Felizmente há Luar

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· ,,, Felizmente Há Luar!, de Luís de Sttau Monteiro Felizmente Há Luar! de Sttau Monteiro recria em dois actos a tentativa frustrada de revolta liberal de Outubro de 1817, reprimida pelo poder absolutista do regime de Beresford e Miguel Forjaz, com o apoio da Igreja. Ao mesmo tempo, chama a atenção para as injustiças, a repressão e as perseguições políticas no tempo de Sala- zar. nos anos 60 do século XX (tempo da escrita). A acção em Felizmente Há Luar! centra-se na figura do general Gomes Freire de Andrade e sua execução, mostrando, ao mesmo tempo, a resignação do povo, dominado pela miséria, pelo medo e pela ignorância. Gomes Freire "está sempre presentê embora nunca apa- reça" (didascália inicial) e, mesmo ausente, condiciona a estrutura interna da peça e o comportamento de todas as outras personagens. O protagonista é construído através da esperança do povo, das perseguições dos governadores e da revolta impotente da sua mulher e dos seus amigos. Amado por uns, é odiado pelos que temem perder o poder. Gomes Freire é acusado de chefe da revolta, de estrangeirado e grão-mestre da Maçonaria, por ser um soldado brilhante e idolatrado pelo povo. Os governan- tes - Miguel Forjaz, Beresford e Principal Sousa - per- seguem, prendem e mandam executar o general e os restantes conspiradores através da morte na fogueira. Para eles, aquela execução, à noite, constituía uma forma de avisar, de dissuadir outros revoltosos; para Matilde de Meio, a mulher do general, e para mais pes- soas era uma luz a seguir na luta pela liberdade. Dentro dos princípios do teatro épico, Felizmente Há Luar! é um drama narrativo que analisa criticamente a sociedade, apresentando a realidade com o objectivo de levar o espectador a tomar uma posição. Graças ao efeito de estranheza e à distanciação histórica, retrata a trágica apoteose do movimento liberal oitocentista, em Portugal, e interpreta as condições da sociedade portu- guesa do início do século XIX. Com a denúncia do ambiente político repressivo daquela época, tenta pro- vocar a reflexão sobre a opressão e a censura que se repete no século XX. Luís Infante de Lacerda Sttau Mon ei Lisboa - 23-07-1993, id.L dramaturgo e mfTtr\lr·r<;~~ meu-se em Direito, mas optou pelo jorna . passado em Inglaterra, durante a juvent " -lhe o contacto com movimentos de va 9 ;: ~- - tura anglo-saxónica e foram fundamenta" ção intelectual. As suas sátiras sobre a ._-:_:0:: __ : a colonial tornaram-no objecto de perse levaram-no à prisão. Felizmente Há Luar! recupera acornec cio do século XIX, para servirem de de ' social e política do país dos anos 60, PC replica a expressão do governador D. jaz, que, numa carta ao intendente da com "felizmente, havia luar" a morosi a~ 'U~) ",_-=,,,-.~~~:,,,. As personagens psicologicamente s comentários irónicos e mordazes, a de ' _;: da sociedade e a defesa intransige são características marcantes da sua ra A peça em dois actos Felizmente -2 _ - em 1961 e com a qual Sttau Montei o _- Prémio de Teatro da Associação Portu =:= s:: foi suprimida pela censura da ditadura. -s =:: primeira vez em 1969, em Paris, só c ,,_= portugueses em 1978, no Teatro Naci próprio autor. 85

Transcript of Felizmente há Luar

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Felizmente Há Luar!, de Luís de Sttau Monteiro

Felizmente Há Luar! de Sttau Monteiro recria em dois

actos a tentativa frustrada de revolta liberal de Outubro

de 1817, reprimida pelo poder absolutista do regime de

Beresford e Miguel Forjaz, com o apoio da Igreja. Aomesmo tempo, chama a atenção para as injustiças, a

repressão e as perseguições políticas no tempo de Sala-zar. nos anos 60 do século XX (tempo da escrita).

A acção em Felizmente Há Luar! centra-se na figura

do general Gomes Freire de Andrade e sua execução,mostrando, ao mesmo tempo, a resignação do povo,

dominado pela miséria, pelo medo e pela ignorância.Gomes Freire "está sempre presentê embora nunca apa-reça" (didascália inicial) e, mesmo ausente, condiciona aestrutura interna da peça e o comportamento de todas

as outras personagens. O protagonista é construídoatravés da esperança do povo, das perseguições dos

governadores e da revolta impotente da sua mulher edos seus amigos. Amado por uns, é odiado pelos quetemem perder o poder.

Gomes Freire é acusado de chefe da revolta, deestrangeirado e grão-mestre da Maçonaria, por ser um

soldado brilhante e idolatrado pelo povo. Os governan-tes - Miguel Forjaz, Beresford e Principal Sousa - per-

seguem, prendem e mandam executar o general e osrestantes conspiradores através da morte na fogueira.Para eles, aquela execução, à noite, constituía uma

forma de avisar, de dissuadir outros revoltosos; paraMatilde de Meio, a mulher do general, e para mais pes-soas era uma luz a seguir na luta pela liberdade.

Dentro dos princípios do teatro épico, Felizmente HáLuar! é um drama narrativo que analisa criticamente a

sociedade, apresentando a realidade com o objectivo delevar o espectador a tomar uma posição. Graças aoefeito de estranheza e à distanciação histórica, retrata a

trágica apoteose do movimento liberal oitocentista, emPortugal, e interpreta as condições da sociedade portu-

guesa do início do século XIX. Com a denúncia do

ambiente político repressivo daquela época, tenta pro-

vocar a reflexão sobre a opressão e a censura que serepete no século XX.

Luís Infante de Lacerda Sttau Mon eiLisboa - 23-07-1993, id.L dramaturgo e mfTtr\lr·r<;~~

meu-se em Direito, mas optou pelo jorna .

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levaram-no à prisão.

Felizmente Há Luar! recupera acorneccio do século XIX, para servirem de de '

social e política do país dos anos 60, PCreplica a expressão do governador D.jaz, que, numa carta ao intendente dacom "felizmente, havia luar" a morosi a ~ 'U~) ",_-=,,,-.~~~:,,,.

As personagens psicologicamente scomentários irónicos e mordazes, a de ' _;:

da sociedade e a defesa intransige

são características marcantes da sua ra

A peça em dois actos Felizmente -2 _ -

em 1961 e com a qual Sttau Montei o _-

Prémio de Teatro da Associação Portu =:= s::foi suprimida pela censura da ditadura. -s =::primeira vez em 1969, em Paris, só c ,,_=portugueses em 1978, no Teatro Nacipróprio autor.

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Sequência 3 Felizmente Há Luar!, de Luísde Sttau Monteiro

Carácter épico da peça

Felizmente Há Luar!, de Luís de Sttau Monteiro, é um drama narrativo, de carácter social, den-tro dos princípios do teatro épico. Na linha do teatro de Bertolt Brecht'", exprime a revolta contrao poder e a convicção de que é necessário mostrar o mundo e o homem em constante devir.Defende as capacidades do ser humano que tem o direito e o dever de transformar o mundo emque vive. Por isso, oferece-nos uma análise crítica da sociedade, procurando mostrar a realidadeem vez de a representar, para levar o espectador a reagir criticamente e a tomar posição.

Como drama narrativo pressupõe uma acção apresentada ao espectador e com possibilidadede ser vivida por ele, mas, sobretudo, procura a sua conivência ou participação testemunhal.O carácter narrativo é sinónimo de épico ao contar determinados acontecimentos que devemser interpretados, reflectidos e julgados pelo espectador, enquanto elemento de uma sociedade.Ele deve, assim, analisar e julgar o homem no seu devir histórico, na sua situação social, quepode modificar-se e modificar o curso da História.

