

permitiria conviver de uma forma razoavelmente harmoniosa e com o mínimo

possível de confrontos, violência, assassinatos, corrupção, para citar apenas

algumas mazelas do cotidiano humano contemporâneo? Considerando-se que cada

sujeito abriga, em seu habitáculo, sua ética, originária de sua experiência pela vida,

o que poderia estar lhe faltando?

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Encontro em ANDRADE e MORATO (2004, p. 5-6) um pensar próximo ao

meu. Na presente reflexão, o conceito de Ética será utilizado com uma significação bastante diferente. As concepções descritas acima serão consideradas aqui como exemplos de uma Moral. Ao longo desta análise, Ética se referirá mais propriamente a etimologia de éthos (que, originariamente, significava assento, morada), designando posturas existenciais e/ou concepções de mundo capazes de dar acolhimento, assento ou morada à alteridade. Acolhimento à diferença produzida na processualidade que não se deixa capturar ou reduzir a ideais ou leis de conduta. Não se trata aqui de negar os valores como vetores de uma sociedade, mas de instituir valores ‘supra-morais’ tanto no nível das sensibilidades, quanto no do pensamento; uma nova maneira de sentir e pensar que não se baseia ‘em supostas verdades fixas e gerais’, mas acolhe a vida em sua contínua processualidade e transformação. Trata-se de uma serenidade frente à multiplicidade, ao acaso, àquilo que nos transforma sem nos darmos conta; o avesso dos valores morais, que supõem uma ordem natural e imutável do mundo.

Nessa direção, o que faltaria à “sociedade de caramujos” seria respeito,

condição indispensável para que a ética possa ocupar o lugar pertinente na vida de

qualquer sujeito. Assim, fui consultar o verbete.

respeito (1) ato ou efeito de respeitar(-se) (2) sentimento que leva alguém a tratar outrem ou alguma coisa com grande atenção, profunda deferência; consideração, reverência (3) obediência, acatamento (4) modo pelo qual se encara uma questão; ponto de vista (5) o que motiva ou causa alguma coisa; razão (6) relação, referência (7) estima ou consideração que se demonstra por alguém ou algo (8) sentimento de medo; receio (9) homenagens, cumprimentos [lat. respectus,ús 'ação de olhar para trás; consideração, respeito, atenção, conta; asilo, acolhida, refúgio'; ver espec-] (DEH)

Considerando que respeito refere-se a ação de olhar para trás, atenção,

acolhida, refúgio, percebe-se uma íntima aproximação à ética como morada,

referência originária para o agir. Implicaria num re-torno à referência própria como

modo pertinente para o “abrir mão para lançar-se”, apontado no final do item 2.2.

Desse modo, pode-se pensar que não é possível ser ético se não se respeita a si

mesmo e se não for respeitado entre os outros. Não é possível encontrar-se com a

ética alheia se não houver respeito próprio. Acredito que o valor supra-moral (e

supra-ético), que ANDRADE e MORATO propõe ser instituído, refira-se justamente a

isso.

Neste ponto, o caramujo pode começar a agir de vários modos, já que o

vocábulo respeito admite-se, como uma de suas formas, enquanto verbo (classe de

palavras que, do ponto de vista semântico, contêm as noções de ação, processo ou estado,

e, do ponto de vista sintático, exercem a função de núcleo do predicado das sentenças;

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predicador. DEH). Já o vocábulo ética só existe sob a forma de substantivo (classe de

palavras com que se denominam os seres, animados ou inanimados, concretos ou

abstratos, as coisas ou partes delas, os estados, as qualidades, as ações, objetos, porções,

sentimentos, sensações, fenômenos, etc., funcionando na frase como: sujeito; predicativo

do sujeito; aposto; objeto direto, objeto indireto; agente da passiva e adjunto adverbial.

DEH). Respeito retiraria da ética aquele caráter de dificuldade de ser acessível a

grande parte dos homens. Respeito garantiria à ética seu sentido. Respeito

permitiria o resgate e a defesa da cidadania. Respeito permitiria ao caramujo dar,

serenamente, acolhida, asilo e refúgio ao seu diferente, sem que tenha que se

espremer, cedendo parte de seu habitáculo ao outro. Respeito poderia ser uma

abertura na direção inversa ao relativismo ético e moral, como aquele encontrado

entre (sociedades) marginais, que parece apontar-se como ideal a ser atingido, na

medida em que, fazendo o que desejam por crerem ser justo, esbarram no e

destroem o desejo (de sobreviver) de outros. Respeito permitiria ao caramujo ações

no mundo real. Respeitar é ética em ação. Respeitar permite ao ser humano

encontrar-se no encontrar-se do outro: dis-ponibilidade afetiva como Befindlichkeit

(GENDLIN, 1978-79), discutido adiante.

Pesquisar tem seus percalços, mas também tem suas gratificações. Com

certeza encontrar respeito, e a multiplicidade de sentidos do elemento de

composição espec-, foi uma delas. Assim, poder-se-ia examinar respeito, agora pela

sua des-construção: re-spec. espec- elemento de composição antepositivo, de uma raiz i.-e. *spek- 'olhar com atenção, contemplar, observar', representada em lat. sob as f. spec, spic (por apofonia) e spect (com alongamento por t), já por um voc. raiz -spex,icis, us. como segundo termo de comp. conservados principalmente na língua augural: auspex, (h)aruspex etc. (ver auspic-, haru- e -spício), já pelo v. *specìo,is,spexi,spectum,specère 'perceber, olhar' (que praticamente só ocorre em compostos), dos quais derivam: 1) specìes,ei 'aspecto, aparência, forma, figura; vista, espetáculo, imagem; aspecto, fantasma; bela aparência, beleza' (donde speciósus,a,um 'belo, formoso'); 'pretexto, falsa aparência' (p.opos. a res 'a realidade'); 'gênero, espécie' (donde o lat.imp. speciális,e 'particular, especial' e o lat.tar. specifìcus,a,um 'específico, que determina a espécie'); 'mercadorias classificadas por espécies, drogas, especiarias'; 2) os subst. specùla,ae 'lugar de observação, atalaia; lugar elevado, altura, serra, torre etc.', donde o v. depoente specùlor,áris 'observar de lugar alto, estar de atalaia, estar de sentinela; estar com os olhos em, observar; seguir com os olhos, olhar, considerar; espreitar, espiar, observar (as ações alheias), fazer de espião' (com os der. speculátor,óris 'observador; batedor, explorador, espião; vigia, vigilante', speculatorìus,a,um 'de espião', speculatìo,ónis 'espionagem; o que vem contar um espião; contemplação', lat.tar. speculabìlis,e 'posto à vista, visível'), specùlum,i 'espelho' (com os der. speculáris,e 'de espelho; transparente', speculátus,a,um 'em que há espelhos, ornado de espelhos', specillum,i 'sonda; espelho pequeno'), specìmen,ìnis 'indício, marca; exemplo, modelo; imagem' e

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spectrum,i 'visão, espectro, fantasma, imaginação'; 3) o v. freqüentativo specto,as,ávi,átum,áre 'olhar repetidas vezes, contemplar, observar atentamente, ter os olhos fixos em' (ver espreit-), com os der. spectabìlis,e 'que está à vista, visível, notável', spectacùlum,i 'vista, aspecto, espetáculo; jogos públicos; lugares num espetáculo, camarotes; teatro', spectatìo,ónis 'ação de olhar, de ver; o olhar para, consideração; distinção', spectátor,óris 'contemplador, observador; espectador (no teatro); o que observa, examina; conhecedor, perito, bom julgador', spectatívus,a,um 'especulativo, contemplativo, teórico'; 4) adjetivos com sentido passivo em -uus (conspicùus,a,um 'exposto aos olhos, visível; distinto, ilustre', perspicùus,a,um 'transparente, diáfano, que permite ver através; claro, evidente, manifesto') e com sentido ativo em -ax (perspìcax,ácis 'clarividente, penetrante, agudo, inteligente, perspicaz ', suspìcax,ácis 'suspeitoso, desconfiado'); 5) diversos v. prefixados em -spicìo, -spìcis, -spexi, -spectum, -spicère (com freqüentativos em -spectare e der. nominais - ver -speto), entre os quais: aspicìo,is e aspecto,as 'olhar para', circunspicìo,is e circunspecto,as 'olhar em torno', conspicìo,is 'olhar, considerar', despicìo,is e lat.imp. despecto,as 'olhar de alto a baixo', exspecto,as 'esperar', inspecìo,is 'olhar em' e inspecto,as 'examinar', introspicìo,is e introspecto,as 'olhar no interior', perspicìo,is 'olhar através' e perspecto,as 'examinar atentamente, olhar até o fim', prospicìo,is e prospecto,as 'olhar adiante, ver diante de si; divisar', respicìo,is 'olhar para trás' e respecto,as 'tomar em consideração', suspicìo,is e suspecto,as 'olhar de baixo para cima, elevar o pensamento para, suspeitar'; note-se que a referida raiz i.-e. *spec- está representada tb. em germ. (ver 1espi); a cognação vern., extremamente rica, apresenta el. cultos e vulg., desenvolvendo-se desde as orig. do idioma: aspectável, aspectividade, aspectivo, aspe(c)to, aspectual, aspectualidade; aspiciência, aspiciente; circunspe(c)ção, circunspe(c)cionar, circunspe(c)to; conspe(c)ção, conspe(c)to/conspeito, conspicuidade, conspícuo; despeitado, despeitador, despeitamento, despeitar, despeito, despeitoso; despiciendo, despiciente; desrespeitabilidade, desrespeitado, desrespeitador, desrespeitar, desrespeito, desrespeitoso; espécia, especiabilidade, especiação, especiador, especial, especialidade, especialismo, especialista, especialístico, especialização, especializado, especializador, especializamento, especializante, especializar, especializável, especiamento, especiar, especiaria, especiário, especiável, espécie, especieiro, espécies, espécie-tipo, especificação, especificado, especificador, especificante, especificar, especificativo, especificável, especificidade, especificismo, especificista, especificístico, específico; especilho/especilo; espécime/espécimen, especione, especiosidade, especioso, espe(c)tacular, espe(c)tacularizar, espe(c)taculização, espe(c)táculo, espe(c)taculosidade, espe(c)taculoso, espectador, espectar, espectável; espeitamento, espeitar; espe(c)tral, espe(c)tralidade, espe(c)tralizar, espe(c)treliografia/espe(c)troeliografia/espe(c)tro-heliografia, espe(c)treliográfico/ espe(c)troeliográfico/ espe(c)tro-heliográfico, espectreliógrafo/espe(c)troeliógrafo/espe(c)tro-heliógrafo, espe(c)treliograma/espe(c)troeliograma/espe(c)tro-heliograma, espe(c)trificar, espe(c)trismo, espe(c)tro, espe(c)trobolômetro, espe(c)trocolorimetria, espe(c)trocolorimétrico, espe(c)trocolorímetro, espe(c)trofotografia, espe(c)trofotográfico, espe(c)trofotograma, espe(c)trofotometria, espe(c)trofotométrico, espe(c)trofotômetro, espe(c)trografia, espe(c)trográfico, espe(c)trógrafo, espe(c)trograma, espe(c)trologia, espe(c)trológico, espe(c)trometria, espe(c)trométrico, espe(c)trômetro, espe(c)tronatrometria, espe(c)tronatrômetro, espe(c)tropolarímetro, espe(c)tropolarizador, espe(c)troquímica, espe(c)troscopia, espe(c)troscópico, espe(c)troscópio, espe(c)troscopista, espe(c)trotelegrafia, espe(c)trotelegráfico, especula, especulação, especulador, especular, especulária, especularita, especulativa, especulativo, especulatória, especulatório, especulífero, especulita/especulite, espéculo; espelhação, espelhadiço, espelhadio, espelhado, espelhador, espelhamento, espelhante, espelhar, espelharia, espelhável, espelheiria, espelheiro, espelhento, espelhim, espelho, espelho-da-pá, espelho-de-vênus, espelho-do-corte; expe(c)tação, expe(c)tador, expe(c)tante, expe(c)tantismo, expe(c)tar, expe(c)tativa, expe(c)tatório, expe(c)tável; extrospe(c)ção,

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extrospe(c)tivo; inspe(c)ção, inspe(c)cionado, inspe(c)cionador, inspe(c)cionamento, inspe(c)cionar, inspe(c)cionável, inspe(c)tor, inspe(c)torado, inspe(c)toria, inspe(c)tório; inspe(c)trar, insuspeição, insuspeitado, insuspeitável, insuspeito, insuspeitoso; introspe(c)ção, introspe(c)cionismo, introspe(c)cionista, introspe(c)cionístico, introspe(c)tivismo, introspe(c)tivista, introspe(c)tivístico, introspe(c)tivo; irrespeitável, irrespeito, irrespeitoso; perspé(c)tico, perspe(c)tiva, perspe(c)tivação, perspe(c)tivado, perspe(c)tivante, perspe(c)tivar, perspe(c)tivável, perspe(c)tívico, perspe(c)tividade, perspe(c)tivismo, perspe(c)tivista, perspe(c)tivístico, perspe(c)tivo, perspe(c)tografia, perspe(c)tográfico, perspe(c)tógrafo, perspe(c)tômetro, pérspex, perspicácia, perspicacidade, perspicacíssimo, perspicaz, perspicuidade, perspícuo; prospe(c)ção, prospe(c)tar, prospe(c)tiva, prospe(c)tivismo, prospe(c)tivista, prospe(c)tivístico, prospe(c)tivo, prospe(c)to, prospe(c)tor; respe(c)tivo, respeitabilidade, respeitado, respeitador, respeitante, respeitar, respeitativo, respeitável, respeitivo, respeito, respeitoso, respício; retrospe(c)ção, retrospe(c)tiva, retrospe(c)tividade, retrospe(c)tivo, retrospe(c)to; subespécie, subespecificação, subespecificador, subespecificante, subespecificar, subespecificável, subespecificidade, subespecífico; superespecialização, superespetacular, superespetáculo; suspeição, suspeita, suspeitado, suspeitador, suspeitar, suspeitável, suspeito, suspeitosidade, suspeitoso; suspicácia, suspicacidade, suspicacíssimo, suspicaz 16 (DEH)

Parece significativo ressaltar e agrupar alguns sentidos encontrados nesse verbete por,

de alguma forma, contemplarem o modo como vem sendo apresentadas as questões de uma

possível articulação entre saúde e educação numa perspectiva de sua dimensão ética. Assim,

destacam-se olhar com atenção, contemplar, estar com os olhos em, posto à vista, visível, indício, marca, ação de olhar, de ver, o olhar para, consideração, distinção, ver através, claro, evidente, manifesto, agudo, perspicaz, olhar, considerar, olhar através, olhar adiante, ver diante de si, olhar para trás, desrespeitabilidade, desrespeitar, especial, especiar, especiável, espe(c)taculosidade, espe(c)taculoso, espectador, espectar, espectável, espe(c)tro, especulativo, espelhante, espelhar, extrospe(c)tivo, introspe(c)tivo, irrespeito, perspé(c)tico, perspe(c)tiva, perspe(c)tivo, prospe(c)tivo, respeitabilidade, respeitado, respeitador, respeitante, respeitar, respeitativo, respeitável, respeitivo, respeito, respeitoso, retrospe(c)tivo.

Tanto a prática de saúde quanto a de educação percorrem o olhar com atenção àquilo

que se faz visível por marcas ou indícios, a fim de que se contemple, por essa ação de ver

perspicazmente, o manifesto e olhá-lo através de consideração. Implica em especiar aquilo

que se evidencia como especial espectável como algo que espelha, retrospectiva e

prospectivamente, uma outra perspectiva de considerar algo outro como possível. A ação

educativa e a prática clínica como intervenção compreendem esse modo de ser de se fazer vir

entre o que se mostra como instigante. Atenção, acolhimento e cuidado poderiam constituir-se

como, a partir de um estar com olhos em algo ou alguém, olhar para trás para ver adiante e

diante de si a marca do que merece ser considerado com re-spe(c)itabilidade na sua

espectaculosidade. Ambas dizem de uma ação ética, com atenção e cuidado.

16 Grifos meus.

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Quero, aqui, enfatizar que, pelo compreendido até este ponto, na minha óptica,

respeito seria condição para originar qualquer carta de princípios, ética ou moral, partindo-se

do real sentido da experiência. A leitura que faço daquilo que me circunda (minha realidade, a

realidade de minha cidade, de meu estado, de meu país, do mundo, as informações que recebo

através de diferentes mídias), revela quanto falta de respeito, quanto des-re-spe(c)ito existe

entre os homens. Acredito mesmo que se trata de um des-re-speito para com as diversas

formas de manifestação de dignidade do sujeito, ameaçado de não ser visto de novo por uma

gama de lados ou perspectivas diferentes. De onde angariar segurança se não há

respeito/referência pela dignidade? (E, infelizmente, é preciso que se diga que isto começa

pelo Estado... e termina no vizinho). Avizinho-me, pois, do verbete com respeito. 17 dignidade lat. dignìtas,átis 'merecimento, valor, nobreza'; ver dign(i)- dign(i)- elemento de composição antepositivo, do lat. dignus,a,um 'digno de, conveniente a; que merece; justo, honesto', cog. do v.lat. decet,bat,uit,ére 'convir' (ver dec-) e semanticamente conexo com o gr. áksios,a,on (ver axio-); ocorre em voc. já orign. latinos, já formados à sua feição, introduzidos no vern. a partir do sXIII: dignação, dignante, dignar, dignável, dignidade, dignificabilidade, dignificação, dignificado, dignificador, dignificante, dignificar, dignificativo, dignificatório, dignificável, digníssimo, dignitário; ocorre tb. em formas pref.: condignidade, condigno; dedignabilidade, dedignação, dedignado, dedignador, dedignante, dedignar, dedignável; indignação, indignado, indignante, indignar, indignativo, indignatório, indignável, indignidade, indignificação, indignificado, indignificante, indignificar, indigno, indignoso; a cognação inclui ainda desdém e derivados, ver desden-18 (DEH)

concentrando-me nos elementos de composição que merece, justo, dignificabilidade,

condigno, percebo que se referem a algo do humano que diz de seu valor e de seu

modo de ser na justeza e na conveniente propriedade. Novamente a questão do

respeito parece estar implicada, principalmente se se fizer uma remissão ao semanticamente conexo com o gr. áksios,a,on (ver axio-) elemento de composição,

antepositivo, do gr. áksios,a,on 'ponderável, valioso; digno, que merece; conveniente'; e

ainda a (ver dec) elemento de composição; antepositivo, do v.lat. dècet,decébat,decuit,ére

'convir, ser conveniente, decente, decoroso'; a decet ligam-se os subst. decus,òris 'ornato,

enfeite' e decor,óris 'decência, decoro', e o adj. dígnus,a,um 'digno de, conveniente a' (ver

dign(i)-) (DEH). Nessa medida, a ausência dessa propriedade entre os homens

revela-se como uma possibilidade de perda de sentido.

Sem dúvida, no contato cotidiano, pessoas têm se queixado das incertezas e de como

se sentem inseguras, ameaçadas, ansiosas, angustiadas (lat. angustìa 'curteza, brevidade; carestia, 17 Para uma idéia do des-respeito na atualidade, veja a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Anexo 2 18 Grifos meus.

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escassez, misérias, apuro; desfiladeiros', de angustus,a,um 'estreito, apertado; curto de pouca duração',

de angère 'apertar, afogar, estreitar'; ver ang-, DEH). Curteza, brevidade, carestia, escassez,

misérias, apuros, desfiladeiros a serem transpostos, parecem caracterizar os males deste

Zeitgeist,19 no qual os sujeitos (lat. subjectus,a,um 'posto debaixo, colocado, situado abaixo'; 'posto

diante, exposto a; subordinado, submetido, sujeito, dependente; que está à mão, à disposição, que está

pronto; acrescentado, colocado depois; colocado perto, próximo, vizinho; substituído, falsificado;

levado para cima') estão sendo submetidos a diversos tipos de asfixia (gr. asphuksía,as 'falta de

pulso, asfixia', de a- 'privação, negação' + gr. sphúksis,eós 'batimento do pulso'), para que suas

pulsações/paixões/afetação baixem. E os agentes asfixiantes não estão preocupados se a dose

de asfixia que promovem for letal, visto que ela estaria eliminando “apenas mais um”.

Vulgarização e banalização do sujeito e de sua vida são formas do des-respeito atual entre

homens.

O conceito respeito trata da forma como se age em contato com o diferente (lat. diffèro,differs,distùli,dilátum,differre 'espalhar, semear, espedaçar, agitar, abalar, difamar,

retardar, dilatar, diferir', DEH). Assim, tendo em vista a etimologia de diferente, não é

difícil compreender o quanto o diferente atrapalha, incomoda, pois implica em

implícita perda de controle. Uma das formas mais eficientes de não dar ao diferente

este poder, é desconsiderar, desrespeitar sua diferença por exclusão, ignorando-o.

Deixar de confirmar (lat. confirmo,as,ávi,átum,áre 'fortificar, consolidar, confirmar', DEH)

alguém, des-confirmá-lo é, sem dúvida, um eficiente mecanismo de controle, ou

descontrole, dependendo da perspectiva pela qual se examine a questão, bem como

uma das mais contundentes formas de agressão entre os homens. ARENDT (2001,

p. 12), discutindo a condição de con-vivência humana, diz:

E tudo que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido. Haverá talvez verdades que ficam além da linguagem e que podem ser de grande relevância para o homem no singular, isto é, para o homem que, seja o que for, não é um ser político. Mas os homens no plural, isto é, os homens que vivem e se movem e agem neste mundo, só podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser inteligíveis entre si e consigo mesmos.

Pode-se pensar que o termo público, para ARENDT (2000 e 2001), significa,

primordialmente, o âmbito em que o homem ganha aparência, podendo, portanto,

ser visto e ouvido por todos e por si mesmo, na medida em que se mostra no seu

19 Zeitgeist, de Geist=espírito e Zeit=tempo, indicando o espírito vigente em determinado tempo histórico. N. do A.

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dizer e agir. Para ela, esse aparecer é o que constitui a realidade do homem e do

mundo. Isto porque a esfera pública implica em consistência, visibilidade e

estabilidade à palavra e à ação do homem que, por serem factuais, são tão

efêmeras e transitórias. Nesse sentido, vida ativa, para ARENDT (2000), refere-se

ao fazer no mundo onde homens vivem juntos, à experiência humana realizada no

percurso da existência. Nesse sentido, ação, na ótica arendtiana, aproxima-se de

práxis em BENJAMIN (1985), por referir-se aos negócios humanos, finitos, e não ao

lugar da atividade política no sentido usual do termo.

Assim, a fim de encerrar, neste momento, uma possibilidade de aproximação

entre saúde e educação, seria válido consultar o verbete negócio, para buscar uma

vereda para essa articulação. A perspectiva orienta-se pelo sentido comunicado por

ARENDT e BENJAMIN acima.

negócio trato mercantil; comércio (2) local onde se realiza esse trato; loja, empresa, casa comercial (3) assunto de interesse empresarial e financeiro (4) assunto a ser resolvido; pendência (5) algo de que não se sabe ou não se lembra o nome; qualquer coisa (6) transações comerciais, contratos, ajustes, acordos entre pessoas, empresas ou países [lat. negotìum,ìi 'ocupação, trabalho'; ver oci-] oci- elemento de composição antepositivo, do lat. otìum,ìi 'tempo de repouso, lugar de repouso, retiro, lazer, inação' (p.opos. a negotium 'ocupação, trabalho; embaraço, dificuldade'); 'paz, tranqüilidade' (p.opos. a bellum 'guerra' - ver bel(i/o)-);20 a cognação lat. inclui otiósus,a,um 'ocioso, desocupado; tranqüilo, calmo', lat.tar. otiosìtas,átis 'ociosidade; vagar, horas vagas', inotiósus,a,um 'não desocupado, sempre ocupado' (trad. de Quintiliano [c30-c100] para o gr. áskholos, ver escol-), negotìum,ìi (< nec + otium) 'ocupação, negócio', donde 'dificuldade, embaraço; coisa, caso'; por eufemismo designa 'coisa ou ato que não se queira nomear expressamente' (donde os der. negotiári 'comerciar, negociar; ser negociante, traficar', negotiátor,óris 'negociante, banqueiro; empreendedor, especulador; comerciante', negotiatìo,ónis 'negócio, comércio, trato comercial; banco, função de banqueiro', negotìans,antis 'negociante, banqueiro', negotiális,e 'relativo a um negócio; prática', negotiósus,a,um 'ocupado com muitos negócios, azafamado, atarefado; embaraçoso, difícil'; a cognação vern. desenvolve-se desde as orig. da língua: inegociabilidade, inegociável; inociosidade, inocioso; irrenegociabilidade, irrenegociável; negociabilidade, negociação, negociado, negociador, negocial,

20 bel(i/o) do lat. bellum, ‘guerra’ e bon- elemento de composição: antepositivo, do lat. bonus,a,um 'bom, boa' (cujo comparativo e superlativo são de outra raiz, melìor e optìmus, ver melh- e op- ), que se opõe a malus,a,um (ver mal- ); o adv. lat. bene 'bem' e seu der. benignus,a,um 'bom de natureza', bem como o adj. bellus,a,um 'belo, bela, bonito, bonita', pertencem à mesma raiz; são da mesma cognação: 1) do rad. bon-, port. boa (e comp. como boa-fé, boa-formação etc.) (DEH).

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negocialidade, negociamento, negociante, negocião, negociar, negociarrão, negociata, negociável, negócio, negocioso, negocismo, negocista, negocístico; ócio, ociosidade, ocioso; renegociabilidade, renegociação, renegociado, renegociador, renegociar, renegociável 21 (DEH)

Novamente, destacando apenas alguns elementos, podem-se apontar: acordo entre

pessoas, tempo de repouso, lugar de repouso, retiro, lazer, ocupação, trabalho, paz, tranqüilidade,

tranqüilo, calmo, não desocupado, sempre ocupado, relativo a um negócio, prática, negociabilidade,

negociar, negociável, renegociável. Na medida em que saúde e educação dizem respeito à práxis

humana na con–vivência, tratam de acordos entre pessoas, pré-ocupadas em promover uma

ambiência de dignibilidade para o bem estar merecido dos homens, respeitando,

negociavelmente, uma política para o tempo conveniente entre lazer, propriciador de

tranqulidade e paz (ócio) e ocupação (eskol) e trabalho.

Nessa especulação, saúde e educação podem se aproximar, apesar de diferentes.

Podem se aproximar mantendo sua diferença, com ou sem re-spe(c)ito. Sem respeito, de-

batem-se sem sentido. Com respeito, podem constituir-se como casal (aquele que constitui

casa, morada), referência pertinente de ética a partir da delimitação da propriedade de cada

um. Desse modo, a ação originária de tal ambiência ética apresentar-se-ia como pertinente aos

negócios humanos: política responsável pela manutenção do sujeito e de sua existência em

con-vivência. Educa-são poderia vir a denominar-se vitagogia (de vitalis, vida, + agein,

conduzir)?

2.4 Gestaltpedagogia

O termo “Gestalt” não pode ser descrito através de um único termo do idioma inglês. Ele cobre uma série de termos aparentados, como aparição, forma, figura, configuração, unidade estrutural, uma totalidade que é mais, ou algo diferente, que a soma de suas partes. Uma figura emerge do fundo, ela “existe”, e a relação entre esta figura e seu fundo é aquilo a que denominamos de “sentido”. Se esta relação for apenas fraca, ou não existir, ou se nós – seja por qual razão (cultural, pedagógica) for – não estivermos em condições de reconhecê-la, diremos: “Isto não tem sentido”, é absurdo, bizarro, sem significado (PERLS, L., 1989, p. 97)

Falar da Gestalt (entenda-se Psicologia da Gestalt, Gestalt Terapia e

Gestaltpedagogia) é falar de mim mesmo. Meu primeiro contato com ela se deu a

partir da proposta de tradução de um livro (BUROW & SCHERPP, 1985) que, na

21 Grifos meus.

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utilizado há cem anos, tem um sentido muito mais amplo, impossível de ser contido

em uma única palavra. Acredito que o segmento de um ensaio de 1931 de Thomas

MANN, denominado “Die Wiedergeburt der Anständigkeit” (“O Renascimento da

Anständigkeit”), no qual ele se defende contra agressões, às quais estava sujeito

pelo fato de ter assinado um manifesto de paz e entendimento juntamente com

intelectuais franceses, possa dar um exemplo da amplitude deste termo. Neste

ensaio diz: Em nossa Alemanha irracionalmente persuadida se crê que um poeta faça concessões quando coloca sua palavra a serviço de objetivos tão esclarecedores. Antes de tudo, se crê imediatamente que ele não sabe nada de nenhum outro, conhece e incorpora nada além de intelecto e conscienciosidade; pois se confunde o momento com a vida, uma ação moral com a personalidade da qual provém, se isola esta ação, pelas partes esquece-se o todo (se é que alguma vez se tenha tido uma noção deste) e se mantém como certo que, onde uma vontade por razão e ordem se manifeste, não poderia existir uma criação poética, não poderia jamais ter existido uma, e seria necessário apenas aparecer com a profunda correnteza das forças da presunção psíquica para – que oportunidade! – evidenciar toda a sua supremacia vital sobre o tagarela magro como um caniço (MANN, 1931).

Conto este fragmento de história familiar, não para fazer a apologia desta

escola de pensamento, mas para poder tentar passar adiante a dimensão do meu

envolvimento com a Gestalt e com as proposições e reflexões que propõe. Afinal,

sou brasileiro, muito me orgulho disso, e o trabalho que tenho desenvolvido na

minha trajetória profissional visa fazer com que esses valores, tendo em vista

espaço geográfico e tempo histórico diferentes, possam encontrar um lugar aqui e

em todo mundo.

A Gestalt para mim é mais que uma simples abordagem psicoterapêutica ou

pedagógica; é uma forma de ver e viver o mundo e a vida intensamente. Considero-

a uma referência extremamente potente e útil para trabalhar onde houver relações

humanas, ou seja, na psicoterapia, nas escolas, nas empresas, nos mais diversos

meios sociais, como por exemplo, no trabalho que desenvolvi para a capacitação

profissional de Educadores de Rua. Estou envolvido com a Gestalt seja na vida, seja

ensinando-a, seja utilizando-a para ensinar, seja como psicoterapeuta ou facilitador

de grupos.

Considero a Gestalt Terapia e a Gestaltpedagogia como extremos de uma

mesma polaridade, em cuja faixa central ambas têm importantes contribuições a dar,

uma vez que é objetivo de ambas o crescimento e desenvolvimento humanos. Nas

extremidades da polaridade, encontram-se as especificidades da terapia e da

pedagogia. Por toda essa experiência tácita e explícita, é muito difícil poder

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distinguir, com clareza, os limites entre terapia e aprendizagem. E, também por isso,

dedico-me a estudar essa interface entre o terapêutico e o pedagógico, como já dito

nos capítulos anteriores.

Fundada nos princípios norteadores da Gestalt Terapia, concebo a

Gestaltpedagogia como uma espécie de vetor de saúde e educação, pois visa

transmitir conhecimentos necessários à vida, com certo grau de ação enquanto

possibilidade terapêutica. Esse grau é determinado pela dimensão de profundidade

que alcança na estrutura de personalidade da população que atende; restringe-se à

capacitação para o contato do sujeito consigo próprio e para com o meio, não

enveredando pelos meandros do psiquismo, mas abordando e repercutindo

questões relativas à existência. Desta forma, colocando ainda em questão conceitos

existencialistas para sua clientela, promove uma ação psicoprofilática.

Historicamente a Gestalt recebeu, e ainda recebe, severas críticas por ser tida

como uma proposição pouco séria, que promove grandes “happenings”, sem um

respaldo teórico estruturado. Laura PERLS discute as razões disto: Desafortunadamente, aquilo que é conhecido e praticado nos círculos como Gestalt Terapia, é principalmente o método que Fritz Perls utilizou nos últimos anos de sua vida em workshops de demonstração. A dramatização de sonhos, a identificação com todas as partes do sonho e a dramatização como sendo cada uma das partes do sonho, é uma forma de demonstração muito impactante, e Fritz Perls utilizava isto com habilidade e sensibilidade, suportadas por 70 anos de experiência. A aplicação deste método como “a” técnica psicoterapêutica sem uma total atenção às necessidades específicas e limitações da situação atual, é superficial, simplista, mecânica, manipulativa e inautêntica. Um gestalt-terapeuta não utiliza técnicas; ele utiliza a si próprio numa e para uma situação, com suas habilidades profissionais e com sua experiência de vida, que ele acumulou e integrou. Existem tantos estilos terapêuticos quanto existem terapeutas e clientes, que descobrem a si mesmos e mutuamente, e que inventam sua relação em conjunto. (PERLS, L., 1989, p 99 - 100)

Atuando como gestaltista há muitos anos nos âmbitos terapêutico e

pedagógico, partilho da opinião de Laura Perls de que a Gestalt não utiliza e não

possui técnicas prescritas. Não me lembro de ter utilizado a mesma “técnica” duas

vezes. As ações são, uma a uma, “confeccionadas sob medida” para o cliente no

momento atual. Este é, para mim, um dos grandes atrativos da Gestalt, pois me

permite permanecer ao que denomino “um passo atrás”, podendo “ler” a situação e

criar intervenções que considere adequadas tanto para o cliente em questão, quanto

coerentes com a complexidade de sua teoria, que sempre fornece um crivo possível.

Se a intervenção que crio passa por este crivo, permito-me utilizá-la. Caso contrário,

procuro alternativas, criando algo diferente, e assim sucessivamente. Além desse

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crivo teórico, há um crivo prático: quando vou fazer uma intervenção, pergunto-me a

quem a intervenção interessa; se interessar a mim, mudo, pois ela não diz respeito

ao que se propõe, ao passo que, se interessar ao cliente, executo-a.

Vista por muitos como uma “colcha de retalhos”, a Gestalt é, de fato, uma

abordagem psicoterápica/educacional muito complexa, inspirada em fontes diversas,

porém harmônica e bem estruturada, graças ao trabalho iniciado por Fritz e Laura

Perls, Paul Goodman, e posteriores seguidores e herdeiros. Este caráter

psicoterapêutico/educacional pode ser claramente reconhecido e visto no livro

“Gestalt Terapia” (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1998).

Sempre que perguntado “o que é a Gestalt?”, percebo-me comprometido com

algo do qual nem sei por onde começar, visto serem muitas as “entradas”. Talvez,

um bom começo seja o começo de fato, pela Psicologia da Gestalt, que estuda

profundamente os fenômenos da percepção humana. A seguir, sem dúvida viria a

Teoria Organísmica, proposta por Kurt Goldstein, por apresentar uma visão de

homem e existência de um fantástico alcance, ainda que, por muito tempo, houvesse

sido esquecido, por suas idéias ousadas demais para o seu tempo. Contudo,

recentemente vêm sendo retomadas e muito valorizadas, como pode ser visto na

homenagem que Oliver SACKS presta a ele na introdução de The Organism

(GOLDSTEIN, 1995). Outra influência notável para a Gestalt Terapia é o holismo de

Jan Smuts, filósofo, general do exército sul-africano e um dos fundadores da

organização das Nações Unidas. Mas, não podem ser omitidas as influências da

Teoria de Campo de Kurt Lewin, do Psicodrama de Jacob Moreno, da ênfase na

dimensão das couraças do corpo, advinda da Análise do Caráter de Wilhelm Reich,

bem como da relação dialógica de Martin Buber e das práticas meditativas orientais,

que Fritz Perls foi conhecer e experienciar em suas viagens para o Oriente. Tudo

isto sem deixarmos de considerar o pano de fundo filosófico através da

Fenomenologia e do Existencialismo. Porém, como este trabalho não se propõe a

relatar nem reconstituir a história/trajetória da Gestalt, não entrarei em minúcias.

Para os interessados nessa questão, sugiro a leitura de CLARKSON & MACKEWN

(1993), além da bibliografia constante na seção competente deste trabalho. No

entanto, quero, apenas, ainda ressaltar como os escritos de Carl Rogers foram

preciosos para a compreensão da atitude do gestalt-terapeuta, no sentido de

descobrir a forma própria que cada um como terapeuta tem.

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Em 1977, Hilarion Petzold, russo radicado na Alemanha, iniciou um trabalho

de transposição dos princípios gestalt-terapêuticos para uma abordagem

pedagógica, à qual denominou Gestaltpedagogia22. Desde meu primeiro contato

com a Gestaltpedagogia, suas proposições me intrigavam, pois chamava a atenção

o fato de que elas pareciam psicoterapêuticas além de pedagógicas. A partir de

então, surgiu um indagação: o cerne de um processo terapêutico não seria o

aprender a estar consigo próprio? Em contrapartida, o cerne de um processo

educativo/pedagógico seria conquistar, a partir desta saúde, uma dignidade para se

poder viver a vida de forma satisfatória, tão digna e prazerosamente quanto fosse

possível dentro do contexto da existência de cada um? Tratar-se-ia da conquista e

manutenção da cidadania, tendo como parâmetro o respeito pelo diferente, o

respeito pelo outro.

Compreendo que poderia ser por este ponto que a Gestalt revelaria seu

caráter político, claramente de inspiração anarquista pela influência de Paul

Goodman na Gestalt. Tal posicionamento rendeu-me muitas críticas: desde um

modo de “psicologização” da escola, até a acusação de que eu estaria propondo a

extinção das clínicas psicoterápicas, pois os alunos de uma tal proposta pedagógica

não teriam, então, mais necessidade de procurar por psicoterapia.

No entanto, minha tentativa, a partir de tal argumento, era apenas ressaltar

como essa proposta poderia implicar a pertinência de conceitos ligados à psicologia

para a escola. Agora, acredito que a significância dessa perspectiva refira-se mais a

uma “despatologização” do psicológico habitual, na medida em que insere, no

cotidiano escolar, práticas que acarretariam um significativo aumento da

possibilidade de o indivíduo prosseguir em sua existência de forma saudável, com

recursos para enfrentar situações de crise futuras.

Como discuti anteriormente, o diferente se torna realmente ameaçador e

sinônimo de perda de controle, fazendo-se, assim, revelador da (im)possibilidade de

respeito por parte de profissionais assustados. Isto poderia ser uma situação para a

inexeqüibilidade da ética, frente a ausência de respeito, pois, para além das

competências e disputas entre os vários profissionais, mostraria um desrespeito,

acima de tudo, para com aquele a quem cuida. Tal fenômeno faz-se presente em

quase todas as interfaces profissionais, podendo ser considerado como seu

22 Para detalhes, ver BUROW & SCHERPP, 1985 e BUROW, 1988.

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Leitmotiv (sua razão de ser), quase que invariavelmente, a “ameaça financeira”

individual, característica da vida pós-moderna. Assim, procede pensar-se em

ausência de Anständigkeit.

Constantemente confrontada com questões que tangem tanto a saúde quanto

a educação, a Gestaltpedagogia emergiu como uma alternativa que pretendia

responder a estes fenômenos. Suas proposições teóricas e práticas visam devolver

ao indivíduo a possibilidade de resgate de si mesmo, de forma a poder experienciar,

tanto quanto lhe seja possível, sua vida conforme seus anseios e juízos. Trata-se de

uma proposta pedagógica que propõe que o aprendizado ocorra pelo experienciar

de si mesmo, do mundo, dos recursos pessoais, conduzindo à conscientização e

auto-conhecimento.

Como forma de comunicar essa proposição, aprento, abaixo, o Modelo

Didático da Gestaltpedagogia, segundo BUROW, QUITMANN e RUBEAU (1987, p.

27). Note-se que há três circunferências, representando as três esferas nas quais

acontece a aprendizagem. Tais esferas estão divididas ao meio por uma linha

tracejada. A metade acima desta linha refere-se a uma descrição do que elas

representam e a metade abaixo destas linhas ao que deve ser feito para que se

alcancem seus objetivos.

Aprender significa Vivência e Comportamento no Aqui-e-Agora, dividido em

três porções: pensar, sentir e lidar. De cada uma destas atividades, sai uma seta que

indica a circunferência relativa a elas.

