Iberografias nº11

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A Revista Iberografias nº11, compila as comunicações proferidas no âmbito dos Seminários “(Re)Encontros em tempo de (Des)Encontros - Os Países de Língua Portuguesa e suas Novas Geografias” e “Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança”.

Transcript of Iberografias nº11

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revista de estudos ibéricos

IBERO RAFIASgCentro de Estudos Ibéricos

N ú m e r o 1 1A n o X I2 0 1 5

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COORDENAÇÃO DESTE NÚMERO

Rui JacintoVirgílio Bento

Alexandra Isidro

REVISÃO

Alexandra Pinto CunhaAna Margarida Proença

Ana Sofia Martins

CAPA E CONCEPÇÃO GRÁFICA

Via Coloris

PAGINAÇÃO

Pedro Bandeira

IMPRESSÃO

Marques & Pereira, Lda. - Guarda

EDIÇÃO

Centro de Estudos IbéricosRua Soeiro Viegas, 86300-758 Guardae-mail: [email protected]: www.cei.pt

ISSN: 1646-2858

Depósito Legal: 231049/05

Novembro 2012

O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e opiniões neles expressas.

A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores.

COORDENAÇÃO DESTE NÚMERO

Rui JacintoAlexandra Isidro

REVISÃO

Ana Margarida Proença

CAPA E CONCEPÇÃO GRÁFICA

Via Coloris

PAGINAÇÃO

Marques & Pereira, Lda. - Guarda

IMPRESSÃO

Marques & Pereira, Lda. - Guarda

EDIÇÃO

Centro de Estudos IbéricosRua Soeiro Viegas, 86300-758 Guarda

[email protected]

ISSN: 1646-2858

Depósito Legal: 231049/05

Novembro 2015

Os conteúdos, forma e opiniões expressos nos textos são exclusiva responsabilidade dos autores.

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Índice

5 Cooperação, Conhecimento, Cultura: o CEI e a demanda de horizontes de esperança Rui Jacinto

Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

11 Cinco minutos fazem-me tanta falta! Reflexões sobre práticas e saberes relacionadas com o trigo no concelho de Vinhais - Ivett Kereszt

23 Caminhos da Cal e do Barro, uma rota cultural para o barrocal algarvio Susana Cristina Calado Martins

34 A questão social na mina de S. Domingos no tempo do Estado Novo: lógicas, dinâmicas e ofensivas sociais - Vanessa Alexandra Alvorado Teixeira Pereira

44 O chão e o verbo. O diagnóstico da pátria ibérica no diário de Miguel Torga Tiago Mesquita Carvalho

57 O aproveitamento turístico da via romana XVIII (via nova) como possível vetor de desenvolvimento socioeconómico dos municípios de Terras de Bouro e Lóbios Maria Inês Gusman Correia de Araújo Barbosa

69 Tradições de boas-vindas aos emigrantes portugueses - Patrícia João Gomes Esteves

75 Disponibilidad léxica en la Raya - Elena Gamazo Carretero

84 Guarda, cidade e projecto: um laboratório de representação 4D para a análise, interpretação e reflexão da evolução urbana da cidade - Cátia Sofia Viana Ramos

92 Propostas de regeneração da atividade comercial no atual cenário de crise Eva Sofia Loureiro de Gouveia Lemos Belo

101 Estratégias regionais de especialização inteligente: oportunidades de reestruturação, desenvolvimento e cooperação territorial no contexto das regiões ibéricas Ricardo Filipe Ferreira Moutinho

As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

(Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros

107 Terra-mãe, território e cartografias (psíquicas) nas literaturas africanas: alguns exemplos Pires Laranjeira

112 Weather lore de Pindorama: o conhecimento sobre o tempo e o clima no período não instrumental na antiguidade e no Brasil pré-cabralino - João Lima Sant’Anna Neto

122 A fotografia como leitura da transformação da paisagem - Luísa Ferreira

131 Finalmente o encontro: voltando ao início de uma migração no filme “Central do Brasil”, de Walter Salles (1998) - Fátima Velez de Castro

135 O filme condicionando imagens e induzindo o turismo: o caso da ‘Roliúde Nordestina’ no Cariri Paraibano - Luciano Schaefer Pereira, Ingrydy Schaefer Pereira

145 Novas geografias, crise e interdisciplinaridade: enfrentando desafios propostos pela produção do espaço urbano na modernidade - Eda Góes

154 O contributo do turismo sustentável para a inclusão das comunidades e para a promoção da paz em áreas transfronteiriças - Amélia Cazalma, Fernanda Cravidão, Lúcio Cunha

168 Os riscos naturais nos estudos geográficos em Cabo Verde Sílvia Monteiro, George Satander Freire, Lúcio Cunha

175 (Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros - Eduardo Lourenço

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Nós Terra, Nós Geografia Contributos para uma Geografia de Cabo Verde

181 Cabo Verde segundo Maria Luísa Ferro Ribeiro: território e sociedade

194 Cabo Verde: uma incompleta bibliografia geográfica - Rui Jacinto

Maria Luísa Ferro Ribeiro, a primeira geógrafa de Cabo Verde. Homenagem

203 Si ka badu, ka ta biradu - Rui Jacinto

208 Alice Matos

211 Sílvia Monteiro

212 “O vulcão perto das raízes/E a viola perto do coração” - Professor Doutor Rui Alarcão

214 Dr.ª Madalena Neves

216 Dr.ª Maria Luísa Ferro Ribeiro

223 Professor Doutor João Gabriel Silva

António Gama: viagem, mapas, memória

227 António Gama y el viaje: un geógrafo con una mirada abierta, sin fronteras Valentín Cabero Diéguez

234 Viagem nunca feita: desenhar o mapa do mundo desconhecido - Rui Jacinto

Prémio Eduardo Lourenço [XI Edição | 2015]

244 Agustina Bessa-Luís: breve perfil

245 Galeria de Premiados

Intervenções na Sessão de Entrega do Prémio Eduardo Lourenço 2015

249 Álvaro dos Santos Amaro

251 Eduardo Lourenço

254 Anamaria Filizola - Agustina ou a peste do imaginário

258 Mónica Baldaque

259 Jorge Barreto Xavier

CEI Atividades 2015

263 I. Ensino e Formação

267 II. Investigação. Apoios a Trabalhos de Investigação

269 III. Eventos e Iniciativas de Cooperação. Prémio EL 2015

272 IV. Edições

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Cooperação, Conhecimento, Cultura:o CEI e a demanda de horizontesde esperança

Rui JacintoCEGOT - Universidade de Coimbra

O presente número da Revista Iberografias reúne várias intervenções ocorridas em iniciativas promovidas pelo Centro de Estudos Ibéricos (CEI), em 2015, onde relevam, além do Prémio Eduardo Lourenço, vários debates pertinentes sobre os territórios com que o CEI está particularmente comprometido: os espaços fronteiriços, mais olvidados e de baixa densidade. Quatro domínios fundamentais estruturam as diversas atividades que o Centro tem vindo a protagonizar: Ensino e Formação, com a realização de Cursos (Verão, p. ex.), Conferências e Seminários (Ciclo Saúde sem Fronteiras, p. ex.); Investigação, patrocinando estudos e debates integrados em projetos como Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança ou As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa; Eventos e Iniciativas de Cooperação, tais como o Prémio Eduardo Lourenço ou o concurso Fotografia sem Fronteiras; Edições, que enriquecem o património do Centro, onde se destacam a publicação de mais um número da Revista Iberografias (Nº 11), outro da Colecção Iberografias (Nº 30) e o Catálogo Transversalidades 2015.

Os resultados do envolvimento comprometido do CEI na cooperação territorial, através da sua aposta na valorização dos espaços de fronteira e na afirmação da centralidade da Guarda no eixo científico e cultural Coimbra – Salamanca, estruturado pelas respetivas Universidades e o Instituto Politécnico da Guarda, aponta para que a sua profícua missão seja reforçada a partir do foco estratégico na Cooperação, no Conhecimento e na Cultura.

Cooperação: da minha geografia vê-se a terra e o mar. O diálogo transfronteiriço que tem vindo a ser promovido em torno de temas que vão da saúde à educação ou dos recursos (naturais, patrimoniais, culturais, etc.) às dinâmicas territoriais e aos processos de desenvolvimento regional e local, concentrou no CEI um considerável acervo de informação. Além deste património acumulado, as iniciativas que promove permitem identificar, divulgar e promover diferentes recursos do território, partilhar conhecimento e dinamizar atores, contributo que não pode ser negligenciado na formulação de estratégias que concorram para a coesão e a integração dos espaços transfronteiriços e de baixa densidade.

A experiência capitalizada pelo CEI permite-lhe aspirar encetar cooperação com outras geografias, onde relevam, naturalmente, os Países de Língua Portuguesa (PLP), alargando as redes e parcerias já instituídas a atores e investigadores da comunidade lusófona, com vantagens reciprocas. Repartidos por diferentes continentes, detentores duma geografia diversa e duma posição (geo)estratégica invejável a nível global, os Países de Língua Portuguesa concentram perto de 280 milhões de pessoas, que fazem do português a língua mais falada no hemisfério sul e a quinta do mundo. É uma oportunidade que não pode ser negligenciada, num momento de crise e incerteza como o que atravessamos.

6Cooperação, conhecimento, cultura: o CEI e a demanda de horizontes de esperança

A pretensão de envolver a comunidade científica dos PLP na promoção dum diálogo que supere fronteiras disciplinares e geográficas motivou a realização do Seminário (Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros: os Países de Língua Portuguesa e suas Novas Geografias, cujas intervenções se publicam nesta edição. Superar as fronteiras disciplinares exige o envolvimento ativo de diferentes áreas do saber, como foi o caso, da literatura (p. ex.: território e cartografias (psíquicas) nas literaturas africanas) ao estudo da imagem, onde se mostrou como a fotografia ou o cinema permitem ler a transformação da paisagem, abordar temas como as migrações (filme “A Central do Brasil”, de Walter Salles) ou evidenciar a sua importância na indução do turismo.

As fronteiras geográficas também se podem esbater ao fomentar estudos e debates comparados entre os diferentes PLP: há artigos que retratam diferentes aspetos do Brasil, registam impressões de cronistas e via jantes sobre o tempo e o clima do Brasil ou os desafios que resultam da produção do espaço urbano na modernidade; um trabalho sobre Angola aborda o desenvolvimento sustentável do turismo nas áreas transfronteiriças, como esta atividade pode contribuir para a inclusão das comunidades e a promoção da paz. Cabo Verde, que “fabrica o seu próprio chão, inventa a sua própria água, repete dia a dia a criação do mundo”, como escreveu José Saramago, teve uma representação destacada, seja através dm trabalho sobre riscos naturais seja pela sentida homenagem à primeira geógrafa do arquipélago.

Aprofundar este diálogo também é reconhecer o papel da cooperação para estreitar laços e promover o desenvolvimento dos diferentes espaços lusófonos. Nesta fase da relação entre os PLP, apoiar iniciativas como as que o CEI tem procurado dinamizar, desde debates a trabalhos de investigação conjuntos, ajudam a criar um quadro de relacionamento mais favorável, como vaticinou Eduardo Lourenço: “Penso que vamos viver, no futuro, com mais naturalidade, com uma familiaridade maior, relações com as antigas colónias (…) É pelo menos o que desejo, que este encontro seja apenas um reencontro que estava latente e que agora pode ser explicitado e vivido de uma maneira mais pacífica, mais aberta, mais clara”.

Conhecimento: Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança. A missão assumida pelo CEI, enquanto centro de difusão de conhecimento e de extensão universitária, prosseguiu com a realização de diversas iniciativas, como a que proporcionou um conjunto de comunicações que foram incluídas neste número da Revista. Ao longo dos anos têm vindo a ser abordados temas fundamentais para conhecer os espaços mais débeis com maior profundidade, onde relevam: paisagens, patrimónios e valorização dos recursos naturais e culturais; riscos naturais e gestão dos espaços protegidos; saúde, educação, equidade e coesão social; dinâmicas e processos de reestruturação territorial; redes de cooperação e iniciativas de desenvolvimento local, em contextos rurais e urbanos.

Alargar e aprofundar os debates sobre estes temas obriga repensar as linhas de força que definem uma agenda útil e pertinente para os territórios fronteiriços e de baixa densidade, assumindo linhas de ação estruturantes como: (i) cooperação territorial, tendo por base a cooperação transfronteiriça sem deixar de envolver outras geografias, particularmente os Países de Língua Portuguesa; (ii) investigação em áreas críticas e estruturantes para a coesão económica, social e territorial; (iii) assumir o legado de Eduardo Lourenço e a cooperação transfronteiriça para aprofundar o debate sobre o papel e a importância das atividades culturais para a coesão social e territorial.

Cultura: Eduardo Lourenço e a Guarda, da fronteira peninsular à lusofonia. O CEI tem o privilégio de contar como patrono o Professor Eduardo Lourenço e de a Guarda, onde está sediado, beneficiar duma posição central no eixo científico e cultural formado por Coimbra, Salamanca e respetivas Universidades. Tais referências, não o limitam nem circunscrevem à cidade mais alta, lugar onde mergulham as suas raízes; ao assumir o legado e a universalidade do pensamento do seu mentor e aspirar desbravar as fronteiras do conhecimento, não é gratuita a ambição de assumir aquele lugar de origem como ponto de partida para fazer um percurso mais global. Tal “glocalização” não dispensa que o CEI tenha os pés assentes na terra sem deixar de abrir o coração a diálogos mais abrangentes, que vai para além das fronteiras peninsulares em demanda doutras coordenadas que passam, antes de mais, pelo mundo da lusofonia.

7Rui Jacinto

Esta perspetiva inspirou algumas iniciativas realizadas, num ano em que um dos pontos altos foi a atribuição do Prémio Eduardo Lourenço 2015 à escritora Agustina Bessa-Luís. A dificuldade em encontrar as palavras certas para evidenciar os méritos da autora e a justeza da atribuição do Prémio, assume-se a referência de Eduardo Lourenço: “Agustina é, verdadeiramente, não só uma natureza genial no sentido, no grau de imprevisibilidade, de originalidade da sua imaginação, da sua escrita, mas também qualquer coisa ainda mais rara, uma espécie de abundância inexplicável, de torrente indomável acerca de uma experiência ao mesmo tempo limitada como é a de cada um de nós”.

A edição deste ano do projeto Transversalidades. Fotografia sem Fronteiras teve o mérito de abrir o CEI a países de outros continentes, onde o Brasil registou uma participação assinalável. Ao recorrer à imagem como meio para promover a cooperação territorial, apela-se o seu valor estético, documental e pedagógico para promover a inclusão dos territórios menos visíveis e, deste modo, valorizar paisagens, culturas e patrimónios olvidados. Enquadram-se ainda neste tipo de intervenção duas singelas mas significativas homenagens: a evocação de António Gama Mendes, durante o Curso de Verão, em memória e reconhecimento do seu contributo desinteressado, generoso e solidário que sempre deu ao CEI; a referência a Maria Luísa Ferro Ribeiro, primeira geógrafa de Cabo Verde, durante a semana cultural da Universidade de Coimbra, dedicada à celebração dos 40 anos de independência dos PLP.

A evocação de António Gama centrou-se na viagem, a que atribuía grande importância na formação cívica, lembrado como um geógrafo com uma mirada aberta, sem fronteiras, possuidor dum pensamento crítico, integrador e transdisciplinar, que partilhava desinteressadamente os seus ensinamentos geográficos. Fiel ao seu espírito e ao sabor do seu imaginário, esta viagem de afetos cruza geografias de aquém e de além-fronteiras, da Beira maternal à região mais remota dum qualquer país de língua portuguesa, onde é possivel tocar os recônditos sertões, savanas ou charnecas.

Maria Luísa Ferro Ribeiro tem um vasto percurso que, depois duma incursão precoce pela investigação geográfica, passa pela educação, onde atingiu altos cargos em Cabo Verde, tendo-se ainda dedicado à divulgação científica e cultural, sem deixar de abraçar causas públicas e cívicas. Importa sublinhar a dimensão humana que esteve presente na decisão de escolher o Curso de Ciências Geográficas, onde foi decisiva a influência do meio, a seca e a fome que assolavam Cabo Verde, o contacto com as “famílias que emigravam, gente que morria pelas ruas e crianças evacuadas para a ilha de São Vicente para escaparem à fome”.

A veemência do seu testemunho justifica e desculpa uma citação mais longa: “Lembrei-me da Rosa, uma criança recolhida pela minha mãe, de entre as muitas que eram enviadas para São Vicente para escapar à fome, conforme o relato do Professor Aurélio Gonçalves”. (…) “E passei a observar e a tentar compreender a realidade que me cercava. A chuva que caía no mar e não na terra, colegas minhas que viviam só com a mãe porque o pai estava “embarcado”, as conversas que eu ouvia sobre inumanas condições em que viviam os “contratados” de São Tomé.”

“Então decidi que teria que escolher uma alínea que me poderia abrir as portas para um curso que me levasse a questionar o porquê da difícil situação da nossa realidade, a encontrar respostas para o ciclo que nos apertava. Confiante, a minha opção foi seguir o curso de Ciências Geográficas. A geografia, pensava eu, poderia proporcionar-me os conhecimentos para a compreensão da realidade das nossas ilhas. Foi o meu encontro emocional com a Geografia. Hoje posso dizer que encontrei a geografia a partir de problemas sociais.”

Horizontes de esperança: uma agenda renovada e inovadora, focada nos temas e nos problemas dos territórios transfronteiriços e de baixa densidade. No limiar dum novo ciclo (2014-2020), importa explorar outras oportunidades, a começar pelas iniciativas que o CEI tem vindo a empreender, no âmbito da cooperação, visando esbater fronteiras entre pessoas, instituições e territórios, qualificar territórios e promover a coesão social. Os objetivos que têm vindo a ser prosseguidos estão em linha com as orientações estratégicas preconizadas para o próximo ciclo de políticas públicas, designadamente: (i) a Estratégia Europa 2020, donde emana o enquadramento conceptual da fase atual da Cooperação Territorial Europeia, que aponta para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo para a União Europeia, o que implica apostar na Investigação e Desenvolvimento (a UE deve investir 3% do PIB em I&D), dar atenção às alterações climáticas e à sustentabilidade energética, à educação, ao combate

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à pobreza e à exclusão social; (ii) o Acordo de Parceria – Portugal 2020, particularmente a estratégia de Cooperação Territorial, vertida no Programa Operacional Transfronteiriço Espanha - Portugal (POCTEP) – Interreg-A (2014-2020), que obedece a um roteiro que passa, entre outros, pelos seguintes Objetivos Temáticos: Promover a adaptação às alterações climáticas e à prevenção e gestão de riscos (OT 5); Preservar e proteger o ambiente e promover a utilização eficiente dos recursos (OT 6); Reforçar a capacidade institucional (OT 11).

O reforço da capacidade de intervenção do CEI passa, pois, por dinamizar iniciativas no âmbito da cooperação, do conhecimento e da cultura, estimular a investigação e apoiar estudos e debates que permitam capacitar pessoas e internalizar competências nos territórios. Estes pressupostos encontram eco em diferentes Eixos Prioritários do POCTEP, designadamente os que apontam para: Crescimento inclusivo através da cooperação transfronteiriça para a competitividade empresarial; Crescimento sustentável através da cooperação transfronteiriça, para a prevenção de riscos e melhor gestão de recursos naturais; Melhoria da capacidade institucional e a eficiência da administração pública através da cooperação transfronteiriça.

Um olhar prospetivo deve abrir uma nova janela de oportunidade para o CEI e um horizonte de esperança para os territórios fronteiriços e de baixa densidade, com que está mais comprometido, o que implica, antes de mais, reforçar a sua capacidade institucional. Valorizar o património acumulado e dinamizar uma agenda renovada e inovadora, aberta à sociedade, portanto, em permanente atualização, também passa pela sua afirmação como centro de difusão de conhecimento e de extensão universitária, transfronteiriço e transdisciplinar, que acolha entre as suas coordenadas de atuação:

. Cooperação. Esbater fronteiras, qualificar pessoas, valorizar territórios. O reforço da capacidade institucional do CEI é importante para continuar a promover iniciativas de cooperação territorial, alargar a conexão com redes e parcerias transfronteiriças e lusófonas, que impulsionem a investigação e internalizem competências no território.

. Conhecimento. Um centro de difusão de conhecimento, de capacitação e de investigação para coesão social e territorial. Afirmar o CEI como parceiro estratégico dum “crescimento inteligente, sustentável e inclusivo” passa por conectar investigação em áreas críticas para a coesão económica, social e territorial, dinamizando a pesquisa estruturada a partir de linhas de ação como: Territórios, sociedades e culturas em tempo de mudança; Património, recursos do território e riscos naturais; Dinâmicas e coesão social: educação, saúde, combate à pobreza e inclusão social; Governança, capacitação institucional e modernização administrativa.

. Cultura. Eduardo Lourenço, o CEI e a Guarda na afirmação do eixo cientifico-cultural Coimbra-Guarda-Salamanca. Partindo de Eduardo Lourenço, do cidadão e da sua obra, da Guarda e da afirmação do eixo cientifico-cultural Coimbra-Guarda-Salamanca, importa continuar a debater a relação cultura-território, a importância das atividades culturais para a coesão social e territorial, dinamizando um fórum cultural transfronteiriço.

A terminar, é justo agradecer às entidades parceiras que institucionalizaram e dirigem o CEI, particularmente a Câmara Municipal da Guarda, cujo apoio financeiro viabiliza o seu funcionamento. É da mais elementar justiça agradecer também aos inúmeros colaboradores do Centro, tanto dos que escreveram artigos incluídos nesta Revista, como aos que animam as diversas iniciativas realizadas durante o ano de 2015; é devida, ainda, uma palavra de reconhecimento, aos milhares de participantes nas iniciativas promovidas pelo CEI que, sendo a sua razão de ser, muito o honram com a sua presença.

Cooperação, conhecimento, cultura: o CEI e a demanda de horizontes de esperança

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Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

10Diálogos lusófonos: o Brasil no Curso de Verão 2014

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Cinco minutos fazem-me tanta falta!1 Reflexões sobre as práticas e saberesrelacionados com o trigo no concelhode Vinhais

Ivett KeresztProfessora Titular de Geografia Humana da USPEx - Pro Reitora de Graduação da UNILA – Universidade da Integração Latino-americana

P’ra o ano ser bom de pãosete neves e um nevão.2

IntroduçãoCom um total desconhecimento do terreno de investigação (salvo algumas estadias curtas

no concelho de Vinhais), concebeu-se um projeto de investigação inicial algo ambicioso, que partiu do imaginário de um possível continuum cultural transfronteiriço na área de confluência dos três antigos reinos medievais de Portugal, Leão e Galiza, tendo o Penedo dos Três Reinos como centro. Nesse projeto figurava a recolha de informação sobre saberes relacionados com técnicas de transformação do trigo3 nos três lados das fronteiras, regionais entre Galiza e Castilha e Leão e internacionais entre Espanha e Portugal, na região de Trás-os-Montes, na parte setentrional do concelho de Vinhais onde estes territórios se juntam. De fato, houve uma incursão nas aldeias fronteiriças nos concelhos de A Mezquita (Galiza) e Hermisende (Castilha e Leão) onde foram efectuadas entrevistas semi-estruturadas a várias informantes, as quais nos elucidaram sobre a inexistência de cultivos de trigo naquela zona, sendo o centeio o cereal dominante. Nas palavras de uma senhora de O Pereiro: “Aqui nunca houve trigo, o trigo quer terra quente!”

Outra linha da investigação pretendia encontrar mulheres que ainda fizessem pão, mas só conseguimos encontrar senhoras (nos seus setenta, oitenta anos com exceção de uma que estava nos seus cinquenta) que atualmente já não coziam pão mas que o tinham feito de forma regular no passado (pão de centeio, e ocasionalmente de mistura com trigo que se chamava: centenilla) para o consumo das suas famílias. Estas práticas em desuso foram então relembradas e registadas com recurso a tecnologia audiovisual.

1 - É a resposta que uma das nossas informantes chave acostuma dar na aldeia às outras mulheres quando elas a param na rua só para falar “só cinco minutos”, esta frase espelha o quão ocupadas andam, em geral, as mulheres no seu dia-a-dia com todas as tarefas que têm que realizar.2 - Refrão recolhido em Montesinho, em TABORDA, Vergílio: 2011 (or. 1932): 80. 3 - O projeto baseou-se nos nossos conhecimentos de práticas de elaboração de pão em forno de lenha e de cuscos de farinha de trigo que algumas mulheres ainda continuam a fazer em algumas aldeias dos concelhos Vinhais e de Bragança. A intenção era verificar se no outro lado da fronteira existiam as mesmas práticas ou não. Curiosamente, embora não tivéssemos encontrado ninguém que fizesse pão, a reza que outrora oravam para benzer a massa do pão era a mesma naquele lado da fronteira (Castromil castelhano e Esculqueira) e nas aldeias abordadas do concelho de Vinhais. A descrição desta reza seguirá mais a frente neste artigo.

Por outro lado, António Manuel Monteiro afirma no seu livro “Comidas Conversadas” referindo-se a cuscos, que “(...) estes pequenos grânulos de farinha triga - de trigo candial – (…) localidades fronteiriças a Chaves, Vinhais e Bragança – registam as designações de cozco ou cuzco, cozcucho (Ponferrada), cuscús, cuscúz e cus-cuz – de Benavente, Zamora a Ciudad Rodrigo.”, citado de MONTEIRO, 2014: 79. Mas, infelizmente, nós não conseguimos encontrar ninguém que (re)conhecesse os cuscos pela amostra que levámos connosco, salvo uma senhora da aldeia de O Pereiro, mas a mãe dela era portuguesa e lembrava-se de comer cuscos em criança na aldeia da mãe (Sernande) feita pela avó materna.

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Numa das aldeias visitadas (O Pereiro) o forno comunitário foi convertido em “Teleclub” (lugar de encontro social para as/os aldeões) e numa outra (Esculqueira) embora tenham recuperado os dois fornos comunitários, apenas utilizam o mais pequeno (por necessitar

de menos quantidade de lenha) e quase exclusivamente em ocasiões festivas, servindopara assar leitões, cabritos e empanadas galegas. Nestas aldeias não conseguimos en-

contrar ninguém que elaborasse pão de forma regular para consumo próprio, as pessoas habituaram-se a comprar pão aos vendedores ambulantes que percorrem a zona, ou nas padarias locais como é o caso de Castromil castelhano. Além disso, as informantes de Castromil castelhano também nos contaram que antigamente iam a Moimenta buscar pão que contrabandeavam através da fronteira. Outras informações sobre o ciclo do centeio e aspectos da cultura material e imaterial com ele relacionados foram também registados. Deste encontro etnográfico resultou um vídeo de curta duração apresentado no Seminário Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança na cidade da Guarda, no dia 20 de Junho de 2015.

Após a constatação de que o cultivo de trigo era praticamente inexistente nas partes galegas e castelhanas que fazem fronteira com o concelho de Vinhais, tivemos que reorientar o projeto de investigação e concentrar-nos apenas nas aldeias deste concelho português, onde já tínhamos escolhidas duas informantes privilegiadas que ainda elaboravam pão em forno de lenha a partir de farinha de trigo e um outro alimento produzido a partir de trigo chamado: ‘cusco(s)’4.

Marco teóricoPara a abordagem do tema da transformação do trigo e o conhecimento associado

a estas práticas, a primeira questão que surge, é: quem o produz, e quem detém estes conhecimentos? A resposta hipotética seria: maioritariamente as mulheres, salvo o processo de cultivo que habitualmente é partilhado entre homens e mulheres. Por consequência, o marco teórico tem que se adequar ao estudo deste coletivo (as mulheres), e às características inerentes a essa condição (ser mulher num contexto específico). Esta abordagem adotada denomina-se perspetiva de género que significa ter em conta as diferenças, a diversidade de condições e circunstâncias entre homens e mulheres, no entanto não descuidar o contexto geral de cada pessoa. “El enfoque de género considera las diferentes oportunidades que tienen los hombres y las mujeres, las interrelaciones existentes entre ellos y los distintos papeles que socialmente se les asignan.” [sic] (FAO, 1998, documento online) Por outro lado, consideramos de máxima importância evitar o uso de estereótipos e visões essencialistas na hora de tratar as atividades das mulheres e dos homens.

É imprescindível examinar também com perspetiva de género as noções de ‘trabalho’, ‘divi-são sexual do trabalho’5 e ‘trabalho feminino’. Nas palavras de Henrietta L. Moore (1996: 60):

“La aparente invisibilidad del trabajo de la mujer es una de las características de la división sexual del trabajo en muchas sociedades , y se ve acentuada por la óptica etnocéntrica de investigadores y políticos, y por las ideologías tradicionales de género. Si el trabajo se entiende normalmente como «trabajo remunerado fuera del hogar», entonces las labores domésticas y de subsistencia desempeñadas por la mujer quedan infravaloradas. Esta definición de trabajo persiste en ocasiones aun cuando contradice claramente la experiencia y las expectativas de las personas. Abundan en la literatura ejemplos admonitorios

Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

4 - O(s) cusco(s) é/são uma comida feita de farinha de trigo mole (triticum aestivum), água e sal em Trás-os-Montes, parecida com os cous-cous dos países do Magreb, da Sicília ou de Malta, com a diferença que naqueles países/regi-ões é feita de trigo rijo ou duro (triticum durum). Especula-se que ao Trás-os-Montes pode ter chegado na altura da ocupação árabe de algumas partes da Península Ibérica, e/ou mais tarde por via dos/das refugiados/as judeus que encontraram abrigo nessa região. As senhoras entrevistadas da nossa investigação chamam-no: ‘cusco’. 5 - “En todas las sociedades, mujeres y hombres desempeñan ocupaciones diferentes y asumen diversas responsa-bilidades en las actividades del hogar. En el caso de la mujer, el trabajo y la familia siempre están vinculados entre sí y gran parte de sus labores no son retribuidas monetariamente, aún cuando sean tareas productivas. Por su parte, el hombre suele desempeñar un papel marginal en las labores domésticas, ya que en teoría es a él a quién le corres-ponde realizar el trabajo retribuido fuera del hogar.” (FAO, 1998, documento online)

13Ivett Kereszt

de mujeres tildadas de «amas de casa», cuando en realidad se ocupan de labores agrícolas y de una producción de mercado a pequeña escala, además de las tareas propias del cuidado del hogar y de la prole. Con estas actividades las mujeres contribuyen de forma significativa a la economía doméstica, tanto indirectamente, en términos del trabajo no remunerado en el campo y en la casa, como directamente, a través del dinero que recaudan con la venta en el mercado y con la producción de otros productos de consumo.” [sic]

Já, a teoria das interseções elucida-nos ainda mais na demarcação de cada um/a na hierarquia social e na atribuição de status, sendo assim: dependendo se alguém é categorizada como homem ou mulher, e se é proveniente da cidade ou do campo, se é jovem, de meia idade ou anciã/o, se pertence à classe económica baixa, média ou alta, se acabou os estudos ou não, se é casado/a ou solteiro/a, etc., todos estes factores terão diferentes repercussões no percurso da sua vida, traduzindo-se, por exemplo, no acesso a oportunidades de emprego assalariado; ou mesmo em termos da alimentação, definindo-se segundo a aplicação desta teoria nos Feminist Food Studies se é produtora de alimentos ou consumidora de alimentos produzidos e elaborados por outros/as. (ALLEN e SACHS, 2007) No nosso caso concreto, as nossas informantes pertencem ao grupo de mulheres que vivem no meio rural, já não são propriamente jovens, têm baixa escolaridade, dedicam-se às tarefas da agricultura familiar e à produção e elaboração de alimentos em pequena escala.

Uma vez que o nosso tema se insere nos processos de produção de alimentos, é pertinente esclarecer o que se entende por ‘cultura alimentar’ e em que difere do ‘património alimentar’, segundo Elena Espeitx:

“La cultura alimentaria se desarrolla en el contexto de unas determinadas relaciones socio-técnicas de una sociedad con su entorno y se fundamenta en el establecimiento de categorías, de clasificaciones sobre las que se construye todo de un edificio de normas, de reglas más o menos rígidas, más o menos interiorizadas, pero en cualquier caso operativas. Así, la cultura alimentaria incluiría los productos y sus técnicas de producción o elaboración, y también valores, creencias, usos, costumbres y formas de consumo que se le asociaran.” (ESPEITX, 2004: 195)

Por outro lado o ‘património alimentar’ seria a seleção de algumas partes de essa cultura alimentar de um coletivo determinado:

“El patrimonio alimentario de un determinado colectivo es una selección de parte de su “cultura alimentaria” a la que se le atribuye carta de “tradicionalidad”. Los elementos convertidos en patrimonio no agotan todo lo que esa cultura alimentaria es, a menudo ni tan solo presentan de manera fidedigna una parte de ella.” (ESPEITX, 2004: 195-196)

MetodologiaPara desenvolver a investigação escolheu-se uma metodologia qualitativa, recolhendo

informações no terreno acompanhado com observação direta. Sendo que, a predileção em termos de método recai sobre a abordagem usada por investigadoras feministas durante as sessões de entrevistas. Seguindo os princípios de Ann Rosamund Oakley (1981) as entrevistas transformam-se assim em conversas frutíferas para os dois lados: para quem está a investigar e para a pessoa abordada (Oakley citada em LANDMAN 2006: 431, tradução própria):

“1. o/a entrevistador/a apresenta a sua própria identidade no processo, não só fazendo perguntas, senão partilhando também conhecimento;esta reciprocidade convida uma intimidade que encoraja revelações por parte da 2. pessoa estudada em relação à sua realidade material;desenvolvendo um modelo de investigação participativo que desafia as relações de 3. poder entre a investigador/a e a pessoa estudada;produzindo um trabalho que desafia os estereótipos dominantes entre o/a 4. investigador/a e a pessoa estudada.”

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Escolhemos duas senhoras para as entrevistas/conversas em profundidade, cuja identidade será protegida neste trabalho por razões éticas, sendo que algumas das atividades desenvolvidas por elas podiam ser categorizadas desde certos pontos de vista (embora não o sejam desde o nosso) como “paralelas” ou fora do circuito estabelecido do mercado legislado.

Entre as duas informantes chave, com uma (A) já a tínhamos encontrado em outras ocasiões anteriores, e daí surgiu a facilidade da aproximação, com a outra senhora (B) não tivemos esta relação prévia por isso a qualidade dos dados recolhidos foi diferente. Ainda é de acrescentar que a senhora B já foi procurada por outro/as estudiosos/as e curiosos/as no passado, tendo o seu discurso bastante moldado por influência destes encontros, o que “dificultou” o processo do trabalho de campo.

...A análise é feita a partir dos testemunhos recolhidos completados com a observação, pelo método comparativo e pela descrição das atividades e processos, dando visibilidade e simultaneamente valorizando os trabalhos desempenhados pelas mulheres que se disponibilizaram como informantes principais para este estudo.

ContextualizaçãoVinhais é um município do distrito de Bragança, na região de Trás-os-Montes, o município

é limitado a norte e oeste pela Espanha a leste pelo município de Bragança, a sul por Macedo de Cavaleiros e Mirandela e a oeste por Valpaços e Chaves. Concelho rural, montanhoso e isolado com um povoamento disseminado em pequenos núcleos populacionais que pontuam a paisagem e que de uma forma geral não ultrapassam os 100 habitantes, a parte norte do concelho está inserida no Parque Natural de Montesinho. Faz parte da Terra Fria Transmontana que é constituída por uma sucessão de plataformas a uma altitude média de 700-800 m, cortados pelos vales profundos dos rios que a atravessam e de zonas de montanha acima dos 1000 metros, o clima espelha-se no proverbial “Nove meses de inverno e três de inferno”, com invernos longos e frios e verões quentes e secos, (CASTRO et al, 2010). Concelho com um acentuado envelhecimento da população e marcado por um forte êxodo rural teve outrora uma economia local quase totalmente agro-pastoril, a predominância das actividades agrícolas como fonte exclusiva de rendimento tem dado lugar a outras estratégias de rendimento pluriactivo, ainda assim a agricultura de subsistência continua a ser de uma forma geral uma base para a autosuficiência destas populações. A actividade agrícola está sobretudo assente na pecuária, na cultura cerealífera e na plantação de culturas permanentes como o castanheiro, grande fonte de rendimento de muitas famílias que tem vindo a ganhar terreno sobre a produção cerealífera assim como a criação da raça bovina Mirandesa e outras raças autóctones. (MOREIRA, 2001)

“Ainda que as restrições das disponibilidades de tempo das famílias pluriactivas joguem um papel grandemente limitativo na escolha das actividades agrícolas possíveis, a produção agrícola toma, mesmo assim, uma importância considerável na reprodução dessas famílias. Naquelas em que o montante de património fundiário é reduzido, a produção agrícola serve sobretudo para fornecer autoconsumos; mas, nas famílias com patrimónios fundiários mais importantes, a produção agrícola permite obter rendimentos monetários não neglicenciáveis.” (RODRIGUES, 1996: 393)

As informantes chaveA senhora ‘A’ (55 anos) nasceu, criou e casou-se na sua aldeia (na atualidade com cerca

de 80 habitantes) tal como a senhora ‘B’ (61 anos, vive numa aldeia com cerca de 180 habitantes), e nenhuma delas emigrou, embora tenham familiares a viver no estrangeiro. A única diferença neste ponto é que a senhora ‘B’ teve alguns anos fora da aldeia acompanhando um dos filhos quando este foi estudar para o litoral, mas voltou para a aldeia logo depois. Vivem as duas com os seus maridos e com algum familiar incluído no seu núcleo doméstico. No caso da senhora ‘A’, o casal vive com uma das filhas e com o filho desta; no caso da senhora ‘B’, o casal vive com a irmã do marido na mesma casa. Nos dois casos os/as filhos/as e os/as netos/as vêm de visita nos fins-de-semana uma vez que habitam nas proximidades. As duas mulheres, seguindo um modelo mais tradicional de género, dão

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a máxima importância às suas famílias e ao matrimónio que concebem como “eixo vertebral das suas vidas” (del VALLE et al., 2002: 225, tradução própria). Ambas as senhoras têm como responsabilidades prioritárias a satisfação da necessidade alimentar e o bem estar dos seus/suas familiares. Por um lado, correspondem assim ao modelo tradicional da mulher no contexto das aldeias estudadas como boas provedoras para a família, por outro é importante ressaltar a capacidade e experiência de saberem aproveitar e canalizar os recursos para este fim de uma forma otimizada. Para “não saírem da regra”, as duas desempenham as suas atividades domésticas da melhor forma possível, e inclusive vão mais além, tendo orgulho em continuar com algumas das técnicas tradicionais de fabrico alimentar das suas aldeias, tal como fazer pão no forno de lenha, elaborar o ‘cusco’ e os produtos do fumeiro, etc. Antes, estas práticas eram destinadas principalmente para o consumo familiar, mas com o decorrer do tempo os hábitos e os costumes nas aldeias e nas vilas também foram alvos de transformações e alguns núcleos domésticos adaptaram outras formas de elaboração de refeições (menos trabalhoso), que ofereceu uma oportunidade de ingresso complementar a estas mulheres que continuam com “os velhos hábitos” e não se importam de vender os seus excedentes.

No que toca às suas atividades económicas, os dois maridos já trabalharam fora em empregos assalariados, mas neste momento estão mais envolvidos com os trabalhos de lavoura e de cultivos nos terrenos da família. Anteriormente faziam isso nos fins-de-semana, neste momento dispõem mais tempo para a agricultura familiar. Os homens, como é o hábito na divisão sexual do trabalho na agricultura familiar, trabalham os terrenos maiores mais afastados da aldeia com máquinas agrícolas, tratores, cegadora-debulhadora, enfardadeira, etc. As mulheres tratam das hortas perto da casa (que requer trabalho diário nas épocas de cultivo: no início semear e plantar e durante o ciclo vegetativo: regar, cavar, mondar, podar e colher) isso tudo é responsabilidade exclusiva delas, salvo antes da sementeira quando é preciso “passar o trator”, além disso ajudam nos trabalhos da colheita na altura das ceifas, nos cultivos dos cereais e na apanha da batata e da castanha, etc. As tarefas relacionadas com os animais são também responsabilidade das mulheres, dar-lhes comer (porcos, galinhas, cães) e tratar em caso de doença, etc. Isto, no caso de ‘A’ também inclui a ordenha das cabras, e de levá-las pastar ou ir com elas até ao lameiro juntamente com as ovelhas (tem mais cabras, ovelhas só tinha três na altura das nossas visitas para a investigação). Do leite que ordenha ao final do dia faz queijo que demora oito dias a curar. ‘A’ tem muito gosto em criar animais, diz que é o que mais gosta, tendo além dos já mencionados: coelhos, pombos, patos, gansos, já teve também perus, mas deu-lhe um desgosto grande porque morreram de doença. Antes também tiveram vacas e burros, mas decidiram vender.

As duas mulheres são as máximas responsáveis pelo cuidado dos/das familiares, ‘B’ tem dois filhos, ‘A’ tem um filho e duas filhas, atualmente ocupam-se dos/das netos/as, nos fins-de-semana e férias escolares. ‘A’ criou um dos netos com o qual ainda vive (filho da filha mais nova, que esteve emigrada na altura que ele nasceu), “O neto veio cá com quatro meses, primeiro eu não queria, porque estava inscrita num curso na vila a tirar a carta do trator, e não queria perder essa oportunidade, mas a minha filha pediu muito e insistiu, e então, aceitei... o meu marido nunca concordou... Criei-o no trator [embora não tenha a carta ‘A’ dá uso ao trator para trabalhos e itinerários mais pequenos] fazia-lhe uma cama atrás do banco e deitava-o aí..., na cabine do trator, e deixava-o na sombra de um sobreiro, enquanto eu trabalhava... Um rapaz até disse na aldeia: <Nunca vi mulher como esta, acabar de criar os filhos, ainda cria os netos...!> A culpa é do neto, que nunca tirei a carta!- acrescentava já num tom de brincadeira.

‘A’ é quem mais participa nos assuntos comunitários e públicos da sua aldeia, fazendo parte da Junta de Freguesia, mas não tem nenhum cargo de chefia, nem recebe salário, apenas pela cobrança da água e pela limpeza que faz por encargo da Junta em situações pontuais. Também abre o único café da aldeia, quando a filha que o explora não pode ocupar-se dessa tarefa (as pessoas vão buscá-la a casa quando querem passar o tempo a jogar as cartas ou tomar alguma coisa no café). Ela é muito ativa e dinâmica na vida da aldeia, desempenhando as tarefas relacionadas como a preparação e organização das festas locais, é “a eterna mordoma”, organiza convívios e jantares para angariar fundos para a festa maior, encomenda e trata das t-shirts, contrata a banda, etc...

Comparando as duas, é ‘B’ que atualmente elabora mais quantidade de cusco para

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vender, tem encomendas certas de particulares e de um restaurante: “Vou fazendo aos poucos, quase todos os dias faço um pouco quando tenho encomendas maiores, agora já me custa mais, antes conseguia fazer mais rápido e não custava-me tanto... é preciso muita força para torcer.” Já, ‘A’ apenas o faz duas vezes por mês, e de cada vez transforma 12 quilos de farinha em cusco. Para além dos clientes particulares, as duas estão presentes anualmente nas grandes feiras que se realizam na sede de concelho, onde tem possibilidade de vender os seus produtos para um público mais vasto.

Trigo barbela, pão, cusco e a cultura material e imaterial associadaDe um modo geral o cereal que melhor se adapta às condições edafo-climáticas do

concelho de Vinhais é o centeio, mas também são cultivados trigos moles, o tradicional barbela e outras variedades de trigo mole ditas modernas, existe também em menor quantidade o cultivo do trigo serôdio ou tardio de ciclo curto, milho, aveia, cevada e sorgo.

“O trigo não se aclimata bem nas terras, na sua maioria pobres, de Trás-os--Montes. Embora cultivado um pouco por tôda a parte - e não só o trigo de Inverno, como também o de Primavera, o serôdio -, representa uma percentagem mínima em face do centeio.” (TABORDA, 2011: 118)

O Trigo Barbela é o trigo mole tradicional de Trás-os-Montes, é um trigo melhor adaptado às condições edafo-climáticas da região sendo ainda bastante presente nos cultivos cerealíferos, pese o facto de que a maior parte da sua produção se destinar à alimentação animal, mesmo os agricultores que ainda o cultivam não o utilizam nas suas dietas alimentares, os produtos derivados do trigo: pão, cuscos, são feitos a partir de farinha comprada nas moagens de Bragança, as quais utilizam maioritariamente trigos importados de França e Alemanha, sendo apenas utilizado 10% de trigo produzido no distrito (este de variedades “modernas” (Anza, Tua, Almansor, Caia ou Lima) e possivelmente algum barbela. Ainda assim quando se promovem os cuscos e o pão tradicional de vinhais, reproduz-se o discurso de que a matéria prima da farinha utilizada é a variedade de trigo barbela. Ana Maria Carvalho na sua investigação constata que este trigo, com características de centeio é a opção mais apropriada para o agricultor, apesar disto este trigo deixa, em 1987, de pertencer ao Catálogo Nacional de Sementes, sendo impossível hoje comprar semente certificada desta variedade, apesar disto muitos agricultores teimam em semear este trigo, guardando a semente de ano para ano e ocasionalmente trocando com vizinhos de forma a manter a viabilidade das mesmas.

“O trigo Barbela é uma variedade portuguesa de trigo mole obtida pela Divisão de Ensaio de Sementes e Melhoramento de Plantas, da então Estação Agrária Central de Lisboa, e a sua principal característica é uma grande capacidade de adaptação às condições mais adversas de cultivo. Até ao início da década de oitenta foi, provavelmente, a única variedade de trigo cultivada no distrito, constituindo a totalidade da produção entregue na EPAC, entidade então responsável pela recepção e comercialização dos cereais. A citação mais antiga por nós encontrada na bibliografia reporta-se a 1884, numa publicação sobre palhas de trigo (PEREIRA COUTINHO, 1884), mas é provável que a sua obtenção e introdução seja anterior a essa época6. A sua elevada rusticidade revela-se através dos bons resultados que pode atingir, apesar dos magros recursos de que dispõe. Tal como o centeio, o Barbela vai bem nos solos considerados delgados e declivosos, dispensando os maiores cuidados de cultivo, como boas lavouras, adubação estrumação e monda. Hoje em dia, o trigo Barbela é considerado como uma variedade tradicional de Trás-os-Montes e, em especial, da zona climaticamente homogénea designada por Terra Fria.” (CARVALHO, 1993: 53-54)

As vantagens do barbela sobre os “trigos modernos”, beneficia sobretudo os agricultores

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6 - Encontrámos uma referência ao trigo barbela nas Memórias de Gostei e Rabal de 1758 na página 107, em CAPELA, et al. 2007.

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que necessitam de prover alimentação de animais, uma vez que, ainda citando de Ana Maria Carvalho:

“A variedade tradicional Barbela reúne um conjunto de características que lhe proporcionam grande rusticidade e capacidade de adaptação às difíceis condições edafo-climáticas desta zona. Por outro lado, a duração do seu ciclo vegetativo, bem como a particularidade de produzir palha em quantidade e qualidade (quando comparada com outras variedades comerciais de trigo) contribuiu para a preferência dos produtores da região pelo Barbela, apesar das entidades responsáveis pela cerealicultura nacional não lhe terem reconhecido ainda o devido valor agronómico e comercial.” (CARVALHO, 1993: V)

Mas infelizmente a não existência de unidades moageiras que se dediquem à sua farinação para consumo humano, direciona toda a sua produção para a alimentação pecuária, estando o seu cultivo directamente relacionado com a actividade pecuária.

As duas famílias das informantes chave cultivam trigo barbela, mas tal como já referimos apenas usam o grão para alimentar os animais, os porcos e as galinhas, já a palha desse trigo (sendo um trigo mais alto que as variedades modernas, produz mais palha) é utilizada para a cama das vacas, das ovelhas e das cabras, além de as alimentar nos dias mais frios de inverno quando não dá para sair a pastar. A cama dos porcos é feita com palha de centeio, porque o trigo barbela tem umas aristas longas e duras que picam a pele mais fina dos porcos e “põe o couro com arabunhão” (senhora ‘A’)

Antigamente quando os moinhos ainda trabalhavam (até o início dos anos oitenta) usavam este trigo para fazer pão e o cusco, mas “... era muito trabalhoso porque para o nosso uso [humano] tinha que se lavar o trigo antes de moer, ou lavávamos aqui ao pé da fonte, ou nos poços, ou no rio..., isso era em agosto ou setembro, lavava-se em caldeiras de cobre, colhia-se a água com o ‘garabano’7 e esfregava-se com as mãos no fundo da caldeira e se deixava cair para um crivo, fazia-se isso em 3-4 águas, depois colhia-se para uns cestos de verga e se havia pedras e sujidade, continuava-se. Se ainda sobrasse trigo, também lavavam em maio.” (senhora ‘A’)

Depois de lavado, tinha que se estender em mantas grandes a secar ao sol durante um dia inteiro e ir mexendo e virando-o várias vezes, para secar bem, depois à noite guardava-se em sacos feitos no tear; essas atividades, segundo os testemunhos, ainda requeriam bastante tempo.

O nosso moinho tinha três mós, duas eram ‘alveiras’8 e uma ‘morneira’9, uma das alveiras era do povo para moer o trigo, mas havia moleiro, até tinha uma casa aí ao lado, e ele moía sempre, mas quando alguém da aldeia precisava de moer, tinha que libertar a mó do povo. O trigo moía-se duas vezes por ano, mas o centeio moía todo o ano. Ainda íamos lá até aos anos oitenta, com carros de vaca, e moíamos no moinho, mas depois o moleiro foi se embora..., emigrou... Ás vezes tinha que se dormir lá no moinho enquanto se moía... chamavam-lhe o “purgatório”! - contava rindo-se a senhora ‘A’.

Nessa época quando ainda moíam no moinho, a primeira farinha peneirada, mais fina, chamava-se o beijo, essa farinha guardavam para fazer os pães para as festas e para ocasiões como por exemplo a matança, a malha, ou na altura da Páscoa, durante o resto do ano só se comia pão de centeio. A segunda qualidade da farinha do trigo era a sêmea, que utilizavam para fazer o cusco, naqueles tempos quando em todas as casas faziam cusco para substituir o arroz e a massa. “Antes os homens ajudavam torcer e era mais rápido.” (senhora ‘B’). Também fabricavam pão com a sêmea mas juntavam farinha de trigo serôdio para sair melhor o pão.

Hoje em dia as duas famílias moem em casa, num pequeno moinho elétrico, o grão do trigo barbela em pequenas quantidades correspondentes às necessidades diárias alimentares

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7 - Utensílio com cabo comprido de madeira que acaba num recipiente cilíndrico feito de chapa de zinco com capacidade de mais ou menos 2 litros. O garabano da senhora ‘A’ ainda é o mesmo que utilizavam a sogra e o sogro, hoje em dia ela usa para tirar cereais dos sacos na armazém, etc. 8 - As pedras alveiras eram mais macias e habitualmente de calcário, destinadas a moer o trigo.9 - As pedras morneiras eram de granito e as tilizavam para moer essencialmente o centeio.

