GAGNEBIN, Jeanne Marie - Documento da cultura - documentos da barbárie

download GAGNEBIN, Jeanne Marie - Documento da cultura - documentos da barbárie

of 3

Transcript of GAGNEBIN, Jeanne Marie - Documento da cultura - documentos da barbárie

  • 8/13/2019 GAGNEBIN, Jeanne Marie - Documento da cultura - documentos da barbrie

    1/3

    EM PAUTA DOCUMENTOS DA CULTURA /DOCUMENTOS DA BARBRIE

    80 psicanlise e cultura, So Paulo, 2008, 31(46), 80-82

    Na tese VII do seu ltimo texto As teses sobreo conceito de histria (1940), Walter Benjamin descreveo cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hojepor cima dos que, hoje, jazem por terra e declara:

    A presa, como sempre de costume, conduzida no corte-

    jo triunfante. Chamam-na bens culturais. Eles tero que contar,

    no materialismo histrico, com um observador distanciado, pois

    o que ele, com seu olhar, abarca como bens culturais atesta, sem

    exceo, uma provenincia que ele no pode considerar sem hor-ror. Sua existncia no se deve somente ao esforo dos grandes

    gnios, seus criadores, mas tambm corvia sem nome de seus

    contemporneos. Nunca h um documento da cultura que no

    seja, ao mesmo tempo, um documento da barbrie (2005, p. 70).

    Essa frmula teve uma fortuna crtica mpar. Todosleitores marxistas ou de esquerda de Benjamin a usam parajustificar sua desconfiana legtima em relao cultura vi-gente, quando no seu desprezo por ela. Esquecem, no maisdas vezes, uma outra declarao do autor, to enftica quan-to a primeira, na tese IV:

    A luta de classes, que um historiador escolado em Marx

    tem sempre diante dos olhos, uma luta pelas coisas brutas e

    materiais, sem as quais no h coisas finas e espirituais. Apesar

    disso, estas ltimas esto presentes na luta de classes de outra

    maneira que a da representao de uma presa que toca ao ven-

    cedor. Elas esto vivas nessa luta como confiana, como cora-

    gem, como humor, como astcia, como tenacidade e retroagem

    ao fundo longnquo do tempo. Elas poro incessantemente em

    questo cada vitria que couber aos dominantes (2005, p. 58).

    Como entender esse aparente paradoxo: de um lado acultura como testemunho da barbrie que subjaz sua pro-duo, do outro a cultura como manancial de tenacidade e as-tcia, de humor, de resistncia e de questionamento da conti-nuidade da dominao? Proponho desfazer essa contradiopor meio de uma reflexo sobre dois momentos muitas vezesnegligenciados pela leitura militante de Benjamin (assim co-mo de outros tericos da cultura de esquerda), a saber, sua cr-tica concepo de cultura como uma acumulao de bens

    culturais e sua nfase na decisiva significao da transmissocultural. Ambos os momentos se completam num esforo dedessubstancializao daquilo que se costuma chamar de cul-tura: essa no consistiria num aglomerado de objetos precio-sos, mas seria definida muito mais como relao espiritual vi-va do presente ao passado, do passado ao presente.

    Para pensar a relao do presente ao passado, em par-ticular do presente em relao cultura que lhe foi transmi-tida pelo passado, Benjamin desconstri o conceito trivial de

    atualidade que geralmente empregado para justificar orecurso a obras antigas. um conceito de Vergegenwrti-gungou, literalmente, de presentificao, muitas vezes usa-do quando se tenta demonstrar, por exemplo, aos alunos quevale a pena, sim, ler Plato, porque ainda haveria coisasatuais nesse velho pensador. uma concepo rasa porqueparte de uma imagem acrtica do presente para procurar al-go no passado que se assemelha, mesmo de longe, com aspreocupaes desse presente insosso. Por isso, so geralmen-te figuras e valores muito vagos e amplos que so encontra-dos e exibidos como ainda ou sempre atuais apesar de suaroupagem caduca. Em vez de ressaltar as diferenas entrepassado e presente, diferenas estas que permitiriam colocar

    em questo o narcisismo epistemolgico do presente, essesvalores ditos sempre atuais so designados como valoreseternos que fortalecem as certezas da cultura dominante.

    A presentificao obedece a uma concepo de culturacomo inventrio, diz com fora Benjamin (GS I-3, 1974, p.1248): O inventrio do butim que os vencedores pegaramdos seus adversrios vencidos e que expem vista no po-de ser considerado seno de maneira crtica pelo historiadormaterialista. Esse inventrio chamado de cultura, diz ele,nas anotaes s teses. A cultura como inventrio, inven-trio de bens culturais justamente, garante o valor intem-poral das obras que a tradio dominante erige como can-nicas, mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente, as declaracomo esplio de um morto, esse passado embalsamado e en-gavetado. O atual sinnimo de intemporal.