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Por Aspecto Específico, entendem-se os conteúdos das diversas disciplinas,

a interrelação existente entre elas, sua relação com o mundo dos alunos. Por

Didática Específica, entendem-se meios e formas adequadas de lecionar

determinada disciplina.

Por Aspecto Político-Social, entende-se desde o meio social, caracterizado na

sala de aula, até o país no qual determinada escola se encontra, passando por

características de bairro, cidade, estado. Tais variáveis influenciam tanto aluno,

quanto instituição, quanto professores, pois é neste determinado meio que vivem e

trabalham as diversas pessoas envolvidas com a escola; é também neste meio que

o aluno vai aplicar o conhecimento que adquire. Tais variáveis determinam

econômica e culturalmente estas pessoas.

As Condições Institucionais dizem respeito à característica que a escola tem,

como o seu espaço físico e diretrizes, impostas pela direção. Nesta esfera, também

está incluída a relação destas pessoas com o mundo, em termos de ecologia. A

estes assuntos corresponde uma didática.

As duas primeiras esferas são mediadas pela esfera central, relativa ao

Aspecto Psicológico. Engloba os Conteúdos de História de Vida dos alunos (sua

história, suas vivências, suas marcas e as consequências delas), a Dinâmica do

ASPECTO POLÍTICO- SOCIAL

- Meio social e ecológico

-Condições institucionais

DIDÁTICA POLÍTICA

Métodos da didática política

ASPECTO PSICOLÓGICO

- Conteúdos de históriade vida

- Dinâmica do grupo- Situação atual

individual

DIDÁTICA PSICOLÓGICA

Métodos da Gestaltpedagogia

ASPECTO ESPECÍFICO

Conteúdo de cada matéria(e sua relação com o todo)

DIDÁTICA ESPECÍFICA

Métodos da didática específicapara cada disciplina

Conexãoentre

aprendizadoespecífico

epessoal

Conexãoentre

aprendizadopolítico

epessoal

VIVÊNCIA E COMPORTAMENTO NO AQUÍ-E-AGORA (Pensar, Sentir, Lidar)

CRESCIMENTO DA PERSONALIDADE

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Grupo (história, características, configuração, estado atual) e a Situação Atual

Individual, referente a como o aluno se encontra, em determinado momento, em

termos de sua história e das vivências recentes. Lidar com essas variáveis implica

numa Didática Psicológica.

As duas “lentilhas”, formadas pela sobreposição das esferas, correspondem

respectivamente à Conexão entre Aprendizado Específico e Pessoal e à Conexão

Entre Aprendizado Político e Pessoal. Para que, dentro da perspectiva

gestaltpedagógica, ocorra um aprendizado, o aluno terá que ter conseguido

processar o conteúdo das três esferas no tocante a determinado assunto, o que

resultará não apenas numa aprendizagem, mas também num desenvolvimento da

personalidade, sinal de que a aprendizagem foi bem sucedida e de que o aluno

assimilou um conhecimento, e não simplesmente o justapôs a si próprio. Findo este

ciclo, o aluno está pronto para voltar ao início do ciclo, atendo-se agora a outro

ponto a ser aprendido.

Desde o meu primeiro encontro esse Modelo da Didática Gestaltpedagógica,

fiquei muito intrigado, pois ele parecia conter muito mais que a princípio se

propunha. Com o passar do tempo, fui vislumbrando nele a possibilidade de algo

complexo (lat. complexus,a,um part. pas. de complecti 'cercar, abarcar, compreender',

DEH), e de duplo sentido: a) algo abrangente, que poderia ser pensado e estendido

de forma a abarcar também a dimensão da saúde (física e mental), principalmente

se considerado em termos da Abordagem Holística de Goldstein; e b) como

contraposição às concepções que empregam, como “mote”, a análise (gr.

análusis,eós 'dissolução; método de resolução (por opos. a síntese)', do v. analúó 'desligar,

dissolver, soltar, separar, libertar, analisar, examinar', talvez por infl. do fr. analyse (1578)

'id.'; ver –lise, DEH). Dessa forma, depois de realizar trabalhos ancorados nessa concepção, fui

acalentando a idéia de que, talvez, pudesse re-presentar uma aproximação entre

saúde e educação, compreendendo-as como indissoluvelmente articuladas. Nesse

sentido, como indícios para uma tal construção, nomino, a seguir, os princípios

norteadores da Gestaltpedagogia, apresentados e discutidos em LILIENTHAL

(1997a).

Princípio da Concentração Sobre o Contato Princípio do Estímulo à Consciência (Awareness)

Princípio do Aquí-e-Agora Princípio do Estímulo ao Auto-Suporte

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Princípio da Responsabilidade Princípio do Aprendizado pela Experiência

Princípio da Espontaneidade Princípio da Gestalt Fechada

Princípio da Integração Princípio da Sinergia

Princípio da Centralização Sobre a Pessoa Princípio do Aprender e Ensinar Dialógicos

Revejo algumas considerações que teci, por ocasião do desenvolvimento das

atividades com os Educadores de Rua, a respeito dos profissionais envolvidos com

saúde e educação em suas práticas profissionais. Assim, retomo aqui discussões desenvolvidas em trabalhos anteriores (LILIENTHAL, 1989 e LILIENTHAL, 1993), nas quais defendo que a fronteira entre os papéis de terapeutas e professores/educadores é muito tênue e de difícil definição. A definição é muito mais caracterizada por papéis atribuídos e conquistados e por uma priorização de temáticas que por qualquer outra coisa. Faço neles, também, uma reflexão de que, se as escolas contassem com profissionais bem preparados para uma real promoção do crescimento e desenvolvimento pessoais de seus alunos, os consultórios dos psicoterapeutas iriam estar possivelmente mais vazios ou veriam modificada a sua procura em termos do perfil daquele que os procura. A tônica nos consultórios seriam os processos de desenvolvimento e crescimento pessoal que de alguma maneira não deram certo e não a falta de recursos próprios adequadamente desenvolvidos para tal. (...) Psicólogos têm em sua formação profissional uma grande carga de conhecimentos da Pedagogia, da mesma forma que os pedagogos têm uma grande carga de conhecimentos da Psicologia. O fato é que existe uma grande disputa entre estas duas categorias profissionais em defesa de seu "território" (ou seja, corporativismo). Isto parece ser devido muito mais a uma disputa de poder do que em função de um trabalho bem feito que vise um Ser/cidadão em condições de levar sua vida da melhor maneira possível, ou seja, esta questão também diz respeito à ética. Vejo a díade Pedagogia-Psicologia como uma polaridade na qual a maioria de seus participantes se preocupa mais com o "ou" que com o "e". Ou seja, existem questões específicas que pertencem claramente à Pedagogia ou à Psicologia, questões dos extremos desta polaridade. No entanto a maioria das questões refere-se à gradação ou contínuo existente entre elas. Nada mais justo que ambas se ocupem destas questões. (...) Retomando questões acima discutidas em termos de dialogia (com o sentido de relação dialógica), parece-me serem psicólogos e pedagogos alguns dos profissionais envolvidos no estabelecimento de uma paulatina dialogia entre as diversas camadas e segmentos sociais. Entendo psicólogos e pedagogos como uma espécie de cientistas e ativistas sociais, especializada na promoção de relações interpessoais e conhecimento, e não na geração de relações ditadas por aspectos econômicos. (LILIENTHAL, 1999, p 271-272)

Defendia eu, naquela oportunidade, a posição de que educação e saúde

teriam que, necessariamente, andar juntas e de braços dados, ao passo que, nos

dias atuais, concebo educação e saúde claramente como podendo expressar uma

complementaridade, ensejando, quem sabe, um outro sentido. No tocante à

dialogia, compreendia-a como diálogo entre os diversos segmentos sociais, sem

diferenciações entre “melhor/pior”, “alta/baixa”, “direita/esquerda”, “oficial/marginal”,

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“superior/inferior”, ou quaisquer posicionamentos semelhantes ou análogos.

Contudo, seria importante não se perder, com ela, uma possível dimensão

homogeneidade/igualdade enganosa, pois, caso contrário, implicaria numa

sustentação argumentativa impossível.

Conduzindo-me por esse olhar, ainda penso que seria pertinente apresentar

mais alguns elementos que permitiram encaminhar tais aproximações iniciais entre

saúde e educação. Trago uma citação de LEWIN que indicaria como seria uma

possibilidade de ação em que, recorrendo-se ao termo reeducação, poderia apontá-

lo na direção de psicoterapia.

Em toda situação, não podemos deixar de agir de acordo com o campo que percebemos; e nossa percepção se estende a dois aspectos diferentes desse campo. Um tem a ver com fatos, outro com valores. (...) Quando agarramos um objeto, o movimento de nossa mão é dirigido pela posição em que o percebemos em nossa vizinhança igualmente percebida. Da mesma forma, nossas ações sociais são orientadas pela posição em que nos percebemos a nós e aos outros. A tarefa básica da reeducação, portanto, pode ser considerada a de alterar a percepção social do indivíduo. Unicamente por meio dessa mudança da percepção social é que é possível realizar mudanças na ação social do indivíduo. (LEWIN, 1973, p 77)

Esta afirmação de LEWIN remeteria à discussão, promovida pela Psicologia

da Gestalt, a respeito dos fenômenos da percepção, questão central tanto para a

Gestalt Terapia quanto para a Gestaltpedagogia. Para ambas, seus respectivos

objetivos podem ser alcançados com uma mudança perceptual, ou seja, por uma

visada nova, pelo menos em forma se não em teor. Nessa perspectiva, o conceito

central promotor dessas mudanças seria o de awareness, a ser discutido mais

adiante, dada uma possível aproximação dessa compreensão gestáltica ao

“encontrar-se” (Befindlichkeit), na fenomenologia existencial, segundo Gendlin

(1978-79).

Apresentado um tal panorama, pode-se perceber como meu ponto de vista

encaminhava-se para considerar a Gestaltpedagogia apropriada para trabalhos que

visassem promover ações envolvendo saúde e educação. Contudo, gostaria de que

esta questão fosse mantida, por enquanto em aberto, para ser retomada, revisada e

discutida no decorrer deste trabalho.

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3. ARTICULANDO ALGUMAS POSSIBILIDADES ENTRE COMPREENSÃO E AÇÃO Após ter buscado na cultura e na etimologia algumas possibilidades de

articulação entre saúde e educação, a fim de encontrar sentido para uma prática

psicológica em ação, viso, agora, encontrar alguma ancoragem em autores e

propostas práticas que dizem respeito a essa perspectiva. No limiar do fim deste

século, marcado por arranhões constantes no narcisismo da Psicologia enquanto

ciência e prática, pergunta-se e investigam-se algumas possibilidades de superação

do que se compreende como crise, sofrimento ou desamparo deste conhecimento.

Mais ainda, busca-se investigar se tal situação crítica ou desamparada pode

ser considerada como uma especificidade ou se também é perpassada por

ingerências sociais, desencadeadoras de esgarçamento do tecido institucional. Para

isso, trabalhos de teóricos e pesquisadores podem ser re-visitados para encontrar

sentido a práticas psicológicas, voltadas para a demanda social e à formação de

docentes, pesquisadores e profissionais em Psicologia Clínica, como possibilidade

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de promoção e responsabilidade social de futuros multiplicadores para a

comunidade.

Neste momento, parte-se da insuficiência da prática psicológica na

experiência clínica, buscando compreender o mal-estar contemporâneo, apontado,

insistentemente, como sofrimento humano atual num mundo conturbado. Reflete a

época de transição de paradigmas científicos, atitudes fundamentalistas e niilistas

ao lado da globalização da economia, avanços tecnológicos propiciadores de

intensa aproximação de misturas e pulverização de diferenças, como já discutido no

capítulo anterior. Questionando-se as referências ao sujeito moderno pela

racionalidade, produtoras de figuras subjetivas estáveis, construídas por sua

essência de ordem e equilíbrio, urge descrever o mal-estar contemporâneo pela

questão da subjetividade, pois mal-estar, dizendo do sujeito, implica no campo da

subjetividade (BARRETO, 2000). Cartografar o mal-estar contemporâneo é atentar

para o modelo vigente de ciência e suas conjunções, nosologias comunicacionais e

cognitivas, efeitos nas estruturas clássicas e modernas de verdade, sujeito, história

e mundo.

Representando, assim, um fenômeno perturbador nesta época, implica

considerar a "reviravolta subjetiva da realidade”, direcionando foco para os

processos de constituição da subjetividade e impasses experienciados na

contemporaneidade. “Reviravolta” a subjetividade, fora do âmbito da identidade e da

representação, demandando os múltiplos processos de subjetivação, engendrados

nas dimensões sociais, culturais e temporais. Legitima-se repensar sistemas

psicológicos, re-visitando aqueles que possam apresentar alguns impasses à visão

de homem da modernidade. Através deles, busca-se aproximar o que há de

“sofrente” em formas outras de compreensão de subjetivação, pelo referencial do

contexto histórico-cultural atual como cenário do sofrimento subjetivo que demanda

compreensão pela clínica. Revisitam-se autores de Psicologia com leitura reflexiva.

3.1 A Teria Organísmica de Kurt GOLDSTEIN Uma das mais notáveis influências no corpo teórico da Gestalt Terapia é a

Teoria Organísmica, concebida e criada por Kurt GOLDSTEIN (1878 -1965). Esta

proposição teve origem nos trabalhos que desenvolveu com soldados que haviam

sofrido lesões cerebrais durante a primeira guerra mundial. Os exaustivos estudos e

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observações, que realizou por essa ocasião, procuraram estabelecer, num primeiro

momento, relação entre áreas cerebrais afetadas e suas respectivas seqüelas. Mais

adiante, quando começou a se preocupar com como estes soldados se adaptavam

às seqüelas, e como se estabilizavam (no linguajar de Goldstein, como conseguiam

se auto-regular), é que foi se aproximando daquilo que seria conhecido mais tarde

como Teoria Organísmica. Uma das primeiras conclusões a que chegou levou-o a

referir-se ao humano como organismo, uma concepção que não admite a dicotomia

corpo-mente.

Para a Teoria Organísmica, a partir do momento em que o ser humano nasce,

começa o constante aprendizado que vai permitir a ele fazer o movimento de

continuamente se auto-regular, à medida que vai se apropriando dos conhecimentos

de si próprio e do mundo, buscando, assim, seu equilíbrio que, nesta visão, é

sinônimo de saúde. Saúde, neste contexto, não é concebida como algo estático,

mas como algo dinâmico, sendo a constante busca pelo equilíbrio, perturbado tanto

por fatores externos quanto internos ao organismo. No momento em que o

organismo perder sua capacidade de buscar o equilíbrio, morrerá, seja por falta de

condições externas (frio excessivo, calor excessivo, falta de alimento, falta de ar),

seja por falta de condições internas (distúrbios físicos e/ou emocionais, como um

episódio de angústia que leve o organismo ao suicídio). Os fatores internos

contemplariam desde distúrbios orgânicos a estados psicológicos à interação entre

eles.

GOLDSTEIN postula uma provisão constante de energia para o organismo,

que é uniformemente distribuída por ele, indivíduo, e que representa seu estado

normal, ao qual ele sempre retorna ou procura retornar. Denomina este processo de

auto-regulação. Num meio ambiente adequado, o organismo tem melhores

condições de fazer a manutenção de seu equilíbrio. As redistribuições de energia

ocorrem em função de desequilíbrios, causados tanto pelo meio externo quanto por

conflitos internos. Com maturação, experiência e aprendizagem, o organismo

desenvolve comportamentos que o ajudam a manter o equilíbrio e o tornam menos

suscetível aos desequilíbrios.

A auto-regulação é para GOLDSTEIN o único condutor do organismo. Por

exemplo, fome, sexo, desejo de poder e curiosidade são manifestações de estar

vivo, portanto da necessidade de se manter equilibrado, auto-regulado. A busca de

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conhecimento, seja ele cultural ou de si próprio, também são desequilíbrios a serem

auto-regulados, gerando uma pessoa diferente da anterior.

Na sua relação com o meio, o organismo tanto pode satisfazer suas

necessidades e conquistar sua auto-realização e auto-regulação, quanto pode

frustrar o processo de auto-realização e provocar nele desequilíbrios a serem

restabelecidos. O meio ainda pode proporcionar ao organismo os recursos para a

auto-regulação. E os dois processos podem ser interrompidos ou bloqueados se a

leitura que o organismo fizer do meio for a de que não há recursos suficientes

disponíveis, mesmo lançando mão de toda criatividade que lhe seja possível. Assim,

quanto mais disponibilidade de recursos internos e externos houver, mais facilmente

poderá estar auto-regulado de forma satisfatória.

Aqui, chamo a atenção para dois aspectos que considero relevantes. Apesar

de ser considerado, quase que de forma unânime, um dos sustentáculos da Teoria

da Gestalt, ele próprio dedica um capítulo de seu livro The Organism (Cap. 8) para

afirmar o quanto seu trabalho utiliza conceitos da Psicologia da Gestalt, como

também para fazer uma clara ressalva de que a Teoria Organísmica não é uma

tentativa de propor uma “fisiologia psicológica”. Tal tentativa me parece ser particularmente questionável, pois, na minha opinião, a psicologia pode muito bem ser vista como um campo especial do conhecimento biológico, mas a recíproca não é verdadeira. Na tentativa de obter conhecimento biológico temos que iniciar com os fatos que se intrometem em nosso caminho e precisamos tentar compreendê-los. Ao fazermos isto, muito do que aprendemos da Psicologia da Gestalt nos será de valia. (...) Todavia, o princípio que me dirige é diferente, visto que o “todo”, a “Gestalt”, sempre significaram para mim o organismo como um todo, e não o fenômeno em um campo, ou meramente a “experiência introspectiva” que na Psicologia da Gestalt tem um papel bastante importante. Deste ponto, emergem também certas diferenças dos pontos de vista antecipados pelos psicólogos da Gestalt e por aqueles antecipados por mim (Goldstein, 1995, p. 285).

Vale lembrar que este livro foi originalmente escrito em 1934; portanto, essas

observações se referem à Psicologia da Gestalt. A partir de 1950, a Teoria

Organísmica passa a aparecer no corpo teórico da Gestalt Terapia, em concordância

com os termos de seu propositor.

O segundo ponto a chamar a atenção é não ter encontrado, até hoje,

nenhuma referência ao fato de GOLDSTEIN considerar aspectos da existência (no

sentido filosófico) do organismo; refere-se, geralmente, à questão organísmica

somente a partir de conflitos internos. É interessante notar que, em sua história de

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vida, GOLDSTEIN, muitas vezes, se questionou se deveria seguir a carreira de

filósofo ou a de médico.

A Teoria Organísmica é criticada por muitos como sendo biologicista,

entendimento que denota uma má compreensão da proposta de GOLDSTEIN. Isto

provavelmente se deve ao próprio GOLDSTEIN ter tido dificuldades para esclarecer

sua posição em The Organism (1995), fato que admite no prefácio da edição de

1963, do qual transcrevo trechos, a seguir. Nesses escritos, apresenta importantes

esclarecimentos sobre sua teoria que, indubitavelmente, retiram qualquer

possibilidade de ser qualificada como biologicista, aproximando-a mais ao

pensamento fenomenológico nascente à época. Comentando sobre seu novo

método, o método holístico, GOLDSTEIN diz: ... Isto criou uma outra vantagem. Foram correlacionados, para o leitor, materiais diversos, advindos dos campos da anatomia, fisiologia, psicologia e filosofia, ou seja, das disciplinas que se preocupam com a natureza humana. Desta forma, ele pode observar que o método pode ser útil para a solução de vários problemas, que podem, superficialmente, parecer divergentes e que têm sido, até o momento, tratados como não relacionados (GOLDSTEIN, 1995, p. 18).

A inclusão, neste trabalho, da teoria de GOLDSTEIN se justifica por ser uma

referência importante, para além da visão biologicista que lhe imputam. Isto sempre

pareceu uma leitura mal feita de seus escritos, como tentativa de reduzi-lo a algo

“conhecido” ou eventualmente “mais fácil” de ser compreendido. Não é difícil

imaginar a quantidade de críticas que GOLDSTEIN deve ter recebido nos anos 1930

por seus escritos. Afinal, sua proposição estava no contra-fluxo da ciência daquele

tempo, o que pode, em parte, explicar por que foi, por tantos anos, deixada de lado.

Seu estilo de escrever é bastante defensivo: escolhendo minuciosamente as

palavras, faz afirmações e depois as justifica detalhadamente, como que para não

ferir suscetibilidades, nem dar a ninguém a possibilidade de lhe dirigir críticas. Este

livro foi escrito na Holanda em cinco semanas, depois de sua fuga da Alemanha

devido ao nazismo, enquanto esperava por um visto para poder viajar para os

Estados Unidos.

Penso que o clima de insegurança, vivido por GOLDSTEIN neste período,

tenha permeado seus escritos, o que é perfeitamente consoante com sua teoria.

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Originalmente escrito em 1934 em alemão, sob o título Aufbau des Organismus23,

apresenta: The Organism consiste, principalmente, de uma descrição detalhada do novo método, a assim chamada abordagem holística, organísmica. Certamente, dados isolados conseguidos pelo método da dissecação da ciência natural não podem ser negados se quisermos manter uma base científica. Mas tivemos que descobrir como avaliar nossas observações e seus significados para o funcionamento do organismo total, para assim entendermos estrutura e existência da pessoa individual. Fomos, então, confrontados com um difícil problema epistemológico. O objetivo primário de meu livro é descrever este procedimento metodológico em detalhe, através de numerosas observações. (...) Finalmente, é levantado o problema do conhecimento em geral, nas semelhanças e dessemelhanças entre as ciências naturais e a ciência dos seres vivos. Existe uma diferença que freqüentemente levou a superestimação da ciência natural na nossa tentativa de entender os seres humanos, uma vez que a aplicação dos métodos e resultados da ciência natural pode obstruir a interpretação adequada da vida. A tentativa de entender a vida unicamente do ponto de vista da ciência natural é infrutífero (GOLDSTEIN, 1995, p. 18).

Percebe-se a cuidado e a dificuldade de GOLDSTEIN para apresentar suas

idéias, tecendo críticas à neurologia tradicional e procurando introduzir o que

denomina de seu “novo método”. Mas, mesmo com cuidado, não poupa críticas à

“superestimação da ciência natural”, questão que ainda permanece atual. Parece

fazer um grande esforço para sair da neuropsiquiatria tradicional, chamada de

localizacionista (na qual as funções do cérebro teriam localizações definidas), rumo

ao que denomina de abordagem holística, pela qual propõe que o organismo, e não

apenas o cérebro, reage como um todo. À semelhança do funcionamento do

organismo, propõe que as ciências também devam ser entendidas como um todo

que interage. O método holístico não pode excluir nenhuma experiência de um tipo ou de outro. Ambas pertencem ao ser humano e precisam ser avaliadas em sua relevância para a existência humana. Assim, as diferenças deveriam ser cuidadosamente consideradas. Isto é adiantado pelo método holístico. A proficuidade de um método se revela particularmente na possibilidade de tratar novos problemas ou levantar novas questões. Pode ser aplicado ao material de forma tal que instigue novos questionamentos e alcance novas unidades, ao invés de meramente isolar fenômenos. Neste sentido, eu gostaria de apontar para novos insights da natureza humana alcançados pelo meu conceito modificado de atitudes concretas e abstratas, desenvolvidas após este livro ter sido publicado pela primeira vez. Eu havia percebido no comportamento humano estas duas atitudes e suposto que elas funcionassem de forma mais ou menos interdependente sob diferentes condições. O comportamento concreto sempre aparece quase que concomitantemente com o comportamento abstrato e pode, mesmo, depender deste último, ou seja, pode ser iniciado pelo último. Não é tão aparente que a atitude abstrata funcione corretamente numa situação concreta. O comportamento normal demanda as duas formas de comportamento combinadas em uma unidade. A partir dessa premissa, parece surpreendente que em certas situações

23 Aufbau é uma palavra de difícil tradução; as melhores aproximações em português são construção, levantamento, estrutura, desenvolvimento e constituição. N. do A.

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possamos observar que o indivíduo esteja apto a existir apenas ao nível concreto; por exemplo, a criança, na qual a capacidade abstrata ainda não está desenvolvida, e em “pessoas primitivas”, que parecem ser a tal ponto primariamente concretas, que se chegou a considerar que pessoas de tribos primitivas têm um nível inferior de mentalidade (idem, p. 19).

No trecho acima, GOLDSTEIN justamente procede à passagem de uma forma

de pensar para outra. Se num momento anterior falava em atitude concreta-abstrata,

quase como uma “digitalização” do funcionamento humano, passa a defender a

integração destas duas atitudes como condição para que se possa abranger a

riqueza humana. Introduz a questão da concomitância entre as atitudes abstrata e

concreta, demonstrando como o privilegiar de uma delas pode levar a conclusões

errôneas sobre os sujeitos de pesquisa. Chama a atenção que, decorridos tantos

anos de seus escritos, os mesmos erros continuam a ser cometidos.

Um outro estudo feito através do novo método, revelou que o comportamento humano não pode ser compreendido exclusivamente a partir do conceito da atitude concreta-abstrata, da forma como foi apresentada neste livro. Desta maneira, chegamos à seguinte conclusão: enquanto que na atitude concreta-abstrata a vida ordenada pode ser garantida pela aplicação da razão, para entender a vida humana em sua plenitude, uma outra esfera do comportamento humano deve ser levada em consideração. Quando estamos nesta esfera, experiências sujeito-objeto permanecem mais ou menos no fundo, e o sentimento de unidade, que encerra a nós e ao mundo com tudo que diz respeito a ele, e particularmente na nossa relação com outros seres humanos, se torna dominante. A isto chamo de “esfera da imediaticidade“ (“sphere of immediacy”). Não é uma experiência subjetiva. Não é uma suposição irracional. É governada, como nosso mundo objetivo, por leis que são diferentes do assim chamado raciocínio. Não é fácil de descrever. Tem que ser experienciada em situações definidas (idem, p. 20).

Na transcrição acima, introduz a “esfera da imediaticiade” como o conceito

que irá dar conta do “algo mais” que representa seu posicionamento, governado por

algo diferente do raciocínio e que deve ser experienciado. Introduz a idéia de que os

comportamentos humanos são determinados também por aquilo que estão

passando em tal momento de vida, de uma perspectiva pessoal, subjetiva na

acepção da palavra. Fundamentalmente, reafirma o moto da Psicologia da Gestalt

de que o todo é diferente da soma das partes. Pode-se perceber que, de certa

forma, GOLDSTEIN poderia estar conduzindo o seu leitor para uma compreensão

fenomenológica.

Quando tentamos nos trazer para esta esfera ou quando somos levados a ela pelo caráter atraente que o mundo apresenta dentro dela, as palavras com as quais nós nos esforçamos para descrever nossas experiências podem, quando comparadas com o nosso uso costumeiro da linguagem, parecer estranhas e lembrar a linguagem dos poetas. Mas estas palavras não são apenas

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compreensíveis; elas também revelam um novo mundo ao qual geralmente nós não prestamos atenção no nosso comportamento prático ou científico. Mais apropriadamente, nós intencionalmente reprimimos isso, pois a sua influência pode perturbar a estabilidade e segurança do mundo da nossa cultura. Essas experiências de imediaticidade se originam do mesmo mundo no qual nós vivemos de outra maneira. Elas até mesmo chegam a representar o caráter mais profundo do mundo. Isto porque o indivíduo está aqui envolvido na sua totalidade, enquanto que no mundo sujeito-objeto ele é considerado de um ponto de vista isolado e isolador, que nós podemos preferir por algum razão especial. Para entrar nessa esfera da imediaticidade nós temos que omitir em alguma monta a atitude de “ciência natural” que aparece como não natural nessa esfera, uma vez que ela não compreende a natureza humana total. A experiência da imediaticidade não pode ser atingida pelo procedimento discursivo ou por qualquer tipo de síntese. Ela pode ser atingida somente pela nossa rendição ao mundo com o qual nós temos contato sem temer a perda da nossa relação com o mundo ordenado (idem, p. 20).

Ao introduzir esse “novo mundo”, um mundo que não pode ser compreendido

através da ciência natural, que precisa, então, ser omitida, GOLDSTEIN instiga uma

outra possibilidade de compreensão. Desperta no leitor que, numa visão tradicional,

esta nova postura implicaria numa perda do controle “cientificamente desejável”, o

que, também, continua muito atual, visto que ainda é muito mais fácil e “respeitável”

uma pesquisa quantitativa, em detrimento da pesquisa qualitativa.

Por outro lado, a expressão desta nova visão pode lembrar a linguagem dos

poetas, ou seja, imagens, alegorias, metáforas, com a capacidade de expressar

mais que uma grande seqüência de palavras. Isto parece uma defesa frente a uma

acusação que, em teor, se assemelharia a ele utilizar em seus escritos uma

linguagem considerada inadequada para os padrões científicos da época,

remetendo, ao capítulo anterior, a como Thomas Mann defende o direito dos poetas

de se imiscuírem nas coisas da vida cotidiana. Na minha visão, certamente seria

acusado de falta de Anständigkeit, enquanto era justamente ela mesma que tentava

defender. A experiência nos ensina que nós podemos viver em ambas as esferas, que as duas esferas não são opostas uma à outra, que a esfera da imediaticidade também pertence à nossa natureza. Ela mostra que a nossa existência é baseada não unicamente em ordem objetivamente correta, mas ao mesmo tempo em conforto, bem-estar, beleza e alegria, em pertencimento. Enquanto a aparência de “adequação” à qual eu me refiro no meu livro é realmente importante para nossa existência no mundo, a esfera da imediaticidade cria uma existência mais profunda que permite não apenas a possibilidade de viver na condição estática da esfera abstrata-concreta, mas também de tolerar a incerteza sem perder nossa existência. Isto é particularmente significativo para a possibilidade da existência apesar do fracasso e revela assim uma camada mais central da natureza humana. A esfera da imediaticidade se torna aparente em muitas circunstâncias da vida diária: na amizade, no amor, no trabalho criativo, e na atitude religiosa, e ela nem mesmo está ausente como parte da nossa experiência na investigação científica (GOLDSTEIN, 1995, p. 21).

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Finalmente, GOLDSTEIN introduz a questão da afetabilidade na discussão

que propõe. Refere-se a fenômenos considerados muito distantes no modelo

tradicionalista de ciência, lembrando que todos os seres humanos têm sentimentos,

afetos, convicções, religião. Alude que inclusive os cientistas são por eles

acometidos. Nesse sentido, tais instâncias permeariam a ciência. A meu ver, procura

mostrar, ou demonstrar, que o objeto de estudos do cientista não está imune a ele

mesmo, pois a visão do cientista é permeada por suas convicções, ainda que delas

não se aperceba. Está, portanto, se referindo a outro modo de pesquisar, embora de

modo indireto. Isto porque, por sua grande dificuldade e cuidado em descrever seu

novo método diante da concepção de ciência vigente à época, GOLDSTEIN,

procurou fundamentar sua posição de forma a não ferir suscetibilidades “científicas”,

mesmo ao tecer tais considerações mais de trinta anos depois da primeira edição

do livro. Fazendo severas críticas à ciência natural, lentamente introduz o que

denomina de método holístico, ou seja, a tentativa de compreensão da totalidade

dos fenômenos que envolvem o ser humano. Assim, parece referir-se a uma atitude

fenomenológica, afirmando ser esta a única possibilidade de estar aberto

efetivamente à compreensão dos fenômenos que estudava, ao mesmo tempo em

que, dizendo da relação entre pesquisador e pesquisado, revela uma implicação

com a pesquisa qualitativa, participativa, ou seja, à pesquisação.

Ao referir-se a “tolerar a incerteza sem perder nossa existência”, certamente

diz algo com respeito à angústia, arrolando-a como um dos fatores que podem levar

o organismo a perder sua homeostase, sua condição de equilíbrio.

Estamos aptos a viver em ambas as esferas devido à nossa capacidade para atitude abstrata. Essa atitude torna possível nossa experiência de sujeito e objeto separadamente e de mudar de um evento para o outro, de uma esfera para a outra. O sentimento de unidade na esfera da imediaticidade é o fundamento mais profundo para a experiência de bem-estar e para a auto-realização. Isso se torna evidente, por exemplo, quando nós nos iludimos no nosso encontro com outra pessoa com a qual nós acreditávamos ter pertinência. Então, nós não experienciamos simplesmente um sentimento de erro ao qual prestamos mais ou menos atenção, mas nós ficamos profundamente desapontados, até abalados. Essa experiência é, por assim dizer, um abalo na nossa fundação, na nossa existência. Ela toca num fenômeno humano central, a experiência de “ser” (“being”), de realizar nossa natureza, que só é possível numa união genuína com o outro e com o mundo (ver meu trabalho, “The smiling of the infant and the problem of understanding the other”, Journal of Psychology, 44[1957]) (idem, p. 21).

Ao dizer de um experienciar, frente ao qual ficamos profundamente abalados,

enseja a possibilidade de uma leitura aproximada à fenomenologia, aspecto que

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discutirei adiante, ao apresentar o “experienciando” de GENDLIN (1978-79). Por

hora, ainda seria pertinente ouvir mais de GOLDSTEIN por ele mesmo. Antes que o leitor embarque com uma atitude crítica na riqueza dos fenômenos que a vida apresenta de acordo com meu método, eu gostaria de apontar uma frase nesse livro que é fundamental para a minha convicção de que estou no caminho certo. “A obtenção do conhecimento biológico que estamos procurando é essencialmente similar ao fenômeno de que o organismo se torna adequado às suas necessidades” (ver p 307); dito de outro modo, “conhecimento biológico é uma forma biológica de ser”. O conhecimento biológico é possível devido à similaridade entre a natureza humana e o conhecimento humano. Ele é uma expressão da natureza humana. Esta convicção nasce da participação em todas as atividades observadas dos seres humanos na pesquisa concreta sobre a qual as minhas evidências se baseiam. Aqui alguém se pergunta repetidamente sobre o que realmente se está fazendo e discute consigo mesmo os meios pelos quais se pode chegar à compreensão do mundo vivo, sem se dar contar se o material factual demanda a introdução de considerações que podem ser denominadas filosóficas. Somente então o termo “abordagem holística” resistirá ao teste de validade (GOLDSTEIN, 1995, p. 22).

Assim, a frase “conhecimento biológico é uma forma biológica de ser” revela

sua intenção fenomenológica, visto poder aproximar-se ao pensamento de

GENDLIN (1978-79, p. 47), ao dizer “(...) como o conceito precede e elimina a

distinção entre dentro e fora, bem como entre eu e os outros. De forma similar, altera

afetivo/cognitivo”. Todavia, o mérito desta introdução parece concentrar-se no

trecho, já citado, re-apresentado, agora, por essa possível articulação: Enquanto a aparência de “adequação” à qual eu me refiro no meu livro é, de fato, importante para nossa existência no mundo, a esfera da imediaticidade cria uma existência mais profunda que permite não apenas a possibilidade de viver na condição estática da esfera abstrata-concreta, mas também de tolerar a incerteza sem perder nossa existência. Isto é particularmente significativo para a possibilidade da existência apesar do fracasso, e revela assim uma camada mais central da natureza humana. A esfera da imediaticidade se torna aparente em muitas circunstâncias da vida diária: na amizade, no amor, no trabalho criativo, e na atitude religiosa, e ela nem mesmo está ausente como parte da nossa experiência na investigação científica. (GOLDSTEIN, 1995, p. 21).

Referir-se à esfera da imediaticidade, dos afetos, além de a “possibilidade da

existência apesar do fracasso”, pode significar a angústia constituinte da condição

humana, justamente valorada no cotidiano. Para poder cuidar dos efeitos da esfera

da imediaticidade sobre si próprio, o ser humano tem a necessidade de reconhecer

em si quais necessidades precisam ser satisfeitas a fim de re-estabelecer sua auto-

regulação. Isto significa, além de propriocepção, uma forma de perceber os

dinamismos internos, uma atitude de encontrar-se em seu estado atual. Encontra-se,

aqui, uma aproximação ao conceito gestáltico de awareness, que, por sua vez, pode

ser considerado como uma aproximação ao conceito de “Befindlichkeit” da

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Fenomenologia Existencial, discutido a seguir. Tratariam eles de uma compreensão

de ser humano que poderia aproximar-se? Em que medida tal aproximação poderia

encaminhar articulação entre saúde e educação?

Concluindo, reafirmo que a inclusão da Teoria Organísmica de Kurt Goldstein

se justifica por fornecer valiosas informações acerca da existência humana pela ótica

da existência do organismo, possibilitando um pensar que possa aproximar os

conceitos de saúde e educação. A meu ver, seria um modo de compreender o que

se denominou no capítulo anterior de vitagogia, revelado por entrelinhas de um

modo de escrita cuidadosa, que não poupava críticas e dúvidas até mesmo com

respeito a si próprio. Nesse sentido, registro o meu profundo respeito pelo

pesquisador que foi Goldstein, além de expressar minha compreensão da injustiça

cometida com sua obra, especialmente no âmbito da Gestalt Terapia. Sem dúvida,

foi justamente sua teoria que, a meu ver, permitiu que se amalgamassem tantas e

variadas influências no corpo teórico dessa abordagem.

3.2 Befindlichkeit, compreensão e fala em Eugène Gendlin

Nos capítulos anteriores, mencionei, algumas vezes, a linguagem para a

Fenomenologia Existencial de Heidegger, o conceito de awareness para a Gestalt

Terapia e para a Gestaltpedagogia, bem como a compreensão de organismo para

Goldstein, por uma possível aproximação com o conceito de Befindlichkeit

apresentado por GENDLIN (1978-79). Neste segmento, buscarei aproximá-los, a

partir da discussão dessas questões pelo texto, denominado Befindlichkeit.

Trata-se de termo cunhado por Heidegger no contexto da Fenomenologia

Existencial, referente a uma forma de pensar e conceber o homem, que exige uma

radical mudança no pensar, uma vez que Heidegger utiliza termos do vocabulário

corrente da filosofia e da psicologia, de forma inovadora. Uma das dificuldades do

texto diz respeito à impossibilidade de tradução de determinados termos do alemão

para o português, pelo simples fato da inexistência de palavras equivalentes. Isto

implica na necessidade de encontrar novos significados para significantes já

conhecidos, constituindo-os, assim, num jargão próprio da Fenomenologia

Existencial. Para compreender as dificuldades com a linguagem é necessário

analisar o contexto do pensamento heideggeriano (LEÃO, 1995).

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Em seu trabalho, Heidegger (HEIDEGGER, 1995) identifica um certo

arcabouço comum a todos os principais sistemas de pensamento filosófico

desenvolvidos desde Platão: ocupados em dizer “o que” as coisas “são”, houve o

esquecimento de retomarem a pergunta pelo próprio “ser”. Em outras palavras,

segundo Heidegger, esta tradição do pensamento – que ele nomeia “Metafísica” –

aprisionou o “ser” em idéias/conceitos que se pretendem unos e incorruptíveis.

Nesse sentido, Heidegger aponta que a Metafísica, além de configurar a tradição do

que se conhece hoje como filosofia, diz respeito à própria forma como o homem

ocidental moderno constitui e entende a si mesmo. Também a forma como está

estruturada a linguagem e os idiomas atrela-se, desde sua origem, a este mesmo

pensamento que Heidegger se propõe a des-construir. Assim, é como se a fala

comum buscasse dar significado a uma dimensão da realidade que até então

simplesmente não era considerada. Um tal desafio nunca se completa; sempre deve

dar-se como constante e árduo exercício.

No âmbito deste trabalho, são de interesse os três existenciais, ou seja, três

condições de existência, como postula Heidegger. Antes, porém, quero discorrer

sobre o tema de forma livre, para depois trabalhá-lo de uma maneira mais formal,

através de Eugène GENDLIN (1978-79).