Observando Felizmente Há Luar!, verificamos que são estes os objectivos de Luís de SttauMonteiro, que evoca situações e personagens do passado usando-as como pretexto para falardo presente. Escrita em 1961, surge como máscara para que se possa tirar exemplo num pre-sente ditatorial. Mas mais do que fazer a ligação entre dois momentos - o início do século XIXe o século XX - a sua intemporalidade remete-nos para a luta do ser humano contra a tirania, aopressão, a traição, a injustiça e todas as formas de perseguição. Diz Luís de Sttau Monteiro, noPrograma de estreia no Teatro Nacional D. Maria II (1978), "Vai haver sempre gente como aMatilde, o Gomes Freire, o Sousa Falcão e o Manuel e o avançar para o futuro vai depender,sempre, da existência de homens capazes de entender, em cada dia o dia seguinte. O presente -<qualquer presente - é sempre uma batalha entre esses e aqueles que recusam o dia de amanhã- aqueles que em 1817 desempenharam os papéis de D. Miguel Pereira Forjaz e do principalSousa, mas que dão por outros nomes em outros momentos históricos".

Observe-se, a propósito, o diálogo entre Matilde (a esposa do general Gomes Freire) eBeresford, o representante do domínio britânico:

MatildeVenho pedir-lhe que o liberte. É-me indiferente que o faça por favor, por clemência ou por qualquer outro motivo.

Às mulheres, senhor, pouco interessa a justiça das causas que levam os seus homens a afastar-se delas,A injustiça e a tirania, só as sente quem anda na rua, que é homem ou quer ser homem.

(Pausa)

( ... )

Beresford

E porque pensa que devo fazer o que pede 7

Matilde

Porque é o comandante do exército, governador do Reino e... porque sabe que ele não cometeu qualquer crime.

Beresford

A simples existência de certos homens é já um crime.

(Começam a ouvir-se sinos ao longe)

111 Bertolt Brecht (1898-1956)- poeta e dramaturgo alemão, exerceu uma grande influência no teatro contemporâneo, Perseguido, criticado e discutido den-tro e fora do País. pelas suas ideias marxistas, só vê o seu nome reconhecido na terra natal dois anos antes de morrer, quando o seu grupo de teatro - o8erliner Ensemble - faz a sua primeira grande viagem pela Europa. A sua obra, claramente social. coloca em palco a luta dos oprimidos. 8reviário do Tea-tro, publicado em 1949. surge como uma espécie de tratado sobre os princípios do teatro épico, Da sua obra, merecem também realce Ópera dos Três Vin-téns, Mãe Coragem ou O Círculo de Giz Caucasiano.

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Sequência 3 Felizmente Há Luar'. de Luís de Sttau Monteiro

Neste excerto, o conflito interior de Matilde exprime-se na própria anulação das suas con-vicções para conseguir a libertação do marido, que é vítima da injustiça. Mas note-se, princi-palmente, a afirmação do general Beresford, para quem "a simples existência de certos homensé já um crime".

O dramaturgo, através do cenário, dos gestos e das palavras, ou das informações das didas-cálias, procura levar o público a entender de forma clara o sentido da mensagem. Neste frag-mento da obra, o sarcasmo e a ironia ou a amargura e o desespero que opõem estas duas perso-nagens, tal como sucede com outros sentimentos e comportamentos, são elementosfundamentais para a análise da situação e para que o espectador tome posição.

Felizmente Há Luar! destaca a preocupação com o homem e o seu destino; realça a luta con-tra a miséria e a alienação; denuncia a ausência de moral; alerta para a necessidade de umasuperação com o surgimento de uma sociedade solidária que permita a verdadeira realizaçãodo Homem.

"Trágica apoteose" da história do movimento liberal oitocentistaA nova ordem política trazida pela Revolução Francesa de 1789 e as invasões napoleónicas

abalam o Ocidente da Europa. Só a Inglaterra resiste ao imperador Napoleão Bonaparte, arras-tando Portugal para uma posição de indecisão entre este aliado e a França. Por isso, em 29 deNovembro de 1807, com as tropas de Junot às portas de Lisboa, D. João VI, com a família realportuguesa e um imenso séquito de fidalgos, altos funcionários e militares, embarca apressada-mente para o Brasil para evitar a capitulação. No ano seguinte, o governo, sediado no Brasil,

.invade a Guiana Francesa como represália, obrigando o seu governador a capitular e a retirar--se para a Europa.

Depois da primeira invasão, a Corte pede ao governo inglês um oficial para reorganizar oexército. Surge, então, o general Beresford, que é nomeado generalíssimo do exército portu-guês, quando o País sofre a invasão das forças comandadas pelo general Soult. Deve-se tambéma ele o êxito contra a terceira invasão, chefiada por Massena.

Após as invasões, Beresford vê os seus poderes consolidados, mas começa a atrair inimigosque ou se vêem discriminados em cargos militares e públicos ou defendem ideias liberais.Começa então uma acção repressiva, nomeadamente contra conspiradores, agrupados emsociedades secretas. Por isso, quando em 1815, o general Gomes Freire de Andrade chega aLisboa, o intendente da Polícia avisa Beresford da simpatia do povo e do ambiente de conspira-ção que se respira. Mas o generalíssimo inglês, regressado do Brasil com poderes acima daJunta de Regência, que D. João VI lhe conferira, decide descobrir os conspiradores, execu-tando-os. É neste processo que Gomes Freire, considerado como chefe da conspiração, se vêenvolvido e condenado à morte, no dia 18 de Outubro de 1817, no campo de Alqueidão, juntoaS. Julião da Barra. Os outros condenados são enforcados nessa mesma manhã, no Campo deSantana, que, em sua memória, se designa por Campo dos Mártires da Pátria.

Esta acção em vez de amedrontar o povo incentivou-o. O general Gomes Freire de Andradee os outros condenados tornam-se assim os pioneiros do movimento que em 1820 provoca arevolução liberal no Porto e o levantamento em Lisboa. O já marechal-general Beresford, quefora ao Brasil pedir mais poder a D. João VI, acaba por ser impedido de desembarcar por umaJunta Provisional (24 de Agosto de 1820).

Felizmente Há Luar!, como afirma Luciana Stegagno Picchio, ao retratar a conspiração,encabeçada pelo Gomes Freire de Andrade, que se manifestava contrária à presença inglesa e àausência da corte no Brasil, constitui uma "trágica apoteose" da história do movimento liberaloitocentista em Portugal.

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-------------------------------------------',"o ambiente epocal é referido claramente na peça através das palavras de Manuel

"o mais consciente dos populares":

Manuel

Vê-se a gente livre dos Franceses e zás!, cai na mão dos Inglesesl

E agora? Se acabamos com os Ingleses, ficamos na mão dos reis do Rossio ...

Entre os três o diabo que escolha ...

Numa única fala, coloca-se em destaque a situação do povo oprimido: as Invasões France-sas; a "protecção" britânica, iniciada após a retirada do rei D. João VI para o Brasil.; a falta deperspectivas de futuro, clarificada logo de seguida:

E enquanto eles andam para trás e para a frente, para a esquerda e para a direita, nós não pa s domesmo sítio!

Mas a conspiração não sufocou a história dos movimentos liberais, antes os imp sionou.Na altura da execução, as últimas palavras de Matilde, "companheira de todas as ho -- dogeneral Gomes Freire, são de coragem e de estímulo para que o povo se revolte contra a tiraniados governantes:

MatildeOlhem bem! Limpem os olhos no clarão daquela fogueira e abram as almas ao que ela nos ensine.Até a noite foi feita para que a vísseis até ao fim ...

