Fichamento - Verdade Tropical

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Fichamento “Verdade Tropical” – Caetano Veloso O que se pretende contar e interpretar neste livro é a aventura de um impulso criativo surgido no seio da musica popular brasileira, na segunda metade dos anos 60, em que os protagonistas - entre eles o próprio narrador - queriam poder mover-se além da vinculação automática com as esquerdas, dando conta ao mesmo tempo da revolta visceral contra a abissal desigualdade que fende um povo ainda assim reconhecivelmente uno e encantador, e da fatal e alegre participação na realidade cultural urbana universalizante e internacional, tudo isso valendo por um desvelamento do mistério da ilha Brasil. Desse modo, um jovem brasileiro talentoso que amasse o rock e quisesse desenvolver um estilo próprio dentro do gênero, nos fins dos anos 50, enfrentava não apenas a ultramelódica tradição musical brasileira de base luso-africana e veleidades italianas - e a atmosfera católica da nossa imaginação -, mas também a dificuldade de decidirse por se afirmar socialmente como um pária ou como um privilegiado. Raul soava perfeitamente americano. Quando voltava para o português, ele parecia fazer questão de exagerar nas marcas de baianidade: os ós e és breves espalhafatosamente abertos, a música da frase quase caricaturalmente regional, a gíria antiquada da Salvador de nossa adolescência. Essa combinação nós reconhecíamos no seu trabalho: em seus discos e em suas apresentações ao vivo, tudo o que não era americano era baiano. E baiano no que a Bahia tem de distintivo, não de integrador, no que a Bahia tem de à idéia de um Brasil homogêneo. Assim, tudo o que, na Bahia, é sotaque, tudo o que nela é nordestino, tudo o que faz dela algo restrito a uma turma, é escolhido; enquanto tudo o que ali é língua geral, tudo o que, na Bahia. é carioca, tudo o que possa se chamar de "brasileiro", é rechaçado. Nós não podíamos deixar de reencontrar aí traços de alguns sentimentos que se encontravam na raiz do tropicalismo.

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Fichamento Verdade Tropical Caetano Veloso

O que se pretende contar e interpretar neste livro a aventura de um impulso criativo surgido no seio da musica popular brasileira, na segunda metade dos anos 60, em que os protagonistas - entre eles o prprio narrador - queriam poder mover-se alm da vinculao automtica com as esquerdas, dando conta ao mesmo tempo da revolta visceral contra a abissal desigualdade que fende um povo ainda assim reconhecivelmente uno e encantador, e da fatal e alegre participao na realidade cultural urbana universalizante e internacional, tudo isso valendo por um desvelamento do mistrio da ilha Brasil.

Desse modo, um jovem brasileiro talentoso que amasse o rock e quisesse desenvolver um estilo prprio dentro do gnero, nos fins dos anos 50, enfrentava no apenas a ultrameldica tradio musical brasileira de base luso-africana e veleidades italianas - e a atmosfera catlica da nossa imaginao -, mas tambm a dificuldade de decidirse por se afirmar socialmente como um pria ou como um privilegiado.

Raul soava perfeitamente americano. Quando voltava para o portugus, ele parecia fazer questo de exagerar nas marcas de baianidade: os s e s breves espalhafatosamente abertos, a msica da frase quase caricaturalmente regional, a gria antiquada da Salvador de nossa adolescncia. Essa combinao ns reconhecamos no seu trabalho: em seus discos e em suas apresentaes ao vivo, tudo o que no era americano era baiano. E baiano no que a Bahia tem de distintivo, no de integrador, no que a Bahia tem de idia de um Brasil homogneo. Assim, tudo o que, na Bahia, sotaque, tudo o que nela nordestino, tudo o que faz dela algo restrito a uma turma, escolhido; enquanto tudo o que ali lngua geral, tudo o que, na Bahia. carioca, tudo o que possa se chamar de "brasileiro", rechaado. Ns no podamos deixar de reencontrar a traos de alguns sentimentos que se encontravam na raiz do tropicalismo.

De fato, ns tnhamos percebido que, para fazer o que acreditvamos que era necessrio, tnhamos de nos livrar do Brasil tal como o conhecamos. Tnhamos de destruir o Brasil dos nacionalistas, tnhamos que ir mais fundo e pulverizar a imagem do Brasil carioca (Celso Furtado em Formao econmica do Brasil: "A idia de unidade nacional s aparece quando a capital se transfere para o Rio de Janeiro"), o Brasil com seu jeitinho e seu Carnaval (o novo Carnaval da Bahia, eletrificado, rockificado, cubanizado, jamaicanizado, popificado, dominado pelo pssimo gosto da classe mdia provinciana, resultado desse assassinato do Carnaval brasileiro, assassinato cujos autores intelectuais fomos ns: mas tambma incomparvel vitalidade desse novo Carnaval - em grande parte devida a essa mesma classe mdia provinciana - e, sobretudo, a energia propriamente criativa que se v em atividade na Banda Olodum, no desfile do ll Aiy, na Timbalada ou na figura nica de Carinhos Brown, que rene em si os elementos de reafricanizao e neopopizao da cidade, se devem ao mesmo gesto nosso, o que nos pode dar um alento e nos permite pensar, nos momentos bons, que h esperana, pois a matana se revelou regeneradora), acabar de vez com a imagem do Brasil nacionalpopular e com a imagem do Brasil garota da Zona Sul, do Brasil mulata de mai de paet, meias brilhantes e salto alto. No era apenas uma revolta contra a ditadura militar. Decerta forma, sentamos que o pais ter chegado a desrespeitar todos os direitos humanos, sendo um fato consumado, poderia mesmo ser tomado como um sinal de que estvamos andando para algum lugar, botando algo de terrvel para fora, o que forava a esquerda a mudar suas perspectivas. Ns no estvamos de todo inconscientes de que, paralelamente ao fato de que colecionvamos imagens violentasnas letras das nossas canes, sons desagradveis e rudos nos nossos arranjos, e atitudes agressivas em relao vida cultural brasileiranas nossas aparies e declaraes pblicas, desenvolvia-se o embrio da guerrilha urbana, com a qual sentamos, de longe, uma espcie de identificao potica.