Eis-me, aqui, sentado frente a um computador, procurando uma nova forma

de escrever sobre este intrincado tema. Ao mesmo tempo em que tento me impor ao

computador e ao mundo que me rodeia, neste exato momento, ambos também se

impõe a mim. De fato, nós nos encontramos mutuamente. E esta situação pode ser

compreendida como uma metáfora da condição ontológica do humano. Nas palavras

de ALMEIDA (1999, p. 48), o encontrar-se é uma condição ontológica do homem, correspondendo a uma possibilidade sua de ser. Expressa-se pelo estado de ânimo, pelo humor, o qual evidencia como o homem está em sua existência. Sempre o homem se dá no mundo afetivamente, o que veladamente lhe abre que é ele mesmo que está sendo-no-mundo, ou seja, ser é algo de sua responsabilidade, enquanto entregue a ele.

Encontro-me, aqui, frente ao computador: uma localização espacial. Encontro-

me num estado de preocupação, com certa dose de ansiedade: localização afetiva.

Encontro-me num prazo mais curto do que gostaria da data final de entrega deste

trabalho: localização temporal. Encontro-me em tal e tal dia: localização cronológica.

Como me encontro? Preocupado, envolvido com a confecção deste trabalho, imerso

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na ansiedade de concluí-lo, pois sei das possíveis conseqüências para a minha

pessoalidade e minha carreira, uma vez encerrado.

O fator preponderante na descrição acima é o de como me sinto, pois isto

permeia a minha percepção de mim mesmo, da forma como encaro a tarefa que

tenho pela frente; minhas sensações conduzem o meu pensar, a partir do que posso

escolher a forma que considero mais adequada para me expressar e comunicar

adiante o que desejo expressar. No momento que o faço, “reconfiguro-me” e me

modifico; isto é, torno-me sensível através da percepção de que, no caso, muito

vagarosamente, meus afetos vão se modificando. A maneira de encarar esta tarefa

se altera, outras palavras vêm à minha mente. Sinto-me como que navegando por

sinuoso rio. Novas paisagens vão se descortinando. Novos sentidos se imprimem

para a navegação. Afinal, o compreender é uma outra condição ontológica do homem, isto é, constituído-o de maneira originária. Há uma circularidade essencial entre estes dois modos constitutivos de ser o ai. Todo encontrar-se tem sua compreensão própria, na media em que, conforme nos encontramos, um mundo específico nos é dado a ver. Por outro lado, também toda compreensão é pautada pelo estado de ânimo. A compreensão originária sempre capta aquilo que já é matizado por uma certa emoção. Essa compreensão originária é anterior à compreensão cognitiva, que passa a ser sua derivada (ALMEIDA, 1999, p. 49)

Escrevo, mas bem que poderia estar falando. Expresso-me. Na medida em

que me expresso, meu comprometimento, em relação ao que estou fazendo, se faz

outro; meu comprometimento comigo mesmo é de outra ordem. Disponho de

vocabulário pertinente para expressar o que se passa comigo desse modo de

comprometimento comigo mesmo? Busco palavras, em mim, nos dicionários. Crio

neologismos. Posso passar adiante o que se passa comigo? O que se passa comigo

diz de mim mesmo?

Recordo o sentido de um trecho de Hans-Georg Gadamer, que expressava

ser o homem que está à disposição da linguagem e não a linguagem que está à

disposição do homem. Estaria eu restrito a expressar o que minha capacidade

expressiva permite que eu expresse, fechando-me num círculo? Uma tal restrição

poderia re-encaminhar meus sentimentos? Busco o original: A linguagem não é somente um dentre muitos dotes atribuídos ao homem que está no mundo, mas serve de base absoluta para que os homens tenham mundo, nela se representa mundo. Para o homem o mundo está ai como mundo numa forma com não está para qualquer outro ser vivo que esteja no mundo. Mas esse estar-ai do mundo é constituído pela linguagem. (...) Mas mais importante que isso é o que está em sua base, a saber, que, frente ao mundo que vem à fala nela, a linguagem não instaura, ela mesma, nenhuma existência autônoma. Não só o

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mundo é mundo apenas quando vem à linguagem, como a própria linguagem só tem sua verdadeira existência no fato de que nela se representa o mundo. A originária humanidade da linguagem significa, portanto, ao mesmo tempo, o originário caráter de linguagem do estar-no-mundo do homem. Precisamos seguir essa relação entre linguagem e mundo, para alcançarmos um horizonte adequado para o caráter de linguagem da experiência hermenêutica. (...) Ter mundo significa comportar-se para com o mundo. Mas comportar-se para com o mundo exige, por sua vez, manter-se tão livres, frente ao que nos vem ao encontro a partir do mundo, que se possa colocá-lo diante de nós tal como é. Essa capacidade representa ao mesmo tempo ter mundo e ter linguagem. Com isso, o conceito de mundo se opõe ao conceito de mundo circundante (Umwelt), que se pode atribuir a todos os seres vivos do mundo (GADAMER, 1997, p. 571-572).

Toda essa experiência ocorre ao mesmo tempo, no meu tempo: minhas

idéias, meus projetos (lat. projecto,as,ávi,átum,áre 'lançar para diante, expulsar', freq. de

projicère 'lançar para a frente, expor, enjeitar (uma criança)'; ver jact-; DEH), eu mesmo,

um dia, projeto tendo sido, projeto que sou e que como pro-jeto se fará. Eis um

círculo não fechado nem restritivo. Implica em três existenciais, propriamente

constituintes na condição humana: Befindlichkeit (encontrar-se), Verstehen

(compreensão) e Sprache (fala). Con-correm ao mesmo tempo, mutuamente

relacionados, dando a ver um círculo não completamente fechado, como uma área,

mas com uma abertura que sempre se move com e por ele. Seria uma

circulabilidade, aproximando-se a uma curva de Moebius.

Fico procurando, em minha história pessoal, alguma experiência referente a

essa compreensão. Acredito que o episódio mais significativo ocorreu quando, num

pós-cirúrgico, me recuperava de uma anestesia. Não tinha a menor idéia de onde eu

“tinha estado” durante um bom período. Aos poucos, fui recuperando minha noção

de mim, “eu”, que, contudo, só começou a fazer sentido, na medida em que ia

recuperando minha capacidade de ver, ouvir e compreender aquilo que percebia. A

relação, que voltara a estabelecer com o mundo, recuperou meu sentido de mim

mesmo; antes, apenas percebia que estava vivo, isolado e incomunicável. Lembro-

me da alegria de ouvir alguém chamando meu nome. Era comigo! Nunca tinha visto

aquela pessoa. Era um enfermeiro que assim se apresentou, dizendo seu nome.

Compreendi, em ato, a necessidade de alguém que, se recuperando de uma

anestesia, precisa de outro a seu lado no momento em que acorda. Mesmo com o

mundo à volta, porém sem ninguém para quem balbuciar, como sendo uma

referência, imagino como a sensação de solidão e ausência de sentido possa ser

insuportável.

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Creio que, agora, situado por meio de uma experiência cotidiana ao que pode

dizer respeito a conceitualização, que a seguir apresentarei, penso que uma

discussão teórica possa ser pertinente. Passo, assim, a discorrer uma compreensão

do conceito de Befindlichkeit como um modo para pensar sua implicação na prática

psicológica.

Segundo GENDLIN (1978-79), Befindlichkeit está entre os mais importantes

conceitos de Heidegger, como também se trata do mais mal-entendido entre todos.

Refere-se a um dos três parâmetros fundamentais da existência (os “existenciais”),

juntamente à compreensão e à fala. A relação entre eles é tão próxima, que só

podem ser apresentados concomitantemente. Befindlichkeit se refere ao que usualmente se entende por “humor”, mas também a “sentimento” e “afeto”, destacando que Heidegger nos oferece uma visão totalmente diferente sobre esta experiência usual. “Befindlichkeit” se refere ao tipo de seres que os humanos são. Diz respeito aqueles aspectos destes seres que os fazem ter humores, sentimentos, afetos (idem, p. 43).

Em alemão, a palavra Befinden pode ser escrita tanto com inicial maiúscula

quanto com minúscula. Segundo as regras gramaticais alemãs, todo substantivo é

escrito com letra maiúscula. Como substantivo, o termo pode significar estado de

saúde, opinião, parecer. Já escrito com minúscula, befinden é um verbo, significando

achar(-se), considerar(-se), estar, sentir(-se), decidir. Seu uso assim se apresenta:

“Wo befinden Sie sich?” (“Onde o senhor se encontra?”), “Wie befinden Sie sich?”

(“Como o senhor se encontra?”), “Wo ist Ihr Befinden?” (“Qual é a sua localização?

Onde o senhor se encontra?”), “Wie ist Ihr Befinden?” (“Qual é o seu estado, como o

senhor se encontra?”). Nesse sentido, Befindlichkeit é uma substantivação do verbo.

Segundo GENDLIN (1978-79, p. 44-45), Considerar sentimentos, afetos e humores como Befindlichkeit, difere das visões usuais das seguintes maneiras: 1) O conceito de Heidegger denota como sentimos a nós mesmos nas situações. Enquanto que sentimento é usualmente pensado como sendo algo voltado para dentro, o conceito de Heidegger se refere a algo voltado tanto para dentro quanto para fora, antes, porém, que tenha sido feita uma cisão entre dentro e fora. (...) Estamos sempre situados em situações, no mundo, em um contexto, vivendo de determinada forma com outros, tentando alcançar isto e evitar aquilo. (...) Um humor não é apenas interno, é o viver no mundo. Sentimos como nos encontramos, e nos encontramos em situações. (...) Os americanos podem dizer que “Befindlichkeit” é mais um conceito “interacional” que “intrapsíquico”. Mas ela é ambos e existe antes de a distinção ser feita. “Interação” também é inexato por outra razão. Parte da premissa que primeiro existem dois, e somente então existe uma relação entre eles. (...) Para Heidegger, humanos são seu viver no mundo com os outros. Humanos são seres-em e seres-com.

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Neste primeiro ponto, GENDLIN deixa claro que o conceito de Befindlichkeit é

tanto um conceito “intrapsíquico” quanto “intramundo”, uma vez que se refere

concomitantemente às duas esferas, sem precedência de uma ou de outra. Parte da

existência do campo sujeito-mundo: sujeito que está no mundo e mundo que está no

sujeito. Relaciona-se aos outros existenciais na medida em que a compreensão

pode ser entendida como uma escuta para o mundo, enquanto que a fala pode ser

entendida como “comunicação” para com o mundo, de maneira a formar um laço

indelével entre essas três instâncias. O mundo subjetivo passa a existir à medida

que o sujeito vive nele, e o sujeito vive “sua compreensão de si no mundo”.

Procede, aqui, recolocar a frase de Goldstein que permite aproximar sua

visão ao pensamento fenomenológico, estabelecendo suas conceitualizações

através dele: “A obtenção do conhecimento biológico que estamos procurando é

essencialmente similar ao fenômeno de que o organismo se torna adequado às suas

necessidades”, o que, dito de outro modo, refere o “conhecimento biológico é uma

forma biológica de ser”. Como não reconhecer que o conhecimento biológico surge,

aqui, como constituinte do campo do conhecimento do homem, sendo uma forma de

o homem existir ou de ser? Seria esse biológico a disponibilidade para humores e

sentimentos, que permitem ao ser humano encontrar-se?

Mas, volto a acompanhar a descrição de GENDLIN (idem, p. 44-45) 2) A segunda diferença do usual conceito de “sentir” reside no seguinte: Befindlichkeit sempre já tem sua própria compreensão. (Aqui está o segundo parâmetro básico da existência humana para Heidegger: “compreensão”). Podemos não saber em relação a que está nosso humor, podemos não estar especificamente conscientes de nosso humor, no entanto há uma compreensão de nosso viver neste humor. Não é meramente um estado interno de reação, um mero colorir ou acompanhamento daquilo que está ocorrendo. Temos vivido e atuado de certas maneiras por determinadas razões e esforços e tudo isto está indo bem ou mal, mas certamente está ocorrendo de alguma maneira complexa. A forma como estamos experimentando estas complexidades está no nosso humor. Podemos absolutamente não sabê-lo de uma forma cognitiva; todavia está em nosso humor, implicitamente. (...) Esta compreensão é ativa; não é apenas uma percepção ou recepção daquilo que está ocorrendo conosco. Nós não entramos em situações como se fossem meros fatos, independentes de nós. Tivemos parte em estarmos envolvidos nestas situações, em fazermos os esforços em responder àquilo que agora são os fatos, as dificuldades, as possibilidades, e o humor tem a “compreensão” implícita de tudo isso, pois esta compreensão já era inerente a como vivemos tudo isso, de uma forma ativa.

Embora não assumindo um ponto de vista reducionista, como gestaltista não

posso deixar de fazer uma analogia com o conceito de figura-fundo. Toda figura é

função de seu fundo, diz a teoria. Se alguém percebe (compreende) tal figura de

determinada forma, isto é função do fundo (da sua história de vida, das suas

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experiências, das suas vivências, da situação atual em que se encontra), do qual

também faz parte sua deliberação de estar ou não sensível a esta determinada

situação. Tudo isto determinará a maneira como irá compreendê-la. Mas todos

esses atributos estão contidos na concepção do conceito gestáltico awareness e, na

minha compreensão, aproximadamente contemplados pelo sentido de Befindlichkeit.

Afinal, segundo CLARKSON & MACKEWN (1993, p. 44), Awareness é, para Perls, a sua habilidade humana de estar em contato com o seu campo perceptual total. É a capacidade de estar em contato com sua própria existência, de notar o que ocorre dentro de você ou à sua volta, de conectar com o ambiente, com outras pessoas e com você mesmo; saber a que você está sensível ou o que está sentindo ou pensando; como você está reagindo neste momento. Awareness não é somente um processo mental: ela envolve todas as experiências, sejam elas físicas ou mentais, sensórias ou emocionais. É um processo conjunto no qual a totalidade do organismo está engajada: ‘Awareness é como a brasa de um carvão, que provem de sua própria combustão (o organismo total)’ (PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1951/1973, p. 106)

Considerando o humano pelo Befindlichkeit, GENDLIN torna explícito que

compreensão, neste contexto, é radicalmente diferente de seu uso pelo senso

comum, no qual a cognição assume papel preponderante. Mais uma vez, sugiro uma

aproximação com o conceito de awareness da Gestalt. Ainda que a experiência não

esteja focada ou não tenha se tornado tema para a atenção, o próprio ser-aí, modo

humano de estar no mundo, já implicaria numa compreensão de sua situação. Antes

da clareza de nomear, ou mesmo de poder dizer do que se trata, há uma

compreensão implícita (e não cognitiva) contemplando um certo sentido para quem a

vivencia. Como ocorre para o Befindlichkeit, a compreensão não é interna, nem

externa. Não pode ser separada, da mesma forma que o próprio ser do homem não

é separado do mundo. Não se trata de uma compreensão “sobre o mundo” ou “sobre

mim mesmo”, mas de uma compreensão de “como estou no mundo”. A

compreensão simplesmente é dada pelo modo como o sujeito se encontra e, neste

sentido, talvez possa ser “traduzida” para o senso comum, como intuitiva, uma vez

que ela acontece sem compreendermos de onde vem ou por que surge, apesar da

certeza tácita de que é fidedigna, confiável; na maioria das vezes, ocorre ser até

mais confiável que uma “compreensão objetiva” ou “racional”. Por conseqüência,

Befindlichkeit pode permitir reconhecer, às vezes, as surpreendentes compreensões

diferentes que se faz de um mesmo objeto em momentos diferentes, bem como os

processos de transição de uma compreensão para outra. Em Befindlichkeit se

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modificando, mudam conseqüentemente compreensão e fala a respeito de um

mesmo objeto ou situação.

Continuando pelo texto de GENDLIN (idem), outra maneira de diferenciar o

que se compreende tacitamente do que se apresenta, pelo encontrar-se, refere-se

àquilo que não é de imediato apreendido pela cognição. Ou seja, 3) A compreensão é implícita, não cognitiva no sentido usual. Difere da cognição de diversas maneiras: ela é reconhecida ou sentida, ao invés de pensada – e não pode nem mesmo ser reconhecida ou sentida diretamente pela atenção. Não é composta de unidades cognitivas separáveis ou quaisquer unidades definíveis. Quando te perguntam “Como vai você?”, você não encontra apenas instâncias reconhecíveis, mas sempre, também, uma compreensibilidade implícita. Certamente pode-se refletir e interpretar, mas isto será um outro passo, posterior.

Neste sentido, trata-se de um modo de conhecer outro, mas mais pertinente

ao sentido grego de epoché [gr. epokhê,ês 'interrupção, parada, limite, situação dos

astros, o que dá início a novo período', DEH]. Ou, até mesmo, do latim cognoscère que

se refere a agn- agn-, gnom(o)-, gnomon-, -gnose, gnoseo-, -gnosia, -gnósico, gnosio-, gnoso-, -gnosta e -gnóstico,'começar a conhecer, aprender a conhecer, tomar conhecimento; conhecer' 1) rad.vulg. conhec- (sXIII), do v.lat. cognosco,is,óvi, ìtum,cognoscère 'conhecer pelos sentidos, ver; saber, ter conhecimento de; conhecer por experiência, experimentar; reconhecer; ter trato carnal'. 5)rad. semiculto narr- (sXVI), der. do v.lat. narro,as,ávi,átum,áre 'contar, expor narrando, narrar, dar a saber': inarrável; inenarrável; narração, narrado, narrador, narrar, narrativa, narrativo, narratório, narrável. 8) rad. culto cogn- (sXVI), do v.lat. cognosco,is,óvi,ìtum, cognoscère 'conhecer pelos sentidos, ver; saber etc.': cognescer, cognição (DEH).

Diz do modo de conhecimento pelos sentidos, através de um trato carnal

(penetrabilidade) de um momento de fusão para dar nascimento ou fazer-se iniciar

um novo período. Para POLANYI & PROSCH (1975, p. 31), conhecer implicaria em

possibilidade de organizar fatos da experiência pela “arte de estabelecer, através da

delicadeza treinada do olho, ouvido e tato, uma correspondência entre predições

explícitas da ciência e a experiência presente de nossos sentidos aos quais essa

predições deverão aplicar-se”. Nessa direção, consideram duas formas de

conhecimento, o tácito e o explícito, originários de uma conscientização focal e outra

subsidiária, que, relacionando-se, conduziriam a significados como conhecimento

pessoal.

Por outro lado, resgatando-se que Befindlichkeit, compreensão e fala ocorrem

sempre par e passo, e, considerando-se ainda a questão do trato carnal (corpo e

sentidos) no modo de conhecer, poder-se-ia, no contexto deste trabalho, aproximar a

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frase de Goldstein “A obtenção do conhecimento biológico que estamos procurando

é essencialmente similar ao fenômeno de que o organismo se torna adequado às

suas necessidades; dito de outro modo, conhecimento biológico é uma forma

biológica de ser” ao modo humano de ser como Befindlichkeit. Embora se possa

guardar certo cuidado a uma tal aproximação, dada a aparente ênfase de Goldstein

ao método holístico, penso que tal afirmação, embasada que se fez pela Psicologia

da Gestalt, poderia estar se referindo à percepção como a abertura do círculo para

ocorrência do modo humano como Befindlichkeit, considerando-se que é às

possibilidades biológicas (olho, pele, nariz, ouvido e boca, enquanto órgãos) do

corpo, que o mundo se apresenta aos sentidos (visão, tato, olfato, audição e

gustação).

Mas, continuando pelos existenciais na apresentação de Gendlin, a fala, de

forma mais ampla, implica em possibilidade de algo vir a ser expresso. Penso que a

fala exerce um papel fundamental nesse contexto, pois o comprometimento do

sujeito, depois de ter falado (se expressado), torna-se radicalmente outro tanto frente

a si próprio como frente aos outros, mesmo que essa fala seja algo impróprio,

proferido num momento de solidão. Assim, GENDLIN (idem) apresenta 4) Heidegger diz que a fala está sempre imediatamente envolvida em qualquer sentimento ou humor em toda e qualquer experiência humana. A fala é a articulação da compreensão, mas esta articulação não ocorre logo que tentamos dizer o que sentimos. Da mesma forma que Befindlichkeit sempre já tem sua compreensão, ela também sempre tem sua articulação falada. Isto não quer absolutamente dizer que há sempre uma forma de se dizer o que se vive em palavras. Mas há sempre falas entre um e outro, e escutas entre um e outro. Escutar um ao outro, abertura para a fala de cada um, é parte do que somos, do viver o que somos. E assim está sempre já envolvido em nosso viver, seja lá o que for que realmente venhamos a dizer ou não.

O termo Sprache pode ser traduzido como língua, idioma, linguagem e fala.

Já o termo Aussprache é o equivalente a Sprache, acrescido do prefixo aus que, no

caso, significa “para fora”. Adquire o sentido de pronúncia, sotaque, conversa e

expressão. A partir dos conhecimentos do idioma alemão, e da Fenomenologia

Existencial, penso que uma equivalência possível de Sprache para o português seria

linguagem e, por conseqüência, expressão. Aponto esta questão pois percebo,

neste contexto, ser a condição de existência muito mais que a simples fala, mas

também a expressão (pensada em termos da capacidade expressiva do Dasein),

bem como a ação (igualmente pensada em termos da capacidade de ação do

Dasein). Portanto, linguagem, expressão e ação têm sua amplitude e sua restrição

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Apresentados os existenciais de Heidegger, procede, agora, apresentar as

proposições e desdobramentos propostos por GENDLIN como uma transposição

possível do âmbito do filosófico ao psicoterapêutico. Para tanto, lançarei mão de

escritos de MORATO (1989) e do próprio GENDLIN (1978-79). Assim, faz-se

necessário introduzir a que, para ele, se refere o termo experienciando

(experiencing).

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comunicação são, pois, pré-condição original de como os seres humanos são “sendo-com” (MORATO, 1989, p. 86).

Em o experienciando sendo o sentido implícito e anterior ao que usualmente é

designado como compreensão implícita na Befindlichkeit, estou falando de algo que

já compreendemos de uma forma pré-ontológica (uma vez que essa forma de ser é

antes implícita que articulada). Tal compreensibilidade permite a articulação do ouvir,

antes dele ser interpretado. É um sentido que se dá pela ordem do sentir, algo que

envolve todo o Dasein, inclusive o sentir advindo do corpo. Se esta é a nota filosófica de Heidegger para Befindlichkeit, o experienciando é a nota psicológica para Gendlin, a fim de se compreender o significado sentido ou o sentido sentido: compreender experiencialmente é “compreender a inerente relação entre viver sentimentos, compreensão e cognições de quaisquer espécies” (GENDLIN, 1978-79, p. 55). Dessa forma, significado sentido – ou sentido sentido – vai sendo formado, na complexidade relacional do experienciando; ou seja, é na interligação simultânea implícita entre o que é sentido, compreendido e articulado que o sentido se cria. Significados não são nem conceitos em si, nem experiência em si. Vão ocorrendo no processo da relação do experienciando. (...) E é, desta forma, que o experienciando se torna para Gendlin um modo de se compreender o processo de viver e de mudanças, seja em psicoterapia, na Psicologia, ou em Ciência. O experienciando, ocorrendo a partir da disponibilidade original de abertura do Befindlichkeit e de sua compreensibilidade e comunicabilidade implícitas, refere-se ao sentimento de um indivíduo de estar tendo experiência; diz respeito ao fluxo constante que é vivido, do que somos, percebemos e a que procurar dar um significado. Isto porque, como já vimos, aquilo que é sentido tem uma compreensão implícita e pode ser articulado. Desta forma, significado não está à parte, mas sim implícito no que sentimos. É por isso que temos às vezes, a sensação de “saber algo”, mas ainda não compreendê-lo totalmente. Para que esse “saber algo” potencial possa compreender-se, é preciso expressar-se; e é nesta a relação entre experienciando e sua expressão que o significado ocorre (idem, p. 87-88).

Morato aponta o experienciando como modo de compreender o que ocorre no

percurso “de viver transitoriamente”. Trata-se de uma dimensão que se encontra

implicada, portanto, na relação clínica e na relação pedagógica. Nesta perspectiva,

não há apenas um que ensina, enquanto outro é ensinado; não se trata

simplesmente de assimilar ensinamentos: em quaisquer relações de saúde ou

educação, o Dasein já sabe sempre algo a partir da forma como se encontra diante

de si no mundo. Cada sujeito, ao tentar expressar este saber implícito, se verá

diante do desafio de tematizar algo que, até então, era apenas subsidiário e

implícito. Com o intuito de tornar o que se expressa mais pertinente ao que se sente,

o sujeito irá “corrigindo” suas falas (e as falas do outro) nas sucessivas tentativas de

expressão. Nessa articulação, uma compreensão, inicialmente implícita e um tanto

obscura para o próprio sujeito (uma “sensação como que de compreensão”), irá

clarificando-se, dispondo-o de maneira diferente na situação e para consigo mesmo.

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Desse modo, ao encontrar-se consigo, já será outro aquele a quem o sujeito irá

encontrar. E toda outra confrontação implica uma outra compreensão, implícita, mas

comunicável e articulável. É no próprio fluxo do sentimento de “estar passando pela

experiência” que o sujeito se atualiza e busca significados à experiência, e não por

um trabalho posterior.

Nessa perspectiva, ressalta-se algo de fundamental em saúde e em

educação: a abertura para se tornar outro o modo como o sujeito está disposto e se

dispondo no mundo, abrindo-o a possibilidades de sentido, pela reflexão na

experiência e não sobre a experiência. Procederia, agora, apresentar algumas

situações que deixaram essa situação se evidenciar, sob a forma de pesquisas-ação

que propiciaram conceitualizações encaminhadoras de sentido para o presente

trabalho.

3.3 Interregno

(1) intervalo entre dois reinados, durante o qual não há rei hereditário ou eletivo (2) nos Estados que não têm reis, ausência de governo (3) intervalo, interrupção momentânea; interlúdio [lat. interrégnum,i 'tempo decorrido entre a morte de um rei e a eleição de outro'; ver reg(i)-] (DEH)

Continuo à frente do computador. Estou literalmente cercado de livros,

documentos, papéis, anotações, cenário característico de quem está escrevendo

sua dissertação ou tese. E, de repente, tudo isto perde sentido para mim. Muitos

questionamentos: Por que? Para que? Para quem? Como? Onde foram parar

minhas idéias e palavras? Revolta.

Percebo que isso se iniciou depois de eu consultar uma quantidade de textos,

à procura de pistas de por onde continuar meus escritos. Minha sensação é a de

que li muitos textos, que (se) afirmam categoricamente como verdades indubitáveis,

sem deixar abertura para o leitor discordar ou inventar, dado o modo de escrita pelo

qual se apresentam. Referenciam nomes ilustres como pilares para seus pensares

categóricos. Expressam-se de modo a comunicar sua incolumidade a sensações de

confusão, fraqueza, questionamento, angústia, como que des-afetados, deixando a

ver que afetos, aproximando-os do que seria próprio do humano, poderia

comprometer um pensamento eficiente. Parafraseando Kurt Goldstein, penso que

“conhecimento psicológico é uma forma psicológica de ser”. Surpreende-me quem

não se abre à dúvida.

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Lembro-me do dia em que fui tomado por um grande susto. Devia eu ter uns 8

ou 9 anos de idade, quando descobri que todas as edificações da cidade em que

morava (e ainda moro) haviam, um dia, sido construídas. Elas não estiveram sempre

“lá”. Antes não havia nada lá, ou melhor, deveria ter existido vegetação, pastos,

árvores, casebres, talvez. Surpreendi-me ao perceber que muito do que tomava

como certo, não passava de meras construções, e ainda mais, de construções

demolíveis. Não eram “pontos de referência eternos” ou marcos universais, como eu

imaginava ser “aquele prédio de frente redonda”, que ficava perto da casa de minha

avó. Fui percebendo que tudo não passava de “construção”, a começar pela própria

fala, geradora de pensamentos, idéias, convicções.

Tenho boas lembranças da Avenida Paulista que, na época, era uma

seqüência de casarões e palacetes. Escrevo isto para constatar minha perplexidade

frente aos motivos que levaram tais imóveis a serem “substituídos” por arranha-céus

sem a graça da tradição e do passado. Inesperadamente, a título de preservação de

patrimônio histórico, a derrubada desses imóveis foi proibida, para, dias após, ser

noticiado pelos jornais que um dos casarões havia sido implodido durante a noite.

Entrevistados os seus proprietários, alegaram que havia sido a única forma

encontrada para que o terreno ficasse disponível para uma nova construção. O que

não se executa em nome do respeito... à especulação imobiliária!

Metaforicamente, a ciência poderia ser pensada nessa mesma direção: é um

constructo, uma construção. Está, desse modo, sujeita à “especulação científica”

que, em nome da “verdade”, destrói sem Anständigkeit o que puder entravar seu

avançado progresso: “lugares” da memória de um povo e de uma forma de pensar.

Como se novo e velho não pudessem conviver, respeitando-se, para levar adiante o

conhecimento como experiência da humanidade.

Certa vez, contaram-me uma anedota, apresentada por Guimarães Rosa em

um de seus livros. Dizia de um pai e seu filho, de aproximadamente cinco anos, que,

passeando pela cidade, ao passarem diante de uma demolição, o filho, exultante,

gritou: - Olha pai...! Estão construindo um terreno!!!

Como seria poder contemplar-se o conhecimento científico como trabalho do

homem a partir da perspectiva de construções de terreno ao invés de demolições?

Como seria construir por des-construção? Como agir por essa ótica frente à tarefa

que me proponho?

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Neste momento, penso que este volteio foi patrocinado pela dissertação de

Carolina Bacchi, amiga querida, que eu lia enquanto me preparava para escrever a

próxima etapa deste trabalho. Obra belíssima que, como uma poesia, desperta um

considerável respeito e cuidado pelo modo como construiu seu pensar e sua prática.

E, cuidadoso, vou avançando na minha tarefa, em uma escrita própria, permeada

pela minha forma de ser.

3.4 Espelho Mágico Era o ano de 1994. Recordo-me com clareza do momento em que a noção

“Espelho Mágico” nasceu. Estávamos, a equipe que desenvolvia o trabalho de

Supervisão de Apoio Psicológico com Educadores de Rua, composta de oito

pessoas, quase que amontoados na pequena sala de nossa supervisora,

procedendo a uma supervisão. Tratávamos de uma intrincada questão de

relacionamento dentro de uma das Casas Abertas que atendíamos. A supervisão

estava truncada, não fluía, pois nós não estávamos conseguindo nos comunicar,

devido a diferenças pessoais existentes em nossa própria equipe. Os ânimos

estavam acirrados quando, de repente, a supervisora, aos gritos com sentido de

“Eureka!”, bradou: “Gente! Pára, gente!! Nós estamos fazendo igualzinho a eles!” Ao

mesmo tempo, longo silêncio, risos soltos e uma sensação de alívio permitiram

reconhecer, em nós mesmos, sem palavras o que estava ocorrendo no grupo sobre

o qual discutíamos. Pusemo-nos, então, a falar de nosso próprio grupo, o de

supervisão, assim, tematizando e esclarecendo nossas próprias questões, como

meio de compreender o grupo de Educadores.

Perplexos, na visita seguinte à Casa Aberta em questão, tivemos condições

de compreender e dizer, com relativa facilidade, o que, na semana anterior, havia

sido tão intrincado e paralisante. Ao perceber essa mesma situação como outra,

concluímos que havíamos feito uma experiência de aprendizagem para a situação

em questão, uma vez que já havíamos experienciado, em outro momento, entre nós.

Com certeza não era a mesma situação, mas a passada pudera abrir recursos para

a presente. Com o tempo, pudemos explicitar como nossa re-configuração

provocava nos grupos, com os quais trabalhávamos, uma re-configuração que,

guardadas as devidas proporções, apresentava-se com caráter muito semelhante à

nossa.

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Mais atentos a este fenômeno, fomos percebendo que, por sua vez, as

(re)configurações do grupo de Educadores também se apresentavam,

possivelmente, como espelhando o seu contato com as Crianças de Rua que,

enquanto grupo, também se (re)configuravam pela proximidade com os Educadores.

Assim, os movimentos e questões grupais das Crianças de Rua afetavam o grupo de

Educadores, que por sua vez nos afetavam. Percebemos que esclarecer as

questões entre nosso grupo, nossa referência, possibilitava que esse mesmo modo

pudesse ser traspassado de grupo para grupo, produzindo como que uma trama de

sentido através da ação mesma.

Pensando, neste momento, a respeito dessa experiência, recorro a

CARDOSO (2004, p. 41) que a apresenta como inter-vinda pela linguagem através

do encontro com situação de mundo-com-outros como acontecimento. “É nesta

relação/passagem que o novo/outro sentido vai sendo construído, vislumbrado,

clareado, contornado. Entre o “não mais” e o “ainda não”, o acontecimento irrompe”.

Afinal,

Cada agora que dizemos é simultaneamente, também, um acaba de e um logo a seguir, isto é, o tempo a que nos dirigimos com o nome de ‘agora’ tem em si um lapso. Todo agora tem em si, também, um acaba de e um logo a seguir.24 (HEIDEGGER, 2001, p.61).

Implica, assim, numa passagem de temporalidade, no trânsito entre

significados/sentido: um tras-passar, dado um sentido apontado por esse verbo

pela compreensão de: “Traspassação: dor penetrante, Traspasse – morte, falecimento”.

(FERREIRA, 2001, p.1992).

Segundo FIGUEIREDO (1994, p. 152), “na condição de disruptor de uma

trama ou tecido – ou seja, na condição de destecedor – o acontecimento efetua uma

atividade analítica25 no sentido próprio da palavra”. Nesse sentido, acontecimento e

traspassamento articulam-se, para de Figueiredo (1998, p.67), pois “exigem um

permanente trabalho re-tradutivo”. Desse modo, para CARDOSO (2004), o psicólogo

torna-se um participante de “enigmas a-traduzir”, na medida em que se permite

afetar e ser afetado pelo acontecimento/traspassamento, manifestado na situação

da clínica, pelo seu modo de dizer/escutar enquanto mostrar/receber. Assim, eles são as marcas vivas, feridas nunca plenamente cicatrizadas, de certos acontecimentos que estão sempre em vias de re-acontecer, ou seja, são feridas

24 Grifos do autor. 25 Grifos do autor.

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que deixam sempre em aberto o sujeito em sua traspassibilidade (FIGUEIREDO, 1998, p.67).

É nessa perspectiva, prossegue CARDOSO (2004, p. 82) que se abre ao

outro/cliente uma possibilidade de novo/outro, pois que, como afetável que também

é, “se permite ser atingido, tocado e tragado pelo que se apresenta a ele, podendo

“fazer uma experiência”, no sentido heideggeriano, sendo, nesse movimento,

traspassado e transformado”. Como aponta FIGUEIREDO (1994, p. 122), “Fazer

uma experiência é um encontro com o outro na sua alteridade e, portanto, um

acontecimento dramático”.

Acompanhados por essas leituras, compreende-se como, após algum tempo,

pudemos perceber como o grupo de supervisão sofria influências múltiplas, pelo fato

de trabalharmos em duplas, concomitantemente em quatro casas. O modo de

organização de cada uma delas afetava a todos de nosso grupo, provocando em

nós uma repercussão como se fôssemos uma caixa de ressonância. Uma vez

esclarecido esse fenômeno no contexto grupal, cada dupla podia conduzir, para seu

próprio grupo de Educadores, as questões repercutidas, abrindo espaço para sua

reconfiguração, e possível desmembramento para o grupo de meninos.

Percebendo o quanto tal prática se multiplicava, de repercussão em

repercussão, compreendemos que o que fazíamos era uma forma de atenção e

cuidado tanto para com os Educadores quanto para com as Crianças, sendo os

Educadores como que multiplicadores do trabalho que com eles desenvolvíamos. A

partir disso, o fenômeno Espelho Mágico pode ser observado em situações diversas,

como, por exemplo, em supervisões individuais na prática particular, em supervisões

com grupos de alunos do último ano de graduação em Psicologia, no trabalho com

os técnicos do Projeto Esporte-Talento (do qual participavam aproximadamente 20

técnicos, atendendo a 400 crianças, com nossa equipe contando com 30 membros),

na supervisão de Plantão Psicológico em unidades da FEBEM (grupo de oito

plantonistas atendendo a uma população de aproximadamente 20 funcionários e

100 internos), conduzindo-se até este presente trabalho.

BACCHI (2000), numa descrição concisa e completa, fala da riqueza e de seu

encantamento por esta “ferramenta de trabalho”, arrolando os aspectos que

considera por ela contemplados: Nos reflexos, ao finalizar minhas reflexões, encontro um caminho para admirar e acessar o humano, promovendo modificações. Deparei-me, acidentalmente, com o que minha imagem pensada já havia me revelado: a

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vertiginosa experiência de descobrir-se entre os reflexos, participando da cena que, como uma dança, delineava-se delicadamente em muitos movimentos espetaculares. Seria um encantamento saber-se sozinha lá dentro... Acompanhada de todas as crianças e educadores, o efeito se ampliava enormemente. (...) Descobrir a sala de espelhos era descobrir-me e descobrir o que acontecia e o que fazia. Doá-la ao leitor no formato de uma pequena história narrada era incluí-lo e criar uma possibilidade de compreensão na revelação do espelhamento mesmo. Era criar uma maneira de apresentá-lo/analisá-lo... (...) O espelhamento assim compreendido é condição de proximidade e distanciamento, necessária atitude no âmbito do cuidado humano. Dessa maneira, o fenômeno espelhamento, observado via os grupos de supervisão, apresenta-se como expressão de possibilidade de cuidar cuidando-se. Um significado possível de aproximação para compreender fazeres e dizeres. (BACCHI, 2000, p 269) 26

Por outro lado, na citação de ANDRADE e MORATO, o Espelho Mágico é

algo como um fenômeno que, ocorrendo, permite transformações no contexto do

limite entre prática psicológica e instituições, conduzindo à questão da Supervisão

de Apoio Psicológico, tema do próximo capítulo. As reflexões e re-configurações acerca das práticas psicológicas nas instituições atendidas surgiram através das próprias dificuldades oferecidas no andamento dos trabalhos. Na perspectiva de atendimento à demanda, impôs-se, por um lado, a necessidade de abandono de certas concepções tradicionais de clínica e teoria psicológica e, por outro, como alternativa para contemplar as emergências trazidas ao serviço, utilizou-se uma proposta de psicologia social clínica com referencial fenomenológico existencial, que permitiu perceber e refletir sobre as transformações que o próprio serviço de atenção psicológica, de um lado, e as instituições solicitantes, de outro, sofreram ao longo do tempo. A expressão "espelho mágico" refere-se, neste contexto, à dinâmica através da qual tais transformações ocorrem na interface serviço-instituição. (ANDRADE e MORATO, 2004, p. 27)

No bojo deste questionamento, encontram-se trabalhos de alguns

pesquisadores brasileiros preocupados com a situação atual de impasse da prática

psicológica. Valho-me, agora, de discussões apresentadas por MORATO (2000),

como propostas de discussões ventiladas por um grupo desses pesquisadores.

Considerando o psicólogo como profissional do encontro com a alteridade, ao

invés de eliminar qualquer perturbação da representação (filiação teórica, coerência

e lógica), sugere-se que o estudante seja confrontado com situações como “campo

para experiências, lugar para o aprendizado do múltiplo, do outro, do diferente, um

aprendizado da possibilidade de construção de modos válidos de conhecer”

(CUPERTINO, 1995, p. 257). Para isso, o corpo docente necessita empenhar-se

com proposta de promoção de atividades de ensino e pesquisa com seus alunos, a

26 Grifos da autora.

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entre natureza e ser humano, separando-os ou unindo-os. Diz respeito à capacidade

artesanal do homem na mundaneidade. Ação é atividade exercida diretamente entre

os homens, sem mediação das coisas ou da matéria. Diz respeito à condição

humana de pluralidade e, assim, refere-se diretamente à vida política. É, ao mesmo

tempo, um meio de liberdade (capacidade de reger o próprio futuro) como também

única forma de expressão da singularidade individual. Refere-se ao ‘si-mesmo’.

