Escravidão

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Resumo.

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  • Escravido e universo cultural na colnia (no-fico) Eduardo Frana Paiva, 2001, Brasil

    Logo na orelha da obra, um breve texto do historiador francs, Serge Gruzisnky, faz interessante apresentao da pesquisa elaborada por Eduardo Frana Paiva. Copio um trecho: Como os homens e as mulheres submetidos escravido viviam essa condio? Qual podia ser sua margem de manobra? Qual era o lugar dos forros nessa sociedade, de que maneira e por qual preo conquistavam sua liberdade? Quais eram as relaes dos escravos e dos forros com os brancos, donos de escravos, quer fossem ricos ou pouco fortunados? Para responder a estas perguntas e romper os clichs que ainda embaraam (obstruem) as nossas memrias e historiografias, Eduardo Frana Paiva explora incansavelmente os arquivos mineiros do sculo XVIII. [...] Ao mergulhar no laboratrio sociocultural extraordinrio que constituiu Minas Gerais, o leitor descobrir uma sociedade complexa, mvel, cheia de contradies, no seio da qual negros e mulatos, homens e mulheres, aparecem integralmente como protagonistas da histria do sculo XVIII. Escravido e universo cultural na colnia Minas Gerais, 1716-1789 um trabalho referncia da nova historiografia sobre a escravido no Brasil. A obra lana um novo olhar para a sociedade escravista, enriquecendo nossa compreenso sobre as relaes sociais envolvidas nesse contexto. Longe de querer negar a escravido ou de querer torn-la um palco de amenidades, o objetivo de Eduardo Frana Paiva , como j adiantou Gruzisnky, sair do lugar comum e perceber que tanto escravos como senhores foram sujeitos da histria na qual viveram e que a dicotomia dominante/dominado explica muito pouco dessa histria. atravs de legados ricos como os deixados nesses papis [os testamentos e inventrios pesquisados pelo autor] que se torna possvel, por exemplo, o ataque ao que venho chamando de imaginrio do tronco, to arraigado no entendimento sobre a escravido brasileira. Isto , ao imaginrio sobre a escravido e os escravos, construdo sobre mitos, exageros e verses ideologizadas ou moldadas pelo pragmatismo poltico. Verses que de forma caricatural condenam a posteriori os escravos ao trabalho desumano e intenso ou ao castigo corporal, como se a vida desses agentes histricos, com exceo dos que se rebelavam, fugiam ou se aquilombavam, se restringisse a essas balizas. No entanto, os libertos testadores demonstraram em seus relatos que o tronco e os outros instrumentos de coero fsica e moral no tiveram, pelo menos em reas urbanizadas do setecentos, emprego to intenso e corriqueiro quanto se acredita generalizadamente hoje. Este tipo de violncia fora substitudo por outros, como as restries ascenso social dos forros e as interdies de variada natureza impostas indistintamente a cativos, a libertos e a seus descendentes. Em muitas outras ocasies o controle violento dos mancpios foi substitudo por acordos que interessavam a proprietrios e a propriedades e que, freqentemente, reverteram-se em alforrias individuais e coletivas. E no se tratava de agrupamentos reduzidos numericamente. Ao contrrio, refiro-me maior aglomerao de escravos e de libertos entre as capitanias do Brasil e uma das mais importantes, se no a mais importante, de todo o Novo Mundo escravista, no sculo XVIII (p. 24-25). Sobre uma classe intermediria urbana nas Minas do sculo XVIII O setecentos mineiro realmente um marco especial para todo o imprio portugus. A riqueza era acentuadamente concentrada em poucas mos, a misria fazia parte da vida cotidiana dos ncleos urbanos e de reas rurais, mas conformara-se uma classe intermediria urbana que tornava aquela sociedade diferenciada. A importncia desse grupo provinha diretamente da dimenso quantitativa atingida por ele, assim como de seu poder de influncia. Alm disso, seus integrantes produziam riqueza, pagavam impostos e eram consumidores pertinazes. J o sabia bem o Conde das Galveas, governador das Minas, em 1732, quando advertia que o trabalho dos forros rendia impostos necessrios ao rei. Exatamente os forros, pois eram eles que constituam parcela respeitvel dessa camada intermediria (p.26). Uma economia diversificada Livres, libertos e escravos compunham a sociedade que se instalara no que antigamente era chamado de sertes. [...] Mas no era apenas isso. Eles compunham, todos, embora com