Alguns meses depois da "revoluo" - como era chamado oficialmente o golpe de Estado que tinha instaurado o governo militar-, o musical Opinio reunia um compositor de morro (Z Kti), um compositor rural do Nordeste (Joo do Vale) e uma cantora de bossa nova da Zona Sul carioca (Nara Leo) num pequeno teatro de arena de Copacabana, combinando o charme dos shows de bolso de bossa nova em casa noturna com a excitao do teatro de participao poltica. O espetculo ao mesmo tempo coroava a tendncia de alguns bossanovistas (Nara Leo entre eles) de promover a aproximao entre a msica moderna brasileira de boa qualidade e a arte engajada - O movimento teve como precursor e incentivador O prprio Vincius de Moraes, o primeiroe principal letrista da bossa nova, e apresentou, por vezes, excelentes resultados, tendo o Brasil, por causa disso, criado talvez a forma mais graciosa de cano de protesto do mundo -, e inaugurava o show de msica teatralizado, entremeado de textos escolhidos na literatura brasileira e mundial ou escritos especialmente para a ocasio, que veio a desenvolver-se como uma das formas de expresso mais influentes na subseqente historia da musica popular brasileira.

Vivi essa cena - e as cenas de reao indignada que ela suscitou em rodas de bar - como o ncleo de um grande acontecimento cujo nome breve que hoje lhe posso dar no me ocorreria com tanta facilidade ento (e por isso eu buscava mil maneiras de diz-lo para mim mesmo e para os outros): a morte do populismo. Sem dvida, os demagogos populistas eram suntuosamente ridicularizados no filme: ali eles eram vistos segurando crucifixos e bandeiras em carro aberto contra o cu do Aterro do Flamengo, exibindo suas manses de ostentoso mau gosto, participando das solenidades eclesisticas e carnavalescas que tocam o corao do populacho etc.; mas era a prpria f nas foras populares - e o prprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo - o que aqui era descartado como arma poltica ou valor tico em si. Essa hecatombe, eu estava preparado para enfrent-la. E excitado para examinar-lhe os fenmenos ntimos e antever-lhe as conseqncias. Nada do que veio a se chamar de "tropicalismo" teria tido lugar sem esse momento traumtico. O golpe no populismo de esquerda libertava a mente para enquadrar o Brasil de uma perspectiva ampla, permitindo miradas crticas de natureza antropolgica, mtica, mstica, formalista e moral com que nem se sonhava. Se a cena que indignou os comunistas me encantou pela coragem, foi porqueas imagens que, no filme, a precediam e sucediam, procuravam revelar como somos e perguntavam sobre nosso destino. Uma grande cruz na praia domina um grupo formado por demagogos polticos, bichas com fantasias de luxo do baile do Municipal e ndiosde Carnaval: experimenta-se a um tempo o grotesco e o arejado da situao dessa ilha sempre recmdescoberta e sempre oculta, o Brasil; em meio multido de um comcio, um velhinho samba de maneira graciosa e ridcula, lbrica e angelical, alegremente perdido: o povo brasileiro captado em seus paradoxos que no se sabe se so desesperantes ou sugestivos; decises polticas so discutidas num ptio cimentado em que as linhas negras de diviso entre as lajes ressaltam e desmentem as entradas e sadas das personagens; a cmera passeia por entre os grupos de quatro, cinco, seis inquietos agitadores, discordantes em suas tticas e seus movimentos corporais; tudo numa fotografia em preto e branco em que enormes espaos de luz so assombrados por dominadoras manchas negras. Era dramaturgia poltica distinta da usual reduo de tudo a uma caricatura esquemtica da idia de luta de classes. Sobretudo, era a retrica e a potica da vida brasileira do ps-64: um grito fundo de dor e revolta impotente, mas tambm um olhar atualizado, quase proftico, das possibilidades reais, para ns, de ser e sentir.

