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ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA: DOS SERTÕES DO RIO DOCE DE CECILIANO ABEL DE ALMEIDA AO GRANDE SERTÃO: VEREDAS DE GUIMARÃES ROSA. Maria Alayde Alcantara Salim 1 Jair Miranda de Paiva 2 RESUMO: Este texto apresenta convergências e afastamentos entre duas obras e dois autores que, a princípio, nada teriam em comum: Ceciliano Abel de Almeida (engenheiro, professor e escritor capixaba) e João Guimarães Rosa (o grande escritor mineiro), exceto o fato de terem compartilhado ‘o breve século XX’, no dizer de Hobsbawm. Tomamos como hipótese que os dois autores possibilitam-nos pensar um passado recente do país, que deixou suas marcas na configuração do presente, sobretudo nas duas regiões consideradas norte do Espírito Santo e norte/sertão das Minas Gerais, Goiás e Bahia, ambiente natural do Grande sertão: veredas. Fazendo uso de pesquisa bibliográfica, ressaltamos em ambas as obras o signo da memória e da narrativa, tomando a memória não como algo cristalizado, mas em constante movimento de reelaboração e de reconfiguração no tempo presente (LE GOFF) e a narrativa como a possibilidade de promover a circulação de diversas formas de experiências, pois a narração é fundada na experiência: na experiência de quem narra ou a relatada pelos outros e incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes e leitores (BENJAMIN). Ambos os autores, malgrado em registros distintos e com diferentes objetivos (memórias em Almeida, criação ficcional em Rosa), são pródigos em descrições do homem, da fauna e da flora das selvas e do sertão, oferecendo-nos o confronto atraso-modernização, civilização-barbárie, na passagem da República Velha para a primeira metade do séc. XX (SANTOS; STARLING; BOLLE). PALAVRAS-CHAVE: história . literatura . ficção . memória . narrativa Considerações iniciais Por que tentar estabelecer confluências, relações, semelhanças e afastamentos entre duas obras e dois autores que, a princípio, nada teriam em comum, exceto o fato de serem brasileiros e terem compartilhado o ‘breve século XX’, no dizer de Hobsbawn? Um tal exercício denota apenas diletantismo acadêmico ou pode apontar para uma provocação, como possibilidade de pensar um passado recente do país, que deixou suas marcas na configuração do presente, sobretudo nas duas regiões consideradas neste artigo norte do Espírito Santo e 1 Professora do Departamento de Educação e Ciências Humanas e do Programa de Mestrado em Ensino na educação Básica do Centro Universitário Norte do Espírito Santo Universidade Federal do Espírito Santo- DECH/PPGEEB/CEUNES/UFES) [email protected] 2 Professor do Departamento de Educação e Ciências Humanas e do Programa de Mestrado em Ensino na educação Básica do Centro Universitário Norte do Espírito Santo Universidade Federal do Espírito Santo- DECH/PPGEEB/CEUNES/UFES) [email protected]

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ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA: DOS SERTÕES DO RIO DOCE DE

CECILIANO ABEL DE ALMEIDA AO GRANDE SERTÃO: VEREDAS DE

GUIMARÃES ROSA.

Maria Alayde Alcantara Salim1

Jair Miranda de Paiva2

RESUMO:

Este texto apresenta convergências e afastamentos entre duas obras e dois autores que, a

princípio, nada teriam em comum: Ceciliano Abel de Almeida (engenheiro, professor e

escritor capixaba) e João Guimarães Rosa (o grande escritor mineiro), exceto o fato de terem

compartilhado ‘o breve século XX’, no dizer de Hobsbawm. Tomamos como hipótese que os

dois autores possibilitam-nos pensar um passado recente do país, que deixou suas marcas na

configuração do presente, sobretudo nas duas regiões consideradas – norte do Espírito Santo e

norte/sertão das Minas Gerais, Goiás e Bahia, ambiente natural do Grande sertão: veredas.

Fazendo uso de pesquisa bibliográfica, ressaltamos em ambas as obras o signo da memória e

da narrativa, tomando a memória não como algo cristalizado, mas em constante movimento

de reelaboração e de reconfiguração no tempo presente (LE GOFF) e a narrativa como a

possibilidade de promover a circulação de diversas formas de experiências, pois a narração é

fundada na experiência: na experiência de quem narra ou a relatada pelos outros e incorpora

as coisas narradas à experiência de seus ouvintes e leitores (BENJAMIN). Ambos os autores,

malgrado em registros distintos e com diferentes objetivos (memórias em Almeida, criação

ficcional em Rosa), são pródigos em descrições do homem, da fauna e da flora das selvas e do

sertão, oferecendo-nos o confronto atraso-modernização, civilização-barbárie, na passagem da

República Velha para a primeira metade do séc. XX (SANTOS; STARLING; BOLLE).

PALAVRAS-CHAVE: história . literatura . ficção . memória . narrativa

Considerações iniciais

Por que tentar estabelecer confluências, relações, semelhanças e afastamentos entre duas

obras e dois autores que, a princípio, nada teriam em comum, exceto o fato de serem

brasileiros e terem compartilhado o ‘breve século XX’, no dizer de Hobsbawn? Um tal

exercício denota apenas diletantismo acadêmico ou pode apontar para uma provocação, como

possibilidade de pensar um passado recente do país, que deixou suas marcas na configuração

do presente, sobretudo nas duas regiões consideradas neste artigo – norte do Espírito Santo e

1 Professora do Departamento de Educação e Ciências Humanas e do Programa de Mestrado em Ensino na

educação Básica do Centro Universitário Norte do Espírito Santo – Universidade Federal do Espírito Santo-

DECH/PPGEEB/CEUNES/UFES) [email protected]

2 Professor do Departamento de Educação e Ciências Humanas e do Programa de Mestrado em Ensino na

educação Básica do Centro Universitário Norte do Espírito Santo – Universidade Federal do Espírito Santo-

DECH/PPGEEB/CEUNES/UFES) [email protected]

norte/sertão das Minas Gerais? Nossa aposta é pela segunda alternativa, mesmo sabendo de

seus riscos3.