(Pausa)

Felizmente - felizmente há luar!

Como se pode observar, o general Gomes Freire e mais onze companheiro . acusado deconspirar contra Beresford e o governo vigente, tornaram-se, pela sua morte trázica, no QTaIl-

des precursores do liberalismo português. Em Felizmente Há Luar!, Luís de ttau _ :onteirosocorre-se da figura do general Gomes Freire de Andrade, que está presente embora se apare-cer em cena, para debater a situação do povo que vive na miséria e dependente esdominantes. Recorrendo ao teatro épico, coloca em palco essas primeiras manifestaçõ ciaise políticas que levaram à revolução liberal, para que o espectador se posicione cri icamente,mas estranho à acção, como sucedia no teatro clássico preocupado em despertar 0- - nrimen-tos e as emoções no público.

"Trágica apoteose" da história do movimento liberal oitocentista, Felizmente Há =-uar! inter-preta as condições da sociedade portuguesa do início do século XIX e a revolta dos mais esclare-cidos, muitas vezes organizados em sociedades secretas, contra o poder absolutista e tirânico dosgovernadores e do generalíssimo Beresford. Para que o movimento liberal se conere . e de:::.asseteanos depois, é necessária a morte de Gomes Freire de Andrade e dos seus companheiros. mastambém de muitos outros portugueses que em nome dos seus ideais são sacrificado pela Pátria.Conspiradores e traidores para o poder e para as classes dominantes, que sentem os seus prívilé-gios ameaçados, são os grandes heróis de que o povo necessita para reclamar justiça. díznídade epão. Por isso, as suas mortes, em vez de amedrontar, tornam-se estímulo. A fozueira acesa nanoite para queimar Gomes Freire de Andrade, que os governadores querem que seja dissuasora,torna-se farol ou luz para que outros lutem pela liberdade. A consequência da morte do seneralpode ser comparada à da crucificação de Cristo na medida em que há uma propagação da espe-rança. Gomes Freire, aliás, é uma figura messiãnica, frequentemente relacionada com Cristocomo se observa nas palavras de Beresford, que afirma ser necessário alguém 'a quem valha apena crucificar", ou de Matilde, que apelida o Principal Sousa de ]udas, entregando-lhe a moeda.

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Distanciação histórica (técnica realista - influência de Brecht)

Sequência 3 Felizmente Há Luar!, de Luís de Sttau Monteiro

Brecht, nos seus Estudos sobre Teatro, fala do efeito de estranheza e de distanciação que orecurso à História ou a um processo de construção de parábolas permite reflectir sobre umarealidade próxima. Brecht propõe um afastamento entre o actor e a personagem e entre oespectador e a história narrada, para que, de uma forma mais real e autêntica, possam fazer juí-zos de valor sobre o que está a ser representado. O actor deve, lucidamente, saber utilizar o"gesto social", examinando as contradições da personagem e as suas possíveis mudanças, quelhe permitam acentuar o desfasamento entre o seu comportamento e o que representa. Istopermite ao público espectador uma correspondente distanciação da história narrada e, conse-quentemente, uma possível tomada de consciência crítica, aprendendo o prazer da compreen-são do real, a sua situação na sociedade e as tarefas que pode realizar para ser ele próprio.

Este efeito de estranheza e de distanciação acaba por ter um efeito de aproximação entre oactor e o espectador, na medida em que os dois se distanciam em relação à história narrada epodem, como pessoas reais, discutir o que se passa em palco. Ao contrário do teatro clássico,não há um efeito alucinatório ou hipnótico que permita tomar a representação pela própriarealidade. Afirma Bertolt Brecht (in Estudos sobre Teatro):

"O espectador do teatro dramático diz: - Sim, eu já senti isso. - Eu sou assim. - O sofrimentodeste homem comove-me, pois é irremediável. É uma coisa natural. - Será sempre assim. - Istoé que é arte! Tudo ali é evidente. - Choro com os que choram e rio com os que riem.

O espectador do teatro épico diz: - Isso é que eu nunca pensaria. - Não é assim que se devefazer. - Que coisa extraordinária, quase inacreditável. - Isto tem de acabar. - O sofrimentodeste homem comove-me, porque seria remediável. - Isto é que é arte! Nada ali é evidente. -Rio de quem chora e choro com os que riem."

O teatro épico proposto por Brecht contrapõe-se à tragédia clássica para melhor conseguir oefeito social, tal como tentara no recurso à balada em vez do canto lírico. Enquanto o teatroclássico conduz o público à ilusão e à emoção, levando-o a confundir o que é a arte com a vidareal, no teatro épico a "distanciação" deve permitir o envolvimento do espectador no julga-mento da sociedade. Por isso, o teatro épico implica comprometimento, crítica contra o indivi-dualismo, consciencialização perante o sofrimento dos outros e a realidade social. Deve, na suatarefa pedagógica, instruir os espectadores na verdade e incitá-los a actuar, alertando-os para acondição humana. O espectador deve ter um olhar crítico para se aperceber melhor de todas asformas de injustiças e de opressões.

Em Felizmente Há Luar!, o tempo, o espaço e as personagens são trabalhados de modo a quea distanciação se concretize, recorrendo, muitas vezes, a um historiar dos acontecimentosrepresentados e ao acentuar da precisão do lugar cénico. É o que se nota, por exemplo, logo noinício:

Vicente

(Calça o sapato e levanta-se.)las, ias. Ias perguntar-me se foi por dinheiro que eu me virei contra os

meus ... Era ou não era isso que me ias perguntar?

1.° Polícia

Na verdade ...

Vicente

Pois respondo-te, amigo. Respondo-te de boa vontade.

(Começa a passear em frente dos polícias.)

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-------------------------------------------"".Felizmente Há Luar'

Sublinhe-se, de forma especial, a preocupação do dramaturgo com a distanciação quandoatravés da didascália nos informa que "Todos os seus gestos são estudados. Sente-se que passoulongas horas estudando os hábitos e os maneirismos dos membros da classe a que desejaria terpertencido. Ao falar, faz gestos com as mãos, gestos lentos, precisos, copiados de um fidalgoqualquer que teve ocasião de observar de perto".

Ao dramaturgo interessa-lhe que o actor se revele lúcido e, sobretudo, que o espectador se con-fronte e se esclareça, partindo da identificação inicial de dois tempos e dois mundos diferentes.

Paralelismo passado/condições históricas dos anos 60: denúncia da violência

Felizmente Há Luar! tem como cenário o ambiente político dos inícios do século XIX: em1817, uma conspiração, encabeçada pelo general Gomes Freire de Andrade, que pretendia oregresso do Brasil do rei D. João VI e que se manifestava contrária à presença inglesa, foi desco-berta e reprimida com muita severidade: os conspiradores, acusados de traição à pátria, foramqueimados publicamente e Lisboa foi convidada a assistir. ..

Luís de Sttau Monteiro marca uma posição, pelo conteúdo fortemente ideológico, e denuncia aopressão vivida na época em que escreveu a obra (1961), precisamente sob a ditadura de Salazar.

o recurso à distanciação histórica e à descrição das injustiças praticadas no início do séculoXIX em que decorre a acção permitiu-lhe, assim, colocar também em destaque as injustiças doseu tempo e a necessidade de lutar pela liberdade.

Fala como um alucinado, com frequentes pau-sas, que dão a entender não ser esta a primeiravez que pensa no assunto.

Ao falar da cara, levanta-se, assumindo a posi-ção de um senador romano.

Alarga os passos. Todos os seus gestos sãoestudados. Sente-se que passou longas horasestudando os hábitos e os maneirismos dosmembros da classe a que desejaria ter perten-cido. Ao falar, faz gestos com as mãos, gestoslentos, precisos, copiados de um fidalgo qual-quer que teve ocasião de observar de perto.