Eu no sabia que Gobineau tinha formulado a sarcstica definio "Le brsilien est un homme qui dsire passonnement habiter Paris" (O brasileiro um homem que deseja apaixonadamente morar em Paris) quando Z Agrippino detectou e incentivou uma tendncia antifrancesa na formao do gosto tropicalista. De fato, devia haver, entre os estmulos do movimento, uma reao, por assim dizer, natural ao antigo alinhamento com a cultura francesa. E essa reao era expresso de um impulso que vem se desenvolvendo com vagar e ansiedade no esprito dos brasileiros no sentido de desvelar ou construir seu valor prprio. Por outro lado, ela servia tambm a um desejo expresso pelos produtores eruditos - desejo que, sendo um desdobramento do modernismo, era uma marca da poca - de aproximar-se da cultura de massas, criticando-a ou identificando-se com ela, ou ainda criticando-se atravs dela. Gesto que teve sua contrapartida no surgimento de um experimentalismo de massas - que o poeta vanguardista Dcio Pignatari apelidou de "produssumo", unindo produo e consumo numa s palavra. Ora, numa reduo aceitvel, pode-se dizer que a cultura francesa confundia-se, para ns, com cultura erudita, qual quisemos ento contrapor a cultura americana, que chegava at ns principalmente como cultura de massas.

Mas, embora me sentisse dividido quanto ao que pensar ou mesmo sentir diante da descaracterizao de minha cidade - pois que, de um Lado, eu sentia saudade da unidade visual a que me acostumara, mas, de outro, eu prprio tinha o desejo das casas modernas taqueadas e at mesmo sonhava em morar num apartamento novo e retilneo que me livrasse do peso daqueles casares cobertos de limo em meio aos quais eu nascera e crescera (parecia-me que um apartamento de ar impessoal traria alegria e liberdade minha vida) -, eu me sentia, em questes para mim fundamentais, muito mais longe do pequeno-burgus do que os meus crticos: eles nunca discutiam temas como sexo e raa, elegncia e gosto, amor ou forma. Nesses itens o mundo era aceito tal e qual. Os homens eram substitudos pelos assalariados - e, como j disse, assalariado era, entre os mais pobres, raridade desejvel. Eu sinceramente no achava que os operrios da construo civil em Salvador, ou os poucos operrios das fbricas reconhecveis como tais, ou ainda os comparativamente muitos operrios da Petrobrs - tampouco as massas operrias vistas em filmes e fotografias - pudessem ou devessem decidir quanto ao futuro da minha vida. Portanto, quando o poeta de Terra em transe decretou a falncia da crena nas energias libertadoras do "povo", eu, na platia, vi, no o fim das possibilidades, mas o anncio de novas tarefas para mim.

O movimento que Gil tentava organizar era antes um gesto generoso para com a msica popular, e, pensando objetivamente, arriscado para nossas carreiras. No entanto, para mim a prpria idia de misso caracterizava o possvel movimento como necessrio - e isso trazia um certo ar de infalibilidadeao sucesso do empreendimento. E, se risco houvesse, era claro que devamos encar-lo, se quisssemos ser conhecidos pelo que de fato ramos. Mas j ramos conhecidos - e no era pelo que no ramos. Apenas, s podamos crescer numa direo que passasse pelo elenco detemas e problemas daquilo que veio a se chamar de tropicalismo. Eu encorajava a impacincia de Gil porque, no meu desejo fantasioso de fazer uma interveno drstica na MPB e depois me retirar, eu s podia ver essa ruptura que fatalmente representaramos acontecendo bruscamente.

A lio que, desde o inicio, Gil quisera aprender dos Beatles era a de transformar alquimicamente lixo comercial em criao inspiradora e livre, reforando assim a autonomia dos criadores - e dos consumidores. Por isso que os Beatles nos interessaram como o rock'n'roll americano dos anos 50 no tinha podido fazer. O mais importante no seria tentar reproduzir os procedimentos musicaisdo grupo ingls, mas a atitude em relao ao prprio sentido da msica popular como um fenmeno. Sendo que, no Brasil, isso deveria valer por uma fortificao da nossa capacidade de sobrevivncia histrica e de resistncia opresso. Ns partiramos dos elementos de que dispnhamos, no da tentativa de soar como os quatro ingleses.

Para entender a pertinncia de observaes como as feitas acima, preciso ter em mente a atmosfera em que se davam esses embates de canes no Brasil dos anos 60. O golpe militar, levado a cabo em nome da guerra ao comunismo internacional, tinha posto um oficial da chamada linha "americana" no poder: o marechal Castelo Branco. Isso quer dizer que ele, diferentemente dos chamados "prussianos" (que seriam nacionalistas estatizantes), queria limpar o Brasil do esquerdismo e da corrupo para poder entreg-lo s modernidades do livre mercado. Quase todos desconhecamos essas nuances ento - e ainda quetivssemos ouvido falar delas, emnada isso nos teria mudado, pois apenas vamos no golpe a deciso desustar o processo de superao das horrveis desigualdades sociais brasileiras e, ao mesmo tempo, de manter a dominao norte-americana no hemisfrio. As pretenses de uma arte poltica, esboadas em 63 pelos Centros Populares de Cultura da UNE, difundiram-se por toda a roduo artstica convencional e, apesar da represso nas universidades e da censura na imprensa, o mundo dos espetculos viu-se sob a hegemonia da esquerda. Num ambiente estudantil altamente politizado, a msica popular funcionava como arena de decises importantes para a cultura brasileira e para a prpria soberania nacional - e a imprensa cobria condizentemente. Os festivais eram o ponto de interseo entre o mundo estudantil e a ampla massa de telespectadores. Esta, naturalmente, era maior do que a de compradores de discos. Mas em todos os nveis tinha-se a iluso, mais ou menos consciente, de que ali se decidiam os problemas de afirmao nacional, de justia sociale de avano na modernizao. As questes de mercado, muitas vezes as nicas decisivas, no pareciam igualmente nobres para entrar nas discusses acaloradas. Claro que as meninas gritavam lindo! quando Chico entrava no palco (e, embora com muito menor razo, passaram a gritar tambm para mim), mas as conversas e as hostilidades entre os grupos eram motivadas pela posio poltica de um autor, por sua fidelidade s caractersticas nacionais, por seu arrojo harmnico ou rtmico. Era um luxo que fosse assim. Com todas as tolices que essequadro comportava, vivia-se um perodo excepcionalmente estimulante para os compositores, cantores e msicos. E um ponto central era genuno: o reconhecimento da fora da msica popular entre ns. Tudo era exacerbado pela instintiva repulsa ditadura militar, o que unia uma aparente totalidade da classe artstica em torno do objetivo comum de lhe fazer oposio.