Assim, de um lado, expõe o paradoxal estranhamento com relação ao norte do Espírito Santo,

região distante cerca de 200 km da Capital, para a qual ambos se mudaram para lecionar na

Universidade Federal do Espírito Santo (campus de São Mateus), em 2010-2011; de outro, a

possibilidade de pensar tal diferença como emblema de nossa própria história (a

modernização do país com manutenção do atraso de amplas regiões, a ‘civilização’

coexistindo com a barbárie), lançando mão de saberes da formação dos autores (história e

filosofia), mediada por uma paixão compartilhada: a literatura.

Oralidade e escrita se equilibram, assim, numa tensão criadora da memória dos homens:

vivacidade e fugacidade da transmissão oral, inscrição permanente da escrita, nenhuma delas

obtendo para os homens a imortalidade, pois sabemos que “ambas, aliás, nem mesmo

garantem a certeza da duração, apenas testemunham o esplendor e a fragilidade da existência,

e do esforço de dizê-la” (GAGNEBIN, 2006, p. 11).

Também como a filósofa suíça radicada no Brasil, acreditamos que escrever sobre o passado,

num exercício de rememoração e elaboração se, por um lado significa, com Benjamin,

recuperar das ruínas os vencidos e humilhados e sua redenção final pela escrita, por outro, nos

aponta o desafio do atual (e, por que não dizer, com Nietzsche, do intempestivo?) e do futuro,

isto é, um apelo à construção da felicidade presente – a vida bela dos antigos gregos – pela

sua transformação. Assim, esse escrito, de modesto e despretensioso exercício, pode se

transformar num convite a repensarmos nosso tempo e espaço, criando novas e significativas

possibilidades de existir.

Num primeiro momento, contextualizaremos Ceciliano Abel de Almeida e sua importância no

conhecimento histórico-cultural do Espírito Santo para, num segundo momento, articularmos

a realidade sertão-cidade na literatura de João Guimarães Rosa.

Ceciliano Abel de Almeida: História e Memória no “Desbravamento das Selvas do Rio

Doce”

3 Este texto tem origem numa intervenção oral dos autores no evento Elisama – Encontro Literário de São

Mateus, ocorrido em 2011, na cidade de São Mateus, norte do Espírito Santo. De um lado, guarda o aspecto da

exposição oral daquela ocasião, revista e ampliada, por outro, reelabora pressupostos dos autores quando se

puseram o desafio de aproximar as obras Grande sertão: veredas, publicada em 1956 e O Desbravamento das

Selvas do Rio Doce, de 1959.

No ano de 1956, aos 75 anos de idade, o engenheiro e professor Ceciliano Abel de Almeida

finalizou o livro O desbravamento das selvas do Rio Doce. Publicado pela Editora José

Olympio, o livro conta com o prefácio de Luís da Câmara Cascudo, que assim descreveu o

autor:

Uma vida como a do Engenheiro e Professor Ceciliano Abel de Almeida

dignifica a espécie humana de maneira geral e a brasileira no particular.

Atravessou setenta anos de batalha com toda ciência das escolas técnicas e

toda pureza da alma luminosa. O exemplo que ilumina vários aspectos e é

uma alegria sabermo-lo nosso contemporâneo (1959, p. 3).

Na obra o autor narra sua experiência de trabalho como engenheiro no processo de construção

da Ferrovia Vitória-Minas no período de 1903 a 1905 na região do Rio Doce. Muito mais que

descrever aspectos técnicos relativos à construção da ferrovia, apresenta na sua narrativa a

experiência que compartilhou com a escassa população que naquele período habitava o

interior do Espírito Santo e de Minas Gerais. Na memória dessa experiência Ceciliano traz a

cena uma população de grande diversidade cultural, formada por índios (Aymorés), caboclos,

canoeiros do Rio Doce, trabalhadores da ferrovia, imigrantes italianos, pescadores e tropeiros.

Além disso, apresenta uma série de estudos sobre os aspectos que marcaram a ocupação da

região do Rio Doce no século XIX produzidos por historiadores, viajantes e cronistas.

Apesar de algumas referências a obras históricas sobre o Espírito Santo e a ocupação humana

da região do Rio Doce, O desbravamento as selvas do Rio Doce, é essencialmente um livro de

memórias. A memória das vivências do passado foi exatamente o principal estímulo e

inspiração para a escrita do texto, conforme o próprio autor esclarece para seus leitores logo

no início da obra: estas são as reminiscências de minha infância e estou certo de que são

razões, além de outras menos antigas, que me decidiram a escrever este livro depois de

setenta e cinco anos de idade (ALMEIDA, 1959, p. 4). A memória individual desta forma

apresenta-se, como observou Vernant (apud LE GOFF, 2003) como a conquista, a

representação de um passado, como a história constitui para o grupo social a conquista do seu

passado coletivo.

A memória passada que não é algo cristalizado, mas em constante movimento de reelaboração

e de reconfiguração no tempo presente. Essa dimensão da memória como atualização do

passado foi ressaltada por LE GOFF (2003, p. 419):

A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos

em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o

homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele

representa como passado.

O livro também traz a força do texto narrativo, pois em uma época marcada pela degradação

da experiência coletiva, como sinalizou Benjamin (1994), a narrativa apresenta a

possibilidade de promover a circulação de diversas formas de experiências:

O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a

relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes.

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que recorrem todos os

narradores (p. 198).