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dos animais, fazendo uma mistura entre vários tipos de cereais. Dizem que o grão do barbela alimenta melhor, e os animais gostam mais dele do que do ‘trigo rapado’10 “Ainda experimentámos por aí duas vezes com o ‘rapado’, mas os javalis deram cabo dele... e não compensou.” (marido da senhora ‘A’; os assuntos dos cultivos anuais de maior dimensão é o marido que domina mais, nas palavras da senhora ‘A’: “As quantidades é o meu marido é que sabe.”)

A família de ‘A’ atualmente está a cargo de 300 hectares de terra, entre terras de pousio, lameiros, hortas, soutos de castanheiros e outra floresta, e terras destinadas a cereal onde semearam no outono de 2014, aproximadamente: de trigo barbela 60 alqueires11, de centeio 60 alqueires também, de aveia 20 alqueires, de cevada 5 alqueires, e de serôdio 10 alqueires em março de 2015. Cada hectare é semeado mais ou menos com a quantidade de 10 alqueires de semente. Hoje em dia usam químicos para melhorar as condições dos cultivos dos cereais: na sementeira colocam “adubo 130” e depois em fevereiro colocam adubo de cobertura, e se necessário herbicida: “a erva abafa o pão” (senhora ‘A’). Disseram--nos, tanto o marido como ‘A’ que o trigo barbela ganha menos erva, e há anos que não é preciso pôr herbicida. Na colheita, em finais de junho ou início de julho (dependendo do ano) se semearam 9 alqueires de trigo no outono (mais ou menos 100 quilos) colhem aproximadamente 900 quilos de grão. Segundo esse casal o ‘trigo moderno’ ou ‘rapado’ rende mais do que o barbela em quantidade de grão, mas a quantidade de palha obtida é muito inferior ao barbela, além disso os javalis atacam mais as variedades modernas que também requerem o emprego de mais químicos e herbicidas por isso deixaram de semear estas novas variedades. Todos estes trabalhos com os cultivos dos cereais são feitos pelo marido (exceto na colheita onde tem a ajuda do genro e do filho) com auxílio do trator, e contava esse senhor, que o primeiro trator da família foi comprado em segunda mão no ano 1989 e só em 1994 obteve um trator novo Lamborghini.

A maior parte da colheita destina-se à alimentação dos animais, mas também vendem alguma parte12, além de guardarem as sementes para a sementeira do próximo ano. Já na altura da sega com a máquina, estão atentos/as quais seriam os melhores sementes para guardar, sabendo e controlando quais são as partes do cultivo onde há menos erva daninha, e daí escolhem os sacos que servirão para guardar a semente, logo na altura de armazenamento, esses sacos de grão são marcados com um S. “Há que escolher as sementes boas, as mais limpas que não tenham nigela13.” (senhora ‘A’)

Depois da colheita deixam entrar as cabras e as ovelhas nos terrenos onde há restolho para alimentarem-se desses restos e ao mesmo tempo adubam as terras com os excrementos. Nesse terreno já não voltam a semear cereal, só no segundo ano, variando os cultivos, para não cansar o solo. “Onde dão as batatas, no ano a seguir dá bem o trigo e onde dão os nabos dá o serôdio a seguir.” (senhora ‘A’)14 após de concluída a sementeira espetam uns galhos de carvalho em cada ponta da parcela para mostrar que “(...) já está coberta, para não ir lá o gado, chama-se: belizar a terra.” (senhora ‘A’)

O processo do pãoAtualmente as duas senhoras só fazem pão uma vez por mês. Existem restrições: não se

pode cozer pão aos domingos e aos dias santos e quando a mulher está com o período. No inverno o pão conserva-se durante um mês.

A senhora ‘A’ diz que no verão prefere cozer o pão à noite quando não bate o sol na cozinha. A cozinha onde faz o pão e coze no forno era da sogra, que tem um forno maior, cabem até 18 pães grandes de 1 quilo e meio. Na altura do fumeiro, uns dias antes da matança faz três fornadas destas só para os enchidos, porque alguns como por exemplo a

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10 - Denominam assim as variedades modernas porque carecem de aristas.11 - Em Trás-os-Montes 1 alqueire corresponda mais ou menos a 11 quilos.12 - A senhora ‘A’ há dois anos viu-se obrigada pelas novas regras fiscais a registrar-se nas finanças como agri-cultora (o marido não podia porque tinha já um trabalho assalariado) e agora tem que passar faturas das suas vendas, seja a cria de um animal ou sejam os seus cultivos, até teve que contratar um contabilista para lhe ajudar neste processo.13 - “Nigela”: é a uma erva daninha com a flor azul que cresce entre o cereal. 14 - O serôdio é um cereal de ciclo curto cresce desde março até julho, depois de tirarem os nabos da terra plan-tam logo esse cereal aí.)

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alheira e as chouriças de pão, levam pão. Fazer as três fornadas de pão seguidas demora o dia inteiro e termina já noite adentro.

Primeiro é necessário retirar do frigorífico a noite anterior de cozer a porção de massa que se guardou da última vez de amassar e deixar em temperatura ambiente para que “acorde”. No dia seguinte adiciona-se esse fermento à massa que está a ser amassada. Para fazer o pão utiliza-se a farinha tipo 6515, que compram em sacos grandes de 25 quilos. Para encher o forno grande utilizam essa farinha toda, acrescentando mais ou menos 15 litros de água morna (medem com um tacho grande de 5 litros, três deste) e três mãos cheias de sal grosso (para cada tacho de água morna uma mão cheia de sal).

Começam por peneirar a farinha para a maceira grande (guardando alguma para depois polvilhar quando for necessário), depois misturam a água morna com o sal grosso num buraco feito no meio da farinha com o fermento, que se vai desfazendo. Mistura-se tudo, mexe-se e amassa-se durante mais ou menos 45 minutos com movimentos enérgicos que faz com que a massa tenha bolhas.

Tapa-se a massa com um lençol branco, no inverno recorrem ainda a uma manta bem quente, para deixar levedar, durante uma hora e meia no verão e duas horas no inverno.

Depois de levedar a massa divide-se em porções de um quilo ou um quilo e meio para fazer os pães, isto chama-se: fingir (na Galiza: finxir) e deixa-se levedar mais uma hora.

Aquece-se o forno enquanto os pães estão a levedar (mais ou menos 45 minutos) com lenha de esteva ou de castanheiro, até que as paredes fiquem brancas, quando já há mais quantidade de brasas espalham se de forma uniforme pelo chão do forno, é o processo que chamam rugir o forno. No fim afastam-se as brasas para as laterais do forno e varre-se o forno com uma vassoura de giesta verde (apanhada no mesmo dia) para que o chão do forno fique limpo. Polvilham o pá com farinha para que os pães não colem e colocam-nos um a um no forno quente, começando pela parte mais afastada da porta do forno.

Se os pães são pequenos, de um quilo, demoram a cozer cerca de uma hora e meia, se os pães são maiores de um quilo e meio, demoram duas horas a cozer.

Todo o processo demora aproximadamente 4-5 horas, dependendo se é inverno ou verão e do tamanho dos pães em causa.

O cusco“Há por aí 10-12 anos eu ainda fazia cusco duas vezes por semana para vender... a

minha filha maior ainda vivia cá na altura... vinha um merceeiro a buscar com a carrinha, e ele vendia nas aldeias. Mas não aguentei, cansa muito. (senhora ‘A’)

O cusco que se faz actualmente é elaborado com a mesma farinha que se utiliza para o pão, a senhora ‘B’ compra a farinha numa moagem na capital de distrito, a senhora ‘A’ compra num comércio da sede de concelho. Ambas as farinhas utilizadas não são feitas a partir de trigo barbela, aliás a percentagem de barbela nestas farinhas é residual ou nalguns casos completamente inexistente, no decorrer desta investigação e depois de muito ouvir que o cusco era feito com farinha de trigo barbela, fomos a uma moagem onde habitualmente é comprada a farinha para fazer pão e cusco, onde o responsável explicou-nos que à volta de 30% do grão de trigo que utilizam é procedente de Alemanha (que faz uma farinha chamada “melhorante” porque leveda melhor), 60% é proveniente de França e só aproximadamente 10% vem de produtores locais de distrito de Bragança, e dentro desses 10% apenas um percentagem ínfima é de barbela, mas depende muito do ano, por exemplo há dois anos (2013) receberam mais barbela.

Existem pequenas diferenças na elaboração do cusco por parte das duas senhoras, tanto ‘A’ como ‘B’ aprendeu a fazer pão e cusco por volta dos seus 13 anos com as suas mães e avós, ‘A’ ainda aperfeiçoou essas artes com uma vizinha mais velha e com a sogra também, apesar da transmissão dos modos de fazer tradicionais, tem incluído algumas inovações, nomeadamente o facto das duas já terem adquirido ‘cuscuzeiras’ modernas para utilizar quando têm que fazer grandes quantidades em pouco tempo, por exemplo na altura das feiras gastronómicas de Vinhais. Uma das diferenças é o tempo da cozedura a vapor: ‘A’ coze num pote de ferro ao lume durante uma hora e meia (para cinco quilos e meio de cusco), na cuscuzeira de alumínio no fogão a gás dura cerca de uma hora. Já ‘B’ diz que coze 40

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15 - A denominação tipo 65 refere-se ao tipo de farinha industrial que se utiliza para panificação, em geral.

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minutos a vapor na cuscuzeira com o pote, e 30 minutos no fogão na cuscuzeira de inox, mas ela ‘estende’ sempre o cusco ao sol para secar, enquanto a senhora ‘A’ estende no interior da cozinha, estas diferenças no processo resultam em ligeiras diferenças de cor e textura. Segundo a nossa opinião, seria uma pena, que este produto tivesse que passar por um processo de uniformização para fins de patrimonialização e venda como produto local, isso significaria a perda de “marca pessoal” de cada artesã-produtora. Aliás, cada senhora tem a sua clientela habitual que procura precisamente as características de cada modo de fazer o cusco, dependendo do gosto pessoal de cada um/a: há quem gosta do cusco mais dourado, com um grão maior ou mais pequeno, que se desfaça com maior ou menor facilidade, etc... Na necessidade de escolher um “cusco tipo” para fins de denominação de produto de origem controlada, então qual seria o melhor, o da senhora ‘A’ ou o da senhora ‘B’? É impossível estabelecer critérios objetivos de forma a qualificar o que poderia ser o cusco artesanal de maior qualidade, mesmo que sejam elaborados por cozinheiros de renome...

O processo do cuscoO cusco faz-se numa masseira mais pequena. A senhora ‘A’ de cada vez que faz cusco,

faz entre 10 a 12 quilos de farinha, primeiro salpicam água morna com sal sobre farinha que está na masseira, se isto se faz com ajuda de uma outra pessoa é mais fácil, uma pessoa vai salpicando a farinha com a água, com a mão ou com uma pequena vassoura feita de matéria vegetal, enquanto a outra vai envolvendo a farinha e torcendo. Depois, torce-se o cusco durante quatro horas, o acto de torcer o cusco consiste na repetição exaustiva de movimentos circulares com as palmas das mãos, sempre na mesma direcção, sobre a mistura da farinha com água, que ao ser sujeita a uma leve pressão vai-se aglomerando em pequenas bolas de farinha, que vão sendo passadas por um crivo16 peneirando várias vezes até se obter o tamanho pretendido dos “grãos” de cusco. Não se deve deixar esse processo a meio, há que fazer sempre de modo contínuo para que os grãos não se sequem antes do tempo. A senhora ‘A’ gosta de desfazer com as mãos os grãos maiores que ficam no fundo do crivo. Os grãos estão prontos para cozer ao vapor, quando depois de serem pressionados entre as mãos não permanecem juntos e se começam a soltar sozinhos.

Mas antes, estende-se numa mesa na cozinha com uma toalha branca limpa e deixa- -se secar durante aproximadamente uma hora. Passado esse tempo ainda se torce mais um bocadinho a água ferve para cozer os grãos a vapor. Para cozer a vapor habitualmente usa-se um pote de ferro, antes queimavam-se os ‘torgos’17 para fazer brasa que metiam por baixo do pote. O cusco torcido coze-se a vapor num recipiente próprio para o efeito se chama cuscuzeira, é um recipiente cónico feito de chapa de zinco com pequenos orifícios no fundo (antigamente havia cuscuzeiras feitas de barro) que se coloca sobre um pote com água a ferver, põe-se um pano branco de linho no fundo (que não pode ter nenhum cheiro, porque o cusco é muito sensível e apanha muito facilmente os cheiros), os cantos deste pano servem para tapar o cusco por cima, levando ainda um testo. De forma a não deixar perder calor pela junção entre a cuscuzeira e o pote de ferro, é aplicada uma mistura de farinha e água que serve de vedante. Coze-se durante uma hora e meia a quantidade de cinco quilos e meio de cusco. Depois da cozedura a vapor coloca-se ainda quente novamente na masseira para ser separado em pequenos grãos, uma vez que quando sai da cuscuzeira encontra-se compactado, esta forma de cuscos compacta é chamada ‘carola’, e tem muitos/as apreciadores/as, sendo consumida quente com mel ou açúcar e também simples já depois de arrefecer. Caso não seja para vender em forma de carola, os grãos são separados na masseira e de novo estendidos de forma a secarem até serem vendidos ou consumidos.

Cultura oral e costumes associadosCuriosamente, como já tínhamos mencionado, as rezas utilizadas na confeção de pão

são as mesmas dos dois lados da fronteira, além disso as duas informantes chave igualmente

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16 - A senhora ‘B’ mandou fazer um crivo com buracos maiores do que o habitual, porque a sua clientela gosta mais do cusco com um grão maior.17 - Os torgos são as raízes da urze que se arrancam no monte.

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usam a mesma reza na confeção do pão para que a massa levede bem:S. João faça bom pãoS. Vicente o acrescenteSanta Marinha o cubra de anjinhaE em louvor de Deus e da Virgem Maria Um Pai Nosso com uma Avé Maria

De ambos os lados da fronteira, as senhoras diziam que a massa do pão, ou o pão “falava”, segundo o som que emitia ao tocar sabiam/sabem se está bem levedado, ou se está bem cozido, por exemplo: na aldeia de Castromil castelhano duas senhoras explicavam, que o pão cozido que saísse do forno tinha que se bater com a palma da mão nas costas do pão, e se dizia: Pan, pan, estaria bem cozido.

O cusco durante as diferentes fases do processo também “comunica”, dizendo em que es-tado vai: quando ainda é preciso torcer muito, “diz”: Bota, bota!, na fase final: Já ‘stá, já stá!

...Para evitar a trovoada (“para fazer com que a trovoada não espalhasse”), encostava-se a pá do forno à janela ou metia-se a pá do forno com o saca-borralhos (os dois a fazer uma cruz) à beira da janela. Também se deitava sal pela janela fora com o mesmo propósito.

Quando alguém tinha bolídos nos olhos tratava-se com um grão de trigo, e rezavam três vezes por dia esta oração:

Santa Luzia tinha três filhas,Uma lia, a outra escrevia,E a outra os bolídos dos olhos desfazia. Em louvor de Deus e da Virgem Maria, um Pai Nosso e uma Avé Maria.”

Uma pessoa fazia para a outra: pegava no grão do trigo entre os dedos da mão direita, fazia sinal de cruz não tocando na pessoa doente, rezava as orações e depois deitava o grão num copo de água, e tinham que cumprir a novena: durante três dias, fazer isso três vezes, e de cada vez deitavam um novo grão de trigo para o copo de água, no final havia nove grãos inchados na água. Este tratamento também é válido para animais, por exemplo a senhora ‘A’ já o fez com uma cabra doente. (senhora ‘A’)

...Na última semana de maio à volta de dia 25 celebram-se As ladainhas: numa procissão sai a cruz da igreja com as lanternas e vão para o lado o cereal sementado, rezam aí, e o padre benze os campos do cereal. “Dizem que não se deve sementar na semana das ladainhas porque não nasce bem, só nasce o pé, nasce sem orelhas.” (senhora ‘A’)

No fim da ceifa faziam um ramo feito de espigas e flores de campo, levavam-no num sítio bem visível, para que toda gente visse e partilhasse a alegria do final dos trabalhos da ceifa, a festa do último dia do trabalho chamava-se alboroco, onde consumiam vinho com cerveja doce, ou vinho doce, que consistia em vinho com açúcar e ovos que se chamava: charabanada. (senhora ‘A’)

Considerações finaisDurante a realização deste trabalho notámos que temas que nos parecem tão familiares

e presentes no nosso quotidiano podem se revelar extraordinariamente complexos como é o caso do trigo, o estudo do mesmo e das práticas culturais a ele associadas, exigem impreterivelmente uma colaboração multidisciplinar. No decorrer da investigação não nos debruçamos na questão da origem da elaboração do cusco no concelho de Vinhais, mas entendemos que seria necessário um trabalho de investigação histórica que não ficasse pela superficialidade especulativa que faz parte do discurso de muitos curiosos e “eruditos”, já a questão da presença do trigo barbela na região necessita de ser verificada por especialistas da botânica e da agronomia, as técnicas de processamento e de consumo de alimentos por engenheiras/os de ramo alimentar, seria preciso examinar também a economia doméstica mais pormenorizadamente e por aí fora... O nosso trabalho de este modo, só pretende ser uma breve aproximação ao tema que como se vê é muito vasto e tem muitas possibilidades de abordagens.

Esperamos, que este texto ajudou contribuir à tarefa de visibilização de alguns dos trabalhos que as mulheres desempenham que às vezes passam despercebidos e não lhes acostumam atribuir o devido valor.

Ivett Kereszt

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Bibliografia

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AgradecimentosGostaria de agradecer ao CEI a oportunidade e o apoio concedido, e agradeço igualmente a Sara R. e a G. M. o

seu apoio e ajuda, e agradeço às senhoras que tiveram a paciência e disponibilidade mesmo tendo muitos afazeres

de nos “aturar”.

Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

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Caminhos da Cal e do Barro, uma rotacultural para o barrocal algarvio

Susana Cristina Calado MartinsCentro de Estudos de Património, Paisagem e Construção – Universidade do Algarve (CEPAC/UAlg)

Caminhos da Cal e do Barro é uma rota cultural e turística inspirada no tema da produção de cal artesanal no barrocal algarvio, uma actividade que já se encontrou entre as mais importantes da região e que definiu em boa parte a identidade do território. Realidade para a qual contribuiu uma tradição milenar desta indústria artesanal, associada à utilidade e versatilidade do material produzido, mas igualmente a reunião de condições naturais bastante favoráveis ao seu desenvolvimento. Neste contexto, o barro tornou-se um elemento importante, quer no que respeita à selecção dos solos, quer à construção do próprio forno de cal. Para além do barro, o calcário e outros atributos da paisagem, como a orografia do terreno, a disponibilidade de água, ou o coberto vegetal, estão intrinsecamente ligados àquela antiga indústria artesanal e ao modo como a mesma se desenrolava neste território. Por outro lado, os campos guardam ainda alguns fornos de cal, desactivados e em ruínas, mas em razoável estado de conservação e nas povoações habitam ainda muitas e ricas memórias de quem neles trabalhou ou os viu cozer. Todavia, e apesar da sua pertinência, nas últimas décadas este tema do património cultural algarvio tem estado caído no esquecimento. É assim que surge a ideia de criar uma rota turística com o intuito de interpretar, valorizar e promover, tanto a paisagem como os recursos naturais e culturais do barrocal algarvio, onde se incluem as experiências e saberes dos seus habitantes, que podem ser partilhadas com o público no quadro de um produto cultural e turístico de carácter identitário.

A rota Caminhos da Cal e do Barro começou a ser desenvolvida no âmbito do Projecto Querença, uma iniciativa de desenvolvimento local, que procura atrair ideias e projectos de valorização de recursos, proporcionando condições para fixar população jovem e qualificada no interior. Ainda desse contexto resultou o projecto “Barroca, produtos culturais e turísticos”, que trabalha na concepção e desenvolvimento de conteúdos nas áreas da cultura e turismo, onde se enquadra a rota.

1. O Território – Geografia e PaisagemA produção artesanal de cal, tal como as tradições ligadas a esse ofício, foram na

generalidade comuns a grande parte dos territórios de solos calcários e barrentos, onde se encontrasse combustível para calcinar a pedra em quantidade e quantidade suficientes. Porém, e sem prejuízo de se tratar de uma mesma tecnologia produtiva e portanto com requisitos semelhantes, é indiscutível que a indústria se desenrolou de modo particular em cada lugar1. Neste sentido e considerando que os conteúdos da rota Caminhos da Cal e do Barro são alimentados pela história da produção de cal no território onde se desenvolve, é importante proceder a uma breve caracterização do mesmo, de modo perceber como se

1 - Para saber mais sobre a tecnologia de produção de cal e o seu desenvolvimento no Algarve, pode consultar-se Martins, Susana Calado; A Cal na Tradição do Barrocal Algarvio. Contributo para o Estudo da Produção de Cal Arte-sanal; Dissertação de Mestrado em História do Algarve; Universidade do Algarve; 2012.

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articulam os principais elementos que se relacionam com o tema.Do ponto de vista geográfico, o Algarve situa-se no sudeste peninsular e é a região mais

a sul de Portugal continental, tendo recebido ao longo da sua história fortes influências do Mediterrâneo e norte de África, regiões com as quais partilha alguns dos seus traços identitários. Trata-se de uma região “virada a sul”, com características geomorfológicas próprias que a diferenciam do resto do país, embora apesar dessa relativa unidade, evidencie também bastante diversidade interna. Na tentativa de interpretar as características geográficas e geológicas do território, o Algarve tem sido alvo de vários modelos de classificação que o dividem em três, ou mesmo quatro, faixas horizontais e paralelas, fazendo-as corresponder a sub-regiões. Processo no qual se considera principalmente as áreas designadas como “litoral”, a sul; “serra” (onde se inclui as serras de xisto e a de sienito, em Monchique), a norte; e “barrocal”2, numa zona central maioritariamente composta por terras vermelhas e solos calcários. Mas, onde alguns autores consideram ainda a existência da quarta área, correspondente a uma pequena zona de arenitos que se situa, em determinados pontos, entre a serra e o barrocal3.

Foi essencialmente nas terras de barrocal que durante séculos se desenvolveu uma intensa actividade de produção artesanal de cal, cujas marcas ainda hoje (passado cerca de meio século após o seu abandono) subsistem, quer na paisagem física quer na memória dos seus habitantes. Porém, é preciso dizer-se que, apesar das tentativas de diferentes autores para “arrumar” o território algarvio em sub-regiões, também o barrocal não apre-senta características uniformes em toda a sua área. Antes, é palco de algumas diferenças significativas. Por outras palavras, nem todos os limites da sub-região, e por conseguinte a totalidade das suas características internas, são consensuais. É então preciso perceber quais as características ou elementos que melhor definem o território da sub-região e lhe conferem uma unidade própria, uma vez que existe concordância no que respeita à maior parte do território, residindo as dúvidas sobretudo nas zonas de “fronteira”.

Assim, na interpretação e caracterização da paisagem, nomeadamente no processo de construção de uma paisagem cultural, poderá ser útil analisar o nome que foi atribuído ao território. Reconhecer a importância do acto de nomear é aqui pertinente na medida em que atribuir um nome nunca, ou raramente, é um acto displicente ou desprovido de sentido. Ao contrário, a toponímia rural revela que quando se nomeia um lugar, comunica-se sempre alguma informação sobre o mesmo. O processo de nomeação da paisagem por parte dos seus habitantes e/ou observadores resulta, antes de mais, de um processo de interpretação da mesma onde, consciente ou inconscientemente, se organiza um “mapa” local onde estão expressos os seus atributos particulares, mas também aquilo que enquadra a percepção de quem os nomeia4.

Do ponto de vista da composição da palavra, a designação de barrocal parece remeter para os dois elementos mais característicos do território: o barro, das terras barrentas de cor avermelhada que a população mais antiga relaciona com a presença dos melhores calcários para a produção de cal5; o calcário, também muito presente nos elementos construtivos do

2 - Mesmo considerando diferentes modelos de classificação do território, a área correspondente ao barrocal parece hoje maioritariamente consensual, tanto entre os diferentes autores que descreveram a região, como entre a popu-lação local. Acerca deste assunto veja-se, por exemplo, Cavaco, Carminda; O Algarve Oriental. As Vilas, o Campo e o Mar; Gabinete do Planeamento da Região do Algarve; Faro; 1976; pp.15-20, ou Ribeiro, Orlando; Portugal o Mediterrâneo e o Atlântico; Livraria Sá da Costa Editora; 1998; pp.61-62. Ou ainda, Lopes, João Baptista da Silva; Corografia ou Memoria Económica, Estatística e Topográfica do Reino do Algarve, Vol. I; Algarve em Foco Editora; Faro; 1988; p.31, que ainda no século XVIII procedeu a uma descrição detalhada do Algarve, atribuindo àquela parcela da região considerável importância, embora não a nomeasse como barrocal e sim como “Algarve calcário”, expressão também bastante elucidativa das suas características.3 - A título de exemplo, recorde-se a descrição de Orlando Ribeiro: “O Algarve divide-se pela constituição geológica, numa série de faixas paralelas: a Serra xistenta do Carbónico (à excepção do maciço eruptivo de Monchique, prova-velmente do fim do Secundário como as erupções basálticas da Estremadura), uma depressão periférica escavada, embora incompletamente nos arenitos do Triássico, o Barrocal, constituído por uma série de anticlinais e de planal-tos calcários, o Litoral de arriba até Quarteira, e, para leste, de restingas arenosas que deixam atrás de si lagunas e canais”, Orlando Ribeiro; Portugal o Mediterrâneo e o Atlântico; p.62. 4 - Havendo muitas motivações e formas de nomear, muitas vezes podem ser destacados os aspectos predominantes da paisagem; outras, os elementos singulares ou estranhos e que marcam a diferença; ou a memória de uma qual-quer actividade, habitante ou usos do território.5 - Informação referida por vários dos habitantes da freguesia de Alte, por exemplo Patrocínio de Oliveira (em 2011), e da União de Freguesias de Querença, Tôr e Benafim, por exemplo Mário Miguel (em 2014), Henrique Silva (em 2014 e 2015), ou Sérgio Silva (em 2014).

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mundo rural, ou a cal dele proveniente, que desempenhou um importante papel quer na arquitectura, quer em boa parte do modo de vida das populações. A expressão “barrocal” é também constantemente repetida pelas populações e pelos micro topónimos rurais6 para designar determinados lugares, onde as principais características atribuídas à sub-região aparecem mais vincadas, num constante exercício de interpretação da paisagem por parte de quem a habita e percorre. Neste âmbito, deve acrescentar-se que, tanto para as populações como para alguns autores, o termo “barrocal” designa igualmente um tipo de solo de terra argilosa ou um sítio com muitas barrocas, aludindo a um terreno barrento e irregular onde os estratos geológicos surgem à superfície em grandes blocos isolados e entrecruzados7. Deste modo, as terras de barrocal podem também definir-se como uma cordilheira de barrocas ou barrocos (nomes que se dão a rochas ou penedos insulados e irregulares), ou ainda como um penedo alto junto a vales ou terras planas, quadro igualmente associado a terras de barro, nomeadamente barro vermelho8.

Estas barrocas causaram alguns constrangimentos às populações rurais, na medida em que muitas vezes dificultaram a prática agrícola, obrigando os camponeses a acções de despedrega para limpeza e preparação dos terrenos. Mas, à boa maneira das comunidades rurais também se encontraram modos de lhes conferir utilidade, com resultados expressos no desenho das paisagens. Entre estes contam-se: a construção de muros e valados em pedra seca para divisão e demarcação dos terrenos, a delimitação de caminhos rurais, a construção de sebes para protecção de culturas e sementeiras da acção dos animais, o empilhamento (mais ou menos organizado) em muroiços, a construção de paredes de sustentação em forma de socalcos nos locais de declive, de modo a aumentar as áreas de cultivo9. Porém, estes aspectos, embora bem marcados do ponto de vista visual, não constituem a única aplicação das barrocas. Para além deles, conforme já foi notado por outros autores e confirmado pelos relatos das populações, uma grande partes destes blocos de calcário era calcinado nos inúmeros fornos de cal da região10. Neste contexto, a abundância de pedra calcária, em geral fácil de extrair, e com propriedades adequadas para obter cal de elevada qualidade, promoveu o sucesso da actividade nesta parcela do território.

De acordo com o descrito, também o barro tem um papel de protagonismo. Desde logo, por se tratar de um elemento importante no que respeita à selecção dos solos, pois ainda hoje é comum os habitantes rurais afirmarem que em certas zonas de barro vermelho é o onde se encontra a pedra de melhor qualidade para o fabrico da cal. Por outro lado, no que se refere à construção do forno de cal, estes barros, quer vermelhos quer brancos (onde os há), assumiram-se também como um elemento incontornável. Por exemplo, após a montagem do forno era sempre necessário revestir com barro alguns elementos da

6 - Como exemplo, pode apontar-se (embora apenas para o território do concelho de Loulé) os micro topónimos registados há algumas décadas atrás derivados da expressão “barrocal”. Assim, encontram-se os seguintes nomes: “Barrocais”, 16 vezes registado (algumas vezes num nome composto) entre as freguesias de Alte e Benafim; “Bar-rocal”, 25 vezes registado (algumas vezes num nome composto) entre as freguesias de Alte, Querença, Quarteira, Salir, São Sebastião, Almancil e São Clemente; ou “Barrocalinho”, 5 vezes registado (algumas vezes num nome composto) entre as freguesias de Salir, São Sebastião, Alte e Boliqueime. (*Note-se que as referidas freguesias de Querença e Benafim incorporam actualmente a União de Freguesias de Querença, Tôr e Benafim).Informações retiradas de: Costa, Eduardo Anjos; Levantamento Toponímico do Concelho de Loulé (policopiado); Loulé; s.d.7 - Martins, Susana Calado; A Cal na Tradição do Barrocal Algarvio. Contributo para o Estudo da Produção de Cal Artesanal; p. 46.8 - Estas descrições foram partilhadas por alguns habitantes da União de Freguesias de Querença, Tôr e Benafim, entre os quais, Maria de Jesus Dias (2014), Francisco Dias (2014), ou Mário Miguel (2014).Consultaram-se também as entradas “barroca”, “barrocal” e “barroco” no Grande Dicionário da Língua Portugue-sa, de Cândido de Figueiredo e no Grande Dicionário de Língua Portuguesa coordenado por José Pedro Machado.Novamente tendo por base o registo de micro topónimos rurais do concelho de Loulé, encontraram-se os seguintes nomes de lugar: “Barroca(s)”, 10 vezes registado (algumas vezes num nome composto) entre as freguesias de Salir, Alte e Benafim; “Barroquinha(s)”, 3 vezes registado entre as freguesias de Salir, Alte e Benafim; “Barrocoso”, 2 vezes registado, entre as freguesias de Quarteira e São Sebastião. Costa, Eduardo Anjos; Levantamento Toponímico do Concelho de Loulé (policopiado).9 - Martins, Susana Calado; A Cal na Tradição do Barrocal Algarvio. Contributo para o Estudo da Produção de Cal Artesanal; p. 47.10 - Martins, Susana Calado; A Cal na Tradição do Barrocal Algarvio. Contributo para o Estudo da Produção de Cal Artesanal; p. 47. Veja-se também, Prista, Pedro; Sítios de Querença. Morfologias e Processos Sociais no Alto Barrocal Algarvio; Dissertação de Doutoramento; Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa; Lisboa; 1993; pp. 92-93.

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construção, nomeadamente a abóbada ou o vão de entrada, assegurando dessa forma o isolamento térmico do interior durante o processo de laboração; assim como a protecção dos trabalhadores no exterior, pois ficavam menos expostos ao calor extremo e às chamas, que sairiam por entre as pedras. Tarefa esta que era ainda várias vezes repetida antes de se dar por finalizada a cozedura, ao fim de alguns dias.

Por este motivo, saber os locais de extracção de barro “bom” (sendo a qualidade um atributo subjectivo, aplicado conforme os usos) foi um tipo de conhecimento de grande importância para as comunidades rurais, mais uma vez, com reflexos na toponímia dos lugares11. E ainda hoje são esses mesmos habitantes do Algarve rural que sabem dizer com certezas que determinada barreira servia para se revestir os fornos de cal, mas que outra nas proximidades seria melhor para a construção, ou ainda que apenas de algumas outras se deve retirar barro para usar na olaria. Saberes esses ancorados na experiência e na capacidade de “leitura” do meio envolvente, que permitem reconhecer as melhores formas de tirar partido e aplicar convenientemente este material, tanto na construção tradicional (terras cruas ou cozidas)12, como também nos importantes trabalhos ligados à olaria.

Para além destes, outros atributos da paisagem, como a disponibilidade de água, ou o coberto vegetal estão intrinsecamente ligados aos modos de vida do barrocal, nomeadamente pela ligação directa que estabelecem com a agricultura, a mais importante actividade das comunidades rurais. Por exemplo, os diversos tipos de “matos” desempenharam um importante papel como combustível para alimentar os fornos de cal, que o consumiam em bastante quantidade, durante os vários dias de laboração. Mas não foram apenas os fornos de cal que requereram muita desta vegetação, também os fornos das indústrias cerâmicas ou os simples fornos domésticos consumiram deste combustível. Por este motivo, existiram parcelas de terreno não cultivado, sobretudo em cerros, onde propositadamente se deixava crescer o mato (cerca de 90cm) , para responder a estas necessidades. Quando destinados à indústria, estes matos eram, muitas vezes, recolhidos e transportados em molhos, às costas dos homens, com o auxílio de um gálapo, instrumento que lhes permitia apoiar na cabeça e ombros uma carga que chegava a atingir os 50 kg, descendo depois pelas encostas pedregosas até aos locais a que se destinavam. Deste modo, o ofício de carregador de lenha foi um dos mais duros relacionados com a actividade de produção de cal, mas também um dos mais bem pagos do barrocal.

1.2 O Território - História e CulturaA produção de cal de acordo com métodos artesanais é uma actividade antiga, de

tradição milenar e com raízes na bacia do Mediterrâneo. No Algarve, os testemunhos históricos desta indústria remontam, pelo menos, até à época romana e dão conta da sua permanência sistemática no território até meados do século XX. Para esta longa cronologia contribuíram diversos factores, donde se destacam as condições naturais bastante favoráveis, a versatilidade e importância da cal, mas também o peso económico e social que a actividade deteve na região. Por tudo isto, esta assumiu-se como uma das mais preponderantes e influentes indústrias do barrocal algarvio, tendo moldado a vida de muitos dos seus habitantes e definido em boa parte a identidade da região.

Porém, deve salientar-se que a produção de cal na região algarvia não se resumiu ao barrocal. Pelo contrário, em determinadas ocasiões e tempos históricos continuou a marcar presença noutros lugares, desde que houvesse disponibilidade de calcário e lenha para

11 - Novamente tendo por base o registo de micro topónimos rurais do concelho de Loulé, podem referir-se os seguintes nomes de lugar: “Barro(s)”, 11 vezes registado (algumas vezes num nome composto) entre as freguesias de Almancil, São Sebastião e Quarteira; “Barrosal”, 1 vez registado na freguesia de Salir; “Barrosas”, 1 vez registado na freguesia de Salir; “Barreiras”, 6 vezes registado (algumas vezes num nome composto) entre as freguesias de Salir, Querença, São Clemente, Ameixial, Alte e Benafim; “Barreirão”, 1 vez registado na freguesia de Salir; “Bar-reirinhas”, 2 vezes registado nas freguesias de Alte e Benafim; “Barreiro(s)”, 11 vezes registado (algumas vezes num nome composto) entre as freguesias de Ameixial, Benafim, Salir, Boliqueime, São Clemente, São Sebastião e Almancil; Barrinho(s), 2 vezes registado na freguesia de Salir. Costa, Eduardo Anjos; Levantamento Toponímico do Concelho de Loulé (policopiado).12 - No que respeita às terras cruas, podem considerar-se as construções de taipa ou de adobe (esta última comum em determinados lugares até há algumas décadas), mas também as argamassas de ligação ou revestimento; quanto às terras cozidas, refira-se por exemplo as telhas ou ladrilhos.

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combustível, ou em alternativa facilidade de os transportar13. Uma realidade que acentua ainda mais a relevância de todas as actividades que envolvem esta indústria de produção. No entanto, é inegável que o território mais conotado com este oficio foi sempre o correspondente à faixa do barrocal, assumido ainda uma maior expressão na zona central do Algarve, onde os atributos da sub-região são mais evidentes14. Esta zona, que em grande parte corresponde a território do concelho de Loulé, é aquela onde parece ter havido um maior número de estruturas de produção, tal como revelam os registos dos fornos de cal na Carta Militar de Portugal15, mas também os testemunhos de habitantes, que dizem respeito sobretudo às últimas décadas de laboração16.

Até meados do século passado, a indústria de produção de cal no barrocal algarvio desempenhou um importante papel nas comunidades. De um modo geral, está bem presente na memória das populações a ideia de um ofício muito duro, mas que possibilitou que muitas famílias pobres ou numerosas pudessem ser alimentadas, na medida em que a actividade movimentava muitos recursos e trabalhadores. Porém, a partir de meados do século XX, com a introdução e difusão de materiais de construção mais modernos, a cal foi progressivamente perdendo o seu mercado privilegiado e assim grande parte do seu valor e poder económico. Este factor, a par de “novas” formas de adquirir mais “ganhos”, como as ondas de emigração para a Argentina e França nos Anos 60 e 70, ditaram o enfraquecimento e depois o término desta actividade no Algarve.

2. Caminhos da Cal e do Barro – uma rota cultural2.1 As Terras da RotaNesta fase inicial, a rota Caminhos da Cal e do Barro tem vindo a desenvolver-se no

concelho de Loulé, nomeadamente em Querença, aldeia onde está sedeada e a partir de onde se desenvolvem grande parte das actividades. No entanto, os pontos de interesse associados à rota estendem-se igualmente por outros lugares do interior, onde se definiram os itinerários e seleccionaram os locais para acolher as actividades. Área que corresponde ao barrocal do concelho de Loulé e se distribui pela União de Freguesias de Querença, Tôr e Benafim; da Freguesia de Alte; da Freguesia de Salir; e das citadinas Freguesia de São Clemente e Freguesia de São Sebastião.

Mas esta território encerra ainda um outro aspecto de importância para a rota: situa-se entre duas unidades tecto-estratigráficas que no contexto da evolução histórica da superfície terrestre resultaram num conjunto de falhas geológicas, as quais acabaram por colocar lado a lado rochas de idades e contextos completamente distintos, originando uma grande diversidade17.

13 - Pontualmente surgiram situações em que a presença de um conjunto de razoáveis vantagens económicas per-mitiram compensar o esforço acrescido que significava a construção de fornos de cal em locais como Cachopo (a “serra de Tavira”) ou nas Laranjeiras e outras povoações (margem do rio Guadiana), em terras de xisto, no Esteiro da Carrasqueira (Castro Marim), em terrenos de sapal. Martins, Susana Calado; A Cal na Tradição do Barrocal Algarvio. Contributo para o Estudo da Produção de Cal Artesanal; p.56. 14 - Pedro Prista considera que o concelho com maior número de barrocais é o de Loulé: Prista, Pedro; “Águas Tiradas e Águas de Rojo – cooperação e autonomia das hortas do Alto Barrocal”; p.85. Acerca deste assunto, pode ainda ler-se: “o carácter mais vincado da paisagem do barrocal encontra-se, numa área central, bem representada no concelho de Loulé, que se dilui para este e oeste”, em Cancela d’ Abreu, Alexandre; Correia, Teresa Pinto, Olivei-ra, Rosário (Coord.); Contributos para a Identificação e Caracterização da Paisagem em Portugal Continental; Vol. V; Direcção Regional do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano; 2004; p.199.15 - Foram utilizadas as seguintes Folhas da Carta Militar de 1989: Folha 587, onde se integram zonas das freguesias de São Bartolomeu de Messines (concelho de Silves) e de Alte (concelho de Loulé); a Folha 596 correspondente às freguesias de Algoz (concelho de Silves), Alte (concelho de Loulé) e Paderne (concelho de Albufeira); a Folha 597 correspondente à União de Freguesias de Querença, Tôr e Benafim (concelho de Loulé), a Folha 600, correspondente às freguesias de Castro Marim (concelho de Castro Marim), Cacela e Vila Real de Santo António (concelho de Vila Real de Santo António); a Folha 602, correspondente à freguesia de Budens (concelho de Vila do Bispo); e a Folha 606 onde se integram ainda áreas correspondentes às freguesias urbanas São Clemente e São Sebastião (concelho de Loulé).16 -O que se tornou já evidente no trabalho de campo efectuado durante a investigação para a dissertação de mestrado, entre 2010 e 2012, e foi depois confirmado no âmbito da investigação para o desenvolvimento da rota Caminhos da Cal e do Barro, essencialmente nos finais de 2014 e inícios de 2015.17 - Acerca da natureza geológica deste território, pode consultar-se, Dias, Rui, et. alli (editores); Geologia de Portu-gal, Vol. II – Geologia Meso-cenozóica de Portugal; Escolar Editora; Lisboa; 2013; pp. 29-165.

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Mapa baseado no que se encontra em: Guia de percursos pedestres e de BTT do concelho de Loulé;

Câmara Municipal de Loulé; 2008; pág 10.

2.1 Caracterização do ProjectoA rota Caminhos da Cal e do Barro é um projecto turístico, de carácter cultural, que

oferece ao turista a possibilidade de entrar em contacto com o barrocal algarvio por meio do conhecimento e interpretação de dois dos seus principais recursos naturais: a cal e o barro. Deste modo, as principais linhas temáticas que enquadram o projecto desenvolvem-se em torno do calcário (pedra e cal) e do barro, mas também das cores de várias tonalidades, provenientes das terras com diferentes naturezas geológicas do território.

O programa compõe-se essencialmente de uma selecção de itinerários, que podem ser percorridos de modo autónomo ou com guias especializados, assim como de um conjunto de actividades diversas, que permitem ao visitante tomar um contacto mais próximo com o território e os seus protagonistas, estimulando a vivência de experiências singulares, ancoradas no reconhecimento e interpretação das suas singularidades e tradições próprias. Neste con-texto, a componente criativa desempenha um papel essencial na programação das actividades, na medida em que se transforma num meio privilegiado para levar os participantes a “ver” os lugares de um modo diferente do convencional, estabelecendo com eles uma ligação emocional, e ao mesmo tempo proporcionando uma aprendizagem da história e cultura locais.

Caminhos da Cal e do Barro é um projecto direccionado aos turistas, nacionais e estrangeiros, mas também à população residente, à qual se pretende dar uma atenção especial, de modo a promover a sua participação e retribuir em parte os seus contributos, nomeadamente através de acções especificas de âmbito social destinadas a segmentos específicos18. A concepção e funcionamento da rota é assegurada pelos dois promotores do projecto, com formação superior nas áreas de História e Património Cultural, apoiados nos contributos de colaboradores e parceiros de outras áreas. Na sua fase inicial, o projecto tem contado também com o apoio do Projecto Querença, da União de Freguesias de Querença, Tôr e Benafim, da empresa de turismo Proactivetur, Turismo Responsável19 e, no que se refere ao aprofundamento de conteúdos culturais, do Centro de Estudos Ibéricos, sendo este último o contexto onde se insere o presente trabalho.

18 - Neste âmbito já foram desenvolvidas algumas acções lúdico - educativas com as crianças do pré-escolar e ensino básico das escolas de Querença, Tôr e Benafim, tais como sessões de pintura com tintas de cal ou uma construção com tijolos de adobe confeccionados pelas próprias crianças.19 - Para saber mais acerca do Projecto Querença ou ficar a conhecer o trabalho desenvolvido pela Proactivetur, Turismo Responsável podem consultar-se respectivamente os seguintes endereços na web: https://www.face-book.com/projectoquerenca ; https://www.facebook.com/ProActiveTur-Lda.

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Objectivos e Metodologia GeraisCom este projecto turístico pretende-se contribuir para a desenvolvimento local através

da valorização e dinamização dos recursos naturais, culturais, económicos e humanos do território, numa abordagem que favorece o combate à sazonalidade. Para atingir este objectivo o programa da rota baseia-se no constante enriquecimento dos seus conteúdos culturais e científicos, o que se traduz tanto nos itinerários como nas experiências criativas. Outro aspecto importante é o estabelecimento e reforço de parcerias de cooperação, tanto na área geográfica onde se encontra como fora dela. Estas parcerias têm lugar com pessoas ou entidades que desenvolvem a sua actividade na região20 e que têm assim oportunidade de integrar a rota, numa relação de beneficio mútuo.

Para cumprir os objectivos a que nos propusemos desde o inicio do projecto, os trabalhos dividiram-se em várias fases. Numa primeira fase, foi realizada investigação bibliográfica e de carácter antropológico, que permitiu completar e aprofundar alguns dos conhecimentos já adquiridos anteriormente, adaptando-os ao projecto de criação de uma rota cultural. Para além disso, foi também realizado trabalho de campo para seleccionar e definir os pontos de interesse e itinerários da rota, para marcação dos percursos e para a selecção de locais para acolher actividades. Numa segunda e terceira fases procedeu-se ao tratamento dos dados reunidos e à estruturação da rota, nomeadamente com a organização dos percursos, a concepção de mapas e de programas, e a produção de textos e outros conteúdos culturais. Por último, na fase de implementação, têm sido acertadas parcerias e tem sido elaborada a divulgação e comercialização da rota, essencialmente com recurso às ferramentas da web. Neste período, têm sido realizadas várias actividades próprias21, a par da participação em programas e outras iniciativas no âmbito do turismo e da cultura, com bons resultados alcançados.

2.3 Caminhos da Cal e Barro – Produtos e CatálogoNo processo de estruturação da rota foram aproveitados e revitalizados alguns dos

recursos já existentes no território (como troços de percursos previamente marcados e/ou sinalizados noutros contextos), embora conferindo-lhes uma diferente abordagem temática e adaptando-os às necessidades.

O programa é composto por produtos dirigidos ao público autónomo e por produtos que requerem a orientação de um guia e portanto com a componente interpretativa mais desenvolvida, assim como uma abordagem mais criativa. Para os primeiros foram desenvolvidos percursos pedestres de carácter interpretativo; já no âmbito das actividades trabalhadas com a orientação de um guia especializado foram igualmente desenvolvidos percursos pedestres interpretativos, mas também actividades e experiências criativas que compõem um “Catálogo de Actividades” para apresentação e comercialização ao público. A estes produtos acrescenta-se o interesse em vir a desenvolver também uma componente formativa, com acções ligadas ao tema da rota e na sua maioria abertas ao público generalizado (ainda que com interesses particulares), com o objectivo de a enriquecer e contribuir para a profundidade cientifica e cultural do projecto.

Percursos Auto-guiadosForam desenvolvidos três percursos pedestres auto-guiados, mas com carácter

interpretativo: “Percurso Entre Querença e Loulé”; “Percurso Entre Querença e Salir”; “Percurso Entre Salir, Benafim e Alte”22. Com cada um deles procura-se transmitir conhecimentos sobre

20 - Algumas destas parcerias encontram-se entre as áreas da restauração tradicional, alojamentos locais, arte-sãos e oficinas de artesanato e produtos locais, especialistas em áreas e temas de interesse, agentes culturais e turísticos e outros.21 - É de salientar que foram realizadas não apenas actividades calendarizadas por nós em datas especificas, mas também algumas actividades fora desse calendário por solicitação de clientes, sendo este – a criação de programas personalizados de acordo com os interesses dos clientes – também um serviço que pretendemos disponibilizar.22 - Há a possibilidade destes percursos virem a ser realizados também com a orientação de um guia, recorrendo a enriquecimento de conteúdos e de ferramentas interpretativas. Neste caso, não se calendarizem, poderão estar sujeitos a marcação por parte dos interessados.

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o tema da produção artesanal de cal no território onde se inserem, assim como dos vários usos e aplicações tradicionais do calcário e da cal, a par das actividades ligadas ao aproveitamento do barro, seja na construção ou na olaria. Nestes percursos a componente interpretativa não é descurada. Ao contrario, na transmissão de informações houve preocupação em criar textos apelativos e de carácter interpretativo, sempre direccionados para os elementos da paisagem envolvente e as “histórias” com ela relacionadas, permitindo assim que os visitantes se sintam conectados com o lugar. O objectivo é fornecer ao turista a possibilidade de conhecer e explorar o território a partir da aprendizagem e compreensão destes temas. Mas também cativa-lo de modo a que se envolva com a região, permaneça por mais tempo e consuma os seus bens e serviços mais característicos, contribuindo assim para o incremento do desenvolvimento local.

Para apresentação destes percursos foi elaborado um guião relativo a cada um deles, onde consta: mapa do percurso, que acompanha um ficheiro para dispositivos digitais; ficha técnica23; um pequeno texto de informação geral sobre o percurso e o território envolvente; textos interpretativos relacionados com os pontos de interesse seleccionados; imagens; outras informações relevantes, de acordo com o usufruto da proposta apresentada24.

Forno de Cal de Porto Nobre/Querença. Este forno foi todo empedrado e preparado para cozer cal já nos últimos anos da actividade e chegou a laborar, transformando-se assim na mais importante estrutura da região.

Catálogo de ActividadesEste catálogo25 desafia o público para o conhecimento do barrocal algarvio e dos seus

protagonistas através de uma perspectiva criativa, apoiada no conhecimento e interpretação de alguns dos seus principais atributos naturais. Encontra-se organizado de acordo com o mote “Venha Caminhar Connosco” e é composto por três secções: “Caminhos para Percorrer e Aprender”, “Caminhos para Experimentar e Criar” e “Os mesmos Caminhos, outras Descobertas”.

23 - Na ficha técnica constam informações como: o tipo de percurso (linear ou circular), a distância, a duração prevista ou recomendada de acordo com a proposta, o grau de dificuldade, a época do ano recomendada, o público alvo e outros elementos de interesse que possa ter associados.24 -Por exemplo, horários e contactos dos núcleos museológicos integrados no percurso ou outras galerias com visita recomendada, sugestões de locais onde comer e dormir, ou outras informações úteis relativas aos locais de partida e chegada.25 - O “Catálogo de Actividades”, organizado como tal, será lançado no inicio de 2016. Até lá, todas actividades serão apresentadas e divulgadas em facebook.com/barroca.tourism.

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A secção “Caminhos para Percorrer e Aprender” é formada por pequenos percursos interpretativos, orientados por um guia especializado, ao longo dos quais os visitantes ficarão a conhecer um pouco das principais linhas temáticas orientadoras desta rota. Desde logo, o modo como se desenvolveu da indústria de produção de cal no território, assim como alguns dos ofícios, ou saberes dos habitantes e trabalhadores da região ligados ao tema, tais como, o de mestre caleiro, carregador de lenha ou o encarregado da fornada. Mas para além deste, desenvolvem-se outros aspectos, como as variadas “artes da cal” relacionadas com as técnicas decorativas presentes na arquitectura popular; os ofícios relacionados com os trabalhos de cantaria ou com o aproveitamento dos vários barros e argilas destas terras, direccionando-os conforme as suas qualidades para os trabalhos de olaria, ou para a construção, empregando várias técnicas tradicionais. É com este tipo de produto, dada a presença do guia e tirando partido das dinâmicas diferenciadas de cada actividade realizada, que se faz mais uso dos conteúdos histórico-culturais vinculados ao tópico da “paisagem cultural”, que foram objecto de investigação no âmbito da criação da rota. Encontram-se preparados os seguintes percursos26: “Percursos de Cal na Tôr”; “A Tradição Canteira de Clareanes”; “Por Caminhos da Cal”; “Entre os Vales e os Serros”; e “À Descoberta da Benémola”.