quando ouvi Joo Gilberto pela primeira vez, tive vontade de fazer msica. Depois industrializou-se (masno muito) um samba 'classe A' com aparatos jazzsticos e clichs polticos, o qual, medida que ia perdendo terreno, deixava de ser um bom produto para tornar-se apenas uma idia de defesa da purezade nossas tradies contra todo esse lixo vendvel: boleros, verses e, por fim, o chamado rock nacional. Sentia-me perdido: jamais pensara em msica como produto, e no considerava o Fino da Bossa como a salvao de nossas tradies". E: "Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades tcnicas".

ingum depois de Augusto, at que o tropicalismo estivesse nas ruas, tocou com tanta preciso os pontos-chaves dos problemas especficos da msica popular de ento. Seu artigo dizia, por exemplo, que os "nacionalides" preconizavam um "retorno ao sambo quadrado e ao hino discursivo folclrico-sinfnico"; que eles queriam "voltar quela falsa concepo 'verde-amarela' que Oswald de Andrade estigmatizou em literatura como triste xenofobia que acabou numa macumba para turistas [...] Foi nesse estado de coisas que chegaram a Jovem Guarda e seus lideres Roberto e Erasmo Carlos para, embora sem o saber, evidenciar a realidade e o equivoco. Para demonstrar que, enquanto a msicapopular brasileira, como que envergonhada do avano que dera, voltava a recorrer a superados padres e inspiraes folclorsticos, a msica estrangeira tambm popular, mas de um outro folcloreno artificial nem rebuscado, o 'folclore urbano', de todas as cidades, trabalhado por todas as tecnologias modernas, e no envergonhado delas, conseguia atingir facilmente a popularidade que a msica popular brasileira buscava, com tanto esforo e tamanha afetao populstica. Cmulo do paradoxo, j h noticia de que surgiram no Recife romances de cordel narrando o encontro do rei do i-i-i nacional com Satans, glosando o tema da msica [de Roberto Carlos] 'Quero que v tudo pro inferno'. [....] A maior parte no entendeu que o i-i-i sofreu uma transformao na sua traduo brasileira, que no , nos seus melhores momentos, mera cpia do estrangeiro. J tive oportunidade de observar [....] que, quanto ao estilo interpretativo, os dois Carlos estavam mais prximos de Joo Gilberto do que muitos outros cantores atuais da msica popular tipicamente brasileira (e Joo Gilberto, por sua vez, tem muito mais a ver com os cantadores nordestinos do que muitos ulradores do protesto nacional)".

a semelhana apontadapor Augusto, em conversas e, depois, num artigo escrito em 69, entre o nosso trabalho e a poesia dos trovadores provenais. A nfase caa sobre a adequao das palavras msica. Ora, eu vinha sendo, continuaria a ser e ainda sou um caymmiano na tica de Joo Gilberto. Achava que em Caymmi a palavra cantada recebia o tratamento mais alto que se pode conceber: sempre espontnea, revelava, no obstante, ter passado por um crivo severo. As canes deCaymmi parecem existir por conta prpria, mas a perfeio de sua simplicidade, alcanada pela preciso na escolha das palavras e das notas, indica um autor rigoroso. So o que as canes devem ser, o que as boas canes sempre foram e sempre sero. Um canto tuva, um Lied de Schumann, uma balada de Gershwin, a "Dying eagle" de Ives, tm que se confrontar com "Sargao mar", "L vem a baiana" e "Voc j foi Bahia": so todas incurses no essencial da realidade da cano. Foi assim que Joo Gilberto entendeu a "Rosa morena" de Caymmi, por ele eleita como tema para a construo do estilo que veio a se chamar de bossa nova. Foi assim que o grande esforo de modernizao de Joo se apoiou na modernizao sem esforo de Caymmi. A um tempo impressionista e primitivo, mas tambm o maior dos inventores do samba urbanomoderno, Caymmi tem pelo menos tanto peso na formao da bossa nova joo-gilbertiana quanto Orlando Silva, Ciro Monteiro, a cano americana dos anos 30 e o cool jazz. E, mais do que peso equivalente, Caymmi tem, acima desses outros componentes, o carter normativo geral, a hegemonia esttica do estilo de Joo. Tudo em Joo presta contas a ele:do senso de estrutura dico. Esse cultivo da palavra cantada que encontra excelncia em Caymmi tal como ele foi ouvido por Joo o filtro seletivo da bossa nova: produziu a guinada na msica de Tom e na poesia de Vincius. E era tudo o que de mais exigente eu podia conceber em termos da "arte de combinar palavra & som", como explicava Augusto o "motz el som" provenal de Pound. Era tambm o que Chico Buarque buscava (e freqentemente encontrava) na perseguio da beleza que ele adivinhou nas letras de Vinicius: diferentemente do que fazia Edu Lobo ou Marcos Valle e diferentemente do que fariam Milton Nascimento e os mineiros alguns anos depois -, Chico se agarrava pureza dessa linha, sem mostrar receptividade s exterioridades falsamente modernizantes vindas, fosse do Beco das Garrafas, fosse dos espetculos do Arena. Ele trabalhava exclusivamente com os elementos que eu tentara (quase sempre em vo) preservar intactos em nossa produo, desde o LP de Bethnia. Por trs da rivalidade entre mim e Chico, deve-se procurar ver a grande identificao. O tropicalismo veio para acabar com os resguardos, mas, se havia alguma coisa que eu prprio tinha querido resguardar, era exatamente o que Chico continuaria cultivando e polindo. Assim, era-me difcil aceitar sem perguntas a afirmao deque em nossas ruidosas letras tropicalistas e que se produziam equivalentes do "trobar ric" do "miglior fabro" Arnaut Daniel.