Inicialmente destacaremos as potencialidadades do livro O Desbravamento das Selvas do Rio

Doce como fonte de estudo de temas específicos relativos à História do Espírito Santo nos

primeiros anos do século XX. Considerando Ceciliano Abel de Almeida como uma

personalidade emblemática de seu tempo, procuramos a partir das suas idéias expressas no

texto, identificar os traços que configuravam a mentalidade do grupo de dirigentes políticos e

de intelectuais que dominou o cenário político, econômico e cultural no Espírito Santo

durante a Primeira República. O trabalho com o texto nos permitiu ainda, focalizar

importantes temas sobre esse período histórico, como: as formas de ocupação e a degradação

ambiental da região do Rio Doce, a exploração dos trabalhadores da ferrovia, o conflito com

os povos indígenas e as aproximações culturais estabelecidas entre diferentes grupos que

habitam a região.

Ceciliano Abel de Almeida: o homem e seu tempo

O momento histórico do Espírito Santo focalizado por Ceciliano Abel de Almeida na

narrativa do Desbravamento das Selvas do Rio Doce corresponde ao final do século XIX e

primeira década do século XX. O contato com discursos produzidos durante esse período da

História do Espírito Santo por nomes relacionados com as áreas da política e da cultura

evidencia a preocupação com o atraso do Estado, principalmente quando comparado com os

vizinhos da Região Sudeste, e o firme propósito de romper com a inércia econômica e cultural

dos tempos da colônia e do império. Em termos políticos e ideológicos, segundo Santos

(2002), a transição do século XIX para o século XX marcou o desenvolvimento de uma

consciência do atraso regional indicada por personalidades como Moniz Freire e Afonso

Cláudio. Essa consciência do atraso regional e a confiança nas promessas de transformação da

República ficam claramente explicitadas no discurso proferido por Moniz Freire no

encerramento de seu mandato de presidente de Estado no ano 1896.

O Espírito Santo era reputado uma das províncias mais atrazadas e das

menos importantes do Brazil até o advento da República [...] a sua posição

sempre foi subalterna e humilde, apezar da sua situação geographica entre

três províncias ricas e poderosas, e da proximidade com a Capital do Império

(ESPÍRITO SANTO, presidente M. Freire, 1896, p.11).

Esse novo direcionamento da política estadual estava atrelado ao incremento da economia

verificado desde meados do século XIX, impulsionado pela produção cafeeira4 no sul do

Estado, especialmente no município de Cachoeiro do Itapemirim. O café integrou a economia

local ao mercado nacional e, em termos políticos, pode-se afirmar que representou um dos

pilares fundamentais do movimento republicano no Espírito Santo, na medida em que

promoveu a formação e o fortalecimento de uma elite política local responsável pela difusão

dos ideais republicanos no Estado.

Ceciliano Abel de Almeida, diferentemente de outras personalidades que se destacaram no

cenário político e cultural da época, não era originário da região sul do estado. Nasceu na Vila

de São Mateus, região norte, a 25 de novembro de 1878. Filho de pequenos agricultores

aparentados do Barão de Aymorés, que nesse momento, já não desfrutava do poder

econômico e político de tempos passados. Ceciliano cursou o ensino secundário e superior no

Estado do Rio de Janeiro: o primeiro no Colégio São Vicente de Paulo, em Petrópolis, e o

segundo na afamada Escola Politécnica de Engenharia. Especialista no setor ferroviário,

atuava na Estrada de Ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro, quando em 1905 a chamado

do engenheiro Pedro Nolasco voltou ao Espírito Santo para trabalhar na construção da Estrada

de Ferro Vitória a Minas, onde permaneceu até o ano de 1908. A decisão de abandonar o

trabalho em uma importante empresa na capital da República causou perplexidade entre os

colegas de profissão, como relatou Ceciliano (1959, p. 89):

A deliberação adotada aceitando o convite causou admiração. Deixar o Rio,

o convívio dos colegas, a chefia do depósito de maior importância da

Central, para engajar-se com a Vitória-Minas, companhia pobre, com o fito

4 O café não foi um fenômeno econômico restrito ao Espírito Santo. Durante a República Velha manteve o

primeiro lugar na pauta das exportações brasileiras, com uma média de 60% do valor total. No final do período,

esse número subiu para 72,5 das exportações. A força da produção cafeeira fez que em termos políticos, esse

período fosse identificado pela historiografia tradicional como um simples clube dos fazendeiros de café. Para

Fausto (1996), tal visão é muito simplista por desconsiderar que, mesmo frágil, o Estado se definiu como

articulador da integração nacional, conciliando interesses e garantindo certa estabilidade do País. Ver:

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

de explorar, locar e construir trechos de uma ferrovias nas matas do Espírito

Santo, nas brenhas do Rio Doce – não se encontra, por certo, explicação

justificável que acaricie tal resolução – diziam os companheiros de trabalho.

Ceciliano Abel de Almeida, bem como os demais representantes das classes política e cultural

que comandaram o processo de instauração do Governo Republicano no Estado do Espírito

Santo, formadas no seio dos ideais positivistas, defendia em seus discursos, que o Estado

buscasse o progresso e ingressasse na idealizada Modernidade. Assim o desejo de integrar

esse processo e trazer para o Espírito Santo recursos matérias necessários para o

desenvolvimento econômico da região, certamente foi uma das motivações para deixar o

cargo que ocupava no Rio de Janeiro. Depois da temporada de trabalho na Ferrovia Vitória-

Minas, Ceciliano participou do Governo de Jerônimo Monteiro (1908-1912) na direção do

setor de obras pública e com a criação da Prefeitura de Vitória tornou-se o primeiro prefeito

da capital.

O Desbravamento das Selvas do Rio Doce: uma fonte de estudo para a História do

Espírito Santo

Fig. 1 – Alojamento – Ceciliano (centro de terno claro) com família e trabalhadores – 1905.