Por outro lado, os “Caminhos para Experimentar e Criar” consistem em actividades práticas, de experiências sensoriais com os materiais, descobrindo as suas características e potencialidades. A ideia é puder mexer nas terras e no barro, na cal e nos pigmentos coloridos destinados à confecção de tintas e seguir pelos caminhos da criatividade. Neste campo, estão montadas as actividades, “Manhãs de Cal”; “Pelas Cores da Terra: um percurso em busca de pigmentos naturais”; “Pintar com Tintas de Terra”; “Do Barro da Terra à Peças de Olaria”; “Experiências com Mini-adobeiras”; “Recriação de Platibandas Algarvias em Painéis Decorativos”.

Por último, para além das principais linhas temáticas desenvolvidas pela rota, acrescentam-se outras actividades que a completam e enriquecem. A secção “Os mesmos Caminhos, outras Descobertas” conta com a colaboração de alguns convidados especiais, especialistas nas respectivas áreas, para o desenvolvimento das actividades “A botânica nos Caminhos da Cal e do Barro – Saberes e Usos”; “Astronomia na Pedreira”; “Fotografar Terras de Cal e de Barro”; “Colorir, Ilustrar e Pintar por estes Caminhos”. São experiências enquadradas pelo mesmo tema de fundo, onde se percorre o mesmo território, mas que proporcionam ao visitante a oportunidade de se envolver na descoberta de outros temas, aos quais se confere o protagonismo.

No que respeita à divulgação, esta é realizada com base na apresentação de material promocional contendo informações, como um pequeno texto descritivo da actividade27, data e horário, local e ponto de encontro, público alvo, preço (com o que inclui) e limite de inscrições, informações técnicas (tipo de percurso, distância e grau de dificuldade; ou eventuais requisitos a cumprir, no caso das experiências criativas) e identificação do guia, salientando-se a relevância dos especialista convidados. Acrescenta-se que a “Recriação de Platibandas Algarvias em Painéis Decorativos” é também umas das actividades que integra um outro projecto de turismo criativo, desenvolvido por vários parceiros no concelho de Loulé28. Assim, beneficia igualmente desse canal de divulgação e das parcerias aí existentes, uma situação que acaba por se estender um pouco por toda a rota.

26 - Todos os percursos possuem um grau de dificuldade fácil ou moderado, com distâncias variadas, mas duração entre meio dia e um dia, de acordo com os conteúdos temáticos e as estratégias interpretativas utilizadas. 27 - No caso dos produtos apresentados como exemplo, os textos descritivos para divulgação são os seguintes: “À Descoberta da Benémola” – Venha redescobrir a Benémola na perspectiva da tradição caleira de Querença! Sabia que este foi outrora um lugar privilegiado para a produção de cal? Durante este percurso interpretativo, e com o auxilio de pequenas experiências criativas, poderá voltar atrás no tempo e perceber como se articularam os elemen-tos que definiram a importância deste espaço para aquela indústria artesanal; “Recriação de Platibandas Algarvias em Painéis Decorativos” – Importante expressão artística da arquitectura e cultura algarvias, as platibandas e os seus motivos decorativos inspiram um dia criativo em Loulé. Após um passeio pela cidade, os participantes terão oportunidade de experimentar a confeccionar as tintas artesanais e algumas argamassas com que se elaboraram estes trabalhos, para depois os recriar num pequeno painel e levar consigo um bocadinho deste património singular; “A Botânica nos Caminhos da Cal e do Barro – Saberes e Usos” – As terras de calcário são também o lugar onde se desenvolvem algumas das mais interessantes plantas da região, com usos tradicionais nos campos da culinária e da medicina. Durante uma pequena caminhada, na companhia de uma especialista nestes saberes, faremos uma incursão aos segredos da rica flora do barrocal algarvio.28 - O projecto Loulé Criativo Turismo pode ser consultado aqui: http://loulecriativo.pt .

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FormaçãoNo que respeita à formação, actualmente encontra-se em preparação um pequeno curso

de geologia denominado “As Rochas que Pisamos”, dirigido a um público generalizado de adultos e jovens estudantes, interessados em geologia e em adquirir conhecimentos sobre o território. Este curso terá lugar em Querença e a duração de 8 horas, distribuídas por uma manhã dedicada à componente teórica e uma tarde de caminhada pelo território, durante a qual se desenvolverá uma componente prática. O formador será um geólogo, colaborador da rota e investigador e bom conhecedor das principais particularidades de natureza geológica do território algarvio

Pormenor de uma actividade de “Recriação de Platibandas Algarvias em Painéis Decorativos”, de acordo com a

técnica do esgrafito, utilizando como materiais cal, gesso e pigmentos minerais naturais.

Considerações FinaisTal como tem sido salientado, o desenvolvimento da rota Caminhos da Cal e do Barro

assenta num constante enriquecimento de conhecimentos e conteúdos culturais e científicos. Conteúdos estes que são apresentados ao público numa perspectiva criativa, relacionando-os com o território. Aquilo que se pretende transmitir, mais do que apenas o que diz respeito ao tema da rota ou da actividade em questão, é também um pouco da história da região e das suas gentes. É assim que se procura educar “o olhar” dos participantes para a interpretação da paisagem cultural, promovendo ao mesmo tempo a singularidade do projecto. Neste campo, é preciso recordar que os conteúdos da rota não se desenvolveriam da mesma forma sem a colaboração de muitas pessoas, habitantes neste território, que partilharam os seus muitos saberes e memórias. Este tipo de conhecimento, ao qual não se poderia aceder de outra maneira, contribui para conferir à rota um cunho mais pessoal, reforçando a identidade do local.

Este projecto, tal como outros na mesma linha, começa a assumir a sua importância no âmbito do desenvolvimento local. Desde logo, porque resgata e partilha memórias de actividades já quase esquecidas, conferindo-lhes importância, e contribuindo para o desenvolvimento de um sentimento de orgulho por parte da comunidade. Por outro lado, com parcerias realizadas no contexto das actividades da rota são reforçadas algumas dinâmicas entre as comunidades, facto que se vai estendendo também a outros momentos. Verifica-se ainda, um crescente interesse de alguns segmentos do “público turístico” por este tipo de produtos e, nesse sentido, atrair pessoas para estes locais de baixa densidade e, na generalidade, pouco conhecidos para transmitir conhecimentos e pedaços de história(s) é também um importante factor de desenvolvimento económico e social para as comunidades.

De futuro, prevê-se o alargamento da rota a outras zonas onde se encontrem pontos de interesse relacionados com o tema, contribuindo para o entendimento e valorização da história e paisagem, enquanto ponto de interesse no território.

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Referências Bibliográficas

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CartografiaCarta Militar de Portugal; Série M888; Edição 2 – S; C.E.P.; 1980; Escala 1/25000; Folhas: 587, 596, 597, 600, 602, 606.Guia de Percursos Pedestres e de BTT do Concelho de Loulé; Câmara Municipal de Loulé; 2008; p.10.

OutrosCatálogo de Actividades; Caminhos da Cal e do Barro (Disponível ao público a partir do inicio de 2016).

Fontes Orais (principais)Francisco Dias (Penedos Altos) – Entrevistas em 2014 e 2015.Filipa Faísca de Sousa (Borno/Querença) – Entrevistas em 2010, 2014 e 2015.Henrique Silva (Benémola/Querença) – Entrevistas em 2014 e 2015.José Maria Costa (Carvalhal/Querença) – Entrevistas em 2008 e 2014.Maria de Jesus Dias (Penedos Altos) – Entrevistas em 2010, 2014 e 2015.Mário Miguel (Várzeas de Querença) – Entrevistas em 2014 e 2015.Sérgio Silva (Tôr) – Entrevistas em 2014.Teresa Costa (Várzeas da Amendoeira) – Entrevista em 2014.

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34Eda Góes

A questão social na mina de S. Domingosno tempo do Estado Novo: lógicas,dinâmicas e ofensivas sociais

Vanessa Alexandra Alvorado Teixeira Pereira1

Universidade Nova de Lisboa

«Esta reportagem obedece à necessidade de tornar conhecida a vida que os mineiros portugueses arrastam, em luta permanente com as entranhas da terra e com as doenças que contraem nessa gigantesca tarefa a que nós estamos longe de dar o devido valor, pois não podemos imaginar o que sejam oito horas de trabalho lá em baixo, na contramina, a trezentos metros de profundidade, trabalhando nus, em luta com a lama pestilenta e caindo, por vezes, asfixiados, às lufadas terríveis de gases sulfurosos.»

Henrique Zarco, Imagens do Alentejo, Documentário da Vida Alentejana, 1930.

Introdução

A historiografia portuguesa, apenas mais recentemente, começou a dedicar enfoque à questão social inscrita na actividade mineira. No caso do couto mineiro da Mina de S. Domingos1, a investigação mais detalhada dessas vicissitudes teve os primeiros contributos nos últimos anos do século passado. O presente estudo segue, com efeito, essa linha de orientação, mas com especial tónica no âmbito do Estado Novo, visando os seus contributos e analisando as repercussões em torno desta problemática.

O complexo mineiro de S. Domingos foi uma das maiores concentrações operárias de Portugal2, e um dos maiores potentados da exploração de cobre e enxofre da Europa. No século XIX, para além dos trabalhadores portugueses, encontravam-se a laborar em S. Domingos vários espanhóis, ingleses e piemonteses3. Entre a comunidade portuguesa, até à cessação da actividade em 19664, o predomínio foi de alentejanos e algarvios. Estes indivíduos eram, essencialmente, jovens ex-trabalhadores do panorama latifundiário alentejano e das pescas algarvias, que oriundos de um quadro económico desvantajoso, ali se dirigiam atraídos pelos

1 - O nome próprio Mina de S. Domingos será empregue para citar a aldeia, enquanto as referências sob o nome comum corresponderão à exploração mineira. S. Domingos era o nome da serra onde o jazigo mineral se localizava, por nas proximidades acolher uma pequena ermida dedicada a este santo, e foi na sequência deste contexto de origem que a aldeia desenvolvida em redor do empreendimento para servir o patronato e os trabalhadores, viria a ser baptizada com o mesmo nome da exploração. 2 - Inclusivamente, nos anos 30 do século XX, em regime de exclusividade, a produção de enxofre da mina desti-nava-se à Companhia União Fabril (C.U.F), de quem S. Domingos foi a grande fornecedora até ao encerramento, na década de 60. 3 - Estas nacionalidades decorrem do contexto de origem do empreendimento (1854), relacionando-se com os inte-resses da administração da La Sabina Mining Company, a primeira empresa concessionária da exploração.4 - Em 1966, a Mason & Barry Limited (fundada em 1873, por James Mason, em sociedade com Francis Barry, foi a companhia detentora da concessão durante a maior parte do período de actividade, à luz de um contrato de subar-rendamento celebrado em 1858, entre Mason e a La Sabina) findou a laboração, devido à exaustão do filão mineral e consequente esgotamento económico da mina. O ano seguinte ficou marcado pela inundação propositada da mina, pela própria empresa, após o rebentamento das represas, inviabilizando o acesso à zona de extracção. Em 1973, a Câmara de Falências de Lisboa reconheceu a La Sabina proprietária de todos os bens móveis e imóveis da Mason & Barry.

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melhores salários, em detrimento dos rendimentos obtidos na agricultura ou nas restantes indústrias5. Este polo industrial foi um dos maiores centros salariais no Baixo Alentejo, pois ainda que o salário fosse desajustado às tarefas mineiras, era superior comparativamente com outras actividades, o que acresce de importância se evocarmos a natureza agrária do Alentejo. Por este motivo, muitos dos mineiros6 de S. Domingos que deixavam o posto de trabalho acabavam por regressar, conscientes do contexto socioeconómico implícito. A composição deste cenário constituiu, por excelência, o foco de contestação social mais manifesto em toda a sua história, reivindicado por anarquistas, sindicalistas e trabalhadores independentes.

O Sindicato dos Operários da Indústria Mineira de S. Domingos, com sede na povoação e berço em 1924, ainda no tempo da I República, foi uma parcela singularmente activa nos movimentos e greves operárias, que eram sobretudo, fruto da indignação social perante as condições laborais. Em 1930, nasceu a Voz do Mineiro, um órgão do sindicato, cujo intuito era o debate de soluções para as condições dos mineiros. Aqui, destaca-se a greve de 1932, demarcada por um teor classista, encarnador do movimento grevista sólido e ofensivo, e que reflecte explicitamente as confluências próprias daquele tempo. É conveniente referir que os fenómenos grevistas, quando ocorridos em minas, tinham uma dimensão distinta do corrente, devido à utilização de explosivos na indústria, cuja existência obrigava à intervenção de contingentes da Guarda Nacional Republicana e do Exército. Somando a isto, a tensão social era ainda fomentada pela presença da polícia política do regime e da própria polícia privativa7 da Mason & Barry, que mantinha a ordem pública e vigiava os interesses da empresa8.

Não obstante, à época do Estado Novo, as variáveis que confluíam no mundo destes mineiros incorriam, nitidamente, nas dinâmicas do movimento operário deste período. E embora as conflitualidades sociais assentassem em clivagens que remontavam ao século XIX, o Estado Novo teve uma cota-parte de influência na sua construção identitária. Para o tratamento deste corolário, o estudo encontra-se dividido em duas partes9. Na primeira, será feita uma abordagem às lógicas e dinâmicas do couto mineiro, introduzindo as estruturas da povoação e os modos de sociabilidade, findando com o paternalismo social. A segunda parte focará a ofensiva social, apresentando os contornos da actividade laboral e que acabaram por levar à contestação e ao conflito, numa junção de ingredientes entre tensão, luta e identidade. Para a sua elaboração, a metodologia adoptada incidiu, primeiramente, na leitura de bibliográfica geral e específica, transitando para a investigação de diversos tipos de fontes e respectiva crítica e tratamento, procedendo, por último, à elaboração do estudo à luz dos resultados obtidos.

1. Lógicas e Dinâmicas do Couto Mineiro

1.1 A Povoação e a Sociabilidade...

A Mina de S. Domingos é a localidade desenvolvida em redor da exploração mineira que a baptizou. O aparecimento deste tipo de localidades, em contexto industrial, era

5 - Na mina de S. Domingos, o salário obtido era, inclusivamente, superior ao praticado pelas minas de Aljustrel, sua conterrânea industrial.6 - Entende-se por mineiro o homem da picareta que enfrentava diariamente os perigos da contramina. O homem que operava com a maquinaria das restantes actividades era o operário. Porém, nos seus efeitos práticos, esta dis-tinção não tem muita importância, pois trata-se de um conceito lato: em muitos coutos mineiros, até por questões de identidade social, todos os trabalhadores eram, efectivamente, mineiros. 7 - A polícia privada da Mina de S. Domingos foi o primeiro corpo policial de uma empresa em Portugal, inaugurado em 1875 pela companhia.8 - Felicidade da Paixão Marques, Alguns aspectos sociais da região mineira de S. Domingos, Lisboa: Instituto Supe-rior de Serviço Social, 1947, p. 130.9 - Inicialmente, o estudo compreendia três partes, sendo a primeira dedicada ao sindicalismo e ao corporativismo, componentes vitais no percurso modelador do Estado Novo, e evidentes nas estruturas do caso de S. Domingos. Por estas noções serem imprescindíveis à compreensão total dos acontecimentos, serve esta nota para dar conhe-cimento de que essa investigação foi realizada, e que as duas partes deste artigo procuram compor-se à luz dessa primeira análise.

36Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

muitas vezes, um fenómeno comum. Tratavam-se de agregados habitacionais que nasciam acidentalmente10, pela via directa da industrialização, e para suprir as necessidades que os estabelecimentos industriais acarretavam11.

Na povoação, existia uma série de infraestruturas e equipamentos de lazer, cultura, desporto e culto, construídos por iniciativa da empresa concessionária. Até mesmo as represas n.º 3 e n.º 4, a Tapada Pequena e a Tapada Grande respectivamente, foram muito utilizadas pelos ingleses e restante população para actividades de lazer, embora o principal destino fosse o fim industrial. A iniciativa da edificação destas infraestruturas correspondia, simultaneamente, a uma estratégia de enriquecimento moral da população, e era, em rigor, prática comum em algumas zonas de desenvolvimento industrial12.

Anteriormente ao desmonte da serra de S. Domingos13, já existiam na aldeia estruturas como o palácio da administração, escola, igreja14, hospital, farmácia, cemitério inglês, sala de desenho, laboratório químico e fotográfico, casas de residência para as secções administrativas, casas para trabalhadores, quartel para destacamentos militar, armazéns, oficinas, teatro e casa de recreio15. O desmonte obrigou a uma reorganização do povoado praticamente total, e estabeleceu uma barreira muito vincada entre ingleses e trabalhadores. Neste processo, a hierarquia social e laboral ficou bem demarcada16: os ingleses deslocaram-se para oeste, para um bairro agradável e distanciado dos operários, onde também se fixou o segundo palácio de James Mason, frente a um coreto que fazia os serões das tardes de domingo, com um grande jardim e área arborizada por bosques de eucaliptos entretanto plantados17, campos de golfe e ténis (de acesso estrito aos ingleses), tudo isto junto à represa n.º 4, a Tapada Grande. Quanto às novas habitações operárias, embora muito semelhantes às primeiras, com os mesmos 16 m², foram entregues a baixo custos aos indíviduos que traziam a família para a comunidade, tendo sido disponibilizados quintais e hortas para a alimentação. A Mason & Barry garantiu também total autonomia à localidade mineira, com a criação de escolas, programas de formação, novo hospital, farmácia, igreja18, cemitério católico, mercado, instalações militares e de polícia, posto de correio, cineteatro, biblioteca e campo de futebol.

Em 1952, em pleno Estado Novo, a Mina de S. Domingos contava com as seguintes colectividades ou recintos de espectáculo: o cineteatro, propriedade da empresa e gerido pela Associação de Auxílio aos Pobres; o campo de futebol Cross Brown19; o Centro Recreativo da Mina de S. Domingos, o clube dos mais abastados; o Grupo Musical e Recreativo, frequentado pela classe média; e o Centro Republicano 5 de Outubro, aberto à participação de todos e que ainda hoje existe. A empresa financiava também duas equipas de futebol para divertimento da população: o S. Domingos Futebol Clube e o Guadiana Futebol Clube. Há ainda a menção da existência do Sport Clube Mineiro e o Nacional.

Como exemplo da dinâmica cultural e desportiva existente, urge ainda evocar que existiram duas delegações da Inspecção de Espetáculos no concelho, responsáveis pela autorização da actividade cultural. Uma localizava-se em Mértola, e outra na própria Mina de S. Domingos. Em 1960, esta representação passou a subdelegação, tendo sido extinta

10 - Leite de Vasconcellos, Etnografia Portuguesa, vol. V, Lisboa: Imprensa Nacional, 1967, pp. 266-268.11 - Helena Alves, Mina de S. Domingos: Génese, formação social e identidade mineira, Mértola: Campo Arqueo-lógico de Mértola, 1997, p. 56.12 - Por Terras do Chapéu de Ferro, coord. João Miguel Serrão Martins, s.l: Fundação Serrão Martins, Câmara Mu-nicipal de Mértola e Agência de Desenvolvimento Regional do Alentejo S.A., 2013, p. 15. 13 - Em 1867, no âmbito do II Plano de Lavra de James Mason, a serra onde se localizava o jazigo foi alvo de des-monte, para se proceder à lavra a céu aberto.14 - Aquando do desmonte, a segunda igreja foi edificada no local onde a actual se encontra. Foi consumida por um incêndio nos anos 30 do século passado, dando lugar à igreja que hoje se conhece. 15 - Apenas se mantiveram o antigo hospital, o cemitério inglês, e algumas habitações a poente da corta.16 - José Esteves, “Impressões de viagem. Na mina de São Domingos”, O Eco Metalúrgico, IV, 1931, p. 3 17 - Esta plantação foi uma obrigação estatal, uma condição imposta pelo governo após a entrega do relatório do geólogo Carlos Ribeiro, com o objectivo de amenizar o impacto ambiental. Em 1857, o geólogo havia sido encarre-gado pelo Conselho-Geral de Obras Públicas e Minas para fazer em S. Domingos o reconhecimento oficial do jazigo, propondo em planta a área a concessionar.18 - Note-se que é bastante significativo o facto da administração inglesa anglicana ter criado um local de culto católico. O intuito poderia ser tanto a tolerância religiosa e cultural para com os trabalhadores, como o objectivo de satisfazer a população, promovendo o bem-estar social, e evitando o acumular de tensões. 19 - Membro da administração da mina em Londres, nos anos 30.

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com o encerramento da exploração. A dinâmica social e associativa na Mina era, portanto, extremamente inerente, especialmente se considerarmos que na própria sede do concelho, Mértola, existiam unicamente quatro instituições de âmbito cultural, e somente uma desportiva.

1.2 O Paternalismo Social

A actuação de algumas administrações mineiras desencadeou a formação de um novo modelo de comunidade e de localidade, com aglomerados populacionais cuja vida estava directamente ligada à organização do trabalho. No universo social mineiro, a importância da dimensão comunitária era crescente e consistente, obliterando-se com os valores individualistas resultantes da heterogeneidade das posições ocupadas pelos indivíduos no trabalho e da diversificação da paisagem social, em contraste com a comunidade rural tradicional. Frequentemente, os costumes, a ordem social e a ordenação espacial, eram substituídos por regras previamente definidas pela administração, correspondendo aos princípios racionais do patronato20.

A formação da comunidade encontrava-se intimamente relacionada com a acção do patronato mineiro, vinculada com a construção dos bairros, das cooperativas de consumo, e das mutualidades. Estas relações sociais, formadas fora do trabalho, reproduziam a ordem implícita no seu interior: entre os trabalhadores, quase sempre vingava uma relação entre iguais. Por sua vez, a própria povoação também adquiria uma dimensão cada vez mais ampla do que a transmitida pelo espaço físico dos bairros operários, tornando-se efectivamente, a comunidade. O aglomerado de factores como o modo de vida, o nível dos rendimentos, o parentesco, e a proximidade geográfica, aproximaram, em larga escala, grande parte do operariado21. Inclusivamente, foi neste sentido, que o próprio delegado do Instituto Nacional do Trabalho informou ao director do Fundo de Desenvolvimento que, os filhos e netos de mineiros tinham pouco gosto em aprender outras profissões, uma vez que o trabalho rural era mais instável, menos remunerado, e com menos benefícios sociais. Como tal, a base do operariado mineiro construía-se e reconstruía-se, acompanhando os ciclos produtivos e as dinâmicas do sector22, adaptando-se à imagem das suas familiaridades e necessidades mais básicas.

Relativamente ao processo de formação do operariado industrial mineiro, dada a sua origem rural, camponesa ou proletária, os trabalhadores são grupos de transição, e por isso, mesmo que fossem submetidos a uma nova disciplina e novas relações laborais, ao enveredarem por essa profissão, continuavam a conservar hábitos e ideologias próprias. Para muitos trabalhadores, a mina foi o primeiro contacto, quase sempre violento, com o mundo industrial, que impunha o que havia de mais odioso nestes meios: uma disciplina laboral imposta por critérios da produtividade, e organização das relações humanas em função da posição laboral de cada trabalhador. A tradição rural era imposta directamente por indivíduos hierarquicamente superiores, que organizavam a vida dos mineiros unidimensionalmente, em função da produção. A esse nível, o paternalismo não era unicamente uma ideologia, mas sim uma forma de organização da vida operária23 tipificada fora do complexo industrial.

No que concerne à essência desta comunidade mineira, ela influía num duplo sentido. Resultava tanto dum acto volitivo e integrador, ligado à acção do patronato mineiro no domínio assistencial, como da construção de uma identidade própria dos indivíduos trabalhadores perante os seus dirigentes. Na primeira premissa, encontramos o paternalismo, e na segunda, a consciência de classe24. Por tudo isto, o nascimento da exploração mineira na vida rural significou o aparecimento de novas experiências individuais e colectivas, e o despoletar de problemas de nova ordem, como os particulares conflitos mineiros.

20 - Paulo Guimarães, Indústria e Conflito no Meio Rural. Os mineiros alentejanos (1858-1938), [Lisboa]: Edições Colibri e CIDEHUS-UE, 2001, p. 197.21 - Ibidem, p. 202.22 - Idem, Indústria, Mineiros e Sindicatos. Universos operários do Baixo Alentejo dos finais do século XIX à primeira metade do século XX, Lisboa: ICS, 1989, p. 31.23 - Daniel Bertaux, Destinos pessoais e Estruturas de Classe, Lisboa: Moraes, 1978.24 - Paulo Guimarães, Indústria e Conflito … p. 203.

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2. Tensão, Luta e Identidade na Ofensiva Social

2.1 A Actividade Laboral

Os trabalhos subterrâneos eram os que exigiam maior espírito de sacrífico. Todos os dias subiam da contramina trabalhadores acidentados pela dureza da actividade. Este percurso demorava, aproximadamente, uma hora até ao exterior. A água ácida e os gases em combustão provocavam uma atmosfera sufocante. Os registos de acidentes revelavam uma lista infindável de membros esmagados, problemas oftalmológicos, problemas respiratórios, e na pior das hipóteses, mortes pelo abatimento de tectos ou em acidentes com máquinas de trabalho. Estão ainda documentados relatos de episódios de mineiros que, embora trabalhassem várias horas extraordinárias, recebiam o salário como horas correntes25. Estas condições conduziram à doença de muitos homens, vários chefes de família, podendo arrastar os numerosos agregados familiares para a miséria.

Sobre o trabalho infantil, existem referências de crianças trabalhadoras, mas esses valores diminuíram consideravelmente ao longo da exploração. Relativamente à presença das mulheres nas actividades laborais, a legislação de 1890 proibia-a no subsolo. Aliás nas minas do distrito de Beja, os seus valores são de facto muito baixos, e em S. Domingos não há qualquer registo desse tipo de ocorrência26. O trabalho feminino era conjuntural e não generalizado às mulheres dos mineiros alentejanos27.

Devido à miséria característica deste panorama sociocultural, a atmosfera era de dependência absoluta, onde o livre arbítrio era mudo pela necessidade de uma vida melhor. Os trabalhadores viviam em habitações precárias, muitas vezes com vários filhos, nos já referidos 16 m², e que pouco mais tinham para comer que pão e sopa, conduzindo à subnutrição. Tudo isto compunha um rol de condições propícias ao aparecimento de focos generalizados de doença, e à dependência do alcoolismo como forma de alienação.

2.2 A Contestação e o Conflito

Em 1931, à excepção da Mina de S. Domingos, o sindicalismo agonizava. O movimento sindical tinha um ritmo localizado, fruto de circunstâncias concretas, e as lutas locais dos trabalhadores dificilmente acompanhavam o ritmo geral, e se o faziam, era de modo mais particular. No sector mineiro, ainda que os horários de trabalho e respectivos salários estivessem expressos na lei, não o eram nos contratos. A realidade do quotidiano mineiro era diversa, em todas as minas. A associação era construída de base, bem como as ideias, importadas, incrementadas, interiorizadas, e até apropriadas por uma população semi-alfabeta. Era sob este signo que se compunha a associação, distinguida por ser um local de encontro entre dirigentes, operários e camaradas. A sua persistência dependia também da continuidade destes encontros28.

Efectivamente, a Mina de S. Domingos encontrava-se longe dos grandes centros políticos e administrativos, correndo o risco dessas concepções serem muito enviesadas. E embora antes da I Guerra Mundial a mina vivesse uma situação de prestígio industrial, em 1915, a crise económica levou o director ao despedimento de algum pessoal e a requisitar forças militares. Antes da instituição do Estado Novo, a Mason & Barry procedeu a aumentos salariais, de modo a antecipar a criação de uma associação. Todavia, em 1925, os mineiros viram os salários temporariamente reduzidos.

Em 1923, constituiu-se o grupo anarquista União e Progresso, formado por 21 operários da companhia. A direcção não se acomodou, proibindo-os de construir o edifício da associação nos terrenos da concessão mineira. Mesmo assim, conseguiram entregar os estatutos da associação, em Janeiro do ano seguinte. Por essa altura, rebentou uma bomba na casa do director, que segundo diziam os trabalhadores, colocada por ordem dele próprio. Este episódio culminou na prisão dos elementos mais activos, libertados pela intervenção do

25 - Sindicato dos Operários da Indústria Mineira de S. Domingos, Rumores Subterrâneos, s.l: Agência Literária, s.d, p. 8.26 - Boletim de Minas.27 - Paulo Guimarães, Ob. Cit., pp. 207-208. 28 - Idem, Indústria, Mineiros e Sindicatos…, p. 56.

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deputado Sá da Bandeira, após 18 dias de prisão. Foram readmitidos pela companhia, mas apenas em 1937.

A 26 de Abril de 1925, decorreu clandestinamente em Aljustrel, a I Conferencia Anarquista do Sul, que procurou restabelecer princípios de orientação para os recentes grupos, como o Grupo de Propaganda e Estudos Sociais, precisamente da Mina de S. Domingos. Muitos destes activistas eram indivíduos jovens, de origem social operária, artesanal, ou até pequeno-burguesa. Foi na lógica desta pequena esfera que, durante um determinado período, a história do movimento social na região esteve ligada à acção de homens, geralmente anarquistas, e com um leque de ideais adequados às reivindicações dos trabalhadores.

Em S. Domingos, a crise de 1930 não se sentiu tão intensamente, pois o mercado tradicional estava assegurado pela administração da empresa em Inglaterra, ainda que os anarco-sindicalistas estivessem conscientes das dificuldades conjunturais. No entanto, foi neste ano que surgiu a Voz do Mineiro, que publicou vários periódicos. Pertencente ao órgão do sindicato de S. Domingos, foi uma associação de classe criada para dar voz aos problemas dos trabalhadores. A Mina de S. Domingos tornou-se assim num núcleo populacional, onde os trabalhadores dispunham de uma organização de consciência de classe ímpar no distrito. Na vanguarda de toda esta iniciativa, esteve o Grupo de Propaganda e Estudos Sociais, e figuras como Valentim Adolfo João (Presidente do sindicato de S. Domingos), Diogo da Palma Neves, Valadas Ramos, e Florival da Graça29.

Em 1932, com início em Outubro, eclodiu uma greve com a duração de dois meses, de índole anarco-sindicalista, com o propósito de alcançar melhores ordenados e menos horas de trabalho30. Esta foi a última grande greve em S. Domingos. Transcorreu da crise mundial de 1930-193131, que provocou despedimentos massivos, pela necessidade de ajuste à conjuntura económica. Este tipo de medidas era muito comum em contexto mineiro, pois as explorações tinham de corresponder às alterações nos planos de lavra, movidas pelas oscilações dos mercados, e obrigando à reestruturação dos trabalhadores. A decisão de se proceder a esta greve foi tomada em plenário, por alguns trabalhadores, e contra a vontade de alguns dirigentes, que estavam conscientes sobre ser o pior momento para enfrentar o patronato e o Estado. As janelas da associação foram mesmo arrancadas, para impedir o seu encerramento pelas autoridades. Entretanto, todas as noites chegavam forças da GNR, em números que atingiam as quatro centenas. Terminou com uma violenta repressão, que culminou com a perseguição, prisão e despedimento dos elementos mais activos da greve. A partir desta data, o movimento sindicalista e anarquista na aldeia começou a decrescer, e o sindicato foi dissolvido.

Desde 1928 que as condições de vida dos trabalhadores se agravavam. Foi iniciada a perseguição aos dirigentes sindicais e anarquistas mais influentes da região. Por todos os meios, os sindicalistas procuravam a atenção das autoridades e da opinião pública para a situação. Nessa lógica, em 1930, enviaram ao governo e à imprensa, uma notificação onde expunham as suas contestações. Simultaneamente, reivindicava-se um aumento salarial, uma caixa mutualista, a construção de novas habitações, o fim do trabalho à tarefa e do serviço subterrâneo com duração de 6 horas. Em sequência, realizaram-se inspecções aos trabalhos mineiros, que ao serem orientadas pelos engenheiros da empresa, acabaram por ser favoráveis à companhia. Mesmo assim, houve alguma imprensa que se demostrou interessada no assunto. Pouco tempo depois, Ferreira de Castro, como repórter d’O Século32, visitou a Mina respondendo aos apelos das toupeiras humanas33, mas foi seguido por um agente da PIDE, e a sua reportagem foi censurada, tendo sido apenas publicada a 30 de Maio de 197434. O resultado dessa peça nunca foi publicado durante o regime por que o director da administração, incomodado, se dirigiu propositadamente a Lisboa para falar com o embaixador inglês, que moveu as influências necessárias para evitar a divulgação

29 - Ibidem, pp. 63-66.30 - Confederação Geral do Trabalho, Ao Proletariado. A Confederação Geral do Trabalho e a greve nas minas de S. Domingos, Lisboa, 1932.31 - José Pacheco Pereira, Conflitos Sociais nos Campos do Sul de Portugal, Mem-Martins: Publicações Europa-América, s.d, p. 119.32 - João Paulo, “Reportagem Maldita”, O Largo, Separata do Diário do Alentejo, 14 de Março de 1986.33 - Ricardo Grilo, “História da Velha Mina”, Separata da Casa Decoração, n.º 123, Janeiro de 1996, p. 98.34 - Ferreira de Castro, Os Fragmentos: Um Romance e Algumas Evocações, 2.º ed., Lisboa: Guimarães e C.ª Edi-tores, [1974].

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do testemunho do escritor-jornalista35. O Estado acabou, contudo, por atender a algumas reivindicações, e em 1932 foi criada a União Mutualista de Cambas, com as horas extraordinárias a serem pagas aos trabalhadores. Estava assim, aberto o caminho para a implantação dos sindicatos nacionais na região36.

Em 1937, por iniciativa de um professor do ensino primário foi fundada a Legião Portuguesa na Mina de S. Domingos, e embora em 1947 ainda não tivesse sede construída e se encontrasse sem actividade, já havia servido para auxiliar a polícia na manutenção da ordem pública nas festividades37, que segundo consta pelos testemunhos orais, estava sempre atenta38. Ainda nesse ano, deu-se o único contributo dos mineiros de S. Domingos num atentado contra a vida de Salazar39, no dia 4 de Julho, através do fornecimento de explosivos. Valentim Adolfo foi acusado de fabricar a bomba, tendo sido julgado em Março de 1939, e condenado a quase 24 anos de prisão40.

A política paternalista das empresas acentuou-se na década de 1950, quando os lucros começaram a aumentar, e a Mason & Barry não foi excepção. No relatório da direcção do sindicato de S. Domingos, constam as vantagens da organização corporativa: os operários tinham conseguido, em 1952, a reforma por invalidez e velhice, assistência médica e medicamentos, subsídios na doença e por morte, regulamentação da prestação do trabalho, atualização da lei dos acidentes de trabalho, pagamento do dia de Natal, a construção do campo de jogos e de 20 moradias para operários da empresa. Nesse ano, a companhia entregou emblemas de ouro a 125 operários e empregados com mais de 50, 60, e 70 anos de serviço, e um donativo de mil escudos, como prémio pelos bons serviços prestados41.

O ano de 1960 principiou com a ameaça de despedimento em massa e do encerramento definitivo das minas de S. Domingos. Foi neste quadro que se deu a greve de 8 de Abril de 1960, da qual resultou a prisão de inúmeros operários. Na sua origem, esteve a reacção ao despedimento de alguns trabalhadores, que tendo tido conhecimento desse facto quando ainda se encontravam no interior das galerias subterrâneas, se solidarizaram com os camaradas, recusando-se a deixá-las. Contudo, os cerca de 120 mineiros foram forçados a render-se, pela sede e pela fome, sendo presos à medida que encontravam a luz do dia. Seriam reintegrados na empresa, à excepção dos 14 indivíduos responsabilizados pelo movimento42. Há ainda alusão a uma greve, datada de 2 de Maio de 1962, decorrida durante um dia. Novamente, o objectivo era o alcance das 8 horas de trabalho. Para esse efeito, os trabalhadores impuseram-na na prática, e a dinâmica grevista do PCP parece ter tido mais influência, dada a homogeneidade das situações em esparsas regiões alentejanas43. No cenário de todas estas greves, e especialmente nas últimas, a PIDE e a GNR não se limitaram a prender os militantes do PCP ou os agitadores que se destacavam. A par disso, exerciam uma ostensiva violência contra aldeias inteiras44. Nunca é demais invocar que foi assim que o PCP herdou no Alentejo, depois do derrube da ditadura, o contexto sociocultural e o lastro de afectividade que ligava estas pessoas da terra, à memória e tradição do partido e do comunismo45. É, com efeito, à luz de tudo isto que o próprio movimento de resistência ao Estado Novo, foi também um dos condicionalismos que formou, entre o operariado de S. Domingos, a identidade comum que ainda hoje a caracteriza.

35 - Pedro Muralha, “Escravatura Branca? A Mina de S. Domingos vergonha de uma civilização”, Magazine Ber-trand, ano V, n.º 5, 1931, p. 98.36 - Paulo Guimarães, Ob. Cit., p. 67.37 - Felicidade da Paixão, Alguns aspectos sociais da região mineira de S. Domingos, Lisboa: Instituto Superior de Serviço Social, 1947, p. 13138 - Rafael Rodrigues, “Vinte e Cinco Anos de Solidão”, Grande Reportagem, n.º 13, 1992, p. 70.39 - Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ministério do Interior.40 - Maria João Ramos, Mason & Barry e a construção da Mina de São Domingos: indústria, turismo, globalização, Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa: 2012, p. 382.41 - Idem, Ibidem, pp. 70-71.42 - Idem, Ibidem.

43 - José Pacheco Pereira, Ob. Cit.., p. 153.44 - Idem, Ibidem., p. 16845 - João Madeira, “O declínio das greves rurais e a evolução do PCP nos campos do Sul”, in Greves e Conflitos Sociais em Portugal no Século XX, coord. Raquel Varela, Ricardo Noronha e Joana Dias Pereira, Lisboa: Edições Co-libri e Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2012, p. 178.

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Notas Finais

A política operária do Estado Novo desenvolveu-se numa dupla estratégia. Por um lado, pretendia reprimir qualquer indício de bolchevismo, sob a forma da organização de classe, enquadrando os operários em organizações controladas pelo Estado, ou seja, o corporativismo, e por outro, isolar os operários dos seus dirigentes, alimentando as relações de patrocinato no seio da empresa e das organizações estatais.

Com a formação dos sindicatos nacionais e a repressão generalizada, os anarco-sindicalistas viram-se definitivamente privados de qualquer possibilidade de agir. Se desde os anos 20 o sindicalismo tinha começado a revelar alguma ineficácia como arma do operariado, lançando um crescente número de activistas das Juventudes Sindicalistas para a órbita do Partido Comunista Português – cuja influência ainda é notória na aldeia da Mina de S. Domingos – a formação dos sindicatos nacionais eliminou, em parte, a viabilidade da estratégia anarco-sindicalista.

A estratégia comunista, por sua vez, desenvolveu-se em duas frentes. Em primeiro lugar, alcançar a direcção dos sindicatos que servissem a classe e fornecessem informações aos elementos da secção de propaganda, que estavam tradicionalmente nas mãos dos sindicalistas revolucionários, para pressionar as autoridades superiores a fazer algumas concessões em nome da paz social. E ainda, actuar junto do operariado, com assento nas ordens superiores do partido e nas informações fornecidas, directa ou indirectamente, pelos dirigentes sindicais de base. Sensivelmente no fim da década de 60, esta estratégia funcionaria praticamente sem interrupções. Em sequência, a resistência dos trabalhadores ao novo sindicalismo expressou-se pelo abandono da associação.

A partir da publicação do Estatuto do Trabalho Nacional, foi criado o Sindicato dos Operários da Indústria Mineira e Ofícios Correlativos do Distrito de Beja, a maior concentração de mineiros do país. Os sindicatos sobreviventes viram a sua acção fiscalizada directamente pelos delegados do Instituto Nacional do Trabalho e foram reconvertidos, uma tarefa facilitada pelo trabalho das autoridades junto dos velhos sindicalistas, a partir de 1924. À data da publicação do Estatuto, a associação de classe de S. Domingos vivia em letargia. O Salazarismo pretendia fazer crer aos operários que a colaboração era o único caminho para a solução dos seus problemas. Porém, ao manter sob controlo apertado a vida interna dos sindicatos e as acções dos seus quadros dirigentes, tornou-se impossível qualquer tipo de representatividade, e consequentemente de legitimidade, junto dos trabalhadores.

No cômputo final, apesar das divergências ideológicas existentes entre os dirigentes operários, a sua unidade nos momentos cruciais, geralmente, nunca foi posta em causa. A coesão interna demonstrada pelos momentos mineiros, durante as greves foi notável, pois se ao nível das direcções nacionais isso não acontecia, localmente, a definição dos objectivos nunca se perdeu. Para todos os efeitos, o legado da identidade mineira perduraria sempre.

Fontes e Bibliografia

1. Fontes1.1 ManuscritasArquivo Distrital de Beja, Governo Civil, Beja.Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ministério do Interior, Lisboa.Laboratório Nacional de Energia e Geologia, Fundo Documental, Lisboa.1.2 ImpressasAo Proletariado. A Confederação Geral do Trabalho e a greve nas minas de S. Domingos, Lisboa: Confederação Geral do Trabalho, 1932.Boletim de Minas, [vários].CASTRO, Ferreira de, Os Fragmentos: Um Romance e Algumas Evocações, 2.º ed., Lisboa: Guimarães e C.ª Editores, [1974].Diário do Governo, Lisboa [vários].

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Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

43Vanessa Alexandra Alvorado Teixeira Pereira

Fig. 1: Equipa de futebol de S. Domingos Fig. 2: Funeral de António Mendes Gomes, Fig. 3: Valentim de 1929 sindicalista e grande defensor dos Adolfo João mineiros, 1 de Dezembro

Fig. 4: Grupo Musical da Mina de S. Domingos, Fig. 5: Desfile dos alunos das escolas, anos 30 1 de Dezembro de 1936

Fig. 6: Desfile de crianças do sexo feminino Fig. 7: Procissão de Santa Bárbara junto àno campo de futebol, 1936 entrada da contramina, anos 40

Fig. 8: Polícia Privativa da Mason & Barry, anos 40 Fig. 9: Cargueiro Zé Manel, propriedade da CUF para o transporte do minério, c. 1948

Figura 10: Visita da Nossa Senhora de Fátima, 1951

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O chão e o verbo.O diagnóstico da pátria ibérica no diário de Miguel Torga

Tiago Mesquita CarvalhoDoutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência,Tecnologia, Arte e Sociedade - FCUL

IntroduçãoO Diário de Miguel Torga é, entre outros aspectos, um testemunho incomparável do

século XX português; escrito ao longo de mais de sessenta anos, é um conjunto de registos, impressões e sínteses sobre a vivência íntima e quotidiana do próprio autor, das suas viagens e meditações e por conseguinte também dos grandes acontecimentos que atravessam o tempo histórico de Portugal, da Europa e do mundo.

O discurso presente no Diário contudo, não é tão autobiográfico como nos volumes d’A Criação do Mundo, embora ambos representem o mesmo diálogo do autor consigo mesmo, na opinião de Clara Crabbé Rocha1. É assim possível assinalar algumas diferenças essenciais; no Diário, a escrita não é tão intimista e o protagonista, ao invés de ser o próprio autor e como refere António Arnaut, “o verdadeiro herói é, sobretudo, o povo e a Pátria.”2; ou, como notou Sophia de Mello Breyner, “a terra que Torga canta é uma pátria. E quem lê o Diário percorre Portugal de lés a lés, o seu espaço telúrico, humano, e o espaço histórico e cultural.”3. Recorde-se que Miguel Torga pertenceu ao grupo da revista Presença, cujo ideal estético, em contraste com o do grupo Orpheu, privilegiava a autenticidade e o poema-palavra-experiência vivida4.

A própria configuração do Diário presta-se a hermenêuticas que dêem simultaneamente conta dos aspectos humanos, geográficos e pessoais das localidades, por vezes conjugados em metáforas ou tropos de particular poder imagético e alcance profético. Cada entrada é precedida de um lugar e de uma data específicos, acentuando como o dia-a-dia, a consciência e a sensibilidade de Miguel Torga se associam e se desvelam de acordo com os eventos e locais específicos; nada se passa na sua vida que não esteja atravessado das implicações de um aqui e agora concretos; o poeta escreve para se descobrir mas descobre também que essa busca está condicionada pela enorme abundância da exterioridade que se doa, inevitável e necessária, a si próprio; de modo que as suas viagens, os seus passeios, as suas interrogações existenciais por si, pelo seu povo ou pelo destino e identidade de um país são aspectos multímodos de uma única procura autobiográfica que nunca se esgota somente no sujeito5.

Cremos ser também esta a interpretação que dele faz António Arnaut quando aponta que O Diário excede, em nosso entender, o espaço autobiográfico do autor. Não é a sua imagem estampada que vemos, numa espécie de santo-sudário. Não é o seu retrato, mas a

1 - Cf. O espaço autobiográfico em Miguel Torga, p.532 - Cf. Arnaut 1997, p. 14.3 - Cf. Diário de Notícias, 7/7/1976.4 - Cf. Herrero 1979, p. 42-43.5 - Coimbra, 29 de Junho de 1988 – Portugal. Foi a procurar entendê-lo que compreendi alguma coisa de mim. As pátrias são espelhos gigantescos onde se reflecte a pequenez dos filhos. À nossa medida, herdamos-lhe a dimen-são. E a singularidade. […] Tenho também oitocentos anos de idade e pareço uma criança. Cf. Diário. XV, 121.

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sua moldura. O retrato que nele se desenha é o do povo e da condição portuguesa6. Podemos indagar acerca da razão dessa busca; é mester reconhecer que a natureza

dessas questões assola qualquer ser humano; e de acordo com o temperamento de cada um, as respostas, se surgirem, podendo ser ou não derradeiras, serão ofertadas ao altar da consciência com maior ou menor pungência ou dúvida; em Torga as respostas quase nunca forma definitivas, pelo que sempre a busca de si e de Portugal corria em uníssono, porquanto nunca foi capaz de se divorciar da vida colectiva dos que o rodeavam7; admitida então a influência cabal do enraizamento telúrico, é preciso entendê-la até à sua raiz profunda; mas a busca é árdua, dado que a exterioridade de Torga é um Portugal com oito séculos de existência e que não encontrou ainda a sua identidade nacional.8 Não obstante, é nessa odisseia à escala do território, nessa inadiável descoberta interior que Torga espera poder achar um sentido para o futuro.

Neste contexto, embora as referências a Espanha e ao iberismo estejam também presentes noutras obras9, cremos ser no conjunto do Diário que podemos encontrar referências e observações mais acutilantes e pertinentes à identidade de cada país, ao carácter do seu povo, à qualidade dos seus monumentos e cidades e da sua cultura, a par de um método de inquirição que é próprio ao autor e que tentaremos exarar adiante.

O método de almocreveSão várias as entradas do Diário de Miguel Torga em que podemos surpreender uma

concepção corográfica implícita ao autor e que assume contornos constantes e coerentes para que mereçam um destaque próprio; esta concepção corográfica leva a que várias entradas do Diário tracem um retrato da necessária intimidade entre o homem e o seu meio físico; tais entradas são afinal caracterizações vivas das cambiantes que a cultura, enquanto síntese do povo e da paisagem, tem assumido ao longo do tempo histórico, levando a que estes frescos de uma epistemologia geográfica sejam tambem meditações sobre o destino de um país e da própria civilização ibérica.

Tentaremos de seguida assinalar algumas das qualidades da concepção corográfica presente nos vários volumes do Diário mas presentes também na obra Portugal.

Para Miguel Torga, as formas arquitectónicas e urbanísticas em particular, a par da arte sacra, do vestuário, da culinária e dos dialectos regionais, constituem um manancial expressivo onde um olhar atento poderá vislumbrar um grau mais elevado do ser, mormente a síntese bem conseguida do modo de ser português ou espanhol; ora é a terra que influi de modo indelével no carácter gentio, ora é a própria grei que se inscreve no futuro através de monumentos. Em Torga, a apreciação estética, em especial do fenómeno urbano e natural, torna-se um modo de acesso ontológico à identidade portuguesa e ibérica10.

A metodologia gnosiológica que Miguel Torga empregava para conhecer as cidades, as regiões e os lugares implica então um contacto experiencial directo com as suas gentes, com a gastronomia e com os monumentos religiosos e património natural; trata-se de uma relação que não é de todo aquela do turista, do observador exterior que tem um contacto necessariamente efémero e superficial com aquilo que aprecia; Miguel Torga não dá tréguas ao corpo e aos sentidos para que as características dos locais se lhe possam tornar mais próximas, revelando a riqueza e a sabedoria dos povoados e das paisagens que o poeta percorre.

Neste sentido, por colocar o corpo11 e a multisensorialidade no centro do seu modo de aceder às coisas, cremos que a abordagem de Miguel Troga é bastante próxima daquele

6 - Cf. Arnaut 1997, p. 15.7 - Amieira, Alentejo, 24 de Outubro de 1958 – Cada qual procura-se onde se sente perdido. Eu perdi-me em Portugal, e procuro-me nele. Cf. Diário VIII , p. 1688 - Cf. Diário XII, p. 201.9 - Como nos Poemas Ibéricos10 - Ora nenhuma cidade nossa, salvo Évora, foi capaz de me dizer com pureza e beleza que eu sou latino, que eu sou árabe, que eu sou cristão, que eu sou peninsular, que eu sou português, - que eu sou a trágica mistura de sangue místico e pagão que faz de mim o homem desgraçado que sabemos. Cf. Diário II, p. 26.11 - De maneira que não há remédio. De resto, faz parte do meu ritual subir aos altos, sentir a voluptuosidade da fadiga, como diz Unamuno, e depois olhar. Cf. Diário II, p. 71.

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descrita pelo filósofo contemporâneo Arnold Berleant, a respeito da experiência estética ambiental12 e do envolvimento que ela acarreta para o modo como habitualmente nos pensamos e nos relacionamos com o exterior; não somos espectadores passivos colocados num mundo enxameado por objectos neutros; há uma continuidade condicional entre nós e o nosso meio físico e humano e é inevitável que ambos se enformem mutuamente.

A continuidade, por oposição à separabilidade, é o modelo de apreciação adequado à natureza e à arquitectura, por envolver todos os sentidos13, por dar conta de uma liga-ção ontológica entre o homem e as próprias coisas que o rodeiam e que o fazem; mas a continuidade não poderá contudo ser um argumento para que tudo seja justificável e admissível. A sensibilidade que prescruta em demora os lugares e os sítios torna-se igualmente aguçada o suficiente para que possa detectar elementos intrusivos e perniciosos que instalam uma disrupção na harmonia que diversos lugares possuem.

O telurismo de Torga assume por vezes contornos místicos, no sentido de em toda e qualquer parte ver o reflexo de toda a realidade; não só é a paisagem um reflexo enformador do povo que vive nela e que dela retira o sustento, como é muitas vezes esse entorno natural que parece inculcar no povo as suas qualidades morais; dir-se-ia que a continuidade do círculo homem-meio-ambiente-cultura não se faz apenas ao nível da disponibilidade dos materiais, do vestuário, da arquitectura e da alimentação mas também ao nível dos valores que os carácteres humanos acabam por interiorizar.