Augusto formulou, anos depois, no prefcio a um livro de tradues de Ovdio a Rimbaud, a idia da poesia como "uma famlia dispersa de nufragos bracejando no tempo e no espao". Apesar de, nesse mesmo texto, Augusto dizer que "o antigo que foi novo to novo quanto o mais novo novo", como que a indicar apenas que ele se filia a uma milenar linhagem de vanguardistas, sempre senti que, subjacente ao critrio do avano, est a viso sincrnica. Isto no nenhuma descoberta: em textos to claros e to entusiasmados quanto os que apontam para uma esttica do "novo", os concretistas (sobretudo Haroldo) defenderam uma crtica de mirada sincrnica, trans-histrica. O que eu quero dizer que esse aspecto do aparato terico deles me atraiu mais e me pareceu mais profundo neles mesmos do que a paixo da novidade. como se a campanha do novo no fosse seno uma estratgia de manuteno da altura do nvel de exigncia. As rupturas modernistas podem ser explicadas de diversos ngulos, mas inegvel o carter de revitalizao do acervo amado embutido em muitas atitudes aparentemente destrutivas. Stravinski e Schnberg parecem empenhados em que ouamos Bach com melhores ouvidos e no em que deixemos de ouvir Bach para passar a ouvi-los apenas a eles. Se arriscarmos olhar bem fundo, talvez cheguemos concluso de que os modernismos representaram antes uma luta contra a iminente obsolescncia de um passado belo em vias de banalizar-se; de que nunca, como no modernismo, a arte foi to profundamente conservadora. A lutaera, foi, sobretudo contra o academicismo. O artista, aristocrata supremo, no poderia submeter-se vulgarizao burguesa que queria distribuir frmulas prontas, usveis por qualquer um, para se consumir e produzir arte. Era preciso mostrar que a arte terrvel e que difcil:voc no pode passar inclume por Velsquez, por Mozart ou por Dante. Mas a tenso entre esse aristocratismo (que no limite terminaria por negar o prprio trabalho do grande artista moderno) e a necessidade de afirmar-se o modernista como um produtor novo de objetos artsticos de primeira linha (o que, em ltima instncia, levaria defesado futuro burgus e popular e da disparada tecnolgica) que produziu toda a gama de movimentos do final do sculo XIX ao incio dosculo XX, dos impressionistas aos expressionistas, dos construtivistas aos surrealistas, de Marinetti a dad, de Duchamp a Mondrian. Como quer que seja, eu, um mero cantor de rdio, mimado (mas no muito, que eles so realmente responsveis e conseqentes) por esse bando de eruditos, via-me metido numa guerra que exigia definio quanto a essas questes to abrangentes, e isso me excitava. Parecia-me que eu estava realizando aquele programa de ser poeta por outras vias que no as do poema impresso. Alis, no estava longe de confirmar essa iluso Augusto ao dizer que o que havia de interessante em poesia brasileira - a "informao nova" - tinha migrado das pginas dos livros para as vozes da cano popular. E, mais provocadoramente ainda, que Villa-Lobos era um "diluidor" em sua seara, enquanto Gil e eu ramos "inventores" na nossa.