Apresentaremos agora alguns aspectos da História do Espírito Santo que podemos focalizar

no estudo da narrativa produzida por Ceciliano. A primeira questão refere-se à ocupação do

território capixaba, especificamente, a região norte do Estado. O autor oferece uma descrição

detalhada do cenário social, econômico e ambiental das localidades por onde passou. A região

do Rio Doce, que no século XIX, foi descrita por viajantes como Maximiliano (1989, p. 380):

A estada no rio Doce foi, sem dúvida, uma das etapas mais interessantes das

minhas viagens pelo Brasil; porque, à margem desse rio de cenários tão

soberbos e tão notável do ponto de vista das riquezas naturais, tem o

naturalista muito com que se ocupar e experimentar as mais variadas e

agradáveis emoções.

E Hartt (1989, p.87): em parte alguma do Brasil, nem mesmo no Pará, vi uma floresta mais

exuberante do que a do Rio Doce. Ceciliano, como os dois naturalistas, também chamou a

atenção para a exuberância das matas do rio Doce:

Catorze anos decorridos chegamos ao rio Doce como Engenheiro da E. de F.

Vitória a Minas. A região das matas desconhecidas continuava indevassável.

Pouco se havia transformado em confronto com as informações do Príncipe

Maximiliano, Saint-Hilaire, Hartt e outros (ALMEIDA, 1959, p. 105)

O texto oferece também uma detalhada descrição da flora da região (ALMEIDA, 1959,

p.127):

Não faz exceção a flora da beira-mar, próxima a foz do Rio Doce. Lá estão

sucessivamente, as salsas da praia, os guriris, o emaranhado de uma

vegetação rasteira, castigada pelos ventos marinhos, depois as castanheiras,

as grumixameiras, as pitangueiras, as almesqueiras, as aroeiras, as ingás-

mirins que sombreiam os gravatazais. E a capoeira rala vai-se modificando

para oeste até se apresentar de caules volumosos, troncos seculares: são as

afamadas matas virgens do Rio Doce

Observou que para a direção norte do Rio Doce o território do Estado permanecia

praticamente despovoado:

Vimos que o Rio Doce, em 1905, exibia a margem esquerda, a partir de

Linhares, deserta de gente civilizada. Do Rio Doce para o norte a mata

gigantesca estendia-se até à Bahia, exceto em São Mateus, onde houve

penetração no braço sul do Rio Cricaré (ALMEIDA, 1959, p. 114).

Mas esse cenário natural começava a sofrer o impacto da devastação decorrente da construção

da ferrovia (ALMEIDA, 1959, p. 123):

Vimos o fogo carbonizar gigantes troncos de árvores seculares, labaredas

nelas se enroscarem, como serpentes endoidecidas, subirem e projetarem

além de suas grimpas. Estarrecemo-nos, diante da queda do velho jequitibá

devorado pelo incêndio, que lhe destruiu a base, ou ante a peroba oca, cujo o

âmago carcomido vomitava ao céu, como conduto vulcânico, gases

incandescente.

Outra questão que ganhou grande espaço na narrativa diz respeito à exploração e as péssimas

condições de vida dos trabalhadores da ferrovia. Devido à escassez da oferta de mão de obra

local, era necessário recrutar trabalhadores de outras regiões do país (ALMEIDA, 1959,

p181):

A falta de trabalhadores na região em que vai ser construída a ferrovia

acarreta à Companhia sérias dificuldades. Vale-se ela de braçais, que se

apresentam procedentes da E. de F. Leopoldina ou da Central do Brasil, mas

como o número deles é deficiente, não há outro recurso senão o de recrutar

nos Estados da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco, gente capaz de

enfrentar o trabalho, a pobreza da Companhia e a malária.

E com relação às relações de trabalho observou (ALMEIDA, 1959, p.182)

No país, até aquela época, só havia existido um arremedo de organização do

trabalho que se desejava esquecer porque, adotado pelos senhores de

escravos, não mais condizia com a época; entretanto, é o resquício desse

método impiedoso, em que o cativo não tinha direito, que parece ainda

subsistir.

Além de todos esses problemas a malária assolava centenas de trabalhadores (ALMEIDA,

1959, p.183):

Dia a dia se multiplicavam os acessos de sezões que avassalam aqueles

infelizes da turma renovada. Havia noites em que o delírio simbolizava o

paroxismo em seus sofrimentos e, quando a aurora rasgava, embora

trôpegos, até a barranca do Cuieté se deslocavam alguns, que encorajados

aguardavam os raios do sol

O texto de Ceciliano também é rico na descrição das tradições e das práticas culturais das

populações que habitavam as margens do Rio Doce. Por exemplo, estava atento à prece

proferida pela Benzedeira de Povoação (ALMEIDA, 1959, p. 54):

Reza para dores de cabeça:

Jesus, espinho de rosa

Coração de Serafim

Ajuntai esses miolos

Que andam fora de mim.

E ao saber da experiência do canoeiro do Rio Doce que previa a chegada dos tempos de

chuva:

porque a saracura na véspera, ao anoitecer, cantou no morro; porque o sol,

na hora do ocaso, se encobriu muito vermelho; porque a cerração, depois de

nascer o sol invadiu o rio; e, ainda porque os quero-queros, à noite,

reclamaram ....