Portanto, a ação é a fonte do significado da vida humana, a capacidade de se

começar algo novo através do qual o sujeito pode revelar sua identidade. Nesta

medida, a “vida ativa” está intimamente relacionada a ‘polis’, dizendo respeito à

condição do ser humano entre homens. Aparece sempre como a “in-quietude”,

contrapondo-se à vida contemplativa (theoria), que visa garantir o eterno, a

imortalidade. Essa mesma preocupação humana prevalece em todas as atividades

dos homens, sem excluir nem labor nem trabalho.

Nesse contexto, vida afetiva refere-se a fazer algo, no mesmo mundo onde os

homens vivem juntos, em presença dos objetos. Ação diz respeito ao conceito de

processo baseado na experiência humana real, que se realiza no percurso, ou seja,

em trânsito pela vida. Assim, práxis refereria-se aos “negócio humanos”, à finitude, e

não ao lugar da atividade política no sentido usual do termo como aponta a doutrina

Marxista (BENJAMIN, 1985).

É no contexto da prática psicológica em instituições de saúde e educação que

tem se descortinado a pluralidade teórica, demandando do psicólogo em formação

um ancoramento na experiência como modo de inventar outras possibilidades de

intervenção para além das “tradicionais”. Dentro dessa nova perspectiva, um grupo

de pesquisadores optou por adotar o nome “Práticas psicológicas em instituições:

atenção, desconstrução e invenção”, como temática de seus questionamentos.

Nessa direção, MORATO (1999, p.78-79) discute como uma atividade prática

possibilita reflexão investigativa, revelando como ocorre a implicação do sujeito nos

diversos encontros de prática psicológica em instituição em que não existe um saber

dado, mas sim um conhecimento a ser produzido por aqueles envolvidos no

processo. Estes processos vão desde a relação professor/aluno, passando pela

pesquisa, pós-graduação, extensão, estágio e os demais contextos experienciados

pelo aluno ao longo do curso, criando não só um espaço de responsabilidade para

entrar em contato com a possibilidade de repensar a atuação do psicólogo frente às

demandas sócio-culturais prementes do país, mas também facilitando o

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3.5 Supervisão de Apoio Psicológico Vejo-me, agora, ante a tarefa de descrever uma das minhas facetas enquanto

profissional da Psicologia. Dentre elas, encontram-se as atividades de aluno,

cidadão, terapeuta, professor, supervisor de estágios acadêmicos, supervisor de

apoio psicológico, consultor e coordenador de um instituto privado de fomento à

Gestalt. A seqüência de tais atividades foi determinada pela sua ordem de entrada

em minha vida. Todas valeram e ainda me valem como experiência,

experimentação, vivências e aprendizados que se confundem (lat.

confundo,is,fúdi,fúsum,fundère 'misturar uma coisa com a outra, reunir, confundir'; ver 2fund-; f.hist.

sXIII confundir, sXIII confonder, sXIV cõfuder), definindo-me enquanto profissional. Assim,

somente através de artifícios me é possível falar delas. Eu sou tudo isso (esse

hibridismo).

Todas expressam minha preocupação com o humano, seu percurso pela vida

para serem, com a cidadania, com a ampliação de horizontes que acarretem numa

melhoria de qualidade de vida, que, neste contexto, passa muito longe de ser

sinônimo apenas de melhores condições financeiras sem, no entanto, excluí-las.

Além disso, todas acentuam o fato de eu estar sempre me preocupando com aquilo

que ocorre entre, seja entre membros de um grupo, seja entre mim e meu cliente,

entre mim e um grupo, entre os alunos, entre mim e os alunos; enfim, entre homens.

Pois é este entre o que caracteriza minha relação com aqueles com quem trabalho,

sendo através desta relação que se torna possível atingir meus objetivos. Nunca

definidos a priori, eles vão sendo apresentados e significados por todos os presentes

no âmbito do trabalho em andamento. Contudo, têm uma destinação: visam uma

mudança, ou melhor dizendo, um acontecimento. E tal mudança/acontecimento vai

ocorrer pela e na relação, pelo e no entre. Nesse sentido, diz respeito a uma forma

de atuação que privilegia a experiência ou o experienciar.

No tocante a esta forma de conceber o pesquisar (examinar) e o trabalho que

visa mudanças, GENDLIN (1997) diz: É claro que não se pode ficar de fora desta relação a fim de conduzir um tal exame. As relações a serem examinadas serão obtidas no próprio processo de examinar. O experienciar desempenhará um de seus papéis no processo de falar sobre – e com – elas. Assim, esta filosofia é sempre reflexiva. Pode dizer o que diz, só que aquilo de que fala também funciona no próprio dizer. E uma vez que diz como o lado experiencial sempre excede os conceitos, isto também ocorre com os conceitos bem aqui. As “relações funcionais” e “características” apresentada neste livro são, elas mesmas, modos específicos nos quais sua própria formulação

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pode ser superada. (...) Uma vez que podemos empregar os papéis do experienciar (...) para pensar com e sobre estes mesmos papéis, podemos, da mesma forma, pensar com eles qualquer outra coisa. O projeto requer e torna possível um pensar que emprega mais que a lógica conceitual, papéis ou distinções. Nos tornamos aptos a pensar com o intrincado das situações (experiência, prática). (...) Mas já não utilizamos isto? Interferências lógicas nunca são puras. Há sempre na situação um contexto experimental implícito que é mais (...) que qualquer forma já formada. O que podemos acrescentar a isto? Nada menos que a totalidade de uma nova força do pensar humano. Se nos enfiarmos mais em como (...) funciona, estaremos aptos a empregar isto deliberadamente, e descobrir que muitas formas de pensamento se abrem a partir disto, que de outra maneira não existiriam. (...) Mas experienciar e conceitos (ou símbolos) certamente não são duas coisas separadas que têm que se “relacionar”. Cada uma delas está sempre implícita na outra. Não existe um maior número de “experiências não simbolizadas” que de “lógica pura”. Mesmo sem palavras ou conceitos explícitos, o experienciar é “simbolizado” no mínimo pelas interações e situações nas quais o experienciar ocorre. Mas se lá estão sempre somente ambas, como podemos atribuir precedência ao experienciar em detrimento da inseparável simbolização? Se cada momento é ambos, parecia impossível saber o que teria sido feito por um ou pelo outro. Mas existe uma maneira de discernir seus diferentes papéis – nas transições de uma ação ou afirmação, para outra. 27

Nesta citação, GENDLIN apresenta os pressupostos de uma aprendizagem

que ocorreria pelo experienciar, aproximando-se do que discuti, acima, como sendo

fazer experiência. Tratar-se-ia de Aprendizagem Signficativa, que percebo permear

as esferas da minha atuação profissional, sendo, por isso, discutida no próximo ítem.

À semelhança de HEIDEGGER e GOLDSTEIN, GENDLIN está cuidadosamente

introduzindo as bases para seu trabalho, mostrando como e por que ele difere do

trabalho, tanto educacional quanto psicoterápico, fundamentados exclusivamente na

razão. Esclarece que o experienciar (experiencial) é simbolizado por conceitos ou

símbolos como por afetos, fazendo-se sempre presente em todos os momentos. Ao

referir-se às transições, mostra como o experienciar sucessivo vai modificando a

pessoa, levando-a a tomar rumo no seu pensar e agir. A rigor, está tornando

presente e atuante a afetabilidade do humano, portanto, como Befindlichkeit, vista

por uma outra perspectiva.

Explicitado o como de meu trabalho, quero agora descrever meu trabalho

como Supervisor de Apoio Psicológico. Trata-se de uma prática que visa capacitar28

o profissional de saúde e/ou educação a realizar sua tarefa da melhor forma

possível. Isto significa mobilizar neste profissional seus recursos pessoais. Parto do

princípio que ele pode encontrar as respostas aos seus questionamentos

27 Grifos do autor. 28 Capacitar não é exatamente um termo apropriado, visto que ninguém tem o poder de capacitar o outro. Contudo, por enquanto, por falta de melhor opção, será utilizado, contando que no decorrer do trabalho uma palavra mais significativa se apresente.

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profissionais dentro de si próprio, na medida em que se localizar em relação a si

próprio, à sua clientela, à instituição na qual está inserido e ao Supervisor de Apoio

Psicológico, o potencial “portador” da mudança, e que pode não ser bem-vindo ao

meio no qual pretende trabalhar, justamente por ser o portador de mudanças, aquele

que pode causar um desequilíbrio na situação atual, aquele que pode vir a fazer com

que se evidencie no grupo a necessidade de um outro equilíbrio, uma outra

possibilidade, um outro sentido.

Para MORATO (1999, p. 72-73), a supervisão (...) estaria contemplando o interjogo do processo de conhecimento como discutido por FIGUEIREDO (1995). Implica zona de trânsito entre o conhecimento tácito ou pessoal (constituído a partir de disposições e habilidades afetivas, cognitivas, motoras e verbais do sujeito, de natureza pré-reflexiva e eficazmente incorporadas no corpo) e o conhecimento explícito ou focal (passível de tematização por esforço reflexivo e representacional, pressupondo distanciamento, mas carente de compreensibilidade). Como compreender diz respeito à possibilidade de transformar as experiências afetivo-cognitivas em criação de sentido, a partir de vivências sensíveis (GENDLIN, 1962), para o conhecimento focal é básico o conhecimento pessoal como fundo significativo e contextualizado.

Assim o sentido de supervisão do qual se parte é: situação contextualizada para que um profissional resgate sua própria condição de indivíduo com dúvidas e estranhamentos em seu contato profissional de ajuda a indivíduos, para que, a partir de seus próprios questionamentos e dificuldades, possa apresentar-se mais propriamente receptivo e disponível em sua atuação de ajuda para encaminhar o cliente a redimensionar-se em sua vida. Possibilidade de constituição de subjetividade pela criação de sentido.

Para a autora, esse interjogo pode ser compreendido como uma prática de

supervisão, como “um elemento facilitador do processo de compreensão dos

fenômenos de subjetividade e intersubjetividade” (idem, p. 72), uma aprendizagem

em movimento que possibilitaria ao supervisionando abrir-se às multiplicidades e

imprevistos com as quais poderia vir a encontrar-se em seu trabalho, dando-lhe a

ver sua condição de, ao mesmo tempo, tocar e ser tocado pelo mundo. Essa mútua

tangibilidade permite a criação de sentido, constituindo a subjetividade ao nomear o

mundo pelo encontrar-se.

Investido do papel de Supervisor, assumo ações que podem tanto ser

terapêuticas quanto pedagógicas. Lanço mão de todos os meus recursos

disponíveis no momento, para disponibilizar no outro seus recursos próprios.

Considero-me um membro da equipe com a qual trabalho, reconhecendo-me pelo

pronome “nós”, que freqüentemente utilizo. No tocante ao aspecto terapêutico do

trabalho, quero deixar claro que ele acontece dentro de limites, uma vez que a

proposta não é de psicoterapia no sentido tradicional.

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Por outro lado, outra vertente desta prática clínica encontra-se, também, na Psicologia Social, pela qual a intervenção psicológica une olhares de um clínico e um investigador na situação real dos sujeitos sociais, ou seja, em seu cotidiano, constituídos e constituintes de organizações, comunidades, instituições. Desta maneira, deparamos-nos com uma forma de ação recente da Psicologia, realizada e pesquisada pela Psicologia Social Clínica ou Psicossociologia (ANDRADE e MORATO, 2004, p. 26)

Quando leio, em ANDRADE e MORATO, a expressão Psicologia Social

Clínica, sou remetido às experiências profissionais pelas quais passei, e tal

expressão me libera e liberta de enquadres da “saia justa” da Psicologia Clínica

tradicional, direcionando-me a uma Psicologia que posso exercer onde quer que

haja um entre. Ao apresentar isso, ocorre-me o trabalho desenvolvido no Projeto

Esporte-Talento, sobre o qual ainda neste capítulo há um breve relato. Nele, os

atendimentos clínicos e supervisões aconteciam em quadras de esporte,

arquibancadas de ginásios esportivos, nos gramados do CEPEUSP, na raia

olímpica, nas mesinhas da lanchonete, em salas fechadas, nos vestiários, nos

banheiros dos vestiários... Um trabalho efetivo, in loco, imediato, rico em

possibilidades, e fascinante.

Se, por um lado acabei de falar da Supervisão de Apoio Psicológico como

uma modalidade atual da prática psicológica em clínica, procede agora, em

contrapartida, apresentá-la como uma possibilidade em prática educativa, também

distante dos enquadres educacionais tradicionais. Cabe falar agora de educação, educação enquanto algo que diz respeito à possibilidade de o homem habitar a sociedade em que vive, ou seja, processo que permite ao homem “humanizar-se”. Educar não é apenas ensinar ou corrigir, é fazer daquele indivíduo alguém capaz de ser responsável por si mesmo, no sentido de assumir sua própria identidade. É permitir que este se aproprie da sua individualidade, do seu modo de ser no mundo. Portanto educar é uma tarefa que nos remete ao oferecimento de condições favoráveis para o desenvolvimento e crescimento. Sendo assim, educadores se mostram engajados nesse processo, compromissados diretamente com ele. Qualquer ato educativo supõe a criação de um ambiente possível de suscitar descobertas. Ambiente este que também inclui o educador, na medida em que ele funciona como “catalisador” da produção de novos sentidos, pois permite a relação daquele que quer conhecer com o objeto a ser conhecido, relação que reconstrói objeto e sujeito, modifica-os, e engendra a apropriação do conhecido pelo conhecedor. Nesse sentido, educador é alguém capaz de acompanhar o indivíduo na descoberta que esse realiza do mundo e de si mesmo, já que ao descobrir o mundo, o próprio indivíduo é redescoberto. Encontro entre educando e mundo possibilitado por educador, que se desprende de si para promovê-lo (BACCHI, 1999, p. 217).

Acredito que a riqueza deste texto de BACCHI resida no fato de

educação ser compreendida por num enquadre extremamente lato, já que poderia

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ser direcionada a uma multiplicidade de atividades profissionais, onde quer que haja

“humanidade”. Afinal, onde quer que haja um “entre”-humanos, como, na atividade

profissional de professores, assistentes sociais, fonoaudiólogos, fisioterapeutas,

médicos, enfermeiros, dentistas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, enfim, os

profissionais de encontro29, vislumbra-se essa condição da con-vivênvia; além de

outros que, mesmo não sendo assim compreendida a tarefa característica de suas

profissões, a desempenham, sob certas situações, como advogados, engenheiros,

biólogos, faxineiros, bedéis, jardineiros, porteiros... A meu ver, a questão chave é o

desprendimento de si, do qual fala a autora, que compreendo como generosidade [lat. generosìtas,átis 'nobreza, boa qualidade, boa raça (de animais)'; ver gen-; DEH (Note-

se que o elemento de composição gen- é o mesmo daquele de gênese, ou seja, nascer,

gerar, produzir)], com o sentido da ge(ne)ração de algo.

BACCHI (1999, p. 215) resgata a origem da denominação da atividade de

Supervisão de Apoio Psicológico “... no sentido de diferenciá-la de algo como uma

supervisão técnica, onde se enfatiza a consecução correta da tarefa (...) A finalidade

não é orientação, e sim instrumentalização do profissional...”. Comenta a importância

desta proposta de prática para profissionais de saúde e educação em função da

possibilidade de redimensionamento de seu cotidiano de atuação, permeada por um

olhar não contaminado, que resgata o profissional propriamente dito de sua ação.

A respeito dos Supervisores de Apoio Psicológico, afirma que São profissionais que se propõe a trabalhar com outros indivíduos numa relação de ajuda, o que os defronta com os mecanismos presentes em qualquer relação humana. Portanto, se expõe e se permitem entrar em contato com outras subjetividades, o que só é possível a partir da própria inserção subjetiva nessa relação. Nessa perspectiva, o profissional empresta sua subjetividade e, assim, pode estabelecer uma real relação de ajuda, seja visualizando, em última instância, a educação ou a saúde (idem, p. 215)

BACCHI fala do desprendimento de si, característico dos profissionais que,

através de seu trabalho, visam uma produção compartilhável, algo da ordem da arte

(ars) que, portanto, envolve liberdade, criatividade e prazer na consecução de seu

trabalho, colocado aqui em oposição a trabalho burocrático, puro e simples

cumprimento de tarefas.

A seguir, faço um breve relato do que foram os meus três anos de

participação como Supervisor de Apoio Psicológico no Projeto Esporte-Talento

29 Expressão de FIGUEIREDO (1993).

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(PET), um convênio entre o Instituto Ayrton Senna (IAS) e o Centro de Práticas

Esportivas da Universidade de São Paulo (CEPEUSP). A situação aqui relatada

refere-se a como esse projeto acontecia entre os anos de 1996 a 1999, quando da

participação do IPUSP nessa empreitada.

O Projeto Esporte-Talento é desenvolvido no CEPEUSP com apoio financeiro

do IAS. Seu objetivo é oferecer, a jovens entre 10 e 16 anos, de população de baixa

renda, a possibilidade de se desenvolverem dentro das modalidades esportivas

oferecidas pelo PET (futebol, handebol, basquete e canoagem) e a oportunidade de

que este processo possa tornar-se também uma experiência educativa através do

esporte, logrando uma experiência de crescimento pessoal e desenvolvimento da

cidadania. Dentro das possibilidades financeiras do PET, era oferecida, aos jovens,

ajuda sob forma de passes de ônibus e lanches.

Como o PET era desenvolvido dentro da Universidade de São Paulo, foram

contatados os institutos e faculdades que poderiam oferecer préstimos de interesse

para o PET por se interessassem pela proposta. Assim, estavam envolvidos, de

forma nominal ou efetiva (dependendo do interesse e disponibilidade), estagiários e

profissionais, como técnicos esportivos, assistentes sociais, nutricionistas,

fisioterapeutas, médicos do Hospital Universitário e psicólogos do Serviço de

Aconselhamento Psicológico (SAP) do IPUSP.

A atuação do SAP no PET contemplava duas vertentes: uma que se dedicava

ao trabalho diretamente com os jovens, outra que se dedicava ao trabalho com os

técnicos esportivos. O trabalho por mim desenvolvido refere-se à atuação com os

técnicos esportivos. Devido a uma confusão de organização por parte dos

profissionais ligados ao CEPEUSP, ela acabou se refletindo, também, sobre a equipe

do SAP. Havia uma grande desinformação quanto às propostas e objetivos do PET,

que ora parecia ser deliberadamente causada, ora parecia ser reflexo da

organização do próprio programa em fase de implantação.

A consígnia de que a prática psicológica oferecia-se para aqueles que dela

quisessem participar parecia não ser compreendida. O coordenador geral

convocava, quase que compulsoriamente, os técnicos para comparecerem às

reuniões, o que ocasionava uma “participação com má vontade”. Alguns finalmente

se interessaram por nossa proposta e, com eles e a partir deles, foi possível

desenvolver um trabalho.

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As reuniões começavam sempre atrasadas, com um pequeno número de

participantes, mas, à medida que o tempo passava, iam chegando outros membros

do corpo técnico. Estas reuniões ocorreram em base mensal, uma vez que eram

realizadas em horário destinado a reuniões técnicas do grupo, das quais não

poderiam abrir mão mais de uma vez por mês. Tal hiato de um mês fazia, porém,

com que parte da prática desenvolvida se diluísse no tempo; a cada reunião, era

necessário destinar um tempo muito grande (aproximadamente quase metade das

duas horas disponíveis) para aquecimento e retomada de questões.

Invariavelmente, eram abordados temas relativos à organização do PET,

problemas com as verbas, que, segundo os técnicos, era insuficiente, além de, às

vezes, serem suspensas dada a demora na renovação do convênio CEPEUSP-IAS.

Discutiam-se as conseqüências dessas situações na sua relação com os alunos:

como fazê-los treinar o ano inteiro, para, depois, não haver verba para participarem

de torneios; como atuar frente à frustração causada por tal situação. Em função

disso, geralmente pediam nossas “dicas técnicas” essa atuação, como que

eximindo-se de seu comprometimento pessoal.

A partir dos relatos dos técnicos nessas ocasiões, ficava evidente que, fora as

condições não adequadas para o desenvolvimento do trabalho, eles tinham grande

prazer em desenvolvê-lo, não encontrando, via de regra, muitos problemas para

realizá-lo. Quando ocorriam, pareciam dever-se, principalmente, pela interferência da

estrutura organizacional do PET (IAS e direção do CEPEUSP), referentes não

somente à insuficiência de verbas, mas fundamentalmente quanto a ingerências em

forma de mandos e desmandos tanto a que atividades realizar quanto a como

deveriam trabalhar. Tais situações complicavam-se ainda mais, habituados que

estão a funcionar enquanto indivíduos, com muita dificuldade de se articularem

enquanto uma equipe de técnicos: para além de sua especificidade de técnicos em

modalidades esportivas diferentes, todos poderiam partilhar do mesmo objetivo no

que diz respeito à tarefa a ser desenvolvida com os alunos. Essa forma individualista

acentuou-se nas próprias reuniões, já que muitos técnicos, pertencentes a

modalidades diferentes mas trabalhando no mesmo horário, ficaram se conhecendo

somente nessa ocasião. Desse modo, parte do tempo eram discutidas relações

políticas e ideológicas dos técnicos entre si, além daquelas entre eles e seus alunos

e com as instituições envolvidas no PET.

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Durante o processo, aparentavam ter dificuldade de falarem de si próprios

enquanto pessoas, tendendo mais a discutir as questões de um ponto de vista

objetivo e técnico. Nesse sentido, dedicavam boa parte do tempo a discutir assuntos

burocráticos (há que se levar em conta que o coordenador da equipe de técnicos

esteve presente a todas as reuniões), como que “fugindo” de temas mais pessoais.

No entanto, após um semestre de encontros com nossa equipe, passaram a discutir

possibilidades acerca de como formarem e serem efetivamente um grupo de

técnicos, com objetivos comuns e pertencentes a um mesmo programa. Pareciam ter

podido iniciar uma articulação. Com isso, foi se tornando evidente como apenas uma

pequena minoria entre os técnicos conseguia compreender o cunho educacional a

que se propunha o PET. A maioria tendia a considerá-lo por uma ótica esportiva

técnica, visto que, no início de sua implantação, o próprio coordenador geral assim

compreendia e queria conduzir o PET, mesmo que contra as diretrizes de seu

parceiro IAS.

Como coordenador do grupo, a impressão mais marcante dessa prática é o

desgaste causado pela desconstrução constante do já construído, demandando a

cada reunião um recomeçar. Além do espaçamento entre as reuniões, essa

configuração decorria dos freqüentes “golpes” (ordens, contra-ordens, solicitações

sem o respectivo respaldo político, financeiro e de infra-estrutura) desferidos ao

grupo pela organização do programa entre uma reunião e outra.

A prática foi realizada com dois grupos de técnicos, em função de seus

horários de trabalho. Após um período inicial de aproximadamente um semestre, os

dois grupos começaram a se diferenciar de forma acentuada. O grupo A foi,

paulatinamente, abordando questões mais pessoais, mas relacionadas ao trabalho

desenvolvido, revelando um grupo bastante coeso e organizado em comissões para

cuidar de tarefas específicas. Em função da falta de verbas, criaram a “campanha da

latinha”, na qual seus alunos traziam tantas latas quanto possível, para serem

recicladas, obtendo, assim, uma receita extra para gastos necessários, como compra

de uniformes para jogos em competições, dado que conseguiam colecionar, em

pouco tempo, um número enorme de latinhas. Em determinado momento os

técnicos, já bastante articulados, pensaram em recorrer ao registro de sua

experiência no PET como artigo para publicação. Tal idéia decorreu como

necessidade de defesa frente às ingerências sofridas durante seu processo, para

que pudessem se respaldar em sua própria experiência e em bibliografia, em

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reuniões com os coordenadores do PET. Compreendiam isso como uma forma de

não serem “levados de roldão” quando se vissem frente a uma lógica racionalista,

que não contemplasse os aspectos afetivo e educativo de seu trabalho. Percebiam

como é diverso o modo de medição de crescimento pessoal caso se opte por um

modo não objetivo.

Nesse sentido, o grupo B encontrava-se em outro momento, não cabendo

nenhuma comparação por juízo de valor. Dentre seus membros, havia alguns mais

velhos e experientes, que, por terem sido técnicos precursores no PET, tendiam a

considerá-lo quase como um projeto pessoal, eminentemente técnico, à procura de

talentos esportivos. Negavam-se, de certa forma, a concebê-lo como um projeto

eminentemente educativo, e técnico dentro do possível, já que apenas uma pequena

parcela dos alunos teria possibilidade de se revelarem como talento em termos

esportivos. Em contrapartida, como a maioria dos demais técnicos compreendia que

o projeto poderia ser, através do esporte, uma rica experiência educacional,

procurava impor suas opiniões, não abrindo espaço para idéias e pessoas diferentes.

Os encontros com este grupo foram, via de regra, foram tensos e agressivos. A

impressão era que os membros mais velhos se incomodavam com a presença do

Coordenador do PET no grupo, por não ter ele participado dos primórdios do PET,

mas agora com papel de poder na condução do projeto. Parecia que eles é que

achariam justo ocupar uma tal posição. Dentro desta perspectiva, pareciam disputar

entre si qual deles deveria, teoricamente, ocupar esta posição nas discussões atuais

do grupo, marcando, assim, sua prevalência de opinião para condução. Era como se

o grupo devesse respeito aos “donos” implícitos.

Contudo, com o passar do tempo, tal configuração foi paulatinamente se

modificando, e o grupo começou a tomar um rumo semelhante ao do grupo A.

Chegou até a verbalizar, nos encontros, tal diferença entre grupos, diferença essa

que, apesar das pesadas criticas de seus participantes, puderam mobilizar o grupo,

que se percebeu pesado e parado no tempo. Mostraram ressalvas para declarar a

vinculação afetiva que tinham com o trabalho e com os alunos, não se legitimando

como referência profissional, pessoal e afetiva para eles, como se isto não pudesse

ser contemplado pelo fato de serem “técnicos”.

Muitas vezes lhes foi perguntado se achavam que deveríamos continuar o

trabalho de Supervisão de Apoio Psicológico, ou não. As respostas em geral não

eram elucidativas, mas quase sempre muito controvertidas, revelando o desconforto

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que a situação lhes causava. Se, por um lado, pareciam querer interromper os

encontros, por outro pareciam querer sua continuidade, como que informando que,

apesar do incômodo, de alguma forma consideravam o trabalho importante. Apenas

um técnico de uma das modalidades esportivas se colocou frontalmente contra

nosso trabalho, não comparecendo mais às reuniões (“Não temos tempo de vir aqui

ficar discutindo estas coisas. Dar treino é mais importante”).

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de Apoio Psicológico. Com certeza, revelava-se, com isso, o resultado de nosso

trabalho, pela constituição de um grupo de técnicos que podiam se autogerir,

buscando formas de contornar problemas e encontrar soluções, sem esperar ou

depender de “ordens ou normas que viessem de fora”.

Creio que essa remoração pode revelar o sentido pelo qual BACCHI discutiu

essa modalidade de prática clínica. Assim, se no presente capítulo a Supervisão de

Apoio Psicológico foi apresentada e discutida nas suas diferentes formas possíveis,

apresentarei agora as Oficinas de Recursos Expressivos, primeiramente de forma

genérica, para então comentá-las como uma das formas possíveis de se fazer a

Supervisão de Apoio Psicológico.

3.6 Oficinas de recursos expressivos – oxigenação oficina lat. officína,ae (opificína em Plauto) 'oficina, tenda, fábrica, manufatura; donde acp. mais precisas em linguagem técnica: galinheiro, aviário; forja; oficina onde se cunham moedas'; ver ofici- e faz-. (DEH)

No âmbito deste trabalho, as acepções mais interessantes parecem ser oficina,

manufatura e forja, pois nos dão conta de um lugar no qual coisas podem ser

“arrumadas, criadas, forjadas, formadas” e, eventualmente com uma utilidade. Já as

acepções galinheiro e aviário, permitem ser compreendido como um criadouro, no

caso criadouro de sentido: sentido fecundado, chocado, vindo ao mundo para ser

levado adiante. Recurso lat. recúrsus,us 'possibilidade de voltar; caminho para voltar; volta'; ver corr- corr- elemento de composição antepositivo, do v.lat. curro,is,cucurri,cursum,currère 'correr (diz-se dos homens, dos animais e, p.ext., dos objetos inanimados - voz, pluma, astros, tempo etc.); correr em socorro, correr para os braços de alguém, esparramar etc.

A etimologia de recurso remete a retomar um curso, um caminho, voltar para ir,

correr em socorro. Neste contexto, esta retomada é a da humanidade (com o sentido

utilizado por BACCHI no capítulo anterior) das pessoas que das oficinas participam,

sendo esta participação muitas vezes um correr em socorro, tanto por parte dos

participantes, quanto da parte dos facilitadores. Um re-torno a um curso (como

aquele definido pelas margens de um rio) abandonado.

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lat. expressìo,ónis, rad. de expressum, supn. de exprimère 'apertar com força, espremer, tirar espremendo, reproduzir, representar, retratar, exprimir, dizer, expor; enunciar claramente, declarar formalmente'; ver -prim-. (DEH)

Retratar, exprimir, dizer, expor, enunciar claramente e declarar formalmente

parecem ser as palavras-chave, ou até mesmo de ex-pressão, retomando um modo

de ser humano esquecido. Ex-pressar, premer para fora algo que lá está, mas não

podendo exteriorizar-se. Parte, portanto, do princípio de este(s) algo(s) está(ão) lá,

no ser-ai.

Originalmente, o nome deste capítulo não continha a palavra oxigenação

[oxidação ('reação com oxigênio'), lufada de ar puro; renovação, vivificação. DEH], que no

entanto passou a incluída por considerar-se que daria um “ar de renovação” a algo

que estaria fechado em si mesmo. A consulta à etimologia mais uma vez me

surpreendeu, parecendo que, de alguma forma, havia sido intuído; ou, numa outra

leitura, por eu já ter tantas vezes experienciado a palavra, para mim ela tinha um

sentido para além de sua relação com oxigênio.

oxigênio ox(i/o)- + -gênio, descoberto em 1774 por J. Priesley, cp. fr. oxygène, cujo aportuguesamento ou espanholizamento teria gerado dúvida quanto à acentuação, do que dão prova a solução port. oxigênio e o esp. oxígeno; f.hist. 1836 oxygeneo, 1858 oxygénio, 1858 oxygéneo ox(i/o) elemento de composição antepositivo, do gr. oksús,eîa,ú 'agudo, pontudo, vivo, fino, ácido, penetrante -gênio elemento de composição pospositivo, conexo com -genia (ver) e a noção de 'nascimento, origem, descendência, raça'. (DEH)

A forma como experiencio os dois elementos de composição leva a pensar

em a origem de algo vivo, penetrante, agudo, no sentido de necessário como sendo

próprio a, mesclando-se a oxigênio com relação à sua presença à vida.

SILVA (2003, p. 63), discutindo as muitas “faces” que as oficinas podem ter,

apresenta a utilização da oficina de criatividade como recurso para Supervisão de

Apoio Psicológico. O que estamos propondo, então, é a utilização da oficina de criatividade como recurso para a supervisão clínica e como possibilidade de apoio e cuidado. Esta atividade pode servir para uma abertura à compreensão das problemáticas, dificuldades e necessidades desses profissionais e, conseqüentemente, quando possível, auxiliar na superação das mesmas. Assim, parece-nos importante dispor de uma Oficina de Criatividade como uma forma de serviço que nos parece pertinente aos profissionais e instituições vinculadas ao idoso;30 ao mesmo tempo, acreditamos que esse serviço possa nos auxiliar na compreensão das oficinas de criatividade como uma forma de apoio e de recurso para a supervisão psicológica.

30 Este trabalho desenvolvido por SILVA (2003) se deu no âmbito de oficinas de criatividade para idosos.

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Apresentada no capítulo anterior, a Supervisão de Apoio Psicológico em suas

múltiplas formas, cabe agora mais uma descrição, desta vez em torno do que pode

ser uma oficina de recursos expressivos, utilizada como meio para a Supervisão de

Apoio Psicológico. Na citação acima, SILVA está justamente procedendo à transição

entre uma coisa e outra, justificando a utilização de uma forma criativa de trabalho

de supervisão. Descreve, assim, sua concepção de oficina: Em certo sentido, a Oficina de Criatividade propõe um momento de reflexão e de elaboração de experiências, ao criar um ‘espaço” lúdico-vivencial que pode nos auxiliar na organização de conteúdos vivenciais, oportunizando o re-pensar de atividades, conceitos e ações, dando condições para que cada participante (re)signifique, (re)dimensione e utilize suas capacidades potencializadoras de criação e criatividade, fazendo-se construindo-se tal qual uma obra de arte. É nesse sentido que estamos propondo a Oficina de Criatividade como um recurso instrumental que possa auxiliar uma outra atividade: a Supervisão de Apoio Psicológico (idem, p. 81)

Destacando o que considero um caráter significativo de uma oficina, o de criar

um espaço lúdico-vivencial, o aspecto brincadeira séria. Lembro-me das aulas do

querido mestre Lino de Macedo, dizendo que conhecer algo é brincar com esse

algo. Portanto, posso através dos recursos propiciados pela oficina brincar com

objetos, temas ou questões, conhecendo com eles, criando pela intimidade com

eles, para que um tal conhecimento, via uma vivência-brincadeira, torne-se útil em

situações sérias pela vida adiante. Trata-se, a meu ver, de uma radical31

aproximação entre ciência e arte: uma techné? Um fazer ciência através da arte, re-

correndo ao artesão existente em cada um de nós. Quem um dia leu a coleção de

livros para crianças de Monteiro Lobato, sabe da riqueza, leveza, consistência e

seriedade com que se pode lançar mão do “mundo-do-faz-de-conta”!

As oficinas podem representar a disponibilidade de uma tribuna livre, para

discutir até as últimas conseqüências as questões do humano, através de

experimentação e experienciação de instumentalizações que tenham a possibilidade

de capacitar estas pessoas a darem conta das questões, problemas e situações com

as quais estejam se defrontando. É uma tribuna para a discussão da polis (um estado

ou sociedade, esp. quando caracterizado por um senso de comunidade. DEH), um espaço

para se discutir e se fazer política ou, ainda, fazer-se político, participante. Ou seja,

as oficinas de criatividade têm sua dimensão política.

31 Radical no sentido de raiz originária.

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Mas que cuidados tomar com uma atividade do “mundo-do-faz-de-conta”

inserido no mundo real? Segundo CUPERTINO (2001, p. 167), Atrelados estamos, então, à necessidade de oferecer razões. Apoiamo-nos no logos, em nossa tradição visto como a pedra fundamental do edifício lógico: a capacidade de organizar representações erigidas em sistemas articulados, demonstráveis pela argumentação, ou por um discurso ou fala argumentativa. Através (e, se possível, apesar) disso, concluo que a teorização possível terá que se dar como uma (des)construção argumentada e metafórica, proveniente mais da abordagem global do fenômeno que de seus detalhes particulares, e apenas parcialmente apoiada na desconstrução das atividades e de suas influências.

Entendo esta passagem de CUPERTINO como um alerta para que não

sejamos tentados a querer rever e desconstruir em nosso trabalho tudo aquilo que

está à nossa volta, e que uma abordagem global do fenômeno nestes termos terá

mais chances de sucesso. Apesar da autora se referir à teorização passível de ser

feita sobre a proposta de trabalho (a teorização sobre a idéia oficina), seu pensar

cabe igualmente na prática das oficinas, a fim de se poder tecer um sentido que não

se torne divorciado da realidade circundante.

Em outro trecho, citando HEIDEGGER, a autora chama a atenção para como

lidar com aquilo que nas oficinas parece ser algo isento de sentido. Remete também

a uma reflexão sobre as questões abordadas no parágrafo anterior. “O pensamento meditante exige de nós que não nos fixemos em um só aspecto das coisas, que não sejamos prisioneiros de uma representação, que não nos lancemos numa via única em uma só direção. O pensamento meditante exige de nós que aceitemos nos deter sobre as coisas que à primeira vista parecem inconciliáveis” (HEIDEGGER, 1990, p. 144). Num pensar paciente, a escuta se traduz como um passar pela experiência vivenciando, como o próprio “passar” nos diz, passo a passo. É um intervalo modorrento como o de que já falávamos no interregno, nem atividade nem passividade, um aguardar atento, numa atenção que é, ao mesmo tempo, a presença na atenção e a presença na distração, formulação que pode designar, também, a nossa tão conhecida atenção flutuante (CUPERTINO, 2001, p. 184).

Esta passagem está, a meu ver, conectada com o desprendimento de si

citado por BACCHI no capítulo anterior, e que também aqui qualifico de

generosidade. É uma generosidade em termos de tempo, de si próprio, de dar-se e

receber(-se), de respeito para com os diferentes tempos presentes no grupo, e ao

manejo do tempo próprio do trabalho com grupos. É uma sabedoria intrínseca a

quem tem experiência com a condução de grupos (sábio, lat. sapìdus,a,um 'que tem

sabor, saboroso; no b.-lat. sábio, virtuoso'; ver sab-; a datação é para o subst. 'aquele que

sabe muito'. DEH), com o sentido daquele que sabe apreciar, saborear, os

movimentos e seus tempos.

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Mas o que faz um facilitador de oficinas, um oficineiro? Como facilitador, o oficineiro vai acompanhando o processo criativo de pessoas que têm, no contato com os recursos expressivos no espaço/tempo das oficinas, a oportunidade de tomada de consciência e ampliação de seu potencial através de canais não-racionais e não-verbais de expressão, tão pouco experienciados hoje em dia, e acredita que essa experiência é, em si, enriquecedora e profunda. Nesse eixo realiza-se a sua prática (SCHMIDT e OSTRONOFF, 1999, p. 336).

Penso que a idéia de conceber o trabalho do oficineiro como administrador (lat. administrátor,óris 'o que administra, administrador, governador, procurador, diretor'.

DEH) e ministrador (ministrar - lat. minístro,as,ávi, átum,áre 'servir, pôr na mesa o comer,

fornecer, ajudar, cuidar, dar atenção a, governar, dirigir'. DEH) da oficina, possa

esclarecer seu papel e funções no grupo. Como administrador, cabe a ele prover as

condições materiais para a execução da oficina (espaço físico, recursos e material

de consumo, formação do(s) grupo(s), divisão de tempo, organização do grupo,

escolha de tema), ou seja, cuidar para que a infra-estrutura para a realização da

oficina esteja presente. Já como ministrador, cabe ao oficineiro cuidar de todo o tipo

de entres que possa ocorrer no transcorrer dos trabalhos, preparando as condições

para que possa ministrar quitutes experienciais.

Digo isto, pois imagino o cozinheiro, professor de culinária, que trabalha em

uma cozinha abastecida pelo administrador (que portanto dá a amplitude do

cardápio possível de ser servido), para servir aos freqüentadores deste

estabelecimento. Para isso, deve ser conhecedor dos insumos disponíveis, para

poder ficar atento aos seus tempos de cozimento, para saber compor os pratos e,

sempre que possível, reconhecer de qual tipo de nutrientes sua clientela está

necessitando. Dispensa, desta forma, atenção e cuidado a ela, tendo inclusive a

incumbência de alterar o cardápio previsto, caso considere necessário. Deve basear-

se, assim, também em conhecimentos de “nutrição experiencial”. Portanto, serve e

ensina a servir. Cabe ao oficineiro o planejamento das oficinas: a constituição de cada grupo; a escolha do tema adequado às necessidades específicas dos grupos; a determinação dos recursos – corporais, gráficos, literários ou outros – que melhor atendam à exploração do tema e dos materiais e, finalmente, a divulgação. Está, porém, aberto a avaliar, passo a passo, a dinâmica do grupo e as experiências pessoais dos participantes, podendo fazer um replanejamento no decorrer do processo. Assim, essa organização pede flexibilidade e serve, sobretudo, como referência, como um solo organizador sobre o qual possa se construir o trabalho. Durante a realização de cada oficina propõe e coordena as atividades, cuidadosamente atento aos movimentos e possibilidades grupais e individuais, indo, dessa forma, ao encontro destes movimentos. Intervém sim, porém, apenas na medida em que sua intervenção facilita a explicitação dos modos de criar de cada um. Seu olhar para os produtos não é psicologicamente interpretativo, mas

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compreensivo: a partir do significado que cada pessoa atribui ao seu produto, ajuda na percepção das dimensões de seu fazer criativo, suas formas de se dar e de ser facilitado (idem, p. 336).