  • importncia diferenciada, o mercado, o grande, dinmico e diverso mercado emergido nas Minas do setecentos. Atravs dessa enorme demanda comercial foram estreitados os contatos entre a Colnia e longnquas praas: ndia, Europa, frica. s Minas chegaram tecidos, pedraria e contas, louas, panelas e utenslios domsticos, calados, chapus, luvas, lenos, meias e ornamentos variados, alm de certos alimentos e bebidas de provenincia diversificada (p.26-27). Uma sociedade complexa Chegou, tambm, gente oriunda de muitos lugares distantes para a se estabelecer. Os encontros pessoais, materiais e culturais foram inevitveis e corriqueiros. Resultaram na aproximao entre universos geograficamente afastados, em hibridismos e em impermeabilidades, em (re)apropriaes, em adaptaes e em sobreposio de representaes e de prticas culturais. Por conta disso o estudo pretende contribuir para reflexes historiogrficas que abarquem extenso ampla (p.27). A pesquisa Eduardo Frana Paiva estuda, ao todo, 859 testamentos e inventrios de homens e mulheres originrios de vrias partes do Brasil e do mundo ou mesmo nascidos em Minas. O grupo dividido entre homens livres, homens forros, mulheres livres e mulheres forras. Entre as concluses que o autor chegou aps a anlise desses documentos est o fato de que, mesmo sendo a ascenso social um privilgio dos brancos, o enriquecimento dos negros libertos era possvel. Destaque para o sucesso da mulher nesse cenrio: A ascenso social era privilgio, portanto, de alguns brancos e isso era garantido pelas leis e ordenaes que vigoraram na Amrica portuguesa. [...] Mas, quanto ao enriquecimento de libertos e de seus descendentes, isto no foi possvel interditar. O fenmeno era muito mais freqente, claro, nas regies mais urbanizadas. A possibilidade de ascenso econmica foi concretizada por vrios desses antigos escravos e por seus filhos e netos nascidos livres, embora as grandes fortunas coloniais permanecessem entre alvas mos. [...] Entre os que lograram enriquecer, as mulheres constituram a maioria, assim como formavam, tambm, a parcela mais numerosa dos alforriados (p.67). Liberdade e preconceito Proprietrios de escravos, s vezes enriquecidos, libertos do cativeiro, mas sempre estigmatizados pela cor da pele, que denunciava o passado de submisso, a origem presa a grilhes e a indiscutvel condio de inferioridade intelectual e cultural. Os forros, mesmos os que experimentavam ascenso econmica, no escapavam da discriminao cultivada abertamente ou de maneira camuflada pela sociedade colonial. De toda forma, o fato de terem se libertado e de terem formado um enorme contingente populacional algo prximo a 120.000 indivduos, no final do sculo XVIII, apenas nas Minas j o suficiente para ajunt-los em agrupamento distinto (p.68). Para efeito de comparao, a populao de escravos nesse perodo era de cerca de 170.000. O imaginrio do tronco O autor nos relata a distorcida compreenso da sociedade escravista que vem imperando no senso comum e que passou a ser combatida pela historiografia brasileira produzida a partir da dcada de 1980: A imagem de violncia fsica empregada incessantemente sobre os escravos transformava as relaes escravistas coloniais em contatos sempre antagnicos, marcados pela desconfiana, pela revolta e pelo medo. No obstante, reconheciam-se os cativos como agentes histricos [...] apenas quando se revoltavam, fugiam ou matavam, desconsiderando qualquer outra estratgia de resistncia menos evidente que essas. As escravas, sempre, eram exploradas sexualmente e quase nada faziam alm do servio domstico e da reproduo biolgica. A famlia, entendida sempre a partir de um modelo europeu e cristo, no existia entre os escravos no Brasil, e o mais comum era haver um ou mais escravos reprodutores nas senzalas, responsveis pela fecundao das fmeas. Os libertos, quando mencionados, sempre ganhavam e jamais conquistavam suas cartas de alforria. [...] Essas e tantas outras 'verdades' sobre a escravido tanto povoaram e continuam povoando o imaginrio brasileiro (p.85-86).

  • A famlia escrava Contrariando essas verdades distorcidas, Eduardo Frana Paiva nos mostra que a formao de famlias entre escravos era um acontecimento bastante comum no seio da sociedade mineira dos setecentos. Na verdade, essa prtica, era interessante tanto para senhores como para cativos. Sem dvida alguma, a formao de famlias escravas foi estratgia aproveitada tanto pelos escravos quanto pelos senhores. Se ela representava proteo e solidariedade para os primeiros, tambm significava maior e melhor controle sobre a escravaria e sobre a sociedade escravista colonial para os segundos (p.150). De acordo com o autor, a freqente presena de famlias escravas promoveu uma relativa estabilidade das relaes cotidianas entre proprietrios e propriedades. Ela explicaria uma baixa referncia a fugas, castigos e torturas, e tambm estaria relacionada longevidade dos escravos em Minas Gerais. As alforrias nas Minas E foram essas formas flexveis de convvio entre senhores e cativos que favoreceram acordos que resultavam em alforrias. O autor descreve o interessante processo da coartao, muito usado como meio para a liberdade, que consistia na compra da alforria atravs do pagamento em parcelas e durante determinado tempo, ao fim do qual a liberdade era alcanada. De acordo com Frana Paiva, o processo no era regulamentado pela legislao em vigor, mas tratava-se de prtica e de direito costumeiros. Contrapondo-se, portanto, idia de que as alforrias dependiam apenas da boa vontade dos proprietrios, os processos de coartao demonstram bem como os maiores interessados, os escravos, conseguiam intervir nessas histrias. Eles ajudaram a mold-las, assim como participaram efetivamente na construo da prpria sociedade escravista colonial (p.168). Uma ressalva importante Isso no significa, evidentemente, que as relaes escravistas nas Minas ou no Brasil tenham sido doces, amenas e no tenham experimentado tenses, conflitos e desacordos. O exagero e o esteretipo, de todas as formas como so empregados, trazem grande prejuzo ao conhecimento(p.156).