    Em oposio concepo achatada e trivial de atuali-dade como presentificao, isto , como repetio de um va-lor eterno do passado no presente, concepo apologtica e re-petitiva, Benjamin forja um conceito intensivo de atualidade

    Documentos da cultura /documentos da barbrie*

    Jeanne Marie Gagnebin**

    * Este texto retoma alguns motivos desenvolvidos numa palestra no Instituo Goethe de So Paulo, 15 outubro de 2007.** Professora titular de filosofia na PUCSP e livre-docente em teoria literria na Unicamp. Principais publicaes: Zur Geschichtsphilosophie Walter Benja-

    mins, Erlangen, 1978; Walter Benjamin. Os cacos da Histria, So Paulo, 1982; Histoire et narration chez Walter Benjamin, Paris, 1994 (trad. br. Histria enarrao em Walter Benjamin, So Paulo, 1994; trad. alem Geschichte und Erzhlung bei Walter Benjamin, Wrzburg, 2001); Sete aulas sobre memria,linguagem e histria, Rio de Janeiro, 1997; Lembrar. Escrever. Esquecer, So Paulo, 2006.

    Revista IDE 46:Layout 1 5/18/08 10:25 PM Page 80

  • 8/13/2019 GAGNEBIN, Jeanne Marie - Documento da cultura - documentos da barbrie

    2/3

    JEANNE MAR IE GAGN EB IN EM PAUTA

    psicanlise e cultura, So Paulo, 2008, 31(46), 80-82 81

    (Aktualitt) que retoma a outra vertente semntica da palavra,ou seja, vir a ser ato (Akt) de uma potncia. Uma potncia que

    jaz encoberta como confiana, como coragem, como humor,como astcia, como tenacidade nas obras do passado e que

    cabe ao presente reencontrar. Essa atualidade plena designamuito mais a ressurgncia intempestiva de um elemento ocul-tado, esquecido dir Proust, recalcado dir Freud, do passadono presente o que tambm pressupe que o presente estejaapto, disponvel para acolher esse ressurgir, reinterpretar a simesmo e reinterpretar a narrativa de sua histria luz sbitae inabitual desse emergir. Se essa concepo lembra as reflexesdo narrador da Busca do tempo perdidoe do fundador da psi-canlise, porque Freud e Proust so, para Benjamin, os doisgrandes modelos de uma outra relao com a memria: a tem-poralidade do passado no se reduz mais ao espao indiferen-te de uma anterioridade que precede o presente na linha mo-ntona da cronologia; ao contrrio, momentos esquecidos do

    passado e momentos imprevisveis do presente, justamenteporque so separados, portanto distantes, se interpelammutuamente numa imagem mnmica que cria uma nova in-tensidade temporal. Em oposio representao de uma li-nearidade contnua e ininterrupta do tempo histrico, repre-sentao cuja relevncia ideolgica para a manuteno doexistente deve ser realada, essa concepo disruptivae intensiva de atualidade coloca em questo a narrao do-minante da histria, isto . tambm, a compreenso de um pas-sado cujo sentido pode revelar-se outro e a autocompreensode um presente que poderia ser diferente.

    Essa compreenso de uma atualidade viva e subversiva(subversiva em relao ao status quo do presente histrico)

    pressupe que a cultura no seja assimilada a uma acumulaode bens, de bens culturais (Kulturgter) como denunciaBenjamin na tese VII citada no incio. Tal concepo opera umareificao das obras culturais, transformadas em mercadoriasde mais ou menos valor, cuja propriedade cabe a alguns pro-prietrios privilegiados que puderam pagar o preo exigido eassim ostentar seu prprio valor. Essa concepo bancria e, di-ramos hoje, glamorizada de cultura, reproduz as relaes rei-ficantes e fetichistas que regem as relaes dos sujeitos entre si,dos sujeitos aos objetos, e dos sujeitos a si mesmos na socie-dade capitalista: no uma relao viva de transformao, massim uma relao morta de posse e de acumulao.

    Mesmo a tradio cultural de esquerda padece dessa

    concepo reificada quando se pergunta, por exemplo, quaisobras do passado podem de direito formar a herana (Er-be) do movimento socialista. Tal debate foi travado, na po-ca de Benjamin, por importantes tericos de esquerda comoGeorg Lukcs e Ernst Bloch. Benjamin critica os prpriostermos dessa discusso porque ela continua a fazer da cultu-ra um acmulo de bens nos quais os militantes deveriamseparar os objetos que consideram teis ou no sua luta da-queles que, como no esplio de um morto, podem ser des-cartados e jogados fora; isto , como os proprietrios bur-gueses, eles tomam os produtos da atividade humana como

    coisas imutveis e definitivas, como substncias em si in-dependentes de sua histria e de sua transmisso.