A valorização do natural em Torga, em detrimento do artificial, assume pois contornos eminentemente espirituais e religiosos, sobrepujando a própria função da arte na sua função pedagógica e espiritual; um dos aspectos essenciais do método que Miguel Torga emprega para entretecer um retrato de Portugal e de Espanha prende-se com a natureza profundamente moral que o autor outorga à natureza ou à terra e às formas de vida inveteradas nesse seio primordial e que como tal não a rejeitam14; a capacidade da terra inculcar naqueles que a habitam valores morais reflecte-se na consciência que um povo tem de si; as suas incursões à sua terra natal, S. Martinho da Anta, são aliás muitas vezes descritas como transfusões de sangue que o remoçam e agitam do marasmo da realidade do país; mas esta condição generalizada ao povo, segundo o autor, contrasta todavia com a daqueles que, educados, aburguesados e acostumados a importações culturais, parodiam e zombam da raiz profunda da pátria no coito da capital, apodando-a de província15.

12 - O termo “ambiental” em Berleant compreende tanto o ambiente natural como o ambiente construído. “[…] another more general one is to consider environment as a unified field incorporating a complex order of animate and inanimate objects bound together in spatial and causal transactions, and whose fluid boundaries respond to geographical conditions, human activity and other such influences.” Cf. Berleant 2005: 30.13 - Among the most complex and wide-ranging experiences of continuity are those that characterize the deep and powerful aesthetic encounters with art and nature. Continuity epitomizes the fullness of aesthetic engage-ment […] bodily engagement with environment, when integrated in active perception, becomes aesthetic. And when aesthetic engagement is most intense and complete, it achieves that fulfilment if value we call beauty. An aesthetics of the body is an aesthetics of environment, and the love of the one encompasses the love of the other. Cf Berleant 2005: 75..14 - S. Martinho de Anta, 16 de Setembro de 1961 – A cavalo nas rodas do progresso, que, além de cómodas, são rápidas, em quatro horas dei um salto do mundo civilizado aqui. Livrei-me das garras dum entrevistador cosmopolita, e vegeto na paz confinada das verças, a ver um vizinho arrancar batatas. Que inautenticidade a de há pouco, e que autenticidade a de agora! Na mão polida do intelectual, a esferográfica fazia e desfazia frases com a versatilidade ecuménica do dono; na manápula calosa do campónio, o enxadão move-se na constância sacramental dos ritos. É o dom supremo da natureza: dama de grande senhoria, tudo o que vive na sua intimidade se dignifica também. […] Daí a sensação de pureza e nobreza que nos dão as criaturas rurais, no trabalho ou no ócio. As cidades são artifícios monumentais de sofreguidão e cimento; e os homens que as habitam – artíficios miniaturais de carne e pensamento. E quem nelas sentir ainda a nostalgia instintiva do simples, do espontâneo, do verdadeiro, tem de lhes fugir sempre que possa e regressar à terra. Quanto mais não seja, para verificar até onde chegou na degradação... Cf. Diário IX, p. 84.15 - O povo, fechado nos antolhos da sua fome milenária, só vê courelas e água de regar courelas. E os outros, os bem comidos e bebidos, e que por isso tinham obrigação de uma acuidade mais ampla, jamais tiveram verdadeiro carinho por esta pátria que sugam desde que ela existe […] E o nome com que designam a roça da sua grandeza é “província”. Fecham nesta palavra o seu nojo pelos piolhos e pela lepra que cultivam com um desvelo digno deles e, quando regressam, ficam-se pela Capital. Ficam-se pela Babilónia da nossa perdição, por essa Lisboa que Portugal inteiro sustenta – enorme, monstruosa e vazia cabeça de um pequeno corpo, de tal maneira cansado de trabalhar, que nem tempo tem para olhar a formusura natural que Deus lhe deu. Cf. Diário III, p. 117.

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A crença de Miguel Torga na nobreza das gentes rurais16, quase analfabetas, a sua consciência de que as comunidades portuguesas durante séculos e já antes da presença ubiqua do Estado ou da Europa das Comunidades, possuíam a decência e a cornucópia humanística apta a granjear a confiança e a esperança num destino colectivo são inabaláveis17; mas é na transfiguração da realidade física da terra portuguesa ou espanhola para uma realidade moral que é a humana que nos tentaremos deter, pois talvez que aí resida a originalidade metodológica da concepção de Miguel Torga do que é um povo e dos laços com a terra que ele deverá manter e cuidar.

As visitas e as experiências que o poeta leva a cabo possuem pois uma dimensão normativa18 que permitem juízos críticos das várias mudanças que atravessam as cidades portuguesas. É precisamente pelas razões de uma demorada proximidade, granjeada durante anos a fio de visitas, estadas e viagens, que Miguel Torga é crítico das alterações estéticas que presencia a partir de meados dos anos setenta; porque, e é este o ponto, o autor adivinhava nessas alterações muito mais que simples variações ao seu sentido estético ou ofensas ao seu gosto subjectivo; estava perante uma mudança bastante mais profunda daquilo que o autor pautava como sendo a quintessência da identidade portuguesa; não se trata de que esta pudesse ser destruída por mudanças da sua expressão, mas sim de que as alterações às formas urbanas, arquitectónicas e naturais anunciavam uma mudança na coerência da cultura e das respectivas formas de vida.

Recordemos que o tempo histórico de Torga é em grande medida marcado pela descrença dupla em Deus e no Estado poderem fundar um acordo de convivência entre os homens; daí que os périplos infindáveis de Torga pelas aldeias recônditas do Portugal profundo não sejam uma curiosidade turistica ou de circunstância; são questões que o autor, como português nascido na Península Ibérica, colocou a si mesmo de forma implacável e que pretendeu vê-las respondidas de forma concreta em estilos de vida ainda enformados pela proximidade ao meio natural19; e embora Miguel Torga seja filho, neto e bisneto de cavadores, dessa vida árdua e amarga de fidelidade a um trabalho por vezes absurdo e às suas regras, não deixa de lhe enalter as virtudes morais; ou seja, embora tendo convivido de perto com a realidade da labuta rural e do fardo associado, não deixa de lhe associar benfeitorias éticas, por oposição à cidade, onde o véu ilusório das aparências joga com os desejos dos homens.

As deambulações ibéricasQuer esteja em Portugal ou em Espanha, o que prende Miguel Torga à incessante

investigação das características do rincão nativo da Ibéria é a certeza de só assim poder achar, para lá de manifestações inautênticas, um genuíno leito telúrico, luso e hispânico, dado que ambas as nações são feitas da mesma matéria; dando o corpo e aos sentidos ao manifesto,

16 - Fajão, 21 de Julho de 1968 – Ainda se encontram terras singulares neste país. O real e o irreal agasalhados no mesmo gabão. Nós sociais apertados, que nenhuma força centrífuga consegue desatar, correspondem sempre a nós cegos telúricos que a natureza também não deixa desfazer. E há não sei que sedução envolvente nessa coesa harmonia entre o antropológico e o geográfico – a eternidade humana reflectida no espelho da eternidade panorâmica. Cf. Diário X, p. 192.17 - Castro Laboreiro, 24 de Agosto – Estas pequenas comunidades que nos restam, Rio de Onor, Vilarinho da Furna, Laboreiro, etc., estão na última agonia. O Estado já não as pode tolerar, alheias à vida da nação, estran-geiras dentro do próprio território. […] E assim, um a um se vão apagando estes pequenos enclaves, não digo de paradisíaca felicidade, mas de humana e natural liberdade. Uma vida social assim, apenas acrescida de ciência e cultura, seria ideal. Antes de mais, o homem começou aqui por formar uma consciência cívica e fraterna, fundada em amor, e fez depois as reformas consoantes. Mas parece que se resolveu matar primeiro o homem e a sua harmonia espontânea, e construir então sobre cadáveres o futuro. Cf. Diário IV, pp. 113-114. 18 - The aesthetics of environment must recognize the experience of landscapes that offend us in various ways: by destroying the identity and affection of place, by disrupting architectural coherence, by imposing sounds and smells that may injure as well as repel, by making our living environment hostile and even uninhabitable. Part of this criticism is aesthetics, an offense to our perceptual sensibilities and an immediate encounter with negative value. Cf. Berleant 2005: 15. 19 - Gerês, 6 de agosto de 1968 – derradeira visita à aldeia de Vilarinho de Furnas, em vésperas de ser alagada, como tantas da região. […] E assim, progressivamente, foram riscados do mapa alguns dos últimos núcleos comu-nitários do país. […] Talvez que o testemunho de uma urbanidade tão dignamente conseguida, com a correspon-dente cultura que ela implica, não interesse a uma época que prefere convívios de arregimentação embrutecida e produtiva, e dispõe de meios rápidos e eficientes para os conseguir. […] Dava-me contentamento ver a lei moral a pulsar quente e consciente nos corações, e a entre-ajuda espontânea a produzir os seus frutos. Regressava de lá com um pouco mais de esperança nos outros e em mim. Cf. Diário XI, p. 11.

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Torga não se mascara da figura de um académico, no sentido lato do termo, que se dedique apenas à interpretação dos feitos históricos e das obras de arte ibéricas; ele lobriga no mais básico gesto quotidiano uma súmula da síntese de povos e civilizações que Portugal e a Espanha condensam; o tempero da carne, o sabor do pão, a ginástica e a geometria de virtudes contida na fala e nos seus bordões, tudo é matéria de interesse e aprendizagem para que Torga paulatinamente apreenda o espírito da Ibéria20.

Outra dos temas que atravessa pois o Diário, a par das incursões de Miguel Torga às cidades espanholas, são as respectiva meditações sobre a outra civilização ibérica; como foi dito, devemos ter em conta, ao analisarmos tais considerandos, as implícitas concepções corográficas de Miguel Torga e o modo como para o autor as expressões culturais são um modo de intuir o carácter e a identidade de um povo e as linhas de força que o determinam, em continuidade com o meio físico; o pelejo tauromáquico, por exemplo, constitui motivo para que Torga contraste a atmosfera amena, fraterna e postiça com que é rematado a tourada em território português com a violência instintiva e dramática do tudo ou nada espanhol, em que o desfecho segue o instinto.

Daí que de acordo o seu pensamento corográfico e perante o génio espanhol, Miguel Torga assinale a diferença daquilo que considera ser excepcional: as construções em Espanha não têm em conta a paisagem, o entorno e tal deve-se a uma pulsão dramática que é constantemente assertiva no seu querer; a beleza nesse território não é uma segregação humanizada do ambiente, mas algo mais que vai além dele.

Podemos especular pelas causas dessa contínua vontade castelhana ou da acédia lusitana sem nunca as verdadeiramente identificar; Miguel Torga parece porém tê-las localizado na pequenez e miséria da terra portuguesa e dos horizontes limitados a que por conseguinte elas obrigam ou, de modo não tão determínistico, sugerem. É nestas considerações que podemos descobrir um certo franciscanismo que Miguel Torga parece promover e defender. A carestia crónica da terra portuguesa parece ter sido o preço a pagar pela independência histórica de Castela; mas há uma qualquer grandeza21 nessa condição feita de humildade e trabalho absurdo para retirar das glebas algumas migalhas de pão.

Já a terra espanhola, abundante, rica, larga de horizontes, permite um alento e um fôlego que merecem a admiração confessa do autor; por outro lado, também Torga parece alternar nas suas preferências, pois embora indigente, o território português parece por isso ter aquela nobreza dos humildes, dos hábitos inúteis repetidos e obedientes às mesmas tarefas de sempre, à desconfiança das altas promessas do progresso, da política ou da filosofia. O despojamento do franciscanismo que Torga assinala a Portugal parece ser até uma condição para se habitar o território português; mas até que ponto será ele ingénito; com efeito, o que há de útil em aceitar pertencer a uma terra magra, pobre e amarga senão valores não utilitários?22 Não terá sido a própria rejeição desse castigo ou até de uma sede por uma abundância material que Portugal produz continuamente gerações de emigrantes?

Já Francisco da Cunha Leão tinha observado que um dos traços que caracteriza o homem português é a sua “religiosidade mediata, através da natureza e da Saudade, e pelo amor às criaturas”23; o franciscanismo é portanto um traço geral do carácter dos portugueses reconhecido por outros intelectuais; Jaime Cortesão, por exemplo, viu nos próprios descobrimentos geográficos e no concomitante encontro com os territórios ultramarinos um “humanismo universalista” motivado pelo fransciscanismo; segundo o mesmo autor, o franciscanismo de Portugal, remontando às raízes célticas, implicou, no contexto dos descobrimentos, “uma abertura do homem a natureza e aos outros enquanto expressão de um humanismo integral”24. O franciscanismo português é pois aquele cuja religiosidade,

20 - […] o tempero é assinatura inconfundivel que identifica a reglião e o habitante dela. A pimenta e o cravo das nossas andanças marítimas, e o vinho, o alho e o louro da nossa rotina telúrica, depois de complicadas alquimias, passaram de meros condimentos a puras essências de sabedoria. Cf. Diário VII, p. 86.21 - Gerês, 6 de Agosto de 1952 – Subida à Calcedónia, uma das coroas de glória cá da serra. E mais uma vez me inundou a emoção de ter nascido nesta pequena pátria pedregosa que é Portugal. Há nessa condenação como que uma graça dos deuses. Também é preciso ser de eleição para merecer certas pobrezas. Cf. Diário V, p. 109.22 - Linha do Tua, 22 de Setembro – Este Portugal só se pode amar ou por razões instintivas de resignação de pássaro que nasce em ruim ninho, ou então por um devotamento intelectual ao mirrado, à fraga, ao nada onde é permitido sonhar tudo. Cf. Diário IV, p. 60.23 - Cf. Calafate 2006 p. 37924 - Jaime Cortesão, “O Carácter Lusitano do Descobrimento do Brasil”, Ocidente, vol. XIV, Lisboa 1941, p. 88

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embora austera e frugal nas condições materiais, revela-se incapaz de se deixar seduzir pelos altos voos de qualquer abstracção espiritual que esqueça o chão onde habitam os seres e as criaturas25.

Também António José Saraiva, comentando as formas de religiosidade em Portugal e Espanha, aponta que, não obstante a sua semelhança exterior, marcadas pelas grandes vagas da história, como a luta contra os muçulmanos, a expulsão dos judeus, a presença da Inquisição e a expansão da fé católica, apresentam contudo traços de interioridade, i.e., de sentimento religioso, bastante díspares26. Miguel de Unamuno, parafraseando Guerra Junqueiro, observou: “o Cristo espanhol nasceu em Tânger; é um Cristo africano e nunca se aparta da cruz, onde está cheio de sangue; o Cristo português brinca com os camponeses pelos campos, merenda com eles e só a certas horas, quando tem que cumprir com os deveres do seu cargo, carrega com a cruz”27. Esta predisposição para o outro, para assimilá-lo, entendê-lo, integrá-lo na própria identidade, aspira a uma simbiose carnal e espiritual com todas as coisas, que se plasmou “na assimilação física das geografias e dos sangues estranhos da época dos Descobrimentos”28.

As deambulações de Torga por Espanha assinalam muita vezes essa presença imanente do espírito espanhol na paisagem e nos monumentos; reconhecendo implicitamente que só através da matéria se pode o espírito expressar, apesar de condicionado e moldado por ela, Torga observa atentamente para daí retirar conclusões contundentes sobre o carácter espanhol29.

Francisco da Cunha Leão também nota que existe uma tendência para o categórico e para a opinião definitiva no espanhol; o nebuloso, o duvidoso, as zonas intersticiais do ser ficam amiúde arredadas das suas preocupações e juízos; tudo está atravessado da solidez robusta das oposições perfeitas e claras, sem espaço para as transições desviantes ou para os interins corriqueiros; como se os homens espanhóis encarnassem também a secura e o brilho do planalto castelhano e o irradiassem novamente para a paisagem e para a sua cultura30; não há concessão possível aos tons mais indefinidos e brumosos que baralham as certezas da concretude da realidade; daí que as características da paisagem portuguesa e da Galiza, concorram para versões mais brandas, mais em contacto com o orvalho da aurora ou as sombra do crepúsculo do que a pura e nítida irradiação do meio-dia de Castela.

Torga via na natureza castiça e heróica do Portugal e da Espanha de antanho o melhor modo desses países se integrarem na Europa. O seu elogio ao modo como Unamuno cantava a Ibéria junto dos intelectuais europeus coevos demonstra o modo como rejeitava uma adaptação ibérica à Europa, preferindo pois a sua afirmação pela singularidade peninsular. O seu amor fulgurante pela terra não termina, como é sabido, nas raias portuguesas; por várias vezes declama que se sente um cidadão de uma terra maior que é a Ibéria e a sua cultura transatlântica31. Como afirma Herrero “a Ibérica não é para Torga uma palavra: é uma sensação telúrica. Atravessar a fronteira portuguesa e sentir que o seu coração se dilata é uma constante que se repete na sua vida interior.” ou “A Ibéria é para Torga o que tem sido durante séculos: vários povos, duas pátrias, uma cultura”32.

25 - Caldelas, 25 de Agosto de 1959 –Em meia dúzia de lameiros, em quatro ou cinco solares de granito, e nas altas capelinhas como aquela, espelham-se as três linhas de força que sempre nos justificaram: o amor secular da terra, a íntima necessidade dum pouco de beleza na arquitectura do ninho e a caiada fé numa transcendência que procura os cimos mas não se desprende do mundo. Cf. Diário IV, p. 119. 26 - Cf. Calafate 2006: 407-408.27 - Cf. Unamuno 2009: 23. Por Terras de Portugal e Espanha. Lisboa: Edições Vega.28 - Cf. Calafate 2006: 407-408.29 - Salamanca, 12 de Junho de 1960 – […] Em Espanha, o humano configura tudo. O espírito encarna em D. Quixote; o antiespírito em Sancho Pança. Cristo apodrece em Palência, concretamente cadavérico. As próprias cidades acabam por ter um rosto de gente […] um rosto heróico, fanático, místico, lírico, sensual ou sensorial, que dá personificação à febre física esparsa nas suas ruas, à febre metafísica enclausurada nos seus conventos, e à febre telúrica do cenário que as rodeia. Cf. Diário VIII, pp. 140-141.30 - Cf. Calafate 2006: 387-388.31 - ...A Espanha foi sempre um dos meus pontos de honra. Desde que num remoto dia fui a Santiago de Com-postela ver a Porta da Glória, nunca mais pisei o seu chão ou pronunciei o seu nome sem amor. A minha pátria cívica acaba em Bara de Alva; mas a minha pátria telúrica só finda nos Pirinéus. Há no meu peito angústias que necessitam da aridez de Castela, da tenacidade vasca, dos perfumes do Levante e do luar andaluz. Sou, pela graça da vida, peninsular. Cf. Diário III, p. 47.32 - Cf. Herrero 1979: 130.

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O apego de Torga à terra portuguesa, porém, nunca foi nacionalista; como o próprio explicou, trata-se de um apego medular, orgânico, de quem não se sabe mover fora do chão que o gerou33; trata-se afinal da consciência de que na lotaria das origens dos homens, a todos calha em sorte ser filho de certos progenitores e de uma certa terra; e é a partir dela, das experiências que ela potencia e permite, que nascerão as lições, analogias e metáforas que acompanharão os homens do futuro. Não há pois razões para rejeitar o magro berço apesar de ele ser uma bitola imperdoável do carácter dos homens; tanto serve para os cobrir de desespero e sofrimento como para os elevar ainda mais na sua vontade de vingarem34.

Face ao amplexo apertado, demasiado apertado, da terra portuguesa, o mar e as suas incógnitas fronteiras foram tematizados por vários historiadores e intelectuais como uma das soluções encontradas para a afirmação de Portugal35; liado ao destino pátrio desde há cerca de seis séculos e como condicionante físico que é, não poderia deixar de ser abordado por Miguel Torga como uma das linhas mestras da nossa identidade; ora o mar é visto como o grande feito da nossa civilização, construindo a base de uma unidade ecuménica de raças, povos e continentes em torno da mesma língua; foi, aliás, o mesmo mar que uniu tantos povos que primeiro possibilitou que outras civilizações arribassem à península ibérica com tradições que pertencerão doravante ao seu património comum; ora o mar é visto como a condição da própria liberdade face à ambição dominadora de Castela. Mesmo que agora o mar seja uma lembrança remota dos feito de então, ele permanece inscrito na alma e na mesa dos portugueses.

A outra face da moeda do peso do mar na identidade portuguesa revela-se em toda a sua força aquando do fim, quase seiscentos anos depois, do império colonial; lançados e arremessados para tamanha empresa, tomando-a como a própria condição para a própria independência, os portugueses viram-se confinados novamente aos horizontes da sua terra natal; dependendo economicamente e espiritualmente dos recursos das colónias e do significado de ser uma nação além mar, Portugal vê-se agora, no presente, condenado a uma descoberta interior, a assumir uma nova identidade limitada ao chão próprio e a olhar para um futuro sabendo-se em paz com um passado36. A passagem de 29 de Setembro de 1975 do X volume do Diário é especialmente fecunda em interpretações:

“Coimbra, 29 de Setembro de 1975 - Retorno maciço dos portugueses do ultramar. Na aflição da fuga, até de barco de pesca vieram muitos, a ponto de alguém dizer que fomos descobrir o mundo em caravelas e regressámos dele em traineiras. A fanfarronice de uns, a incapacidade de outros e a irresponsabilidade de todos deu este resultado: o fim sem grandeza de uma grande aventura. Metade de Portugal a ser o remorso da outra metade. Os judeus da diáspora ansiavam por voltar a Canaan. Povo messiânico também, mas de sentido exógeno, para nós o regresso é o exílio. A nossa Terra Prometida estava fora de Portugal”.

Neste sentido, vários críticos37 apontam também que a visão telúrica e ibérica de Miguel Torga, presente por exemplo na sua obra Poemas Ibéricos, constituem em parte uma reacção ao livro Mensagem de Fernando Pessoa, no modo como o autor, ao contrário do poeta

33 - Coimbra, 10 de Outubro de 1963 – Cada vez me sinto menos nacionalista e mais perto da pátria. Sou como uma lapa agarrada à sua rocha, consciente de que ela é apenas o suporte necessário à vida que recebe do cósmico oceano. Cf. Diário X, p. 12.34 - Pinhão, 1 de Janeiro de 1964 – O meio. É ele, realmente, o grande actor na tragédia da vida. Põe e tira, parte e reparte. Dono e senhor, semeia antes da mão do homem. […] Sim, a natureza foi avara connosco e é difícil transformar em searas de trigo fragões de granito ou xisto. Isso, porém, não é razão para lhes acrescentarmos a nossa esterilidade. Há gente cá na pátria que, em vez de cobrir de desânimo e renúncia as lajes onde nasceu, faz delas a peanha duma vontade fecunda. Cf. Diário X, p. 26.35 - Portugal não pode continuar a viver nuam prisão, sob risco de morrer de anemia. Não pode continuar a afirmar-se por meio duma negação. Ninguém estrutura a sua identidade pessoal repelindo todo o calor de paren-tesco. Não quer Castela por madrasta. Resta-lhe o pai: o mar. Cf. Herrero 1979: p. 163.36 - Coimbra, 27 de Julho de 1974 – Vamos finalmente dar independência aos povos colonizados. Uma indepen-dência que sem dúvida lhes irá custar cara, mas não há nenhuma que seja barata. Depois desse acto necessário e imperioso, Portugal ficará reduzido à tal nesga de terra debruada de mar. É a História que o exige, e oxalá que o destino também. Partir era a nossa carta de alforria. Hoje os caminhos não serão já os da demanda de espaços abertos a uma afirmação tolhida no berço mas os de um achamento interior protelado séculos a fio. Cf. Diário XII, p. 76.37 - Prefácio a um estudo dos Poemas Ibéricos, de Miguel Torga. Cf. Monteiro 1997: 65.

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lisboeta, via o destino de Portugal ligado ao de Espanha e via na abertura histórica ao mar uma visão cósmica de Portugal bastante diferente da sua; “o eu de Torga, o da primeira pessoa do singular, faz corpo – isto é, faz rosto – com o nós que também é, como ser colectivo. Com Pessoa é diferente: Mensagem dá apenas voz épica ao nós que somos – como nação.”38. Na polémica entre o ir ou o vir, entre o cosmopolitismo ou o regresso às origens, Torga posiciona-se ao lado daqueles que denunciam como a sede pelo desconhecido incorrre num esquecimento do vicinal, trocando-se, simbolicamente, a terra pelo mar; para Miguel Torga, não obstante, o mar foi um “seio de perdição, que desgraça os que sucumbem ao seu apelo que, por sua vez, fazem a infelicidade dos que a eles estão ligados; a terra, essa, é o útero onde a vida nace, e tudo tem sentido e cura, até a morte individual que ela recupera e faz ressuscitar39. Teresa Rita Lopes, num ensaio posterior, aponta como para Pessoa, “as Descobertas representaram uma procura de identidade [...] só quando tomaram distância de quem eram, e se fizeram ao mar, os Portugueses adquiriram a sua verdadeira estatura de navegadores e criadores de impérios […] Para Miguel Torga, partir é sempre perder-se de si próprio, optar pelo barco e ser infiel à raiz”40. A recomendação de Torga é optar por esse “achamento interior”, rejeitando sonhos abstractos de grandeza e travar a “batalha de ser fiel à vida”, ao chão.

Jesus Herrero também comentou o novo destino de Portugal como sendo o de uma difícil descoberta interior; apesar de ambas as nações ibéricas terem fundado impérios ultramarinos e se verem agora a braços com o seu fim, dado que as motivações psicológicas foram diferentes, também esse desfecho assume um sentido diferente em cada caso; Portugal viu no mar uma possibilidade de ser mais por estar confinado a uma nesga de terra, enquanto Espanha se expandiu devido a um excesso tónico; como remata o ensaísta espanhol “O mar de Espanha chama-se terra; a terra de Portugal chama-se mar”41. Depois de tantas terras e mares percorridos para fugir à míngua de terra, o sentido de Portugal cumprir-se não está pois mais no mar mas no velho e autêntico solo que paulatinamente foi rejeitando em nome de uma afirmação marítima.

A crítica e o diagnósticoÉ assim que Miguel Torga assiste, profundamente transtornado, às radicais mutações

que assolam a terra portuguesa de finais do século XX. Na linha dos pontos anteriores e daquilo que pugnava por ser a identidade portuguesa e ibérica, as suas críticas pautam-se em geral por uma crítica a um certo progresso e ao modelo económico associado, tal como ilustrado pelo crescimento imponente da cidade de Lisboa, pelo êxodo rural, pelo turismo e pela entrada de Portugal na União Europeia; mudanças que denunciam, mais do que preocupações pontuais, uma alteração no modo como Portugal se tem visto a si próprio e o que será doravante no palco das nações do mundo.

O ataque cáustico à capital, em Torga, é sobretudo feito ao nível das virtudes que o autor reconhece estarem plasmados no restante território nacional; Lisboa protagoniza uma excepcionalidade ao carácter nacional que é malsã por pretender estar para além dessa realidade e ser açambarcadora da pluralidade de ideias e condições que compõem uma nação saudável42. Por exemplo, na entrada de 7 de Maio do Diário IV, podemos reter uma critica virulenta ao modo como Lisboa evoluía e como se subtraía ao restante território nacional; repare-se como nas palavras de Torga, o aceleracionismo técnico que advém à capital é

38 - Torga e a Portugalidade. Cf. Lopes 1997: 370.39 - Id. p. 373.40 - A Ibéria de Torga e “Nós, Portugal, o poder ser de Pessoa”. Cf. Lopes 2009: 36.41 - Cf. Herrero 1979: 173.42 - Lisboa, 17 de Julho de 1958 – O país é esta metrópole de carnação alva, que o não testemunha mas devora, sem dar cavaco a ninguém e sem medo de ser chamada à pedra. […] Imunidades de toda a ordem permitem-lhe ser ao mesmo tempo a nação e a contra-nação. A nação, na triste medida em que só ela conta, só ela come, só ela sabe, só ela se diverte, só ela manda; a contra-nação, por todas essas razões. Empanturrada de poder e prazer, em vez de unificar a diversidade do país, cresta-o dos seus valores e degrada-os. O espelho liso da alma dum povo, que deve ser a sua capital –, nesta pobre terra é empenado. A íntima e colectiva fisionomia que temos, vê-se nele deformada e monstruosa. Aqui reflectidos, parecemos todos ou parolos de primeira ou civilizados de terceira. Cf. Diário VIII, pp. 140-141.

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prontamente convertido em vícios morais relacionados com a opulência43. Em oposição a um crescimento desmesurado, podemos também detectar como o autor

considera que deve existir um certo tempo próprio necessário à feitura da cidade; é preciso que estas evoluam e assomem de acordo com as necessidades humanas, com a demora que os gestos requerem e que os hábitos apreciam, para que ela pareça, enfim, ter crescido da própria terra, como uma semente cultivada e que lentamente da qual vão brotando outros ramos e outros tantos frutos44. De acordo com este ponto de vista, uma cidade não é pois definida apenas e só pelo número de fogos e serviços que possui, nem pela sua dimensão populacional ou económica, mas sobretudo pelo que deixa antever da cultura que lentamente a engendrou.

Por sua vez, a emigração rural deixou deserta ou rarefeita vários povoados e aldeias, entregando vastas porções do território ao abandono e fragilizando as bases humanas da memória e do património; a lenta e demorada infusão entre as comunidades e o meio físico, apesar de frágil e penosa nos modos de vida que potenciava, teve o condão de travejar o país em termos demográficos e culturais; as exigências concretas da terra ou dos meios de produção ditaram a expressão arquitectónica possível presente nos povoados e cidades; com tamanho vazão migratório, ora para as cidades nacionais, ora para outras no estrangeiro, o gosto pôde exprimir-se sem os arreios e os limites naturais ditados ora pelas condições climatéricas, ora pelos materiais existentes das redondezas, ora pela capacidade produtiva do solo.

O resultado da emigração rural, como Torga intuiu, foi a intrusão de elementos estéticos estranhos ao equilíbrio ulterior e que denunciaram pois uma profunda mudança na sentido do belo e nas condições do que significa habitar tais lugares e que desrespeitaram essa ronceira reciprocidade entre a cultura humana e a paisagem45; como segundo o autor nunca os portugueses foram particularmente seguros de si e das suas expressões culturais, a influência estrangeira nos emigrados logo tratou de lhes atalhar e cercear o gosto no mais singelo que ele possuía, alienando-o46.

O apego à terra portuguesa transforma-se, em Torga, na crítica de um certo turismo; por certo que também ele próprio foi turista em muitas capitais e países estrangeiros; podemos especular sobre a sua crítica ao turismo em Portugal que conheceu mais de perto e que foi o algarvio; habituado ao remanso de praias quase desertas, à abundância do peixe e ao sossego da paisagem algarvia, o abanão turístico terá surpreendido o poeta no âmago do

43 - Lisboa, 7 de Maio – Cada vez se torna mais difícil andar aqui, dormir aqui, viver aqui. A cidade cresce, cresce, cresce como um cancro que devora tudo, e nas suas ruas, praças e avenidas é uma tal correria, um bruhahá tama-nho e um acotovelamento tão aflitivo, que a nossa fisiologia nativa começa a hesitar. E, contudo, o provincianis-mo espiritual que nos marca, que nos condena, que nos mata, permanece aqui mais teimoso do que nunca. […] Para quem vem das terras pobres da província e vê isto, impõe-se imediatamente um raciocínio: nunca esta Lisboa exprimiu a Pátria. Um novo-riquismo que se opõe à sobriedade medular da nação. Cf. Diário IV, p. 98.44 - Vila Real de Santo-António, 15 de Fevereiro de 1942 – É impossível. Edificar uma cidade com carácter em cinco meses, é o mesmo que fazer um ninho de andorinha num segundo. Para que uma terra tenha cunho e magia, unidade e variedade dentro do seu todo inteiro e marcado, é preciso que seja segregada pelos homens pedra a pedra, rua a rua, cornija a cornija, com a fé e a paciência com que se escreve um longo poema ou se constrói uma religião. Cf. Diário II, p. 28.45 - A beleza em Torga não será portanto mero subjectivismo mas a consciência de um profundo laço recíproco e ponderado, histórico e cultural, entre o homem e o seu ambiente. “Beauty, for example, no longer concerns the formal perfection of a prized object but becomes the pervasive aesthetic value of an environmental situation. That value is measured less by formal traits than by perceptual immediacy and intensity in enhancing the intimate bond of person and place.” Cf. Berleant 2005: 33.46 - S. Martinho de Anta, 22 de Dezembro de 1975 – Portugal transformado num paradoxo: ou assombrado por aldeias mortas, as silvas a apertar num abraço maninho paredes encardidas que cercaram calor humano, ou em-bandeirado de moradias exóticas que parecem alucinações do arco-íris. A avalanche emigratória, transplantando brutalmente para as grandes metrópoles europeias populações inteiras que nunca tinham saído do seu agro, foi catastrófica para o equilíbrio corográfico do país. Enquanto vivíamos isolados ou frequentávamos terras virgens onde construíamos à nossa imagem e semelhança, a própria paisagem nos comandava o sentido estético, a feição urbana. Havia uma exigência do natural que não permitia desmandos ao critério. E, sem termos uma arte rural surpreendente, tínhamos a graça do simples, do ingénuo, do autêntico. De repente, começámos a invadir maci-çamente o mundo citadino. E, como nos faltava casticismo, segurança anímica, imunidade cultural, não resistimos ao embate. Ficámos baralhados nos sentimentos, no gosto, na sensibilidade. Degradados da própria inocência, somos hoje um mostruário de tintas e a vergonha dos olhos. Cf. Diário X, p. 121.

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seu ser. Parece-nos, novamente, haver nessas passagens o reconhecimento implícito de que a terra é sobretudo daqueles que a fazem, não só no sentido laboral e económico do termo, mas também no sentido lúdico e espiritual; ou tolere-se o turismo, mas não que seja o de massas que tudo estranha e altera; Torga, temia, talvez, como em muitas outras passagens, uma corrupção dos nativos pelas culturas estrangeiras através do seu poder monetário e que de uma forma ou de outra acabariam por seduzir os mais indigentes e modificar as formas de vida que o autor pautava por serem imutáveis ou cristalizadas mas genuínas47; não obstante as mais-valias económicas óbvias, o turismo constituía uma ameaça à essência medular das comunidades. Daí que progressivamente seja um crítico severo dessa dinâmica voraz do capitalismo que assumia vários contornos no modo como malograva o país48.

Em suma, Torga crítica o turismo por aquilo que ele tem de caricatural e consumista; o turismo de massas algarvio não era já na época ontologicamente profundo porque não proporciona modos de estar que sejam duradouros ou envolventes49; tampouco permite que os seus agentes se articulem com as redes de relações que em última análise lhe proporcionam aquilo que buscam: a gastronomia não é a síntese longa de uma história de condições sociais e biofísicas entre o mar, o barrocal e a serra mas aquilo que simplesmente é saboroso e economicamente acessível; as paisagens de terra não são enxameadas pelas culturas clássicas algarvias da laranjeira, amendoeira, alfarrobeira e da oliveira herdadas dos romanos e dos árabes, mas um poiso tranquilo de hotéis inundado por temperaturas amenas; o mar e as praias não são o sustento de milhares de famílias mas o que refresca peles ruborizadas pelos mais leves raios de sol.

Amante confesso do castiço e do verdadeiro como expressão das condições locais, a verrina de Torga apurou-se nos volumes finais do Diário à medida que as suas viagens aos locais pátrios que outrora visitara surgiam então cobertos da aura das derradeiras visitas e modificados como nunca; o contraste entre o que presenciara e vivera e o que então vislumbrava era evidente. No que nos respeita, trata-se de assinalarmos a validade das suas críticas de acordo com a concepção corográfica implícita ao autor e ao modo com essas críticas se revestiam de uma preocupação profunda com aquilo que Torga compreendia como sendo a identidade portuguesa em risco de soçobrar.

Não se pense porém que Torga era um apoiante da miséria dos trabalhadores rurais ou do seu modo de vida, em nome da preservação de uma essência qualquer que lhe agradasse mais; são várias as páginas em que ele crítica mentalidades tacanhas precisamente por não verem mais além do que a mera sobrevivência; as condições laborais dos trabalhadores eram-lhe bastante caras, a ponto de classificar a paisagem vinhateira do seu benquisto Douro e o seu preciso néctar como frutos da escravatura de massas de trabalhadores ao capital de uns poucos empresários e que com inaudita perícia conseguiram transformar o sol fulgurante e a pedra xistosa num milagre líquido; mas não nos parece que Torga viu somente na emigração rural um sinal de que o próprio amor ao torrão se tivesse esfumado; será talvez a existência de uma ligação umbilical ao berço que garante o constante envio de remessas pelos emigrantes; o que Torga censurou foi a redução da problemática emigratória a uma análise de custo-benefício cara ao capitalismo mas também ao Estado Novo; no fundo, trata-se da redução do valor intrínseco dos lugares ao valor económico que os habitantes dele possam retirar; parece-nos que Torga pugna por um tipo de valor que é incomensurável para tais efeitos de

47 - Faro, 5 de Fevereiro de 1967 – Aqui ando a emendar as impressões, na mesma angústia com que emendo os livros. Onde está o paraíso algarvio de há vinte anos? A quem sorriem estas amendoeiras floridas? Aos naturais pobres, ou aos turistas ricos? Quem come as lagostas que saem do mar, e as laranjas que amadurecem nos poma-res? De que miradoiro e em que albergue pode o nativo espairecer os olhos e descansar o corpo? Será que nem o afago da nossa paisagem, nem os frutos do nosso suor merecemos? Cf. Diário X, p. 123.48 - Oura, 10 de Agosto de 1988 – Falta pouco. Amanhã já estarei de volta ao Portugal verdadeiro que ainda nos resta, e que tantos porfiam em tornar igual a este que me corta o coração. Temos aqui a imagem eloquente do que serão as outras províncias nacionais quando a Europa as comprar. A cegueira dos nossos governantes! Nem com o exemplo do Algarve aprendem a amar e a preservar a pátria. Cf. Diário XV, p. 127. 49 - Buçaco, 21 de Junho de 1991 – Portugal já nem nos seus lugares emblemáticos, com pergaminhos históricos e naturais, é Portugal. Desfigurado pelo furor dos emigrantes e invadido por ondas de turistas de calção e sandá-lia, só a custo deixa vislumbrar a identidade profunda. Todo ele se transfigura dia a dia, dramaticamente, numa penosa saudade poluída. Cf. Diário XVI, p. 91

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contabilidade50.O cenário objectivo que Miguel Torga testemunhou em cidades, vilas e aldeias portuguesas

foi afinal o da emigração rural massiva e a erosão da sociedade rural concomitante que assolou Portugal na segunda metade do século XX; até meados desse século em Portugal, a agricultura, a sociedade rural e o espaço tinham destinos coincidentes51. Contudo, com o advento do êxodo rural, a par da mudança tecnológica que sobreveio ao aproveitamento da cultura agrícola, constituíram-se forças que transformaram profundamente a estrutura do trabalho, os hábitos, as formas de vida e a cultura associada. O uso do tractor, da ceifeira-debulhadora, do avião, do motor da rega e dos adubos erodiu o emprego de mão-de-obra manual, das alfaias agrícolas e de outras tecnologias tradicionais, diminuindo em grande medida as horas de trabalho necessárias e como tal obviando o uso de tantos trabalhadores agrícolas. Através das tecnologias52 todo o sistema de produção foi afectado, o que se reflectiu não só nos rendimentos mais elevados por trabalhador mas votando os saberes de outrora ao esquecimento; o uso de adubos, por exemplo, dispensou o emprego de sargaço, de algas e do estrume dos animais, pondo em causa o tecido de relações humanas e biológicas que o mar e a floresta entreteciam com a agricultura.

Como comenta Fernando de Oliveira Baptista, através da divulgação das várias tecnologias agrícolas a todo o território, cada agricultor pôde, até certos níveis, ultrapassar aquela obediência sábia à natureza que regia e equilibrava a sua actividade para passar a dispor de uma maior tolerância53; essa tolerância, fugindo aos equilíbrios a que as concretudes geográficas obrigavam, acabou por suspender uma história da tecnologia agrícola que até aí era feita de engenho, criatividade e anonimato, mas que em última análise foi criadora de culturas locais e particularismos gastronómicos e vocábulos que diferenciam cada região portuguesa de outras e constitui ainda um dos obstáculos à homogeneização hodierna. Não obstante putativos aspectos vantajosos dessa herança, mormente ao nível diferenciador para o turismo actual e paras identidades locais, há leituras diferentes sobre o sentido desses tempos e das políticas usadas para gerir tais transformações.

É certo que todos os países ocidentais possuem uma população agrícola inferior a 10%, apesar da mesma produtividade agrícola ter aumentando por via do emprego das tecnologias; os mesmos países possuem igualmente economias fortemente terciarizadas; mas muita da identidade local e nacional de cada país permanece e ter-se-á deslocado, numa época de consumo de massas em que tudo tende a ser aparentado e as distinções elididas, para alguns desses produtos regionais; trata-se afinal de averiguar se em termos gerais, cada sociedade logrou granjear uma concepção da vida boa com esse abandono rural, sem dúvida feito de trabalho árduo e penoso; apesar de ainda actualmente a gestão e musealização dessa memória assumir aspectos caricatos, pois tratam-se na mais das vezes de tentativas artificiais de insuflar vida em formas de vida já extintas, registe-se pois que os caminhos da história não sáo obrigatórios, já que países europeus há que privilegiaram essa ligação à natureza e ao campo como forma de compor a sua multímoda identidade. No caso de Fernando Oliveira

50 - Castelo Mendo, 25 de Outubro de 1970 – Sei que metade da nação está condenada ao dente roaz dos matagais, por não ser possível nela qualquer cultivo económico, e que ainda temos um milhão de portugueses a mais a lavrar seixos. Mas uma coisa é o aproveitamento racional do território pátrio, com a deslocação ordenada dos respectivos habitantes, e outra o abandono anárquico do solo e a emigração maciça das populações. Útil ao jogo do capitalismo reinante, que vê assim resolvidos de momento alguns problemas que o afligem, o acto de desespero e protesto só não corta o coração de quem o fechou ao amor do berço e da grei. Estes muros caídos, estas courelas recusadas e estas aldeias vazias são o testemunho vivo de uma política sem horizontes, sem patrio-tismo e sem fraternidade. Que troca criminosamente o chão bom e mau do país e o sangue dos seus melhores filhos por divisas. Cf. Diário XI, p. 126.51 - Cf. Baptista 2001: 10.52 - O velho homem dos campos que vivia uma relação temerosa com a natureza vai-se transformando num agricultor profissional que a manuseia com menos cautela, mas mais autonomia e sucesso produtivo. Esta nova relação com a natureza decorre das possibilidades abertas pelas tecnologias a que agora recorre. Cf. Baptista, 2001: 1453 - A utilização de adubos químicos permitiu uma maior liberdade na relação do agricultor com a natureza. Cf. Baptista 2001: 11.

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Baptista54 e Álvaro Domingues55, por exemplo, a opinião é clara, contrária e contundente.O balanço do progresso social que adveio a Portugal não é, em Miguel Torga, de um

cômputo claro e indubitável56 e o autor apresenta-nos razões para o seu cepticismo; houve e haverá um preço a pagar por tão rápidas e radicais convulsões e mudanças; e, novamente, em Torga este balanço não se pode fazer apenas em termos da qualidade de vida e bem-estar médio dos portugueses; o seu exame nunca é puramente contabilístico ou financeiro, mas pauta-se por uma aturada preocupação acerca do carácter e dos modos de ser que poderão ter ficado marginalizados e esquecidos e que afinal nos singularizavam dos restantes países57.

Torga preocupava-se no já nos anos setenta, quando a economia dava ainda passos tímidos para uma liberalização dos mercados, com uma alienação individual e social derivada da aceleração económica e tecnológica; temia talvez que ocorresse uma desumanização simultânea às benfeitorias que as tecnologias providenciam, como se fossem o outro lado da moeda ou o preço a pagar pela modo como as diversas tecnologias nos alijam de diversas tarefas. A sua crítica à entrada de Portugal na então CEE foi categórica58; com efeito, através da liberalização do mercado de trabalho e do mercado agrícola, o que impede, ao certo de que o tecido social e afectivo de Portugal seja desfeito? Se a língua inglesa se torna a nova língua franca, o que impede, na ausência de outros valores, que o valor económico não arraste e desloque trabalhadores dos países mais pobres para os mais prósperos, obrigado a uma sangria populacional que põe em causa a própria sustentabilidade dos territórios? Caberá ao leitor desvelar e ajuizar se as críticas de Miguel Torga são efabulações saudosistas e atávicas de alguém que cresceu e envelheceu à beira de uma terra relativamente incólume e que se desfigurou em poucos anos ou se elas não são enfim constatações e professias veras da realidade nacional contemporânea.

54 - […] Morre uma cultura, declina um mundo, mas os milhões de homens e mulheres que, sempre que pude-ram, o abandonaram não lamentam a perda. “A gente só tem saudades porque sabe que aqueles tempos não vão voltar”, declarava um velho emigrante que também fora agricultor na sua terra e ratinho no Alentejo. Os homens e mulheres que sofreram a penosidade da ceifa, do trabalho junto da enfardadeira e debulhadora fixas, da violência da vindima e da monda dos arrozais ou do esforço desmesurado da cava da vinha não lamentam a transformação do trabalho agrícola. Cf. Baptista 2001: 11.55 - […] a esta pureza conspurcada opõem-se a mistura, a coexistência de ordens distintas, a diversidade dos materiais e das cores, o inacabado, o mestiço, o transgénico, a não linearidade, a dissonância, a simultaneidade, a diversidade de ornamentação, etc. A incompreensão dessa descaracterização faz-se, habitualmente, acompa-nhar do rol da perda de supostas autenticidades que, de tanto mitificadas, parecem ter pertencido a um tempo primordial, sem história e sem outro referente que não um passado mais-que-perfeito. Nesse passado a vida no campo era a imagem do Paraíso e do bom povo sábio, pobre mas honesto, que vivia na sua simplicidade, alegria, em comunhão com a Natureza e oração com os deuses. Cf. Domingues 2011: 16.56 - Coimbra, 25 de Setembro de 1988 – Criaturas simples, chegadas ao húmus, tudo nelas tem ainda o sabor saudável do autêntico e primordial. […] Marginal à Europa, nem sempre a acompanhou nas suas proezas técnicas e antropotécnicas. E, nesse capítulo, à primeira vista, pode parecer retrógrado. Mas essa falsa inércia, esse ilusório sono letárgico, é apenas a paz de boa consciência de quem conhece o preço de certas cedências ao progresso. De quem lhe pressente a efemeridade. Cf. Diário XV, pp. 136-138.57 - Praia de Mira, 22 de Setembro de 1987 – Portugal não parece o mesmo. Em meia dúzia de anos, perdeu o carácter. Quem familiarmente lhe conhecia as feições que o singularizavam, fica espantado quando agora o percorre. Tudo mudou. As casas, as ruas, os trajes, os hábitos. Cf. Diário XV, p. 69.58 - Coimbra, 11 de Maio de 1992 – Não vai valer de nada. [...] É um protesto. O tempo dirá se era justificado. Mas creio que sim, e fica pelo menos registado o repúdio de um poeta português pela irresponsabilidade com que meia dúzia de contabilistas lhe alienaram a soberania da pátria. Tenho como certo que Maastricht há-de ser uma nódoa indelével na memória da Europa, envergonhada de, no curso da sua gloriosa história, ter trocado neste triste momento o calor do seu génio criador pela febre usurária e, nas próprias assembleias onde prega a boa nova das regras comunitárias, fintar de mil maneiras os parceiros. Só que as grandes potências podem dar-se ao luxo de todos os jogos malabares e safadezas, e assinar até tratados ardilosos com abdicações aparentes da sua identidade. E as pequenas, não. Se, por leviandade ou megalomania, arriscam um mau passo no caminho da independência, perdem-na de vez. Que é, infelizmente, o que, se o destino nos não acudir com um milagre, nos vai acontecer. Cf. Diário XVI 121.

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Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

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O aproveitamento turístico da viaromana XVIII (via nova) comopossível vetor de desenvolvimentosócioeconómico dos municípios deTerras de Bouro e Lóbios

Maria Inês Gusman Correia de Araújo BarbosaUniversidade de Santiago de Compostela

IntroduçãoO acelerado processo de transformação do sistema económico mundial global, coloca

em risco a sustentabilidade das funções de alguns territórios. A perda das bases económicas das comunidades mais periféricas, leva ao aparecimento de problemas sociais, provocando um ciclo muitas vezes difícil de travar. Este cenário requer adaptação dos recursos endógenos dos territórios às atuais regras de mercado, preservando os elementos identitários destes mesmos recursos - primando pela diferenciação. Neste contexto, tem-se reconhecido ao património cultural, material e imaterial, um importante valor enquanto recurso económico, pois sobretudo através do turismo, pode gerar atividade económica de forma direta e indireta. Os vínculos entre o património e o turismo tem-se vindo a intensificar, tanto pelo aumento da importância do turismo como setor económico, como pela atual importância que a sociedade dá à manutenção das suas heranças patrimoniais. Neste contexto, o objetivo deste estudo é refletir sobre a potencial capacidade de dinamização económica de um património histórico, a Via Nova, cujo traçado inclui dois municípios que enfrentam sérios problemas de sustentabilidade demográfica e económica: Terras de Bouro em Portugal e Lóbios na Galiza (Espanha). Uma abordagem desta via, que conste do seu aproveitamento turístico sob a forma de itinerário, poderá tornar o desenvolvimento de atividades económicas nestes territórios mais atrativo, ao mesmo tempo que aumenta o reconhecimento deste património, que nos foi deixado pelos povos romanos.

As similitudes entre estes dois municípios em estudo (Terras de Bouro e Lóbios) e a partilha de uma identidade cultural e histórica, levam a que faça sentido pensar em estratégias de cooperação transfronteiriça, tendo em vista potenciar o seu desenvolvimento conjunto. Adicionalmente, estes dois municípios formam parte do Parque Transfronteiriço do Gerês-Xurês, que representa o primeiro exemplo de cooperação transfronteiriça no âmbito da proteção ambiental. Desta forma, a Via Nova, cujo traçado atravessa grande parte do Parque Transfronteiriço Gerês-Xurês, e onde adquire o nome de Geira, deverá ser gerida enquanto recurso para o desenvolvimento de forma conjunta, como aponta Bandeira (2007:84) o conceito de Geira pode bem servir, num sentido alargado, de «espinha dorsal» de um território unido pelo desenho do seu traçado.

Tendo sido construída como eixo de ligação entre as cidades romanas de Bracara Augusta (atual Braga) e Asturica Augusta (atual Astorga), esta via, também conhecida como Via Romana XVIII, guarda cerca de dois milénios de história e chega aos nossos dias num bom estado de conservação em terminados troços - sobretudo aquele que se situa nos municípios em estudo - e com vários vestígios das suas utilizações passadas. Dado o valor histórico e cultural da Via Nova, e a necessidade de criar alicerces para o desenvolvimento destes dois municípios, há uma necessidade de recorrer a ferramentas de aproveitamento

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deste património. A nível europeu, desenvolveu-se nos anos 80 e 90 pelo Conselho da Europa, uma aposta pelos itinerários culturais, que deu origem ao título de Itinerário Cultural Europeu (ICE). Nesta investigação partimos da premissa de que a Via Nova tem as características necessárias para ser classificada como ICE, podendo beneficiar das externalidades positivas que este título gera nos territórios que o integram.