De repente, olha para os polícias e compreendeque está a dizer coisas que não deveria ter dito.Fecha as mãos. Domina-se. Adopta um tom devoz ironicamente piedoso.

É verdade que nasci aqui e a fome desta gente é a minha fome, mas ...é igualmente verdade que os odeio, que sempre que olho para eles mevejo a mim próprio: sujo, esfomeado, condenado à miséria por acidente denascimento.

(Estaca no palco e toma uma posição de pessoa importante, de fidalgoretratado por um artista medíocre do paço.)

Que diferença há entre mim e um fidalgo qualquer?

Será que tenho uma cara diferente? Será que sou mais estúpido? Maisbaixo? Mais alto?

Serão as minhas pernas e os meus braços diferentes das pernas e dosbraços de um desses fidalgotes das touradas?

Não, meus amigos. A única coisa que me distingue de um fidalgo éuma coisa que se passou há muitos anos e de que nem sequer tive aculpa: o meu nascimento.

(Pausa)

Nasci a dois passos daqui, numa trapeira em que nenhum fidalgoentraria. Quando passo lá à porta, só Deus sabe o que sinto ...

É por isso que odeio esta cambada a que pertenço, mas a que pertençosem querer e com quem não tenho nada de comum!

Mas vocês não podem perceber isto ...

(Cai em si]Tenho estado a brincar, amigos. Querem saber porque vendo os meus

irmãos? Pois vendo-os por amor a N. S. Jesus Cristo e a el-rei D. João VI,que há tantos anos anda pelos Brasis cuidando dos nossos interesses ...

(Ri-se.)

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Sequência 3 Felizmente Há Luar', de Luís de Sttau Monteiro

Em Felizmente Há Luar!, podemos, neste paralelismo entre duas épocas, observar:

Tempo da história - século XIX -1817 Tempo da escrita - século XX -1961

• Agitação social que levou à revolta liberal de 1820-conspirações internas; revolta contra a presença daCorte no Brasil e a influência do exército britânico;

• Agitação social dos anos 60 - conspirações internas;principal irrupção da guerra colonial;

• Regime absolutista e tirânico; • Regime ditatorial de Salazar;

• Classes sociais fortemente hierarquizadas;• Classes dominantes com medo de perder privilégios;

• Maior desigualdade entre abastados e pobres;• Classes exploradoras, com reforço do seu poder;

• Povo oprimido e resignado;• A "miséria, o medo e a ignorância";• Obscurantismo, mas "felizmente há luar";

• Povo reprimido e explorado;• Miséria, medo e analfabetismo;• Obscurantismo, mas crença nas mudanças;

• Luta contra a opressão do regime absolutista;• Manuel, "o mais consciente dos populares", denuncia

a opressão e a miséria;

• Perseguições dos agentes de Beresford;• As denúncias de Vicente, Andrade Corvo e Morais

Sarmento que, hipócritas e sem escrúpulos, denunciam;• Censura à imprensa;

• Severa repressão dos conspiradores;• Processos sumários e pena de morte;

• Luta contra o regime totalitário e ditatorial;• Agitação social e política com militantes antifascistas

a protestarem;

• Perseguições da PIDE;• Denúncias dos chamados "bufos", que surgem na

sombra e se disfarçam, para colher informações edenunciar;

• Censura;

• Prisão e duras medidas de repressão e de tortura;• Condenação em processos sem provas;

• Execução do general Gomes Freire, em 1817.

Em Felizmente Há Luar! percebe-se, facilmente, que a história serve de pretexto para umareflexão sobre os anos 60, do século XX. Sttau Monteiro, também ele perseguido pela PIDE,denuncia assim a situação portuguesa, durante o regime de Salazar, interpretando as condiçõeshistóricas que anos mais tarde contribuiriam para a "Revolução dos Cravos", em 25 de Abril de1974. Tal como a agitação e conspiração de 1817, em vez de desaparecer com medo dos opres-sores, permitiu o triunfo do liberalismo em 1834, após uma guerra civil, também a oposição aoregime vigente nos anos 60, em vez de ceder perante a ameaça e a mordaça, resistiu e levou àimplantação da democracia.

A acção

• Posterior a Felizmente Há Luar' - Execução do generalHumberto Delgado, em 1965.

Felizmente Há Luar!, de Sttau Monteiro, recria em dois actos a tentativa frustrada de revoltaliberal de Outubro de 1817, reprimida pelo poder absolutista do regime de Beresford e MiguelForjaz, com o apoio da Igreja. Ao mesmo tempo, chama a atenção para as injustiças, a repres-são e as perseguições políticas no tempo de Salazar, nos anos 60 do século XX (tempo daescrita).

A acção em Felizmente Há Luar! centra-se na figura do general Gomes Freire de Andrade e dasua execução: da prisão à fogueira, com descrições da perseguição dos governadores do Reino,da revolta desesperada e impotente da sua esposa e da resignação do povo que a "miséria, o

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medo e a ignorância" dominam. Gomes Freire de Andrade "está sempre presente embora nuncaapareça" (didascália inicial) e, mesmo ausente, condiciona a estrutura interna da peça e o com-portamento de todas as outras personagens.

A defesa da liberdade e da justiça, atitude de rebeldia, constitui a hybris (desafio) desta tra-gédia. Como consequência, a prisão dos conspiradores provocará o sofrimento (páthos) daspersonagens e despertará a compaixão do espectador.

O crescendo trágico, representado pelas diversas tentativas desesperadas para obter o perdão,acabará, em clímax, com a execução pública do general Gomes Freire e dos restantes presos.

Este desfecho trágico conduz a uma reflexão purificadora (cathársis) que os opressores pre-tendiam dissuasora, mas que despertou os oprimidos para os valores da liberdade e da justiça.

As personalidades (a História)

D. João VI, o Clemente (1767-1826) - filho de D. Maria I e de D. Pedro I1I, em 1785 contraiumatrimónio com D. Carlota joaquina, que tinha apenas 10 anos. Assumiu a governação em 1792por doença da rainha; em 1799 torna-se, de direito, regente do Reino; em 1816, ocupa o trono.Devido às Invasões Francesas, e à vista das tropas de junot, em 1807, refugiou-se com a Corte noBrasil, que vem a ser reconhecido como Reino em 1815. Regressou a Portugal devido à revoluçãoliberal do Porto, de 1820, assinando a Constituição em 1822. Nesse mesmo ano, em 7 de etem-bro, o seu filho D. Pedro viria a proclamar a independência do Brasil, nas margens do rio Ipi-ranga. Por causa da sublevação denominada Vila-Franca da (em 27 de Maio de 1823) e da Abri-lada (em Abril de 1824), vê-se obrigado a desterrar a rainha e a exilar o filho D. Miguel.

Morre em 10 de Março de 1826, em Lisboa.

D. Carlota Joaquina (1775-1830) - filha de Carlos IV de Espanha, nasceu em Aranjuez. em1775, e faleceu em Queluz, em 1830. Casada com o rei de Portugal D. João VI, torna- e rainhade Portugal. Mãe do futuro rei D. Miguel, recusa-se a jurar a Constituição de 1822.