    Num texto um pouco anterior redao das teses(1940), um ensaio sobre Eduard Fuchs, o colecionador e o

    historiador (GS II-2, 1977) que o Instituo de Pesquisa Social,na pessoa de Horkheimer, tinha lhe encomendado, Benjamincritica implicitamente essas discusses sobre o Erbe e lhesope uma outra reflexo, a reflexo sobre o processo de con-servao e transmisso do passado, das obras e dos aconteci-mentos do passado, um processo nada inocente, mas ele mes-mo profundamente cambiante e histrico. Escreve Benjamin:

    Se, para o materialismo histrico, o conceito de cultura

    um conceito problemtico, sua decomposio em um con-

    junto de bens que seriam para a humanidade objeto de pro-

    priedade, essa uma representao que ele no pode assumir.

    A seus olhos, a obra do passado no acabada. Ele no pode

    considerar nenhuma obra, em nenhuma parte, como cabendopara uma poca enquanto disponvel sem mais. Como um con-

    junto de formaes consideradas independentemente, seno do

    processo de produo, do qual nasceram, mas, no entanto, do

    processo, no qual elas perduram, o conceito de cultura tem um

    aspecto fetichista. A cultura aparece a reificada. Sua histria no

    seria nada afora a sedimentao formada por coisas memor-

    veis que se acumularam na conscincia dos homens sem ne-

    nhuma experincia autntica, isto , poltica (GS II-2, p. 477).

    Contra o materialismo vulgar que se contenta em ana-lisar o processo de produo das obras culturais e, muitasvezes, decide ento de sua validade para uma tradio de es-

    querda, condenando, por exemplo, as obras de autores de-cretados conservadores ou reacionrios ao esquecimento,Benjamin insiste no processo de transmisso no qual as obrasdo passado perduram, um processo que pode, alis, realartal aspecto e esconder outro. Deve-se, portanto, analisar a his-tria do processo de transmisso e desconstru-lo critica-mente. Assim, conclui tambm a tese VII citada no incio:

    Nunca h um documento da cultura que no seja, ao

    mesmo tempo, um documento da barbrie. E, assim como ele

    no est livre da barbrie, assim tambm no o est o proces-

    so de sua transmisso, transmisso na qual ele passou de um

    vencedor a outro. Por isso, o materialista histrico, na medida

    do possvel, se afasta dessa transmisso. Ele considera como

    sua tarefa escovar a histria a contrapelo (2005, p. 70).

    O conceito-chave de berlieferungpode ser traduzidotambm como tradio, mas prefiro restitu-lo de maneiramais literal como transmisso, ressaltando assim o processohistrico concreto, material, de desistncias, de perseverana,de lutas e de violncia que transporta ou no, leva ou no,transmite ou no um acontecimento ou uma obra do passadoat nosso presente. Benjamin retoma aqui a reflexo crtica doromantismo alemo de Iena (ao qual tinha consagrado sua te-

    Revista IDE 46:Layout 1 5/18/08 10:25 PM Page 81

  • 8/13/2019 GAGNEBIN, Jeanne Marie - Documento da cultura - documentos da barbrie

    3/3

    EM PAUTA DOCUMENTOS DA CULTURA /DOCUMENTOS DA BARBRIE

    82 psicanlise e cultura, So Paulo, 2008, 31(46), 80-82

    se de doutorado), esse grande momento do idealismo especu-lativo, para solapar as trivialidades do materialismo vulgar. Fa-zem parte de uma obra de arte segundo Friedrich Schlegel, porexemplo, no s sua feitura num determinado momento tem-

    poral, mas tambm sua recepo, suas crticas, suas tradues,suas adaptaes porque no se pode separar, seno de manei-ra abstrata, a obra em si de sua vida para ns. Traduzindoem termos mais materialistas, Benjamin afirmar que nenhu-ma obra nos chega de maneira neutra como se a tradio his-trica fosse um mero depsito de produtos prontos, que espe-ram imveis nas gavetas empilhadas do tempo.