Começaremos por introduzir a questão do papel da atividade turística como vetor de desenvolvimento rural, posteriormente apresentaremos uma breve descrição do estado socioeconómico de Terras de Bouro e de Lóbios, seguindo-se da caraterização da Via Nova, a exposição dos critérios concessão do título ICE, e uma breve descrição dos efeitos obtidos na declaração do Caminho de Santiago. Expostos estes pontos, iremos avaliar a viabilidade da Via Nova para obter o título de ICE e discutir a possibilidade deste título atuar como vetor de desenvolvimento dos dois municípios em estudo. Pretende-se acima de tudo, refletir soluções criadas a partir dos recursos endógenos dos espaços com baixas densidades populacionais, aproveitando as novas formas de relação entre o homem e a natureza - neste caso feitas a partir do turismo. Esta via, que em tempo romanos funcionou como eixo de consolidação do desenvolvimento

1. O turismo como motor de desenvolvimento endógeno e as rotas culturais Os territórios rurais encontra-se circunscritos a profundos processos de reorganização

económica, funcional, social e territorial por força das dinâmicas económicas que ocorrem a nível global. Muitos destes espaços encontram-se numa situação de marginalidade no que respeita ao desenvolvimento das atividades económicas dominantes. A meta para garantir a sobrevivência destes territórios está na forma como se integram os novos aproveitamentos económicos dos espaços, que promovam o desenvolvimento da sociedade local, sem alterem os equilíbrios ambientais e sociais ainda existentes em muitos destes locais. Perante os problemas que surgiram nestes espaços deprimidos, favoreceu-se um a nova abordagem que não passa pelo desenvolvimento do setor agrícola, mas sim pelo desenvolvimento rural, segundo a qual a pluriatividade é a via que se impõe como solução para a crise agrícola, e uma das principais opções de desenvolvimento é o turismo rural (Briedenhann e Wickens, 2004; Pompl e Lavery, 1993). O património, sobretudo através da sua vertente cultural, é um tema recorrente na definição dos caminhos para o desenvolvimento (Carvalho, 2003). Assiste-se assim, a um acelerado aparecimento de iniciativas vinculadas ao aproveitamento turístico dos recursos patrimoniais do espaço rural, tanto a nível local como nacional e europeu. Importa assim ponderar sobre a eficácia destas estratégias para contribuir para a revitalização destes territórios.

O aumento do acesso da população a atividades de lazer, levou a um aumento da procura turística, e ao aparecimento de formas de turismo que até há umas décadas não existiam. Esta alteração no turismo tradicional, permitiu o aparecimento de novos produtos e serviços turísticos, que respondem a preferências da procura mais específicas e aos novos hábitos de lazer dos consumidores. É neste cenário que os territórios rurais e interiores ganham um espaço dentro da indústria do turismo, podendo responder às necessidades de novas formas de turismo como: turismo rural, turismo de natureza, turismo cultural, turismo desportivo. Uma forma de integrar facilmente os elementos patrimoniais e promove-los como atrativos turísticos, é através da criação de itinerários turísticos ou circuitos temáticos (Downer, 1997). Segundo Richards (1996), o desenvolvimento das rotas e dos itinerários turísticos recebeu um grande impulso graças à descoberta do turismo cultural como uma área de grande crescimento ao nível do mercado turístico Europeu. No ano de 1998, ao abrigo do programa europeu INTERREG MEDOCC vários países da Europa Mediterrânica uniram-se para a valorização do património através das vias de comunicação, a partir da criação de espaços de atendimento ao público, de material promocional e da promoção de ações pedagógicas. No contexto português, este programa foi aproveitado para a recuperação total ou parcial de determinadas vias, nas quais se inclui a Via Nova (Pinheiro, 2007). Posteriormente, a aposta da União Europeia pelas Rotas Culturais evoluiu para a criação dos Itinerários Culturais Europeus, e em 1983 o Caminho de Santiago tornou-se no primeiro a obter este título.

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2. Terras de Bouro e Lóbios - partilha de um território marcado pela fronteiraColocamo-nos no coração do Parque Transfronteiriço do Gerês-Xurês para analisar dois

territórios marcados pela ação natural e humana desde há muitos séculos. São territórios povoados desde o neolítico, e os povos que os habitaram deixaram as suas marcas, sendo que muitas delas chegaram até aos nossos dias (Bautista, 2000). Facilmente se encontram vestígios megalíticos, romanos e medievais que atestam o uso antigo deste território. Trata-se de um espaço geográfico predominantemente de montanha, cortada por profundos vales, com de relevos graníticos e que é administrativamente dividido pela fronteira existente na Portela do Homem - parte da fronteira atual entre Portugal e a Galiza (Imagem 1).

Do lado português, o município de Terras de Bouro situado no Norte de Portugal, no distrito de Braga, na província do Minho e está inserido na NUT III do Cávado. As 14 freguesias que o constituem ocupam uma área de cerca de 270 km2 , e no ano de 2013 tinha uma População Residente de 6929 pessoas (Instituto Nacional de Estatística Português - INE) . Comparando os dados da população residente do ano 2001 e do ano de 2013 (INE), regista-se uma diminuição da população de 16,5%. Relativamente à população empregada, segundo os censos de 2011, esta totalizava os 2235 pessoas.

Do lado espanhol, o município de Lóbios, localiza-se a sul da província de Ourense na comarca de A Baixa Limia e pertence à Comunidade Autónoma da Galiza. A sua extensão é de 168 km 2 alberga 10 parroquias e a população no ano de 2014 era de 2025 pessoas sendo que apenas 578 das pessoas têm o estatuto laboral de “Ocupadas” (Instituto Galego de Estatística). Entre o ano de 2004 e o ano de 2014 o município de Lóbios perdeu cerca de 20% da sua população, segundo dados do IGE.

Estes dois municípios, predominantemente rurais, integram na sua maioria espaços de alta proteção ambiental, sendo que boa parte do território de Terras de Bouro está localizado no Parque Nacional da Peneda Gerês (PNPG) e no caso de Lóbios o seu território localiza-se no Parque Natural Baixa-Limia. Estes dois parque em conjunto formam o Parque Transfronteiriço Gerês-Xurés (PTGX), declarado no ano de 2009 pela UNESCO Reserva da Biosfera. Nestes municípios existem algumas atividades agrícolas e pastoreia e existe exploração florestal e de rochas industriais e ornamentais (Gonçalves, 2004). Este território é marcado por um equilíbrio entre a paisagem natural e a ação humana, permitindo assim a existência de um património arqueológico, histórico e cultural muito bem enquadrado nas suas componentes naturais.

Imagem 1 - Mapa Reserva da Biosfera Gerês-Xurês - Municípios de Terras de Bouro e Lóbios

Fonte: Reserva da Biosfera Transfronteiriça Gerês-Xurés (RBTGX) disponível em: http://www.reservabiosferageresxures.com e elaboração própria

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3. A Via Nova - eixo de comunicação históricoA conquista romana da região da Gaellecia e a sua completa pacificação demorou

mais de um século, tendo-se iniciado com a campanha de Décimo Júnio Bruto em 137 a.C., passando pela campanha militar de Júlio César em 61a.C. e terminado com o fim das Guerras Cantábricas, já durante o tempo do Imperador Octávio Augusto em 19 A.C.(Morais, 2007). Estes eventos são seguidos por um intenso processo de romanização deste território, do qual faz parte a estratégia de consolidação de redes urbanas através de vias, e é neste contexto que se constrói a Via Nova (Imagem 2). Esta via, classificada e descrita no Itinerário de Antonino como Via XVIII, e conhecida também pelo nome de Geira ou Jeira, marcou portanto o processo de urbanização romano deste território. Abriu-se um novo caminho entre Asturica Augusta (atual Astorga) e Bracara Augusta (atual Braga) seguindo um traçado diagonal que rompe com a lógica geográfica da rede viária estabelecida na época do imperador Augusto (Câmara Municipal de Terras de Bouro, 2006). Esta construção tinha como principal objetivo estabelecer a ligação entre os principais núcleos urbanos, isto é, as sedes conventuais - conventus de Bracara Augusta e Asturica Augusta- a Via Nova foi inaugurada no século I D.C. A construção desta via serviu para resolver problemas de isolamento dos territórios interiores, e sobretudo para dinamizar a extração aurífera desta zona (prática impulsionada pela dinastia flavia) o que exigia infraestruturas adequadas à sua exploração e transporte (Colmenero et al., 2004). Em toda a sua extensão, esta via entre Astorga e Braga tem CCXV milhas, o que corresponde a cerca de 318 km. Atualmente cruza no seu traçado os municípios de Braga, Amares, Terras de Bouro, Lobios Lobeira, Bande, Sandiás, Xunqueira da Ambía, Maceda, Montederramo, Castro Caldelas, Tribes, A Rúa, Barco de Valderroas, Cacabelos, Ponferrada, Bembibre e Astroga.

Imagem 2 - As calçadas romanas

Fonte: Ubieto, A. (1984)

O seu estado de conservação permite afirmar por si só o enorme valor histórico, arqueológico e cultural que tem. Nos dias de hoje ainda é possível observar os seus vestígios monumentais tais como os miliários, as mansiones, as mutationes bem como troços da sua calçada original. Forma parte do seu traçado, aquela que é considerada a maior mina de ouro a céu aberto do Império Romano, e que é hoje Património da Humanidade da UNESCO,

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Las Médulas, que se situam na província espanhola de León. Já o troço da Via Nova situado nos municípios de Terras de Bouro e de Lóbios é considerado um dos mais notáveis em todo o mundo romano, detendo a maior concentração de miliários historiados que se conhece. Os miliários são volumosos cilindros em pedra dispostos ao longo das vias romanas, cuja função seria indicar as distâncias em milhas. Em toda a Via Nova foram identificados 277 miliários, (Rodríguez e Pereira, 2009) - sendo que o total de miliários conhecidos atualmente na Península Ibérica é de cerca de 500.

4. Os Itinerários Culturais EuropeusAs abordagens institucionais feitas ao património têm-se alterado ao longo das últimas

décadas. No ano de 1972, a UNESCO promoveu um tratado internacional denominado de Convenção sobre a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural, visando promover a identificação, a proteção e a preservação do património cultural e natural de todo o mundo, considerado especialmente valioso para a humanidade (Unesco, 1972). Em 1985, os países membros do Conselho da Europa assinaram a Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitetónico da Europa onde se reconhece que o património arquitetónico constitui uma expressão insubstituível da riqueza e da diversidade do património cultural da Europa, um testemunho inestimável do nosso passado e um bem comum a todos os europeus; (Comissão Europeia, 1985 : 2). Constatamos assim um interesse na preservação não apenas do património edificado, como também dos valores que lhes estão associados. Fruto deste crescente interesse pela conservação e sensibilização do património material e imaterial, surge o conceito de Itinerários Culturais. No ano de 1987 foi lançado pelo Conselho da Europa o programa dos Itinerários Culturais Europeus. Esta iniciativa tem como objetivo: demonstrar, por meio de uma viagem através do espaço e do tempo, como a herança dos diferentes países e culturas da Europa contribui para uma herança cultural partilhada. Os Itinerários Culturais põem em prática os princípios fundamentais do Conselho da Europa: direitos humanos, democracia cultural, diversidade e identidade cultural, de diálogo, de intercâmbio e enriquecimento recíproco através das fronteiras e dos séculos” (Resolução CM/Res(2010)53). Atualmente existem 29 Itinerários Culturais Europeus agrupados por grandes temas: Os Caminhos da Peregrinação; Personagens Europeias; A influência Monástica; Património Industrial na Europa; Património Cultural. Os temas são considerados, neste contexto, instrumentos intelectuais (de reflexão e também de proteção do património) mas também têm a função de conceber um produto comercializável, pois garante uma coerência através da junção de distintos locais que partilham um património e uma história (Rochette,1994). Estes itinerários podem partir da iniciativa de qualquer instituição ou organismo, cultural ou turístico, preferencialmente, e é outorgado pelo Conselho da Europa a menção de ICE aos projetos que cumpram os critérios e sigam os procedimentos estabelecidos na Resolução CM/Res (2013)67 (Tabela 1). Uma vez concedido este título, realizam-se avaliações periódicas com o objetivo de verificar o cumprimento dos critérios exigidos. O programa dos ICE é desenvolvido de acordo com as principais tendências do turismo cultural na Europa, e coloca um especial ênfase no desenvolvimento de uma gestão do património que seja sustentável e responsável (Khovanova-Rubicondo, 2012)

Um itinerário cultural é composto por dois elementos: a estrada e a paisagem. O conceito de “estrada” não implica uma linha geométrica com um determinada orientação, deverá ser mais do que isso: uma combinação entre etapas ligadas por segmentos caraterizados por um tema comum, que dá sentido ao itinerário e atrai o turista (Baldacci, 2006). É necessário então, em primeiro lugar, definir do ponto de vista cultural porque se devem unificar determinados pontos do território, definindo assim um tema que estará também vinculado à marca do próprio produto turístico, e que estruturará todo o seu desenvolvimento. Segundo o relatório do Federal Ministry of Economy, Family and Youth, 2013, os passos para construir a candidatura ao Itinerário Cultural do Conselho da Europa devem ser os seguintes : Definição e descrição do tema; Descrição dos campos de ação prioritários; Estabelecer uma rede de trabalho europeia; Criar uma identidade visual comum. Segundo o mesmo relatório, para assegurar a sustentabilidade financeira do projeto, é possível aceder-se a diferentes fontes de financiamento como: Governamentais (locais, nacionais); Fundos Transnacionais

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(programas de financiamento da União Europeia); Receitas Próprias (geradas pelas receitas do aproveitamento turístico da via) e Recursos Próprios.

No ano de 2011, o Conselho da Europa publicou um estudo sobre o impacto dos Itinerários Culturais (Khovanova Rubicondo et al., 2011) com o objetivo de compreender o atual potencial dos ICE. Nas conclusões deste estudo refere-se que os ICE se tornaram numa importante fonte de inovação, criatividade, criação de pequenos negócios e de produtos e de serviços turísticos. Adicionalmente, refere-se neste mesmo estudo que os ICE têm gerado receitas do turismo em destinos mais remotos.

Tabela 1 - Critérios para a Certificação de Itinerário Cultural Europeu segundo a Resolução CM/Res(2013)67

4.1 Breve exposição de resultados do título Itinerário Cultural Europeu: O Caminho de Santiago

Os Itinerários Culturais Europeus existentes até aos dias de hoje materializam-se em diferentes territórios, sob distintos temas e formas de organização. Existem, como referimos, 29 itinerários, que além de possuírem distintos temas utilizam diferentes modelos de aproveitamento, cujos objetivos e resultados diferem. De forma a conhecer os resultados da evolução dos espaços que integram estes caminhos, após o momento de concessão do título, recorremos a uma breve análise do Caminho de Santiago. A utilização deste caso justifica-se pelo facto de ser o ICE mais antigo, que se tornou num produto turístico de reconhecido valor.

A história do Caminho de Santiago remonta ao século IX, em que é descoberto e reconhecido por parte do poder monárquico e eclesiástico a existência dos restos mortais do apóstolo de Santiago Maior (Santos, 2006). A difusão deste reconhecimento originou nos séculos posteriores diversos movimentos de peregrinação desde vários locais da Europa, dando origem ao que se tornou nos nossos dias, uma rota que ultrapassa as motivações religiosas e

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que evoca um espírito europeísta. No ano de 1987 o Caminho de Santiago vê reconhecido o seu significado na cultura europeia com a declaração do primeiro Itinerário Cultural Europeu. Mais tarde, em 1993 o Centro Histórico da cidade de Santiago de Compostela é considerado pela UNESCO Património da Humanidade, título dado também ao Caminho Francês de Santiago no ano de 1996. O ano de 1993 é marcante do ponto de vista do lançamento turístico do produto Santiago, e os anos santos (Ano Xacobeo - ano em que o dia de Santiago - 25 de julho - coincide com um domingo) passam a atuar como catalisadores da atração de visitantes. Refere Santos (2006) que: O Caminho de Santiago converteu-se num produto estrela. Melhoraram-se notavelmente as distintas rotas, abriram-se albergues, inauguraram-se casas de turismo rural perto das vias mais transitadas, contraíram-se hotéis e, sobretudo, gerou-se uma forte campanha de promoção.

Santiago de Compostela torna-se assim um destino turístico consolidado, com uma marca não apenas religiosa como também cultural. Tal como podemos observar no Gráfico 1 houve uma clara evolução positiva do Número de Peregrinos a chegar a Santiago de Compostela. Segundo os dados da Oficina de Acogida al Peregrino, enquanto que no ano de 1980 se registou a chegada de 209 peregrinos à cidade, passados 10 anos, em 1990, este número já era de 4918, e mais recentemente, no ano de 2013 o número de peregrinos foi de 215.880. Verifica-se assim um forte desenvolvimento do produto turístico Caminho de Santiago no final dos anos 80 e princípios dos anos 90. No Gráfico 1 podemos também constatar o efeito dos Anos Santos em termos de afluência de peregrinos - correspondem aos picos verificados nos anos de 1993, 1999, 2004 e 2010.

Pérez (2003) viu na ativação patrimonial do Caminho de Santiago mais um exemplo de como os recursos culturais do passado podem ser usados para reconstituir identidades do presente. Contudo, para avaliar impactos concretos que tem tido, ao longo das últimas décadas, a dinamização turística e consequente utilização por parte dos peregrinos do Caminho de Santiago, é necessário conhecer os efeitos económicos que teve nos territórios que percorre. A partir de uma análise demográfica Santos (2006:143) chegou à conclusão que o impacto direto do Caminho de Santiago foi menor do que o que seria de esperar (...) apareceram pequenos negócios, como bares, restaurantes e hospedagens, que se alimentam do gasto turístico e que geram uma nova dinâmica económica. Mas esta circunstância não é suficientemente significativa para transformas as tendências gerais dos municípios afetados. Já Precedo et al. (2007) refere que o efeito do caminho se projetou nos municípios rurais por onde passa, gerando novas perspetivas de desenvolvimento, atuando como incentivador de iniciativas locais, e atribuindo um valor e uma identidade cultura a determinados locais.

É no entanto indiscutível que a projeção turística do Caminho de Santiago aumentou os fluxos de pessoas a passaram em determinados territórios, o que é uma excelente oportunidade para criar alicerces de desenvolvimento de determinados negócios locais. Obviamente que a forma como se está a dinamizar o tecido de negócios à volta do Caminho de Santiago determina o grau de impacto que este está a gerar no território.

Gráfico 1 - Número de peregrinos a chegar à cidade de Santiago de Compostela

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Oficina de Acojida al Peregrino

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5. Caminhando pela Via Nova nos municípios de Terras de Bouro e de LóbiosAtravés da realização de uma observação no terreno, que teve como principal objetivo

conhecer o estado da Via Nova nos municípios de Terras de Bouro e de Lóbios, foi possível conhecer condições para a realização do percurso pedonal, o património existente, a sinalética e o material informativo sobre a via. As dificuldades surgem no momento de definir o trajeto: a informação existente nas sítios web das entidades competentes não é (atualmente) suficiente para definir previamente o caminho (www.cm-terrasdebouro.pt;www.lobios.org, www.icnf.pt, www. reservabiosferageresxures.com). Após a recolha de informação em vários sítios web não oficiais, foi possível definir o percurso: 22 km entre Campo do Gerês (Terras de Bouro) e Baños de Riocaldo (Lóbios). A inexistência de uma opção de mobilidade de transporte coletivo entre estes dois municípios, que permita a deslocação desde o ponto inicial ao ponto final, é também um entrave à realização deste percurso pedonal.

Iniciando o percurso partindo de Campo do Gerês é possível encontrar no terreno indicações do trajeto (Imagem 3). Apesar da primeira parte do caminho estar submersa pela barragem de vilarinho das furnas, a estrada em terra batida, também utilizada por trânsito motorizado, que contorna a albufeira da barragem, segue na mesma direção, e possui diversos marcos miliários dispostos ao longo da sua extensão. Assim que surge novamente a original Geira Romana, a sinalética volta a encaminhar para o seu traçado. Durante o percurso são várias as marcas visíveis da herança romana deste território (o número de marcos miliários, devidamente identificados, é abundante e há partes onde a calçada romana ainda é perfeitamente visível - Imagens 4 e 5).

Ao património romano existente no caminho, junta-se uma paisagem de uma enorme riqueza natural, atravessando inclusivamente a Mata da Albergaria (Reserva Biogenética do Continente Europeu), e outros locais onde a construção e a presença humana é pouco notada (Imagem 6). Atravessando a fronteira pela Portela do Homem, seguindo aquele que seria o original trajeto da Via Nova, é possível encontrar do lado galego indicações sobre a continuação do trajeto. Contudo, o tipo de sinalização é diferente, e alguns dos painéis informativos estão incompletos. Em alguns pontos do lado galego é possível identificar calçada romana, e cerca de 3 km de chegar a Baños Riocaldo foi reconstruída a calçada na tentativa de recriar um cenário romano - Imagem 8. Já ao chegar a Baños de Riocaldo, é possível ver-se a partir do caminho um conjunto de ruínas postas a descoberto, Aquis Originis (Imagem 7).

Imagem 3 - Sinalização da Geira Imagens 4 e 5 - Marcos Miliários e CalçadaRomana - Terras de Bouro Romana - Terras de Bouro

Fonte: http://umpardebotas.blogs.sapo.pt/895722.html Fonte: Autoria própria

Imagem 6 - Paisagem Via Nova - Terras de Bouro Imagem 7 e 8 - Conjunto de ruínas Aquis Originis e Calçada romana - Lóbios

Fonte: Autoria Própria Fonte: Autoria Própria

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6. Via Nova como potencial Itinerário Cultural EuropeuOs itinerários culturais representam, nos dias de hoje, formas inovadoras de aproveitar

os recursos do território (Trono, 2014). Tendo como foco de análise a Via Nova, e após a apresentação das suas caraterísticas e dos principais requisitos para a declaração a ICE (Tabela 1), podemos constatar que no que às caraterísticas inerentes ao itinerário se refere, esta via possui as condições para avançar com uma candidatura a este título. Particularmente, esta é uma via com património que guarda vestígios de uma parte importante da história da Península Ibérica, e do continente Europeu - o Império Romano.

O património associado à época romana é hoje em dia utilizado por diversas cidades, como produto de atração turística (as cidades espanholas de Mérida, Cartagena, Tarragona; ou as cidades francesas de Arles, Lyon e as inumeráveis cidades italianas). Está portanto associado à Via Nova uma marca turística que tem tido êxito em várias cidades europeias, já que o património que nos resta da civilização romana desperta o nosso interesse pelo passado comum e longínquo. Adicionalmente, também as cidades que estão nos extremos da Via Nova - Braga e Astorga - utilizam seu passado romano e ao património que ainda se conserva nas suas cidades, como produtos turísticos. Tal como podemos observar no mapa presente na Imagem 10, o traçado desta via incorpora uma grande quantidade de elementos romanos. Este percurso tem também, como já referimos, recursos naturais de reconhecido valor, o Parque Transfronteiriço Gerês-Xurês - Reserva da Biosfera.

As caraterísticas da Via Nova - o seu legado patrimonial histórico e natural, aliadas às tendências do setor do turismo - onde as novas necessidades da procura tornam os itinerários turísticos importantes produtos - leva a que esta via seja um importante recurso. Contudo, é necessário que se criem condições para que esta se torne num produto turístico - às valiosas caraterísticas que possui esta via, é necessário desenvolver uma rede de trabalho, e aglomerar a informação académica que justifique a riqueza da mesma, além do desenvolvimento de serviços de apoio à realização do trajeto por parte de visitantes. Faltará também homogeneizar o aproveitamento deste património entre os dois municípios de Terras de Bouro e Lóbios, e coordenar formas de aproveitamento da mesma.

Dada informação até aqui apresentada, defende-se o desenvolvimento de um projeto de impulso turístico da Via Nova não poderá estar assente numa visão local da questão, tendo que ser uma iniciativa encabeçada pelas cidades de Braga e Astorga. Apesar dos troços mais conservados estarem nos municípios de Terras de Bouro e Lóbios, há diversos estudos feitos sobre o trajeto original desta Via e ao longo do seu percurso existem numerosas ruínas de interesse histórico e arqueológico: 11 mansiones (estruturas de apoio aos viajantes); 5 pontes romanas; 276 miliários distribuídos ao longo da via. Relativamente ao estado integral da Via, existem entre Braga e Astorga, diversos fatores que dificultam transformação integral da via numa rota cultural, devido às condições de acesso existentes, provocadas pelas formas de ocupação que o espaço foi tendo. No entanto é importante levar a cabo ações que permitam a criação de uma rota, semelhantes às que se fizeram nos Caminhos de Santiago, ou em outros tantos casos. Apesar de não ser possível recuperar o trajeto de toda a via, é possível uma aproximação ao mesmo, onde o visitante possa compreender a história e o valor deste património à medida que a percorre. É assim necessário identificar quais as zonas que necessitam de uma atuação - num estudo feito pelo Centro de Ciencias Humanas y Solicales del Consejo Superior de Investigaciones, foram identificadas 15 zonas de atuação ao longo da Via.

Prevê-se que, tal como em outros casos aqui descritos, o alcance desta declaração tenha impactos ao nível da dinamização do tecido económico dos dois territórios fronteiriços e interiores, - Terras de Bouro e Lóbios - caraterizados por graves problemas económicos, sociais e demográficos, sejam positivos e que a Via Nova atue como um vetor de desenvolvimento. Adicionalmente, o reconhecimento deste título pressupõe a canalização de diferentes formas de financiamento - tanto comunitário como nacional e também pelo aproveitamento turístico que gera. Para tal é necessário um trabalho conjunto e em rede - levado a cabo pelas autarquias envolvidas e por outros atores oficiais locais - que se materialize na uniformização de objetivos e da realização de iniciativas conjuntas.

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Imagem 9 - Traçado completo da Via Nova

Fonte: Elaboração Própria a partir de dados retirados de www.fundicionaqvinova.com

Imagem 10 - O património da Via Nova nos Municípios de Terras de Bouro e Lóbios

Fonte: Elaboração própria a partir de dados retirados de www.viasromanas.blog.pt

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Principais conclusõesOs desafios que se colocam atualmente aos territórios interiores, relacionados com

as suas dimensões económica e social, levam ao aparecimento de novas estratégias de desenvolvimento, que garantam a sobrevivência destes espaços no contexto da globalização. A aposta no setor turístico tem sido um elemento comum às estratégias de desenvolvimento de muitos espaços, dada a sua capacidade de gerar, direta ou indiretamente, dinâmicas económicas que passam pelo aparecimento de novos negócios e a sobrevivência dos existentes, devido ao aumento da procura de determinados serviços. O turismo pode também contribuir para o aumento da consciencialização do valor do património, que em muitos dos espaços que sofrem de problemas de despovoamento, está subaproveitado e por vezes degradado. Foram vários os patrimónios locais transformados em produtos turísticos atrativos - em Portugal temos o exemplo da Rota do Românico do Tâmega e do Sousa ou da marca Aldeias de Xisto. Devido ao enorme potencial turístico do património histórico vinculado à presença do império romano na Europa, aliado ao aumento do interesse das novas dinâmicas turísticas por Itinerários Culturais, a Via Nova torna-se num possível eixo de desenvolvimento dos municípios espanhol de Lóbios e do município português Terras de Bouro.

A transformação da Via Nova num recurso turístico poderá ser feita através de vários processos, contudo, a nível europeu existe uma enorme aposta na realização de rotas culturais, que enalteçam e tornem acessíveis as marcas do passado comum europeu. O título de Itinerário Cultural Europeu tornou-se ao longo dos últimos anos um expoente desta aposta, e analisando os seus requisitos, a Via Nova tem um elevado potencial para alcançar este título - é um património ilustrativo da memória europeia, alvo de inúmeras pesquisas académicas, tem um elevado potencial turístico adequando-se também às ações do Conselho da Europa no que diz respeito à juventude. É crucial considerar este projeto a uma escala que ultrapasse a local: o Itinerário Cultural Europeu deverá integrar os mais de 300 km que esta via tem entre Braga e Astorga. A recreação desta via, fiel à sua origem, em toda a sua extensão é atualmente impossível dada a evolução posterior do território. No entanto, recorrendo a estratégias de acessibilidade, marcação, integração do produto e criação de pontos simbólicos durante o caminho - tal como se fez no caso dos Caminhos de Santiago - é possível tornar este itinerário num produto turístico atrativo. Porém, dado o nível de conservação da Via Nova nos municípios em estudo, um aproveitamento homogéneo da mesma tornaria estes territórios pontos fortes de atração.

Obviamente que, a concessão deste título está dependente de uma série de fatores que são externos à própria Via Nova, que estão dependentes das redes de trabalho criadas pelas instituições - públicas, privadas e associativas - e do trabalho por elas desenvolvido. Contudo, trata-se de recuperar e tornar acessível um extenso percurso que conserva uma memória histórica europeia, e que adicionalmente pode servir de base a um processo impulso a economias locais debilitadas, dada a reconhecida capacidade dos ICE têm na atração de visitantes e dinamização de negócios locais. Este terá que ser um processo onde a população dos dois municípios esteja envolvida, de forma a garantir um reconhecimento da identidade deste património por parte dos residentes - evitando sentimentos de alienação em relação a este projeto. Terá também que ser um aproveitamento turístico baseado num modelo de fluxos turísticos controlados e conscientes, para que não se coloque em causa o valor ambiental e arqueológico da área envolvida. Esta solução é compatível com a necessidade dos espaços interiores e transfronteiriços diversificarem a sua base económica, conferindo assim uma oportunidade de posicionamento e de impulso económico aos dois municípios em análise. Trata-se assim do aproveitamento de um recurso existente, de forma a que não se percam os valores sociais identitários destes territórios, que além de guardarem parte da nossa história guardam parte da nossa cultura - devem por isso manter-se vivos.

Maria Inês Gusman Correia de Araújo Barbosa

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Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

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Tradições de boas-vindas aos emigrantes portugueses

Patrícia João Gomes EstevesDoutoranda em Geografia Humana na Faculdade de Letras | Universidade de Coimbra

1. IntroduçãoO presente estudo apresenta uma reflexão sobre o Património Imaterial ligado às

tradições de acolhimento dos emigrantes (festas, feiras e missas) durante as férias estivais nas localidades de baixa densidade populacional. Procura-se, ainda, perceber a distribuição destas festas em Portugal Continental.

Como estudo de caso são apresentadas as festas dos emigrantes de três localidades, Mêda, Nisa e Mangualde, dando a conhecer a origem dos emigrantes de cada uma destas localidades, assim como as tradições ligadas às festas destes emigrantes, com base nas entrevistas realizadas às entidades organizadoras (Câmaras, Juntas de Freguesia, Paróquias e Associações).

Pretende-se também, levantar a questão sobre qual será o futuro destas festas a longo prazo, com a alteração do perfil de emigrante português, uma vez que possuiu maior escolaridade, maior mobilidade e novas territorialidades. Este estudo constitui um contributo inovador no sentido em que ainda não existem artigos sobre a temática das Festas dos Emigrantes.

2. Os Movimentos Migratórios e o Património ImaterialOs movimentos migratórios resultam da relação entre estruturas micro (oportunidades

laborais, culturas migratórias, redes sociais) e as estruturas macro (economia mundial, políticas migratórias ou relações entre Estados) (Fonseca, 2005; Castells, Miller, 1998, cit. por Velez de Castro, 2012). A questão económica apresenta-se como um fator de motivação para os movimentos migratórios e o mercado de trabalho é encarado como um estímulo de saída/entrada nos destinos (Velez de Castro, 2012).

Portugal, um país marcado por uma forte emigração na década de 60, tem assistido à criação de património imaterial ligado à receção destes migrantes aquando do seu retorno cíclico. As festas populares, a música regional e as artes tradicionais, como o artesanato, constituem elementos deste património imaterial.

Entende-se como Património Imaterial as “práticas, representações, expressões, conhe-cimentos e competências (…) que as comunidades, grupos e, eventualmente, indivíduos reconhecem como fazendo parte do seu património cultural” (UNESCO, 2003).

O património cultural imaterial manifesta-se através de tradições e expressões orais; de artes do espetáculo; de práticas sociais, rituais e atos festivos; de conhecimentos e usos relacionados com a natureza e o universo e de técnicas artesanais tradicionais (UNESCO, 2003).

Este Património deve ser salvaguardado através da “identificação, documentação, investigação, preservação, proteção, promoção, valorização, (...) e revitalização dos diversos aspetos deste património” (UNESCO, 2003).

3. As Festas dos Emigrantes em Portugal O mês de agosto representa o reencontro dos emigrantes portugueses. Como todos os

anos, regressam à terra natal. Um pouco por todo o país, ocorrem as “Festas dos Emigrantes”, festas com cariz popular e que apresentam, nos seus cartazes, música, jogos tradicionais, missas, oferta gastronómica regional e venda de produtos tradicionais.

Com o retorno dos emigrantes que tinham partido nos anos 60/70 (para a França, Alemanha e outros destinos) algumas das festas assistiram à redução do seu número de

70Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

participantes, embora a tradição continue todos os anos. Em 2014, a Festa do Emigrante de Monte Francisco, em Castro Marim, celebrou a vigésima edição e a Festa do Emigrante da Ilha das Flores, nos Açores, comemorou a 29ª edição.

Estas festas são apoiadas na maior parte das vezes pelas Câmaras Municipais e organizadas por Clubes Recreativos, Paróquias, Comissões de Festa, Bombeiros Voluntários, entre outros. Em 2014, a 29ª edição da Festa do Emigrante da Ilha das Flores ficou a cargo da Associação Cultural Lajense e contou com o apoio da Câmara Municipal das Lajes das Flores, do Governo Regional dos Açores, da Secretaria Regional do Turismo e Transportes e da transportadora aérea SATA (Município das Lajes das Flores, 2014).

Os programas das Festas dos Emigrantes vão se adaptando aos públicos e ao passar dos anos. Em 2001, na 7ª edição da Festa do Emigrante de Monte Francisco, que decorreu nos dias 3,4 e 5 de agosto, realizou-se uma exposição fotográfica intitulada de “Gentes e Lugares de Monte Francisco”, um espetáculo de fogo-de-artifício, uma marcha e uma concentração motard, para além dos concertos musicais, A nível gastronómico, ocorreu a degustação de gastronomia local e uma “sardinhada” acompanha por vinho de pipa. Em 2014, na 20ª edição, que decorreu de 1 a 3 de agosto, apresentaram-se, no seu programa, as seguintes atividades: concertos musicais, um “mercadinho” de produtos tradicionais, um jogo de futebol e um piquenique.

As festas do emigrante pretendem ser uma comemoração que assinala o regresso. Comemorar é preservar algo que ficou na memória coletiva, como ocorre nas manifestações populares com cunho religioso ou não (Paiva Moura, 2001).

As festas populares podem distinguir-se de acordo com quatro dimensões: a simbólica, a sociopolítica, a económica e a estética (Alcade e Gonzalez, 1989). De acordo com estes autores a dimensão simbólica é a mais importante, uma vez que reproduz a identidade de um grupo social.

Paiva Moura (2001) divide as festas populares em:Religiosas (missas, procissões, orações)Festas Profanas (danças, comidas, barraquinhas)Profano-religiosas (inclui traços de ambas).

De acordo com os programas de Festas dos Emigrantes pode-se afirmar que algumas, como a de Monte Francisco, apresentam um carácter profano e outras, como a de Nisa, apresentam um carácter religioso.

Uma importante tradição de cariz popular, a Capeia Arraiana, específica de algumas povoações do concelho do Sabugal próximas da fronteira com Espanha, junta milhares de pessoas em agosto, com o regresso à terra natal dos emigrantes. A Capeia constitui a primeira manifestação cultural imaterial registada no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, tendo sido publicada no Diário da República (2.ª série, N.º 220, de 16/11/2011) Anúncio n.º 16895.

De forma a perceber-se a distribuição das Festas dos Emigrantes em Portugal Continental realizou-se o seguinte mapa com as festas por município (fig.1).

Fig.1 – Mapa das Festas dos Emigrantes Fig.2 – Mêda, Mangualde e Nisa.

por município - Portugal Continental. Fonte: Elaboração própria.

Fonte: Elaboração própria.

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Através da visualização deste mapa é possível observar-se que estas festas ocorrem principalmente em zonas marcadas pela emigração dos anos 60, nas regiões localizadas a norte do rio Tejo, com especial incidência nos municípios do norte do país e no interior. O Alentejo sobressai pelo facto de possuir o menor número de festas comparativamente com as outras regiões.

4. Estudo de Caso: As Festas do Emigrante de Longroiva (Mêda), de Nisa e de MangualdeComo estudo de caso foram escolhidas três Festas dos Emigrantes, a de Longroiva (Mêda),

a de Mangualde e a de Nisa (fig. 2), três municípios de baixa densidade populacional. De forma a caracterizarem-se estas festas entrevistaram-se os responsáveis pela sua organização. Mêda é uma cidade portuguesa, do distrito da Guarda, região Centro e sub-região da Beira Interior Norte, com cerca de 2100 habitantes. É sede de um município com 286,05 km² de área e 5202 habitantes (INE, 2011). Longroiva é uma freguesia portuguesa do concelho de Mêda, com 41,22 km² de área e 286 habitantes (INE, 2011). Nisa é uma vila portuguesa no distrito de Portalegre, região Alentejo e sub-região do Alto Alentejo, com cerca de 3300 habitantes. É sede de um município com 575,68 km² de área, com 7450 habitantes (INE, 2011). Mangualde é uma cidade portuguesa do distrito de Viseu, região Centro e sub-região do Dão-Lafões, com cerca de 7300 habitantes. É sede de um município com 219,26 km² de área e 19880 habitantes (INE, 2011).

4.1. A Festa do Emigrante de Longroiva – Mêda A Festa do Emigrante de Longroiva, em Mêda, é patrocinada pela Câmara de Mêda e

é organizada por Comissões de Festa que são nomeadas de ano para ano. Realiza-se desde 2009 e decorre no primeiro ou segundo sábado de agosto, variando em função das festas nas aldeias limítrofes.

Em 2014, esta festa popular decorreu no dia 2 de agosto e iniciou-se às 14:30 com Jogos Tradicionais e “rifas”, às 20 horas decorreu a missa e a procissão, às 21 horas um jantar de porco no espeto e, por fim, às 22 horas, um baile com uma atuação ao vivo.

A Festa do Emigrante de Longroiva celebra o regresso dos seus emigrantes que partiram para a França e a Suíça. De acordo com os organizadores participam nesta festa cerca de 600 pessoas, contando com a participação de residentes dos municípios vizinhos, como, por exemplo, Foz Côa, Trancoso e Pinhel. Os cartazes (fig.3) são normalmente elaborados pelas Comissões de Festa que contratam o serviço de gráficas locais.

Fig. 3 – Cartaz da Festa do Emigrante Fig. 4 – Cartaz do Dia do Emigrante de 2014 - Nisa

2015 de Longroiva Fonte: Jornal de Nisa

Fonte: Junta de Freguesia de Longroiva

No dia 18 de agosto de 2014 foi inaugurado, em Mêda, um monumento em homenagem ao “Emigrante” no Jardim do Arquivo Municipal. Foi também dedicado ao emigrante um dia nas Festas do N. Sr. Bom Jesus desse ano. Este município, que possui cerca de 5202 habitantes

Patrícia João Gomes Esteves

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(INE, 2011), chega a contabilizar, durante o Verão, mais de 20 mil pessoas, demonstrando a importância dos emigrantes para esta região.

4.2. O Dia do Emigrante de NisaNo mês de agosto, Nisa recebe os seus emigrantes, que regressam para rever amigos,

família e para desfrutar dos produtos tradicionais da região (vinho, enchidos, queijo). Para além da gastronomia, a fé à Nossa Senhora da Graça, padroeira de Nisa, une também estes emigrantes. O dia 13 de agosto é comemorado em Nisa, à semelhança de Fátima, como o dia do emigrante no qual ocorre uma romaria.

Em 2014, o Comité de Geminação Nisa-Azay-le-Rideau com a colaboração da Paróquia de Nisa e o apoio da Câmara Municipal de Nisa e da União de Freguesias de Espírito Santo, Nossa Senhora da Graça e S. Simão recriou, neste dia, a Romaria de Nossa Senhora da Graça, que se celebra na Páscoa, de forma a proporcionar este evento também aos seus emigrantes, com a celebração de uma missa e de uma procissão com a imagem de Nª Sr.ª da Graça. A paróquia de Nisa solicitou aos residentes que colocassem colchas nas suas janelas nas ruas por onde passou a procissão. Após a procissão, ocorreu um convívio e lanche partilhado. De acordo com o padre Constantino “celebrar o dia do emigrante é celebrar a nossa própria vida, pois todos somos emigrantes nesta Terra, somos peregrinos que caminham em direção ao Céu”.

O Dia do Emigrante de Nisa realiza-se há cinco anos, sendo organizado pela Paróquia de Nisa, de forma a homenagear os emigrantes que partiram principalmente para a França e para a Alemanha. Os cartazes para esta festa religiosa são elaborados por pessoas do Seminário (fig.4). Segundo um dos organizadores, participam nesta celebração cerca de 500 pessoas.

4.3. A Festa do Emigrante de MangualdePromovida pela Câmara Municipal de Mangualde, a Festa do Emigrante de Mangualde

apresenta-se como uma festa popular com entrada livre e cujo principal público-alvo são os emigrantes e os mangualdenses. Esta festa ocorre no primeiro domingo de agosto, tendo em 2014 ocorrido no dia 3 de agosto. Em 2015 será a quarta edição deste evento.

Em 2014, esta festa iniciou-se às 18 horas com a receção dos emigrantes e às 21 horas iniciaram-se os concertos e a atuação do Grupo Folclórico Cranston Portuguese Club, um rancho composto por cerca de 50 elementos oriundos dos Estados Unidos da América (fig.5). Em 2015, este evento contará com um momento de karaoke e com um Mercado de Rua, de forma a que os residentes possam vender os seus produtos locais tanto de gastronomia como de artesanato.

Fig.5 - Festa do Emigrante 2014 – Mangualde Fonte: Câmara de Mangualde

A Festa do Emigrante de Mangualde pretende celebrar o regresso dos seus emigrantes que partiram principalmente para os Estados Unidos da América, França e Alemanha. De acordo com os organizadores, participam nesta festa cerca de 200 pessoas, contando com a participação de residentes dos municípios vizinhos, como, por exemplo, Penalva do Castelo, Fornos de Algodres e Gouveia. Os cartazes deste evento são elaborados pelo Gabinete de Comunicação da Câmara de Mangualde.

Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

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5. Conclusão Importa, por fim, realizar-se uma breve reflexão sobre o futuro destas festas. O principal

público destas são os emigrantes dos anos 60 com baixa escolaridade e que vinham a Portugal de férias em agosto. No entanto, o perfil dos emigrantes portugueses tem vindo a sofrer alterações com o passar das últimas décadas.

Na primeira década do século XXI, cresceu a percentagem de diplomados do ensino superior da população portuguesa emigrada nos países da OCDE (PIRES, 2014). O crescimento das qualificações superiores dos portugueses emigrados está relacionado com o aumento da escolarização da população portuguesa nestas últimas décadas. Em termos de qualificações escolares entre os portugueses residentes em países da OCDE, o grupo que mais cresceu desde 2001 e 2011 foi o dos que possuem o ensino superior, que quase duplicou (mais de 88%). O grupo de portugueses emigrados com nível secundário aumentou 37% e o com o ensino básico 6% (PIRES, 2014).

Os organizadores das três festas foram questionados sobre a hipótese da continuidade destas a longo prazo. Segundo os organizadores das Festas de Mêda e de Nisa, a resposta foi positiva. A organizadora de Mangualde respondeu negativamente, apresentando dois fatores que levarão à não continuidade destas festas: o facto das férias destes novos emigrantes já não serem exclusivamente em agosto e o facto de estes não se sentirem na obrigação de passar férias na terra natal, podendo optar por regiões com praia, até mesmo fora de Portugal. Graças aos voos low cost, em poucas horas se deslocam a Portugal quando querem visitar a família.

Por enquanto, estas festas multiplicam-se pelo nosso país como uma forma de homenagear as suas comunidades emigrantes, de proporcionar oportunidades de negócio e de dinamizar os territórios.

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75Messias Modesto dos Passos

Disponibilidad léxica en la Raya

Elena Gamazo CarreteroUniversidade de Coimbra

0. IntroducciónLa pretensión de este artículo es exponer los aspectos metodológicos, que se han llevado

a cabo hasta el momento actual, en el proyecto de Disponibilidad Léxica en la Raya/Disponibi-lidade léxica na Raia en las concomitancias limítrofes de las provincias de Salamanca (España) y Guarda (Portugal).

La investigación se asienta en las pautas metodológicas de disponibilidad léxica y su mecanismo de recolección de datos. Los corpora pertenecen a preuniversitarios españoles y portugueses de núcleos rurales colindantes a la frontera, núcleos urbanos colindantes a la frontera y núcleos urbanos más distanciados de la frontera.

Dichos corpus, recogidos en lengua escrita bajo el criterio de lista abierta y tiempo fijo, fa-cilitan unos porcentajes de frecuencia a los que se le aportará una explicación social mediante el análisis de las variables sociolingüísticas.

1. Encuadre Teórico1.1. Conceptos básicos en relación al término léxicoUna de las vertientes de la lexicometría, o también denominada léxico-estadística, es la

Disponibilidad Léxica (DL), cuyo objetivo es recoger y analizar posteriormente el léxico dispo-nible de una determinada comunidad de habla.

El léxico disponible dista del léxico básico, pues este último está compuesto por las pala-bras más frecuente en una lengua con independencia del tema tratado y, el disponible corres-ponde a las voces que los hablantes tienen en el lexicón mental y cuyo uso está condicionado por el tema concreto de la comunicación. De este modo se pretende descubrir qué palabras sería capaz de emplear un hablante en determinados contextos de comunicación.

Por lo tanto, la suma del léxico disponible y el léxico básico conforman el léxico funda-mental de una lengua. Ambos son complementarios. El léxico básico se obtiene de la ponde-ración entre la frecuencia y la dispersión de las palabras en los distintos textos seleccionados al azar. En cambio, el léxico disponible se obtiene de la ponderación entre la frecuencia y el orden de aparición de las palabras en los listados de las encuestas asociativas.

Las categorías de palabras que conforman el léxico disponible suelen ser sustantivos, mientras que en el léxico básico acostumbran a ser palabras gramaticales. Los sustantivos aparecen en posiciones más lejanas que verbos y adjetivos. Dicho de otra manera, las pa-labras temáticas constituyen los repertorios de léxico disponible y, las palabras atemáticas, componen el léxico básico (Michéa: 1953).

1.2. Delimitación de la Disponibilidad léxicaEn los albores de los años cincuenta en Francia (Gougenheim: 1956) se emprendieron

los estudios de Disponibilidad Léxica, continuando en Canadá. Incipientes trabajos que se gestaron con el objetivo de que sus resultados sirvieran como base en la elaboración de

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materiales didácticos para la enseñanza del francés como Lengua Extranjera. Realmente, el propósito no era tan lingüístico, como político, dado que los materiales confeccionados estaban destinados a ser empleados en las antiguas colonias francesas y con los inmigrantes que llegaban a Francia.

España e Hispanoamérica son punteros en la ejecución de estos estudios léxicos desde 1970. El investigador de cabecera es Humberto López Morales cuyo trabajo publicado en 1999, El léxicodisponible de Puerto Rico, es la obra de referencia de esta disciplina.

Más adelante nació el Macro Proyecto Panhispánico de Disponibilidad Léxica, dirigido y coordinado por López Morales, que consiste en recopilar el léxico disponible, bajo las mismas bases metodológicas, de estudiantes preuniversitarios en los territorios de habla hispana, para elaborar el Diccionario Panhispánico de Léxico Disponible. Los grupos de investigación que trabajan en el proyecto se extienden por todos los países Hispanoamericanos y España. Se comunican entre ellos mediante la plataforma online dispolex1, medio de contacto e infor-mación, y donde pueden incorporar sus materiales a un banco de datos, que les proporciona las herramientas necesarias para realizar el análisis cuantitativo, o en términos técnicos, ma-temático – estadístico, de sus datos. Dispolex emplea la fórmula matemática inventada por J. López Chaves y C. Strassburger (1991), al igual que el programa informático sostenido por Francisco Moreno y Pedro Benítez en la Universidad de Alcalá, LexiDisp.

Actualmente las fases metodológicas de estos estudios no han sufrido variaciones, sin embargo, si se han manifestado oscilaciones en las variables extralingüísticas de la ficha so-ciolingüística y en los centros de interés de la encuesta léxica. Además, la recopilación de los corpus ya no solo se realiza en lengua escrita, sino también oral. También cabe destacar la inclusión de una tercera parte en la recogida de datos, el cuestionario sobre aspectos relevan-tes para cada investigación particular.

Una particularidad a tener en cuenta es que para que un estudio pueda formar parte del Proyecto Panhispánico de Disponibilidad Léxica, tiene obligatoriamente que analizar los dieci-séis centros de interés señalados en las pautas metodológicas de la encuesta, sin posibilidad de sustituir ninguno de ellos. Lo que sí se puede es añadir tantos campos semánticos como el investigador desee, aunque no se recomienda que sea un número muy elevado, por el cansancio mental que puede producir y reflejarse en los corpus recopilados.

Los dieciséis centro de interés se consideran universales, de donde se infiere que todos los sujetos encuestados en cualquier parte del mundo van a saber qué responder en cada campo nocional.

Cuadro 1. Centros de interés del Proyecto Panhispánico de Léxico Disponible

Algunas de los mudanzas más significativas han sido la inclusión del centro de interés La mar, en unas encuestas realizadas en Ceuta (Ayora: 2003); El olivo y el aceite (Ahumada: 2006); Agricultura y ganadería y La pesca (Borrego & Fernández Juncal: 2003); La inteligen-cia (Hernández: 2004); La salud (Prado, Galloso & Vázquez: 2006);o Acciones y actividades habituales (Sánchez-Sauz: 2011).

Por lo que se refiere a Portugal los estudios son más recientes y escasos. No existe ningún macroproyecto que englobe todos los trabajos. Encontramos estudios aislados, financiados y ejecutados por investigadores particulares. Sirva como ejemplo, el estudio sobre territorios limítrofes de las provincias de Andalucía – Algarve y Extremadura – Alentejo, elaborados por

1 - www.dispolex.com [Última consulta: 20/08/2015]

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Galloso Camacho y Prado Aragonés en la Universidad de Huelva; el trabajo sobre disponibi-lidad léxica en alumnos de español como lengua extranjera del distrito de Oporto realizado por Fernández dos Santos (2014); o el proyecto sobre estereotipos en el léxico disponible de universitarios portugueses de Gamazo Carretero (2014).