Mas sem dúvida os relatos mais instigantes do autor são aqueles relacionados ao contato com

as populações indígenas do norte do Estado do Espírito Santo. No decorrer de todo o século

XIX ocorreram violentos conflitos envolvendo os povos indígenas que habitavam o interior

da província, denominados de Botocudos, os moradores das vilas e o governo provincial,

intensificados com a ocupação da região verificada a partir do início do século XIX. Enquanto

as tribos indígenas resistiam à invasão de suas terras o governo português declarava a “guerra

justa” contra esses povos. Esse ambiente de uma verdadeira guerra era vivenciado em todo

território da província. Maximiliano (1989) ofereceu uma detalhada descrição de um dos

episódios desse conflito no norte da província:

A tribo dos Botocudos vagueia nas florestas, à beira do Rio Doce, até as

nascentes deste na capitania de Minas Gerais. Esses selvagens têm oferecido

até agora obstinada resistência aos portugueses. Se algumas vezes se

mostraram amigáveis em certo lugar, cometeram excessos e hostilidades em

outro; daí nunca ter havido um entendimento duradouro entre eles. Muitos

anos atrás havia um posto militar de sete soldados a oito léguas Rio Doce

acima, no local onde hoje se ergue a população de Linhares; esse posto

estava guarnecido com uma peça de canhão para proteger a projetada estrada

nova para Minas. A peça, a princípio, manteve os selvagens à distância, mas,

à proporção que foram conhecendo melhor os europeus e suas armas, os

temores desapareceram. De uma feita assaltaram repentinamente o quartel,

mataram um dos soldados, e teriam também massacrado os outros, se estes

não tivessem fugido e escapado pelo rio, tomando uma canoa, que aconteceu

justamente vir chegando com a salvação. Não podendo alcançá-los, os

selvagens encheram o canhão de pedras e retiraram-se para as selvas. Depois

desse fato, o último ministro de Estado, conde Linhares, declarou-lhes guerra

formal, numa proclamação bem conhecida; ordenou que os postos militares

já estabelecidos à margem do rio Doce fossem reforçados e que se

instalassem outros, a fim de proteger os estabelecimentos dos europeus e as

comunicações com Minas através do rio. Desde então não se deu trégua

aos Botocudos, que passaram a ser exterminados onde quer que se

encontrassem, sem olhar idade ou sexo; e só de vez em quando, em

determinadas ocasiões, crianças muito pequenas foram poupadas e

criadas (1989, p.153, grifo nosso)

No momento que relata suas reminiscências da infância, Ceciliano conta sobre a convivência

em São Mateus com as crianças indígenas órfãs em decorrência dos conflitos dos colonos

com os povos indígenas (ALMEIDA, 1959, p.3):

João e Luís, rapazes esquisitos, frequentavam o tugúrio. Eram “os caboclos”.

Foram criados pela minha avó. E os de casa diziam-me: são órfãos.

Perderam pai e mãe, que usavam botoques, e morreram quando a maloca

investiu contra uma fazenda, situada rio acima.

Em outro momento também em São Mateus no ano de 1901, narra mais uma nova experiência

com grupos indígenas. Desta vez em uma excursão no braço norte do Rio Cricaré para caçar e

pescar, o grupo foi cercado por indígenas e detido por cerca de três dias. Ceciliano observou

que os índios apesar de não falarem o português, faziam o sinal da cruz em alguns momentos

do dia, sinal que seriam originários de um aldeamento religioso. O encontro transcorreu sem

nenhuma violência, os índios queriam apenas estabelecer contato e conseguir algumas armas,

e, afirmavam que eram de paz: a todo momento protestavam que eram de paz eram amigos:

“jac-geme-nuc”. Ulisses, o língua, confirmava que também éramos amigos: “jac-geme-nuc” e,

por fim, todos nós repetíamos a frase da amizade: “jac-geme-nuc” (ALMEIDA, 1959, p. 175).

No período que trabalhou na construção da ferrovia, 1903 a 1905, novamente entrou em

contato com povos indígenas. Na primeira vez na região de Pancas, acompanhado de outros

trabalhadores da ferrovia que tentavam a aproximação com um grupo que estava próximo ao

acampamento de trabalho. Os índios rejeitaram o contato e expulsaram o grupo de invasores

(ALMEIDA, 1959, p. 190)

O ataque, de instante em instante, intensificava-se. As flechas coalham o rio

e já estaríamos ensanguentados, e quiçá mortos, se os agressores se

houvessem postado na ribanceira. Receavam, por certo, a nossa resistência e

detrás afastados se escondiam e, porque a embarcação estava muito próxima

da barranca, o campo de visão lhes era duplamente desfavorável.

O novo contato com os botocudos ocorreu pouco tempo depois já próximo do território de

Minas Gerais. No relato do autor é possível perceber o estado de aniquilamento e fragilidade

dos indígenas que já não ofereciam a brava resistência registrada pelos viajantes no início do

século XIX (CECILIANO, 1959, p.197):

Seis ou oitos bugres com seus curumins, sem cerimônias, penetraram a casa,

devassaram-na, assenhoravam-se daquilo de que se agradaram... após nossa

chegada surgem os homens indígenas que com as mulheres, num linguajar

desconhecido, parecem repetirem os mesmos pensamentos, ressaltados por

abundante gesticulação. No meio da confusão, despontam palavras em um

português estropiado: dineo e fome, e sem ênfase, esmorecidos, famintos, os

pobres tristes e vencidos.

A imagem da foto de Walter Garber, apresentada a seguir, transparece o estado de aniquilação

desses povos descrito por Ceciliano no início do século XX.

Fig. 2 – Botocudos – Pancas – 1912 – APES.

O livro o Desbravamento das Selvas do Rio Doce de Ceciliano Abel de Almeida, apesar da

sua grande importância para a pesquisa da História do Espírito Santo, ainda é relativamente

pouco conhecido do público em geral e também do público acadêmico. Assim, antes de tudo,

esse artigo teve por objetivo fazer circular informações sobre essa obra e demonstrar sua

potencialidade para a pesquisa em diversas áreas do conhecimento, como a História,

Sociologia, Biologia, entre outras.