A citação de SCHMIDT e OSTRONOFF permite ressaltar a metáfora do

cozinheiro. Em outro trecho, as mesmas autoras falam a respeito do que se pode

esperar em termos de efeitos do trabalho com as oficinas, quando feitas com um

grupo de participantes pertencentes a uma instituição. Um deles diz respeito aos “transtornos” físicos e sócio-psíquicos que as oficinas geralmente acarretam. Existe, implicitamente, na proposta de oficinas de criatividade, uma provocação à rotina institucional que se expressa na desacomodação dos modos de usar o espaço e o tempo e, também, na criação de uma forma de relação interpessoal não usual. Estes efeitos devem ser considerados pelo oficineiro, com a ajuda dos participantes, pois podem contribuir para a formação de alianças e para a prevenção de conflitos na esfera mais geral da instituição. Trata-se, na verdade, de uma avaliação sobre a maior ou menor flexibilidade institucional ou sobre sua maior ou menor tolerância quanto à desacomodação de sua rotina. Esta avaliação terá conseqüências valiosas na configuração de um tempo e de um espaço propícios às atividades a serem desenvolvidas no âmbito de uma instituição concreta (SCHMIDT e OSTRONOFF, 1999, p. 342-343)

Os efeitos que uma oficina podem causar numa instituição são comparáveis

àqueles causados por um processo de psicoterapia familiar em dada família,

comparação válida, principalmente, para aquelas situações em que um ou mais

membros desta família “não puderam comparecer”, ou deliberadamente não

quiseram aparecer, sendo, muitas vezes, sua ausência muito mais significativa que

sua presença. A constelação do grupo se modifica, as correlações de força se

modificam, algumas pessoas se dão a conhecer, outras a se desconhecer. É

pertinente que o oficineiro faça uma leitura acurada das mudanças que venham a

ocorrer na constelação institucional, para que possa fazer correções de rumo que

venham a ser percebidas como necessárias, e para que ele próprio e/ou sua

proposta de trabalho não sejam expelidos “de surpresa” pelo contexto institucional. A outra ordem de efeitos refere-se a uma espécie de transpiração que emana do grupo que participa das oficinas para a esfera de toda a instituição. Com isso se quer chamar a atenção para o fato de que a oficina mobiliza não apenas aqueles que dela participem diretamente, mas, também, aqueles que ficam fora dela. Manifestações de curiosidade, interesse, desprezo, hostilidade, indiferença, entre outras, podem ocorrer nos agentes ou na clientela de uma instituição. O fato de que apenas um grupo institucional esteja envolvido na oficina, não significa que a experiência, do ponto de vista institucional, seja inócua. Nessa direção, a escuta e a observação destas manifestações extragrupo se apresentam como uma oportunidade de compreensão ampliada do contexto institucional e de ressignificação do sentido das oficinas em cada contexto (idem, p. 343).

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É também importante que o oficineiro mantenha uma constante e boa

interlocução com a instituição à qual sua clientela pertence, bem como com a própria

clientela. Pois há necessidade de um trabalho devidamente dosado para o grupo,

uma vez que as avaliações do trabalho feitas pelo oficineiro, pela instituição e pelo

grupo, muitas vezes não coincidem. Por exemplo, o oficineiro considera que os

objetivos do trabalho estão sendo alcançados, sua clientela idem, mas a instituição

não; ou oficineiro e instituição concordam, enquanto que a clientela discorda. Assim,

os “papos de corredor” são necessários, dando-se como continuidade do trabalho da

oficina mesma; afinal, ocorreu uma experienciação, que cada um levará consigo.

Uma vez que no contexto deste trabalho a oficina é de recursos expressivos,

cabe refletir sobre o que foi expresso, e de como isto será considerado. Afinal, esse

será um indício para uma interpretação possível para o sentido desta dissertação.

CARVALHO (1999, p. 376) diz que a “experiência e a comunicação oral estão

sendo cada vez mais substituídas pela informação registrada nas máquinas,

fenômeno que contribui enormemente para o enfraquecimento dos vínculos sociais”.

Questiona: Onde está a brisa da tarde que refrescava o calor do dia e anunciava o momento em que as cadeiras de balanço saíam nas calçadas para embalar velhas histórias?

Para, então, apresentar um quadro: São idos os tempos em que os pescadores, talvez mais felizes em seu ofício, recostavam-se à beira das jangadas contando suas façanhas reais e imaginárias nas ondas do mar. Já vai longe o tempo em que alguém aquecia o apetite dos que se sentavam em torno do fogão à lenha, momento em que a alquimia e o cheiro de tempero percorriam as fantasias suscitadas pelas histórias ali debulhadas. Lá fora vai o tempo em que o homem da bodega reclinava-se no balcão e, num dedo de prosa, nos contava os últimos acontecimentos da comunidade. Em qual baú se escondeu a arte de contar histórias? Por onde anda essa velha sábia que embalou sonhos, instigou a imaginação da molecada e deu forma e cor ao bem e ao mal? (idem, p. 375).

A autora refere-se a um tempo nem tão longínquo, em que o modo de vida

dos cidadãos permitia a eles terem tempo para compartilhar histórias, suas próprias,

ou estórias. Narravam estes fatos, ou seja, apresentavam-se como narrativas. narrar - lat. narro,as,ávi, átum,áre 'contar, expor narrando, narrar, dar a saber', der. de gnárus,a,um 'que conhece, que sabe'; ver -gno- -gno- - elemento de composição, interpositivo, de uma raiz i.-e. *gene-, *gno- 'conhecer', com ramificações em lat. e em gr.; a cognação gr. está representada em vern. por agn-, gnom(o)-, gnomon-, -gnose, gnoseo-, -gnosia, -gnósico, gnosio-, gnoso-, -gnosta e -gnóstico, vê-los; a lat., der. do v. incoativo nósco (antigo gnósco, atestado pelos gramáticos e pelas inscrições),is,nóvi,nótum,nóscère

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'começar a conhecer, aprender a conhecer, tomar conhecimento; conhecer' e do subst. norma,ae 'esquadria, esquadro; fig. modelo, exemplo', rad.vulg. conhec- (sXIII), do v.lat. cognosco,is,óvi, ìtum,cognoscère 'conhecer pelos sentidos, ver; saber, ter conhecimento de; conhecer por experiência, experimentar; reconhecer; ter trato carnal'. (DEH)

Chama a atenção narrativa ter, em sua etimologia, acepções como conhecer

pelos sentidos, ver, saber, ter conhecimento de, conhecer por experiência,

experimentar, reconhecer, ter trato carnal, que vão, diretamente, ao encontro do que

vim descrevendo em boa parte deste trabalho. A narrativa apresenta-se ao narrador

por todos esses sentidos. De acordo com Walter BENJAMIN (1994, p. 205), Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e elas se perdem quando não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo de trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o tom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual.

BENJAMIN diz do narrar histórias em situações que, há anos, eram comuns

no modo de vida entre os artesãos, que, trabalhando, contavam histórias. Nesse

sentido, refere-se à relevância da imersão do narrador em sua história, ao mesmo

tempo em que critica a rede de histórias que se desfaz e, com isso, um saber

narrativo que se desfaz. Conhecendo a história de BENJAMIN, não me é difícil

imaginar que esta sua concepção esteja atrelada à tradição oral judaica que, por

tantos anos, conseguiu transmitir os conhecimentos de seu povo, e que, pelas

mesmas razões, está se perdendo.

Retomando essa ótica, CARVALHO (1999, p. 378), comentando a narrativa

em BENJAMIN, destaca: As narrativas floresceram em um contexto de vida artesanal, comunitária, onde, movidos por uma outra forma de vivenciar a temporalidade e espacialidade (elementos constituintes do existir humano), os homens sentavam em rodas contando o que haviam vivido. As histórias transmitiam um certo modo de sentir a vida, de relacionar-se com a natureza e de prover os meios para sua subsistência. De uma maneira muitas vezes sutil, enigmática, na qual os inúmeros sentidos das mensagens eram desvelados a partir do modo como o ouvinte entrava em sintonia com a história, os contos transmitiam ensinamentos, “conselhos” sabiamente comunicados por quem bem viveu. O narrador contava aquilo que experienciava ou, ainda, a experiência que outros tinham a ele relatado. E, quando contava, ia ampliando a experiência dos ouvintes. Não é raro perceber que, no espaço aberto às narrativas, havia uma comunicação mais direta, não manipulada pela máquina do capital. Nesse contexto, o homem se encontrava frente a frente com o outro – aprendendo a ouvir, falar e respeitar diferentes percursos de vida: um momento de celebração da convivência.

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Benjamin elucida ainda a incerteza do narrador, que unia sua corporeidade àquilo que comunicava. Como não havia ainda uma forte cisão entre movimento corporal e pensamentos, entre trabalho manual e intelectual, a comunicação era mais inteira. Nesse sentido é que Benjamin nos fala de uma comunicação que ocorria artesanalmente, já que envolvia um movimento integrado que unia mãos, olhos e alma.

Há que se comentar a riqueza destacada por CARVALHO na arte da

narrativa: uma eficiente forma ancestral de manutenção do conhecimento e cultura,

que se aproxima ao que já foi discutido, aqui, anteriormente. É assim que, agora,

penso poder ser regatada, através de uma oficina de recursos expressivos, tanto as

atividades realizadas quanto relatos de participantes, pois poderiam ser tratados

como narrativas. O sentido seria poder encontrar-se com a expressividade de seus

participantes, ou seja, como retratar(-se), exprimir(se), dizer(-se), expor(-se), enunciar(-

se) claramente e declarar(-se) formalmente, sentido possível da palavra expressão.

Penso que, neste sentido, resgatar-se-ia a condição da fala, como discutida pela

Befindlichkeit.

É interessante notar que a atividade proposta é uma oficina, tradicionalmente

lugar de encontro de artífices, artesãos, artistas, possibilidade de retomada de

encontros narrativos. Ou, como diz SILVA (2003, p. 70), possibilidade de um

contexto de vida artesanal.

3.7 Aprendizagem Significativa

Certa vez, ouvi uma estória. Era a história de José. Era muito conhecido na

região em que morava, e reconhecido como uma pessoa extremamente religiosa.

Morava à beira de um rio. Certo dia, começou a chover muito e muito forte, as águas

do rio saíram de seu leito, avançando sobre as margens, atingindo a casa de José.

Por medida de segurança, resolveu subir ao ponto mais alto do telhado de sua casa.

A chuva continuou, e as águas continuaram a subir. Quando começaram a lamber a

parte baixa do telhado da casa, um barco a remo se aproximou. E o barqueiro disse:

“- Venha José, vamos embora, as notícias são de que está chovendo muito na

cabeceira do rio, você corre perigo!...” Ao que José respondeu: “- Não, não vou! Eu

tenho fé em Deus! Ele vai me tirar daqui!” O barqueiro insistiu, mas não conseguiu

convencê-lo. Retomou as remadas e foi salvar outras pessoas. As águas

continuaram a subir; quando começaram a molhar os pés de José, um barco a motor

se aproximou. “– Venha, José, vamos embora... O rio está violento, subindo...”, ao

que ele respondeu:” - Não, não vou! Eu tenho fé em Deus! Ele vai me tirar daqui!”.

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Após insistir, o barqueiro deu partida no motor e foi salvar outras pessoas. Com

água pelo peito e dificuldade de se equilibrar no telhado da casa, em função da forte

correnteza, José ouve um helicóptero se aproximar e ficar pairando sobre sua casa,

enquanto o piloto lança uma escada de cordas e com um megafone anuncia: “-

Agarra ai! Vamos embora...”. José sinaliza que não; o piloto insiste, José também...

e o helicóptero se vai para salvar outras pessoas. Pouco depois, José é levado pelas

águas, morrendo afogado.

Vai para o céu. Lá chegando, depara-se com uma fila de recém-chegados,

que estão sendo bem-vindos por Deus. Ao chegar a sua vez, José coloca a mão

para trás e caminha portal do céu adentro, proferindo toda sorte de impropérios.

Impassível, Deus termina de receber a leva de recém-chegados, fecha o portal do

céu e vai atrás de José, ocorrendo então o seguinte diálogo:

- Ora, meu filho, o que deu em você?

- Eu, lá embaixo, gritando feito um louco que tinha fé em Você, e Você me deixa

morrer?

- Não estou te entendendo... Mandei um barco a remo, um barco a motor e um

helicóptero irem te buscar... Se você não quis pegar nenhum deles, o que você quer

que eu faça?

Dizia eu no ítem 3.2, que “É no próprio fluxo do sentimento de ‘estar tendo a

experiência’ que o sujeito se atualiza e busca significados à experiência, e não por

um trabalho posterior. Um aspecto fundamental em saúde e em educação, a

possibilidade de alterar o modo como o sujeito está disposto no mundo, abrindo-lhe

possibilidade de novos sentidos, se dá pela reflexão na experiência, e não sobre a

experiência”. Com toda a certeza, a educação religiosa que José recebeu nunca lhe

chamou a atenção para o fato de que sua reflexão religiosa ocorria na sua

experiência/vivência diária, que ocorria por suas ações, em função das leituras que

viesse a fazer dos fatos vivenciados. E isto lhe custou a vida. Milton Nascimento

aponta: “Fé cega, faca amolada”, cuja derivada primeira poderia ser: “Compreensão

cega, faca amolada”, e a derivada segunda: “Experiência cega, faca amolada”. Se

José tivesse aprendido significativamente a noção de fé, embarcado estaria na nau

“Humanidade”...

José não se fiou naquilo que poderia estar acontecendo à sua volta,

preferindo manter-se em seu conhecimento, negando, assim, àquilo que

experienciava. Optou por não embarcar, por não seguir o que a ele se apresentava,

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um barco, sua experiência. Preso ficou à teoria de sua fé. Desencontrou-se de si

mesmo e do mundo experienciado.

No trabalho de formação como capacitação para profissionais de saúde e

educação, já me deparei com muitos Josés, pessoas tidas como experts em termos

de teoria e prática, que, no entanto, foram levadas de roldão pelas águas de suas

atividades profissionais. Não tiveram fé [lat. fìdes,éi 'fé, crença (no sentido religioso),

engajamento solene, garantia dada, juramento (na linguagem do direito) DEH] em si

próprios, não se comprometeram consigo próprios, não se fiaram na compreensão

humana que as alteridades, com as quais entraram em contato, lhes permitiu

conhecer e marcar-se por elas. Assim, não puderam compreender a si próprios,

arremessando a responsabilidade de seus fracassos e descontentamentos

profissionais sobre a alteridade ela mesma. Em suma, faltou-lhes a possibilidade de

aprenderem significativamente a encontrarem-se com questões emergidas em si

mesmos a partir de suas práticas profissionais.

A formação de profissionais de saúde e educação é tarefa complexa que envolve três aspectos básicos e específicos: teoria, prática e processo de desenvolvimento pessoal, que necessitam estar integrados e harmonizados entre si. Considerando que esses profissionais têm em si mesmos seu mais importante instrumento de trabalho, surge a questão de como propiciar a integração da teoria com a experiência da prática e do desenvolvimento pessoal MORATO e SCHMIDT (1999 p.117).

Desse modo, a forma de propiciar uma integração/encontro, a que se referem

MORATO e SCHMIDT, oferece-se através de uma situação metafórica daquela

vivida no cotidiano de trabalho de profissionais de saúde e educação, pela qual lhes

é garantido um espaço de discussão de suas atividades, visando rever suas

atuações pela sua expressividade pessoal e, como conseqüência, abre-se a

possibilidade de outros modos de encontrarem-se em situações problema. Tais

situações de grupo prestam-se como laboratórios, nos quais os profissionais podem

experimentar-se por novas formas de intervenção, encontrando-se, assim, suas

formas mais próprias e pertinentes de en-carar percalços que se apresentarem.

Enfatizei a palavra suas, pois o encontrar respostas (responder a) ao que surge é

singular, dizendo respeito a como cada um se encontra no mundo constituindo-se

por seu modo de singularização. Não existindo certeza de encontrar-se res-

pondendo certamente no mundo, resta ao profissional encontrar-se a si mesmo,

dentre a multiplicidade de possibilidades de respostas, qual a que seja mais

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apropriada a sua forma de ser, através de encontrar-se, com sua compreensão e

com sua fala, na experiência. A ocorrência de aprendizagem significativa depende da criação da criação de condições facilitadoras propiciadas por um certo contexto sociopsicológico. ROGERS (1978), através de grupos de encontro e das comunidades de aprendizagem, forneceu as bases para experiências inaugurais no campo da aprendizagem significativa. Os grupos de encontro consistem na convivência autogestionada de um grupo de seis a oito pessoas que se reúnem, semanalmente, durante uma hora e meia a duas horas, com a finalidade de conversarem sobre suas experiências pessoais e profissionais, conflitos e dificuldades na esfera do relacionamento interpessoal. As sessões do grupo são acompanhadas por um facilitador que, normalmente, é um especialista em assuntos humanos com formação em psicoterapia (idem, p. 118)

Esta citação de MORATO e SCHMIDT como grupos-protótipo, concebidos por

Carl ROGERS, foram os precursores daqueles aos quais hoje se recorre como

oferecimento de prática psicológica. Apresentam uma descrição do contexto

sociopsicológico para a ocorrência de aprendizagem significativa, das quais destaco

a convivência autogestionada. Por ela, seria possível propiciar aos membros do

grupo a possibilidade de encontrarem-se em possíveis desentendimentos,

diferenças e conflitos, encontrando-se um facilitador que não opera pela expectativa

de sua intervenção como resolução de pendência; ele não age, como ocorre na

maior parte das instituições, sendo um “superior-juiz”: não sugere, nem impõe, ou

decreta, julga e sentencia, o que deve ser feito. Ou seja, os participantes podem

experienciar o encontro na alteridade entre homens, encontrando-se, na experiência

mesma do experimentando, alternativas para o encaminhamento da pendência.

Se quisermos tomar a experiência como matéria-prima na formação de profissionais das áreas de saúde e educação, faz-se necessário restituir o valor da narrativa e da existência de uma comunidade democrática de ouvintes e falantes como condição para uma proposta educacional compatível e que indique um caminho na contracorrente do ensino pautado pela transmissão de informações. Nesse contexto, o grupo de encontro, aqui abordado, apresenta-se como uma possibilidade de insurreição às formas convencionais de distribuição dos lugares de fala e escuta na relação professor-aluno e, ao mesmo tempo, à crescente informatização do ensino, que tem como efeito a restrição da comunicação oral e a supressão do espaço dos relatos como forma de transmissão do saber (idem, p. 127).

Apesar de MORATO e SCHMIDT estarem discutindo a questão numa

situação de um grupo de estudantes de Psicologia ainda na universidade, penso que

suas observações sejam pertinentes ao âmbito da pós-formação de profissionais de

saúde e educação em geral. Dizem respeito a um modo possível de ação via

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modalidades de prática psicológica em situações existenciais contextualizadas.

Abrem a possibilidade de uma compreensão de clínica outra e atual.

Minha experiência profissional, como supervisor e facilitador de grupos, vem

mostrando que os alunos e participantes de grupos têm chegado a mim com

repertórios de vocabulário e de expressão, idéias e ações cada vez mais restritos.

Conduzem-me a lembrar da lei do uso e do desuso de Malthus32, como

perfeitamente aplicável a eles. Apresentam-se como que murchos, desgastados,

desbastados, cansados. Suas falas parecem estar involuindo e, invariavelmente,

depois de algum trabalho de “cultivo da fala”, melhoram-na sensivelmente.

Aprendizagem significativa? A aprendizagem significativa designa o processo de constituição e apropriação de um “saber fazer / saber dizer”, co-respondendo, desta forma, à experiência. O conceito de aprendizagem significativa compreende, portanto, a aprendizagem como processo de manifestação de vida, de desenvolvimento e expressão viva da necessidade de crescimento presente nos organismos. Neste contexto, os processos de aprendizagem revelam-se como possibilidades de compreensão e conhecimento e, portanto, de atribuição de significado para relações e situações vividas pela pessoa, seja consigo mesma, seja com o mundo, ou com os outros. São essas as condições da existência humana que refletem a qualidade da expressão/comunicação como criação de significado, partindo do significado sentido como referência que permite o ultrapassamento para novas possibilidades, num processo de aprendizagem quente, por assim dizer (idem, p. 128-129)

Assim, a aprendizagem significativa refere-se à criação ou resgate de sentido

para “falas” da própria experiência que estariam como que esquecida, “em branco”,

conduzindo-as a caírem num lugar comum em si próprias. Na ausência de situação

para a ocorrência de criação de sentido, significado sentido, não se dirigem para a

abertura de outras possibilidades, articulações, sentido. No dizer de GENDLIN

(1997), por transições entre o ir para a frente, voltar, ir para trás, para novamente ir

para a frente:

(...) Mas o próximo passo pode emergir através de uma conexão experiencial. A forma como experienciamos a situação pode nos levar ao próximo passo que faça sentido, mas que não poderia suceder o anterior de qualquer uma das outras formas. Muitas vezes isto ocorre sem que demos especial atenção, mas algumas vezes paramos para referir diretamente o experienciar. Referência direta é ela própria uma mudança, que então leva à próxima mudança. Obviamente não há formulação final dos modos pelos quais as mudanças do experienciar podem superar uma formulação. Poderíamos discriminar mais tipos de mudanças subseqüentes, ou utilizar outras referências para distinguir os tipos. Nossa nova “base” não é uma lista qualquer, mas o funcionamento experiencial-funcional mais amplo. (...) Podemos justapor outros modelos e abordagens com resultados diferentes, mas ainda assim estaremos na experiência que estiver ocorrendo. (...) O tipo de transição a que denomino de “referência direta” é ela própria um tipo

32 Refere-se a algo que, pelo uso freqüente, apta-se a ir adiante, sendo o contrário, do mesmo modo, verdadeiro.

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de simbolização. Ela extrai (cria, encontra, sintetiza, diferencia...) um “isto” que não era um isto, antes. Quando parecemos encontrar algo que “estava” lá, na realidade já nos movemos adiante. Não necessitamos de uma equação falsa. Nenhuma equação é possível entre implícito e explícito. O que importa é a maneira pela qual o próximo passo parte (continua, leva adiante, faz sentido a partir) daquilo que o precedeu. 33

Em um formidável artigo de Mauro FIGUEIROA (1999), encontro metáforas

que servem de mote para a finalização deste capítulo. Um prisioneiro trêmulo de frio numa torre tão alta que seus carcereiros nem se deram ao trabalho de repor as grades serradas em vão. Tanto trabalho serviu apenas para que, colocando a cabeça do lado de fora, ele pudesse desanimar diante da imensa distância que separa do chão, onde as pessoas passeiam indiferentes, reduzidas ao tamanho de uma formiga. É quando lhe ocorre a idéia de desfiar a magra túnica de algodão. Emendando fio em fio, pode enviar essa tênue mensagem lá embaixo, onde quem quer que queira ajudá-lo fará bem em amarrar um fio apenas mais grosso ao que desceu da forre; sem o que, a solidariedade terá um peso excessivo. Se assim for feito, os fios engrossando pouco a pouco culminarão na corda resistente a ponto de suportar um corpo. Antes de tudo, será preciso que o prisioneiro aceite sentir um pouco mais de frio.34

O ir para a frente, voltar, ir para trás, para novamente ir para a frente, tecendo

o e tecido pelo fio de solicitude (ser solícito e solicitado a) encontrado, como abertura

para possibilidade da criação de algo mesmo/outro. E isto me sugere um provérbio a

título de comentário acerca da outra/mesma ciência tecnicista: O rabo de uma cobra revoltou-se por sempre ir atrás da cabeça, em sinal de protesto enroscou-se em um galho e não deixou a cobra prosseguir. A cabeça vendo uma frutinha apetitosa e não conseguindo alcançá-la, resolveu deixar que o rabo fosse á frente. Como o rabo não podia ver, a cobra caiu em um buraco e morreu. 35

33 Grifos do autor. 34 F. Goldgrub, Trauma, Amor e fantasia. Editora Escuta. São Paulo, 1986, p. 134, in FIGUEIROA, 1999, p. 6 35 Autor desconhecido, retirado do livro A Tigela e o Bastão, 120 Contos Zen, Taisen Dashimaru, Editora Pesamento, p.53 in FIGUEIROA,1999, p. 8

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4. EXPERIÊNCIA EM AÇÃO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

método gr. méthodos,ou 'pesquisa, busca, p.ext. estudo metódico de um tema da ciência (Platão); tratado metódico, obra de ciência (Aristóteles)', de metá 'atrás, em seguida, através' e hodós 'caminho'; cp. lat. methòdus ou methodos,i 'método', t. de medicina; ver met(a)- e –odo; (DEH)

Neste capítulo, estarei mostrando por que caminhos se norteou a confecção

deste trabalho. Diz respeito à sua metodologia utilizada, aos caminhos seguidos,

paisagens vistas e personagens com quem me encontrei, além de situar o contexto

dessa caminhada e encontro.

4.1 Apontando um caminho Afinado pela bússola teórica, como apresentada até o momento, optei por

debruçar-me ao modo como poder criar situações para investigar minha questão.

Desse modo, dirigi-me à perspectiva da Fenomenologia Existencial e da narrativa.

Para CABRAL e MORATO (2004, p. 4), a

fenomenologia existencial de Heidegger fundamenta a analítica do sentido, elaborada e apresentada por Critelli (1996), enquanto uma articulação metodológica possível ao se optar por uma atitude fenomenológica. Além daquele autor, esta autora se baseia, ainda, em elementos do pensamento de Hannah Arendt, filósofa discípula de Heidegger.

Por sua vez, SILVA (2003, p. 106) reflete, citando CRITELLI, que a

compreensão fenomenológica permite a criação de sentido e de conhecimento,

contribuindo, assim, para a investigação científica. Continua, apontando que,

CRITELLI desenvolve o pensamento de que a Analítica do Sentido tem seus fundamentos firmados na ontologia do ente homem, seu modo de ser e de conhecer. Essa busca de compreensão do ente, e de seu ser, nos dá uma perspectiva, uma forma de desenvolver a investigação fenomenológica, que se apresenta como possibilidade para o desenvolvimento da pesquisa em fenomenologia. A compreensão aqui seria o próprio movimento de abertura, além do entendimento e da cognição, de procura e produção de sentido. O sentido é compreendido não como significado, mas como direção, rumo. A descrição do fenômeno implica darmos “um passo a mais” rumo à compreensão do sentido dos fenômenos: a narrativa. Uma narração dissertativa para, a partir dela, podermos começar a narrar o sentido, a apreensão da experiência, a comunicação da afetação, a dissertar e encontrar o sentido da experiência, na medida em que se articula o explícito (teórico) com o tácito (vivido) (CRITELLI apud SILVA, 2003, p. 106)

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Desse modo, no âmbito da presença, dois “entes homem” se dão a conhecer

e a perpassarem, em sua convivência, suas respectivas formas de ser. Isto, por sua

vez, evidencia que nesta modalidade de pesquisa o pesquisador é parte integrante

do campo de pesquisa e, portanto, sendo por ele afetado enquanto o afeta. Se, por

um lado, o pesquisador está em busca de compreensão, num movimento de

abertura, de procura e criação de sentido, o mesmo ocorre com o pesquisado, uma

vez que também busca se conhecer ao ser conhecido, revelando como cada um

abre horizontes para o outro.

Vale lembrar, que nesta modalidade de investigação, a pesquisa acontece,

sendo ela mesma a permitir, via questão, os caminhos e rumos pelos quais se

direcionará, já que a prioris não lhe dizem respeito. Pesquisador e pesquisado vão

se dando a conhecer, constituindo e organizando um espaço de intersubjetividades,

que vai permitir o campo da compreensão do pesquisador. Para SZYMANSKI (2002,

p. 17), Essa organização do processo de interação inclui a emergência de significados não só referentes aos conteúdo da fala, mas também à situação de entrevista como um todo, à relação interpessoal que se instalou, à história de vida do entrevistado e a seu ambiente sociocultural. Esses níveis de significados interagem também reflexivamente, como, por exemplo, a história de vida com a situação interpessoal na entrevista, como em casos nos quais a interação é interpretada como apoio afetivo, fazendo lembrar, ou trazendo à tona fatos específicos da história de vida. Uma outra situação de interação, combinando diferentes níveis de significados, pode ser o do conteúdo da fala do entrevistador na situação de entrevista, em casos nos quais o que ele diz pode ser percebido como um invasão da privacidade; nesse caso, a situação de entrevista pode transformar-se numa ameaça. (...) O que é considerado intervenção, além da influência mútua, é o resultado de um processo de tomada de consciência desencadeado pela atuação do entrevistador, no sentido de explicitar sua compreensão do discurso do entrevistado, de tornar presente e dar voz às idéias que foram expressas por ele.

Embora SZYMANSKI referira-se a situações de entrevista, acredito que suas

observações podem ser pertinentes ao contexto de narrativas, uma vez que numa

entrevista o entrevistado faz a narrativa de sua história. A autora destaca a

emergência de significados não só referentes ao conteúdo da narrativa, como

também da relação interpessoal entre narrador(es) e recolhedor(es) da experiência,

da história de vida e do ambiente sociocultural do narrador. Por essa ótica, é

demandado respeito por parte do pesquisador ao que pudesse ser percebido, pelo

narrador, como uma invasão de privacidade. Assim como na clínica, a pesquisa que

se propõe interventiva demanda ser compreendida como encontro que pede atenção

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e cuidado àquele que ocupa o lugar de recolhedor da experiência, o pesquisador, do

narrador.

Caminhando nessa direção por outro enfoque ao de SZYMANSKI, a

metodologia do depoimento como registro da experiência, origina e embasa a

possibilidade de análise de uma pesquisa interventiva. De acordo com SCHMIDT

(1990, p. 79), a qualidade de recolhedor da experiência ancora-se no trabalho do pesquisador-escritor, envolvido na busca da alteridade e compromissado com a invenção da linguagem que comunique o encontro – suas vibrações, suas aberturas, seus silêncios.

O respeito pela alteridade se fez presentes neste trabalho, como questão

central. Através dos narradores, foi necessário ao pesquisador entrar em contato

com um novo mundo – um outro universo – com seus códigos, suas linguagem, ao

mesmo tempo que o trabalho introduzia neste universo novos elementos. Para

SCHMIDT (1990, p. 80), No trabalho compartilhado, distinguem-se papéis, funções e lugares que atendem ao interjogo de papéis, funções e lugares de escuta, fala e escritura. Nesse interjogo, o pesquisador se aproxima da figura do narrador, colocando seu trabalho a serviço da elaboração e da transmissão da experiência, da sua e da de outros.

Desse modo, a execução deste trabalho significou um recolher de

depoimentos e experiências, buscando compreensão. O modo como se dispõe a

apresentação do acontecimento oficina foi uma forma de re-contar aos grupos, a

história que eles próprios contavam, de forma que pudessem dela se apropriar com

um outro sentido, através da ressignificação de suas histórias. Desse modo, o

pesquisador passou a ser narrador da experiência vivida entre ele e os

grupos/narradores, recorrendo a dois modos de expressão, descrição e

interpretação cromática, como recurso de comunicar sua compreensão e promover

reflexão a quem o ouvir.

Afinal, de acordo com SCHMIDT (1990, p. 81), A presente pesquisa inspira-se nesta postura, para tentar responder praticamente às duas tarefas complementares postas ao pesquisador da experiência: registrar e transmitir a experiência do sujeito da pesquisa e realizar o trabalho de reflexão sobre os depoimentos, (...) espaço onde a pluralidade de vivências e de opiniões se manifesta. (...) Do contato com a experiência relatada, desdobra-se o trabalho de comentário e de interpretação da pesquisadora – comentário que destaca, do todo dos relatos, aspectos da experiência que a leitura da pesquisadora julgou de especial interesse, interpretação que amplia, expande e integra, conceitualmente, elementos significativos das experiências relatadas.

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De acordo com MORATO (1989), o processo de conhecimento implica numa

fusão entre sujeito e sujeito/objeto para ocorrer, acontecimento esse que marca o

conhecimento como penetrabilidade em qualquer forma de contato humano/mundo.

Desse modo, ao pesquisador abre-se, como factível, apenas uma das interpretações

possíveis do real; quer dizer, “não é uma façanha lógico-conceitual, mas uma

possibilidade de compreensão”, como aponta CRITELLI (1996, p. 136).

CABRAL e MORATO (2004, p.7), o

homem, sendo parte do mundo, ou, para além disto, sendo mundo com outros, afeta e é afetado, em uma teia de relações que é mutante, sendo ele invariavelmente mutável. Neste emaranhado, o seu olhar só se constitui enquanto olhar a partir do que ele olha, e o que ele olha só se constitui enquanto algo olhado a partir do seu olhar.

Adotar um modo fenomenológico existencial de pesquisar implica, assim, em

compreender que aquilo que acontece durante o desenrolar da pesquisa

simplesmente se constitui na relação sujeito-mundo, sujeito-sujeito. Tal relação

somente poderá ser compreendida pela própria condição humana de mútua

afetação e interpenetração.

Buscando refletir articulações possíveis entre saúde e educação para

promover a formação/capacitação de profissionais dessas áreas, procurei conduzir-

me por uma forma pertinente para aproximar-me de minha questão. Desse modo,

ocorre-me que uma possibilidade seria através da promoção de um espaço

aproximado ao da supervisão de apoio psicológico, como anteriormente realizado

junto a educadores de rua (LILIENTHAL, 1997a), descrevendo-o da forma como

ocorreria em sua mostração. Esta seria uma outra possibilidade de ir adiantei, “um

passo a mais” rumo à compreensão do seu sentido.

Por essa reflexão, sendo a descrição uma forma de contar o que e como se apresentou,

foi que se apresentou a narrativa como outro modo possível para encaminhar compreensão.

Afinal, como já visto, método pode ser compreendido, etimologicamente, como caminhar ou

seguir pelos caminhos, sendo a metodologia o dizer desse percurso. Desse modo, comunicar

como fiz aquilo que fiz do jeito que fiz, por uma descrição, permitiria ocorrer a compreensão

de minha experiência e, quem sabe, à possibilidade de compreensão do fenômeno.

Desse modo, considero ser adequada a utilização da metodologia de

relatos/narrativa, como via de acesso à possível compreensão entre saúde e

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educação. Afinal, se esta pretende ser uma narração dissertativa para comunicação

do que me propus a pesquisar, posso começar contando como foi a apreensão da

experiência, a comunicação da afetação, a dissertar e encontrar o sentido da

experiência, na medida em que articula o é explícito (teórico) com o que já é tácito

(vivido).

Para contemplar essa compreensão, além das reflexões de teóricos

especialistas dessas áreas, ocorreu-me conhecer também como seria a experiência

de profissionais que atuam na interface de ambas as práticas. Isto implicava em

proporcionar um espaço para que esses profissionais, contando de seu fazer,

pudessem refletir a respeito de seu papel enquanto cuidadores de saúde e

educação, e não como meros técnicos ou tecnocratas em dispositivos institucionais

específicos. Um espaço de fala, que se constituísse também como uma forma de

cuidar de quem cuida, ou seja, de quem toma o cuidado do outro como sua principal

atribuição. É voltado a esse sentido de cuidar, na prática de profissionais engajados

em uma ação promotora de saúde e educação, que dirijo a pesquisa. Um espaço

para que esses profissionais falem de sua prática, de sua experiência de cuidar do

outro, pode se revelar como possibilidade de refletir suas formas de cuidado,

aproximações e diferenças entre elas, perspectivando a destinação da instituição

onde trabalham, a fim de poderem encontrar, em suas ações cotidianas, um fazer

com sentido ético-político pertinente, articulando seus saberes e fazeres.

Isto porque, segundo ALMEIDA (1999), cuidar de ser apresenta-se como

tarefa propriamente humana, que, de acordo com CABRAL e MORATO (2004, p.

10), organiza-se por uma escolha tríplice: escolhe-se do que se vai cuidar, como se

vai cuidar e como se vai cuidar do cuidar mesmo. A escolha do de que cuidar e do

modo de cuidar são mais culturais, disponíveis a todos, empreendidos hegemônica

e uniformemente por todos, remetendo ao âmbito da significação, da construção da

trama do mundo. Já a escolha do modo de cuidar do modo de cuidar remete ao

âmbito do sentido. Esse sentido se manifesta originariamente através dos estados

de ânimo. O sentido de ser se apresenta nos humores ou emoções.

A metodologia de relatos orais percorre a narrativa, baseada nas reflexões de

Walter Benjamin (1994), pela articulação entre narrativa e experiência pela figura do

narrador. Ao apontar o caráter artesanal da narrativa como forma de comunicação,

destaca a ambigüidade que sustenta a elaboração de experiência, a partir de dois

pólos: o aventurar-se e sair pelo mundo, ou seja, o viajante, condição de

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singularização, e o conhecer sua própria história, no próprio lugar em que se está,

ou seja, o sedentário, condição para atualizar o passado como sentimento de

pertença coletiva. É por essa perspectiva que SCHMIDT (1990) reconhece que os

relatos de um sujeito acerca de sua experiência adquirem o estatuto de registro

dessa experiência e são, a um só tempo, momentos de elaboração e de transmissão

de experiência.

Sendo a narrativa um modo de apresentar uma experiência a ser elaborada,

ela assume o caráter de forma de comunicação: é ação, conduzindo a sentido, e

podendo ser vista em diferentes atos e diversos conteúdos. Assim, depoimentos,

relatos ou histórias de vida são atos de uma narrativa não aprisionada por

conteúdos, mas revelando a experiência implícita, expressa em como e no que se

manifestam.

Nesse sentido, propiciar um espaço para que profissionais de saúde e

educação possam expressar a experiência da sua prática aponta-se como caminho

para compreender o sentido dessa prática em instituição de aplicação de medida

socioeducativa, visando sua articulação com um sentido ético e político desse fazer.

Um espaço aberto para que as histórias da prática cotidiana possam ser contadas,

as dificuldades diárias comunicadas, as conquistas faladas, e, assim,

ressignificadas. Diz como as coisas aconteceram, onde aconteceram, por que e para

que aconteceram, possibilitando compreender a historicidade como experiência

humana.

Nessa ótica, conselho é comunicabilidade da experiência, a continuação da

narração, na perspectiva do narrador, baseada na experiência ouvida do que um

outro conta de sua situação, abrindo possibilidades de falar, ser escutado e ouvir.

BENJAMIN (1994), acerca da narrativa, diz: Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos”. (1994, p. 200) (...) “retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos ouvintes” (1994, p. 201).

Dessa forma, a metodologia proposta se configura como espaço promotor de

experiência para cuidar de quem cuida, levando esses cuidadores a reflitirem sobre

sua forma de cuidar, sentido para esse fazer. Ao propor o recurso de oficinas de

recursos expressivos como supervisão de apoio psicológico para profissionais de

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saúde e educação, abriu-se uma compreensão de como a investigação

fenomenológica pode acontecer, conduzindo o trabalho de campo com uma

pertinência clínica. É preciso ainda considerar um outro aspecto. Ao se planejar um trabalho, ou

mesmo ao se executar uma ação, nunca se sabe de fato o que acontecerá. Por mais

que esse planejamento seja amplo e meticuloso, sempre há a possibilidade de algo

sair diferente do proposto. Apontar isto não implica em fatalidade mas sim em

factualidade, pois, como diria BUBER (1979) fatal mesmo é crer na fatalidade, cujo

sentido é o decurso irrevogável das coisas. Enquanto o fatal remete à fatalidade, o

factual remete aos fatos. O fato diz respeito à imponderabilidade da existência

humana com relação ao seu viver, o que implica em que um planejar contemple

também um improvisar, adequar e recorrer a diferentes formas de utilização de

recursos, teóricos ou materiais na consecução de uma prática. Desse modo, passo

agora a descrever os acontecimentos.

