Glocalização na cafeicultura

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AGRO PECUÁRIO ESTADO DE MINAS S E G U N D A - F E I R A , 1 9 D E S E T E M B R O D E 2 0 0 5 2 ARTIGO Glocalização na cafeicultura MARA LUIZA GONÇALVES FREITAS Administradora e especialista em cafeicultura empresarial [email protected] Embora a discussão fosse implícita anteriormente, é cer- to que desde a extinção do Ins- tituto Brasileiro do Café, em 1989, a agregação de valor tor- nou-se tema norteador das dis- cussões e práticas dos agentes envolvidos com o agronegócio, por tratar-se de fenômeno/ati- tude glocalizada. Mas o que é glocalização? Tra- ta-se de um conceito que reúne as perpectivas econômicas e so- ciais oferecidas pelas discussões sobre globalização e território (no sentido de espaço local). Esse conceito avalia estruturas de re- lações interpessoais e institucio- nais peculiares, capazes de se- guirem processos de moderni- zação compatíveis com as ten- dências mundiais, sem perder o fio histórico e a personalidade que fazem de cada espaço um conjunto único de pessoas, re- gras, cultura, entre outros. No contexto da cafeicultura, a glo- calização pode ser entendida como a capacidade de cada na- ção participante da atividade de se enquadrar às novas tendên- cias da cafeicultura mundial, sem perder de vista sua tradi- ção e as respectivas característi- cas emblemáticas inerentes a cada região produtora de cafés, inseridas num contexto de eco- nomia de mercado. Se ponderarmos que atual- mente a cafeicultura como ne- gócio gera cerca de 62 milhões de empregos diretos e indiretos e US$ 80 bilhões/ano, podemos dizer que a discussão em relação ao significado da agregação de valor, ante o contexto da glocali- zação, passa a eleger como fun- damento o seu cunho social, por configurar-se força motriz para a expansão da oferta de empre- gos (embora este crescimento não seja no curto prazo, equiva- lente à distribuição equânime de renda). Além disso, essa bandei- ra alavanca o processo de desen- volvimento ao mesmo tempo em que fortalece o processo de coordenação das cadeias produ- tivas de cada país inserido na ati- vidade, dentro do espírito “da se- mente à xícara” (esse espírito, dado o processo evolutivo do agronegócio café brasileiro, tam- bém deve refletir-se na marca Cafés do Brasil, que atualmente não expressa a coordenação do agronegócio na sua totalidade). Nesse sentido, a moderniza- ção das políticas públicas em âmbito nacional, que confiram maior competitividade e susten- tabilidade ao setor adquire um caráter de urgência, ao mesmo tempo em que rompe com o modelo político baseado em fa- voritismos, que culminam no engessamento do desenvolvi- mento. Em outras palavras, isso significa construir uma estrutu- ra política macro, inspirada em princípios de sustentabilidade, segurança alimentar, qualidade e respeito aos direitos humanos, mas sem abrir mão de um olhar individualizado sobre a realida- de de cada cafeicultor, de cada industrial, de cada membro res- ponsável pela distribuição e pre- paro dos nossos cafés. É certo que um arranjo desta natureza é extremamente com- plexo, já que supera a capacida- de de investimento do empresá- rio. Ele está mais diretamente re- lacionado à vontade política, à convergência de interesses seto- riais, ao nível de agilidade dos le- gisladores e tomadas de decisão e à capacidade de realizar/cap- tar investimentos por parte do estado. Contudo, esse arranjo é crucial frente à nova realidade da cafeicultura mundial. Apon- tam-se como exemplos a reali- zação da 2ª Conferência Mun- dial do Café (organizada pela Or- ganização Internacional do Café, Governo Brasileiro e Associação de Irrigantes do Oeste Baia- no/Aiba) e a implementação do Centro de Inteligência do Café (CIC), que recentemente empos- sou seu Conselho Gestor. Esse último detém a participação de todos os agentes institucionais da cadeia produtiva nacional, in- cluindo estado, universidades e centros de pesquisa. Quando tratamos de glocali- zação, passamos a observar me- lhor os movimentos das peças que compõem o xadrez da cafei- cultura. Embora outras conversa- ções cruciais estejam acontecen- do, nesta oportunidade chama- mos a atenção para dois cenários importantes que estão se deli- neando e que certamente já in- fluenciam o contexto daqueles envolvidos com o agronegócio. O primeiro e que promete ser uma revolução mercadológica no contexto do café verde no curto e médio prazos, é o Código Comum da Comunidade Cafeeira, tam- bém conhecido como 4C, que ain- da está em discussão no foro da Organização Internacional do Ca- fé, mas que já representa um sis- tema que já responde por uma fa- tia de mercado igual ou superior a 38 milhões de sacas de café. O segundo, diz respeito à gra- dativa transferência da liderança do ranking do consumo per ca- pita/ano mundial dos Estados Unidos para o Brasil. Essa con- quista deverá se consolidar até 2010, quando o mercado brasi- leiro atingirá a meta de 23 mi- lhões de sacas consumidas ao ano. Essa mudança traz à tona a necessidade de investimentos em qualidade tanto na produção quanto na indústria, dado que este crescimento se consolida sobre o processo da formação da cultura de consumo (especial- mente cafés gourmet e sistema de rotulagem e certificação na- cional para industrializados). Por outro lado, ela também deman- da melhor preparo gerencial, já que esta expansão tornará inevi- tável a abertura do mercado na- cional para a importação de ca- fés de outras origens (observa-se que a vinda da famosa rede americana de cafeterias Starbu- cks para o Brasil é uma mostra de que esta não é uma realidade muito distante. A rede trabalha com um portfólio de cafés espe- ciais de diversas origens e vem realizando negociações com o Ministério da Agricultura, Pe- cuária e Abastecimento. Especu- lando um pouco, sabe-se que é o ministério que realiza toda a fis- calização aduaneira e fitossani- tária quando se trata da exporta- ção/importação de produtos de origem vegetal e animal. (É aquela história de 2+2...). Finalizando, ressalta-se que a questão da glocalização não se esgota aqui, mesmo porque a ca- feicultura é um negócio em ple- na ascensão, ainda que as dificul- dades relacionadas a preço não tenham sido resolvidas, e talvez não o sejam, considerando que o café é a segunda commodity mais negociada no mundo, per- dendo apenas para o petróleo. Pelo contrário, esta reflexão ofe- rece um importante precedente para o exercício do livre arbítrio setorial, neste novo século. LEIA MAIS SOBRE CAFÉ PÁGINAS 6 E 7 GADO GALDIER/AP Fazenda em Monte Belo (MG): cafeicultura como negócio gera 62 milhões de empregos diretos e indiretos