Por fim, a descrição minuciosa dos costumes e das práticas culturais da população que

habitava a Região do Rio Doce oferece enormes possibilidades para as pesquisas norteadas

pelos pressupostos da História Cultural, na medida em que essa perspectiva historiográfica

centraliza sua atenção nas formas como os homens em sociedade incorporam e traduzem os

padrões culturais, ou seja, nas práticas e produções de significados de determinados grupos

sociais ou indivíduos.

2. Guimarães Rosa: da alquimia da palavra

Marco em nossa literatura, Grande sertão: veredas (1994) continua a nos seduzir por sua

monumentalidade, sua potência de significar e de abrir mundos a cada nova leitura5. Por isso,

escrever sobre tal obra implica sempre um desafio, mas, seguindo Riobaldo, reconhecemos

que é difícil viver (e escrever) sem tais riscos, pois “viver é muito perigoso”, como repete o

jagunço-narrador.

A obra de João Guimarães Rosa (1908-1967) já possui uma considerável fortuna crítica entre

nós (COUTINHO), dialogando com a literatura e o pensamento universal e confiná-la em

qualquer categoria de análise ou perspectiva trairia sua multiplicidade linguística, sua

enciclopédica apresentação de seres viventes, bem como sua submissão e domínio da

artesania da palavra, da qual o escritor se julgava um sacerdote.

Múltiplo e provocador desde que veio a lume, hermético para alguns, fonte de (in)sondáveis

mistérios para outros, o texto rosiano ainda está à porta da cidade e ao termo das leituras a nos

interpelar: “decifra-me ou te devoro”; qual esfinge, enigma ou palimpsesto, continua

desafiando décadas, possibilitando falar de fases de estudos de sua obra, conforme NUNES

(1998). Numa primeira fase, destaca-se sua análise filológica, linguística e histórico-literária e

sociologicamente interpretada, passando por uma análise estruturalista nos anos 1970; a

segunda, de índole hermenêutica, de enfoque antropológico e psicanalítico. Acrescentaríamos,

ainda, uma terceira fase, representada por Bolle (1997-8), Starling (1999) e Roncari (2006),

entre outros, na qual lemos o Grande sertão: veredas como emblema de nossa história, na

contracorrente das interpretações esotéricas e metafísicos.

Nesse sentido, Bolle (1997-8) propõe “uma interpretação que tenta extrair dos signos

esotéricos-metafísicos uma compreensão histórica” de nossa modernidade incompleta;

Starling (1999), por sua vez, lê a gesta de Riobaldo no sertão como uma alegoria política do

Brasil, em suas grandes mudanças sociais e políticas, de fundação e refundação da ordem

social, no período que se estende de 1880-1930, conforme apresentação de José Murilo de

Carvalho à STARLING (1999).

5 Algumas ideias expostas neste tópico são reelaboradas a partir de PAIVA, Jair Miranda de. Os tempos

Impossíveis: Perigo e Palavra no sertão. Nova Friburgo, RJ: Imagem Virtual, 2001, publicação originada de

dissertação de mestrado do autor, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras (Estudos Literários), da

Universidade Federal do Espírito Santo, em 2000.

Mas, como um clássico, sua obra põe a pique as mais experimentadas leituras, de diversos

matizes teóricos, ensejando gradientes tão amplos que somente encontram paralelo em sua

verve criadora.

Pode-se pensar na fruição do texto de Rosa como a incursão por grutas e cavernas, como as de

sua Cordisburgo natal e cercanias, cujas galerias se bifurcam em múltiplas saídas, que se

tornam outras entradas para novas galerias que, por sua vez, se abrem para outras

saídas/entradas, num movimento circular potencialmente infinito e barroco, em que cada

imagem envia a outra, desdobra-se, redobra-se, numa proliferação de sentidos, jogo de

espelhos, potência máxima da literatura. O colorido de tais galerias, textos e palavras, toma o

leitor por todos os poros, misturando imagens, sensações, conceitos, como num redemoinho

de criação e sugestões: “levantante”, “maravilhal”, “brisbrisa”, “cavalanços”, “ferrabrir dos

olhos”, “a brumalva do amanhecer”, “a bala beijaflorou”, “os passarinhos que bem-me-viam”,

“os cavalos aiando gritos”, “rebebe o encharcar dos brejos, verde a verde, veredas”...

A obra de Rosa nos põe no âmago do conceito de literatura como criação de mundos e novas

realidades. Como sustenta Viegas (1985), na tradição ocidental a palavra teve o privilégio de

ser a tradução racional da verdade (o fiat do Gênesis, o logos grego, o verbum de João, o

evangelista). No entanto, a partir do séc. XIX haverá uma descrença no conceito racional de

verdade, com o imergir da consciência trágica da existência com Nietzsche, para quem a

verdade se resume a nada mais que metáforas. Vários pensadores evocarão a força do

silêncio, do absurdo e da incomunicabilidade: Mallarmé, Kierkegäard, Kafka, Foucault. O

tema central da arte e da filosofia passa a ser a indigência do discurso racional em face dos

fenômenos extremos, com o predomínio da palavra poética sobre o discurso da razão:

Um amadurecimento de séculos mostrava, afinal, que sua linguagem não o aproxima

do mundo, mas, ao contrário, instaura um mundo, e nesse domínio instaurado na e

pela palavra humana as dobras do sentido não se contam nem se traduzem (VIEGAS,

1985, p. 12).

Retoma-se a cumplicidade inicial da especulação em que filosofia e poesia estão unidas: a

aurora da filosofia grega dos pensadores originários filósofos-poetas, posteriormente

catalogados como pré-socráticos. Busca-se a força da palavra “pela palavra e na palavra”,

para além de seu uso empírico e funcional, indispensável para a comunicação humana, porém,

tornado indevidamente critério e métron de toda linguagem: “o que há, portanto, de

primordial na linguagem é o que nela recupera poeticamente o vínculo com o vivido; apenas

secundariamente se propõe sua natureza funcional, denotativa” (VIEGAS, 1985, p. 16). Na

expressão de Heidegger (1967, p. 88), “há um pensamento mais rigoroso que o conceitual”.