Rei D. Miguel (1802-1866) - filho de D. João VI e irmão de D. Pedro IV O Infante D. Miguelnasceu em Queluz a 26 de Outubro de 1802 e morreu a 14 de Novembro de 1866. Foi o trigé-simo rei de Portugal, mas o seu reinado foi efémero e atribulado. D. Miguel foi cognominado oUsurpado r, por ter aceite a proposta do seu irmão D. Pedro IV de governar o País de acordocom as leis liberais, mas, vendo-se em Lisboa, rapidamente esqueceu a promessa e decidiu tor-nar-se rei absolutista. Esta atitude veio a causar a guerra civil. Já em Abril de 182 desenca-deara uma sublevação militar que ficou conhecida por Abrilada. Visava a salvação do reino dospossíveis perigos do liberalismo e pretendia reforçar o Absolutismo. O rei D. João \1, com oapoio do corpo diplomático, desautorizou D. Miguel, retirando-lhe o cargo de comandante doexército e obrigando-o a escolher o exílio.

Gomes Freire de Andrade (1757-1817) - General português, nascido em 1757 em Viena deÁustria. Seguiu a vida militar depois de ter vindo para Portugal aos 24 anos. Combateu emArgel (1784), na Rússia (1788), na Guerra das Laranjas (1801) e na Guerra Peninsular só dei-xando a carreira das armas após a derrota de Napoleão em 1814, altura em que voltou a Portu-gal e foi preso, acusado de ter participado na terceira invasão francesa; foi reabilitado dessaacusação, mas obrigado a residência fixa em Lisboa.

Ligado aos ideais progressistas e membro da Maçonaria (grão-mestre a partir de 1816) foiacusado de participar na conspiração de 1817, que punha em causa a ausência da corte deD. João VI no Brasil, a presença militar inglesa no país e a grave situação económica que entãose vivia. A conjura foi descoberta e reprimida com muita severidade. Os conspiradores acusa-dos de traição à pátria, foram queimados publicamente e Lisboa foi convidada a assistir.

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Sequência 3 Felizmente Há Luar!, de luís de Sttau Monteiro

o general Gomes Freire de Andrade, o cabecilha, foi enforcado, no forte de S. julião da Barra, edepois queimado. Mas o fermento da revolução estava lançado e iria dar fruto no dia 24 deAgosto de 1820, com a revolução liberal..

Conselho de Regência - Dias antes de partir para o Brasil, devido às Invasões Francesas, opríncipe regente D, João (futuro rei D. João VI) nomeara um Conselho de Regência, paragovernar Portugal na sua ausência. Dissolvido em Fevereiro de 1808, o Conselho de Regênciafoi restabelecido em Setembro. Para além do marechal Beresford (responsável pela reorganiza-ção do exército), faziam parte deste Conselho de Regência D. Miguel Pereira Forjaz (represen-tante da nobreza) e o Principal Sousa (representante do clero).

William Beresford (1768-1854) - General inglês, severo e disciplinador, enviado pela Grã--Bretanha para reorganizar o exército português (após a primeira invasão francesa), prepa-rando-o para resistir às tropas napoleónicas. Fora governador e comandante-chefe, durante seismeses, na Madeira, para evitar a ocupação da ilha pelos franceses.

A 7 de Março de 1809, foi nomeado generalíssimo do exército português e foi consolidandoe aumentando os seus poderes. Rejeitava as novas ideias liberais, imaginava conspirações ereprimia-as severamente; para além disso, enquanto submetia o país a uma forte organizaçãomilitar, ia colocando os oficiais britânicos nos mais altos postos, preterindo os oficiais portu-gueses; criou, pois, muitos inimigos.

Em 1817, após rumores de uma conspiração que pretendia o regresso do rei e que se mani-festava contrária à presença inglesa, mandou matar os conspiradores (entre eles o generalGomes Freire de Andrade).

Em 1820, deslocou-se, pela segunda vez, ao Brasil para pedir mais poder a D. João VI; aoregressar, como marechal-general do exército português, já a revolução liberal (24 de Agostode 1820) estava nas ruas e foi obrigado a regressar directamente a Inglaterra.

D. Miguel Pereira Forjaz (1769-1827) - entrou para o exército em 1785. Promovido a alferesem 1787, foi sucessivamente capitão, major e capitão-general. Apoiou Beresford na reorganiza-ção do exército português, embora assumindo posições cada vez mais críticas sobre a influên-cia do general britânico.

Com a revolução de 1820, abandonou o seu lugar na regência, mas recebeu o título deConde da Feira.

Representante da nobreza na regência, assume o papel principal na acusação do generalGomes Freire pois receia que o prestígio, inteligência e capacidade deste lhe retirem a projec-ção a que está habituado e coloquem em causa o seu lugar na regência.

Principal Sousa - D. José António de Meneses e Sousa Coutinho era irmão do Ministro do Rei,D. Rodrigo de Sousa Coutinho, primeiro-conde de Unhares, e do conde do Funchal, Domin-gos de Sousa Coutinho, embaixador em Londres, que negociou a ajuda inglesa contra os inva-sores franceses.

Em Felizmente Há Luar!, de Sttau Monteiro, é ao primeiro destes irmãos que se refere,quando afirma: "Agora me lembro de que há anos, em Campo d'Ourique, Gomes Freire preju-dicou muito a meu irmão Rodrigo" (Acto 1).

Durante a ausência do Rei D. João VI, no Brasil, fez parte da Regência do Reino até ao pro-nunciamento de 24 de Agosto de 1820.

Representante do clero na regência com D. Miguel Forjaz e com o general Beresford, o Prin-cipal Sousa reconhece que Portugal necessitava do regresso do rei, como o demonstra em cartade 1 de Junho de 1817, quando diz "só a Real Presença dará a felicidade a este povo e poderáregenerar esta Nação que não aspira por outra fortuna que a de ver Vossa Majestade".

Felizmente Há Luar!

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As personagens (a ficção)

Gomes Freire - figura carismática, que preocupa os poderosos, acredita na justiça e luta pelaliberdade e arrasta os pequenos. Considerado um "estrangeirado", revela-se simpatizante dasnovas ideias liberais, tornando-se para os governantes um elemento subversivo e perigoso.O povo elege-o como símbolo da luta pela liberdade, o que é incómodo para os "reis do Ros-sio". Daí a decisão dos governantes pelo enforcamento, seguido da queima, para servir deexemplo a todos aqueles que tentem afrontar o poder político.

D. Miguel Forjaz - primo de Gomes Freire, prepotente, assustado com transformações quenão deseja, corrompido pelo poder, vingativo, frio, desumano, calculista; nas palavras de SousaFalcão, D. Miguel "é a personificação da mediocridade consciente e rancorosa".

Principal Sousa - fanático, corrompido pelo poder eclesiástico, odeia os Franceses porque"transformaram esta terra de gente pobre mas feliz num antro de revoltados!"; afirma, preocu-pado, que "Por essas aldeias fora é cada vez menor o número dos que frequentam as igrejas ecada vez maior o número dos que só pensam em aprender a ler ... ".

Beresford - poderoso, mercenário, interesseiro, calculista, trocista, sarcástico; a sua opiniãosobre Portugal fica claramente expressa na afirmação "Neste país de intrigas e de traições só seentendem uns com os outros para destruir um inimigo comum e eu posso transformar-menesse inimigo comum, se não tiver cuidado."

Vicente - demagogo, sarcástico, falso humanitarista, movido pelo interesse da recompensamaterial, adulador no momento oportuno, hipócrita, despreza a sua origem e o seu passadocapaz de recorrer à traição para ser promovido socialmente ...

Autocaracteriza-se quando diz:

Só acredito em duas coisas: no dinheiro e na força. O general não tem uma nem outra e (...) Os degraus davida são logo esquecidos por quem sobe a escada... Pobre de quem lembre ao poderoso a sua origem Do altodo poder, tudo o que ficou para trás é vago e nebuloso. (...) Nunca se fala de traição a quem sobe na vida .