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Artigo publicado no jornal Estado de Minas em 30 de setembro de 2005

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A G R O P E C U Á R I O

E S T A D O D E M I N A S ● S E G U N D A - F E I R A , 1 9 D E S E T E M B R O D E 2 0 0 5

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AARRTTIIGGOO

Glocalização na cafeiculturaMARA LUIZA GONÇALVES FREITAS

Administradora e especialista

em cafeicultura empresarial

[email protected]

Embora a discussão fosseimplícita anteriormente, é cer-to que desde a extinção do Ins-tituto Brasileiro do Café, em1989, a agregação de valor tor-nou-se tema norteador das dis-cussões e práticas dos agentesenvolvidos com o agronegócio,por tratar-se de fenômeno/ati-tude glocalizada.

Mas o que é glocalização? Tra-ta-se de um conceito que reúneas perpectivas econômicas e so-ciais oferecidas pelas discussõessobre globalização e território(no sentido de espaço local). Esseconceito avalia estruturas de re-lações interpessoais e institucio-nais peculiares, capazes de se-guirem processos de moderni-zação compatíveis com as ten-dências mundiais, sem perder ofio histórico e a personalidadeque fazem de cada espaço umconjunto único de pessoas, re-gras, cultura, entre outros. Nocontexto da cafeicultura, a glo-calização pode ser entendidacomo a capacidade de cada na-ção participante da atividade dese enquadrar às novas tendên-cias da cafeicultura mundial,sem perder de vista sua tradi-ção e as respectivas característi-cas emblemáticas inerentes acada região produtora de cafés,inseridas num contexto de eco-nomia de mercado.

Se ponderarmos que atual-mente a cafeicultura como ne-gócio gera cerca de 62 milhõesde empregos diretos e indiretose US$ 80 bilhões/ano, podemosdizer que a discussão em relaçãoao significado da agregação devalor, ante o contexto da glocali-zação, passa a eleger como fun-damento o seu cunho social, porconfigurar-se força motriz paraa expansão da oferta de empre-gos (embora este crescimentonão seja no curto prazo, equiva-lente à distribuição equânime derenda). Além disso, essa bandei-ra alavanca o processo de desen-

volvimento ao mesmo tempoem que fortalece o processo decoordenação das cadeias produ-tivas de cada país inserido na ati-vidade, dentro do espírito “da se-mente à xícara” (esse espírito,dado o processo evolutivo doagronegócio café brasileiro, tam-bém deve refletir-se na marcaCafés do Brasil, que atualmentenão expressa a coordenação doagronegócio na sua totalidade).