O texto literário é potência de múltiplas significações, não tem um sentido unívoco (NUNES,

1998), é inesgotável porque, lato sensu, é texto poético. Na mão do artista, a palavra não é

materialidade inerte, “pois as palavras e a linguagem não constituem cápsulas, em que as

coisas se empacotam para o comércio de quem fala e escreve” (HEIDEGGER, 1978, p. 26);

ao contrário, têm peso ontológico, pois é na palavra que as coisas vem a ser e são.

Guimarães Rosa tem em conta esse poder criador da palavra ao afirmar que “linguagem e vida

são uma coisa só” (LORENZ, 1994, p. 47). Na sua concepção, a técnica literária é uma

alquimia que se serve do coração e não da pura lógica, pois o trabalho cerebral do escrito

assenta-se num outro quadrante, distinto da lógica fria dos “escritores intelectuais”, que se

destituem do cuidado com a palavra e sangue e nervos, correndo o perigo de se

transformarem em computadores, produtores de papel e não em sacerdotes da palavra. Para

Rosa, em entrevista a seu tradutor alemão, a lógica deve recuperar sua conotação essencial de

sapientia, pois “um gênio é um homem que não sabe pensar com a lógica, mas apenas com a

prudência” (LORENZ, 1994, p. 57). E acrescentemos: a lógica deve recuperar o sentido de

ouvir o lógos, consoante o dito de Heráclito (1991, p. 56): “não de mim, mas do logos tendo

ouvido é sábio homologar tudo é um”.

Dessa concepção de cuidado com a língua compreende-se o engajamento proposto pelo

escritor, no contexto do debate, na década de 1960, em que autores como Sartre propunham

uma literatura engajada, a serviço da revolução sócio-política: diferentemente, para Rosa

renovar a língua é renovar o mundo. O escritor é o criador, pela moldagem e soldagem dos

elementos da língua, de um projeto revolucionário de renovação da língua e do mundo.

Podemos afirmar que Rosa plasma o mundo, no sertão, tornando-o kosmos (ordem,

ornamento e, por extensão, beleza) universal, cosmopolita e existencial, para além do sertão

geográfico, distante da tecnificação fria da razão objetiva, chamada por ele mesmo de

“megera cartesiana”.

Fig. 3. Mapa de Poty para a obra Grande sertão: veredas.

Disponível em: http://makelyka.com.br/cavalo-motor/ acesso 10.set 2014-09-12

Os procedimentos requintados de Rosa, a construção dos personagens, como mostra Ana

Maria Machado em seu O recado do nome (1991), a presença da natureza em toda sua

exuberância, possibilitando que Grande sertão: veredas possa ser chamado por um de seus

primeiros críticos (PROENÇA, 1958) de “romance telúrico”, no qual “o vento é personagem

importante” – toda essa poesia pode ser vista a serviço da expressão da ambiguidade do

mundo-sertão: “sertão é isto: o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo” (ROSA, 1994, p. 104).

Os procedimentos formais colocam-se a serviço das múltiplas dimensões das linhas de

existência dos personagens, conforme ensinou Benedito Nunes (1995).

No pórtico do sertão rosiano, podemos lembrar, também, Cortázar, para quem a literatura é

uma conquista verbal da realidade. Para o escritor argentino, o romance é “o instrumento

verbal necessário para a posse do homem como pessoa, do homem vivendo e sentindo-se

viver” (CORTÁZAR, 1993, p. 67). Sertão conquistado pelo jagunço Riobaldo Tatarana,

reconquistado pela palavra criadora de Riobaldo-narrador, que transformou cada detalhe do

sertão real num sertão transfigurado – o que se torna possível porque o “romance supõe e

procura com seu impuro sistema verbal o impuro sistema do homem” (CORTÁZAR, 1993, p.

68), e, em seguida, porque Diadorim ensina a Riobaldo os detalhes da natureza, sendo peça

fundamental em sua decisão de adentrar o sertão. Finalmente, se as linhas de existência dos

personagens do romance do escritor mineiro não se definem, antes pertencem ao tecido-texto

intrincado que é o próprio real, o romance como escrita laboral e artesanal, na conclusão de

Cortázar (1993, p. 71), é um dos instrumentos privilegiados desse real, visto que o romance é

ação, “transação, aliança de elementos díspares que permitem a submissão de um mundo

igualmente transacional, heterogêneo e ativo”.

E é esse ‘real’ que nos propomos destacar, ainda que em linha provisórias, a seguir,

assentando a obra de Rosa na história político-social do Brasil.

Às veredas da história: “cidade acaba com o sertão. Acaba?”

A motivação desse trabalho, como já descrito, nasceu de um estranhamento e de um

deslocamento, diríamos, não sem certa audácia, de uma experiência de desenraizamento dos

autores, quando se transferiram para o norte do Espírito Santo, parte do Estado que, até a

década de 30 do séc. XX, aparecia na cartografia como “terras desconhecidas”.

Estranhamento em parte derivado do contato com a diversidade cultural da região, presente na

culinária, nas danças e nos tipos humanos negro e indígena vivos em seus descendentes, bem

como o italiano, que também a povoa. Mas, sobretudo, deslocamento pela distância que

sentimos, do ponto de vista cultural, antropológico e social, pois a região assemelhou-se-nos

mais à Bahia ou norte de Minas do que propriamente ao Espírito Santo que conhecíamos, o da

região metropolitana da Grande Vitória, sul ou serrana.