    A obra transmitida at nosso presente, ou ento deixa-da de lado, negligenciada, recusada ou esquecida num proces-so nem sempre consciente, mas isso o de menos, de forma-o e aceitao de uma tradio histrica, processo nadatranqilo de lutas histrico-polticas que levam, por exemplo, formao de um cnone e excluso de vrios autores ou de

    vrias obras dessa tradio cannica. De maneira anloga, po-deramos pensar que o processo de formao pessoal da iden-tidade tambm remete a uma narrativa cannica e exclusivaque o sujeito constri e se transmite por assim dizer a si mes-mo e aos outros, uma transmisso que pode e deve ser ques-tionada quando ela o enclausura numa nica histria possvel.Assim, uma anlise crtica no pode se contentar com a anli-se do processo de produo da obra, mas deve igualmente con-siderar como tal obra ou tal acontecimento foi interpretado eretomado e nos chegou atravs dessa interpretao, atravsdessa narrativa e no de maneira imediata e direta. Assimtambm, a anlise no pode se contentar em separar o joio dotrigo, os autores ditos progressistas dos ditos reacionrios, os

    acontecimentos essenciais dos secundrios, pois esquece queessas etiquetas tambm foram afixadas por sujeitos histricosnada imparciais. , pois, uma iluso do marxismo vulgar, que-rer determinar a funo social seja de um produto material, se-

    ja de um produto espiritual, fazendo abstrao das circuns-tncias e dos portadores de sua transmisso (GS I-3, 1974, p.1161), declara Benjamin nas suas anotaes aos ensaios sobreBaudelaire, um poeta tido at ele como um representante rea-cionrio do esteticismo da corrente da arte pela arte.

    Quando Benjamin afirma, no trecho citado do ensaiosobre Eduard Fuchs, que a seus olhos (isto , aos olhos dohistoriador crtico) a obra do passado no acabada, ele pa-rece apontar para dois motivos diferentes: primeiro, as obras

    de arte, por exemplo, que pertencem ao passado, no se en-cerram em si mesmas, mas continuam a agir e viver na suarecepo e transmisso, como j afirmaram os Romnticos;e, em segundo lugar, lendo um genitivo subjetivo, o passadocontinua agindo, operando, no presente, ele no um tem-po definitivamente morto, mas continua vivo, mesmo que

    encoberto, no presente. Essa frase caracteriza uma relao aopassado e cultura que no uma relao de posse e de acu-mulao, mas uma relao viva, ancorada numa certa ticada transmisso. Cabe ao presente, em particular ao historia-

    dor de hoje, ficar atento quilo que jaz nos acontecimentose nas obras do passado como promessa ou protesto, comoconfiana, como coragem, como humor, como astcia, co-mo tenacidade, enumera Benjamin na quarta tese Sobre oconceito de histria, como sinal ou balbucio de um outroporvir. Nesse sentido preciso, o historiador materialista deBenjamin desconstri a imagem engessada da tradio e dacultura e procura nas interferncias do tempo, do passado edo presente, os signos de uma outra histria possvel.

    Referncias

    Benjamin, W. (1974). ber den Begriff der Geschichte. In

    W. Benjamin, Gesammelte Schriften (Vol.I-2, pp. 693-704).

    Frankfurt/Main: Suhrkamp Verlag.1

    Benjamin, W. (1977). Eduard Fuchs, der Sammler und der Historiker.

    In W. Benjamin, Gesammelte Schriften (Vol. II-2 pp. 465-505).

    Frankfurt/Main: Suhrkamp Verlag.

    Resumo

    A partir do texto As teses sobre o conceito de histria, de Walter Ben-

    jamin, tenta-se descrever uma relao crtica e viva cultura, em oposio

    a uma concepo reificante e fetichista de bens culturais como proprie-

    dade ou posse. Ressalta-se a importncia de uma tica da transmisso, que

    no considera as obras do passado como substncias imutveis, mas como

    reservas de sentidos, muitas vezes encobertos e esquecidos, e de possibili-

    dades de resistncia e transformao que cabe ao presente reencontrar.

    Palavras-chaveCultura. Memria. Transmisso. Walter Benjamin.

    Summary

    Documents of culture/documents of barbarism

    Based on the theses On the concept of history by Walter Benjamin,

    the author seeks to describe a critical and lively relationship with culture, as op-

    posed to a reifying and fetishist conception of cultural assets as property or

    possession. The author emphasizes the importance of a transmission ethics that

    does not consider the works of the past as immutable substances but rather as

    reserves of the senses, often concealed and forgotten, and as possibilities of re-

    sistance and transformation that must be reconciled in the present time.

    Key wordsCulture. Memory. Transmission. Walter Benjamin.

    Recebido: 14/12/2007

    Aceito: 21/12/2007

    1 As obras de Benjamin so todas citadas segundo essa edio pela seguin-te abreviao: G. S. e o nmero correspondente do volume. Traduo bra-sileira de Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz-Mller no livro de Mi-chael Lwy, Walter Benjamin: Aviso de incndio. Uma leitura das tesesSobre o conceito de histria, So Paulo: Boitempo, 2005.

    Jeanne Marie GagnebinRua Barbosa de Andrade, 642 Jardim Chapado13070-158 Campinas SPTel.: 19 [email protected]

    Revista IDE 46:Layout 1 5/18/08 10:25 PM Page 82