Nesse sentido, a moderniza-ção das políticas públicas emâmbito nacional, que confirammaior competitividade e susten-tabilidade ao setor adquire umcaráter de urgência, ao mesmotempo em que rompe com omodelo político baseado em fa-voritismos, que culminam noengessamento do desenvolvi-mento. Em outras palavras, issosignifica construir uma estrutu-ra política macro, inspirada emprincípios de sustentabilidade,segurança alimentar, qualidadee respeito aos direitos humanos,mas sem abrir mão de um olhar

individualizado sobre a realida-de de cada cafeicultor, de cadaindustrial, de cada membro res-ponsável pela distribuição e pre-paro dos nossos cafés.

É certo que um arranjo destanatureza é extremamente com-plexo, já que supera a capacida-de de investimento do empresá-rio. Ele está mais diretamente re-lacionado à vontade política, àconvergência de interesses seto-riais, ao nível de agilidade dos le-gisladores e tomadas de decisãoe à capacidade de realizar/cap-tar investimentos por parte doestado. Contudo, esse arranjo écrucial frente à nova realidadeda cafeicultura mundial. Apon-tam-se como exemplos a reali-zação da 2ª Conferência Mun-dial do Café (organizada pela Or-ganização Internacional do Café,Governo Brasileiro e Associaçãode Irrigantes do Oeste Baia-no/Aiba) e a implementação doCentro de Inteligência do Café(CIC), que recentemente empos-sou seu Conselho Gestor. Esse

último detém a participação detodos os agentes institucionaisda cadeia produtiva nacional, in-cluindo estado, universidades ecentros de pesquisa.

Quando tratamos de glocali-zação, passamos a observar me-lhor os movimentos das peçasque compõem o xadrez da cafei-cultura. Embora outras conversa-ções cruciais estejam acontecen-do, nesta oportunidade chama-mos a atenção para dois cenáriosimportantes que estão se deli-neando e que certamente já in-fluenciam o contexto daquelesenvolvidos com o agronegócio.

O primeiro e que promete seruma revolução mercadológica nocontexto do café verde no curto emédio prazos, é o Código Comumda Comunidade Cafeeira, tam-bém conhecido como 4C, que ain-da está em discussão no foro daOrganização Internacional do Ca-fé, mas que já representa um sis-tema que já responde por uma fa-tia de mercado igual ou superiora 38 milhões de sacas de café.

O segundo, diz respeito à gra-dativa transferência da liderançado ranking do consumo per ca-pita/ano mundial dos EstadosUnidos para o Brasil. Essa con-quista deverá se consolidar até2010, quando o mercado brasi-leiro atingirá a meta de 23 mi-lhões de sacas consumidas aoano. Essa mudança traz à tona anecessidade de investimentosem qualidade tanto na produçãoquanto na indústria, dado queeste crescimento se consolidasobre o processo da formação dacultura de consumo (especial-mente cafés gourmet e sistemade rotulagem e certificação na-cional para industrializados). Poroutro lado, ela também deman-da melhor preparo gerencial, jáque esta expansão tornará inevi-tável a abertura do mercado na-cional para a importação de ca-fés de outras origens (observa-seque a vinda da famosa redeamericana de cafeterias Starbu-cks para o Brasil é uma mostrade que esta não é uma realidademuito distante. A rede trabalhacom um portfólio de cafés espe-ciais de diversas origens e vemrealizando negociações com oMinistério da Agricultura, Pe-cuária e Abastecimento. Especu-lando um pouco, sabe-se que é oministério que realiza toda a fis-calização aduaneira e fitossani-tária quando se trata da exporta-ção/importação de produtos deorigem vegetal e animal. (Éaquela história de 2+2...).

Finalizando, ressalta-se que aquestão da glocalização não seesgota aqui, mesmo porque a ca-feicultura é um negócio em ple-na ascensão, ainda que as dificul-dades relacionadas a preço nãotenham sido resolvidas, e talveznão o sejam, considerando que ocafé é a segunda commoditymais negociada no mundo, per-dendo apenas para o petróleo.Pelo contrário, esta reflexão ofe-rece um importante precedentepara o exercício do livre arbítriosetorial, neste novo século.

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