4.2 Para que? A proposta desta pesquisa foi a de realizar um trabalho com pessoal técnico

e administrativo de uma instituição para adolescentes, como forma de promover uma

capacitação pessoal e profissional para os esses profissionais. Nesse sentido,

tratava-se de realizar uma prática para cuidar do cuidar de ser de cuidadores de

jovens, contemplando, assim, ações que percorressem o sentido de saúde e

educação implicado no cotidiano do trabalho desses profissionais.

O LEFE (Laboratório de Estudos e Prática em Psicologia Fenomenológica e

Existencial, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo), ao qual o

autor deste trabalho está vinculado, já desenvolvia nessa instituição, há quatro anos,

atividades de atendimento em Plantão Psicológico e Supervisão de atendimentos

feitos por psicólogos da instituição. Assim, havia um transitar pelo espaço

institucional, aproximando ambos os grupos por uma confiança estabelecida pela

presença constante.

Nesse contexto, foi possível um pedido expresso de um dos extratos de

diretoria da instituição, solicitando um trabalho de capacitação ou apoio para o

pessoal que ocupava cargos de gerência técnica ou cargos administrativos. A

“queixa” expressou-se pela identificação, no pessoal desse extrato, de problemas de

comunicação entre si, de comunicação entre os diversos segmentos responsáveis

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pela execução de tarefas de rotina no trabalho, pela formação de pequenos grupos,

pela enunciação de ordens e contra-ordens, acarretando dificuldade para o

gerenciamento da equipe, além de comunicação comprometida entre essa equipe e

a população de internos.

Assim, procurou-se compreender como oficinas de recursos expressivos para

convívio e reflexão poderiam ser utilizadas como articulação possível entre esses

profissionais. Neste contexto, seriam todos profissionais de saúde e educação,

dirigidos para atividades voltadas a medidas socioeducativas numa instituição, a

quem tais oficinas poderiam oferecer-se como Supervisão de Apoio Psicológico.

4.3 Com quem? Era dirigida pessoal técnico e administrativo de uma instituição para

adolescentes. O pessoal técnico era composto por psicólogos, pedagogos,

professores de educação física, professores secundários e funcionários com

diferentes escolaridades, alguns apenas com o primeiro grau, outros com o segundo

grau completo. Os cargos administrativos eram de: diretor geral (1), administrador

do complexo (1), assessores de direção (2), diretores regionais (4), coordenadores

pedagógicos (4), encarregados técnicos (4), encarregados administrativos (4),

coordenadores de atividades (16). À exceção destes últimos, de quem se exige o

segundo grau completo, todos os outros participantes tinham terceiro grau completo.

A idade dos participantes variava entre 30 e 60 anos. Os números entre parênteses

registram o número de profissionais de cada função mencionada, que participaram

das oficinas de recursos expressivos.

4.4 Como? Este trabalho foi realizado em duas oportunidades, com profissionais dessa

instituição, sendo que aproximadamente 60% dos participantes da primeira oficina

estiveram presentes à segunda. Devido às diferenças entre turnos de trabalho,

alguns participaram das duas oficinas, outros apenas de uma.

Cada encontro durou aproximadamente 7 ½ (sete e meia) horas, iniciando-se

por volta das 9:00 h e terminando por volta das 18:00 h, com 1:30 h para almoço. Foi

realizado no ateliê de criatividade do bloco de atendimentos do IPUSP, sendo

coordenados por uma dupla de facilitadores, composta pela Dra. Henriette T. P.

Morato e pelo autor deste trabalho.

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Antes de cada encontro, a dupla de facilitadores se reuniu, elaborando

roteiros para as oficinas. Para cada uma foi escolhido um tema, respectivamente

“Gerenciamento de equipe: dificuldades, desafios e possibilidades” e “INSTITUIÇÃO

real versus INSTITUIÇÃO ideal”.

Do primeiro encontro foi feito um registro escrito pelos facilitadores, sendo

ainda recolhido o material escrito e gráfico produzido pelos participantes. No

segundo encontro, para um registro mais fidedigno, foi feita gravação em vídeo,

além do recolhimento do material escrito e gráfico produzido pelos participantes.

4.5 Os roteiros que viraram mapas Serão, agora, apresentados os dois roteiros originais para as oficinas de

recursos expressivos/oxigenação realizadas. Algumas pequenas adaptações se

fizeram necessárias no desenrolar da ação, em função de detalhes que emergiram.

Sofreram algumas alterações à medida que as oficinas foram transcorrendo, em

função de imprevistos e da leitura que os facilitadores fizeram da situação, optando

ora por suprimir algum ponto, ora por enfatizar outro, ou ainda, introduzindo novos

pontos.

Para que isto pudesse acontecer, auxiliou o fato de os facilitadores se

conhecerem, estarem bem “afinados” com a proposta de trabalho, de forma que,

com uma piscadela ou um pequeno gesto, já comunicavam um ao outro suas

percepções e eventuais correções de rumo a serem feitas. Houve também

momentos em que rapidamente discutiram um ao ouvido do outro, alternativas

possíveis. Enfim, evidenciou-se a necessidade de uma cumplicidade entre os

respectivos modos de ser e fazer entre os facilitadores. Outra variável importante foi

o fato de haver conhecimento prévio dos participantes, não em termos pessoais,

mas em termos de quem eram, de onde vinham, de quais eram suas demandas

enquanto grupo de trabalho.

Assim, os roteiros para as oficinas foram “gestados” por cerca de duas

semanas, nas quais os facilitadores puderam pensar e trocar sugestões e propostas.

Seu formato final ocorreu sempre na noite anterior a cada oficina. Nesses encontros,

os facilitadores optaram por, na primeira oficina, proporem uma atividade mais

aberta, mais lúdica, visando uma aproximação entre os participantes, recorrendo a

uma outra forma de se darem a conhecer uns aos outros. Assim, a opção foi por um

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roteiro que incluísse, ao mesmo tempo, ingredientes de prazer, aventura, desafios e

imprevistos: surgiu uma viagem, para a primeira oficina, e uma construção para a

segunda.

Por outro lado, se antes das oficinas acontecerem este presente ítem se

denominou roteiro, após as vivências ele fortemente se apresentou mais

pertinentemente como mapa. De qualquer forma, como roteiro serviu para dirigir os

facilitadores ao grupo com uma sugestão de proposta. Contudo, após evidenciar-se

uma compreensão do trabalho realizado, revelou-se como um “mapeamento do

terreno”, sugerindo a autêntica cartografia de cada uma das oficinas na produção de

cada grupo.

Roteiro da oficina de recursos expressivos – oxigenação, realizada em

22.07.2003

“Gerenciamento de equipe: dificuldades, desafios e possibilidades”

1- Apresentando o tema-nó: Gerenciamento de equipe: dificuldades, desafios e possibilidades

2- Pedindo consignas: “Gerenciamento é... Equipe é... Dificuldade é... Desafio é...

Possibilidade é....” 3- Aplica-se ou não o pensado acima quando apresento: “Eu como gerente sou....

Eu como equipe sou... Eu como dificuldade sou... Eu como desafio sou... Eu como possibilidade sou...”

4- Arrola-se o que apareceu, tentando encontrar sentido de VIAGEM 5- Mesmo procedimento para VIAGEM: “Viagem é... Eu como viagem sou....” 6- Busca-se arrolar e encontrar sentido de BARCO 7- Pede-se que se desenhe um BARCO e que se apresente como sendo esse

BARCO desenhado 8- Fixa-se o desenho na parede 9- Cada um escolhe qual parte do barco poderia se perceber sendo 10- Apresenta-se como sendo essa parte 11- Parte-se para a construção do barco, com o que estiver à mão e mantendo-se

como sendo aquela parte do barco em que se reconheceu e apresentou.

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12- Espaço para discussão dessa vivência FIM DA PARTE DA MANHÃ INÍCIO DA TARDE – SITUAÇÃO DE NEVOEIRO À NOITE 1- Nevoeiro leva comando a sugerir encontros entre os tripulantes dado o risco de

naufrágio 2- Encontro entre pessoas de olhos vendados pela complementaridade para soma

de 38 3- A consigna é transmitir um legado a ser comunicado a seus familiares em caso

de desaparecimento 4- Barco bate em algo 5- Pular para botes salva-vidas com número limitado e inferior ao número do grupo 6- Como resolver essa situação para não deixar alguém morrer? 7- Remam em busca de lugar e aportam numa ILHA MÁGICA 8- Agora é subsistir!!!! Procurar comida, água, abrigo e segurança como náufragos 9- Amanhece.... e vêem barco encalhado em banco de areia próximo à ilha, pois a

maré subiu e o soltou do rochedo onde batera 10- Agora é fazer viagem de volta.... 11- Espaço para comentário e discussão da vivência 12- Pensar no Barco INSTITUIÇÃO: como se vêem agora e como se avaliam e

avaliam o desempenho dos outros .... aqui e lá....

Para a segunda oficina, levou-se em consideração o conhecimento já

estabelecido com os participantes durante a primeira oficina. Optou-se por trabalhar

com as noções de real e ideal que tinham da instituição na qual trabalhavam, para

então propormos uma tarefa bem objetiva: a construção de um castelo, com cada

participante tendo uma consigna específica na tarefa, tirada de atividades anteriores

da própria oficina.

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Roteiro da oficina de recursos expressivos – oxigenação, realizada em

01.08.2003

“INSTITUIÇÃO ideal vs INSTITUIÇÃO real”

PARTE DA MANHÃ

1) Solicitar autorização para filmagem, explicando seu uso. 2) Distribuir etiquetas para sorteio de números.

3) Aquecimento:

a) formar círculo, sentados ao chão, voltando-se para fora; b) comentar como chegou hoje até aqui, o percurso que fez, etc; c) como percebe o grupo de costas? d) imaginar uma posição relativa à qual está; e) vira 180º e confere essa escolha; f) muda-se para esses lugar, e caso ocupado, resolve como o

problema?

4) Apresentação, através de gesto, de como se vê nesse lugar. 5) Proposta de se separar em pequenos grupos, de até no máximo 6

pessoas por grupos e com máximo total de 5 grupos

a) se agrupam pela cor da meia; b) se agrupam pelo casamento entre cor de meia e calça; c) se agrupam pela cor da meia, da calça e da camisa.

6) Discutir e elaborar pontos itemizados sobre INSTITUIÇÃO IDEAL.

7) Eleger relator que escreve no papel e lê para todos.

8) Nós faremos a compilação.

9) INTERVALO

10) Organizam-se em grupos de 1 a 5, 6 a 10, etc...

11) Mesmo procedimento anterior: discutir e elaborar itens de INSTITUIÇÃO REAL, que será lido por relator e compilado por nós.

12) Grupo desenha em cartolina as duas representações de INSTITUIÇÃO:

IDEAL e REAL.

13) ALMOÇO

PARTE DA TARDE:

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14) Buscar produzir um conceito sobre palavra CONSTRUÇÃO.

15) Constroem um único CASTELO, a partir de consígnias que saírem da 1a. parte.

16) Relaxamento: como é viver nesse castelo construído.... como transformá-

lo?

17) Discussão de como seria possível viver transitando entre o Ideal e o Real.

FIM DOS TRABALHOS

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5. COMPREENDENDO A AÇÃO Neste capítulo serão apresentadas as duas Oficinas de Recursos Expressivos

– Oxigenação, que são o objeto de estudo deste trabalho, e que a partir de agora

serão denominadas simplesmente de “Oxigenação”, dada a discussão apresentada

sobre o termo no item 3.6. Oxigenação foi escolhida como uma nomeação mais

pertinente por duas razões: - pela propriedade do termo ao que as oficinas de

recursos expressivos se dispõe, enquanto prática psicológica; - e pela própria

proposta do trabalho realizado, fundada num pedido dos educadores a partir de

outras atividades realizadas na instituição: a solicitação explícita era por reciclagem

ou capacitação, ou seja, de renovação que os tornasse mais capacitados a

exercerem seu cotidiano profissional. Oxigenação, oxigênio penetrante que dá

origem a novas possibilidades, foi o que se lhes ofereceu.

Ressalta-se que, recorrendo-se ainda à Befindlichkeit, ação referir-se-ia à

“fala”, ao dizer público, de acordo com ARENDT (2001). Neste sentido, este capítulo

descreve e narra o que aconteceu no dizer do pesquisador. Assim, a apresentação

de cada Oxigenação se fará em dois momentos: enquanto descrição (descrição

cursiva) e enquanto re-leitura cromática (descrição/narração de como a oxigenação

foi vista e compreendida).

5.1 Descrevendo a Oxigenação, em 22.07.03

Os trabalhos começaram com cerca de meia hora de atraso. Os participantes

foram chegando aos poucos. Ficaram do lado externo do prédio dos atendimentos

do IPUSP, conversando, brincando. Enquanto isto, a dupla de facilitadores

preparava a sala onde se realizaria a oficina: as dependências do ateliê de

criatividade. Com a sala preparada e um número significativo de participantes

presentes, o trabalho foi iniciado. Alguns retardatários foram chegando aos poucos.

Os facilitadores se apresentaram e apresentaram o tema-nó: “Gerenciamento

de equipe: dificuldades, desafios e possibilidades”, justificando-o como uma

necessidade detectada através de contatos anteriores que tinham sido estabelecidos

com a INSTITUIÇÃO. A seguir, foi proposto um aquecimento, solicitando-se aos

participantes que andassem pelo espaço da sala, explorando-o, num primeiro

momento, sem contato visual com os colegas. Enquanto isto, pediu-se que

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procurassem resgatar o seu trajeto desde o momento em que acordaram e se

levantaram, até o momento de adentrarem a sala em que estão. A partir deste

momento pediu-se que estabelecessem contato visual com os colegas,

reconhecendo a cada um. Solicitou-se, então, que escolhessem um lugar na sala em

que se sentissem confortáveis para sentar. Lentamente, foram se dirigindo aos

lugares que escolheram, procurando tornar o lugar confortável com o uso dos

colchonetes.

Distribuídas folhas de papel sulfite e lápis, foi então sendo introduzida a

proposta de trabalho para esta oficina. Solicitou-se que completassem

sucessivamente as frases: “Gerenciamento é...”, “Equipe é...”, “Dificuldade é...”,

“Desafio é...”, “Possibilidade é...”, por escrito. As frases a serem completadas foram

apresentadas verbalmente ao grupo uma a uma, com tempo para que a

escrevessem e completassem. Riam e brincavam enquanto escreviam. Finda esta

fase, pediu-se que, um a um, relatassem as frases completadas. Enquanto

relatavam o que tinham escrito, os facilitadores iam compilando as definições,

escrevendo-as em faixas de papel Kraft coladas às paredes, procurando assim

auxiliar na busca de sentido para cada uma das palavras. Cuidaram também para

que não houvesse repetição de definições, o que eventualmente ocorria.

A seguir, foi pedido que se apresentassem, completando as frases. Na

seqüência, partindo do que escreveram no passo anterior, fazendo as adaptações

necessárias para a concordância da frase: “Eu como gerente sou...”, “Eu como

equipe sou...”, “Eu como dificuldade sou...”, “Eu como desafio sou...”, “Eu como

possibilidade sou...”.

A transcrição das definições acima citadas é apresentada, feitas a partir das

folhas de papel sulfite utilizadas pelos participantes. O número entre colchetes, ao

final de cada definição, serve para que se possa trilhar as definições de um mesmo

participante. Os números foram atribuídos aleatoriamente. 36

36 As transcrições foram feitas como cópias literais da produção de cada participante.

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Gerenciamento é...

- saber dirigir/coordenar com critério um grupo de pessoas/missão [1] - organizar, comandar, dividir tarefas, aplicar soluções e orientar a equipe [2]

- organização e administração [3] - coordenação de ações [4]

- garantir que o grupo atinja o objetivo [5] - cuidar para que um projeto/trabalho cumpra sua missão [6]

- coordenar atividades, ações, projetos,pessoas [7] - “arrumar a casa” [8]

- organizar tarefas, acompanhar atividades, motivar equipe [9] - comando em círculo fechado procurando êxito nos pontos de contato [10]

- organizar em todos aspectos as demandas representadas buscando sempre qualidade [11] - dar condições de trabalho [12]

- fazer avaliação para uma meta de trabalho [13] - capacidade para dirigir uma tarefa ou trabalho com objetivos, organização e planejamento [14]

- saber avaliar todas as possibilidades e escolher a melhor alternativa entre elas [15] - gerir um programa e estar atento às ocorrências de um planejamento [em todas suas etapas] [16]

- capacidade de administrar problemas dentro de uma equipe, visando encontrar e aplicar satisfatoriamente medidas que solucionem os mesmos [17]

- as pessoas que cuidam de todos os setores das empresas e que sempre dá o último parecer [18] - cuidar [19]

- coordenar administrativamente as dificuldades e distribuir tarefas [20] - organização [21]

- coordenar todo um trabalho, administrar dificuldades, alcançar metas, arriscar [22] - comandar, aprender, arriscar, errar, acertar, colocar em prática, viver com as diferenças, lidar com

frustrações [23] - comando com algum conhecimento do trabalho e da equipe com quem se vai trabalhar. É fazer

funcionar uma equipe, com atribuições que facilitem um conjunto de funções, com um objetivo final [24]

- coordenar trabalho, buscar soluções [25] - organizar [26]

Equipe é...

- o trabalho de um grupo de pessoas com o mesmo pensamento e ideais [1]

- um grupo de pessoas coeso e imbuídas em desenvolver uma determinada tarefa [2] - o conjunto que faz com que o trabalho seja executado [3] - é grupo de pessoas – seres humanos - profissionais [4]

- grupo de pessoas com o mesmo objetivo [5] - um grupo de profissionais afinados com o mesmo objetivo [ou com objetivo maior] [6]

- grupo de pessoas que comungam um mesmo objetivo [7] - “todos por um” [8]

- coesão do grupo, envolvimento sistemático [9] - todos por um e um por todos [10]

- união de esforços para sempre buscar objetivo único [11] - um grupo com os mesmos propósitos [12]

- união de pessoas com a mesma proposta de trabalho [13] - várias pessoas desenvolvendo tarefas, com planejamento e organização para atingirem um objetivo

único [14] - um conjunto de pessoas com o mesmo objetivo [15]

- poderia ser conceituada como pessoas com os mesmos ideais e dispostas a levar à frente o que está sendo gerenciado [16]

- um grupo de pessoas trabalhando em torno de um objetivo comum, cada um completando com sua capacidade de trabalho, possíveis falhas dentro de um todo [17]

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- o grupo de pessoas trabalhando pelo mesmo ideal [18] - igual + o diferente [19]

- sempre está em sintonia com todos os trabalhos [20] - trabalho em conjunto [21]

- integração que visa um objetivo único [22] - trocar idéias, experiências, diferenças [23]

- grupo de pessoas que possuem um mesmo objetivo e juntas podem conseguí-lo organizadamente. Todos fazendo e pensando para melhor desempenharem as funções que levariam a esse final feliz

[24] - trabalho em conjunto, em grupo [25]

- divisão de atividades [26]

Dificuldade é...

- o trabalho do dia a dia na organização [1]

- são os obstáculos de qualquer natureza que requerem tempo e habilidade para resolução [2] - obstáculos que surgem durante o percurso [3]

- algo que normalmente aparece [4] - obstáculos para atingir objetivos [5]

- aquilo que engessa ou causa transtornos a um melhor desempenho [6] - obstáculos, conflitos, problemas, imprevistos [7]

- ”processar soluções” [8] - desconhecimento das rotinas e procedimentos [9]

- o mal estar de não conseguir resultado [10] - são entraves no caminho [11]

- não ter uma equipe com os mesmos propósitos [12] - manter a meta de trabalho [13]

- estímulo para transpor barreiras [14] - tudo que persiste em atrapalhar nossos objetivos [15]

- são os obstáculos encontrados no decorrer dos passos [tarefas] que estão sendo executados; devem ser avaliados com critérios para serem transpostos [16]

- tudo aquilo que representa um empecilho para o bom desenvolvimento de um trabalho, normalmente é o que nos estimula a buscar melhorar na qualidade do que fazemos [17]

- pessoas que lutam para conseguir um objetivo e não consegue [18] - viver limites [19]

- administrar sem solução e sem respaldos superiores [20] - obstáculos [21]

- na medida que aprendo a superar é uma aprendizagem [22] - oportunidade [23]

- obstáculo encontrado no decorrer de um trabalho. Ela vem para nos questionarmos se estamos chegando a atingir a nossa meta [24] - o não ter ou não compreender [25]

- ser rápido para contornar os problemas, ter soluções, ser prático [26]

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Desafio é...

- procurar novos caminhos (outro) [1] - é o espírito de resolução para as dificuldades [2]

- enfrentar os obstáculos [3] - necessário para o desenvolvimento [4]

- metas, objetivos [5] - esperança de que é possível [6]

- sabor, cor, vida, ânimo, “o por que”, ir além [7] - “projetar novos rumos” [8] - busca de alternativas [9]

- viver tentando, tentando, tentando [10] - ações que aceitamos para buscar soluções para dificuldades apresentadas [11] - encarar as dificuldades com esperança de solucioná-las e acreditando nisso [12]

- tudo que novo no trabalho [13] - algo a ser vencido [14]

- uma meta a ser conquistada [15] - uma idéia que aparentemente é nova e portanto com dificuldades que com coragem são executadas

(ou tratadas) [16] - algo que exige evolução e que traga em si a necessidade de superação a quem se propõe aceitá-lo

[17] - trabalhar para conseguir um objetivo [18]

- enfrentar o novo [19] - nunca esmorecer e sempre pensar positivo [20]

- desconhecido do que vem a frente [21] - motivação [22] - diversificar [23]

- problemas que surgem no caminho, para que tenhamos mais vontade de lutar [24] - encarar o novo, o desconhecido [25]

- cumprir etapas, aprimoramento, paz [26]

Possibilidade é...

- sempre existe novas possibilidades / procurar saídas [1]

- são as alternativas que podem ser utilizadas [2] - as condições que surgem para superar os obstáculos [3]

- um caminho que pode ser seguido [4] - caminhos para atingir objetivos [5]

- algo sempre presente, mas às vezes incomprensível aos olhos da equipe [6] - vontade, abertura, criatividade, é crer para ver [7]

- “tudo a nossa volta” [8] - abrir diálogo e o conhecimento [9]

- são luzes que aparecem, não deixam o trabalho declinar [11] - esperança de um dia melhor [10]

- alternativas discutidas numa equipe [12] - resultado bom de um trabalho [13]

- um novo rumo [14] - caminho para a solução de um nosso objetivo [15]

- entendo que após estudados e analisados todos os passos, as etapas, vemos possibilidade (junto com a equipe) de serem organizadas, e portanto realizadas [16]

- o vislumbre de solução para todos os itens acima, é de certa forma o que nos move em busca de realização [17]

- tentar adquirir, esperando uma resposta [18] - construção e esperança [19]

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- se tivermos apoio sempre estaremos trabalhando [20] - desenvolvimento (estudo) [21]

- ser [22] - poder arriscar [23]

- são as oportunidades e caminhos para os quais posso seguir [24] - aquilo que é possível ou que está ao alcance [25]

-de sonhar atingir os objetivos com maior qualidade, sem muito desgaste [26]

Esta atividade foi percebida como lúdica, sendo que os participantes riam com

as próprias “respostas” bem como com as dos colegas. Pediu-se que dissessem se

se sentiram representados pela frase/definição que apresentaram. A maioria

respondeu que sim.

Finda esta parte, foi promovida uma discussão do grupo, com a participação

dos facilitadores, visando encontrar, a partir das respostas anteriores, um sentido

para “viagem”. Solicitou-se, então, que completassem por escrito a frase: “Viagem

é...”, e enunciassem “Eu como viagem sou...”, utilizando aquilo que escreveram.

Viagem é...

- se desligar (sonho) das rotinas / problemas diários [1]

- aventura, conhecer o não conhecido, relembrar o conhecido, saborear a natureza e deslumbrar-se com as obras dos homens [2]

- desenvolver-se para lugares de preferência desconhecidos [3] - um caminho [4] - expectativa [5]

- descobrir e assimilar o novo [6] - diversão, conhecer, aprender, relocar, é presente [7]

- “soltar a imaginação” [8] - oportunidades de conhecimento [9]

- entrar navegar e deixar fluir esperança [10] - conhecer, experimentar espaços e lugares diferentes para mantermos o equilíbrio necessário para o

cotidiano [11] - esquecer o gerenciamento e as regras do cotidiano [12]

- constante [13] - sair de onde eu estou, sem sair do lugar [14]

- maravilhoso [15] - locomoção de um local para outro, transposição de um corpo, mudança de astral, de natureza, etc

[16] - busca de algo, e a busca se encerra em si mesmo, é o mais importante [17]

- explorar horizontes [18] - refazer energias [19]

- planejar para o futuro uma estabilidade financeira e familiar [20] - pensamento [21]

- sonho, realidade, liberdade, felicidade, conquista [22] - liberdade, conhecer, rever [23]

- fuga do normal, do cotidiano, sonho para curar “stress”. Saída da rotina, novas perspectivas [24] - a busca do equilíbrio [25]

- chegar ao objetivo desejado [26]

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É interessante notar que, apesar de não aparecer nas definições acima, o

grupo quase sempre referia-se a viagem como sendo uma viagem de navio ou

barco, o que veio ao encontro do que os facilitadores haviam pensado como parte

desta vivência. Não foi preciso introduzir a questão barco, uma vez que o próprio

grupo o fez por si mesmo. Os facilitadores tiveram apenas que retomar os “barcos e

navios” que o grupo havia criado e citado.

A partir disto, procurou-se por um sentido para “barco”, com cada um dizendo

o que era para si um barco. Pediu-se, então, que cada um desenhasse um barco

que o representasse, dando-se tempo para que fizessem o desenho.37

37 Infelizmente, apesar de os facilitadores terem solicitado, com insistência, que não levassem consigo os materiais que tinham produzido, alguns dos participantes levaram suas produções. Assim, nos materiais aqui reproduzidos, tanto desta, quanto da vivência seguinte, serão notadas algumas faltas.

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sendo. Pediu-se, então, que se apresentassem como sendo essa parte do barco

escolhida como sendo si mesmo.

Em continuação, foram solicitados a construir um barco humano, ou seja, que

cada um assumisse a postura da parte do barco que havia escolhido ser.

Vagarosamente, foram compondo o barco para, ao terminá-lo, relatarem como

haviam se sentido sendo aquela parte do barco que haviam escolhido ser, e como

se sentiam em relação ao todo do “barco humano construído”. Neste momento,

houve um silêncio.

Praticamente, não houve duplicidade nas “partes do barco humano”. No

entanto, chamou a atenção o fato de cinco pessoas terem se identificado como

sendo o motor do barco, coincidentemente os mais velhos e aqueles que ocupam

posições de liderança na instituição.

O esquema que segue, é uma reprodução do “barco humano” que se

formou.

Foi, então, solicitada a construção de um “barco físico”, que seria uma

concretude “física” desse barco, uma re-construção do “barco humano”, recorrendo-

se à utilização de qualquer objeto ou material que pudesse ser encontrado na sala.

2

3

4

4

5

5

6

7

7

89

11

11

12

5

5

10

13

14

1 – carranca 7 – velas 13 – motores 2 – âncora 8 – mastro 14 - leme 3 – casco 9 – ponte de comando 4 – coletes salva-vidas 10 – timão 5 – escotilhas 11 – botes salva vidas 6 – chaminé 12 – escada

1

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Para esta construção, utilizaram os materiais que se encontravam disponíveis:

cadeiras, colchonetes, cartolinas, papel sulfite, crayon, barbante, um armação de

“flip chart” e papel Kraft. O casco do barco foi feito com colchonetes que ficavam

encostados em cadeiras do lado de dentro do barco. Estas por sua vez, formavam

os bancos do barco. Para confeccionar o mastro e as velas, utilizaram a armação de

“flip chart” e cartolinas. Cadeiras eram colocadas do lado interno como suporte para

timão e marcadores da posição dos motores. Cartolinas e papel sulfite foram

pintados para representar objetos que não tinham à mão (por exemplo, escotilhas,

carranca e o timão). Foram também colocadas cadeiras do lado externo da

construção, que representavam os botes salva-vidas. Por fim um papel sulfite

colocado na proa do barco identificava a obra: INSTITUIÇÃO. O “produto resultante”

se assemelhou muito ao esquema apresentado acima.

Fizeram uma construção estudada, cuidadosa, organizada. O resultado final

agradou a todos. Finda a construção, “subiram” no barco e o “experimentaram”.

Alguns ficaram em pé, outros se sentaram nos bancos. Conversaram, brincaram,

sorriram, expressando sua satisfação com a própria obra.

Foram, em seguida, solicitados a deixar o barco e a compartilharem como foi

a experiência da construção deste barco. Houve unanimidade no depoimento de que

construir esse barco havia sido uma experiência prazeirosa, pela qual puderam

estabelecer trocas com os colegas, se aproximar daqueles que eram mais distantes,

de conversar, de brincar, de soltar a fantasia.

Encerrada essa apresentação, ficou combinado entre todos interromper por

uma hora a oficina para o almoço. O barco foi deixado intacto.

No horário combinado, os participantes voltaram; alguns, porém, levaram

algum tempo a mais para retornar. Enquanto os retardatários iam chegando, foram

distribuídas, aleatoriamente, etiquetas auto-adesivas com numeração de 1 a 26.

Na retomada dos trabalhos, foi proposto que “fizesse uma viagem com o

barco construído”. Entraram no barco, postaram-se de forma confortável e a viagem

começou.

Os facilitadores, do lado de fora do barco, iam dando as consignas, abaixo

citadas, sobre as condições de navegação e meteorologia:

- o barco está zarpando para um passeio

- vagarosamente vai saindo do porto, deixando-o para trás

- ruma para alto-mar

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- o dia está bonito, bom tempo, sol

- pelo trajeto que faz são avistadas ilhas ao longe

- começam a aparecer nuvens

- o tempo vai fechando

- começa a cair a noite

- o barco se vê envolto por muita neblina

Para simular o anoitecer e o nevoeiro, os olhos dos participantes foram

vendados com pedaços de pano, as luzes da sala foram apagadas e as persianas

fechadas. Sugeriu-se um risco de naufrágio e, para sua própria proteção, deveriam

formar uma dupla, encontrando aquele companheiro cuja etiqueta contemplava um

número que, somado ao da sua própria etiqueta, resultasse 27. Iniciou-se uma

grande movimentação no barco, até todos poderem encontrar a sua dupla, pois, com

os olhos ainda vendados, os participantes perguntavam, a cada um com que

cruzavam, qual o número de sua etiqueta. O clima era tenso, enquanto tropeçavam

uns nos outros, gritando pelo número que procuravam.

Dado o risco de naufrágio, e uma vez já em duplas, foi solicitado que

trocassem entre si um legado a ser comunicado a seus familiares em caso de seu

desaparecimento. Aos cochichos, comunicaram o legado, sendo que alguns,

visivelmente emocionados, até choraram.

Subitamente, foi dado, pelos facilitadores, um alerta de que o barco batera

em algo. Deveriam, assim, deixar o barco visto a iminência de naufrágio. Lançando-

se à procura de botes salva-vidas, perceberam que neles havia menos vagas do que

o número de passageiros. Já sem as vendas nos olhos, iniciaram um processo de

negociação, levando à criação de recursos para que todos pudessem se salvar:

apesar da superlotação nos botes, alguns sobreviveram na água, agarrados às

mãos de outros que estavam dentro.

Ao “grito” dos facilitadores de “Terra à vista!!”, vislumbraram algo no

horizonte: uma ilha mágica. Para isso, os facilitadores haviam colocado uma

cartolina, com o desenho de uma ilha, numa parede. Depois de rumarem naquela

direção, os dois botes salva-vidas foram se aproximando da ilha, até encalharem na

praia. Desembarcando na ilha, foi sugerido um pequeno tempo de “descanso na

areia” para se refazerem do acidente. “Restaurados”, sugeriu-se que se dividissem

em equipes para distribuírem entre si tarefas para sua subsistência. A equipe

encarregada da alimentação saiu à procura de alimentos, água e madeira para fogo,

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enquanto que uma outra, responsável por abrigos, foi em busca de material para a

construção de cabanas, ao passo que aquela responsável pela segurança buscava

materiais que pudessem ser usados como armas, para defesa do acampamento.

Encontraram, nos objetos presentes na sala, o material de que precisavam.

Recorrendo a um jogo de faz-de-conta, terra (vinda do jardim externo a sala) e

pedras eram a comida, utilizando a jarra de água para guardar água; papel sulfite

enrolado era lenha; cadeiras, colchonetes e barbante foram dispostos de modo a

formarem barracas; cartolinas enroladas viraram lanças ou porretes para defesa.

Depois de montado o acampamento, alimentaram-se e se acomodaram para

dormir. A equipe responsável pela segurança organizou uma escala de vigias para a

noite. Assinala-se que para esta rotina, não houve nenhuma sugestão ou

interferência dos facilitadores.

No momento desse sono, deitados sobre colchonetes, foram solicitados pelos

facilitadores a recuperarem o sentido daquela aventura para si mesmos até então.

Após um relaxamento físico, pelo qual foram percebendo, uma a uma, as partes de

seu corpo dos pés à cabeça, foram conduzidos a relembrar todas as atividades do

dia até aquele momento. Alguns participantes chegaram a cochilar, durante os

aproximados dez minutos desse “sono”.

Ao ser anunciado o amanhecer, pelos facilitadores, foram acordando aos

poucos, espreguiçando-se. Para surpresa do grupo, ao olharem para o mar, viram

seu barco intacto, preso a um banco de areia: os facilitadores haviam colocado, na

porta da sala, uma cartolina com o desenho de um barco nessa posição.

Incentivados a nadaram até ele, “desencalharam-no e zarparam”, saindo pela porta

da sala afora, representando o final da parte vivencial da oficina.

Na volta do intervalo combinado de 15 minutos, todos se sentaram em círculo,

abrindo-se um espaço para a discussão da experiência dessa oficina. Foi solicitado

que pensassem no barco INSTITUIÇÃO, em como se viam e se avaliavam na

situação naquele momento, bem como avaliavam os outros, tanto na instituição

quanto naquele espaço. Terminada a rodada de discussão, foi solicitado que cada

um dissesse uma palavra ou frase curta que expressasse o sentido da oficina para

eles, para então os trabalhos serem encerrados. Todas as falas da discussão quanto

de avaliação final foram de satisfação, prazer, alegria, descontração, sensação de

liberdade, criatividade.

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5.2 Descrevendo a Oxigenação, em 01.08.03

Esta atividade foi realizada nas dependências do ateliê de criatividade do

Bloco de Atendimentos do IPUSP e contou com 21 participantes, enquanto

aguardávamos 28. A falta dos 7 se deveu a problemas particulares e a questões

relativas ao seu trabalho, pois não havia pessoal disponível para cobrir suas

ausências na instituição. Os trabalhos foram iniciados cerca de 40 minutos depois do

horário estipulado, devido ao atraso na chegada de alguns componentes do grupo e,

também, devido à demora na liberação da câmera de vídeo com a qual a atividade

seria registrada, emprestada pela Diretoria do IP.

Os participantes, que em sua maioria já se conheciam entre si, passaram

estes 40 minutos conversando do lado externo do prédio: alguns em tom baixo,

comedido, outros em voz bem alta, fazendo brincadeiras dentro e entre pequenos

grupos formados espontaneamente. Enquanto isso, a dupla de facilitadores

finalizava os preparativos na sala, organizando objetos como cadeiras, colchonetes,

cartolinas, lápis coloridos, pincéis atômicos, fita crepe, bobinas de papel Kraft,

tesouras, barbante, papel sulfite, etiquetas auto-adesivas e uma bandeja sobre a

qual havia café e copos descartáveis; ao mesmo tempo, afinava-se quanto a quem

faria o quê, durante a realização da atividade.

De início, foi solicitada aos participantes uma autorização para que os

trabalhos fossem gravados em vídeo, mediante o esclarecimento de que tal

procedimento permitiria obter um registro confiável do ocorrido, com finalidade de

estudo sistemático para procedimentos futuros. Após respostas dos facilitadores a

algumas dúvidas do grupo, este concordou com a gravação em vídeo. Um aluno

pós-graduando do PSA se propôs a operar a câmera. Naquele momento, o grupo se

encontrava um tanto agitado e havia conversas, brincadeiras e risos entre os

participantes. Assim, houve uma certa dificuldade para dar início à atividade.

Começou-se pela distribuição aleatória, aos participantes, de etiquetas auto-

adesivas numeradas de 1 a 21, que viriam a ser utilizadas em uma outra

determinada fase do trabalho. Isto feito, foi pedido que se sentassem em círculo. A

facilitadora se apresentou, apresentou o outro facilitador e, em seguida, apresentou

a proposta de trabalho como uma atividade visando cuidar do cuidador através da

mobilização de seus recursos pessoais - não podendo, assim, ser considerada uma

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atividade pedagógica no sentido de ensiná-los a executar seu trabalho de tal ou qual

forma.

Na seqüência, foi solicitado que ficassem em círculo, mas dessa vez se

voltando para fora do grupo, ou seja, fazendo um giro de 180 graus e ficando, cada

um, de costas para o grupo. Para isso, os participantes moveram os colchonetes,

configurando um círculo menor, o que lhes permitiu ter espaço para as pernas. Dois

participantes pediram para ficar sentados em cadeiras, por estarem com problemas

em suas costas. Em seguida, foi pedido que resgatassem o percurso que haviam

feito naquele dia, desde a hora em que se levantaram até chegarem ao IPUSP:

como foi sua higiene pessoal, o desjejum, o ato de se vestirem, a saída de casa, o

meio de transporte que utilizaram, sua chegada ao IPUSP, o encontro com os

colegas, ainda do lado de fora do prédio, o período de espera até o início da oficina,

a entrada na sala, o agrupamento, o início dos trabalhos, o ato de se voltarem de

costas, o estar naquele lugar, ali e então, para, finalmente, perceberem como se

sentiam naquele exato momento. Foi solicitado, ainda, que procurassem se dar

conta de como percebiam o grupo estando de costas para ele, e que tentassem

imaginar um local, na sala, em que gostariam de estar sentados. A seguir, foi pedido

que se voltassem de frente para o grupo, conferindo qual o lugar em que gostariam

de estar sentados, e que se mudassem para esse lugar, buscando negociá-lo caso

estivesse ocupado. Ninguém mudou de lugar. Este procedimento durou cerca de 25

minutos.

A seguir, os facilitadores pediram que os participantes se apresentassem,

dizendo seu nome e fazendo um gesto que fosse significativo de como se

percebiam. Aleatoriamente, foram se apresentando, sendo que todos utilizaram

somente as mãos para fazerem o seu gesto, também todos esses de pequena

amplitude, quase consistindo, apenas, em algum tipo de aceno.

Terminada a apresentação, os participantes foram orientados a formar quatro

grupos: três grupos de 5 e um grupo de 6 participantes. Para tal etapa, foi pedido

que se baseassem nos critérios seguintes: de agrupamento pela cor da meia, pelo

qual formaram-se grupos desiguais, num ambiente de muita brincadeira; de

agrupamento casando a cor da meia com a cor da calça, o que resultou em mais

descontração, ficando claro que cada um compreendeu esse “casamento” da forma

que melhor lhe conveio, ou seja, alguns encontraram alguém que tinha as mesmas

cores de meia e calça que aquelas que trajava, outros efetuaram casamento da sua

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INSTITUIÇÃO IDEAL

1) Sede decente (estrutura física) – elaborada por pessoal técnico

2) Acabar com cargos políticos – eleições internas – empresa técnica 3) Plano de carreira por merecimento (sem apadrinhamento)

4) Unidades com autonomia para atualização de procedimento 5) Reciclagem para desenvolvimento pessoal e profissional – para funcionários e técnicos 6) Unidades menores (ECA) de até 40 meninos e quadro funcional completo (adequado às

necessidades) 7) Manutenção autônoma por unidade

8) Centro médico por complexo (estrutura física) 9) Triagem fiel e regionalização e grau de infração

10) Criação de cooperativa para apoio geral a funcionário 11) Ajuste salarial adequado com o conhecimento

12) Benefícios 13) Equipe para trabalho externo

14) Caixa próprio (relacionado ao item 7) 15) Profissionais melhor preparados com habilidades específicas

16) Política de atendimento integral – rede de apoio 17) Seleção criteriosa para profissional

18) Treinamento inicial 19) Reconhecimento e cuidado com a insalubridade profissional

20) Unidade específica para atendimento psicológico e psiquiátrico 21) Unidades integradas com política de progressão

22) Plantão forense por complexo (relacionado ao item 8) 23) Eficiência e com aspecto preventivo

24) Reconhecimento e respeito pela sociedade civil para funcionários 25) Equilíbrio entre os elementos (pessoas, princípios e procedimentos)

26) Profissionais que trabalhem por opção 27) Espaço acolhedor

Necessária (atividade necessária)

Estimulante Percepção de equipe

Os facilitadores apontaram como cada grupo se preocupou, quase que

exclusivamente, com questões específicas: o grupo 1 falou da necessidade de

cuidado e amparo aos funcionários; o 2 falou de propostas administrativas; o 3

apresentou propostas educativas e como operacionalizá-las; o 4 considerou

princípios e valores que deveriam reger seu trabalho na INSTITUIÇÃO.