Em 68, Augusto mostrou-se impressionado com as declaraes arrancadas por um reprter a Paul McCartney de entusiasmo por Stockhausen. Ouvindo, nos anos subseqentes, o pop doce e desossado que Paul produziu - e a enxurrada de canes programadamente digestivas ou programadamente transgressivas que se seguiram ao espetacular crescimento do mercado de msica pop depois dos Beatles -, pode-se imaginar o fastio e o dessabor de um homem como Augusto diante da canopopular. E os tropicalistas no estiveram fora da roda. Eles mesmos ns... - teriam cedo ou tarde que exibir, de forma mais ou menos nobre em cada caso, as marcas de origem da atividade que escolheram: produo de canes banais para competir no mercado. (Sendo que, no Brasil, o crescimento desse mercado significa, em si mesmo, uma conquista nacional.) Augusto segue combatendo pela msica impopular: Boulez Stockhausen, Berio, Varse e Cage - mais Giacinto Scelsi, Luigi Nono. Ustvlskaia etc. A resistente impopularidade da msica culta mais inventiva realmente uma esfinge. (Otto Maria Carpeauxescreveu que a msica sempre esteve na retaguarda.) E o lampejo deeuforia de Augusto em face do possvel (mas no ulteriormente desenvolvido) interesse do jovem McCartney por Stockhausen em 68 era a fugaz esperana de decifrao do enigma. Produssumo, como j disse, foi a palavra inventada pelo outro concretista Dcio Pignatari para definir uma era em que procedimentos de vanguarda se davam em top-hits de pop-rock. Um dos problemas mais instigantes da vanguarda - e o que faz muitos artistas instigantes fugirem dela como o diabo da cruz - sua dbia disposio em face da ambio, que lhe intrnseca, de tornarse a norma.

O rock chamado "progressivo" no nos atraa. Amvamos e admirvamos os novos Mutantes sem compartilhar com eles do entusiasmo pelo tipo de msica que eles elegeram. Mas a prpria Rita trabalhando solo, com sua poesia, sua musicalidade, seu wit e sua elegncia, trazia de volta a diviso entre MPB e rock que o tropicalismo tentara superar. A palavra-chave para se entender o tropicalismo sincretismo. No h quem no saiba que esta uma palavra perigosa. E na verdade os remanescentes da Tropiclia nos orgulhamos mais de ter instaurado um olhar, um ponto de vista do qual se pode incentivar o desenvolvimento de talentos to antagnicos quanto o de Rita Lee e o de Zeca Pagodinho, o de Arnaldo Antunes e o de Joo Bosco, do que nos orgulharamos se tivssemos inventado uma fuso homognea e medianamente aceitvel. Somos baianos. Eric Hobsbawm, em suas apreciaes do nosso "breve sculo XX" escreveu que, desde o entreguerras, "no campo da cultura popular [e dando, curiosamente, o esporte como nica exceo em que se destaca o futebol brasileiro como "arte"], o mundo era americano ou provinciano". Isso era um dado que os tropicalistas no queramos negar. Tampouco queramos encarar com rancor ou melancolia. Reconhecamos a alegria necessria que h em algum achar-se participando de uma comunidade cultural urbana individualista universalizante e internacional. Os pruridos nacionalistas nos pareciam tristes anacronismos. Ao mesmo tempo, sabamos que queramos participar da linguagem mundial para nos fortalecermos como povo e afirmarmos nossa originalidade. O mero aggiornamento era pouco para ns. Sobretudo porque vamos (ou imaginvamos) que a oposio "americanos ou provincianos" estava ou estaria, se agssemos acertadamente - em vias de se modificar. Desse modo embora ainda hoje Rita nos d lies de profissionalismo e atualidade, o fato que a Tropiclia sugere um horizonte de problemas que enriquecido por trabalhos como o dela, mas isto no quer dizer que ela os resolve.

Tampouco era-me de todo desconhecido o aspecto positivo que aquela cano dava representao do Brasil. E, mais que isso, eu no era inocente do fato de que toda pardia de patriotismo uma forma de patriotismo assim mesmo no eu, o tropicalista, aquele que antes ama o que satiriza, e no satiriza facilmente o que odeia. Mas que aquele homem no quisesse levar em considerao o fato de na minha cano eu estar descrevendo um monstro - e era um monstro que confirmara sua monstruosidade agredindo-me a mim-, era algo que, medida que ia acontecendo, iase-me tornando mais fascinante do que irritante.

Roda viva, a primeira pea que meu colega compositor Chico Buarque escreveu, tratava da ascensode um astro da msica popular e da inautenticidade e ridculo que isso envolve. Era o que antigamente se chamaria uma "obra de juventude", no sentido de que era um tanto ingnua. Mas no deixava de ser interessante que tivesse sido escrita por um excelente compositor que nada tinha de inautntico na gnese ou no desenvolvimento de sua carreira ainda iniciante. O que a transformara nem acontecimento de grande impacto, porm, fora a direo que Jos Celso Martinez Corra lhe imprimira. Sendo seu primeiro trabalho depois da viradaque representou sua montagem de O rei da vela de Oswald de Andrade, Roda viva levava s ultimas conseqncias o estilo violento e anrquico inaugurado por Z Celso. Mais identificado com o artista pop que o texto criticava do que com a crtica que o texto lhe fazia, mas, aomesmo tempo, levando essa crtica aos seus extremos, ele fazia da peade Chico Buarque ela prpria um ritual pop e uma oportunidade de revelar os contedos inconscientes do imaginrio brasileiro - e do Zeitgeist. Essas revelaes no poupavam nada nem ningum, fossem os personagens da pea ou os espectadores reais que assistissem a ela. O jovem dolo de massas retratado na pea tinha uma mulher mais honesta do que seus fs e seu empresrio, e essa mulher, em meio enxurrada de imagens cambiantes que se sucediam nopalco (e que de nenhum modo obedeciam s indicaes do texto), transfigurava-se brevemente numa espcie de madona, sem, contudo, tirar os rolinhos de cabelo de dona de casa. Essa era a cena que o sargento tinha elegido para justificar o dio que os militares nutriam por Roda viva - e que os tinha levado, em So Paulo, a invadir uma apresentaoe agredir fisicamente os atores e parte do pblico, tirando assim a pea de cartaz. Isso no tinha sido uma ao oficial. Na verdade o exrcito nunca admitiu - e eu prprio, que atribura o atentado ao grupo terrorista de direita Comando de Caa aos Comunistas, no imaginava - que militares estivessem envolvidos nesse episdio. Mas o sargento tinha me chamado ali atendendo a um desejo que pareceu realizar-se melhor quando ele resolveu me confidenciar: Eu estaval. Eu fui um dos que desceram a porrada naquele bando de filhos da puta.