2. Delimitación del objeto de estudioLa finalidad de este estudio sobre lenguas en contacto, que se está desarrollando en los

territorios transfronterizos de España y Portugal en la acotación de la provincia de Salamanca, es, en primer lugar, tratar de descubrir el lexicón mental que disponen los preuniversitarios portugueses y españoles sobre su lengua materna y la lengua fronteriza con la que asidua-mente están en contacto.

El siguiente propósito es describir los valores subyacentes al estudio léxico, es decir, me-diante un análisis cualitativo de las evocaciones léxicas, delimitaremos actitudes y creencias de una sociedad fronteriza frente a la otra.

Por último, alejándonos de la sociolingüística y adentrándonos en la didáctica de las lenguas, los resultados contribuirán a elaborar las directrices de un plan de enseñanza/apren-dizaje de los componentes culturales y léxicos en el aula de Español Lengua Extranjera (ELE) y Portugués Lengua Extranjera (PLE), adecuado a las necesidades especificas de las sociedades portugues y española en todas las etapas y variantes educativas.

La línea de investigación escogida para la recolección de datos ha sido la disponibilidad léxica, considerando que se trata de un método consolidado, óptimo en obtención de datos veraces y con una larga tradición investigadora, como hemos podido comprobar en epígrafes anteriores.

En cuanto al nivel de estudios seleccionado, estudiantes de segundo curso de bachille-rato en España y duodécimo en Portugal, ya que como indican las directrices del Proyecto Panhispánico de DL dirigido por López Morales, todos los informantes dominan, en mayor o menor medida, vocabulario similar ante las mismas situaciones comunicativas en ese nivel académico.

A pesar de seguir algunas de las directrices del Proyecto Panhispánico, este estudio se asemeja más a otros trabajos sobre lenguas en contacto en territorios fronterizos como es el Proyecto de Excelencia de la Universidad de Huelva, subvencionado por la Junta de Andalucía, que se lleva a cabo en las zonas limítrofes de Andalucía/Algarve y Extremadura/Alentejo.

3. Fases metodológicasLa metodología aplicada en esta investigación sigue las pautas de recolección de datos

del Proyecto Panhispánico de Disponibilidad léxica. Por consiguiente, permite realizar com-paraciones con otros estudios similares y proporciona respuestas rápidas, anónimas y no reflexionadas e influidas por el contexto.

3.1 La muestra: Centros educativos y alumnos preuniversitariosDurante el curso académico 2014/2015 se llevó a cabo parte de la recogida de datos en

algunos de los centros educativos, debido a la pausa lectiva, los trabajos de recolección se volverán a retomar a partir de octubre de 2015. La edad media comprendida de los informan-tes, en las encuestas ya compiladas es entre 17 y 18 años, aunque registramos excepciones en casos partículares de repetición de un curso.

El criterio que primó en la selección de los centros educativos fue la distancia, en kiló-metros, entre los Institutos y la frontera dentro de los límites provinciales de Salamanca en España y Guarda en Portugal. De esta manera, clasificamos los centros en tres vertientes siguiendo este parámetro: centros educativos en zona rural contigua a la frontera en España y Portugal, centros educativos en zona urbana contigua a la frontera en España y Portugal y centros educativos en zona urbana más distanciada de la frontera.

Al realizar el estudio a ambos lados de la Raya, ha sido necesario realizar un estudio pre-vio geográfico para determinar que las distancias de los centros a la frontera, en un país y en otro mantuvieran una analogía que proporcionara resultados semejantes para poder realizar

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comparaciones. La elección del grupo de encuestados de las pruebas ya compiladas, dependió de cada

centro educativo donde se realizaron, en función de las disponibilidad de profesorado y ho-rario. Aún así, todas las modalidades académicas/ precursos académicos existentes en el plan de estudios de ambos cursos, segundo de bachillerato / decimo segundo año, se encuentran registradas en el corpus escrito.

3.1.1 Centros educativos en zona rural contigua a la frontera

Relación de los institutos participantes en la investigación en la provincia de Salamanca:

Cuadro 2. Centros educativos en zona rural contigua a la frontera en la provincia de Salamanca

Relación de los institutos participantes en la investigación en la provincia de Guarda:

Cuadro 3. Centros educativos en zona rural contigua a la frontera en la provincia de Guarda

3.1.2 Centros educativos en zona urbana contigua a la frontera

Relación de los institutos participantes en la investigación en la provincia de Salamanca:

Cuadro 4. Centros educativos en zona urbana contigua a la frontera en la provincia de Salamanca

Relación de los institutos participantes en la investigación en la provincia de Guarda:

Cuadro 5. Centros educativos en zona urbana contigua a la frontera en la provincia de Guarda

3.1.3 Centros educativos en zona urbana más distanciada de la frontera

Relación de los institutos participantes en la investigación en Salamanca capital:

C

Cuadro 6. Centros educativos en zona urbana más distanciada de la frontera en la provincia de Salamanca

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Relación de los institutos participantes en la investigación en Viseu capital:

Cuadro 7. Centros educativos en zona urbana más distanciada de la frontera en la provincia de Guarda

3.2 Recogida de los datos: La prueba

Parte de la recogida de datos se llevó a cabo, como citamos anteriormente, a lo largo del curso académico 2014/2015 en las instalaciones de algunos de los centros educativos. El procedimiento fue siempre el mismo, recolectándose las encuestas sin contratiempos.

Al comienzo de las pruebas se explicó cuál sería el procedimiento. El encuestador enun-ciaría un centro de interés en voz alta, y ellos tendrían que escribir el máximo de palabras o expresiones que les vinieran a la mente, relacionadas con este input. Para este proceso dispo-nían de dos minutos cronometrados por el encuestador.

Por consiguiente, se trata de una encuesta asociativa anónima que presenta, en primer lugar, una serie de preguntas donde el informante debe responder con datos veraces relativos a las variables sociolingüísticas que determinan este estudio. Las páginas siguientes se estruc-turan en tres columnas numeradas en la parte superior que corresponden a cada centro de interés. Cada una de ellas dispone de veinticinco2 pautas numeradas, donde el encuestado deberá escribir sus respuestas. Es muy importante resaltar que el orden del listado hay que respetarlo, pues es fundamental para conseguir resultados óptimos. El objetivo es detectar el léxico disponible, por tanto, las palabras que encabecen los listados, serán las más activas, no las más frecuentes en el lexicón mental de los informantes. Por último los encuestados tuvieron que responder a una serie de cuestiones breves sobre su relación con las dos lenguas del estudio.

3.2.1 La ficha sociolingüística: variables

Cuadro 8. Variables sociolingüísticas y geográficas

2 - En situaciones donde el encuestado es capaz de escribir un número superior de vocablos, se le indica continuar su adecuado a las necesidades específicas de las sociedades portuguesa y española en todas las etapas yvariantes educativas.

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3.2.1.1 Variable: sexoComo ha ocurrido en otros estudios de disponibilidad, el mayor número de informantes

en las encuestas ya realizadas son mujeres, aunque los datos de población no coindicen con este hecho. Puede ser que esta característica se deba a que los hombres en los cursos de educación secundaria no obligatoria acuden menos a las aulas, ya que prefieren abandonar sus estudios e incorporarse al mundo laboral.

3.2.1.2 Variable: nivel socioculturalEl nivel sociocultural a lo largo de los trabajos en el ámbito de la disponibilidad ha abar-

cado diferentes parámetros. En nuestro estudio solo engloba los parámetros profesión y nivel de estudios de los padres, puesto que consideramos que no aportarán relevancia, por ejemplo, conocer los “ingresos familiares” como dato. El cálculo se realiza asignando cierta puntuación instituida a la profesión y el nivel de estudios del padre y de la madre y sumán-dolo después.

Escala de valores según la profesión del padre y la madre :

Cuadro 9. Escala de valores según la profesión

Escala de valores según el nivel de estudios del padre y la madre :

Cuadro 10. Escala de valores según el nivel de estudios

3.2.1.3 Variable: ubicación del centroLa ubicación del centro educativo es la más significativa de nuestro estudio. Se clasifica

en tres grupos: centros educativos en zona rural contigua a la frontera en España y Portugal, centros educativos en zona urbana contigua a la frontera en España y Portugal y centros educativos en zona urbana más distanciada de la frontera. Las diferentes distancias entre las frontera existente Salamanca/Guarda y los institutos donde se han realizado las encuestas ar-rojarán resultados muy dispares. Principalmente esperamos que cuanta mayor cercanía, más contacto de lenguas habrá y cuánta más distancia, menos similitudes.

3.2.1.4 Variable: Residencia de los padresEl grupo de investigación de la Universidad de Salamanca, considera esta variable más

significativa que la ubicación del centro de estudios (Galloso 2002 & Hernández Muñoz 2004) para estudiar la procedencia rural o urbana de los informantes. Realmente, en estudios sobre territorios limítrofes lo consideramos todavía más importante, teniendo en cuenta que en la gran mayoría de las zonas rurales transfronterizas no existen centros educativos y los jóvenes se ven obligados a desplazarse hasta otras localidades donde se ubican. Las directri-

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ces del INE3 señalan que se considera rural una localidad que no supera los 10000 habitantes y urbana la que posee más que esa cifra. Por tanto, hemos establecido el umbral entre una localidad urbana y rural en 10000 habitantes.

3.2.1.5 Variable geográfica: paísEl país de procedencia de los informantes es una variable geográfica al igual que el lugar

de residencia de los padres y la ubicación del centro educativo. Como las dos anteriores, la variable país es muy relevante en nuestro estudio.

3.2.2 La encuesta léxica: los centros de interésLos corpus ya recopilados, se recogieron en lengua escrita a través de una encuesta de

carácter cerrado bajo el criterio de lista abierta y tiempo fijo. El entorno físico de la prueba fueron las mismas salas donde se impartían sus clases.

La encuesta que se aplicó consta de dos variantes, una en lengua española y la otra en lengua portuguesa, cada una cuenta con un total de dieciocho centros de interés algunos tradicionales, otros que han sido empleados ya en estudios de disponibilidad, pero que el Proyecto Panhispánico no contempla y una innovación.

Cada grupo de informantes se dividió en dos partes. A los integrantes de una de ellas se les entregó la encuesta con los centros en interés en lengua Española. A los componentes de la otra se les entregó en lengua Portuguesa. Finalmente se optó por este procedimiento, puesto que realizar la prueba con veintiséis centros de interés a cada informante podía conl-levar consecuencias negativas en los resultados. A causa del cansancio, la concentración no sería la misma y los informantes podrían manifestar desinterés en la prueba.

Cuadro 11. Centros de interés – Lengua Española

Cuadro 12. Centros de interés – Lengua Portuguesa

Los centros interés partes del cuerpo (1), la ropa (2), la casa (4), profesiones y oficios (6), los animales (11), la ciudad (12), los medios de transporte (13) y el campo (14), son campos nocionales tradicionales, contemplados en el Proyecto Panhispánico. El campo semántico la salud y las enfermedades (18), empleado ya en el estudio de Urrutia Martínez (2002),

3 - Instituto Nacional de Estadística. http://www.ine.es/ [Última consulta: 20/08/2015]

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de naturaleza abstracta, consideramos que puede mostrar resultados óptimos en el estudio cualitativo.

Por otra parte, con los centros lengua Española (15) y lengua portuguesa (7), pretende-mos conseguir información relevante sobre la opinión de la lengua colindante y averiguar con ellos cuestiones de creencias y actitudes al igual que con los campos semánticos, España y los Españoles (10) y Portugal y los Portugueses (11).

Mención aparte merece el centro de interés frontera (5), siendo una inclusión de carácter abstracto, que puede alcanzar resultados muy dispares, pero con el que pretendemos averi-guar valores sociales.

4. Conclusiones y perspectivas futurasA lo largo de estas páginas se han expuesto los principios metodológicos en los que se

asienta el proyecto de Disponibilidad Léxica en la Raya. En el momento actual el estudio está en su quinta fase, transcripción y procesamiento

informático de los datos de parte de la encuestas ya realizadas durante el curso académico 2014/20154. A continuación, se lematizarán y homogeneizarán, para insertarlos en el progra-ma dispolex5, cuyo mantenimiento está a cargo del grupo de investigación en Disponibilidad Léxica del Departamento de Lengua Española de la Universidad de Salamanca, bajo la direc-ción de José Antonio Bartol.

Dispolex nos permitirá calcular los siguientes aspectos estadísticos: índices de disponibili-dad, índices cuantitativos (Número de palabras, número de vocablos, promedio de palabras por informante e índice de cohesión), comparación de disponibilidad, de índices y conjuntos.

Enseguida, una vez analizado el corpus léxico, se procederá a editar un Diccionario con los repertorios de palabras más disponibles en lengua española y lengua portuguesa en los territorios limítrofes de España y Portugal, en la franja espacial de las provincias de Salamanca y Guarda. Dado queen esta área geográfica existe un índice de contacto tan elevado entre las dos lenguas, la publicación de los repertorios de las dos zonas analizadas está absolutamente justificado. De igual modo es tan importante conocer el léxico disponible en lengua materna, como en lengua extranjera colindante, considerando que ambas lenguas, son empleadas simultáneamente a un lado y otro de la frontera.

El siguiente objetivo del estudio persigue un fin sociolingüístico a partir de un análisis cualitativo. Servirá para describir valores subyacentes al estudio léxico, como por ejemplo, delimitar actitudes y creencias de un grupo frente a otro.

El último propósito se encuadra en el universo didáctico. Contribuir a elaborar las di-rectrices de un plan de enseñanza/aprendizaje de los componentes culturales y léxicos en el aula de Español Lengua Extranjera (ELE) y Portugués Lengua Extranjera (PLE), adecuado a las necesidades específicas de las sociedades portuguesa y española en todas las etapas y variantes educativas.

Si efectuamos una retrospectiva sobre la enseñanza de las competencias lingüísticas6, comprobamos que en la mayoría de las situaciones, el componente gramatical prima sobre el léxico, semántico, fonológico, ortográfico y ortoépico. A pesar de las innovaciones y aplica-ciones de nuevos métodos de enseñanza de lenguas extranjeras, en las aulas se dedica más tiempo a cuestiones gramaticales relegando otros aspectos. En concreto, el componente léxi-co debía ser considerado, reflexionado y trabajado con mayor empeño por parte del profesor, pues es un factor esencial. De poco sirve explicar estructuras, si no nos detenemos a enseñar vocabulario adecuadamente. Las palabras son las portadoras de significado, sin ellas no se consigue comunicar, y comunicar en lengua extranjera, es el objetivo de todo estudiante de un idioma.

Por otra parte, el docente debe conocer la imagen mental, aceptada y representativa que los estudiantes poseen sobre los miembros de la comunidad del idioma que adquieren, como comprender la cultura de la sociedad en la que enseña. Así los contenidos culturales expuestos serán apropiados y adaptados.

4 - Las labores de recopilación de datos se retomarán en el mes de octubre de 2015.

5 - www.dispolex.com [Última consulta: 20/08/2015]

6 - http://cvc.cervantes.es/ensenanza/biblioteca_ele/marco/cvc_mer.pdf [Última consulta: 20/08/2015]

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Sintetizando pues, diré para concluir que esta investigación sobre el léxico disponible y su correspondiente estudio sociolingüístico, es una innovación en los proyectos que se han desarrollado en el territorio limítrofe de la Raya/Raia en la extensión de las provincias de Sala-manca y Guarda hasta la actualidad. Estoy segura de que va a aportar información relevante sobre la situación lingüística y social de ambas comunidades fronterizas.

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Guarda, cidade e projecto:um laboratório de representação 4D para a análise, interpretação e reflexãoda evolução urbana da cidade Cátia Sofia Viana RamosArquitecta, Doutoranda do Dep. Arquitectura da FCT-UC

Sobre um modelo digital do crescimento da cidade da Guarda, indagamos a cons-trução da ideia de cidade, à qual é inerente a representação arquitectónica. A arquitectura é compreendida como permanência física da vida colectiva da cidade, da sua história humana, é a estrutura/forma urbana que realiza o social. Perseguindo esta ideia, é igualmente pertinente a compreensão da contínua reapropriação física e simbólica da arquitectura no curso do crescimento da cidade, tornando-se fundamental a adopção de um quadro temporal lato. A importância de uma construção espácio-temporal (4D, vídeo) resulta da necessidade de atingir inteligibilidade sobre a evolução urbana da Guarda, e, como instrumento reflexivo, da possibilidade de explorar no presente oportunidades de desenvolvimento. Esta construção converte-se num documento da cidade, ferramenta de representação, análise e intervenção crítica. Este é o objectivo último do modelo digital: a exploração do caminho analítico-projectual a partir do qual se constrói o saber teórico-prático da arquitectura e, concomitantemente, da cidade*. É neste sentido que nos pro-pomos estudar a Guarda, cortando o hiato entre projecto e conhecimento, fixando-nos na experiência ontológica da Guarda. Este processo simbiótico de conhecimento procura trazer ao debate uma ausência de discurso sobre a cidade como construção projectual.

Somos incapazes de conceber a construção da cidade sob uma ideia de imutabilidade, porque o tempo está sempre inerente a esse processo construtivo. É o tempo que define a cidade como um espaço histórico-material a quatro dimensões. Assim, é sobre a coordenada temporal que procuramos atingir a compreensão sobre o desenvolvimento urbano da cidade da Guarda, ampliando o conhecimento deste processo de forma extrínseca, sob a figura de um laboratório de representação digital 4D. Enquanto método utilizado pela representação arquitetónica1, a utilização da imagem em movimento (4D, quatro-dimensões) provém da necessidade de ultrapassar obstáculos cuja natureza não é puramente técnica e que não se resolvem ou conseguem explicar mais plenamente apenas pelo recurso a uma representação 2D (bidimensional) ou 3D (tridimensional). A imagem em movimento é “…first and foremost, most closely related to the representation of space in time and to the composition, deconstruction and assembly of the fleeting and multiple states of a place or a situation, it is thus intimately linked to the process and potential of montage. A true architectural appropriation of the moving image relies more on profound exploration of time-image as means of architectural expression, than technical means.”2.

A organização deste laboratório de representação 4D tem como objectivo a repre-sentação dos múltiplos estados espaciais da Guarda, e resulta, emprestando o termo a Deleuze, da construção de um conjunto de imagens-tempo. Estas imagens são resultado de uma investigação e reflexão crítica sobre o crescimento da Guarda no tempo-longo, e

1 - Latek define a obra de László Moholy-Nagy (1895-1946), Vision in Motion , como determinante para a compre-ensão da imagem em movimento no âmbito dos processos de pensamento arquitectónico. Irena Latek, “Moving Collage or «Image-Temps» in Instrumental Exploration of New Modes for Analyzing, Interpreting and Conceiving Urban Spaces.,” Changes of Paradigmas: In the Basica Understanding of Architectural Research, eaae| arcc confer-ence copenhagen, 2 (2008): 185.2 - Ibid., 185–186.

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complementares à minha investigação em arquitectura3 sobre a mesma. Esta reflexão crítica é entendida como projecto, ou seja, como conhecimento em arquitectura.

O conceito de imagem-tempo, desenvolvido por Deleuze, relaciona-se com a produção cinematográfica do pós-guerra4, cujo sentido se explica pela relação complexa com o presente, em que o movimento5 é uma consequência da complexa representação do tempo. Então, como dar a perceber a experiência histórica da cidade que, na realidade, é resultado sincrónico de vários estágios da construção da cidade? Como entender esses estágios do passado e, qual o sentido deles enquanto presente da forma urbana da Guarda? Como ajudar a explicar a transformação recente da cidade, a qual, é dotada de maior ubiquidade? Procurando dar resposta a estas questões, desenvolvemos o vídeo digital como laboratório de representação arquitectónica, emprestando o conceito de movimento, imagem-tempo e montagem ao cinema, porque “… the cinematographic image itself ‘makes’ movement, because it makes what the other arts are restricted to demanding (or to saying), it brings together what it essential in the other arts; it inherits it, is as it were the directions for use of the other images, it converts into potential what was only possibility.”6 Em cinema, a lógica da imagem-tempo não pretende atingir a realidade, mas, pela recriação puramente cinematográfica, ela traduz uma cadeia/movimento de interpretações e reinterpretação de imagens, a troca entre representação (imagem) e o pensamento (observador)7.

Se a evolução real da cidade é percebida na sincronia dos seus diferentes momentos históricos, contrariamente o vídeo digital será produto da montagem de um conjunto de imagens-tempo, representações da cidade, construções desenhadas, conseguidas através da investigação urbana. Se nos reportarmos a um âmbito puramente arquitectónico, serão imagens-forma. O vídeo procura dar a entender o movimento8 natural da construção da cidade da Guarda a partir da contínua evolução das suas estruturas, ideias imbuídas e transformações realizadas. O vídeo em si mesmo é uma sequência de hipóteses desenhadas, fundamentadas no real, sobre os vários tempos da cidade da Guarda.

Figura 1. Vídeo frame da transição entre a forma da cerca românica (aprox. séc. XI) e a cerca gótica (séc.XII-XV).

3 - Investigação de Doutoramento no âmbito do Curso de Doutoramento de Cultura Arquitectónica e Urbana Departamento de Arquitectura da FCTUC sob a orientação do Professor Doutor José António Bandeirinha e Pro-fessor Doutor Mauro Costa Couceiro. 4 - Em especial a partir do cinema neo-realista italiano. Gilles Deleuze, Cinema 2: The Time-Image, trad. Hugh Tomlinson and Robert Galeta (London: The Athlon Press, 1989), xii.5 - “For Deleuze, the cinematic apparatus functions as a translator of the movements of images and conscious-ness of perception within tempo-modalities of worlds (real, imagined, past, present and future).” Charles Stivale, Gilles Deleuze Key Concepts (Montreal and Kingston: McGuill Queen’s University Press, 2005).Ibid., 144.6 - Deleuze, Cinema 2: The Time-Image, 156.7 - Iils Huygens, “Deleuze and Cinema: Moving Images and Movements of Thought,” Online Magazine of the Visual Narrative, no. 18 (2007), http://www.imageandnarrative.be/inarchive/thinking_pictures/huygens.htm.8 - Irena Latek, “4D Tool for Analysing, Interpreting and Conceiving Urban Spaces. Moving Collage,” in The Ur-ban Project: Architectural Intervention in Urban Areas (Transactions on Architectural Education), Delft School of Design, EEAE Transactions on Architectural Education 39 (Delft: TU Delft, 2009), 178–179.

Cátia Sofia Viana Ramos

86Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

O laboratório de representação 4D na pesquisa da ideia de cidade O vídeo converte-se em documento da cidade, instrumento de investigação e projecto

arquitectónico. Assume-se como meio auxiliar na interpretação da evolução da cidade, para observação e formulação de comentários críticos. O vídeo é um ensaio crítico em si mesmo. É neste sentido que se imiscui paralela e complementarmente à investigação acima mencionada, sobre a ideia/forma da cidade Guarda, tornando-se determinante para uma reflexão da Guarda na contemporaneidade. Na actualidade, perseguir a ideia de cidade como procedimento colectivo e prospectivo, englobando a especificidade das suas narrativas internas, implica, inevitavelmente, uma resposta política.

A mitigação da ideia de cidade, dentro do envelope do urbano, torna marginal a exacerbação da vida colectiva, a reafirmação do seu sentido político e os processos democráticos não endereçados exclusivamente aos ciclos de produção e consumo. Em 1974, Lefebvre constitui o urbano como espaço da produção social, onde tem lugar a reprodução das relações de produção (sociais e do poder)9. Tais relações certificam, em parte, o esvaziamento do potencial gregário e cultural da cidade, do direito à cidade10 como prática social e comunitária. Mas, a cidade compreende uma multiplicidade de valores que não se esgotam numa única premissa. Ela possui uma identidade colectiva, resultado desta construção no tempo-longo e que determina a sua especificidade histórico-geográfica, sócio-cultural e político-administrativa. É ao encontro desta ideia multíplice de cidade que Vittorio Gregotti11 coloca na representatividade da arquitectura o papel mediador entre o corpo social da cidade e as suas condições físico-geográficas. E é pela arquitectura que se dá a idea ou eidos, leia-se forma ou formato12 à polis, que vive pela existência permanente de uma esfera pública e de um espaço público13.

O laboratório de representação 4D como projecto em arquitectura Procurar a ideia/forma da cidade subentende a adopção de um pensamento crítico,

evidenciando os modos como a arquitectura faz cidade. Aqui situa-se a pertinência do laboratório de representação 4D, do vídeo digital, como projecto arquitectónico. Projecto arquitectónico surge como análise e reflexão, modo particular de conhecer e de dar a conhecer, é um saber que tem uma finalidade em si mesmo, actuando sobre o concreto14.

Ao escrutinar a forma urbana da Guarda, no tempo-longo, procuramos os sinais de uma vontade colectiva que determinou a sua constituição. A forma da cidade é também a “forma da sua política, os sinais de uma vontade”15. A arquitectura da cidade é entendida como permanência física da vida colectiva, da sua história humana, como estrutura/forma urbana que realiza o social. Deste modo, para atingir a compreensão dos factos urbanos da Guarda, ou seja, da sua arquitectura, é necessária a adopção de um quadro temporal lato, não como metodologia histórica, mas como organização diacrónica imprescindível para o seu entendimento. Analisamos as transformações da cidade - mutação, crescimento, destruição - em correlação com o que existia previamente, legitimando cidade como permanência16. Como Aldo Rossi refere, não só “A forma da cidade é a forma de um tempo da cidade; e existem muitos tempos na forma da cidade.”17 como “en la ciudad hay un antes y un después; esto significa reconocer y demonstrar que a lo largo de la coordenada temporal

9 - Henri Lefebvre, The Production of Space (Oxford: Blackwell Publishers, ldt, 1991).10 - Henri Lefebvre, “The Right to the City,” in Architecture Culture 1943-1968: A Documentary Anthology (Nova Iorque, 2007), 428–36.11 - “È ben evidente, cioè, che, specie ma no solo nella cultura europea, le «idee di città» (cosmologiche, ar-chitettoniche, religiose o di rappresentazione dei poteri democratici o assoluti) si sono, sempre, incrociate con le proprie condizione insediative, specie nel momento della loro fondazione, e e si sono sviluppate affrontando nello stesso tempo le condizione empiriche, climatiche, di natura di terreni, di accessibilitá e di sicurezza che si presentavano. Si può anzi dire, cioè, che il disegno urbano [a arquitectura] sia stato una continua mediazione critica tra fundamenti storici della nostra disciplina [arquitectónica], i principî insediative elaborati dal corpo sociale e le condizione di esistenza geografica della città.” Vittorio Gregotti, Architecttura e postmetropoli (Torino: Giulio Einaui editore, 2011), 57.12 - Hannah Arendt, A Condição Humana, Antropos (Lisboa: Relógio d’Água, 2001), 187.13 - Ibid., 69.14 - José Valdivia, La ciudad de la arquitectura : una relectura de Aldo Rossi (Barcelona: Oikos-Taus, 1996), 186.15 - Aldo Rossi, A Arquitectura da Cidade, 2ªed. (Lisboa: Edições Cosmos, 2001), 241.16 - “… as cidades permanecem sobre os seus eixos de desenvolvimento, mantêm a posição dos seus traçados, crescem segundo a direcção e com o significado de factos mais antigos que os actuais, factos esses muitas das vezes remotos.”Ibid., 76.17 - Ibid., 80.

87Cátia Sofia Viana Ramos

estamos situando fenómenos que son estrictamente comparables y que por sua naturaleza son homogéneos.”18. A continuidade urbana é feita de matéria validada pela continuidade histórica da acção humana. Compreendemos que a cidade é marcada por fases sucessivas de crescimento, sendo que é no presente que se realiza a compreensão do real que constitui o processo de desenvolvimento histórico.19

Recorrer ao vídeo, à montagem como investigação torna possível experimentar e conceber, extrinsecamente ao objecto de estudo, alcançar o processo político-histórico-material da construção da Guarda. Descodificando as relações tempo-forma (pelo recurso às imagens-tempo), tornamos visíveis, através da montagem e movimento, as idiossincrasias da forma urbana da Guarda, criamos uma ferramenta auxiliar na decifração do seu palimpsesto. Contudo, as imagens-tempo, melhor dizendo, as imagens-forma, carregam consigo falsas continuidades. A continuidade temporal retratada em movimento corresponde a visões seccionadas, cortes temporais sucessivos, obtidos, como já referimos, pela investigação urbana e pelo desenho tridimensional como exercício de reconstituição material da cidade.

Meios de representação, organização, técnicas e estrutura Para a concretização do vídeo digital partimos da criação de um “substituto tridimen-

sional” da cidade materializado em 16 modelos digitais georreferenciados. No decurso da investigação foi possível assegurar a construção de quatro modelos de reconstituição da cidade anteriores ao século XX — período romano, século XII, o século XIII a XV e século XVI ao século XVIII —, e a partir do século XX fixar as transformações da cidade por década — de 1900 a 2010 — em 12 modelos.

Figura 2. Renderização do modelo tridimensional da Guarda da década de 2010.

Os modelos são editados num software de edição de vídeo, para que possam emular o desenvolvimento da cidade da Guarda desde a sua fundação romana até ao ano de 2010. A dinâmica temporal é absorvida e explicada em movimento20, compreendida pelo uso da

18 - Aldo Rossi, “Los Problemas Metodológicos de La Investigación Urbana,” in Para Una Arquitectura de Tenden-cia: Escritos: 1956-1972, Arquitectura (Barcelona: Gustavo Gili, 1977), 172. 19 - Rossi recorre ao entendimento Gramsciano da história como matéria, como condição hiperestésica, pro-cesso de construção do real. A continuidade urbana é apoiada pela matéria, ou seja, na continuidade histórica da acção humana sobre a cidade, a continuidade de um pensamento e cultura. Daqui entendemos a natureza da construção da cidade como um processo não finito. Valdivia, La ciudad de la arquitectura : una relectura de Aldo Rossi, 213.20 - Latek, “4D Tool for Analysing, Interpreting and Conceiving Urban Spaces. Moving Collage,” 2009.

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montagem como processo de selecção e coordenação dos modelos/momentos estudados. A tradução do processo construtivo da cidade é consequência da síntese de imagens “renderizadas” digitalmente, que explica a contínua evolução das estruturas da cidade e, as transformações realizadas. Dispomos sequencialmente os modelos tridimensionais, simulando o movimento evolutivo da cidade. Em cada período temporal, damos destaque aos factos urbanos mais significativos, entendidos como elementos polarizadores e estruturantes na cidade. Deste modo, a realização do vídeo compreende dois momentos constitutivos. O primeiro explora tridimensionalmente a evolução da cidade período a período, dirigindo-se à especificidade orográfica da cidade e à relação que estabelece com a arquitectura, ou seja, com os factos urbanos. O segundo momento compreende uma visualização de conjunto, recorrendo a uma técnica de edição de imagem chamada stopmotion21, na qual a partir de uma vista em planta, observamos, de forma diacrónica e contínua, o processo de construção da cidade.

Figura 3. Video frame do crescimento urbano na década de 1980, salientando a nova construção a escuro. Vista em planta.

Resultados preliminares O laboratório de representação 4D valida assim a condição e especificidade histórico-

geográfica da Guarda. No vídeo, a aproximação à orografia da cidade permite compreender as condições que fazem com que a Guarda partilhe dos factos que caracterizam a civitas romana do século I, no que nos é dado a conhecer pela história e pela arqueologia, na manutenção dos sentidos da viação romana e pela permanência genética da civitas. Pela excentricidade geográfica da situação da civitas romanas face à civitas medieval, atingimos as razões determinantes na formalização, permanência e crescimento da Guarda. O renascimento da cidade foi assegurado pela posição de equilíbrio entre os diversos poderes da sociedade medieva — militar, religioso, económico . Poderes declarados fisicamente pelas muralhas e pela definição dos espaços centrais da cidade — Praça de São Vicente e Praça de Santa Maria do Mercado. Compreendemos como as igrejas e conventos — formas do poder religioso, — contribuem na definição de centralidades, tornando-se elementos primários na génese da forma urbana da Guarda. Na Idade Moderna assimilamos a concepção de novos

21 - Stopmotion é uma técnica de animação que parte de fotografias do real (aqui modelos virtuais, tridimensio-nais, observados em planta) a partir do qual conseguimos criar foto a foto (modelo a modelo) a impressão de movimento (o efeito de construção da cidade ao longo do tempo).

Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

89Cátia Sofia Viana Ramos

programas (Hospital da Misericórdia, Paço e Seminário Episcopal) e a estruturação da nova centralidade, a Praça Velha.

Figura 4. Video frame do crescimento urbano (séc. XVI-XVIII), salientando os elementos estruturantes e polarizadores da cidade.

No que diz respeito ao crescimento recente da cidade, o vídeo patenteia o processo de dispersão urbana desencadeado a partir dos anos 60, concomitante com a operacionalidade dos planos de ordenamento urbanísticos. Observamos o desenvolvimento da forma urbana da cidade associado à implementação e execução dos Ante-Planos de Urbanização de 1947 e 1963, da Guarda e de São Miguel da Guarda, cujas áreas se esgotam em momentos distintos, 1970 e 1990, respectivamente.

O desenvolvimento da cidade, no curso do século XX, patenteia as especificidades inerentes ao seu crescimento, as quais traduzem, não só a excepcionalidade do espaço nuclear da cidade, como o processo temporal, métodos e padrões de organização espacial patentes na Guarda contemporânea. O período retratado pelo vídeo expressa, nomeadamente a partir de meados do século XX, a celeridade de transformação da cidade, concretizada na transformação das acessibilidades, no incremento e variedade dos programas urbanos, assim como os padrões físicos e funcionais que a constituem. Tal desenvolvimento dirige-se à vertente sul da cidade, absorvendo o espaço outrora da civitas romana, e evidencia a relação tensa com S. Miguel da Guarda, esta última criada a partir da implementação da linha de caminho-de-ferro. Salientamos que, subjacente à transformação da forma urbana da Guarda, em especial durante a segunda metade do século XX, está patente a acção dos planos de ordenamento espacial cuja análise da sua execução, no âmbito desta investigação, ajudam a validar e a compreender a forma urbana deles resultante. Falamos dos já referidos Ante-Plano de Urbanização da Guarda (1947) e Ante-Plano de Urbanização de São Miguel da Guarda (1947/63) e os planos subsequentes: Plano Geral de Urbanização da Cidade da Guarda (1974), Plano Director Municipal da Guarda (1994), Plano Estratégico da Guarda (1996) e o Plano de Pormenor do Parque Urbano do Rio Diz (2005).

Perspectivas de desenvolvimento, cenários futuros Se o vídeo digital, concebido como laboratório de representação 4D, se explica e justifica

a partir da investigação sobre a cidade da Guarda, ele também se torna em instrumento pedagógico sobre o crescimento da cidade. E o trabalho de modelação tridimensional realizado para a construção do vídeo torna-se matéria imprescindível para o desenvolvimento

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de outros instrumentos. Se na investigação em arquitectura, o vídeo digital é auxiliar no debate sobre a cidade

como construção projectual, como processo simbiótico de conhecimento, é a partir da modelação 3D que podemos expandir a ideia de projecto, tornando-se este num plano, um acto de previsão, antecipação e organização dos meios disponíveis às possibilidades contemporâneas. Os modelos tridimensionais são para o efeito base, maquetes virtuais para a simulação virtual 4D, para a experimentação de cenários alternativos, hipóteses acerca da ideia/forma urbana da Guarda. Na actualidade, e em virtude do progresso desencadeado pela impressão 3D, quer os modelos próprios ao crescimento da Guarda, quer os seus cenários alternativos, podem tornar-se palpáveis fisicamente.

Figura 4. Impressão 3D de uma maquete parcial do centro histórico da cidade da Guarda. Cortesia Opo’Lab - Oporto Laboratory of Architecture and Design, 2014.

A modelação 3D da cidade abre também caminho à exploração de outras ferramentas no âmbito do design multimédia. A tridimensionalização da cidade pode ser explorada pela criação de mapas infográficos22. A partir dos modelos existentes pode ser agregada mais informação sobre a cidade (dados de carácter estatístico: demografia, n.º de fogos, cadastro, etc; e outros dados digitais, como por exemplo: orto fotos, fotos de edifícios, etc.). Tais mapas infográficos podem sustentar a construção de uma base de dados sobre a cidade, organizada por escala e em sequência temporal (timeline). A versatilidade dos modelos tridimensionais da cidade permite ainda a sua integração em software GIS (sistemas de informação geográfica), capaz de se transformarem em elementos auxiliares à gestão urbana.

22 - A forma de apresentação da informação online abriu caminho para outras formas de apresentação da infor-mação, sendo que os mapas interactivos foram uma das formas que mais evoluiu. Tais mapas são um dos modos mais eficientes de apresentar informação convidando a uma interacção com o utilizador. Podem igualmente mostrar relações entre diferentes tipos de informação a qual nem sempre é possível em meios convencionais de representação.

Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

91Cátia Sofia Viana Ramos

Referências Bibliográficas

Arendt, Hannah. A Condição Humana. Antropos. Lisboa: Relógio d’Água, 2001.Deleuze, Gilles. Cinema 2: The Time-Image. Translated by Hugh Tomlinson and Robert Galeta. London: The Athlon Press, 1989.Gregotti, Vittorio. Architecttura e postmetropoli. Torino: Giulio Einaui editore, 2011.Huygens, Iils. “Deleuze and Cinema: Moving Images and Movements of Thought.” Online Magazine of the Visual Narrative, no. 18 (2007). http://www.imageandnarrative.be/inarchive/thinking_pictures/huygens.htm.Latek, Irena. “4D Tool for Analysing, Interpreting and Conceiving Urban Spaces. Moving Collage.” In The Urban Project: Architectural Intervention in Urban Areas (Transactions on Architectural Education), Delft School of Design., 177–85. EEAE Transactions on Architectural Education 39. Delft: TU Delft, 2009.———. “Moving Collage or «Image-Temps» in Instrumental Exploration of New Modes for Analyzing, Interpreting and Conceiving Urban Spaces.” Changes of Paradigmas: In the Basica Understanding of Architectural Research, eaae| arcc conference copenhagen, 2 (2008): 184–97.Lefebvre, Henri. The Production of Space. Oxford: Blackwell Publishers, ldt, 1991.———. “The Right to the City.” In Architecture Culture 1943-1968: A Documentary Anthology, 428–36. Nova Iorque, 2007.Rossi, Aldo. A Arquitectura da Cidade. 2ª ed. Lisboa: Edições Cosmos, 2001.———. “Los Problemas Metodológicos de La Investigación Urbana.” In Para Una Arquitectura de Tendencia: Escritos: 1956-1972, 171–83. Arquitectura. Barcelona: Gustavo Gili, 1977.Stivale, Charles. Gilles Deleuze Key Concepts. Montreal and Kingston: McGuill Queen’s University Press, 2005.Valdivia, José. La ciudad de la arquitectura : una relectura de Aldo Rossi. Barcelona: Oikos-Taus, 1996.

AgradecimentosCentro de Estudos Ibéricos (CEI)Fundação para a Ciência e Tecnologia FCT- SFRH/BD/76848/2011Departamento de Arquitectura da FCTUCCentro de Estudos Sociais (CES) Júlia Utime, Arquitecta e Designer Multimédia.

Referências*Aldo Rossi, A Arquitectura da Cidade, 2ª ed. (Lisboa: Edições Cosmos, 2001).

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Propostas de regeneração da atividadecomercial no atual cenário de crise

Eva Sofia Loureiro de Gouveia Lemos BeloUniversidade de Zaragoza

1. IntroduçãoO Comércio e a Cidade são dois elementos indissociáveis da vida urbana. As Cidades

criam as condições para a instalação do Comércio e as mesmas foram geradas pelo próprio Comércio, que está no centro de seu desenvolvimento e na origem das suas crises.

O Comércio não só alimenta o local mercantil e das trocas comerciais, como também gera um espaço de encontro e circulação de pessoas, de animação e festa. As Cidades são feitas pelas pessoas, que nela residem, que nela se deslocam e é o Comércio que estrutura o mapa e a geografia urbana das nossas Cidades.

No período Pós-Guerra, na consequência das filosofias urbanísticas inspiradas na Carta de Atenas, verifica-se que o Comércio aparece como uma atividade associada ao processo de urbanização, dependente do que a indústria lhe proporcionava e localizado nos núcleos urbanos, sem qualquer regulamentação.

As medidas de planeamento urbano, prevendo instrumentos de planeamento comercial só aparecem mais tarde em resultado da própria degradação dos espaços urbanos, resultado do processo de crise intrínseco ao Comércio, que por vários motivos deixa de exercer o seu poder de atração.

A partir do momento que se começa a ter consciência do abandono e da desertificação dos centros urbanos e/ou históricos, do encerramento e da degradação do comércio tradicional e de outos fenómenos posteriores, associados a estes, como a apropriação do espaço por grupos indesejados, o vandalismo e a criminalidade, começa-se a verificar políticas urbanas de reabilitação do edificado, campanhas para Habitação Jovem nos centros históricos e a qualificação de equipamentos e infra-estruturas (João Barreta, 2007).

2. Os Primeiros Processos de Regeneração Urbana com Cariz ComercialQuando e onde aparecem os primeiros processos de regeneração urbana tendo em conta

as dinâmicas comerciais?A consciência da importância da revitalização urbana associada a programas de

regeneração urbana que incluem a área comercial, bem como a promoção e constituição de parcerias para a sua revitalização urbano-comercial, foi sentido ao nível europeu, considerando as primeiras ocorrências nos EUA. (Carlos Balsas, 2002).

O processo de revitalização urbana, foi resultado do processo de suburbanização que levou o comércio para as periferias, seguindo-se a habitação, os postos de trabalho e, mais tarde, o lazer.

As parcerias que surgem da cooperação, tem em comum a noção de que o envolvimento das partes resulta no valor acrescentado para o todo e da importância da implicação dos privados nas políticas e nos investimentos públicos.

2.1. Áreas de Desenvolvimento Económico ou Business Improvement Districts_BidOs Special Assessment Districts (SAD) foram a primeira versão dos Business Improvement

Districts (BID), cuja tradução em português aponta para “Áreas de Desenvolvimento Económico” (Barreta, 2012)

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O seu objetivo era tornar o centro da cidade num local atrativo, dinâmico, competitivo e viável do ponto de vista económico, em parceria público-privado.

As suas organizações são semi-privadas, não têm fins lucrativos e estão legitimadas para definir e cobrar uma taxa aos proprietários de imóveis comerciais, de uma determinada áreas, com o propósito de prestar, em contrapartida, um conjunto de serviços adicionais àqueles que já são assegurados pela Administração Pública Local.

A ideia central consistiu em criar um imposto obrigatório ou uma taxa adicional pelas empresas, para financiar melhorias no seu bairro (Sexton et al.,2011).

As principais vantagens para os comerciantes deste tipo de gestão são o usufruto de serviços públicos suplementares à sua atividade, a sua participação na defesa dos interesses do centro, a obtenção de economias de escala resultantes da cooperação, o acesso a financiamento conjunto e a partilha de informação, investigação e planeamento.

Os fundos obtidos são canalizados para melhorar serviços básicos, como também para aplicação no mobiliário urbanos, iluminação pública, espaços verdes, limpeza das ruas e das fachadas, a segurança, o estacionamento e utilização para técnicas de marketing, como as campanhas publicitárias conjuntas (Carlos Balsas, 2002).

2.2. Main Street Program - Programa de Rua CentralMais próxima do conceito de desenvolvimento integrado, criou-se também nos EUA, o

Programa de Rua Central - Main Street Program (MSP), onde a comunidade pode implementar a sua própria estratégia de revitalização comercial, desde que baseada nas áreas do programa (a reestruturação económica, a organização, a promoção ou o design).

O programa procura criar uma entidade, constituída pelos proprietários privados da zona, de modo a implementarem iniciativas e alterações progressivas que permitam criar um meio agradável e atrativo para atrair as pessoas a voltar ao centro da cidade e assim se iniciar o processo de revitalização da zona. (Francaviglia,1996)

O objetivo é atrair os visitantes a voltar ao centro, recorrendo a diversas formas e meios de fomentar a compra, o lazer e a permanência, usufruindo do espaço e das condições que o mesmo tem para oferecer. É composta por um conselho de administração com conselho executivo, gestor de programas e grupos de trabalho (áreas específicas) competindo-lhes definir a estratégia de intervenção, angariar financiamentos e coordenar a participação de voluntários (Carlos Balsas, 2002).

O National Trust for Historic Preservation (NTHP,n.d) criou este programa (em 1977, para ajudar as comunidades americanas a conservarem os seus recursos cívicos, económicos e o seu património histórico), que tem vindo a ser aplicado com sucesso em várias cidades de diferentes estados norte-americanos. Trata-se de um programa desenvolvido a nível nacional, mas que se adapta às necessidades e oportunidades das comunidades locais assente em quatro princípios que são a restruturação económica, a organização, a promoção e o design. A restruturação económica tem como objetivo reforçar a base económica existente e, desta forma, captar novos investimentos para diversificar a base económica da zona. Este desenvolvimento pretende ocupar os espaços urbanos e estabelecimentos vazios destinados a comércio, de forma a impulsionar a sua rentabilidade. O objetivo passa por criar um espaço comercial competitivo que responda à necessidade dos consumidores. (NTHP, n.d.)

Neste programa a organização é fundamental visto ser a ponte que estabelece a cooperação necessária para a construção de parcerias entre os vários grupos com influência na zona. Incentivando os intervenientes a trabalhar para o mesmo objetivo o programa consegue, de facto, criar uma gestão efetiva do local.

(NTHP, n.d.) O princípio do Design visa melhorar a aparência física da área comercial, recuperando

edifícios, apoiando novas construções e desenvolvendo regulamentos de gestão do espaço público e privado. A criação de um ambiente seguro e a melhoria da imagem da rua principal.

As promoções, os eventos e as campanhas de marketing permitem vender a imagem e a promessa de uma área comercial com preços e espaços atrativos aumentando, assim, o número de potenciais investidores. (NTHP, n.d.)

Eva Sofia Loureiro de Gouveia Lemos Belo

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2.3. Análise Comparativa dos dois Casos Norte-AmericanosDois exemplos conhecidos pelo seu sucesso nos Estados Unidos foram a implementação

do BID em Philadelphia (Pennsylvania) e do MSP em Providence (Rhode Island).A cidade de Philadelphia foi das que mais sofreu com os resultados negativos da sub-

urbanização, após a Segunda Grande Guerra. O seu centro histórico perdeu população, empregos, atividade económica e progressivamente sofreu uma espiral de declínio urbano, marcada pela decadência física dos seus edifícios, pela instabilidade social e pela insuficiência de recursos financeiros para a administração da cidade.

No âmbito do BID foi criada, em 1990, a Center City District (CCD), uma organização de carácter privado, sem fins lucrativos, responsável por atividades de manutenção, de segurança pública e de hospitalidade e por programas promocionais no centro da cidade. Para além do auxílio aos que residem ou visitam esta área, desenvolveu também programas de apoio aos «sem-abrigo». Esta instituição reconstruiu e reabilitou o espaço público existente, repavimentando passeios, instalando mobiliário urbano e adornando as ruas com árvores. O objetivo foi converter o centro de Filadélfia, no 4º centro de cidade mais limpo, seguro e atrativo dos Estados Unidos da América.

A experiência tida na cidade de Providence é um exemplo de sucesso da aplicação do The Main Street Program. O centro urbano de Providence também sofreu grandes transformações nos últimos 30 anos, com as consequências da suburbanização americana do pós-guerra. Na década de 90 conseguiu estabelecer parcerias de revitalização e desenvolvimento urbano com o sector privado, que mudou, radicalmente, a imagem da cidade, atraindo novos residentes e visitantes. Em 1995, a área comercial da Broad Street era caracterizada por muitos estabelecimentos comerciais degradados. Para combater esta situação foi criada uma organização sem fins lucrativos, a Southside Broad Street Main Street Program. Esta organização teve como objetivo primordial a revitalização da área comercial numa área de intervenção que incluiu o corredor comercial radial à cidade, com cerca de 4 Km, uma população de 45 mil residentes e 231 atividades económicas.

Figura 1 – Quadro Comparativo dos diferentes casos norte-americanosFonte: adaptado (Balsas, 2002)

Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

95Eva Sofia Loureiro de Gouveia Lemos Belo

3. Cooperações de gestão Territorial na EuropaNa Europa também se verificou o surgimento destas filosofias da gestão comercial

centralizada e a sua aplicação focou-se em estratégias de coordenação de recursos para se atingir um objetivo comum.

O objetivo foi desenvolver, gerir e promover as áreas públicas e privadas nos centros das cidades, com vista a retirar benefícios para todos os intervenientes, constituindo-se como uma resposta integrada, através de parcerias público-privadas. (João Barreta, 2007).

Exemplos destes programas são o Centro de Gestão do centro da cidade, designado por Town Centre Management (TCM) na Grã-Bretanha, a Associação, em França (caso de Neuville), a Associação (na Áustria) (caso de Salzburg), a Associação de comerciantes em Itália (caso de Cuneo), etc.

A ação destes programas concentra-se em redor da coordenação, da facilitação do diálogo e da comunicação (de modo a manter a parceria ativa) e a definição de prioridades com um plano de atuação.

As sinergias geradas pelos atores envolvidos, garantem a promoção do comércio e satisfação do consumidor, um maior policiamento e integração da habitação em áreas comerciais, o melhoramento do ambiente das ruas e das fachadas das lojas, um maior marketing da cidade e melhoramento da sinalização e eficiência estacionamentos e bons transportes públicos.

A carência de fluxos de financiamento sustentáveis e a impossibilidade de solicitar contributos financeiros, com algum carácter de obrigatoriedade aos empresários/comerciantes locais foram as principais dificuldades com que se deparam este tipo de programa.

Os programas definidos por “Asociación” receberam financiamento não só do sector público, mas também do sector privado. Como se pode observar pelo quadro seguinte, cada país indicado obteve um financiamento proveniente de distintas entidades, para a implementação destes programas, alguns das quais contam com o apoio público na ordem dos 70%, (como no caso da Bélgica) e outros (como o caso da Grã-Bretanha) contam com a mesma percentagem de apoio do sector privado.

Figura 2 – Sistemas europeus de financiamento para La Asociación. Fonte: Instituto Cerdá

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4. As Primeiras Preocupações na Península Ibérica

4.1 Perante a tendência de diminuição do consumo, em Espanha, distintos municípios e associações de comerciantes desenvolveram iniciativas relacionadas com a gestão dos designados “Centros Comerciales Abiertos” e a implantaram planos locais de desenvolvimento e monotorização do equipamento comercial existente nos centros urbanos.

O objetivo destas iniciativas são potenciar o consumo no comércio de proximidade e preparar o tecido comercial urbano face às necessidades presentes e futuras da cidade, determinando ações em prol do comércio urbano durante um determinado período de tempo.

As iniciativas relacionadas com a implementação do conceito associado ao Centro Comercial Aberto conta com subvenções provenientes do Ministerio de Indústria, Turismo y Comercio, onde consta a definição do conceito e o tipo de atuações que podem ser financiadas, nos termos como evidencia o quadro seguinte.

Fig. 3 – Definição de Centro Comercial Aberto para fins de financiamentos (Fonte: Instituto Cerdá)

As distintas Comunidades Autónomas espanholas (à exceção do País Basco e da Navarra) são beneficiárias deste programa de financiamento e para ele são tidos em conta fatores, como população, número de estabelecimentos comerciais e os dados relativos à população ativa no sector do Comércio.