Manuel- "O mais consciente dos populares", andrajosamente vestido; assume algum protago-nismo por dar início aos dois actos, com as mesmas indicações cénicas: a mesma posição emcena, como única personagem intensamente iluminada, os mesmos movimentos e a mesmafrase: "Que posso eu fazer? Sim, que posso eu fazer?"

Denuncia a opressão a que o povo tem estado sujeito (as Invasões Francesas; a protecção"britânica, após a retirada do rei D. João VI para o Brasil) e a incapacidade de conseguir a liber-tação e de sair da miséria em que se encontra:

Vê-se a gente livre dos Franceses e zésl, cai na mão dos Ingleses!

E agora? Se acabamos com os Ingleses, ficamos na mão dos reis do Rossio...

Entre os três o diabo que escolha ... (...)

E enquanto eles andam para trás e para a frente, para a esquerda e para a direita, nós não passamos domesmo sítio!

Sousa Falcão - "o inseparável amigo", sofre junto de Matilde perante a condenação do general;assume as mesmas ideias de justiça e de liberdade, mas não teve a coragem do general. ..

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Sequência 3 Felizmente Há Luar!, de Luís de Sttau Monteiro

Matilde de Melo - "A companheira de todas as horas", corajosa:

- exprime romanticamente o amor; reage violentamente perante o ódio e as injustiças;afirma o valor da sinceridade; desmascara o interesse, a hipocrisia:

Ensina-se-Ihes que sejam valentes para um dia virem a ser julgados por covardes! Ensina-se-Ihes quesejam justos para viverem num mundo em que reina a injustiça! Ensine-se-lhes que sejam leais, para que alealdade, um dia, os leve à forca!;

- ora desanima, ora se enfurece, ora se revolta, mas luta sempre:Enquanto houver vida... força ... voz para grítar. .. Baterei a todas as portas, clamarei, por toda a parte,

mendigarei, se for preciso, a vida daquele a quem devo a minha!

Opiniões a propósito das novas ideias liberais que começavam a ganhar força

1. Dos elementos do Conselho de Regência

D. Miguel Pereira Forjaz, representante da nobreza na regência, afirma:

Trama-se uma conjura destinada a atacar a própria estrutura da sociedade em que vivemos. Se não tomarmosas necessárias precauções, dentro em breve teremos a desordem nas ruas e a anarquia nas almas! (...)

Não lhes nego, Excelências, que não sou um homem do meu tempo.Um mundo em que não se distinga, a olho nu, um prelado dum nobre, ou um nobre dum popular, não é mundo

em que eu deseje viver. Não concebo a vida, Excelências, desde que o taberneira da esquina possa discutir a opi-nião d'ei-tei. nem me seria possível viver desde que a minha opinião valesse tanto como a de um arruaceiro.

o Principal Sousa, representante do clero no Governo, admite:

Senhor Governador, tenho medo. Há dois dias que quase não durmo e mesmo, quando passo pelo sono, perse-guem-me imagens terríveis: imagino-me réu perante um tribunal que me não respeita.

Dedos imundos tocam-me as vestes. Sonhei já três vezes que estava no Campo de Sant'Ana, subindo aocadafalso, enquanto à minha volta os gritos do povo me não deixavam, sequer, ouvir a sentença ...

o marechal Beresford teme essencialmente perder os privilégios de que goza e realça a gra-vidade do momento, impelindo os outros à acção:

o que interessa é saber qual é a melhor forma de sufocar a revolta que se prepara.Tragam-nos a proclamação ... obtenham-na seja como for...Não percam tempo, Senhores. O momento é grave e a causa é justa. Vão.Os chefes?! Quem são os chefes?;Já que temos ocasião de crucificar alguém, que escolhamos a quem valha a pena crucificar ...

2. Do Povo

A classe explorada depositava nos movimentos liberais a grande esperança de alteração dasituação em que se encontrava:

- Manuel, a propósito do general Gomes Freire, formula um desejo: "Se ele quisesse ... lO;

- Manuel ao "deixar cair os braços num gesto de desânimo", após a prisão do general, afirma:

E ficamos pior do que estávamos ... Se tínhamos fome e esperança, ficamos só com fome ... Se, durante unstempos, acreditámos em nós próprios, voltamos a não acreditar em nada ...

Felizmente Há Luar!

Na altura da execução, as últimas palavras de Matilde, "companheira de todas as horas" dogeneral Gomes Freire, são de coragem e de estímulo para que o povo se revolte contra a tiraniados governantes:

Olhem bem! Limpem os olhos no clarão daquela fogueira e abram as almas ao que ela nos ensina!Até a noite foi feita para que a vísseis até ao fim ...(Pausa)Felizmente - felizmente há luar!

Os símbolos

1. A saia verde

- A felicidade - a prenda comprada em Paris (terra da liberdade), no Inverno. com odinheiro da venda de duas medalhas;

- Ao escolher aquela saia para esperar o companheiro após a morte, destaca a "alezria" doreencontro ("agora que se acabaram as batalhas, vem apertar-me contra o peito").

Convém recordar, a propósito, que a saia é uma peça eminentemente feminina e que o verdeestá habitualmente conotado com tranquilidade e esperança, traduzindo uma sensação repou-sante, envolvente e refrescante. O Dicionário de Símbolosl11 diz-nos que:

Entre o azul e o amarelo, o verde resulta das suas interferências cromáticas. as entra com overmelho no jogo simbólico de alternâncias. A rosa floresce entre folhas verdes. Equidisr.ame doazul-celeste e do vermelho infernal, ambos absolutos e inacessíveis, o verde, valor médio, m diadorentre o quente e ofrio, o alto e o baixo, é uma cor tranquilizadora, refrescante, humana..

2. O título/a luzia noite/o luar

O título surge por duas vezes ao longo da peça, inserido nas falas das personaue

1. D. Miguel salienta o efeito dissuasor que aquelas execuções poderão exercer bre [ osos que discutem as ordens dos governadores:

Lisboa há-de cheirar toda a noite a carne assada, Excelência, e o cheiro há-de-Ihes tice: 'riadurante muitos anos ... Sempre que pensarem em discutir as nossas ordens, lembrar-se-ão do _zsi

Logo de seguida, afirma:

É verdade que a execução se prolongará pela noite, mas felizmente há luar ...

Esta primeira referência ao título da peça, colocada na fala do Governador está relacionadacom o desejo expresso de garantir a eficácia desta execução pública: a noite é mais tadora.as chamas seriam visíveis de vários pontos da cidade e o luar atrairia as pessoas à rua paraassistirem ao castigo, que se pretendia exemplar. Historicamente, esta frase foi mesmo profe-rida por D. Miguel Forjaz, mas numa carta ao intendente da Polícia.

2. Na altura da execução, as últimas palavras de Matilde, "companheira de todas as horas-do general Gomes Freire, são de coragem e de estímulo para que o povo se revolte contraa tirania dos governantes:

Olhem bem! Limpem os olhos no clarão daquela fogueira e abram as almas ao que ela nos ensina!Até a noite foi feita para que a vísseis até ao fim ...(Pausa)Felizmente - felizmente há luar!

111 Chevalier e Gheerbrant (1982). Dictionnaire des Symboles, Robert Laffont / Jupiter, Paris.

CAESP12 -07

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Sequência 3 Felizmente Há lustl. de Luís de Sttau Monteiro

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A luz, simbolicamente, está associada à vida, à saúde, à felicidade, enquanto a noite e as tre-vas se associam ao mal, à infelicidade, ao castigo, à perdição e à morte. Na linguagem e nosritos maçónicos, após ter participado de olhos vendados em alguns rituais, após prestar jura-mento, o neófito poderia "receber a luz", o que significava ser admitido ...