Foi feito, então, um intervalo de 15 minutos. Na volta, foi solicitado que o

grupo constituísse um círculo, sendo pedido que formassem quatro grupos, de

acordo com a numeração de suas etiquetas auto-adesivas (1 a 5, 6 a 10, 11 a 15, 16

a 21). Distribuídas folhas de papel sulfite por todos os grupos, foi solicitado que,

agora, promovessem discussões e levantamentos de idéias sobre a INSTITUIÇÃO real, sobre o que a INSTITUIÇÃO efetivamente é. Um relator escreveria e,

posteriormente, apresentaria os pontos levantados pelo grupo. Após algum

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burburinho, dedicaram-se à tarefa. Os facilitadores, novamente, circularam pela sala,

disponíveis a dúvidas. A apresentação das propostas, feitas pelos grupos, ocupou

muito mais tempo que a anterior, sendo, praticamente, discutido extensivamente

cada item apresentado. Isto ocorreu ao mesmo tempo em que os facilitadores

compilavam os pontos levantados e procuravam coordenar a discussão.

A seguir é apresentado um quadro com a transcrição da compilação feita pelo

facilitadores, relativa à INSTITUIÇÃO real.

INSTITUIÇÃO REAL

1) Campo de batalha - Meninos X Funcionários - Funcionários X Funcionários 2) Objetivos diferentes e conflitantes

3) Desperdício de material 4) Funcionários despreparados desde o início e em todos os níveis

5) Política deficitária de RH em todos os níveis 6) Riqueza de experiência

7) Mais contenção que educação e não atinge objetivos da missão 8) Coração de mãe, aceita tudo

9) Bode expiatório 10) Saco de pancadas

11) Cobaia 12) Se mostra mais que há 10 anos

13) Mais prática e menos técnica 14) Extremamente burocratizada

15) Vagarosa 16) Desorganizada

17) Extremamente desarticulada 18) “Pêra ao contrário”

19) Inexistência de investimento para a proposta pedagógica 20) Falta de comprometimento de funcionários

21) Funcionários como fantoches 22) Instituição corrompe o funcionário

23) Falta cumplicidade e comprometimento 24) Falta coesão

25) Falta falar a mesma linguagem 26) INSTITUIÇÃO é política

27) Discriminada 28) Persistente

29) Está sucateada 30) Inadequada fisicamente

31) Superlotada 32) Está com profissionais dedicados, envolvidos e que acreditam na qualidade

33) Já foi excelência, ainda é referência 34) Enquanto todo não existe (17)

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INSTITUIÇÃO SURREAL

Rio Tietê

- crescimento desordenado - todos conhecem problemas e querem solução - dejetos - “abnegados da limpeza”

- enchentes “limpam”

- muitos planos, pouca ação

Terminada a apresentação, solicitou-se que cada grupo representasse

pictoricamente, em cartolinas separadas e com lápis crayon, a INSTITUIÇÃO ideal e

a INSTITUIÇÃO real. As cartolinas foram coladas na parede, formando outra

exposição. Foi pedido que observassem atentamente todas as representações, o

que fizeram em silêncio. [As páginas que seguem, contém fotografias das cartolinas, que estão identificadas

por “real” ou “ideal” e um mesmo número, de maneira a formarem pares.]

Ideal 1

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Real 1

Ideal 2

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Real 2

Ideal 3

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Real 3

Ideal 4

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Real 4

Em seguida, foi combinado um intervalo de uma hora para almoço. A maioria

dos participantes saiu da sala conversando animadamente. Os facilitadores ficaram

conversando algum tempo sobre o transcorrer da parte da manhã.

Uma hora depois, lentamente os participantes retornaram à sala e se

acomodaram. Enquanto isso, os facilitadores transformaram, aleatoriamente, os

pontos apresentados como os da “INSTITUIÇÃO ideal” e os da “INSTITUIÇÃO

real” em consignas, transcritas para pequenos pedaços de papel.

O recomeço dos trabalhos ocorreu com 15 minutos de atraso. Abaixo, alguns

exemplos de consignas dadas:

Responsável pela criação de uma estrutura física adequada. Responsável por um gerenciamento burocrático emperrador.

Responsável pela manutenção do atual plano de carreira e pelos atuais salários. Responsável pela criação de uma comissão salarial e de avaliação do atual plano de carreira.

Responsável pela desorganização da unidade Responsável por más acomodações para todos.

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Responsável pela atuação mais de contenção que de educação. Responsável pela atuação mais de educação que de contenção.

Responsável pela qualificação técnica do pessoal e por atuação competente. Responsável por gerenciamento financeiro e administrativo autônomo.

Responsável por atividades para meninos e funcionários se relacionaram. Responsável por funcionários e meninos serem disciplinados.

Responsável pela manutenção da atual estrutura física e pelo relacionamento bruto e estúpido entre as pessoas.

Responsável por que funcionários e meninos sejam discriminados

Após alguma conversa e brincadeiras, inclusive por parte dos facilitadores, foi

solicitado que escrevessem, em folha sulfite, o significado da palavra “construção”,

para, em seguida, apresentarem o que escreveram.

Construção é criar, desenvolver alguma coisa.

Construção é renovação. Construção é transformação.

Construção é planejar, sonhar, achar soluções, partilhar opiniões. Construção é fazer junto o que foi planejado, buscando a concretização do que foi pensado,

sonhado. Construção é ter um objetivo, uma meta e irmos atrás, fazendo acontecer, sem pular etapas e assim

conseguindo nos realizar. Construção é resultado, trabalho.

Construção é criar um sonho, projeto. Construção é definição de uma construção, estudo, preparação, alicerce e apoio.

Construção é criação a partir do conhecimento, planejamento e objetivos definidos paralelamente – ou - criação a partir da intuição (insight) através de vivências.

Construção são as idéias em prática, pensadas e materializadas. Construção é resultado de um trabalho pensado, projetado, treinado, acionado e curtido.

Construção é fazer algo aparecer, tanto abstrato como sólido. Construção é fazer algo, um trabalho, é ser, reconhecer. Ideal pesquisar 1ª planta cotação de

preço. Construção é criar, desenvolver alguma coisa.

Na seqüência, foi solicitado que construíssem concretamente uma unidade da

INSTITUIÇÃO, utilizando quaisquer objetos e materiais disponíveis na sala. Cada

participante sorteou um papel com uma consigna, que indicava ser essa a sua

tarefa/meta durante a construção. Foi sugerido que guardassem segredo sobre sua

consigna/tarefa em relação a outras pessoas. Ressalta-se, neste presente momento,

que foi introduzida, de última hora pelos facilitadores, uma modificação no roteiro

original onde havia sido pensada a proposta de construção de um castelo.

Feita a proposta, o grupo ficou um tempo, relativamente longo, como que

paralisado, andando de um lado para outro. Alguns se isolaram, “preparando seu

material de trabalho”, escrevendo e desenhando em cartolinas e papel sulfite; outros

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parados, olhando para suas consignas e para o movimento do grupo. Burburinho e

confusão eram o modo de organização do grupo: não havia um movimento grupal

que pudesse ser percebido como organização. Muito lentamente, alguma espécie de

organização foi acontecendo: alguns começaram a construção, enquanto outros

ficaram observando. Foram ouvidas muitas discussões, inclusive com os

facilitadores. Aqueles, que tinham consignas “concretas”, procuravam se delas

desincumbir, enquanto que os que tinham consignas “abstratas”, por exemplo, cuidar

da organização, ficavam andando de um lado para outro, tentando como que

“vender” sua consigna. O ambiente se assemelhava ao de uma feira livre: pessoas

carregando cartazes, outras bradando palavras de ordem, umas tentando convencer

a outras, poucas efetivamente trabalhando na construção.

Em certo momento, os facilitadores intervieram vigorosamente chamando a

atenção para o fato de que estavam repetindo seu comportamento do dia a dia,

tentando resgatar aos participantes a forma como lidam com as negociações na sua

rotina de trabalho, relembrando-os de que estavam participando de uma construção

coletiva, ou seja, havia algo a ser criado.

Em outro momento a facilitadora solicitou que parassem para refletir se

realmente algo estava sendo construído. Foram remetidos ao fato de que as

consignas foram tiradas daquilo que eles mesmos haviam proposto. E lhes fora

apontado de que estavam duros e rígidos, impossibilitando qualquer evolução na

“dança da negociação”.

Em determinado momento, grande confusão reinava. Os participantes mais

velhos, e que têm cargos de chefia na instituição, pediram silêncio, e propuseram

que fosse discutida a construção, e do que precisariam para poder executar tal

construção. Bom entendimento entre si foi uma unanimidade. Procuraram

estabelecer alguns critérios e normas para a construção, levantando o que seriam as

necessidades, e dentre elas, as prioridades. A seguir houve uma acalorada

discussão sobre necessidades e prioridades, com todos se postando em torno da

parte do castelo concretamente construído. Por muito tempo discutiram, entre

ordens e contra-ordens.

Após um longo tempo, durante o qual os participantes não conseguiram

realizar a construção, os facilitadores interromperam a tarefa, e solicitaram que cada

um revelasse sua consigna. A maioria dos participantes concluiu que a tentativa de

construção se resumiu a cada um procurar cumprir sua tarefa, sem se importar com

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a articulação com os outros. Após o apontamento de uma aparente rigidez na ação,

sem espaço para o experimentar modos outros, a discussão seguiu com todos em

pé ao redor da “construção”. Sentaram e continuaram, de forma mais amena, a

discussão, agora enfatizando a “paralisia do fazer”, ou seja, o quanto são capazes

de ter idéias e quão difícil é colocá-las em prática.

Segue uma longa discussão que inclui os facilitadores, em que muitos temas

foram abordados. Os participantes estavam atônitos. Os facilitadores foram pinçando

os temas que consideraram relevantes, procurando explorar a riqueza de

dinamismos grupais e individuais que tinham se mostrado na parte vivencial da

oficina. De início foi discutida a diferença entre fazer e agir. Fazer é se desincumbir

de uma tarefa, agir é empreender uma ação. Percebiam-se como pessoas que

faziam, que cumpriam tarefas designadas, entendidas como impostas, sem

questioná-las ou refletir sobre adequações.

Enveredou-se por discutir a possibilidade dessa atitude na instituição. Falou-

se em brechas na estrutura que permitiriam uma gama de ações bem maior que

aquela de que dispões na realidade de sua atuação. Constatou-se que as condições

de trabalho não são as ideais; há falta de verbas e de procedimentos, mas tudo isto

não justifica uma paralisia, nem tampouco um trabalho que não possa ser bem feito.

Discutiu-se, ainda, a questão dos limites pessoais e da instituição e os possíveis

limites para negociações entre as partes. Retomou-se a experiência da oficina para

evidenciar que suas ações não são condizentes com seus discursos; ou seja,

enquanto no discurso falavam da possibilidade de negociação, ficaram rígidos e

inertes quando tiveram que negociar as consignas, utilizando-as como regras a

serem seguidas.

A discussão sobre maleabilidade/rigidez levou-os a pensar sobre a

possibilidade de, em seu cotidiano do trabalho institucional, estarem criando um

“know-how”, que poderia, depois, ser levado para outras situações. Procurou-se

mostrar aos participantes que eles lidam com uma população extremamente criativa

tendo, assim, a necessidade de também se valerem de criatividade. Neste momento,

fez-se grande silêncio, enquanto lhes eram apontadas suas riquezas e recursos

pessoais possíveis. Tornava-se evidente para todos quão apropriada era a

percepção do que é possível ser feito, embora, ainda assim, não a realizassem no

concreto.

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Abriu-se a possibilidade de refletir sobre como ser autor da própria história e

dos próprios atos, ou seja, não ser sempre necessário agir com papéis pré-definidos.

Concluíram ser isto um auto-aprisionamento, percebendo que não é o outro quem

aprisiona. Seguir regras é diferente de ser comandado, pois enquanto um comando

é dado apenas uma vez, esperando ser seguido repetida e indefinidamente, seguir

regras pode implicar em questioná-las quanto à sua propriedade. Perceberam que,

geralmente, tomavam regras (consignas) como comando, o que conduziu a uma

questão recorrente entre o grupo no tocante a ser possível educar os jovens internos

da instituição, ao invés de somente praticar atos de contenção frente a eles. Disto,

encaminharam-se para a questão dos pré-conceitos e o quanto estes são

impeditivos para encarar aquilo que efetivamente está acontecendo no momento.

Perceberam como reagiram à construção da INSTITUIÇÃO, tumultuados, baseando-

se em pré-conceitos.

Em seguida, apareceu o tema de polaridades: funcionários versus meninos. É

dificultoso compreenderem a todos como parte de um mesmo sistema, dentro do

qual o confronto não seria a solução para os problemas no cotidiano junto aos

meninos; contudo, pareciam relutar a pensar que, caso “puxassem a corda do

mesmo lado”, poderiam obter resultados mais interessantes.

Refletindo-se a respeito do trabalho realizado nesta oficina, conclui-se que era

como que a reiteração da sua realidade profissional, apresentando votos de que ela

poderia se modificar. Nas palavras do facilitador, “havia sido animadamente

fotografada sua situação diária de trabalho”.

Por essa deixa, pautou-se a discussão sobre a atitude frente ao trabalho, na

qual se percebem sempre vivendo um re-começo. Neste exato momento, um dos

participantes dirigiu-se até a construção feita e, sob o olhar dos outros, vai

desmontando tudo sozinho, dizendo-se incomodado com o que ela estaria

representando: a incapacidade de todos eles em construir algo satisfatório. Ao

terminar, comentou: “Agora não incomoda mais!”. Foi este mesmo participante

quem, na discussão sobre INSTITUIÇÃO ideal vs INSTITUIÇÃO real, introduziu a

“INSTITUIÇÃO surreal”. Frente a isto, perguntaram-se até quando iriam precisar

repetidamente voltar “à estaca zero”, concluem que isto perduraria até que as

pessoas envolvidas se articulassem efetivamente. O facilitador apontou-lhes o fato

de estarem dispostos em forma de zero (círculo), e que talvez fosse esse o zero

para o qual seria bom que pudessem sempre retornar. Desse modo, nunca seria

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uma volta ao zero no sentido de começar de novo, desde que não fizessem aquilo

que a instituição gostaria que fizesse: separem-se, perdendo sua própria força.

Discutindo a transição do ideal para o real, a questão não seria o que

estariam fazendo, mas como estariam fazendo. Neste sentido, uma atitude mais

saudável frente ao trabalho seria atentar ao que surge no cotidiano,

acompanhando-o, ao invés de simplesmente correr atrás de dar soluções a conflitos

já instaurados.

Tal percepção conduziu a questões de como interesses políticos, dentro e

fora da instituição, interferiam no trabalho. Pensou-se que uma possibilidade de

contornar essa situação, talvez pudessem, eles mesmos enquanto profissionais, se

preocuparem em divulgar o trabalho realizado com os meninos na INSTITUIÇÃO, já

que, boa parte das vezes, ele é desprestigiado e deturpado pela mídia, no que diz

respeito às atitudes educativas, a partir de juízos de algumas parcelas da sociedade,

quando não pela própria instituição.

Por fim, o facilitador apresenta a questão: eles acreditariam que valia a pena

introduzir modificações no contexto do trabalho? Faz-se um longo silêncio. As falas,

que se seguiram, foram relutantes. Disseram acreditar valer a pena, sim... mas

perguntavam-se se não seria um esforço em vão, dadas às idas e vindas da

instituição, constantes mudanças de rumo e trocas de orientação gestora.

No tocante à esta Oficina de Oxigenação, expressaram como levariam a

experiência de poderem ter vivido algo diferente: encontrarem-se eles mesmos

diferentes, podendo agir diferentemente com o outro. Diante disso, os facilitadores

puderam expressar a abertura de sentido de “aquilo que eu sou, eu multiplico; pois

me dispondo como diferente, estarei multiplicando essa diferença no meu ambiente

de trabalho”.

Terminou a oficina. Saíram da sala, comentando que o trabalho “tinha valido a

pena, apesar de não ter sido agradável, por ter mostrado, claramente, pontos críticos

a serem repensados”.

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5.3 Re-leitura Cromática da Oxigenação, em 22.07.03 colorido part. de colorir; ver color-; color- elemento de composição antepositivo, do lat. color (ant. colos),óris 'cor, tinta', servindo a cor quase sempre de caráter distintivo ou ajustado a um objeto para dissimular-lhe o aspecto real; color tomou acp. especiais, principalmente na linguagem da retórica: 'aspecto, caráter particular do estilo - color tragìcus, poetìcus, talvez por imitação do gr. khrôma; aspecto fingido sob a cor de, contar as cores', a seguir 'direito de colorir a verdade, pretexto, razão especiosa'; antigo usual; panromânico (salvo romn.): it.logd. colore, engad.friul. kolor, fr. couleur, provç.cat.esp. color, port. cor; der. latinos: colóro,as,ávi, átum,áre 'dar cor a, colorir'; usual e antigo; representado em romance: it.logd. colorare, fr. coudrer, provç.cat. colrar, esp. colorar, corlear, port. corar; donde colorabìlis,e (raro) 'que pode ser colorido', coloratìo,ónis, colorátor,óris 'pintor de paredes', colorátus,us, coloratúra,ae, todos raros e técnicos; concolórans,antis 'que tem a mesma cor'; decolóro,as 'alterar a cor'; colorarìus = gr. chrómatarius 'tintureiro ou o que está todo o dia ao sol', colorínus, colorìus (tardio) 'de diferentes cores', colorifìcus,a,um 'que dá cor' (DEH) 38

A idéia de uma re-leitura cromática das oficinas, foi a de restituir à descrição

das oficinas, matizes que se perderam. Fundada no texto descritivo já apresentado,

procurou-se tecer comentários na perspectiva de alguém que viveu esta história,

menos na condição de pesquisador, mais na condição do narrador que pode emitir

seus juízos sobre o que viu, vivenciou, percebeu, intuiu, interpretou. Tentativa de

resgate do sentido sentido, de contar das cores, colorindo uma experiência verídica.

Esta re-leitura colorida fundamentou-se sobre cinco pontos:

Localização – lugar físico do qual se falava Quem – de quem se falava, ou quem falava

Roteiro – aquilo que tinha sido pré-estabelecido pelos facilitadores Como aconteceu – descrição dos fatos

Como foi interpretado – interpretação dada aos fatos De início, os facilitadores se apresentaram para, em seguida, apresentarem o

tema que iria ser desenvolvido na oficina. A escolha do tema recaiu sobre o

conhecimento prévio dos facilitadores acerca da instituição em que os participantes

trabalham, bem como das necessidades que diziam ter. O tema foi bem aceito pelo

grupo, que parecia disposto e disponível para o trabalho.

Proposta a atividade de aquecimento, esta transcorreu sem percalços; o

grupo se mostrava sereno. Apenas enquanto foram solicitados a não estabelecerem

contato visual com os colegas, alguns tiveram dificuldade em fazê-lo. A idéia deste

38 Grifo meu.

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aquecimento era de promover o ensimesmamento dos participantes, o que

efetivamente ocorreu. Quando solicitado que escolhessem um lugar para se sentar,

o fizeram quase sem conversas, brincadeiras, ou algum tipo de alarde.

Foi solicitado que completassem por escrito frases propostas. A idéia era que

se aproximassem das questões que os facilitadores consideravam importantes. A

seguir, no momento de exporem suas frases para o grupo, o fizeram com muitas

brincadeiras e bom humor, enquanto as frases eram compiladas no papel Kraft.

Houve então um momento de muita descontração, à medida em que os participantes

iam reapresentando as frases que tinham escrito, só que agora se apresentando

como as definições. Alguns ficaram ruborizados durante sua apresentação, era

nítido como se sentiam envergonhados, identificados com sua resposta. Foi uma

tarefa leve, da qual se desincumbiram sem maiores problemas, discussões ou

entraves.

Ao serem solicitados a fazerem o mesmo procedimento que aquele feito

anteriormente, só que agora com o gatilho “Viagem é...”, o grupo se tornou ainda

mais leve, pois se, aparentemente, anteriormente de debruçaram sobre questões

que de alguma forma eram concretas, de seu dia a dia, ao falarem de viagem,

podiam devanear, se desprender de algo real, duro e concreto, rumo a uma fantasia,

algo prazeroso. A leitura das definições de viagem, mostra essa leveza.

Na discussão que se seguiu a respeito de viagem, os facilitadores ficaram

surpresos com o fato do grupo quase sempre referir viagem como sendo de navio, o

que vinha exatamente de encontro ao que haviam estipulado no roteiro pré-

estabelecido desta vivência. Para dar continuidade ao trabalho, os facilitadores

tiveram apenas que retomar os barcos e navios que o grupo havia mencionado,

solicitando que cada um definisse o que era um barco para si. Na seqüência foi

solicitado que cada um desenhasse um barco, o que fizeram com prazer. A seguir foi

pedido que se apresentassem como o barco que tinham desenhado. Estas

apresentações foram ricas e bem humoradas. Terminada a apresentação colavam

seus desenhos numa das paredes da sala, formando uma galeria de desenhos de

barco, que foi literalmente admirada e apreciada pela grupo.

Pediu-se então observassem atentamente a galeria de barcos, e que

escolhessem um com o qual se identificasse. Foi interessante notar que muitos

escolheram desenhos que não eram os seus próprios. Na seqüência foi solicitado

que escolhessem uma parte do barco que tinham eleito, e que se identificassem com

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ela, para em seguida comporem um “barco humano”, uma construção de um barco

na qual cada um seria a parte que tivesse escolhido. De forma muito compenetrada

foram compondo o barco. Quando instados a relatarem como se sentiam como tal

parte do barco, o fizeram de forma séria, havia um silêncio absoluto na sala.

Estavam no papel da parte do barco que haviam escolhido, mas mesmo assim

aparentavam estranheza de estarem sendo algo que não estavam acostumados a

ser. Cinco dos participantes mais velhos do grupo, que por coincidência ocupavam

cargos de direção na instituição, se posicionaram como motores, como se sem a sua

“propulsão” o barco não pudesse se mover, enquanto o sexto mais velho do grupo,

também ocupando cargo de direção, se deitava no chão, e se dizia casco do barco.

A construção do barco com objetos transcorreu de maneira tranqüila,

organizada. Era nítido o capricho e o empenho em realizar a tarefa. Os homens se

encarregavam das tarefas mais “pesadas”, sendo chamados para carregar pesos.

As mulheres se encarregavam dos detalhes da construção. Em alguns momentos

paravam e ficavam pensando nas “soluções técnicas” possíveis para determinados

detalhes da construção. Cuidaram dos detalhes, se esmeraram. Era nítido o prazer

que tinham em se desincumbirem da tarefa. Pareciam estar fazendo algo do que

iriam usufruir muito.

Na rodada que seguiu, em que deveriam comentar como havia sido a

atividade, relataram prazer, descontração, ludismo. O clima no grupo era dos

melhores, parecia mesmo que estavam para fazer uma viagem que há muito

esperavam. Anunciado o horário para o almoço, deixaram o barco com muito

cuidado, como se nada devesse sair do seu lugar.

Na volta do almoço, a proposta de fazerem uma “viagem” com o barco, foi

muito bem-vinda. Animados subiram no barco, e cada um foi se acomodando, tanto

de pé, quanto nas cadeiras que, lado a lado, faziam as vezes de banco. Era

interessante notar o prazer que a atividade causava, pareciam realmente estar

fazendo uma viagem. As consignas foram sendo passadas.

No momento em que os facilitadores anunciaram o cair da noite, o clima no

barco ainda era bom, mas com o anúncio de nevoeiro as feições se transformaram,

se tornaram preocupadas. O fato de as luzes da sala terem sido apagadas, as

persianas fechadas e seus olhos vendados, pareceu deixá-los sobressaltados.

Anunciado o risco de naufrágio, pareciam não acreditar no que ouviam. Solicitados a

encontrarem sua dupla, formou-se uma grande confusão; os participantes se

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esbarravam, se trombavam, enquanto iam perguntando, às vezes aos gritos,

àqueles com quem cruzavam pelo número da etiqueta que portavam. Por fim, com

as duplas formadas, notava-se tensão. Muitos se queixavam do incômodo causado

pelas vendas, que parecia mais um incômodo causado pela impossibilidade do

controle visual.

Quando solicitados a deixarem um legado a ser comunicado às suas famílias

em caso de naufrágio, ficaram longamente cochichando uns aos ouvidos dos outros,

com muitos se emocionando visivelmente. Alguns choraram.

Utilizando um atabaque (instrumento de percussão), os facilitadores

causaram um grande estrondo na sala, anunciando o choque do barco, que deixou

os participantes assustados. Ainda vendados, procuraram as saídas do barco para

os botes salva-vidas. Como não havia lugar para todos nos botes, foi necessário um

processo de negociação, que resultou em alguns participantes irem sendo

“puxados”, agarrados às mãos de colegas dentro dos barcos. Livres de suas vendas,

avistaram uma ilha para a qual rumaram; os botes salva-vidas encalharam na praia.

Os participantes desembarcaram, e pareciam efetivamente cansados. Após se

refazerem da aventura, se dividiram em grupos-tarefa. Ânimo e bom-humor

pareciam ter voltado ao grupo. Executaram suas “tarefas” com primor, e num

instante o acampamento estava montado.

Se faz noite. Chegada a hora de dormir, foram solicitados a acompanharem

uma atividade de relaxamento e uma “recuperação” do que tinha sido sua aventura.

Quietos, acompanhando as consignas, alguns chegaram efetivamente e cochilar.

Foram então solicitados a “acordar”. Lentamente, cada um no seu ritmo, vão

abrindo os olhos. Os facilitadores anunciam a integridade e o final da aventura.

Pareceram bastante aliviados, saíram para o intervalo.

De volta do intervalo, na rodada de avaliação, teceram muitos elogios à

atividade, não tendo havido sequer uma crítica aos trabalhos, aos colegas, à

proposta em si. Pareciam sair dali muito satisfeitos.

5.4 Re-leitura Cromática da Oxigenação, em 01.08.03

Os facilitadores conceberam esta proposta de trabalho tendo em vista uma

continuidade da oficina anterior, com a idéia de que seria importante os participantes

vivenciarem algo bem próximo de sua realidade, que os fizesse refletir sobre suas

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potencialidades, sobre suas dificuldades, sobre o que é possível ser modificado na

realidade de seu ambiente de trabalho.

A sala utilizada para esta oficina foi o ateliê de criatividade do Bloco de

Atendimentos dos IPUSP, que teve que ser reservada de forma regulamentar para

sua utilização. A atividade se realizou com 21 participantes, enquanto

aguardávamos 28. A falta dos 7 se deveu a problemas particulares e a questões

relativas ao seu trabalho, pois não havia pessoal disponível para cobrir suas

ausências na instituição. O atraso de 40 minutos no início dos trabalhos me parece

ser algo característico de uma cultura do serviço público; se por um lado

praticamente todos os participantes estavam na USP no horário estipulado, portanto,

não sujeitos a críticas, por outro, estavam lá sem estar. De nosso lado, ficamos

aguardando pelo empréstimo da câmera de vídeo por parte da Diretoria do Instituto

de Psicologia, que esteve sujeito a uma solicitação, justificativa, alguns telefonemas

e papelada a ser assinada, para que finalmente o conseguíssemos, mostrando a

mesma face do serviço público. Então, se por um lado havia a possibilidade do

empréstimo da câmera, portanto, algo não sujeito a críticas, por outro foi necessário

aguardar um bom tempo e a submissão a uma burocracia bastante grande, que

acarretou no atraso do início das atividades, bem como na não gravação do início

dos trabalhos, visto que se optou por iniciar mesmo sem a câmera, para que o início

da oficina não fosse ainda mais retardado.

Talvez por já conhecerem o ambiente e os facilitadores, os participantes

pareciam estar mais soltos e tranqüilos do que quando do início da primeira vivência.

Foi solicitada a autorização do grupo para a gravação em vídeo da oficina.

Após algum silêncio, concordaram, tendo sido garantido a eles o sigilo quanto ao

uso do material.

Apesar de não ter sido explicitada essa questão do silêncio frente à questão

da gravação, presumo que pudesse relacionar-se com outras oportunidades em que

talvez tivessem passado por algo semelhante. Para isso contribuiu uma lembrança

do trabalho com os educadores do PET, que sempre questionavam se realmente o

que estava sendo feito era para eles, ou se simplesmente estávamos lá para “coletar

dados”, para depois abandoná-los, como outros profissionais já tinham feito. Em

todo caso, apesar da concordância com a gravação, ficou uma dúvida quanto ao

sentido dessa situação para eles.

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Devido ao atraso, o facilitador, de tempos em tempos, enquanto ajudava no

preparo da sala, ia até o hall de entrada do prédio para averiguar quantos

participantes já tinham chegado, avisando aos presentes as razões do atraso,

solicitando que não se dispersassem. Nessa ocasião, pode observar que, talvez pelo

fato de os participantes trabalharem em quatro unidades diferentes de um mesmo

complexo, isto poderia expressar como alguns tinham muita proximidade, embora

outros, nem tanto. De forma geral, era evidente o fato de que todos se conheciam,

eventualmente até por já terem trabalhado juntos em alguma outra unidade da

instituição, isto somado às características individuais. Assim, não era de admirar que

os grupos formados do lado externo do Bloco de Atendimentos, refletissem este

sociograma.

No preparo da sala procurou-se guardar todos os objetos que não iriam ser

utilizados na oficina, já que a sala é utilizada por vários profissionais, bem como

posicionar as cadeiras, colchonetes e demais materiais que iriam ser utilizados, de

forma funcional.

No momento em que o trabalho efetivamente começou, após ouvirem com

atenção a apresentação dos facilitadores, percebia um incômodo no ar, como se

estivessem fazendo algo que não era bem o que gostariam de estar fazendo. No

momento em que ouviram que a oficina visava mobilizar recursos pessoais e que

não seria uma atividade em que iriam aprender algo, do ponto de vista formal,

pareceram aliviados. Nos pareceu que a imposição feita pela instituição para que

participem de treinamentos mais formais, lhes gerou uma considerável aversão para

com qualquer coisa que tenha o aspecto desses treinamentos.

Quando lhes foi pedido que sentassem em círculo, mas de costas para o

grupo, foi possível notar uma certa objeção em fazê-lo, pareciam querer saber “o

que ia acontecer”, seria isso uma tentativa de não perderem o controle sobre a

situação? isto pareceu permear boa parte do trabalho feito durante o dia.

Durante a atividade de relaxamento que se seguiu, muitos tiveram dificuldade

de ficarem deitados quietos; mantinham os olhos abertos e de tempos em tempos

procuravam espreitar o que estava acontecendo ao seu redor. No momento em que

foram solicitados a, de costas, escolherem um lugar e se dirigirem a ele, ficou a

impressão que a lei do mínimo esforço havia sido aplicada – ficaram onde estavam.

Aparentavam preguiça em se mover de um lugar para outro.

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Na seqüência foi lhes pedida uma apresentação com um gesto; a maioria

passou a impressão de não querer se expor, fazendo algum gesto mais

“espalhafatoso”. Pareciam não querer sair de seus limites, não perder o “controle”,

pois como o sociograma formado espontaneamente do lado externo do prédio

mostrava, havia ao mesmo tempo cumplicidade e “grupinhos”, que aparentemente o

grupo não queria desvelar.

No momento seguinte, em que foi solicitada a divisão do grupo em grupos de

trabalho menores, já pareciam se sentir bem mais à vontade, pois brincavam muito,

aproveitando a ocasião para se descontraírem; tudo indicava que o momento

anterior havia gerado algum tipo de tensão. De alguma maneira a apresentação

individual pareceu intimidá-los, talvez por evidenciar as diferenças, “desbaratar” o

grupo. E mais uma vez a lei do mínimo esforço se fez presente, pois a compreensão

das consignas passadas pelos facilitadores estava claramente vinculada a esta lei.

Instados a nos pequenos grupos discutirem e arrolarem os pontos do que

seria a INSTITUIÇÃO ideal, de início se mostraram reticentes, mas aos poucos

foram se animando e as discussões se tornaram acaloradas. No momento em que

iniciamos a apresentação dos pontos arrolados por cada grupo e a compilação dos

mesmos pelos facilitadores, cada grupo que apresentava suas propostas parecia

imbuído de uma vocação política de vender suas idéias, o tom parecia o de um

palanque político. Enquanto eram feitas essas apresentações, os outros

participantes se acomodavam confortavelmente sobre os colchonetes; muitos se

deitaram, se largaram, passando às vezes uma impressão de desrespeito descrença

no projeto, desilusão frente aos colegas que estavam apresentando suas idéias.

Neste momento começa a haver uma mudança na forma dos participantes se

postarem, principalmente depois que foi verbalizado, que a INSTITUIÇÃO ideal era

possível. Esta idéia parece ter mexido com o brio dos participantes. Pareciam

espantados em descobrir que para aquilo que tanto criticavam, eles mesmos haviam

possivelmente encontrado uma solução. Pareciam estimulados, e assim era seu

relato.

Chamou a atenção o fato de que, sem terem combinado previamente,

dividiram-se como que em forças-tarefa, cada grupo privilegiando um tema, que

discutiram exaustivamente, compondo uma complementaridade notável. O grupo 1

falou da necessidade de cuidado e amparo aos funcionários, o grupo 2 falou de

propostas administrativas, o grupo 3 de propostas educativas e de como

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operacionalizá-las, e o grupo 4 sobre princípios e valores que deveriam reger seu

trabalho na INSTITUIÇÃO, tendo os pequenos grupos funcionado como grupos de

trabalho temático.

Já quando compuseram os grupos para discussão da INSTITUIÇÃO real, sua

estimulação foi paulatinamente baixando. Isto começou com as composições

diferentes dos grupos, e um aumento na seriedade das discussões. Em alguns

momentos esta parecia catártica, e que assim permaneceu até o final desta fase da

oficina. Pareciam irritados, se na discussão da INSTITUIÇÃO ideal havia uma

preocupação em compor algo, o caráter dessa discussão parecia destrutivo, como

que uma tentativa de erradicar essa instituição real, além de um pedido de ajuda

para fazê-lo.

Ao desenharem nas cartolinas a INSTITUIÇÃO ideal e a INSTITUIÇÃO real, o

fenômeno se repetiu; a primeira foi feita com carinho e esmero, a segunda com raiva

e desdém. Ao observarem esses desenhos nas paredes, pareciam acalentar a idéia

da situação ideal, enquanto que uma crítica mordaz se manifestava ao observarem o

desenho da situação real. Pareciam inconformados de se perceberem numa

situação de trabalho que poderia ser diferente.

Combinado o intervalo para almoço, os participantes saíram da sala. Os

facilitadores ficaram discutindo os fatos ocorridos durante a manhã, se dando por

satisfeitos com os resultados obtidos. Esta discussão deixou claro que ambos

concordavam quanto ao fato de os participantes estarem sendo muito coerentes com

o seu dia a dia de trabalho, repetindo na vivência as rotinas e mecanismos aos quais

estavam habituados. Havia uma clara escolha pelo conhecido, apesar das pesadas

críticas a ele.

Ainda durante o intervalo, os facilitadores criaram consignas à partir das

compilações feitas da INSTITUIÇÃO ideal e da INSTITUIÇÃO real. A idéia era a de

provocar conflitos nos participantes, de forma que eles se vissem na contingência de

estabelecer processos de negociação com os colegas que tivessem consignas que

se chocassem com a sua. O critério escolhido, foi o de criar as consignas

estabelecendo ordens e contra-ordens.

Na volta do almoço, houve como que uma confraternização entre todos os

presentes. Mesmo com a animação de todos, parecia haver a necessidade de

descontração para o início dos trabalhos da tarde. As conversas e brincadeiras

foram muitas e envolveram também os facilitadores, que também se descontraíram.

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Havia para os facilitadores, de alguma maneira, uma sensação de instabilidade, que

esta conversa ajudou a dissipar.

Ao serem solicitados a definir “construção”, os participantes o fizeram ainda

imbuídos do espírito que tomou conta da parte final das atividades da manhã. Foi

uma atividade desenvolvida com muita fluidez. Já o pedido de que construíssem

uma unidade da INSTITUIÇÃO, logo que receberam a consigna, esta pareceu

desnorteá-los. De um lado alguns participantes logo começaram a querer se

desincumbir da tarefa que tinham recebido, de outro, alguns ficaram paralisados. A

boa organização que havia no grupo, logo deu lugar à desorganização, as

comunicações começaram a ficar truncadas. Chamava a atenção como o grupo

estava quase que transtornado, principalmente levando-se em conta a primeira

vivência, na qual tinham conseguido fazer uma bela construção praticamente sem

problemas. A situação se aproximou de um caos.

Os facilitadores procuraram intervir, chamando a atenção para o fato de que

cada um dos participantes estava tentando se desincumbir da tarefa que havia

recebido, sem estar levando em conta o(s) outro(s). Esta intervenção pareceu cair

no vazio, pois continuaram a agir como se nada tivessem ouvido. Adiante, nova

intervenção dos facilitadores. Perguntavam ao grupo se este estava efetivamente

construindo alguma coisa, retomando os pontos que ele mesmo tinha levantado em

termos daquilo que era a INSTITUIÇÃO, e daquilo que gostariam que ela fosse.

Mostraram toda a rigidez que o grupo mostrava, questionando se não poderiam

fazer diferente. Alguns participantes procuraram justificar aquilo que acontecia como

se fosse algo absolutamente normal. Os facilitadores concordaram com isso,

mostrando, porém, que era normal dentro do ambiente de trabalho, e que a idéia era

de que experimentassem algo diferente.

A partir do momento em que os facilitadores terminaram sua intervenção, o

grupo iniciou uma discussão entre si, na qual alguns participantes procuraram tomar

a frente do grupo, de início continuando a discussão iniciada pelos facilitadores,

depois tentando propor alternativas para a imobilidade que se mostrava. A discussão

foi se tornando mais e mais acalorada, todos reunidos em torno daquilo que tinham

conseguido construir. De forma geral os mesmos participantes que no momento

anterior haviam tomado a frente, procuravam organizar o grupo, enquanto que a

maioria apenas ouvia, raramente se pronunciando.

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Voltaram à construção; ficaram um tempo relativamente longo tentando

construir alguma coisa, mas o máximo que conseguiram foi colocar quatro cadeiras

dispostas de modo a formarem um quadrado, colocando sobre elas dois

colchonetes. Cobriram as laterais também com colchonetes, e colaram sobre a

construção algumas folhas de papel sulfite com dizeres relativos às consignas. Foi

então que os facilitadores, percebendo a definitiva impossibilidade de o grupo

naquele momento realizar a construção, interromperam a tarefa. Os participantes

estavam atônitos, confusos mesmo. Parecia que não acreditavam que não tinham

conseguido construir, uma tarefa que lhes parecia tão fácil...

Ainda com todos em pé, se inicia uma conversa na qual se procura entender

o que teria acontecido, o que teria gerado a impossibilidade. Uma das primeiras

conclusões a que se chegou, foi de que faltou experimentação, ou seja, faltou ação.