Fig 4 – Distribuição dos financiamentos no território espanhol ( Fonte: Instituto Cerdá)

Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

97Eva Sofia Loureiro de Gouveia Lemos Belo

Os planos locais de desenvolvimento e monotorização do equipamento comercial existente nos centros urbanos implicaram a interveniência de distintas entidades públicas e privadas, como as câmaras de comércio, as associações de comerciantes, os governos Autonómicos e as câmaras municipais. Estes instrumentos de desenvolvimento para áreas comerciais estavam previstos em instrumentos de gestão territorial, acordos e diretrizes ao nível autonómico. Na elaboração destes planos teve-se em conta a análise da situação atual da cidade, os aspetos que podem interferir na sua estratégia comercial, a fim de utilizá-la como ferramenta, que possibilite traçar um plano de ações para a dinâmica do setor.

A estrutura dos planos espanhóis é semelhante entre si e estruturam-se, geralmente, em análise da oferta, análise da procura comercial, balanço comercial, análise por zonas urbanas, propostas e em atuações. Os referidos planos propõem medidas específicas para todos os bairros da cidade, classificando os mesmos em zonas urbanas comerciais, conforme as suas características ou necessidades.

Fig 5 – Mapa do Plan Local de Equipamiento Comercial de Zaragoza com a distribuição das áreas comerciais. (Previsto no instrumento de gestão territorial, designado por Plan General de Equipamiento Comercial de Aragón,

aprovado pelo Decreto 171/2005, de 6/09 do Governo de Aragão, bem como no Acuerdo para el Fomento Económico y Social-AFES (2008-2011) assinado pela Câmara Municipal de Saragoça, associações de comerciantes

e entidades sindicais).

Essas zonas podem ter distintas denominações, como zonas urbanas comerciais de foco de atração (onde deverão ser implementadas medidas de dinamização e promoção comercial), zonas urbanas comerciais periféricas (onde deverão ser criados de circuitos de compra) e zonas urbanas comerciais de baixa densidade de comércio de proximidade, de acordo com o estabelecido para a cidade de Saragoça.

Outras práticas observadas no território espanhol foram iniciativas pontuais levadas a cabo por associações de comerciantes ou câmaras municipais, com o objetivo de criarem propostas de aplicação rápida, que funcionam como linhas orientadoras ou guias, com base num estudo de um determinado território, à semelhança das análises elaboradas nos planos, atrás referidos, (com base em inquéritos realizados aos consumidores e aos comerciantes, numa análise DAFO do tecido comercial em estudo e com base num balanço comercial).

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4.2 O comércio esquecido na regulamentação urbanística em PortugalNa década de 90 em Portugal, assistiu-se ao primeiro grande esforço de planeamento do

território, especialmente à escala municipal, através da implementação dos Planos Diretores Municipais, que não estabeleceram critérios relativos ao sector comercial.

O comércio retalhista, a par das restantes atividades económicas do sector terciário, raramente, aparece abarcado na classe de equipamento (destinado aos serviços públicos de natureza social), sendo sistematicamente esquecido. Apontam-se, quando muito, intenções de dotar o equipamento comercial a determinadas áreas residenciais ou pólos equilibradores, de acordo com perspetivas que tendem a reforçar o status quo, que raramente concebem o enquadramento urbano e urbanístico – de novas expressões retalhistas como os hipermercados, ou grandes centros comerciais (José Alberto Fernandes, 1994).

Foi já neste contexto de maior preocupação com as questões relacionadas com o urbanismo comercial, que em Portugal surgiram os primeiros Projetos Especiais de Urbanismo Comercial (PEUC), no âmbito do ProCom, resultado dos esforços feitos pela Direcção Geral do Comércio, que permitiu elaborar candidaturas para a regeneração comercial dos centros de cidade, ou para áreas delimitadas (onde a concentração de estabelecimentos permitia uma mais fácil viabilização do conjunto). As primeiras candidaturas foram aprovadas em Setembro de 1995 para Matosinhos e para Coimbra, sendo em Julho de 1996 considerado este, o primeiro Estudo Global em urbanismo comercial.

As experiências tidas nestes programas (QCA II e do programa do URBCOM do QCA III) deixaram indicações sobre a realidade vivida e segundo João Barreta (2011) na análise a estes projetos é de destacar os seguintes impactos positivos:

- O relançamento dos centros de comércio face à maior visibilidade que os projetos lhe conferiram.

- A requalificação dos espaços públicos. - A beneficiação da imagem comercial. - O interesse crescente das novas formas de comércio pelo centro das cidades. - Maior recetividade (por parte das estruturas associativas e lojistas) para o alargamento

dos horários de funcionamento, entre outros.

5. Estudos Recentes Sobre Resiliência Espacial e Comercial A recente recessão socioeconómica levou a que o estado do comércio de proximidade e

merecesse uma análise e uma atenção singular por distintos investigadores europeus. Estes estudos pretenderam verificar o impacto em distintas estruturas comerciais, desde o impacto tido nos centros comerciais, nos bairros ou vias de cariz comercial, onde predominam as lojas do pequeno comerciante.

Alguns estudos demonstraram que em alguns centros urbanos o comércio de proximidade têm tido uma maior capacidade e resiliência a esse impacto, pelas suas características, do que muitos centros comerciais face à multiplicidade de centros semelhantes e ao tipo de cliente. (Burco H. Ozuduro, 2012)

Outras análises revelam a tendência para o “falecimento” de alguns centros comerciais. Por outro lado, algumas teses têm demonstrado que os referidos centros comerciais têm

o seu papel e a sua importância pela oferta que trazem em zonas urbanas periféricas dos centros urbanos, mais carenciadas e por responder à procura dos grupos mais carenciados, defendendo que as distintas vertentes comerciais hoje existentes desempenham um papel importante na sociedade contemporânea e do desenvolvimento comercial no território. Por isso, defendem um planeamento urbano baseado numa visão sustentável em distintas escalas e baseada na interdependência das distintas áreas comerciais. (Mattias Kärrholm, 2012)

Os últimos estudos introduzem, inclusive, o manuseamento de determinadas ferramentas que permitem compreender o que se passa com as estruturas comerciais ou áreas urbanas, predominantemente comerciais e de averiguar a sua capacidade, a sua resiliência e a acessibilidade da população a esses espaços.

Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

99Eva Sofia Loureiro de Gouveia Lemos Belo

Fig 6 – Ferramenta da GEOT que permite conhecer a distância e a acessibilidade de cada bairro aos distintos equipamentos comerciais. Fonte: GEOT- Universidad de Zaragoza

Considerações FinaisA atual grande recessão socioeconómica obriga a novos desafios, a um debate profundo

sobre as políticas urbanas vigentes e a uma nova forma de pensar o território, capaz de criar soluções que permitam dinamizar as áreas carenciadas e combater as fragilidades sociais.

Assiste-se ao abandono de algumas atividades económicas e ao fraco investimento do sector comercial em Portugal e em Espanha com repercussões em todo o território ibérico. Esta situação conduz à desertificação e marginalização dos próprios centros urbanos, acarretando nefastas consequências sociais.

O estudo e a experiência obtida com as primeiras práticas de revitalização urbana, tendo em conta a regeneração das áreas comerciais é bastante importante nesta análise para podermos compreender as experiências tidas em outros territórios e conhecer a forma como foram implementados estes projetos e as entidades intervenientes nesses processos.

A análise das práticas realizadas em Espanha no âmbito da interação entre as distintas instituições públicas e privadas merece um olhar atento pelas semelhanças e relações com o território vizinho e pelo maior paralelismo com estruturas institucionais.

O contacto estabelecido com os artigos científicos sobre esta matéria é primordial, pela observação e pelos novos indicadores que relacionam o atual estado do tecido comercial urbano, face ao impacto tido pela recente recessão económica na Europa, que revelaram que as distintas vertentes comerciais desempenham um papel importante na sociedade contemporânea e no desenvolvimento comercial do território; que o comércio de proximidade têm tido uma maior capacidade e resiliência ao impacto da crise, (pelas suas características, do que muitos centros comerciais).

Existe também uma nova tendência para defender um planeamento urbano baseado numa visão sustentável, global em distintas escalas e baseada na interdependência das distintas áreas comerciais.

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AgradecimentosA autora agradece o apoio e o reconhecimento oferecido pelo Centro de Estudos Ibéricos a este projeto,

o acompanhamento da tese dada pelo Prof. Dr Eugenio Climent e pelo Prof. Dr Ángel Pueyo da Universidad de Zaragoza e a oportunidade concedida pela Câmara Municipal de Oeiras para execução desta investigação.

Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança

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Estratégias regionais de especializaçãointeligente: oportunidades dereestruturação, desenvolvimento ecooperação territorial no contexto das regiões ibéricas

Ricardo Filipe Ferreira MoutinhoDoutorando em Economia na Universidade da Beira Interior

As Estratégias Regionais de Especialização Inteligente (RIS3) assentam no princípio de que a inovação e a competitividade das regiões fundem-se nos recursos e ativos existentes no seu território, devendo-se concentrar recursos nos domínios e atividades económicas em que exista ou possa reunir-se massa crítica relevante. Sublinha-se, assim, a necessidade de as regiões reavaliarem o seu posicionamento competitivo em função do mercado global e da sua capacidade de afirmação internacional, tendo subjacente o princípio de que ‘não podem ser excelentes em tudo’. Os instrumentos de financiamento concentram-se numa ‘market pool’ – na ordem dos 200 Mil Milhões de Euros – a investir diretamente pela UE em ‘projetos-âncora’, promovidos por consórcios de base local ou regional. A este montante acrescem os 15 Mil Milhões de Euros, previstos no âmbito da Agenda Urbana da UE e destinados a projetos experimentais de inovação e empreendedorismo, a implementar nos municípios inseridos em territórios de baixa densidade.

IntroduçãoNa atual conjuntura, torna-se indispensável identificar e quantificar as vantagens

comparativas de cada município, para a instalação de determinadas fileiras e/ou sectores económicos específicos. Tratando-se da captação de investimentos produtivos poderão ser implementados ‘projetos-âncora’, com impacto estruturante no desenvolvimento de qualquer município, comunidade intermunicipal e/ou região que seja parte integrante da UE. Cada projeto é único, na medida em que procura criar as condições necessárias para a especialização do tecido produtivo – nas fileiras e/ou sectores económicos em que o município consiga reunir massa crítica relevante – potenciando a sua capacidade de afirmação internacional, no contexto do mercado Europeu. O novo paradigma pretende assim contribuir para a integração vertical de cadeias de valor, baseadas nos recursos endógenos e na valorização económica dos ativos materiais e imateriais do território. Esta abordagem pressupõe o incremento das sinergias entre diferentes municípios numa lógica de complementaridade, eliminação de redundâncias e criação de economias de escala, particularmente, no que concerne aos Sistemas Regionais de Inovação. Entre as oportunidades para os territórios de baixa densidade, encontram-se a internacionalização do Turismo em Meio Rural, a afirmação de Portugal enquanto HUB de ensino superior e a valorização económica dos resíduos provenientes da indústria agroalimentar.

Internacionalização do Turismo em Meio Rural Portugal está na moda enquanto destino turístico. Para esta conjuntura favorável,

muito contribuiu a afirmação de Lisboa, Porto e Coimbra enquanto cidades de referência no panorama internacional. A continuidade do ciclo de crescimento, que se tem vindo a

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registar no sector, poderá sair reforçada pela capacidade das regiões rurais em preservarem a autenticidade do seu património histórico, cultural, enológico e gastronómico. As áreas rurais representam 65% da atratividade turística internacional do nosso país, materializada nas Atividades na Natureza (30%), no Touring Cultural e Paisagístico (19%), na Saúde e Bem-Estar (12%) e no segmento Vinhos e Gastronomia (4%). As regiões predominantemente rurais apresentam vantagens competitivas para a captação de receitas turísticas, devido a um melhor ajustamento entre as suas características e as preferências dos mercados emissores. A atratividade dos territórios de baixa densidade é impulsionada pelos segmentos ‘Premium’, uma vez que os mesmos tendem a selecionar destinos turísticos caraterizados por uma menor concentração do parque hoteleiro ‘massificado’. Neste sentido, os territórios rurais representam 88% do potencial de crescimento da procura turística em Portugal, comparativamente às áreas urbanas, que se limitam aos remanescentes 12% para o período compreendido entre 2014 e 2020. O parque hoteleiro está claramente sobredimensionado face ao turismo Sol e Mar, canalizando 41% da oferta de camas para apenas 5% da procura potencial, enquanto a oferta City Breaks aglutina 31% das camas disponíveis (Lisboa 22% + Porto 8% + Coimbra 1%) para satisfazer uma procura potencial de aproximadamente 7%. Em termos geográficos, a oferta deverá especializar-se nos mercados externos cujas motivações para a deslocação a Portugal coincidam com as Atividades na Natureza, o Touring Cultural e Paisagístico, a Saúde e Bem-Estar e o segmento Vinhos e Gastronomia. Os mercados cujo perfil de interesses torna a oferta nacional mais competitiva são o Norte da Europa (Dinamarca, Finlândia, Irlanda, Noruega, Reino Unido e Suécia) e o Centro da Europa (Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda, Polónia e República Checa), representando em conjunto, 62% da procura internacional verificada no nosso país. O Sul da Europa é responsável por 28% da procura externa relativamente a Portugal, mas exige a adoção de uma estratégia de diferenciação ‘value for money’, tomando em consideração a afinidade cultural com os países em causa (Espanha, França e Itália). Apesar das semelhanças no que concerne às características da oferta disponível no seu próprio país de origem, os turistas provenientes do Sul da Europa, têm a perceção de que proporcionamos uma boa relação ‘qualidade/preço’, para além da excelência que nos é habitualmente atribuída ao nível dos Vinhos e Gastronomia. Os turistas do Norte e Centro da Europa consideram que a natureza, o património histórico e a paisagem são os maiores atrativos na escolha de Portugal enquanto destino de lazer. Portugal é considerado um país seguro e pacífico, com uma oferta de alojamentos de qualidade face à concorrência. Os fortes valores culturais e tradicionais portugueses são também muito procurados pelos países do Norte e Centro da Europa. Estima-se que a aposta no desenvolvimento de novos produtos e serviços com posicionamento ‘Premium’ permita aumentar o gasto médio por dia e por pessoa, que se situa atualmente nos 90,0 Euros, para o montante de 140,7 Euros. O Turismo em Meio Rural enfrenta ainda um importante desafio que consiste em combater a sazonalidade, motivo pelo qual é importante a consolidação de uma oferta integrada de atividades de lazer. É expectável que uma maior complementaridade da oferta, abrangendo especificamente os ‘pacotes’ de atividades na natureza, os roteiros culturais e paisagísticos e o desporto aventura, permita aumentar a taxa líquida de ocupação, dos atuais 18% para valores próximos da média Europeia, que se situa nos 25%.

Portugal enquanto HUB de ensino superiorO mercado global de ensino superior encontra-se concentrado em apenas 5 países, que

captam cerca de 70% dos estudantes internacionais, mais precisamente EUA, Reino Unido, Alemanha, França e Holanda. Os restantes 28 países competem pelos remanescentes 30% do mercado, de acordo com dados disponibilizados pelo Eurostat. A excessiva concentração significa que estamos perante um mercado emergente, ainda em rápido crescimento, e que enquanto tal, representa uma importante oportunidade de desenvolvimento para os países periféricos, envelhecidos e desertificados do Sul da Europa. Em traços gerais podemos dizer que Portugal é percecionado internacionalmente como sendo um país seguro, com excelente qualidade de vida e dotado de uma boa rede de cuidados de saúde. Em termos comparativos, Portugal é o 18º país mais seguro numa amostra de 162 países, é o 9º país com maior qualidade de vida num total de 258 países e apresenta o 12º melhor sistema de saúde entre 191 países. Tais indicadores são aferidos pelo Institute for Economics and Peace, pelo World

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Bank e pela World Health Organization, respetivamente. A atratividade de Portugal enquanto Hub de ensino superior é consideravelmente limitada pelo custo excessivo das propinas, pois é o 5º país analisado com propinas mais elevadas, sendo apenas superado pelo Reino Unido, Irlanda, Lituânia e Holanda de acordo com o barómetro Eurostudent. Importa realçar que em 3 dos 21 países analisados, mais precisamente Dinamarca, Finlândia e Suécia, as Instituições de Ensino Superior (IES) não cobram quaisquer propinas. No entanto, o custo de vida para um estudante universitário deslocado é bastante competitivo, uma vez que Portugal é o 10º destino menos oneroso, entre os 21 países considerados, situando-se a ‘meio caminho’ entre os países que integram a amostra disponibilizada pelo Eurostudent. As IES inseridas em territórios de baixa densidade tendem a oferecer propinas sistematicamente mais competitivas, traduzidas numa redução média na ordem dos 31%, face às suas congéneres do litoral. Simultaneamente, as regiões predominantemente rurais proporcionam, em média, um custo de vida 25% mais baixo, em comparação com as áreas urbanas. Em síntese, Portugal encontra-se no mesmo patamar dos países do Leste da Europa no que concerne ao custo de vida, o que possibilita a captação de alunos estrangeiros por intermédio do ganho líquido em termos de poder de compra. As IES portuguesas asseguram uma produção científica por Milhão de Habitantes (1.081) manifestamente superior à generalidade dos países localizados no Leste da Europa (511), encontrando-se inclusivamente num patamar acima do protagonizado pelas suas congéneres do Sul da Europa, incluindo Espanha, França e Itália (890). Importa referir que as IES portuguesas são competitivas no âmbito geográfico da UE, uma vez que estão ligeiramente abaixo da produção científica alcançada pelos países do Centro da Europa (1.193) e apenas consideravelmente distantes dos países do Norte da Europa (2.003). Neste contexto favorável, se o Hub de ensino superior crescer anualmente ao mesmo ritmo (8,32%) que o mercado Europeu ao longo da última década, Portugal conseguiria assegurar uma procura adicional equivalente a 89.335 estudantes estrangeiros por ano letivo, o que corresponde, ‘grosso modo’, a 25% do total de inscritos no ensino superior. A aposta estratégica num Hub de ensino superior permitiria igualmente otimizar o aproveitamento dos recursos humanos e tecnológicos disponibilizados pelas IES localizadas no interior do país. Estima-se que o aumento da população universitária nos territórios de baixa densidade poderia contribuir para atenuar os efeitos da desertificação e do declínio da fecundidade, gerando um saldo demográfico acumulado na ordem dos 169.360 indivíduos, com idades compreendidas entre os 18 e os 35 anos de idade, tendo em perspetiva um horizonte temporal de 6 anos.

Valorização Económica dos Resíduos da Produção VinícolaPortugal é um dos países com mais antiga tradição vinícola, tendo visto nascer a primeira

região demarcada e reconhecida do Mundo, pelas mãos do Marquês de Pombal, corria o ano de 1756. Fazendo a ‘ponte’ para o presente, está previsto que Portugal mantenha o 11º lugar no ranking dos maiores produtores mundiais, com um volume na ordem dos 5,9 milhões de hectolitros. A elevada qualidade dos vinhos Portugueses encontra-se igualmente refletida nas estatísticas, uma vez que Portugal é o 9º maior exportador mundial, sendo atualmente responsável por aproximadamente 3% do vinho consumido em todo o mundo, de acordo com os dados disponibilizados pela International Organisation of Vine and Wine (OIV). No decurso da produção vinícola são gerados diversos subprodutos, cujo tratamento ambiental acarreta custos significativos para os produtores. Por outro lado, quando os resíduos e efluentes resultantes da produção vinícola são lançados diretamente nos solos, desencadeiam situações graves de destruição da produtividade agrícola e de poluição dos aquíferos. No caso específico de Portugal, estima-se que todos os anos são lançadas 188 mil toneladas de resíduos e 1.365 milhões de litros de águas residuais decorrentes da produção vinícola, diretamente no solo ou em aquíferos, sem qualquer tratamento ou preocupação ambiental. Vários estudos científicos demonstram que os subprodutos vinícolas retêm muitos dos compostos bioativos responsáveis pelas propriedades promotoras da saúde humana que caracterizam as uvas em geral e as uvas tintas em particular. Assim, esta matéria-prima, frequentemente destruída, pode ser utilizada em diversas aplicações industriais sob a forma de concentrados vocacionados para a produção de produtos de higiene, cosméticos, suplementos alimentares e fármacos. A concentração média de princípios ativos varia em

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torno de um intervalo compreendido entre os 5,31 g e os 11,74 g por cada Kg de resíduo processado. O preço de mercado das diversas modalidades do extrato a produzir oscila entre os 0,42 �/g e os 73,91 �/g em função da entidade química em causa e do segmento a que se destina. O investimento inicial necessário para a implementação de uma unidade de refino, com capacidade para processar até 2.500 Kg de resíduos por dia, situa-se nos 1.352.861 Euros. Os custos operacionais inerentes ao seu funcionamento perfazem um total de 65.183 Euros mensais. No que concerne à mensuração do potencial económico, tomamos como referência uma concentração média de 7 g por cada Kg de resíduo de produção vinícola e uma operacionalidade equivalente a apenas 6 meses por ano. Relativamente ao preço médio de comercialização, efetuamos uma estimativa prudente na ordem dos 0,50 �/g, sujeitos a uma inflação anual de 3%. A Taxa de Atualização Real aplicada foi de 8,66%, correspondendo basicamente ao custo do capital próprio, ou seja, à remuneração mínima exigida pelos acionistas à indústria farmacêutica em função da performance histórica do sector, do nível de risco incorrido e das alternativas de investimento disponíveis, no âmbito geográfico da União Europeia. Tendo em conta um cenário conservador, o VAL situa-se nos 1.863.830 Euros, sendo a TIR de 21,39%, o Payback de 3,51 anos e o Índice de Rentabilidade de 2,38. Estes indicadores contemplam um horizonte temporal de 9 anos. O circuito de refino poderá ser implementado nas instalações de qualquer pequeno produtor vinícola minimamente sofisticado. A liquidez gerada por cada unidade poderá ser complementada por intermédio do desenvolvimento de novos produtos e serviços, tirando proveito da integração vertical da cadeia de valor, mais concretamente ao nível da produção de Fast-Moving Consumer Goods (FMCG). A abordagem proposta permite conciliar o ‘velho mundo’ associado à herança cultural do vinho com o ‘novo mundo’ da inovação tecnológica, contribuindo assim para a preservação e sustentabilidade, do legado de tradições que está na sua génese.

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As Novas Geografiasdos Países de Língua Portuguesa(Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros

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Terra-mãe, território e cartografias(psíquicas) nas literaturas africanasde língua portuguesa: alguns exemplos

Pires LaranjeiraFLUC - CLP/FCT

Para os escritores africanos de língua portuguesa (sendo intelectuais urbanos e sin-tonizados com as culturas da “mundialização”, a vivência próxima da natureza e das culturas da oralidade ancestral e o conhecimento de línguas bantu, tal como da língua portuguesa ou dos crioulos), a terra esteve sempre nos seus textos, desde as origens das suas literaturas escritas (para já não falar aqui das oraturas). A terra, enquanto natureza/ matriz do humano, tem funcionado nessas literaturas como representação da Mãe, da tellus-mater, da Mãe-África (o berço da Humanidade) ou da Mãe-negra. A Mãe-negra, não sendo exclusivamente um conceito rácico, remete para a mulher-maternidade, numa visão alargada de mulher-útero-casa-continente-terra, como se pode apreciar nos três livros de poesia da são-tomense Conceição Lima: O útero da casa; A dolorosa raiz do micondó; O país de Akandenguê. Deste último, leia-se o trecho do poema “O amor do rio”:

Magros. São magros estes campos, a fracção que nos detém.Magra a colheita, a safra instigada, magros os dedos e a mão que os sustém, magro o grão que brota na cova desta mão.Crescem muralhas inesperadas, visitante, nestes campos.Crescem neste viveiro de tenras couves, crescem como carnívoros bolbos no olho da paisagem.

Nunca a poesia pode ser interrogada como remetendo para a sensibilidade do poeta, da

sua identidade ou emanação do seu sentimento ou condição, mas, por outro lado, também não se pode desligar o texto das suas condições concretas de surgimento e das referências e conotações que ele cria e sugere. Também a poesia engajada não pode simplesmente ser recebida como a descrição de uma situação concreta ou condição social e humana. No caso de Conceição Lima, subsiste um tipo de engajamento pós-independentista, de consciência pós-colonial, que implica uma pós-modernidade reivindicativa e de retorno a matrizes da modernidade (que associa um discurso autorreflexivo, de subjetividade afetiva, à condição política africana, de rastreio matricial, como nas evocações de Amílcar Cabral ou Kwame Nkrumah). A paisagem não só não é uma mera geografia abstrata, mas também não exclusivamente a amostragem de uma condição económica e social (“magros estes campos”; “Magra a colheita”; “magro o grão”). Por vezes, poesia in-situável, embora se detetem lugares especificados: São Tomé, África, Gabão (“o país de Akendenguê”, sendo este o músico e político gabonês), Nilo, etc. No poema transcrito, para lá do território, da natureza e do amanho da terra, há um plano do simbólico, em que os “campos” e mesmo as “couves” podem ser interpretados como elementos imagéticos, como indícios dos lugares de produção da escrita, do acontecimento amoroso, do transcorrer do tempo, sentido que advém de outras instâncias do discurso, de outras estâncias, da textualidade de longo alcance, mas que usa imagens e metáforas do território e seu amanho.

O continente africano tem uma conformidade que, em altitude, o transforma numa espécie

108As novas Geografias dos países de Língua Portuguesa

de fortaleza, tanto mais que os picos e os planaltos (Atlas, Etiópia, Quénia, Drakenberg, etc) ficam nas orlas marítimas. As três principais bacias hidrográficas (Nilo, Níger e Congo) ajudam a desenhar uma plataforma que, comparando com outros continentes, se pode definir como um útero poderoso (a savana, a floresta, o planalto) fechado sobre si próprio. Essa é, pois, a Mãe-África, mãe dos africanos e da humanidade, que, a sul do Sahara, é tratada como Mãe-negra. A poetisa moçambicana Noémia de Sousa (1926-2002), na viragem da década de 40, no livro Sangue negro (1951, policopiado; editado apenas em 2001), apresenta-nos uma geografia africana simbólica, que recupera do território muito menos a sua história física ou dos povos ancestrais que a habitam, para traçar um quadro colonial em que o único modo de desalienação e libertação é justamente tornar o continente um território único, unificado, generalizado, para simbolizar uma densidade e uma ancestralidade não vivenciadas pela colonização e, portanto, passível de legitimar a desassimilação e o movimento – romantizado – de recuperação das raízes, pela afirmação estentórea dessa espacialidade, que é física, mas sobretudo cultural e ideológica. Constatação essa que não invalida uma referenciação extensa do espaço moçambicano, seja físico ou social, tanto como cultural. O que aqui interessa é o canto de esplendor sobre o continente, que, por exuberante, pode passar, a uma leitura desprevenida ou equivocada, por exotismo, visto a poetisa usar um vocabulário algo comum aos compêndios luso-tropicalistas:

Ó minha África misteriosa e natural,minha virgem violentada,minha Mãe!(…)Ó minha Mãe África, ngoma pagã,escrava sensual,mística, sortílega --- perdoa!(in “Sangue negro”)

Todavia, ao lermos um poema intitulado “O homem morreu na terra do algodão”, percebe-se que a “terra” africana passa a incluir uma semântica política que denuncia a exploração e opressão coloniais, alargando o campo da geografia física para uma geografia da dominação e repressão, em que se trata já da “terra negra” (cruzando elementos fortes do neorrealismo com elementos discretos da negritude):

Do vermelho do sangue jorradoda boca do homem que morreu escravizadona terra negra do algodão

Desde o século XIX que a terra é louvada como componente identitária, assumindo, em primeiro lugar, um valor romântico de espaço “patriótico” (de uma “pátria” dentro da grande pátria lusitana), como aconteceu com escritores e jornalistas cabo-verdianos e com o angolano José da Silva Maia Ferreira:

Nada tem minha terra natalQue extasie e revele o primor,Nada tem, a não ser dos desertosA soidão que é tão grata ao cantor.Mesmo assim rude, sem primores da arte,Nem da natura os mimos e belezas,Que em campos mil a mil vicejam sempre, É minha pátria!Minha pátria por quem sinto saudades (in “A minha terra”)

Muito depois, já nas décadas de 40 e 50, a terra foi recortada a partir do território colonial ocupado (definido em 1884-85, na Conferência de Berlim, através do mapeamento colonial, que traçou fronteiras segundo zonas de influência das potências coloniais), não já enquanto espaço organizado e dirigido pelo colonizador, mas como geografia da contestação

109Pires Laranjeira

anti-colonial e da libertação patriótico-independentista, como se pode ler na poesia do angolano Agostinho Neto, não por acaso líder do MPLA e fundador do Estado-Nação. Nela, a terra vai além da simbologia materno-telúrica, se bem que integrando igualmente as duas componentes, pois ganha amplos significados económicos e culturais de reconhecimento, mapeamento e reapropriação:

Às casas, às nossas lavrasàs praias, aos nossos camposhavemos de voltar(…)Às nossas minas de diamantes ouro, cobre, de petróleohavemos de voltar(…)À bela pátria angolananossa terra, nossa mãehavemos de voltar(…)Havemos de voltarà Angola libertadaAngola independente (Cadeia do Aljube de Lisboa, Outubro de 1960).

Esta passagem de Maia Ferreira (poema de 1849) a Agostinho Neto (poema de 1960,

às vésperas da luta armada de libertação nacional) marca todo um século de consciencialização e, com a Conferência de Berlim de 1884, e, depois, a organização sócio-política e cultural dos africanos, marca a passagem do canto da “terra pátria”, que é somente a terra-mãe e a África genérica, com laivos de pormenor de uma Angola imprecisa, para o canto do território que se deseja nação, formando o Estado-nação. Constrói-se, com densidade inusitada, lenta, mas seguramente, uma comunidade imaginada que, em cada espaço territorial e cultural, atentando-se em alguns poetas da pré-independência, sejam eles Noémia de Sousa, José Craveirinha (ambos de Moçambique), António Jacinto, Viriato da Cruz, Agostinho Neto (todos de Angola), ou ainda Alda Espírito Santo e Francisco José Tenreiro (ambos de São Tomé e Príncipe), enuncia nitidamente a libertação do território, do povo e da cultura, sendo que esta continua a sua luta de independência dos modelos eurocêntricos ou ocidentais após a libertação do colonialismo. Não foi fácil passar de uma geografia mistificada, porque distorcida (a geografia sem qualidades de Maia Ferreira) ou romantizada (a pequena pátria no bolso da colonização aceite), para uma geografia cultural e ideológica de grande alcance, com conteúdo político libertário e libertador para as populações do continente. Como toda a geografia, é uma geografia inteiramente construída, neste caso porque as palavras são constructos – subtis e imateriais – que dão alento a quem vive dos e com os materiais (de aluvião) que a terra fornece: terra, campos, minas, pão, diamantes, árvores (e, já agora, poesia).

Antes da independência, o poeta angolano Ruy Duarte de Carvalho escrevia, em Chão de oferta (1972):

Era o matoa mataa cor lisa das pedrase das ramaso espinho rasoa sombra inacessívelo bruto e agreste piso.

Era a acáciarara ampola de humidade verdeconcentrando

110As novas Geografias dos países de Língua Portuguesa

o derramar espinhoso da tremente sedeniveladana escura sucessão das copas baixas.A interminável dimensão do Sule pó.(in “Novembrina solene. Transmudação das águas”).

Esboçada essa cartografia continental e nacional, é tempo, pois, de a poesia recuperar o

que é local, para mapear mais alargadamente o território cultural e sentimental. Não se trata de regionalismo, mas de, antes e após a independência de um país, se poder escrever sobre novos temas e horizontes, incluindo, assim, as geografias localizadas, que pormenorizam e preenchem o imaginário local, contribuindo para o mapeamento do que é nacional, se contabilizarmos todos os poetas e suas variadas rotações semânticas. No exemplo de Ruy Duarte de Carvalho, a chamada votação ao sul de Angola, onde foi criador de gado caraculo, antropólogo ou visitante dos pastores transumantes (um seu romance-ensaio chama-se Vou lá visitar pastores), a literatura fundamenta-se na descrição e exposição desses universos locais que tendem para o desaparecimento. Literatura e antropologia, literatura e geografia, literatura e ecologia, literatura e política: mapear, geo-radiografar os humanos e seus animais, descrever procurando não aprisionar, nem intrometer-se, numa busca ecológica, de amizade e reconhecimento, de aviso à navegação política (para glosar outro título de um livro seu). Uma (con)vivência rente à natureza, no coração da irmandade entre bichos e humanos.

É assim que chegamos ao cabo-verdiano José Luiz Tavares, autor, com as fotografias de Duarte Belo, de Coração de lava (2014), um livro a que se pode chamar premonitório (embora nele se escreva: “Não se vislumbra aqui uma pompeia a haver”; o livro, em si próprio, com seu título, é uma premonição), por abordar a ilha do Fogo, cujo vulcão entrou em erupção, como se fosse uma epopeia local (com texto e fotos), declinando o domínio geofísico e humano. Tal erupção coincidiu com o momento em que o livro estava a ser composto e estava pronto, como se costuma dizer, para vir a lume. Nele, o jogo entre a representação (mimese do texto e das fotos) e a imaginação (que transcende o local), como costuma ser apanágio de Tavares, procurando transmitir uma lição transfronteiriça, para lá da cultura local e do local da cultura, pode provocar no leitor a falsa impressão de que sabe o que lê, de que vê realisticamente a ilha que o autor quer dar a ver/ler. Mas não é esse o resultado, porque, a partir do retrato do real geográfico - uma impossibilidade que a psicanálise dissolve, dizendo que o real está sempre fora do texto, foi dele expulso, tornando-se nesse pequeno objeto a) -, o poeta cria uma cartografia, que, parecendo externa ao sujeito, não é mais do que a projeção dos seus fantasmas no fantasma da escrita: escrita fantasmática, do sujeito que escapa à mimese, para encenar o fantasma de uma paisagem interior, quer dizer, anterior à sua aparição na cena do texto. O fantasma da criação, que é a criação de um fantasma: neste caso cabo-verdiano, o vulcão em erupção. O que aconteceu, na realidade extratextual, em 2014. Fantasma realizado.

Incompreensível? Não. Trata-se apenas � e não é pouco � de falar da natureza, do vulcão, para dizer as populações, um sujeito problemático projetando-se no discurso, enfim, um projeto de sujeito marcado pela paisagem, pela força de uma natureza explodindo em lava derramada na terra como uma escrita íntima de fantasmas assombrosos e tenebrosos (a infância; a escrita, etc.), em que a figura do duplo, do fotógrafo/geógrafo, se torna análoga da figura do poeta/(auto)psicanalisado, numa geografia que vai da ilha para o sujeito interpelando-a, interpelando o mundo e interpelando-se:

Não se vislumbra aqui uma pompeia a havermas calhava-te bem o formato vilafutura ruína onde as cinzas esvoaçandoroubassem na tarde a quietude quebrantadaque eu converto em sulfurosas palavras(…)mineral ternura porém a que germinano olhar deste fotógrafo sua arte completade vedor e geógrafo vai sempre mais fundo

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insistindo no concreto e no rugoso de tantaurdidura quando tudo é passo de retornoao ventre amniótico aos campos acesosnuma acrobacia do destino(…) E chamam pátria às chãs.Quando não os emudecem o ventoe o cieiro. Bravios não por sinestesia.Que tudo aqui é grão ao concretoconquistado. (…)do imo à crosta toda a terra é essa solidezde lava, e no entanto da canga ao pulsoés esse grito de águia, mudave tal a ilhaem frente e seu perfil de criança estouvada,levantada num ofício perene, que eu só divisoda emaranhada tessitura dos versos, pobresímile da agreste plenitude destas chãs.

Temos, então, esse esquema possível da progressão cronológica e semântica das geografias realizando-se em terra e gente, num lento processo de constituição de fantasmas que se recuperam e de sonhos que se realizam e outros que se frustram: amor à mãe-terra; África romantizada ou mitificada; sonho de comunidade nacional; utopia da posse; igualdade e poder popular; independência; geografias locais; cultura poética e poeira vulcânica. Ou seja: do texto das planícies, rios e montanhas ao texto-texto da poesia, com seus povos e animais, floras e tempestades vulcânicas, se tece a teia que emaranha materiais fluidos e a fluidez dos sonhos fantasmáticos que se tornaram realidade, por sua vez expulsa dos novos textos, aborrecidos de utopias.

A poesia africana de língua portuguesa é uma geografia da memória, do afeto e da imaginação, montada no sonho de levar ao texto as paisagens da história e as pedras dos caminhos interiores. Porque a natureza – em si, mutante, construída � não quer saber de poesias e segue o seu rumo inelutável, na direção do sol.

Bibliografia literária

Carvalho, Ruy Duarte de (2005), Lavra. Poesia reunida 1970/2000, Lisboa, Cotovia.

Ferreira, José da Silva Maia (1980), Espontaneidades da minha alma. Às senhoras africanas, 2ª ed., Lisboa, Ed. 70

(1849).

Lima, Conceição (2011), O país de Akendenguê, Lisboa, Caminho.

Neto, Agostinho (2011), Fogo e ritmo (24 poemas), V. N. de Cerveira, Nóssomos.

Sousa, Noémia de (2001), Sangue negro, Maputo, AEMO.

Tavares, José Luiz (2014), Coração de lava, Cabo Verde, US Edições.

Pires Laranjeira

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Weather Lore de Pindorama: o conhecimento sobre o tempo e o clima no período não instrumental naantiguidade e no Brasil pré-cabralino1

João Lima Sant’Anna NetoProfessor Titular Dep. de GeografiaUNESP - Presidente Prudente

“O clima não é apenas ambiente na Terra, isto é, meio em que os seres que nela existem se banham com satisfação ou dificuldade. É ação e reação, acomodamento, alterações, novas formas de seres, dotados de qualidades que retratam esses meios diversos. O clima é assim o artista da vida”. Afrânio Peixoto, 1938

Zeus lançando raios desde o Monte Olimpo. (afresco de Giulio Romano)

Introdução

As preocupações do homem com os fenômenos originados na atmosfera e que repercutem na superfície terrestre é tão antiga quanto a sua própria percepção do ambiente habitado. Desde o início da epopeia humana na Terra, o interesse pelo tempo e pelo clima se justifica pela indubitável influência que os fenômenos atmosféricos exercem no cotidiano das populações e em suas atividades econômicas (Sant’Anna Neto, 1998).

O nascimento das ciências atmosféricas - Climatologia e Meteorologia - foi análogo ao da Astronomia e da Geografia, uma vez que estas ciências, que estudavam os céus e os ares, se confundiam na visão dos conhecimentos da antiguidade.

Até o final da Idade Média e início da Renascença, segundo Burroughs (1998) as ex-plicações sobre os fenômenos meteorológicos e astronômicos repousavam num conjunto de saberes empíricos, repletos de manifestações místicas e religiosas. Com estes conhecimentos, contudo, conviviam elaboradas teorias baseadas em experimentações rudimentares e saberes desenvolvidos a partir das possibilidades tecnológicas de cada uma das antigas civilizações.

No caso do Brasil pré-cabralino (a terra de Pindorama) este processo não foi diferente. Em que pese a pouca literatura existente sobre o conhecimento que os povos indígenas, que habitavam o Brasil no início da ocupação portuguesa, tinham a respeito dos fenômenos atmosféricos, parece certo que muitos destes povos se preocupavam com o tempo e o clima, na medida de sua importância, não somente mística, como também no que se relaciona à suas atividades agrícolas, de caça e comemorativas.

1 - Texto parcialmente apresentado no evento (Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros. Os Países de Língua Portuguesa e as suas novas Geografias, realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em abril de 2015.

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De acordo com Ferraz (1980), este conhecimento era constituído de observações empíricas passadas oralmente ao longo das gerações, principalmente sobre as posições do firmamento de estrelas e constelações e a incidência das estações do ano.

Assim, algumas analogias são possíveis de se estabelecer entre o conhecimento empírico do tempo e do clima (weather lore) da antiguidade, com o existente entre os primitivos habitantes nas terras de Pindorama (como os indígenas se referiam a sua terra), posteriormente denominada de Brasil, ainda que pese o fato do desconhecimento da escrita por parte dos tupis-guaranis.

Neste sentido e com estas considerações, neste artigo são apresentadas algumas reflexões sobre como o tempo e o clima eram interpretadas antes do período instrumental, ou seja, até o final da idade média e início da renascença, no mundo e no Brasil.

O Período não Instrumental na Antiguidade

Os primeiros registros de que se tem notícia vieram da Babilônia, entre os anos de 1600 a 1500 a.C., no período do reinado da dinastia dos Hamurabi. A maioria das informações se refere a presságios e adivinhações relacionados aos astros e suas influências no tempo, associando-os à sazonalidade agrícola. A respeito do conhecimento empírico do tempo entre os babilônicos, Verdet (1991) teceu os seguintes comentários:

“De uma observação do estado do céu quando aparece o primeiro crescente novo da lua, o texto astrológico nos informa o que é preciso esperar do ano: se o céu está sombrio, o ano será ruim; se está brilhante, o ano será bom; e se, antes da lua nova, o vento soprar por todo o céu, os cereais serão abundantes” (Verdet, 1991:15)

Os povos mesopotâmicos, desde os sumérios até os hititas, acreditavam que os acontecimentos naturais eram tanto consequência de causas específicas, mesmo desconhecidas, como de sinais dirigidos por uma força superior destinada a manifestar suas intenções. Aos conhecimentos empíricos, resultados de longas observações, liam o presente e projetavam o futuro tanto a partir do significado do comportamento dos astros, quanto dos elementos do mundo natural circundante, como no vôo dos pássaros ou nas vísceras dos cães (Verdet, 1991).

Encontrava-se na grande biblioteca de Níneve, antes da Babilônia cair sob o poder dos assírios, um conjunto de tábuas com as descrições das primeiras observações sistemáticas dos astros e dos meteoros, que culminaram com o estabelecimento de cerca de sete mil presságios, baseados no comportamento do sol, da lua e das estrelas, associados aos sucessos ou fracassos das safras agrícolas.

De acordo com Burroughs (1998) tanto os povos que habitaram a Mesopotâmia, como os egípcios, ocuparam terras férteis comandadas pela dinâmica fluvial de um grande rio, delimitadas por extensos desertos que comprimiam suas terras agricultáveis, e que, porém, isolavam seus territórios do mundo exterior.

Mesmo considerando que muito provavelmente o vale do rio Nilo, a cerca de 4000 anos atrás tenha sido mais úmido do que hoje, sua ocupação somente foi possível graças ao domínio e entendimento do regime das cheias e do aproveitamento de suas várzeas.

Desta forma, ao longo dos séculos, estabeleceu-se uma estreita relação entre o desenvolvimento desta extraordinária civilização e a progressiva compreensão do regime das chuvas e a dinâmica fluvial.

O calendário construído pelos egípcios, como nos apontou Mourão (1988), denotava um forte vínculo entre os ciclos da água e, portanto fonte de sua existência material e, as combinações astronômicas determinadas pelo posicionamento dos astros. O ano egípcio contava com exatamente 365 dias, divididos em 12 meses de 30 dias, aos quais, somavam-se ao final do ano, os 5 dias restantes. Estes 12 meses eram agrupados em 3 estações de 4 meses cada: a estação da inundação; a estação da germinação; e, a estação da colheita. Esta divisão e tais denominações parecem indicar que, no momento de sua introdução, o ano egípcio estava destinado a ser a base de um calendário agrícola.

Pode-se atribuir aos gregos os primeiros estudos meteorológicos com bases racionais,

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no século VII antes de Cristo. Se no início das civilizações, as observações dos fenômenos atmosféricos possuíam uma conotação religiosa, como afirmava Mourão (1988) “esses eventos constituíam símbolos de poder divino sobre o ser humano. Assim, eram deuses, como Júpiter, entre os romanos, ou Zeus, entre os gregos, que comandavam os meteoros”.

A partir de 550 a.C., entretanto, filósofos gregos como Anaximandro, Parmênides e Eudoxo, estabeleceram os primeiros apontamentos científicos sobre os domínios da atmosfera. Esta passagem do pensamento religioso para uma atitude mais racional diante do mundo, e da natureza, se dá com o aumento gradativo da decadência da religião olímpica grega, quando a própria substância da natureza tornou-se cada vez mais divorciada de sua significação espiritual, e a cosmologia e a física encaminharam-se para o naturalismo e empirismo. Segundo Nasr (1977):

“... a partir da dimensão órfico-dionísica da religião grega se desenvolveu a escola pitagórico-platônica de filosofia e matemática, assim, do conjunto dos conceitos religiosos olímpicos, esvaziados de seu significado, surgiram uma física e uma filosofia natural que procuram preencher o vazio e fornecer uma explicação coerente para um mundo não mais habitado pelos deuses. O deslocamento geral foi da interpretação simbólica da natureza para o naturalismo, da metafísica contemplativa para a filosofia racionalista.” (Nasr, 1977:54)

Os gregos não só passaram a se interessar pelos fenômenos atmosféricos, como já faziam uma clara distinção entre o tempo e o clima, entre a Meteorologia e a Climatologia. A Meteorologia, para os filósofos gregos significava, literalmente, o “discurso sobre as coisas do alto”, incluindo os meteoros e os fenômenos ópticos. Climatologia vem do termo grego Klima, que se refere à inclinação da Terra, bastante próximo de nosso conceito moderno de latitude (Critchfield, 1966).

Dois séculos antes de Aristóteles escrever o seu tratado “Meteorológica”, Tales de Mileto (624-547 a.C.), importante estudioso dos escritos astronômicos dos babilônicos, e um dos precursores da física da Terra, considerava que a água era a base de toda a matéria e realizou minuciosos estudos sobre seu comportamento. Um século mais tarde, cerca de 400 a.C., Hipócrates relacionava algumas enfermidades ao clima e iniciava, o que mais tarde denominou-se de Geografia Médica, com sua obra “Ares, Águas e Lugares” (Critchfield, 1966).

Do ponto de vista geográfico, o pensamento grego desenvolvido nas cidades jônicas, onde Tales viveu, despertara outra ordem de problemas, como as preocupações com os aspectos físicos da Terra, forma, dimensão, posição da Terra no espaço, etc. Esta dimensão global, em que se procurava encarar a Terra como um todo, deu origem ao nascimento da Geografia Geral. Nesta mesma época, Anaximandro (610-546 a.C.) já definia o vento como um “fluxo de ar” e Parmênides (554-450 a.C.) elaborava uma primeira tentativa de classificar os climas da Terra em função da latitude, a clássica divisão dos climas em zonas “tórrida, temperada e frígida”.

Por outro lado, entre os Alexandrinos, Heródoto iniciava a tradição descritiva da ciência, ao descrever, a partir de suas viagens, os diferentes países e suas paisagens, comparando os climas, os povos e costumes, dando início ao que conhecemos como Geografia Regional. Deste modo, percebe-se claramente que os estudos mais gerais sobre a física do globo se relacionavam com os estudos astronômicos, aproximando a Meteorologia da Astronomia. Contudo, as descrições sobre o clima estavam mais vinculadas à economia e a adaptação do homem e sua cultura à natureza circundante, numa abordagem local e regional, mais vinculadas aos filósofos e historiadores e, portanto, no âmbito dos conhecimentos humanísticos. A este respeito, De Martonne (1953) afirmava:

“Quando se pensa na fragilidade dos meios de investigação de que os antigos dispunham, surpreende-nos que a Geografia Geral tenha podido realizar tais progressos. Nascida com os Jônios, mais resumida do que desenvolvida por Aristóteles, consideravelmente enriquecida pelos Alexandrinos, procura resolver os mais altos problemas da geofísica. Não só demonstra a rotundidade da Terra, como mede as suas dimensões com Erastótenes (cerca de 230 a.C.). Enfrenta questões hidrográficas e climatológicas: continuidade dos oceanos, teoria

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das zonas climáticas, origem dos rios e de suas cheias, em especial das cheias do Nilo. Infelizmente, tudo isso é extraído de considerações muito estranhas à experiência; a verdade se mistura ao erro, em proporções que então era impossível deslindar” (De Martonne, 1953:3)

Os eruditos da antiguidade, apesar de realizarem descobertas de significados mais restritos, tiveram o mérito de que, com seus trabalhos, deram início a uma tradição de investigação mais detalhada com uma análise racional dos fenômenos naturais.

A idade de ouro da sabedoria grega alcançou seu máximo esplendor com Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, cujos escritos tratavam de todos os aspectos do conhecimento humano desta época. Em seu tratado “Meteorologica”, o filósofo grego se propôs a descrever tudo o que se relacionava à natureza física do céu, do ar, da terra e do mar, incluindo todos os fenômenos meteorológicos conhecidos. É da origem do nome desta obra, que nasceu o termo Meteorologia, para designar o conjunto de conhecimentos sobre a atmosfera (Stringer, 1972).

Impressiona o volume de informações corretas que Aristóteles descreve e, mesmo considerando alguns equívocos, como a afirmação de que a Terra está “quieta” no centro do universo, ou a inabitabilidade das zonas equinociais, definiu a constituição de vários elementos, como a umidade, por exemplo, afirmando que a evaporação se dá pela intensidade dos raios solares.

A grande contribuição de Aristóteles, cujos escritos perduraram por longo período sem que se acrescentasse algo de novo, é a de que procurava apresentar explicações lógicas para os diversos fenômenos atmosféricos, conhecimentos estes que permaneceram válidos até a grande revolução científica iniciada com as descobertas de Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Giordano Bruno, no renascimento europeu, entre os séculos XV e XVI.

Alguns de seus precursores mais próximos, como Teofrasto (372-287 a.C.), que escreveu “Sobre os Signos do Tempo”, obra que procurava estabelecer sinais do tempo para a previsão e, Arato (315-245 a.C.), que imortalizou os sinais do tempo em seus poemas “Phaenomena” deram início aos primeiros estudos sobre a relação atmosfera - espaço geográfico, ao observarem o comportamento dos elementos associados aos tipos de tempo e o cotidiano do homem.

Se entre os gregos foi maior o interesse pela física da Terra, pela Geografia geral, estudos que exigiam maior precisão matemática, entre os romanos, as descrições regionais foram mais desenvolvidas. Estrabão (60 a.C. – 21 d.C.), que apesar de grego, publicou grande parte de sua obra em Roma, principalmente a sua Geografia, composta de 17 volumes, é o grande ícone deste movimento. Descreve todas as regiões conhecidas do entorno do Mediterrâneo, compara os climas regionais e estabelece relações entre etnologia, costumes e paisagens naturais.

Tanto Plínio, o Velho (23-79 d.C.), quanto Claudio Ptolomeu (90-168 d.C.), pouco acrescentaram à obra de Aristóteles, entretanto, assim como Teofrasto e Arato, estabeleceram relações entre o comportamento do aspecto dos astros e a previsão do tempo. O escritor romano, Plinio, elaborou uma enciclopédia monumental “Historia Naturalis”, reunindo todos os escritos greco-romanos, acrescentando os conhecimentos babilônicos e egípcios, incluindo as superstições e ditos populares sobre o tempo e o clima. Já o grego Ptolomeu, em sua grande obra “Almagesto”, parte dos conhecimentos de Aristóteles e Hiparco, inclusive, mantendo o conceito equivocado de uma Terra imóvel (geocentrismo).