A Lua, simbolicamente, por estar privada de luz própria, na dependência do Sol, e poratravessar fases, mudando de forma, representa a dependência, a periodicidade e a renovação.A Lua é, pois, símbolo de transformação e de crescimento.

A Lua é ainda considerada como "o primeiro morto?», dado que durante três noites em cadaciclo lunar ela está desaparecida, como morta; depois reaparece e vai crescendo em tamanho eem luz ... Ao acreditar na vida para além da morte, o homem vê na Lua o símbolo desta passa-gem da vida para a morte e da morte para a vida ...

Por isso, na peça, nestes dois momentos em que se faz referência directa ao título, a expres-são "felizmente há luar" pode indiciar duas perspectivas de análise e de posicionamento daspersonagens:

1. As forças das trevas, do obscurantismo, do anti-humanismo utilizam, paradoxalmente, olume (fonte de luz e de calor) para "purificar a sociedade" (a Inquisição considerava afogueira como fonte e forma de purificação);

2. Se a luz é redentora, o luar poderá simbolizar a caminhada da sociedade em direcção àredenção, em busca da luz e da liberdade ...

Assim, dado que o luar permite que as pessoas possam sair de suas casas (ajudando a vencero medo e a insegurança na noite da cidade), quanto maior for a assistência, isso significará:

- para uns, que mais pessoas ficarão "avisadas" e o efeito dissuasor será maior. ..

- para outros, que mais pessoas poderão um dia seguir essa luz e lutar pela liberdade ...

3. A fogueira/o lume

Após a prisão do general, num diálogo de "tom profético" e com a "voz triste" (segundo adidascalia), o Antigo Soldado, acabrunhado, afirma:

Prenderam o general ... Para nós, a noite ainda ficou mais escura ...

A resposta ambígua do 1.0 Popular pode assumir também um carácter de profecia e deesperança:

É por pouco tempo, amigo. Espera pelo clarão das fogueiras ...

Matilde, ao afirmar que aquela fogueira de S. Julião da Barra ainda havia de "incendiar estaterra!" mostra que a chama se mantém viva e que a liberdade há-de chegar ...

4. A moeda de cinco réis

Símbolo do desrespeito (dos mais poderosos em relação aos mais desfavorecidos) apresenta-secomo represália, quase vingança, quando Manuel manda Rita dar a moeda a Matilde.

5. Os tambores

Símbolo da repressão, provocam o medo e prenunciam a ambiência trágica da acção.

['I Chevalier e Gheerbrant (19821. Dictionnaire des Symbo/es, Robert Laffont / Jupiter. Paris.

------------------------------------------_"\,

Linguagem• natural, viva e maleável, utilizada como marca caracterizadora e individualizadora de alzu-

mas das personagens;

• uso de frases em latim, com conotação irónica, por aparecerem aquando da condenação eda execução;

• frases incompletas por hesitação ou interrupção;

• marcas características do discurso oral;

• recurso frequente à ironia e ao sarcasmo.

A didascália

As didascálias, ou indicações cénicas, constituem, no seu conjunto, um texto secundárioque serve de suporte do texto dramático. Elas servem não apenas para definir a po ição. movi-mentação ou gestos das personagens em cena, mas também para explicitar os entimentos. asemoções ou as atitudes que devem transparecer no seu comportamento e para marcar urnaalteração no tom de voz da personagem.

A peça é rica de marcações com referências concretas (sarcasmo, ironia, escárnio. indife-rença, galhofa, adulação, desprezo, irritação - normalmente relacionadas com o opr res:tristeza, esperança, medo, desânimo - relacionadas com as personagens oprimidas).

As marcações são abundantes: tons de voz, movimentos, posições, cenários zestos. estuá-rio, sons (o som dos tambores, o silêncio, a voz que fala antes de entrar no palco. um - o quetoca a rebate, o murmúrio de vozes, o toque de uma campainha, o murmúrio da multidão) eefeitos de luz (o contraste entre escuridão e luz; os dois actos terminam em sombra. de acordo,aliás, com o desenlace trágico).

De realçar que a peça termina ao som de fanfarra (Ouve-se ao longe uma fanfarronada ue vainum crescendo de intensidade até cair o pano.) em oposição à luz (Desaparece o c rão dafogueira.); no entanto, a escuridão não é total, porque "felizmente há luar".

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Síntese,

FELIZMENTE HA LUAR!• Felizmente Há Luar! é um drama narrativo, de carácter social, dentro dos princípios do teatro

épico; na linha de Brecht, analisa criticamente a sociedade, mostrando a realidade com o objectivode levar o espectador a tomar uma posição.

• Exprime a revolta contra o poder despótico e mostra o direito e o dever da mulher e do homemde transformarem a sociedade.

• A obra Felizmente Há Luar! é entendida como uma alegoria política. Sttau Monteiro remete o Iei-tor/espectador para os problemas sociais e políticos de Portugal não apenas do início do séculoXIX e durante o regime ditatorial do século XX, mas para todos os regimes despótico e situaçõ -repressivas.

• Existe um paralelismo entre a acção presente na peça (a trágica apoteose do movimento liberaloitocentista) e os contextos ideológico e sociológico do país (durante a repressão salazarísta).

• Há um mergulhar no passado onde se revisitam os acontecimentos históricos para levar oleitor/espectador a interpretar o presente e a reflectir sobre a necessidade de lutar contra qualqueropressão.

• Graças à distanciação histórica, denuncia um ambiente político repressivo dos inícios do sé oXIX, para provocar a reflexão sobre um tempo de opressão e de censura que se repete no século ~

• A figura central é o general Gomes Freire de Andrade, que, mesmo ausente, condiciona a estruturainterna da peça e o comportamento de todas as outras personagens.

• O monólogo inicial de Manuel, "o mais consciente dos populares", coloca-nos no contexto hísiõ-rico da obra: invasões napoleónicas e protecção de Inglaterra; situação de repressão do po,o pelo"senhores do Rossio".

• Felizmente Há Luar! é uma obra intemporal que nos remete para a luta do ser humano contra atirania, a injustiça e todas as formas de perseguição.

• Matilde de Melo, "a companheira de todas as horas", possuidora de uma densidade p icolõ icanotável, aparece na obra não apenas como sonhadora, que sabe amar de verdade, mas é a persona-gem que, corajosamente, desmascara a hipocrisia e reage contra o ódio e as injustiças. Ela acreditana transformação da situação de opressão em que o povo vive.

• Felizmente Há Luar! significa: para os opressores (nas palavras de D. Miguel), o efeito dissuasordas execuções; para os oprimidos (na fala de Matilde), a coragem e o estímulo para a revo la

popular contra a tirania.

• Diversos símbolos favorecem a compreensão da situação vivida e da esperança de alcançar a liber-dade: a saia verde, a luz, a noite, a lua, a fogueira, o lume, a moeda de cinco réis, os tambores ...

• Diferentes elementos cénicos contribuem para o aumento da tensão dramática:

- a iluminação (o jogo de luzes) - evidencia personagens, situações, reacções ...

- os sons de tambores - prenunciam o ambiente de tragédia;

- os gestos e movimentações - sublinham emoções, atitudes ...

• Felizmente Há Luar! narra a luta pela liberdade no início do século XIX e serve de pretexto parauma reflexão sobre a ditadura em Portugal no século XX. Todos os regimes opressivos, e concreta-mente o regime salazarista, entre o início dos anos trinta e 1974, foram denunciados e contestadospelos artistas. A literatura, a música e outras artes foram o "veículo de protesto" contra a censura.contra a miséria, contra "uma realidade iníqua que urgia denunciar e resgatar", como dizia Fer-nando Namora, em Sentados na Relva.