Ficaram todos conversando, discutindo, tentando estabelecer negociações de forma

ineficiente. Falou-se em “paralisia do fazer”, pois as idéias estavam lá, o material

estava lá, o ideal estava lá... Inatingível...

Os participantes se mostravam atônitos. Sentados no chão, em círculo,

ficavam olhando uns para os outros com expressões desanimadas, enquanto os

facilitadores procuravam retomar os temas que tinham se mostrado no decorrer da

vivência. Ficaram se perguntando o que ocorria que tanto faziam, e nada

construíam. Foi lhes difícil admitir que faziam o que lhes era solicitado, pedido,

imposto, mas que isso não levava a resultados que considerassem bons, pois faltava

o seu envolvimento e interesse nas tarefas, seu comprometimento com o que

faziam, para que pudessem se sentir satisfeitos com o que faziam.

Abordada a questão limites, evidenciou-se a sua dificuldade em lidar com

eles, já que os tomam como absolutos, apesar de terem um discurso de que limites

são negociáveis; na realidade parecem desgastados com os confrontos com a

instituição, e frente aos limites colocados por esta, capitulavam; pareciam esquecer-

se de todos os seus valores e conceitos pessoais.

Em seguida foi discutida a questão da criatividade, tendo lhe sido mostrado o

quanto a população com a qual trabalhavam era criativa, o quanto precisavam dessa

mesma criatividade para darem conta de seu dia a dia. Concordavam com os

facilitadores, mas sua aparência de incredulidade chamava a atenção. Pareciam

compreender sem entender. As respostas que davam aos facilitadores eram muito

simplórias, quase infantis, e facilmente refutáveis. Neste momento começou a

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caracterizar-se um clima que perduraria até o fim dos trabalhos: raiva contida.

Pareciam não se conformar com o que estavam ouvindo, apesar de concordarem. E

tentavam de alguma forma “se defender” do que lhes parecia uma acusação, apesar

de os facilitadores terem dito reiteradas vezes que procurassem entender os

comentários como constatações e não como críticas. Inconformados, ouviram à

explanação dos facilitadores à respeito de preconceitos, e de quanto estavam

fazendo uso deles, à medida que reagiam não ao que estava sendo solicitado, mas

a algo internalizado.

Quando a discussão abordou o tema polaridades, a discussão evidenciou o

quanto evitam polaridades entre si (equipe), deixando toda a “carga” de polaridades

para os meninos. Tiveram dificuldade de compreender que pode haver diferenças

intra-equipe e igualdades no âmbito funcionários-meninos. Na seqüência, ficou

evidente a dificuldade que tinham de compreender que uma melhora da situação

dos internos significaria uma melhora das suas próprias condições, uma vez que

todos fazem parte do “campo instituição”.

No momento em que se começou a discutir a atitude frente ao trabalho, um

dos participantes vai até a “construção” e a desfaz. Isto pareceu emblemático da

realidade vivida por eles, pois em seguida comentam que sempre têm que começar

do zero. Num primeiro momento a atitude de desfazer a construção pareceu positiva,

mas posteriormente tal participante parecia ser o representante daquilo (daqueles)

que faz voltar ao zero. Chama a atenção o fato de não aparentemente não

conseguirem tirar lições de seus feitos, para que não tenham que se sentir sempre

partindo do zero.

Na discussão sobre a passagem do ideal para o real, ficou evidente que os

participantes são capazes de fantasiar uma realidade diferente daquela que vivem,

mas que tentar transformar a realidade que vivem em algo mais próximo de sua

fantasia, é uma tarefa virtualmente impossível. O cerne da dificuldade parece ser a

rigidez institucional, que foi introjetada de tal forma, que torna a introdução de

aspectos novos ou diferentes, uma impossibilidade. Frente a isto, desanimam,

sentem-se impotentes.

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5.5 Compreendendo a Oxigenação “Se bem que não adianta “cursos” “treinamentos” para quem não gosta do que faz. O que fica bem claro para mim é que a gente tem que GOSTAR do que faz e aí tudo se arranja”. 39

Para compreender as Oficinas, vou começar por mim mesmo; afinal, fiz parte

delas. Quando ouvi pela primeira vez a proposta de trabalhar nestas Oficinas, me

senti muito mobilizado, pois é uma atividade que gosto muito de desenvolver, e

trabalhar com Henriette Morato, fato que já se repetiu muitas vezes, é também

sempre um grande prazer. Temos grande facilidade em acompanhar o raciocínio do

outro, e uma complementaridade interessante; temos igual facilidade para nos

determos no micro e no macro (no contexto geral e no específico). Se um de nós

entra por uma vertente, o outro, por certo, fará o complementar, e vice-versa.

No momento em que as oficinas ocorreram, eu só tinha uma dúvida: se teria

condições físicas de suportar tantas horas seguidas de trabalho, visto que

convalescia de enfermidade, tanto que a segunda oficina foi postergada em uma

semana, por eu não ter condições físicas de facilitá-la. Esses pensamentos me

ocuparam antes e depois das oficinas, mas em momento algum durante. Lá, eu

estava perfeitamente são e ciente e, certamente, o trabalho me fez sentir melhor.

Um fenômeno mágico que quem trabalha com grupos conhece.

Para efeito de facilitar a compreensão, denominarei a oficina realizada em

22.07.03 de O1, e a realizada em 01.01.03 de O2. Começarei pelas constatações

óbvias. Basicamente, o grupo em O1 e O2 era o mesmo, com algumas diferenças;

todavia, todos os participantes de ambas pertenciam à mesma instituição. Procede,

então, a pergunta: qual foi o determinante das duas oficinas terem sido

profundamente diferentes, se a população trabalhada foi, em sua maioria, a mesma?

A resposta encontrar-se no contexto criado, na proposta apresentada. Em O1,

apresentou-se mais distante da realidade profissional cotidiana do grupo do que a

apresentada em O2. O caráter de seriedade, impresso pelos facilitadores ao

trabalho, não impediu que pudessem percorrer temas sérios de forma lúdica, fato

que implicou em liberdade para brincar e, de fato, experimentar. Experimentação

saudável, artística, lúdica, inovadora, narrada em fala primeira, tecelagem de uma

39 Parte da avaliação feita por um dos participantes das Oficinas. As avaliações podem ser encontradas em sua íntegra na seção “Anexos”, numeradas de 1 a 21

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trama que se dava a conhecer. Novo desenho para algo já conhecido: o ofício de

educadores. Novo desenho, outro sentido: direção possível.

Se o tema-nó tinha se apresentado como burocrático (“Gerenciamento de

equipe: dificuldades, desafios e possibilidades”), e por essa vereda se iniciou, seu

desenvolvimento parecia surpreender pela riqueza de possibilidades que,

caracteristicamente, propostas “burocráticas” em geral não permitem. Os

facilitadores, que já conheciam boa parte dos participantes por outras atividades

anteriormente realizadas na instituição, se surpreenderam com sua desenvoltura e

como se permitiram “entrar” nas vivências propostas, com manifestações de cunho

afetivo.

Em contrapartida, o tema-nó de O2 (“INSTITUIÇÃO ideal vs INSTITUIÇÃO

real”), não menos burocrático, pareceu deixá-los intramuros da instituição na qual

trabalhavam, pela presença concreta, talvez, do nomear da instituição, o que poderia

tê-los remetido à realidade de seu cotidiano, sem tréguas. Comportaram-se de forma

marcadamente diferente, com menos liberdade, brincadeiras de outra qualidade

(assemelhadas ao “riso nervoso”), e principalmente experimentação e falas

conhecidas, narrativa que igualmente teceu uma trama, esta, no entanto, conhecida.

Por outro lado, e ao mesmo tempo, possibilitou um outro sentido, ressignificação, por

outro caminho: “não é isto que quero para mim”. Não se pode deixar, entretanto de

considerar que foi uma “descoberta às avessas”, dando a ver uma semelhança ao

caminho percorrido em O1: ocorreu aprendizagem significativa.

Na seção “Re-leitura cromática da Oxigenação”, há uma quantidade maior de

texto em vermelho, referindo-se à interpretação feita em relação à O2, mostrando

que, em O1, o trabalho fluiu mais, com vivências pessoais mais diretamente

refenciadas, demandando interpretações de implícitos. Em O2, pela vivência mais

truncada e travada, essa demanda foi diversamente percebida.

Desse modo, ambas as situações proporcionaram aos participantes uma

outra compreensão de suas vivências cotidianas a partir de poderem experienciar o

diferente na situação, promovendo a inserção de outros recursos expressivos, de

outras falas. Se em O1 permitiam-se transições livremente, em O2 as transições não

se davam de maneira fluída, fluente; eram truncadas, pelo que, de um olhar externo,

era algo de “condicionamento operante”. Mesmo assim, as transições ocorriam, num

ir e voltar, para novamente ir, evidenciando a insatisfação, a contenção de

criatividade e, de forma cristalina, sua raiva por não se desvencilharem de amarras.

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Entendiam que a INSTITUIÇÃO ideal era possível, mas não conseguiam realizá-la,

trans-formando a real em ideal (segundo critérios que eles mesmos haviam

estabelecido, e acordado, de como seria possível construir a INSTITUIÇÃO ideal). Se de O1 levaram como bagagem da experimentação uma liberdade

possível, de O2 levaram, através da mesma experimentação, a frustração de não

terem conseguido construir a INSTITUIÇÃO ideal. Em conversas posteriores, os

facilitadores se questionaram sobre terem mudado o roteiro original, substituindo a

construção de um castelo pela construção da INSTITUIÇÃO ideal, como sendo um

erro estratégico, que os aproximou demais de sua realidade cotidiana. Teria a

construção de um castelo ocorrido com maior fluidez? No momento em que

tomamos aquela decisão, ela parecia ser promissora, levando em consideração o

desenrolar de O1. Visto por uma outra perspectiva, pode-se compreender o

processo de O1 e O2 como a diferença do trabalho num grupo auto-gerido versus o

trabalho num grupo com (in)gerência externa.

Contudo, chamou a atenção algo que se evidenciou em O2, ou seja, a

ambigüidade dos educadores com respeito à instituição: defendem-na, mesmo tendo

seu trabalho por ela criticado, ao justificar as mazelas de sua impropriedade, para

cumprir seu objetivo, pelas atitudes dos educadores no exercício profissional. Tal

questão vai de encontro ao pensamento de BAUMAN, anteriormente citado, ao

afirmar que a ambigüidade ocorre “quando os instrumentos lingüísticos de

estruturação se mostram inadequados” (1999, p. 10), pensamento esse válido tanto

para os educadores quanto para a instituição. Será este um mal-estar institucional

necessário? Assemelhar-se-ia a um mecanismo regulatório / contra-regulatório?

Ressalta-se, todavia, que ambas as oficinas pareciam ter se encaminhado por

um mesmo modo de concepção, aquele que, na pós-modernidade, se convencionou

denominar de (falta de) qualidade de vida: uma forma pós-modernizada de falar de

educa-são. Falar de qualidade de vida na maneira usualmente empregada é falar

sobre a experiência e não na experiência. Eis aqui uma evidência de como foi

sendo perdido o modo de ser na forma de experienciar o mundo, mostrando que a

relação atualmente existente entre saúde e educação passa longe de suas

proposições originárias, em nome de um tecnicismo considerado como o correto. correto lat. correctus,a,um 'emendado, refeito, corrigido', do part.pas. do v. corrigère 'pôr direito o que está torto, emendar'; ver reg-

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assim, a correção terá que ser emendada, refeita, corrigida... até que ocorra uma

aprendizagem significativa, que lhe devolva a experiência de(no) mundo.

A avaliação 3 oferece uma leitura desse processo: Torna-se difícil, e até mesmo injusto, avaliar um trabalho de apenas dois

encontros, quando temos certeza que o mesmo terá duração e permanecerá presente em vários momentos de nossas ações. Trabalhos que vão fazer parte do processo histórico do profissional deveriam constar da agenda do mesmo com encontros sistemáticos tal a importância que exerce nas reflexões e avaliações durante tomadas de decisões. Perguntas como: . Os encontros foram produtivos? . Atingiram os objetivos? não deveriam fazer parte desta avaliação, pois as respostas foram imediatas e claras, tal o envolvimento, entusiasmo e manifestação verbal das pessoas presentes. A dinâmica levou a reflexão e deixou uma pergunta: Quando será o próximo encontro?

Diz respeito a como algo foi experienciado, vivido, passando a fazer parte da

vida deste participante. Frases como “...o mesmo terá duração e permanecerá

presente em vários momentos de nossas ações” e “... encontros sistemáticos tal a

importância que exerce nas reflexões e avaliações durante tomadas de decisões”,

revelam o sentido das oficinas no mundo dos participantes. Nesse sentido, a

qualidade e intensidade da experiência permite ao participante dizer como ficam

des-locadas questões objetivas colocadas neste contexto.

Se, por um lado, esta avaliação mostra a aprendizagem significativa em ação,

por outro, também se refere ao fenômeno espelho mágico, na medida em que diz

de uma outra forma de refletir e avaliar tomada de decisões, podendo expressar

como essa experiência poderia ser re-tomada na lida com os internos. Por essa via,

o trabalho dos facilitadores chegaria até os internos. As avaliações abaixo

contemplam essa possibilidade. 17) A dinâmica realizada com os funcionários de Tal e Tal pelos Psicólogos da Universidade de São Paulo (USP) do qual participei, foi de grande importância no aspecto pessoal e na importância do trabalho em equipe, pois propiciou momentos de reflexão e ajuda mútua, com o objetivo de procurarmos melhores resultados no nosso dia a dia no que se refere ao plano pessoal, familiar, social e profissional. A dinâmica foi elaborada com muita coerência e critérios, embora as duas primeiras horas tenham sido cansativas e pouco produtivas, mas nada que comprometesse a proposta de trabalho. Trabalhos em grupo como este deveriam ser realizados periodicamente, pois no meu ponto de vista o funcionário seguro de suas atribuições e confiante na sua equipe poderá realizar seu papel com mais qualidades. 19) A dinâmica na qual eu participei, realizada por psicólogos na Universidade de São Paulo, foi de grande importância tanto no profissional como no pessoal. Trabalho em grupo como este eleva muito a auto-estima e rever alguns conceitos.

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uma engrenagem, que tem responsabilidade sobre a realização dos projetos”.

Poderia apresentar-se como o embrião de algo que, em seu desenvolvimento,

poderá se trans-formar em “eu sou integrante desta totalidade e me co-

responsabilizo por ela”, a partir da esfera da imediaticidade, como proposta por

GOLDSTEIN. Se um dos facilitadores já tendia a compreender o fenômeno

instituição e os fenômenos que dentro dela ocorrem como uma totalidade, no

contexto deste parágrafo, por uma perspectiva da abordagem holística, isto poderia

ter sido também percebido pelos educadores em alguma medida, podendo, então,

encontrar outras formas (mais satisfatórias) de se auto-regularem, de encontrarem

um outro equilíbrio (dinâmico) para si próprios e para a instituição. Falar-se-ia,

assim, de um organismo saudável (auto-regulado), situação alcançada através do

aprender sobre si próprio, o que, por sua vez, poderia implicar em educa-são.

Educa-são como trans-formação42 em um outro organismo. Parafraseando mais

uma vez GOLDSTEIN, “educa-são é uma forma educa-sã de ser”.

Contudo, para além dessas aproximações teóricas possíveis, creio ser mais

pertinentemente expressão da Oxigenação realizada resgatar uma outra avaliação

(dizer do valor) do serviço prestado por essa modalidade de prática psicológica em

instituições, por um dos participantes: A minha avaliação é que oficina tenta nos mostrar que o homem é essencial

para outro mesmo que algumas vezes não pensamos assim. Fomos feitos para os demais e raras vezes paramos para observar o que está acontecendo com o grupo. Às vezes confesso que até por medo de enfrentar situações delicadas. Onde se encontra mais de uma pessoa, realmente há problemas de relacionamento. E dificilmente analisamos nosso comportamento no grupo.

Para este participante, representante de muitos outros sujeitos/cidadãos,

ofereceu-se um outro sentido à condição de con-vivência entre humanos: “o homem é

essencial para outro”. A Oxigenação permitiu-lhe compreender como “Fomos feitos para os

demais e raras vezes paramos para observar o que está acontecendo com o grupo”, (polis). Creio

que é por essa direção que a falta de respeito apresentar-se-ia como apropriada a

questões referentes à tomada de decisões e ao relacionamento em (com) grupos.

42 O termo transformação, vem sendo grafado neste trabalho como trans-formação, para dar a ver a idéia de algo que brota do entre duas condições, algo da ordem de meta- meta- culto, do gr. metá (adv. e prep., orign.) 'no meio de, entre; atrás, em seguida, depois, para além de; com, de acordo com, segundo; durante' (DEH) Um neologismo, metaformação, teria o sentido desejado aqui.

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Apenas isto já poderia revelar a pertinência para a realização de muitas oficinas/

oxigenações para uma formação/capacitação de agentes/’profissionais de saúde e

educação no espaço do público da humanidade. Oxalá fosse só isso...

6. EDUCA-SÃO COMO PRO-JETO A CONSIDERAR

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Mas, será uma oficina, uma oxigenação, panacéia universal? Vejamos o que

Rubem Alves tem a nos dizer à respeito: A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar.

Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com as panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de ‘culinária literária’. Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos. Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A festa de Babette, que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como ‘chef’. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo - porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.

As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela.

Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos, são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblê baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblê...

A pipoca é um milho mirrado, sub-desenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!

E o que é que isso tem a ver com o Candomblê? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa - voltar a ser crianças!

Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece

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permitindo-se encontrar outras modalidades de sofrimento humano, que de outra

forma não teriam acesso a cuidado e atenção psicológica. A Supervisão de Apoio

Psicológico, caracterizando-se como uma possibilidade de outro fazer clínico,

encontra na Oficina de Recursos Expressivos o formato para intervenção possível e

apropriada a um contexto demandante específico (educa-sã-nal).

Se a razão de ser do Capítulo 2.2 (“Léxicos”) foi o resgate de noções perdidas

no tempo da história para descristalizar o sentido instituído de vocábulos que

circundam as idéias de saúde e educação, o mesmo se pode dizer deste trabalho e

do trabalho prático realizado. Creio que o “espírito”, nele implícito e agora explícito,

possa ser o norteador de muitos trabalhos que estão por vir.

Se, reiteradas vezes, referi-me à falta de arte (ars) na (da) ciência na

mundanidade contemporânea, depois de todo este trajeto, vejo-me na contingência

de des-latinizar minha fala, em direção a uma helenização, que possibilite resgatar

minha experiência como conhecimento tácito a respeito de mim e do mundo com

outros. Em outras palavras, neste momento estou promovendo em mim mesmo a

substituição da idéia de ars, pela idéia de techné (veja p. 38). É isto que propiciou e

favoreceu minha condução por (n)este trabalho, bem como a condução dos (nos)

trabalhos, abrindo possibilidade de uma outra articulação de sentido entre saúde e

educação, permitindo a continuidade da busca por recursos que visem atenção e

cuidado em saúde e educação: uma meta-ação. Nesse percurso, a prática

psicológica em instituições oferece-se como serviço útil a quem demanda cuidar-se

em seu trabalho, a partir da clínica eticamente orientada, para conduzir-se à tarefa

de educar, com respeito, para a formação/constituição do cidadão politicamente

respeitoso, no sentido helênico preservado por uma traslação ao latim, de correto: reg-1

2) rect-: rectus,a,um 'dirigido em linha reta, reto, direito (sentido físico e moral)', substv. recta,ae 'túnica direita (tecida de alto a baixo)', rectum,i 'o bem, o direito, o justo'; em gramática, rectus casus 'o caso reto, o nominativo', p.opos. aos oblìqui casus, que são flexionados, é a tradução do gr. hé orthê (ptôsio); de resto, rectus tem todos os sentidos de orthós, com todos os empregos deste; rector,óris 'condutor, piloto, cocheiro, guia, diretor, chefe' (fr. meridional ritú, esp. rector, port. reitor), rectrix,ícis 'diretora, senhora, a que governa, dirige', rectúra,ae 'direção em linha reta'. reg- 2

� elemento de composição antepositivo, do lat. rìgo,as,ávi,átum,áre 'regar, irrigar, molhar, banhar; derramar, verter', pelo vulg.; antigo, usual; panromânico, salvo romn.: it.ant. rigare, engad. arger, fr.ant. reer, cat.esp.port. regar; a cognação lat. inclui rigùus,a,um 'que rega; que é regado', da época imperial; rigatìo,ónis 'regadura', lat.tar. rigátor,óris 'o que rega', rigátus,us 'ação de regar'; donde os der. irrìgo,as 'irrigar', irrigatìo,ónis

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'irrigação, rega', irrigùus,a,um 'regado, banhado, molhado'; a cognação port. desenvolve-se desde as orig. do idioma: irrigação, regante, regar, regato (DEH)

É esta mescla de arte, artesanalidade e ciência que pode proporcionar aos

profissionais de saúde e educação a humanidade necessária para o exercício de

seus ofícios. Profissionais de educa-são, que tenham encontrado em si próprios a

humanidade necessária para o exercício de seus ofícios, pela própria educa-são,

podem constituir-se, pelo respeito, em educadores pertinentemente sãos a uma

meta-ação política eticamente em ação .

Por fim, um desejo pautado no respeito: EDUCA-SÃO PARA TODOS!

7. ANEXOS

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Anexo 1

AVALIAÇÃO DAS OFICINAS DE RECURSOS EXPRESSIVOS, FEITA POR ALGUNS DE SEUS PARTICIPANTES43

1) Trabalho em Equipe foi o principal objetivo a ser atingido pela dinâmica promovida pelos Psicólogos da USP, sendo de muita valia em nossa rotina dentro de uma unidade da INSTITUIÇÃO. Encontros direcionados como este deveriam ser realizados com mais freqüência, para troca de informações e conhecimentos entre funcionários de Unidades diferentes e Funções distintas com Cargo de Chefia (Diretores, Encarregados e Coordenadores). Tenho a ressaltar que a primeira parte da dinâmica foi cansativa, mas com o entrosamento dos grupos e o direcionamento da psicóloga houve a evolução e agilidade da mesma. Em nossa unidade de Tal e Tal lugar, foi realizado o Grupo de Expressão com a Psicóloga Marina da USP, no qual os participantes sugeriram a continuidade do trabalho e avaliaram como positivo para reintegração e uma forma de válvula de escape para todos os funcionários. Como sugestão sou favorável a continuidade das Oficinas, sendo que sejam feitas periodicamente e entre todos os funcionários. 2) Avaliamos que a iniciativa da Divisão Técnica de Tal e Tal lugar em parceria com a Prof. Henriette e o Prof. Luis, em reunir o Corpo diretivo de Tal e Tal lugar, foi muito proveitosa. Tivemos a oportunidade de parar, e olhar, pelo lado de fora, nossa atuação dentro das Unidades; pudemos pensar e refletir sobre nossas ações e escolhas. Possibilitou, também, conhecimento e interação das diferentes equipes, pois mesmo atuando no mesmo complexo havia pessoas que nem ao menos se conheciam. 3) Torna-se difícil, e até mesmo injusto, avaliar um trabalho de apenas dois encontros, quando temos certeza que o mesmo terá duração e permanecerá presente em vários momentos de nossas ações. Trabalhos que vão fazer parte do processo histórico do profissional deveriam constar da agenda do mesmo com encontros sistemáticos tal a importância que exerce nas reflexões e avaliações durante tomadas de decisões. Perguntas como: . Os encontros foram produtivos? . Atingiram os objetivos? não deveriam fazer parte desta avaliação, pois as respostas foram imediatas e claras, tal o envolvimento, entusiasmo e manifestação verbal das pessoas presentes. 43 Transcrição literal das avaliações recebidas, das quais foram suprimidas quaisquer informações que permitissem reconhecer a INSTITUIÇÃO em que se deu o trabalho, ou qualquer um de seus membros.

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A dinâmica levou a reflexão e deixou uma pergunta: Quando será o próximo encontro? Parabéns Henriette pelo dinamismo com que você e o Luiz conduziram os encontros. 4) O trabalho foi muito bom só que deve ter continuação. Já é muito difícil no nosso dia a dia se repensar todas as ações refletidas nesses 2 dias de oficina. Se bem que não adianta “cursos” “treinamentos” para quem não gosta do que faz. O que fica bem claro para mim é que a gente tem que GOSTAR do que faz e aí tudo se arranja. 5) A minha avaliação é que oficina tenta nos mostrar que o homem é essencial para outro mesmo que algumas vezes não pensamos assim. Fomos feitos para os demais e raras vezes paramos para observar o que está acontecendo com o grupo. Às vezes confesso que até por medo de enfrentar situações delicadas. Onde se encontra mais de uma pessoa, realmente há problemas de relacionamento. E dificilmente analisamos nosso comportamento no grupo.

Acho que o grande mérito destes encontros é procurar fazer uma reflexão séria para o crescimento individual e conseqüentemente do grupo. Mas é preciso que a oficina tenha um papel mais efetivo, para que haja progressos no relacionamento 6) Atendendo o pedido de avaliar a dinâmica aplicada na USP só tenho a concordar com a grande parte dos participantes, que é primordial termos como rotina de aperfeiçoamento profissional e também enquanto cidadão para podermos, e pelo menos tentar entender outras formas de raciocínio e dar diretrizes diferentes ao nosso modo de olhar todos ou grande parte dos problemas que temos que resolver. Este espaço é de suma importância para o nosso desenvolvimento profissional, para que possamos atender as necessidades em nossas vidas privada e profissional. Conto, espero e acredito que em breve novamente eu seja convidado a participar de futuras oficinas, visando querer melhorar minha visão e prosseguir no crescimento como profissional e cidadão. Sem mais, Obrigado 7) Parto do princípio que todo trabalho voltado para o crescimento profissional e conseqüentemente o pessoal é de grande valia, onde podemos estar avaliando nossas formas de atuação tanto profissionalmente como em nossas vidas. Sendo assim, as Oficinas que foram supervisionadas pelos profissionais da USP deram a oportunidade de mostrar as dificuldades e limites que cada um possui, e, ao mesmo tempo, conhecer um pouco cada participante.

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Por outro lado, leva a refletir que as mudanças são vitais para nossa vida, e, temos que estar abertos para novos conhecimentos que irão enriquecer cada cidadão. Acredito que a continuidade das Oficinas, irá contribuir e muito com o crescimento profissional e pessoal de todos. 8) Considero que em termos de INSTITUIÇÃO, foi um grande ganho e inovação a possibilidade de participação nas duas oficinas. Gostei bastante, achei que foram duas grandes oportunidades do grupo de chefia se reunir em torno de uma mesma proposta. Muito proveitoso. Porém confesso que gostei mais do primeiro encontro, achei-o um pouco mais estruturado e por isso mesmo com maior participação dos agentes, as consignas foram mais claras. Já no segundo, as consignas foram um tanto confusas, e talvez por isso o grupo tenha apresentado alguma dificuldade com a tarefa; tenho a sensação de que faltou um elo de ligação ou algum suporte melhor, não sei bem ao certo. De qualquer forma, acho que valeu muito e foi muito proveitoso. 9) No meu modo de ver, a palestra para mim foi significativa. A mesma ajudou eu ter outra visão sobre gerenciamento e trabalho em equipe. Também pode aproximar mais as chefias do complexo e levantar questões que diz respeito o bom andamento das unidades. A mesma pode servir de base para outras palestras, tanto para chefia como para funcionários. 10) Os encontros foram proveitosos enquanto socialização. As dinâmicas desenvolvidas trouxeram momentos de reflexão sobre: “Sois parte integrante da engrenagem” “Tenho responsabilidade sobre a realização dos projetos” que nos levaram à consciência destas verdades. A condução dos trabalhos foi boa e por profissionais competentes. Fiquei feliz por ter participado. 11) Achei muito importante, mostrou que podemos oferecer ainda mais à fundação. Também mostrou as fragilidades, as dificuldades e os meios para enfrentá-las. Foi realmente uma boa oportunidade de entrosar-se e conhecer outros colegas de várias unidades e perceber que apesar de todas as dificuldades a maior parte do grupo acredita no trabalho e na possibilidade de vencer os obstáculos. Esta foi a avaliação que tive deste encontro.

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12) Trabalhar com jovem infrator e ocupar um cargo de chefia, surgiu-me como um desafio profissional de construir a partir da prática refletida maior desempenho no atendimento aos adolescentes.

Entendo que, enquanto profissionais que lidam com gerenciamento de equipe entre outros, necessitamos estar sempre nos reciclando, tendo em vista aprimorar e atualizar sempre nossa atuação, atendendo às transformações e desempenho que o cargo exige e, assim, acredito que esses encontros foram o espaço perfeito para essa prática de reavaliação pessoal e profissional e, conseguinte resulta na evolução dos resultados em nosso trabalho, junto ao quadro funcional e adolescentes aos quais prestamos atendimento.

Esses encontros desenvolvidos, provocou-me uma nova percepção da prática cotidiana, propiciando uma reflexão não somente enquanto profissional, mas também um olhar voltado para o meu “EU”.

Também não posso deixar de citar que gostei da dinâmica utilizada que trouxe para discussões, situações que permeiam nosso cotidiano na INSTITUIÇÃO, onde cada um pôde se auto-avaliar.

Sendo assim, a proposta de se ter um espaço de reflexão é imprescindível para que nosso trabalho institucional se dê também de forma mais integrada. 13) Foram dois dias ótimos, até divertidos. Foi dada a todo o grupo a oportunidade de falar e dar seus pontos de vista sobre os diversos temas abordados, deixando-os todos bem à vontade. Os instrutores bem preparados mostraram-se ter pleno conhecimento em todos os temas abordados, sempre questionando todo o grupo, fazendo com que cada um se manifestasse. Isso demonstra que há por parte da diretoria um envolvimento de proporcionar aos funcionários um melhor ambiente de trabalho e profissionais mais qualificados. 14) Minha participação foi na segunda turma, porém devido aos comentários da primeira turma deu para se fazer um apanhado geral do encontro. A intenção foi boa, dando a equipe a oportunidade de momentos de muita descontração e novos conhecimentos, deixando porém a ansiedade de novos encontros com novas turmas. Os profissionais que administraram o encontro foram objetivos e envolventes em todas as dinâmicas. Enfim, nota-se por parte dos dirigentes um incentivo a todos os funcionários desta INSTITUIÇÃO. 15) É de grande valia e imprescindível trabalhos desta natureza. Foi dado um passo importante no sentido de buscar a sensibilização e apoio ao funcionário. Cuidar do cuidador. Enquanto sugestão: - Relaxamento/dinâmica corporal no início;

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- Apresentação dos trabalhos realizados pelos funcionários (cartazes, etc. ...); - Fechamento no final. Nas duas oportunidades achei que não houve tempo hábil para o fechamento. E o fechamento poderia ser feito de forma a unir/integrar a equipe com uma dinâmica no final. 16) Toda e qualquer oficina é sempre bem vinda, pois na quantidade de afazeres que nós temos no nosso dia a dia, não nos deixa, “às vezes”, parar e refletir de uma forma 100% mais produtiva e com maior teor de qualidade. Sabedores somos, de nossas atribuições e funções, entretanto muitas vezes caímos numa espécie de “Miopia” que nos cega e não deixa fluir a imaginção de criação e continuamos sempre no mesmo. É através de oficinas, como a que vivenciamos que nos dá um “chaqualhão”, para acordar coisas (conhecimentos) adormecidos em cada um de nós. Parece que o óbvio aparece do nada! E que o não óbvio se esclarece como mágica. Em meu caso, como tenho pré disposição de sempre estar participando deste tipo de evento, tem grande valia e aproveitamento. Posso não ser um construtor de Navios, mas nele quero navegar. Parabenizo a todos os que participaram, pois é através do grupo que o trabalho pode e deve ser sempre realizado. Aos educadores, admiração, pela didática aplicada com uma força de fácil entendimento e compreensão. Muito bom! Até uma próxima! 17) A dinâmica realizada com os funcionários de Tal e Tal pelos Psicólogos da Universidade de São Paulo (USP) do qual participei, foi de grande importância no aspecto pessoal e na importância do trabalho em equipe, pois propiciou momentos de reflexão e ajuda mútua, com o objetivo de procurarmos melhores resultados no nosso dia a dia no que se refere ao plano pessoal, familiar, social e profissional. A dinâmica foi elaborada com muita coerência e critérios, embora as duas primeiras horas tenham sido cansativas e pouco produtivas, mas nada que comprometesse a proposta de trabalho. Trabalhos em grupo como este deveriam ser realizados periodicamente, pois no meu ponto de vista o funcionário seguro de suas atribuições e confiante na sua equipe poderá realizar seu papel com mais qualidades. 18) Do ponto de vista de trabalho em equipe, cooperação mútua, conhecimento com profissionais de outra unidade foi muito proveitoso. Um pouco cansativo de início, mesmo porque com o passar do tempo os envolvidos foram relaxando e participando mais da dinâmica. Os profissionais conduziram bem o trabalho apesar de ser longo. Poderiam realizar mais trabalhos como este em menor espaço de tempo.

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19) A dinâmica na qual eu participei, realizada por psicólogos na Universidade de São Paulo, foi de grande importância tanto no profissional como no pessoal. Trabalho em grupo como este eleva muito a auto-estima e rever alguns conceitos. Uma semente foi plantada na mente de cada um, se soubermos cultivá-la colheremos bons frutos. 20) É de grande importância trabalhos desta natureza. Foi dado um passo no sentido de buscar a sensibilização e conhecimento com profissionais de outras unidades e cargos diferentes. Poderiam realizar trabalho como este nas próprias unidades com todos funcionários. A dinâmica realizada na qual participei, foi de grande importância no aspecto pessoal. 21) Foi um encontro dinâmico muito proveitoso De início todos nós estavamos retraidos e quase não participávamos espontaneamente. Henrieta precisava chamar para respostas. Na segunda parte, já estávamos todos mais a vontade e as dinâmicas fluiram muito bem. Foi surpreendente a participação de todos e achamos criativo o modo como abordaram o trabalho em grupo (construção do navio; as partes, o planejamento). Esses encontros deveriam acontecer mais vezes, para essa troca de experiências, reflexão e melhorias nas nossas funções. Muito providencial também reunir diretoria com coordenação para juntos refletirmos nosso desempenho no dia-a-dia em nossa unidade.

Anexo 2

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Declaração Universal dos Direitos Humanos

Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948.

PREÂMBULO

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;

Considerando que o desprezo e o desconhecimento pelos direitos humanos resultaram em atos de barbárie que ultrajaram a consciência da Humanidade, e que o advento de um mundo em que os seres humanos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum;

Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos através de um regime de direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à revolta contra a tirania e a opressão;

Considerando que é essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações;

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, e na igualdade de direitos dos homens e da mulheres e se declararam resolvidos a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla;

Considerando que os Estados-membros comprometeram-se a promover, em cooperação com a Organização das Nações Unidas, o respeito universal e efetivo aos direitos e liberdades fundamentais do homem;

Considerando que uma concepção comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento de tal compromisso,

A Assembléia Geral

Proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se empenhem, através do ensino e da educação, em promover o respeito a esses direitos e liberdades, e em promover, pela adoção de medidas

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progressivas de caráter nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua observância efetivos e universais, tanto entre os povos dos próprios Estados-membros quanto entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.

Artigo I

Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir uns para com os outros com espírito de fraternidade.

Artigo II

Todos os homens podem invocar os direitos e as liberdades estabelecidos na presente Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra situação.

Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença um indivíduo, seja esse país ou território independente, sob tutela, sem governo próprio ou sujeito a qualquer outro tipo de limitação de soberania.

Artigo III

Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo IV

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos são proibidos sob todas as suas formas.

Artigo V

Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes.

Artigo VI

Todos os homens têm o direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da sua personalidade jurídica.

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Artigo VII

Todos são iguais perante a lei e, sem qualquer distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo VIII

Todo homem tem direito a recurso efetivo dos tribunais nacionais competentes contra atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Artigo IX

Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo X

Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, que decida sobre seus direitos e deveres ou sobre o fundamento de qualquer acusação criminal contra ele apresentada.

Artigo XI

1. Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpa fique legalmente comprovada em um julgamento público, no qual todas as garantias necessárias à sua defesa lhe tenham sido asseguradas.

2. Ninguém poderá ser condenado por qualquer ação ou omissão que, no momento em que foram praticadas, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais grave do que aquela que era aplicável no momento em que o ato delituoso foi cometido.

Artigo XII

Ninguém sofrerá interferências arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo homem tem direito a proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

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Artigo XIII

1. Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e de escolha de sua residência dentro das fronteiras de cada Estado.

2. Todo homem tem direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, bem como de a ele regressar.

Artigo XIV

1. Todo homem vítima de perseguição tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países.

2. Este direito não pode, porém, ser invocado no caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atividades contrárias aos propósitos e princípios das Nações Unidas.

Artigo XV

1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade, nem do

direito de mudar de nacionalidade.

Artigo XVI

1. Homens e mulheres maiores de idade têm o direito de contrair matrimônio e de constituir uma família, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião; e, durante o casamento e na sua dissolução, gozam de iguais direitos.

2. O casamento só será válido com o livre e pleno consentimento dos nubentes. 3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à

proteção da sociedade e do Estado.

Artigo XVII

1. Todo homem tem direito à propriedade, seja individualmente ou em sociedade com os outros.

2. Ninguém será arbitrariamente privado da sua propriedade.

Artigo XVIII

Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou de crença, bem como a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

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Artigo XIX

Todo homem tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser incomodado por suas opiniões e de procurar receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios de expressão, independente de fronteiras.

Artigo XX

1. Todo homem tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas. 2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

Artigo XXI

1. Todo homem tem o direito de tomar parte no governo do seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.

2. Todo homem tem direito de acesso, em condições de igualdade, ao serviço público do seu país.

3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade deve exprimir-se através de eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto.

Artigo XXII

Todo homem, como integrante da sociedade, tem direito à sua segurança social e à realização – através do esforço nacional e da cooperação internacional e conforme a organização e os recursos de cada Estado – dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Artigo XXIII

1. Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições equitativas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

2. Todo homem tem direito, sem qualquer discriminação, a igual remuneração por igual trabalho.

3. Todos os que trabalham têm direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhes assegurem, bem como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social.

4. Todo homem tem o direito de organizar sindicatos e a eles se filiar para a defesa dos seus interesses.

Artigo XXIV

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Todo homem tem direito a repouso e lazer, e, principalmente, a uma limitação razoável das horas de trabalho e a férias periódicas remuneradas.

Artigo XXV

1. Todos os homens tem direito a um padrão de vida que lhes possa assegurar, bem como aos seus familiares, saúde e bem-estar, principalmente no que se refere a alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e aos serviços sociais necessários, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias alheias à sua vontade.

2. A maternidade e a infância têm direitos a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.

Artigo XXVI

1. Todo homem tem direito à educação. A educação será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. O ensino elementar será obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser acessível a todos, o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todas as pessoas em plena igualdade, baseada no mérito.

2. A educação será orientada no sentido da plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve fortalecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.

3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.

Artigo XXVII

1. Todos os homens têm o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.

2. Todos os homens têm direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística de sua autoria.

Artigo XXVIII

Todo homem tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efetivos os direitos e as liberdades estabelecidos na presente Declaração.

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Artigo XXIX

1. Todos os homens têm deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade.

2. No exercício dos seus direitos e liberdades, ninguém estará sujeito senão às limitações determinadas pela lei, com vistas exclusivamente a assegurar o devido reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar em uma sociedade democrática.

3. Em hipótese alguma estes direitos e liberdades poderão ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas.

Artigo XXX

Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a reconhecer para qualquer Estado, grupo ou indivíduo, o direito de exercer qualquer atividade ou de praticar qualquer ato destinado a destruir os direitos e liberdades nela estabelecidos.

http://www.utopia.com.br/anistia/informes/declaracao.html, consultada em 1/5/04

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À exceção dos textos de BARUS-MICHEL (2001) e GENDLIN (1992),

todas as referências em língua estrangeira foram traduzidas para o

português pelo autor deste trabalho.

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