A atitude do poder repressivo brasileiro era algo errtica, mas no o suficiente para torn-lo ineficaz. Lembro apenas da deciso tomada pela prpria gravadora de no lanar um compacto com uma gravao minha feita logo antes de sermos presos. Era um lindo samba-R&B de Jorge Ben chamado "Charles, Anjo 45", uma saudao romntica a um heri marginal ("Robin Hood dos morros, rei da malandragem") de quem era dito que fora "tirar, sem querer, frias numa colnia penal". A cano louvava um tipo hoje fora de moda: o bandido de corao bom, cuja generosidade apenas complemento de sua caracterizao como protesto vivo contra as injustias sociais. Embora estas ltimas no fossem uma preocupao de Jorge Ben, o seu Charles sendo antes um modelo benigno daquilo que hoje se descreveria como o traficante que se torna chefete de favela e toma para si as responsabilidades que deveriam estar nas mos do poder pblico, ao preo de impedir que a lei chegue a seus territrios. inegvel que essa caracterizao do personagem fazia-o mais atraente aos meus olhos do que os heris (ou vtimas) puros e justos das canes de protesto. Ao final da cano, anunciava-se uma grande festa com "batucada, feijoada, usquecom cerveja, muitas queimas de fogos e saraivadas de balas pro ar": "Antes de acabar as frias o nosso Charles vai voltar/ E o morro inteiro feliz assim vai cantar". Todos acharam, com razo, que a coincidncia com a minha prpria priso soaria como uma provocao. Mas os militares no estavam muito preocupados com nossas canes: o assombro diante da anarquia comportamental e a desconfiana de ligaes com ativistas radicais - apesar da hostilidade ostensiva daesquerda convencional - que os motivaram. De todo modo, quase no se vive de direitos autorais no Brasil. Ao contrrio dos pases ricos, aqui se gravam discos para possibilitar shows que, em longas temporadas nas grandes capitais e excurses pelo resto do pas, garantiro as finanas das estrelas.

A partir do momento em que Ralph Mace props fazermos os discos, compus vrias canes em ingls. No era a primeira vez que o fazia. Em So Paulo, muito antes de imaginar que um dia iria morar em Londres, compus uma marcha bossa-nova com letra em ingls, embora quase no falasse essa lngua. Eu o tinha feito porque o ingls tornavase mais e mais internacional e euachava que, sendo bombardeados pela lngua inglesa todo o tempo, ns tnhamos o direito de us-la como nos fosse possvel. Se o rdio brasileiro tocava maismsicas em ingls do que em portugus, se os produtos, os anncios, as casas comerciais usavam ingls em suas embalagens, slogans e fachadas, ns podamos devolver ao mundo esse ingls mal aprendido, fazendo-o veculo de um protesto contra a prpria opresso que o impunha a ns. Ao mesmo tempo, queria dialogar com pessoas no "mundo exterior". Era um esboo ingnuo de comunicao internacional, um modo de tentar abrir um respiradouro nesse universo fechado que o Brasil. Eu no ambicionava sucesso mundial, nunca sonhei morar fora - e muito menos num pas de lngua inglesa. Na contracapa do meu primeiro lp solo escrevi: "Quando a gente no tem vontade de ir para os States no tem jeito". Isso no era um desejo tentando ocultar-se numa negao. Era o reconhecimento consciente de uma espcie de dever que eu tinha preguia de cumprir: sendo capaz deaprender ingls com facilidade, podendo planejar uma investida nesse sentido, eu me sentia totalmente inapetente, enfastiado com a perspectiva. Achava-me tmido e desestimulado. Mas sabia que o Brasil precisava (precisa) abrir dilogos mundiais francos, livrar-se de tudoo que o tem mantido fechado em si mesmo como um escravo desconfiado. Assim, a cano que escrevi ento, era um grito de socorro s avessas: eu me dirigia a alguns interlocutores imaginrios no mundo l fora e. descrevendo minha pobreza e minha solido de brasileiro, pedia que no me ajudassem, apenas me dissessem seus nomes e medeixassem dizer quem era eu.