• As canções de resistência surgem, em geral, na vanguarda dos movimentos de contestação eexprimem o sentimento de um povo que busca a liberdade. A música e a literatura, em Portuzal eno mundo, são, com frequência, artes interventoras e de protesto, que provocam a consciênciapara aceitar a mudança.

II

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I

J

Glossárioo conflito que nasce da hybris desenvolve-seatravés da peripécia (súbita alteração dos acon-tecimentos que modifica a acção e conduz aodesfecho), do reconhecimento (agnórise) impre-visto que provoca a catástrofe. O desencadear daacção dá-nos conta do sofrimento (páthos) quese intensifica (clímax) e conduz ao desenlace. Osofrimento age sobre os espectadores, atravésdos sentimentos de terror e de piedade, parapurificar as paixões (catarse).Na obra Felizmente Há Luar!, de Sttau Monteiro,a defesa da liberdade e da justiça, atitude derebeldia, constitui a hybris (desafio) desta tragé-dia. Como consequência, a prisão dos conspira-dores provocará o sofrimento (páthos) das perso-nagens e despertará a compaixão do espectador.O crescendo trágico, representado pelas diversastentativas desesperadas para obter o perdão,acabará, em clímax, com a execução pública dogeneral Gomes Freíre e áos restantes presos.Este desfecho trágico conduz a uma reflexãopurificadora (cathársis) que os opressores pre-tendiam dissuasora, mas que despertou os opri-midos para os valores da liberdade e da justiça.

Censura instrumento usado por regimes totalitáriospara impedir que a imprensa e outros meios dedifusão de mensagens, incluindo as criativas,como as da arte (pintura, escultura, música, tea-tro, cinema ... ), possam pôr em causa a ideolo-gia vigente e fomentar a consciencialização paraqualquer revolta contra o regime.A censura fez parte integrante da nossa História,imperou em muitos períodos, constituiu umaarma de defesa da Igreja e do Estado.A luta contra a censura foi feita através daImprensa escrita, em suplementos literários oujuvenis, nas tertúlias, na imprensa clandestina ...mas só a revolução de Abril de 1974 pôs fim àcensura em Portugal.

Conselho de Regência a nova ordem política trazidapela Revolução Francesa de 1789 e as invasõesnapoleónicas abalam o Ocidente da Europa. Sóa Inglaterra resiste ao imperador NapoleãoBonaparte, arrastando Portugal para uma posi-ção de indecisão entre este aliado e a França.Por isso, em 29 de Novembro de 1807, com astropas de Junot às portas de Lisboa, D. João VI,com a família real portuguesa e um imensoséquito de fidalgos, altos funcionários e milita-res, embarca apressadamente para o Brasil paraevitar a capitulação.Dias antes de partir para o Brasil, o PríncipeRegente D. João nomeara um Conselho de Regên-cia, para governar Portugal na sua ausência.

Didascália (do grego didashália = instrução, ensina-mento) as didascálias eram, na Antiga Grécia, asinstruções que os poetas dramáticos davam aosactores para a representação cénica; por vezes,designavam as próprias representações teatraisou festivais trágicos. Actualmente, por extensão,incluem diversas informações: a listagem inicialde personagens; a indicação do nome da perso-nagem antes de cada fala; anotações sobre aestrutura externa da obra; referências aos adere-ços que compõem o espaço cénico; informaçõessobre tom de voz, gestos, atitudes; o momentoda entrada em cena e o percurso a realizar; indi-cações sobre o guarda-roupa; (oo.).

Hybris termo grego que significa o desafio, o crimedo excesso e do ultraje. Traduz-se num compor-tamento de provocação aos deuses e à ordemestabelecida.A hybris revela um sentimento de arrogância, desoberba e de orgulho, que leva os heróis da tragé-dia à insubmissão e à violaçâo das leis dos deu-ses, da pólis (cidade), da família ou da natureza.

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Inquisição também conhecida por Tribunal do SantoOfício, foi criada pelo Papa Gregório IX, noséculo XIII, para combater as heresias religiosasque apareciam pela Europa. Foi confiada aosjesuítas e aos dominicanos, mas na dependênciada Santa Sé. Este tribunal instalou-se, no séculoXIII, em Espanha, na Alemanha, em França e,no século XVI, no reinado de D. João III, emPortugal.Com frequência, serviu o poder instituído,embora a sua acção fosse orientada para o com-bate às várias heresias e desvios religiosos,incluindo a censura aos livros, às práticas deadivinhação e feitiçaria, à bigamia. Com odecorrer do tempo passou a ter influência emtodos os sectores da vida social, política e cultu-ral, e desde que houvesse uma denúncia o acu-sado estava sujeito a toda a sorte de torturas físi-cas e mentais, incluindo a perda de bens e amorte. Os judeus e os mouros foram o principalalvo dos inquisidores, mas outras pessoas sofre-ram igualmente a perseguição.A força do Tribunal do Santo Ofício era enorme,mas acabou por criar conflitos entre os reis e osjesuítas, até que em 1821 foi extinto.

Jacobinismo diz respeito às doutrinas e ideias dosjacobinos (do francês jacobin) da RevoluçãoFrancesa e dos democratas radicais, simpatizan-tes dos seus princípios.

Glossário

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Os termos jacobino e jacobinismo adquirem, entre-tanto, uma carga pejorativa quando surgem naacepção de republicanismo revolucionário levado aoextremo. Foi isso que sucedeu com a política deterror, cujas principais figuras foram Robespierre,Georges Danton, Saint-just e Georges Couthon.

Jacobino termo que surge durante a RevoluçãoFrancesa atribuído aos membros de um grupopolítico republicano com sede no antigo con-vento de jacobinos (nome dado a religiososdominicanos de um convento da Rue de Saint--lacques, em Paris, que em latim se diz Sanctus[acobus). Mais tarde, e por extensão, passa a sig-nificar membro de um partido dito democrático,frequentemente inimigo da religião.Os jacobinos politicamente representavam ossans-culottes (os pobres, assim chamados pornão usarem, como os nobres, os calções curtoscom meias), e pequena burguesia. Depois deaceitarem a monarquia constitucional e após afuga do rei, tornaram-se ardorosos defensoresde uma república revolucionária.

Obscurantismo significa estado de quem se encontrana escuridão, de quem vive na ignorãncia. É, anível social, político e cultural, o sistema quenega a instrução e o conhecimento às pessoascom a consequente ausência de progresso inte-lectual ou material.

Os estados totalitários e as grandes religiões naluta pelo poder recorreram, muitas vezes, a prá-ticas obscurantistas, sacrificando os povos e oprogresso civilizacional. São muitos os exem-plos que a História nos oferece e que levaram aperseguições e outros crimes para preservar oestado de ignorância e facilitar o poder das insti-tuições. O fanatismo religioso ao longo dos tem-pos, a Inquisição, as guerras étnicas, diversasditaduras e muitas outras práticas totalitáriassão exemplo do obscurantismo.

Real (moeda) e réis (moeda) (no plural réis ou reais) éuma antiga moeda nominal ou de conta que foiunidade do sistema monetário em Portuzaldesde o início da segunda Dinastia até à implan-tação da República (em 1910), sendo entãosubstituído pelo escudo e este, a partir do ano2002, pelo euro (= 200,482 escudo ). O termoréis continuou a ser utilizado quando se desig-nava, por exemplo, "dois contos de réís" em vezde dois mil escudos (2000$00) cerca de 10euros (lO €).O real, desde a colonização, passou também. aser moeda do Brasil, embora tenha alternadocom cruzeiros e cruzados.Era a seguinte a leitura do real: 001 - um real$500 - quinhentos réis; 2$000 - dois mil réis:20$000 - vinte mil réis; 2000 000 - dois contode réis.