Acresce-se a isso o fato de na região percebermos certa permanência da sociedade pré-urbana

ou pré-industrial, com sua cota de relativo isolamento entre as etnias descritas, na desigual

repartição dessas pela economia, poder e cultura (em outras palavras: muitos negros e

indígenas estão confinados em ocupações subalternas – dizemos negros e indígenas e não seus

descendentes, pois tal foi a percepção de um dos autores, que se sentiu, num primeiro

momento, de volta ao Brasil pré-abolição, tal a distância entre as pessoas mediadas pela cor

de sua pele). Destacaríamos a permanência, nessa região distante da capital como, de resto,

em nosso país, resquícios do patrimonialismo nas relações pessoais, superpondo-se às

relações cidadãs e políticas mediadas por instituições modernas, laicas e estatais6.

6 Pensamos na análise fundamental de Sérgio Buarque de Hollanda, em seu clássico Raízes do Brasil: “No

Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo de família patriarcal, o desenvolvimento da

urbanização [...] ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje” [1936/1947:

primeira e segunda edição de Raízes do Brasil, respectivamente]. Nesse contexto, continua: “Não era fácil aos

detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção

fundamental entre os domínios público e privado. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o

Tal estranhamento, por sua vez, mediado pela literatura e pelo convite da Diretora de uma

das primeiras bibliotecas públicas do Espírito Santo, a Biblioteca Pública Municipal

"Clementino Rocha" de São Mateus (fundada na década de 1940) nos levou ao risco da

aproximação da obra de Almeida e de Rosa. Além de próximos no tempo, ambos mostravam

o processo de adentramento pelo interior do Brasil, com suas sagas, desafios, massacres,

destruição e criação. Ambos mostrarão, em níveis, contextos e estilos diversos (ficção e

memória) o encontro selva-urbanização, sertão-cidade, progresso-atraso, modernização-

violência, numa dialética da colonização (BOSI, 1992), que ainda pode oferecer uma chave

interpretativa para nossa história, construção de identidade(s) e projeto(s) de nação.

Pensamos que se justifica, assim, o título da obra de memórias de Ceciliano Abel de Almeida

“O desbravamento das selvas do Rio Doce” (1959), que narra sua presença no vale do Rio

Doce, entre Espírito Santo e Minas Gerais, na construção de uma ferrovia, nos inícios do

século. Também Guimarães Rosa esteve em outros sertões desvalidos de Minas Gerais, como

médico, onde, segundo suas próprias palavras, conheceu o sofrimento dos homens.

Se, por um lado, reconhecemos que, nos meandros do monólogo cerrado de Riobaldo, torna-

se difícil perseguir uma linearidade temporal, bem como impossível a busca do

esclarecimento racional da vida de Riobaldo através de seu relato (PAIVA, 2001), por outro,

sutis marcações temporais nos inserem na história do Brasil, descortinando a obra como uma

alegoria do processo violento de implantação de nossa República e modernização levada cabo

na República Velha da primeira metade do século XX. Desfilam, assim, no sertão e nas

veredas rosianas os fenômenos do coronelismo e da jagunçagem, imortalizada em nossa

tradição oral, bem como uma multidão de famintos, explorados, mendigos (como o cego

Guirigó), com sua religiosidade, saberes, lendas e sonhos. Nesse sentido, o clássico de Rosa é

um romance de formação de nossa brasilidade (BOLLE, 2004), ao lado de outros clássicos

funcionário ‘patrimonial’ do puro burocrata conforme a definição de Max Weber” (HOLLANDA, 2002, p.

1048). Como corolário de nossa formação histórica, “no Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos

um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados

nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das

vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma

ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força

e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos defeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do

núcleo familiar – a esfera, por excelência dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração –

está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer

composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios

neutros e abstratos, pretendam assentar a sociedade em normas antiparticularistas (HOLLANDA, 2002, p. 1049).

como Darcy Ribeiro, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Euclides da Cunha, entre

outros.

Fig. 4. Guimarães Rosa (à dir.) na viagem pelo Sertão, em 1952. Fotografado por Eugenio Silva para a revista

“O Cruzeiro” [Acervo Fundo Guimarães Rosa no Arquivo IEB/USP]. Disponível em:

http://www.elfikurten.com.br/2011/02/guimaraes-rosa-e-o-magma.html Acesso 10.set 2014.

Na obra vemos a referência à passagem da Coluna Prestes, que certamente deixou marcas

fortes nas localidades pelas quais passou, demonstrando como Rosa despista a história,

porém, deixando sinais na narrativa e nas veredas do sertão ficcional:

Os revoltosos passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamavam

posse de todos animais de sela. Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São

Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos

mais tarde, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas cravadas (ROSA, 1994, p.

67-68).

Como nos sugere Starling (1999), o grande sertão de Rosa é a narrativa de nossa formação

histórica e político-social. O personagem Zé-bebelo personifica o projeto de índole

racionalista e civilizatório visando modernizar o sertão, instalando “um novo corpo político

coletivo, necessariamente popular, comum, centralizador, homogêneo e totalizante – o projeto

de construção de um ‘sertão nacional’, como ele sempre fez questão de afirmar”

(STARLING, 199, p. 134). Fica patente nas palavras do fazendeiro, jagunço e candidato a

deputado a aproximação e repulsa da gente do sertão, que queria ‘reformar’: “Considerava o

progresso de todos – como se mais esse todo Brasil, territórios – e falava, horas, horas – ‘Vim

de vez!’ – disse, quando retornou de Goiás. O passado, para ele, era mesmo passado, não

vogava” (ROSA, 1994, p. 54). Ruptura com o passado, projeto de um novo tempo, encimado

na lei: “Acabando um combate, saía esgalopado, revólver ainda em mão, perseguir quem

achasse, só aos brados: - ‘Viva a lei! Viva a lei!...’ – e era o pipoco-paco. Ou: - ‘Paz! Paz!”

(id., ib.).

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