Havia muito que oscilvamos, mais ou menos conscientemente, entre nos caracterizar como ultra-esquerda - a verdadeira esquerda, uma esquerda esquerda da esquerda - ou como defensores da liberdade econmica, da sade do mercado. No nosso prprio campo, fazamos as duas coisas: empurrvamos o horizonte do comportamento para cada vez mais longe, experimentando formas e difundindo invenes, ao mesmo tempo que ambicionvamos a elevao do nosso nvel de competitividade profissional - e mercadolgica aos padres dos americanos e dos ingleses. Uma poltica unvoca, palatvel e simples no era o que podia sair da.

artigo de Roberto Schwarz sobre o tropicalismo. Era uma cpia datilografada que o autor - seu amigo - tinha dado a ele. o artigo era interessante e estimulante. Mas desde j sabia-se que seria uma verso complexa e aprofundada da reao desconfiada que a esquerda exibia contra ns. Schwarz no demonstrava no entanto, nem hostilidade nem desprezo pelo nosso movimento. Ao contrrio: dava-lhe grande destaque dentro do esquema que apresentava das relaes entre a cultura e a poltica no Brasil ps-64.Estvamos longe da rejeio total que tivemos de um Boal, por exemplo. De todo modo seria uma honra para mim que o tropicalismo recebesse tanta e to terna ateno de um pensador naturalmente to pouco identificado com nossa sensibilidade. Era visvel, por exemplo, que ele tinha mais intimidade com o que se fazia em cinema e teatro do que com o que se passava na msica popular. Impressionava-me que opusesse o mtodo de alfabetizao Paulo Freire ao que os tropicalistas faziam: isso era exatamente uma repetio em sua teoria do que tinha acontecido em minha vida. Mas sua reduo da "alegoria" tropicalista ao choque entre o arcaico e o moderno, embora revelasse aspectos at ento impensados, resultava finalmente empobrecedora. Z Almino, melhor entendedor das razes de Schwarz doque eu, se mostrava lindamente capaz de acompanhar (e mesmo adivinhar) minhas observaes. A falvamos de Lvi-Strauss (eu estava lendo, na esteira dos Tristes trpicos, O pensamento selvagem); deOswald de Andrade (lembro de ouvi-lo dizer que chegara a considerar Oswald o maior brasileiro de todos os tempos, mas que j estava relativizando esse julgamento); de Cinema Novo, de poesia concreta, do conceito de ''terceiro mundo", de tentarmos ser mais antropolgicos (isto . receptivos.) com os europeus. Ele comentava rindo que a fofoca brasileira tivera origem na moda existencialista. Mas o que me marcou mais fundo foi ouvi-lo dizer, numa conversa animada sobre o brilho das entrevistas de Borges e de Nelson Rodrigues, que era preciso ler os autores de direita - e que o dever da razo era alcanar e acolher o irracional, e no bani-lo. Almino tinha, aos dezoito anos, colaborado estreitamente com o pai quando este era governador de Pernambuco. Essacolaborao com um governo sintonizado como nenhum outro com osanseios populares o tinha posto cara a cara com a misria e a grandeza das possibilidades do povo brasileiro. E presenciar a priso e expulso de seu pai - o que o levou junto com toda a famlia ao exlio na Frana e na Arglia - lhe deu a dimenso trgica de todos os conflitos polticos humanos imaginveis. Os pensadores de direita - os grandes - falavam de dentro desse desencanto. Z Almino nunca mais alimentaria suas esperanas de justia social com nenhum pensamento que se mostrasse ingnuo quanto a essa dimenso. Isso lhe trouxe lucidez e,a mdio prazo, melancolia. Mas a lio me foi crucial. E minha amizade por ele se tornou inabalvel.

Ns, os tropicalistas, diferentemente de muitos amigos nossos da esquerda mais ingnua, que pareciam crer que os militares tinham vindo de Marte, sempre estivemos dispostos a encarar a ditadura como uma expresso do Brasil. Isso aumentava nosso sofrimento, mas hoje sustenta o que parece ser meu otimismo. que penso e ajo como se soubesse na carne quais as potencialidades verdadeiras do Brasil, por ter entrado num dilogo com suas motivaes profundas - e simplesmente no concluo que somos um mero fracasso fatal.

Ns matamos o tropicalismo vrias vezes - e desde o incio. Vrias vezes falamos em "movimento para acabar com todos os movimentos". O especial de tv concebido por Z Celso e que nunca foi ao ar era uma espcie de suicdio cultural do tropicalismo. E finalmente no Divino, Maravilhoso encenamos um enterro do tropicalismo. Nossa priso e nosso exlio representaram um corte real na continuidade do nosso trabalho. Mas a aventura que se iniciou para mim com o tropicalismo no acabou nunca.

Por causa da ateno a coisas como a tv Globo, a ax music, o rock-Brasil - e mesmo o Asdrbal Trouxe o Trombone - ouvi de amigos mais ou menos ntimos o comentrio de que eu embarcava em muitas canoas furadas. Mas eu acreditava que podia andar sobre as guas. Eu amava os discos experimentais de tom Z ou de Walter Franco, os filmes de Jlio Bressane e de Rogrio Sganzerla - mas sabia que meu lugar era l no meio da corrente central da cultura de massas brasileira, muitas vezes nadando contra a mar ou apenas atrapalhando-lhe o fluxo, outras, tentando desimpedir-lhe o caminho.