Por quase 1500 anos, até a revolução científica desencadeada pelo florescimento do pensamento renascentista, pouco foi acrescentado ao conhecimento do tempo e do clima estabelecidos desde a antiguidade clássica.

Segundo Burroughs (1998), durante a Idade Média, o avanço das ciências da atmosfera esteve sufocado por uma devoção quase religiosa à figura e os escritos de Aristóteles, além do desenvolvimento de uma “astrometeorologia”.

A rara exceção, fora do mundo árabe, se refere a Roger Bacon (1214-1294), cientista inglês que no início do século XIII introduziu, de forma crítica, os estudos de Aristóteles no ocidente e, como defensor do método experimental nos estudos científicos, elaborou uma série de recomendações a respeito dos fenômenos óticos da atmosfera, notadamente, explicando o arco-íris e desenvolvendo equipamentos criativos para medir vários meteoros,

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publicado em sua grande obra “In meteora”, de 1270.Data do século XV, o surgimento dos primeiros inventos de instrumentos meteorológicos

que vão exercer profunda alteração nos processos de estudo dos fenômenos atmosféricos. Icone Battista Alberti (1414-1472) elaborou um anemômetro constituído de uma biruta e uma placa que sob o efeito do vento movimentava um mostrador graduado (Mourão, 1988).

Outros aparelhos foram inventados neste período, como o higrômetro por Leonardo da Vinci (1452-1519), em 1500, e o medidor de umidade de Nicolas Cryfts (1401-1464). Entretanto, poucas utilidades práticas tiveram estes primeiros protótipos, pois o método científico ainda não havia penetrado nas mentes dos homens, até que Nicolau Copérnico (1473-1543), elaborou a teoria de que a Terra girava uma vez ao dia sobre seu próprio eixo e, uma vez por ano, ao redor do um Sol fixo, assentando as bases para a explicação dos equinócios, dos solstícios e das estações do ano: a teoria do heliocentrismo.

Ainda que houvesse alguma evolução no campo experimental, mais voltado para as medições dos fenômenos atmosféricos, do ponto de vista climatológico (e geográfico), o que se conhecia sobre os climas da Terra ao final do século XV era bastante modesto.

Para se compreender melhor o estágio científico dos povos ibéricos, que mais nos interessa nesse contexto, há que se levar em conta a influência árabe que, em todo período da Idade Média foi a responsável por realizar a interface entre o conhecimento das civilizações antigas com as de seu tempo. Desde os séculos VIII e IX, os árabes traduziram os primeiros textos de astronomia e geografia de origem indiana, persa e grega.

Segundo Mourão (2000) foram os árabes que trouxeram para a cultura ocidental o conhecimento da antiguidade, pois,

“A produção literária científica, através dos estudos sobre os conhecimentos gregos e, principalmente, pelas traduções destas fontes, além de muito extensa foi muito profunda e variável. Os árabes aperfeiçoaram os saberes helênicos, criando uma nova visão deste conhecimento. Apesar de pouco conhecida até o século XVIII, a importância da contribuição árabe assumiu uma nova dimensão a partir dos estudos dos manuscritos hebraicos pelos arabistas desde meados do século XIX” (Mourão, 2000:18)

Não se pode ignorar o fato de que os árabes permaneceram na península Ibérica desde 711 (conquista muçulmana), até praticamente a descoberta da América por Cristóvão Colombo, em 1492. Assim, grande parte do domínio técnico e científico dos portugueses e espanhóis se deveu aos mouros.

Quando se iniciou a época dos descobrimentos, quase tudo o que se sabia sobre a Geografia, a Cosmografia e a Astronomia, eram os legados de Aristóteles, Ptolomeu e Estrabão. Ou seja, um planeta que se alargava por pouco mais de 100o de longitude e 60o de latitude, formado por uma massa continental (Europa, Ásia e África) e um vasto mar oceano desconhecido e repleto de mistérios.

A navegação era praticamente costeira, ao longo do Mediterrâneo, do Índico e do mar do Norte (mesmo considerando que os vikings já houvessem percorrido terras da América do Norte). Sabia-se algo dos ventos frios polares provenientes do norte e das monções da Índia. Acreditava-se na existência de terras ao sul (pois pela teoria de Ptolomeu acrescida da influência árabe, deveria haver terras ao sul, como que para compensar as massas continentais do norte), mas, era senso comum, que seria quase impossível cruzar a zona tórrida, onde o calor seria insuportável.

Mesmo assim, a motivação econômica do mercantilismo, as novas tecnologias que chegaram à Europa através dos Árabes vindas da Ásia, como a bússola, o astrolábio e o sextante, além da astronomia náutica, incentivaram os povos ibéricos, notadamente os portugueses, a aventurarem-se para distâncias maiores.

Desta forma, ao lançarem-se à aventura marítima rumo ao desconhecido, os navegantes portugueses contavam mais com um conhecimento empírico do weather lore, do que um saber científico tanto sobre a circulação da atmosfera, quanto em relação a uma cosmografia eficiente e instrumentos náuticos precisos.

Não se pode esquecer que ao aportarem em terras brasileiras, em 1500, além do pouco conhecimento, o homem ibérico ainda pensava em termos de uma lógica medieval, segundo a qual os olhos que enxergavam o novo mundo, o enxergavam através de uma lente que

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filtrava todas as informações, sensações e sentimentos, de uma existência provinciana, intolerante, preconceituosa (dadas as limitações impostas pela Bíblia) e extremamente religiosa. É nesta perspectiva que os lusitanos enxergavam, observavam e explicavam a nova terra e sua gente.

Entretanto, esta “nova gente” encontrada na América, também tinha seus saberes sobre o mundo das coisas, da natureza e dos homens. Os indígenas de Pindorama possuíam um vasto conhecimento empírico sobre os principais fatos que se relacionavam com o seu cotidiano. Em termos do tempo e do clima, este conjunto de saberes, que pode ser denominado de weather lore, era suficiente para que pudessem estabelecer uma visão de tempo (cronológico e atmosférico) que interessava à suas atividades econômicas e culturais.

Weather lore de Pindorama: o conhecimento do tempo e do clima entre os indígenas brasileiros

“Contam perfeitamente os anos com doze meses como os nossos e isso pelo conhecimento do curso do sol de um trópico a outro e vice-versa. Conhecem os meses pela época das chuvas e pela época das secas ou, ainda, pelo tempo dos cajús, assim como nós conhecemos os nossos pela época da vindima”. Claude d’Abbeville, em 1604, sobre os indígenas brasileiros.

Não é nossa intenção (nem pretensão) realizar um exaustivo levantamento antropológico e etnográfico dos grupos indígenas que habitavam o Brasil pela época do descobrimento (e nem teríamos fôlego para tal). Pretendemos apenas um recorte que enfocasse apenas alguns fragmentos, a partir da bibliografia que nos foi possível consultar, que nos permitisse analisar a temática proposta e realizar uma pequena incursão pelo mundo daquelas sociedades primitivas, em busca de alguns indicadores tanto da sua importância quanto do seu conhecimento sobre o tempo (no sentido atmosférico) e o clima.

Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro. Tela sobre óleo: Oscar Pereira da silva, 1922 (Museu

Paulista)

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Buscamos as fontes bibliográficas clássicas de autores como: Capistrano de Abreu, Teodoro Sampaio, Florestam Fernandes, Egon Schaden, Herbert Baldus, Arthur Ramos, Claude Levy Strauss e Darcy Ribeiro, estudiosos da antropologia e etnografia brasileira, além de Joaquim de Sampaio Ferraz, meteorologista estudioso do weather lore, principalmente no que se refere aos Tupis.

Além destes, recorremos aos relatos mais antigos dos primeiros europeus que conviveram com os indígenas. Alguns como os religiosos da Companhia de Jesus, notadamente os padres José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Fernão Cardim, os capuchinhos franceses Claude d’Abbeville, Jean de Léry e Yves d’Evreux, em missão de catequese, e outros como Hans Staden, mercenário alemão que caiu prisioneiro dos Tupinambás por quase um ano. Todos nos deixaram valiosas informações sobre o conhecimento que os primitivos donos da terra e habitantes de Pindorama, tinham sobre o tempo e o clima.

Destas obras, nos detivemos mais particularmente nas de Fernão Cardim, de d’Abbeville e Lèry, e as de Herbert Baldus, tanto pela possibilidade de ter acesso às edições mais recentes (série Brasiliana e Coleção Reconquista do Brasil, da Editora da USP), quanto pelo caráter mais generalizado das descrições.

Em que pese a pouca literatura existente sobre o conhecimento que os povos indígenas, que habitavam o Brasil no início da ocupação portuguesa, tinham a respeito dos fenômenos atmosféricos, parece certo que muitos destes povos se preocupavam com o tempo e o clima, na medida de sua importância, não somente mística, como também no que se relaciona à suas atividades agrícolas, de caça e comemorativas.

Este conhecimento, como afirmava Ferraz (1980), era constituído de observações empíricas passadas, oralmente, ao longo das gerações, principalmente sobre as posições do firmamento de estrelas e constelações e a incidência das estações do ano.

Ao comentar alguns aspectos sobre a vida dos Tupinambás, uma das principais tribos que habitavam as regiões costeiras brasileiras, Fernandes (1989) esclarecia que:

“As informações relativas ao conhecimento dos tupinambás sobre o mundo natural circundante permitem inferir que eles desenvolveram respostas eficientes diante de muitos fenômenos naturais. Esses conhecimentos eram muito extensos, indo da especificação de fenômenos meteorológicos, e de vários espécimes animais e vegetais e sua utilização até as tentativas de domínio mágico da natureza” (Fernandes, 1989:78)

O conhecimento do regime pluviométrico, muito útil para se determinar os períodos chuvosos e secos, se devia à interpretação que faziam da direção dos ventos e o movimento aparente do sol, associados à observação cosmográfica. Por suposto que este conjunto de saberes empíricos estava repleto de manifestações místicas e mágicas.

Mesmo considerando que os silvícolas brasileiros se encontravam num estágio cultural e tecnológico muito inferior em relação aos demais povos sul-americanos como os incas, por exemplo, é fato que já haviam constituído o seu weather lore, ou seja, um conjunto de conhecimentos sobre os tipos de tempo, baseados na experiência coletiva e, sistematizado em suas práticas cotidianas.

Num excelente conjunto de relatos sobre a história da missão dos padres Capuchinhos na ilha do Maranhão, o teólogo francês Claude d’Abbeville, que chegou ao Brasil em 1604, com a comitiva de Daniel de la Touche, Senhor de la Ravardiere, no contexto da segunda tentativa francesa de ocupação de terras americanas para a implantação da França Antártica, descreveu um paraíso terrestre em plena zona tórrida.

Com os conhecimentos adquiridos a partir dos relatos de seus antecessores (durante a primeira invasão francesa), Andre de Thevet e Jean de Léry, e as de seu contemporâneo Yves d’Evreux, d’Abeville descreveu com bastante propriedade os conhecimentos cosmográficos e meteorológicos dos índios Tupis da província do Maranhão, que já associavam, e se guiavam, pelos movimentos da declinação do sol.

Afirmava este autor, na mesma obra, primeiramente publicada em 1614, em Paris, que poucos entre os Tupinambás desconheciam a maioria dos astros e estrelas do hemisfério sul. As Plêiades, por eles denominadas seichu começam a ser vistas em meados de janeiro e, mal a enxergam no firmamento, sabiam que as chuvas iriam chegar, como de fato chegavam efetivamente pouco depois. Ao descrever como os índios contavam o tempo, destacava:

“...como a estrela seichu (Plêiades) aparece alguns dias antes das chuvas e

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desaparece no fim para tornar a reaparecer em igual época, reconhecem os índios, perfeitamente o interstício, ou o tempo, decorrente de um ano a outro” (Abbeville, 1975:250)

Sabiam que quando os raios solares vinham do hemisfério norte, no solstício de inverno, traziam-lhes vento e brisas, mas quando vinham do sentido oposto, havia chuva e ventos mais fortes. Esta noção é bastante correta para a maior parte do Brasil, em que grande parte das precipitações estava associada à penetração dos sistemas polares e das frentes frias provenientes do sul.

Herbert Baldus, conhecido antropólogo alemão, que nas décadas de 30 e 40 do século XX, conviveu com várias tribos do Brasil central e publicou em 1937 os seus Ensaios de Etnografia Brasileira e, alguns anos mais tarde, em 1948, trazia ao público seus estudos sobre os Tapirapés (tribo Tupi do Brasil central), também mencionava a importância das Plêiades, como anunciadoras, ao surgirem no horizonte oriental, da estação seca, ou de inverno (Baldus, 1937 e 1970).

Aliás, segundo Mourão (1978), as inscrições rupestres de Pedra Lavrada, no interior da Paraíba, registram os desenhos deste aglomerado de estrelas (Plêiades). Ele afirmava que estas eram conhecidas de todos os indígenas brasileiros e, ao que tudo indica pelo menos para os grupos indígenas que habitavam a região Nordeste do Brasil, quando as Plêiades se tornavam visíveis, ao anoitecer, era motivo de alegria e festejo, pois se iniciava um novo ano (Pimentel, 1980).

Observa-se, portanto, que os indígenas do litoral do nordeste identificavam a chegada das Plêiades no firmamento como prenunciadoras da época das chuvas, enquanto os que habitavam o Brasil central a identificavam como o início da estação das secas, demonstrando o reconhecimento da diversidade climática de nosso território.

Além das observações de natureza astronômica, muitas tribos também incorporaram em seu repertório o comportamento da fauna e flora tropical, que tanto denunciavam o que havia por vir, quanto davam sinais do que fazer para se beneficiar (ou se proteger) de suas variações. As observações sobre as migrações de aves e animais não escaparam à astúcia dos silvícolas que, inseridos num quadro de uma natureza ainda selvagem, aprenderam seus ciclos e seus significados.

Como elemento que denota a importância atribuída ao conhecimento do tempo e do clima entre os grupos indígenas brasileiros, Yves d’Evreux (apud Magalhães, 1968) comentou que para um índio ser guiado à categoria de Pajé, entre os testes aplicados, verificava-se a sua capacidade de “curar os doentes com o sopro e prenunciar a chuva”.

Entretanto, o weather lore indígena possuía um vínculo mais estreito com suas atividades do que meramente uma ação contemplativa. A este respeito, Fernandes (1989) salientava que:

“O que me levou a analisar este aspecto do problema em termos da economia é o fato de associarem a tais conhecimentos, finalidades práticas. Assim, toda a importante cosmografia tupi refere os fenômenos cosmológicos conhecidos empiricamente através de sua regularidade, a variações de estação e de cultura agrícola, aos ventos, à chegada das chuvas, etc...” (Fernandes, 1989:78)

É claro que num país de dimensões continentais como é o caso do Brasil, o regime climático é bastante diversificado. Entretanto, como a maior parte de seu território se situa na faixa intertropical, os dois elementos meteorológicos que mais preocupavam os indígenas eram a periodicidade das chuvas e os fenômenos extremos, como as rajadas de ventos, relâmpagos e trovoadas. Também parece certo que atribuíam aos deuses, a ocorrência de tais fenômenos, como sinal de sua ira ou bonança.

Aliás, enquanto demonstravam enorme respeito e veneração pelo sol, fonte de todas as coisas e dos seres viventes, tinham forte temor pela lua, pois identificavam-na com os mistérios da noite e como responsável pelos maus espíritos das trevas. Não é à toa que nunca dormiam, independentemente do local, na maloca ou em áreas externas, sem que acendessem fogueiras mantidas vivas durante a noite inteira (Fernandes, 1948).

O fim da estação chuvosa marcava de maneira significativa o cotidiano da vida na tribo. A maior parte dos grupos indígenas esperava ansiosa e impacientemente que as chuvas diminuíssem, o que ocorre entre abril e maio, na região centro sul do Brasil, para iniciarem

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as cerimônias – a maior de todas – que marcavam o início da estação seca. Para os Carajás e outras tribos do centro oeste, quando as águas dos rios baixavam, iniciava-se um novo ano. Este fato também se associava ao período de maior abundância de caça, pesca e obtenção de alimentos (mandioca e milho, principalmente).

Isto de se deve ao fato de que, tanto as atividades sociais quanto aquelas relacionadas às guerras contra tribos rivais, estavam associadas às cerimônias e rituais, quando se consumiam grandes quantidades de cauim, bebida preparada à base de mandioca, milho ou caju. Nestas ocasiões, os índios bebiam e festejavam por vários dias, como um ritual de preparação para estas empreitadas. Caso não houvesse uma quantidade suficiente dos produtos usados para a fabricação do cauim, as cerimônias não se realizavam e os ataques aos inimigos eram abortados. Isto demonstra a importância dada ao conhecimento da sazonalidade do clima e ao significado do curso anual do período das águas.

Sobre este aspecto, há uma interessante passagem na obra “Duas Viagens ao Brasil”, escrita por Hans Staden, que teve enorme repercussão na Europa no século XVI e que foi primeiramente publicada em língua portuguesa em 1892, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Este mercenário alemão ao desembarcar na região de Bertioga, no litoral norte de São Paulo, ao lado dos portugueses e seus aliados os Tupiniquins, sofreram violento ataque de seus maiores inimigos, os Tupinambás e, caindo prisioneiro destes, permaneceu cativo por quase um ano, podendo, assim, observar cuidadosamente os hábitos e o cotidiano dos indígenas. Ao relatar sobre a importância da sazonalidade do clima nos rituais tribais e nos preparativos das guerras, descrevia:

“Tínhamos que nos acautelar especialmente contra os tupinambás duas vezes por ano, épocas em que, com violência, penetram na região dos tupiniquins. Uma destas épocas é em novembro, quando amadurece o milho, que chamam abatí, e com o qual preparam uma bebida chamada cauim. Empregam também aí a raíz de mandioca, de que misturam um pouco. Logo que voltam de sua excursão guerreira com abatí maduro, preparam a bebida e devoram nesta ocasião os seus inimigos, se conseguirem aprisionar alguns. Já um ano inteiro antes esperam com alegria o tempo do abatí” (Staden, 1974:77)

Se no início da estação chuvosa, em meados de novembro, os Tupinambás invadiam as terras Tupiniquins para colherem o milho, ao final da estiagem em agosto, retornavam para esta região litorânea, para obterem mais víveres, a partir da pesca, por ocasião da desova dos peixes nos estuários abundantes que se encontram na baixada santista. A este respeito, completava o autor:

“Além disto, devíamos contar com eles em agosto. Neste tempo procuram uma espécie de peixe que emigram do mar para as correntes de água doce, para aí desovar. Esses peixes se chamam paratí. Nessa época empreendem eles em geral uma excursão guerreira a fim de melhor poderem aprovisionar-se de víveres. Pescam grande número de peixes com pequenas redes. Também os atiram com flechas e trazem muitos assados para casa” (Staden, 1974:77-78)

Infelizmente, o rápido extermínio e a implacável assimilação cultural de numerosas tribos não permitiu que se pudesse aprofundar o conhecimento sobre suas culturas materiais e espirituais. Porém, durante quase três séculos de convívio, quase sempre conflituoso, com os portugueses colonizadores, muitas de suas tradições, crenças e conhecimentos sobre o tempo, o clima, a agricultura e outros aspectos da vida cotidiana foram incorporados como valores culturais do povo brasileiro.

Considerações Finais

É possível a afirmação de que o conhecimento que os diferentes povos tinham sobre o tempo e o clima até o final da Idade Média e início das Grandes Navegações, em meados do século XV, não se encontravam em patamares tão distantes. O conhecimento empírico ainda

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prevalecia nas culturas em que o pensamento aristotélico era dominante, como na Europa, Oriente Próximo e no Mediterrâneo. Somente com as revoluções científicas do Renascimento é que uma postura mais experimental e científica toma corpo.

Assim, quando os primeiros colonizadores portugueses desembarcaram em terras de Pindorama, se depararam com um weather lore indígena que, apesar de incipiente, dava conta das principais questões que importavam, como a agricultura e a caça. Pouco foi acrescentado pelos colonizadores no início do processo de ocupação.

Evidentemente, a contribuição indígena à meteorologia e à climatologia foi incipiente, inferior não só à dos portugueses, como à africana. Porém, o conhecimento adquirido neste período pré-científico foi responsável pelas primeiras informações e, durante séculos, as únicas disponíveis, sobre o tempo e o clima do Brasil.

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A fotografia como leitura da transformação da paisagem

Luísa FerreiraFotógrafa

(UNL/FCSH/CICS.NOVA)

Sou fotógrafa e encontro-me a desenvolver doutoramento em Geografia e planeamento territorial, área de especialidade Geografia Humana na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Nessa investigação pretende-se compreender o papel da fotografia como documento, reflexão e comunicação no âmbito da Geografia.

A fixação do real através da lente, o acto fotográfico, ainda não tem dois séculos de existência. A sua importância no desenho do mundo contemporâneo é incontornável. Como registo histórico e científico ganhou um lugar próprio complementando o discurso escrito.

O recurso à fotografia como documento de estudo e interpretação do processo que o tempo tece sobre a paisagem é a primeira instrumentalização que a ciência, em particular a geografia, pode fazer deste meio. A criação de tipologias com recurso à imagem fotográfica tornou-se ela própria uma matriz de análise científica.

Ao confrontar duas sensibilidades e áreas de conhecimento (geografia e fotografia), deparei-me com leituras diferentes do papel da fotografia. Inicialmente propuz-me fazer um inquérito ao qual responderam 22 pessoas das 42 inquiridas. Destaco duas de um Físico e de um Químico.

A fotografia na geografia.O que é para si a fotografia?

José Mariano Gago (1948-2015), cientista, investigador na área da Física de Partículas, ex-Ministro da Ciência e Tecnologia:Fotografia é estar com os outros, mostrar-lhes, ver.A fotografia é VER.(26.9.2014)Jorge Calado (n. 1938), cientista na área da Química e curador:Primeiro, olha-se; depois vê-se. Na transição está uma fotografia real ou virtual, com ou sem máquina.A fotografia é Geografia.(3.10.2014) e (13.10.2014)

Considera-se que o geógrafo Orlando Ribeiro (1911-1997) reconheceu precocemente a importância da fotografia para veicular conceitos e narrativas e não apenas para afirmar e descrever.

Orlando Ribeiro no documentário sobre a sua obra refere:

… a base da minha educação científica é a observação …1

1 - Orlando Ribeiro, Itinerâncias de um Geógrafo. Primeira Emissão: 18 Set 2014http://www.rtp.pt/play/p664/e166082/orlando-ribeiro [17 Fev 2015]

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Os Encontros de Fotografia de Coimbra mostraram o seu trabalho no festival internacional de fotografia em 1994, onde publicaram o livro “Finisterra” 2 com organização e textos de Tereza Siza (n. 1948), investigadora em fotografia. Posteriormente, em 1997, no Centro Cultural Raiano foi realizada uma exposição com fotografias de Orlando Ribeiro tendo como tema as terras de Idanha3 com textos dos geógrafos Orlando Ribeiro, Suzanne Daveau, Jorge Gaspar, J.M. Pereira Oliveira, Angel Cabo Alonso, Rui Jacinto e de Tereza Siza.

O Professor Jorge Gaspar, também particularmente atento ao papel da fotografia na Geografia, escreveu no mesmo catálogo:

Se o objectivo primeiro da Geografia é o conhecimento da Terra, não estranhará que o aparecimento da fotografia no século XIX tenha representado uma nova perspectiva para o trabalho dos Geógrafos.Ao mesmo tempo que se procedia à consolidação e ao aperfeiçoamento das técnicas fotográficas, até à sua industrialização no último quarto do século XIX, verificava-se o progresso e a afirmação da moderna Geografia, como disciplina científica.

O fotógrafo Duarte Belo, que fez estudos em arquitectura, publicou em 2012 um livro4 com fotografias de sua autoria que partem de fotografias de Orlando Ribeiro, paginando as duas lado a lado, podendo ver-se a transformação da paisagem através do tempo.

Sobre o discurso que pode ser conseguido conjugando o poder do texto e da imagem, refere-se o artista visual, fotógrafo e teórico Allan Sekula (1951-2013), em Fish story5, a aproximação aos lugares e à linguagem são constituídas por um misto de texto e imagem completo. Este discurso não compromete o cariz científico dos seus documentos, conferindo-lhes um maior alcance perceptivo e semântico.

Como afirmou John Szarkowski,

The invention of photography provided a radically new picture-making process — a process based not on synthesis but on selection.6

Por isso é actual o contributo que fotógrafos de formação têm dado ao registo fotográfico,

2 - Orlando Ribeiro, Finisterra, Encontros de Fotografia, ed. Centro de Estudos de Fotografia de Coimbra, com textos de Jorge Gaspar , Suzanne Daveau e Tereza Siza, 1994.3 - Orlando Ribeiro e as terras de Idanha, catálogo da exposição de fotografia com textos de Orlando Ribeiro, Su-zanne Daveau, Jorge Gaspar, J.M. Pereira Oliveira, Angel Cabo Alonso, Rui Jacinto, Tereza Siza, ed. Centro Cultural Raiano, Idanha-a-Nova, 1997, p. 74 - Duarte Belo, Portugal - Luz e Sombra, O País depois de Orlando Ribeiro, Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2012.5 - Fish story, Allan Sekula, 1995, sobre o trabalho de Sekula pode-se ler no paper nº 18 da TATE “Bill Roberts argues that Fish Story 1989–95 by the photographer and theorist Allan Sekula expresses a shift from a culture of postmodernism to one of globalism and reflects the artist’s effort to renew realist art in the wake of the postmod-ern culture of the 1980s. … Indeed, it was during the mid-1980s that the geographical focus of Sekula’s artistic work began to widen beyond that of early projects such as Untitled Slide Sequence 1972, Aerospace Folktales 1973, and This Ain’t China: A Photonovel 1974, works that took as their focus the social world of the aerospace and service economies of Sekula’s own southern-Californian milieu. Sekula’s trilogy of ‘geography lessons’ began in 1983 with Sketch for a Geography Lesson, a work comprising text and photographs mostly produced in West Germany, on the subject of American military aggression during President Reagan’s resurgent Cold War. The tril-ogy continued in 1985–6, with Geography Lesson: Canadian Notes, a reflection on Canada, its industrial econo-my, and its fraught relationship with its more powerful neighbour. Completed between 1989 and 1995, the third instalment of this trilogy, the exhibition and book project Fish Story (fig.1), saw Sekula’s career-long pursuit of a contemporary ‘critical realism’ reach its most complex articulation yet. Fish Story did much to place consideration of globalised commodity production and distribution firmly on the table for art’s documentary and ‘social turn’ of the mid-to-late 1990s and the first decade of the new millennium, while it also marked Sekula’s first sustained explora-tion of the ocean as a key space of globalisation, a subject to which he has returned in subsequent photography and film projects.” Tate Papers Autumn 2012 © Bill Roberts [20 Fev 2015]http://www.tate.org.uk/research/publications/tate-papers/production-view-allan-sekulas-fish-story-and-thawing-postmodernism6 - John Szarkowski, The Photographer’s Eye, introdução do catálogo da exposição com o mesmo nome, realizada em 1964 no MoMA de Nova York, Szarkowski (1925-2007) foi director de Fotografia do MoMA, fotógrafo, curador, historiador e crítico. http://www.jnevins.com/szarkowskireading.htm [15 Fev 2015]

Luísa Ferreira

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reflexão e comunicação no âmbito da Geografia, como que sujeitando aqueles locais a uma nova revelação. É esse o poder da fotografia e é-lhe exclusivo.

Em França o ministério do ambiente criou em 1991 o Observatório fotográfico da paisagem.

Le principe d’un Observatoire photographique du paysage consiste à effectuer des prises de vue sur un territoire donné, qui seront par la suite re-photographiées dans le temps. Ainsi, seront traqués les signes qui permettent de lire les évolutions du paysage et mieux les comprendre. Apportant un regard parfois incisif sur les contradictions et les ruptures du paysage contemporain, il peut amener à prendre les mesures correctrices qui s’imposent.Outil pour l’aménagement, il peut aussi constituer un important dispositif pédagogique pour infléchir les comportements des populations.7

Fotografar um território repetidamente no tempo. Uma série de fotografias realizadas em locais selecionados, com intervalos de tempo regular, permite analisar os mecanismos e os factores de transformação da paisagem, os movimentos, a evolução da sociedade.

Parte do meu trabalho como fotógrafa tem sido sobre o território. Passarei de seguida a apresentar alguns projectos que desenvolvi nesse âmbito.

A convite do Geógrafo Rui Jacinto8 e de Joaquim Morão, à época Presidente da Câmara de Castelo Branco, desenvolvi em 19989 um trabalho fotográfico documental sobre Fernando Namora que deu origem a uma exposição individual e um livro “Fernando Namora itinerário de uma obra”.

Um itinerário fotográfico a partir do escritor e da geografia da sua obra. O percurso de vida de Fernando Namora 10 anos após a sua morte. Parte do trabalho fotográfico foi guiado pela leitura da sua Autobiografia, da conversa com as pessoas que o conheceram e pela sua obra literária.

Condeixa e a Beira Baixa. Ponto de partida e espaço de descoberta e encantamentos, representam referências incontornáveis na formação da identidade do autor e do imaginário da sua obra. …Desde que o médico de 22 anos mergulhou nos recônditos lugares da Beira, representativos da matriz mais profunda de Portugal, tem lugar um percurso que foi sendo paulatinamente enriquecido à medida que a geografia se ia alargando, inspirando reflexões que permitissem compreender melhor o homem na pluralidade de contextos onde desenvolve a sua acção. Vivendo um período vertiginoso em que a história acelarou e as geografias das aldeias, vilas e territórios associados à sua obra se foram recompondo, a escrita de Namora revela a preocupação de enquadrar estas mudanças, de interpelar o homem no confronto com as suas interrogações, angústias, incertezas e contradições que estes processos sempre envolvem.10

Rui Jacinto

Através da fotografia revisitam-se lugares, território da sua família, territórios por onde ele terá passado como médico, personagens, paisagens, paisagem interior, objectos pessoais,

7 - itinéraires photographiques, Méthode de l’Observatoire photographique du paysage, Ministère de l’Écologie, de l’Énergie, du Développement durable et de l’Aménagement du territoire, www.developpement-durable.gouv.fr [15 Fev 2015]8 - Rui Jacinto, Comissão de Coordenação da Região Centro, CCDRC; Geógrafo do CEI, CEGOT da Faculdade de Letras da Faculdade da Universidade de Coimbra9 - Fernando Namora, itinerário de uma obra, fotografia de Luísa Ferreira, introdução de José Manuel Mendes, e “Fernando Namora, nome para uma vida” com textos de Rui Jacinto, Palmira Leone, José Manuel Mendes, Miguel Pessoa, António Pedro Pita, Lino Rodrigo, Câmara Municipal de Castelo Branco, 1998.10 - Rui Jacinto, O itinerário de Fernando Namora e a geografia da sua obra, “Fernando Namora, nome para uma vida”, p 21 e 22

125Luísa Ferreira

construíndo assim uma narrativa com fotografias. Percorri a Serra do Rabaçal, Vale Florido (aldeia de origem da sua família nas serras calcárias de Sicó), Condeixa (onde nasceu em 1919 e onde se encontra actualmente a Casa Museu), Coimbra (onde conclui a licenciatura em 1942), Tinalhas (onde teve o seu primeiro consultório), Castelo Branco, Monsanto (a sua última casa com a mulher do seu segundo casamento), Pavia, Alentejo, e Lisboa, percursos ligados à vida e obra de Namora.

A convite dos Geógrafos investigadores e coordenadores do projecto “Cidade e Território – Coimbra o País e o Mundo”11, com que a Geografia de Coimbra se associou à Capital Nacional da Cultura 2003, colaborei com o Instituto de Estudos Geográficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e com o Centro de Estudos Geográficos, num trabalho documental sobre o Geógrafo Alfredo Fernandes Martins (1916-1982).

Boa parte da investigação foi dedicada às terras da Beira, da fervilhante Bacia do Mondego, palco para a dissertação de licenciatura, ao pedregoso e despovoado Maciço Calcário Estremenho, que estudou para doutoramento. O dinâmico Centro Litoral, o estudo da evolução da costa, as descrições das paisagens humanizadas e Coimbra, cidade que o viu nascer e crescer, como cidadão e académico, mereceram uma atenção particular e apaixonada.12 Lúcio Cunha

A narrativa fotográfica foi orientada pelo encontro e pelas conversas com os Geógrafos António Campar, Fernanda Cravidão, Lúcio Cunha, António Gama, Rui Jacinto, J.M. Pereira Oliveira, entre outras pessoas que o conheceram e pelo encontro com a filha, Paula Fernandes Martins. Apoiou-se ainda na análise de fotografias existentes e na leitura dos Cadernos de Geografia.

O percurso pelos territórios de investigação do geógrafo, os objectos, as fotografias, os livros, a cidade de Coimbra, a Universidade, foram os temas desenvolvidos.

Alfredo Fernandes Martins, Fred, fotografava as suas visitas de campo, como por exemplo o Maciço Calcário Estremenho, objecto da sua tese de doutoramento13. Fiz, em 2003, com os Geógrafos Lúcio Cunha e António Gama uma visita de campo ao Maciço Calcário Estremenho, numa revisitação fotográfica ao caso de estudo de Fred, os locais estudados e fotografados pelo geógrafo.

Sobre António Gama, discípulo de Fred, escreveu Jorge Gaspar em 2014 na revista Finisterra:

Em contraponto, mas sempre no mesmo registo de intelectual-cientista em plena pureza, ocorriam as demonstrações performativas perante uma paisagem campestre ou num encadeado aparentemente insolúvel de complexas estruturas geomorfológicas. Então, talvez sem se dar bem conta disso, era um continuador

11 - Coimbra, o país e o mundo - Geografia e mudança, título de um projecto realizado pelo Centro de Estudos Geográficos, financiado pelo POCentro (Programa Operacional da Região Centro) e por Coimbra, Capital Nacional da Cultura- 2003, “através dele procura-se mostrar à cidade e ao país a importância social e cultural da ciência do espaço, das paisagens e dos territórios”; foram realizadas três exposições com fotografias de Luísa Ferreira e de arquivo dos espólios dos geógrafos - “Fragmentos de um retrato incabado: a Geografia de Coimbra e as metamor-foses de um país” (Reitoria da Universidade de Coimbra: 3 de Dezembro de 2003 a 12 de Janeiro de 2004); “Olhar o Mundo, ler o território: uma viagem pelos mapas”, colecção Nabais Conde (Museu da Ciência e da Técnica: 12 de Dezembro de 2003 a 25 de Janeiro de 2004); “Esta Coimbra... Alfredo Fernandes Martins, a cidade e o cidadão” (Reitoria da Universidade de Coimbra: 26 de Janeiro a 6 de Março de 2004); publicados os catálogos – “Fragmentos de um retrato incabado: a Geografia de Coimbra e as metamorfoses de um país”, “Alfredo Fernandes Martins - Geógrafo de Coimbra, cidadão do Mundo”; “Olhar o Mundo, ler o território: uma viagem pelos mapas”. http://www.uc.pt/fluc/ceg/actividades/jarealizadas/coimbrapaismundo/coimbrapaismundo [1 Fev 2015]12 - Contornos de uma obra e da ideia de geografia, Lúcio Cunha no livro “Alfredo Fernandes Martins Geógrafo de Coimbra, Cidadão do Mundo”, coordenação António Campar de Almeida, Fernanda Delgado Cravidão, Lúcio Cunha, António Gama, Rui Jacinto, Coimbra: Instituto de Estudos Geográficos, Centro de Estudos Geográficos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006.13 - Maciço Calcário Estremenho: contribuição para um estudo de geografia física, Alfredo Fernandes Martins, Tese de doutoramento em Ciências Geográficas apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, publicada em 1949

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do seu mestre Fernandes Martins, mas também de outros desvendadores das formas de relevo da nossa meseta, Orlando e António Ribeiro ou António de Brum Ferreira, cujas performances sugeriam a convocação de grandes artistas das formas visuais e auditivas.14

António Gama (1948-2014), geógrafo de Coimbra, foi docente no Instituto de Estudos Geográficos e Investigador no Centro de Estudos Geográficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. As suas publicações abrangem temas da Geografia Social, processos de urbanização, Geografia Política e questões de Epistemologia das Ciências Humanas.

Cultivava, com orgulho e eficiência, uma oralidade de proximidade.A iluminá-lo, a imensidão de livros amontoados que em sua casa o cercavam literalmente, mesmo nas divisões mais improváveis.15

João Ferrão

Naquilo que se refere à minha investigação de doutoramento, “A fotografia como leitura da metamorfose do Porto de Lisboa. Um Atlas do tempo que passa.” o caso de estudo é o território da margem direita do rio Tejo, o Porto de Lisboa. Por isso apresento seguidamente algumas imagens e reflexões sobre o tema.

Na ordem natural das coisas, o rio precede a cidade. Se fosse possível fotografar do céu o estuário do Tejo no decurso da sua existência milenar, os fotogramas montados em sequência revelariam um traçado dinâmico, serpenteando a um ritmo frenético. Sob a influência dos astros, dos movimentos da terra, das sucessivas alterações climáticas e consequentes alterações do nível do mar, essa linha de água avançaria e recuaria, estendendo braços, inundando bacias, criando e abandonando meandros, recortando diferentes perfis de território.16

Pretende-se utilizar a fotografia como ferramenta de divulgação do conhecimento científico e de um olhar crítico, analítico e criativo sobre a evolução que se tem verificado no Porto de Lisboa.

Esta permitirá analisar a reconfiguração dos vários cais ao longo de décadas e as suas diversas utilizações.

A construção de um Atlas de imagens para estudo do Porto de Lisboa. Um Atlas para cada cais, formará assim um Atlas maior. O recurso à organização Atlas, confrontando épocas, morfologias e socio-geografias através da fotografia, pretende desenvolver um outro ponto de vista sobre os complexos e nunca lineares fenómenos da evolução. Através da escrita será feita a análise das imagens apresentadas no Atlas. As cartas militares, as plantas da cidade e as cartas hidográficas completam o estudo do espírito do lugar da margem direita do estuário do rio Tejo.

Recorrer-se-à a imagens de arquivos e imagens produzidas pela autora.O período de tempo escolhido para este estudo é o período de tempo da fotografia,

desde o seu início até à actualidade. Tentar-se-à tirar partido deste meio que, apesar de já não ser novo, é cada vez mais

contemporâneo, para aportar à zona de investigação um mundo de imagens. A fotografia será o documento e o modelo interpretativo para analisar os casos de estudo.

14 - António Gama ou uma “certa tradição geográfica”, Jorge Gaspar Centro de estudos geográficos do instituto de geografia e Ordenamento do território da Universidade de Lisboa, Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia no.99 Lisboa jun. 2015, http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0430-50272015000100012&lng=es&nrm=iso [15 Jul 2015]15 - António Gama: um geógrafo peculiar, João Ferrão, ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, artigo de homenagem a António Gama Mendes, http://passos-perdidos.blogspot.pt/ [15 Mar 2015]16 - Excerto da introdução p. 2 “Estudo de intenções para o Porto de Lisboa, na área entre Belém e Matinha, APL, 1ª fase”. Equipa: Aires Mateus, associados, Lda. Bugio II, arquitectura Lda. Pedro Domingos, arquitectos Lda. Arquitectura - Coordenação Manuel Mateus, arquitecto. Arquitectura - João Favila, arquitecto Pedro Domingos, arquitecto Teresa Goes, arquitecta. Textos - Diogo Seixas Lopes, arquitecto. História - Rui Tavares, historiador. Consultado no Porto de Lisboa, Sem data.

As novas Geografias dos países de Língua Portuguesa

127Luísa Ferreira

Porque sou fotógrafa a minha vida é a observação constante do sentir e do ver.A linguagem utilizada é uma mistura de imagens e palavras. A própria escrita, repleta de

citações, como uma colagem, tem essa forma de discurso heterogéneo.Textos e imagens que gravitam em torno de um tema, deixando o fio condutor da história

aos seus leitores, tal como na consulta de um Atlas.O ponto de vista expresso não é distante, tem que ver com a formação de um fotógrafo

que olha através da lente. Muitas das referências são circunstanciais e afectivas e não históricas. É a partir da fotografia que se partirá para a escrita, recolha, colagem de citações, apropriação. Na forma como o pensamento é organizado não se distinguem as imagens das palavras.

O advento da fotografia, na era da mecanização foi decisivo para a construção do Mundo Visual em que hoje vivemos. As imagens representam-nos.

Neste sentido, Italo Calvino (1923-1985) em Visibilidade17, sua quarta proposta para este milénio em que já nos encontramos, refere o ‘cinema mental’ implícito na produção e visualização das imagens, desde antes da invenção do próprio cinema, e que ‘nunca deixa de projectar imagens na nossa visão interior’.18

Fotografar é hoje uma banalidade e as imagens proliferam, estão em todo o lado.Com as “tecnologias do visível”,19 como refere Pedro Miguel Frade (1960-1991), em

constante evolução, quase todas as pessoas passam a vida a fazer imagens, imagens em movimento, imagens paradas, nítidas, desfocadas, coloridas, a preto e branco. Vivemos acompanhados por memórias registadas em fragmentos de papel, película, digital, imagens reais e virtuais.

O nosso mundo é essencialmente imagético. Como se cada um de nós tivesse nascido num poço de imagens que molda a nossa percepção do mundo.”20

Há aqui lugar para propôr: eu sou aquilo que vejo.Considera-se que a produção neste contexto terá a genuinidade do instantâneo

fotográfico e será um documento vivido de uma mutação, transformação. Em termos científicos, aguarda-se que seja simultaneamente uma reflexão que desta

forma só poderia ser tida neste momento e que se torne ela própria um documento singular de análise post factum.

Bibliografia

Alfredo Fernandes Martins Geógrafo de Coimbra, Cidadão do Mundo, coordenação CAMPAR DE ALMEIDA, António, CRAVIDÃO, Fernanda Delgado, CUNHA, Lúcio, GAMA, António, JACINTO, Rui. Coimbra: Instituto de Estudos Geográficos, Centro de Estudos Geográficos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006.CALVINO, Italo, Seis propostas para o próximo milénio. Lisboa: Teorema, 1990.FERREIRA, Luísa, Fernando Namora, itinerário de uma obra, introdução de José Manuel Mendes, Castelo Branco: Câmara Municipal de Castelo Branco, 1998. FRADE, Pedro Miguel, Figuras do Espanto. Lisboa: Edições Asa, 1992.Fernando Namora, nome para uma vida, textos de Rui Jacinto, Palmira Leone, José Manuel Mendes, Miguel Pessoa, António Pedro Pita, Lino Rodrigo. Castelo Branco: Câmara Municipal de Castelo Branco, 1998.

17 - Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milénio, Teorema, 1990, p.103.18 - Calvino, ibidem, p. 103.19 - Pedro Miguel Frade, Figuras do Espanto, Lisboa, Edições Asa, 1992, p. 7.20 - Branco, de Luísa Ferreira, projecto apresentado à Escola Superior de Design do IADE para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Design e Cultura Visual, opção de especialização em Estudos de Fotografia. Branco é um trabalho desenvolvido a partir do auto-retrato, traçando um percurso que passa pela auto-representação para construír a noção de ficção identitária. Esta, por sua vez, é baseada na ex-pressão “aquilo sou eu”, no sentido em que eu sou as minhas percepções. Refere a inevitabilidade do corpo na criação de espaço. Aborda o conceito de arquivo nas suas formas e propósitos, e assinala a sua importância para a construção da identidade. Reflecte sobre as potencialidades e a finalidade da fotografia no contexto actual.

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Portfolio de Luísa Ferreira, centrado na série sobre o escritor Fernando Namora e sobre o geógrafo Alfredo Fernandes Martins, Centro de Estudos Geográficos.

Fotografia, geografia, arquivo, documento, 2003

Vale Florido, da série “Fernando Namora itinerário de uma obra”, 1998

Universidade de Coimbra, da série “Fernando Namora itinerário de uma obra”, 1998

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Casa-Museu Fernando Namora em Condeixa, da série “Fernando Namora itinerário de uma obra”, 1998

Monsanto, da série Monsanto, da série“Fernando Namora itinerário de uma obra”, 1998 “Fernando Namora itinerário de uma obra”, 1998

Biblioteca do Centro de Estudos Geográficos, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, da série Alfredo Fernandes Martins Geógrafo de Coimbra, Cidadão do Mundo, 2003

Luísa Ferreira

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Choupal nos campos do Mondego, da série Mondego, da série Alfredo Fernandes Martins Alfredo Fernandes Martins Geógrafo de Coimbra, Geógrafo de Coimbra, Cidadão do Mundo, 2003 Cidadão do Mundo, 2003

Visita ao Maciço Calcário Estremenho com António Gama e Lúcio Cunha, da série Alfredo Fernandes Martins Geógrafo de Coimbra, Cidadão do Mundo, 2003

Maciço Calcário Estremenho, da série Alfredo Fernandes Martins Geógrafo de Coimbra, Cidadão do Mundo, 2003

António Gama (1948-2014), geógrafo na sua biblioteca em casa, da série Alfredo Fernandes Martins Geógrafo de Coimbra, Cidadão do Mundo, 2003

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131Lúcio Cunha

Finalmente o encontro: voltando ao início de uma migração no filme “Central do Brasil”, de Walter Sales (1998)Fátima Velez de CastroCEGOT/Departamento de GeografiaUniversidade de Coimbra

Uma criança e uma mulher encontram-se, por um trágico acaso, no maior terminal ferroviário do Brasil. Daí resulta uma sublime viagem Sul-Norte de regresso ao início de uma migração “desencontrada”, porém paralela, que os pais dessa criança tinham empreendido alguns anos antes, na direcção Norte-Sul, fitos na cidade do Rio de Janeiro.

Esta história, escrita em imagens, conta a geografia do ciclo da pobreza (Pain, 2001) das populações desfavorecidas, as quais por falta de oportunidades económicas e laborais justas (Sen, 2003) não conseguem realizar uma inclusão social digna (Borba e Lima, 2011) no lugar de origem, decidindo por isso deslocar-se. A busca de um território de destino migratório nem sempre resulta na realização da expectativa projectada pelos indivíduos. Este facto foi percebido pelo casal de migrantes, que vivendo desencontrados, compreenderam a urgência em voltar a casa. Todavia é o filho que consegue consubstanciar o encontro desejado pelos pais, regresso que implicou uma primeira viagem ao lugar inicial da concepção e que a criança desconhece, mas com o qual desenvolveu uma imaginária, ainda assim complexa, relação topofílica.

É um comovente reencontro num tempo de desencontros, que termina numa geografia feliz.

1.Começo: a história do encontro Esta história começa numa das maiores e mais conhecidas estações ferroviárias do Brasil

– a Central do Brasil. Começou por se chamar, em 1858, a “Estação do Campo”, depois “Estação da Corte” e “Estação D.Pedro II”. A designação “Central do Brasil” já era comum entre os usuários, porém foi a rodagem do filme com o mesmo nome que formalizou, em 1998, o nome da estação. Esta exigência tornou-se um imperativo dado o sucesso da obra junto do público, que se reconheceu neste território de encontros e desencontros, onde convergem as principais linhas de caminhos-de-ferro do Brasil.

No barulho infernal e no corre-corre do quotidiano de milhares de pessoas, o realizador apresenta-nos Dora, uma professora primária aposentada que escreve diariamente cartas para analfabetos migrante, numa pequena banca no grande átrio desta estação. Ela é o ponto de partida do ciclo da pobreza de PAIN (2001), personalizado neste caso pela multiplicidade de indivíduos que a procuram para refazer a viagem, o regresso ao ponto de partida, através de uma carta. Os seus clientes analfabetos são eclécticos: homens e mulheres; adultos em várias etapas etárias; origens geográficas diversificadas. Apenas um ponto em comum: são indivíduos que se deslocaram de várias partes do Brasil em busca de oportunidades de trabalho, do acesso a dispositivos sociais e económicos condignos (SEN, 2003). É uma população pobre que continua pobre após o processo migratório, em parte devido ao conjunto de obstáculos que se lhes vai colocando em diversas dimensões da vida (BORBA e LIMA, 2011), nomeadamente um fundamento de base estrutural que lhes foi vetado – o acesso à educação.

É neste contexto que a escrevedora de cartas conhece Ana, a mãe de Josué. Ana fugiu à dureza da vida no norte do Brasil e ao alcoolismo do marido, tendo-se deslocado para o Rio de Janeiro quando estava grávida do seu filho. Passaram alguns anos e o filho quis conhecer

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o pai; Ana também tem saudades do marido e pretende o reencontro. Dora escreve a carta que devia seguir no correio mas, tal como faz com tantas outras,

deixa-a condenada ao esquecimento. Juntamente com Irene, personagem-antípoda de Dora, decidem, mais do que o destino das cartas, o destino das pessoas e julgam-nas pelas suas decisões, pelos conteúdos que querem dar a conhecer aos destinatários. O curso normal acaba por ser o não envio, ou seja, a permanência no “purgatório” da gaveta. Segundo Camargo (2009) Dora não é só uma prestadora de serviços – paga para escrever cartas – mas assume-se como uma autoridade junto da população analfabeta, pois é ela que controla não só o conteúdo (só escreve o que quiser, da forma que entender), como também interpela a comunicação. É esta relação de poder (Lucci, 2011) que trava o acesso dos indivíduos à liberdade de escolha do seu próprio destino, condicionando-os à dependência imaterial de um canal de comunicação que, naquele contexto, só ela controla.

É por isso que Ana volta a procurar Dora para escrever uma segunda carta e Josué pergunta pelo destino da primeira. A escrevedora de cartas, uma personagem permanentemente amarga e frustrada, não gosta de ser questionada mas acaba por sucumbir à pergunta da criança, para não levantar suspeitas – disse que ainda não tinha enviado, mas que iria enviar. Josué quer muito encontrar o pai, pois só tem a mãe como único parente ou amigo naquela metrópole tão impessoal. Ele quer ir ter com o progenitor, adivinhando a viagem ao lugar inicial da concepção, que desconhece na realidade, mas com o qual desenvolveu uma imaginária, ainda assim complexa relação topofílica (TUAN, 2001).

Minutos mais tarde Josué perderá a mãe, que morre atropelada, e fica sozinho. Tem apenas no mundo, pensa ele, o pai, que mais não é do que uma afirmação existencial provada pelas palavras de uma carta, que se encontra na posse de Dora. Dora é portanto desde esse momento providencial, ainda que inicialmente contraditório, a única pessoa que o pode ajudar a empreender e consubstanciar o encontro desejado pelos pais, o regresso ao lugar de origem, que ele próprio desconhece, mas também deseja.

2. Depois do começo: o início do regresso Esta viagem é o reflexo ficcionado de uma realidade apresentada no ciclo da pobreza

de PAIN (2001). A autora apresenta pontos-chave de caracter estrutural – falta de acesso condigno a educação, emprego, habitação, justiça, saúde – que são visíveis ao longo de todo o filme.

A segurança é um deles. Dora apercebe-se que Josué fica sozinho e perigosamente vulnerável no átrio da Central do Brasil e decide tirar proveito monetário, vendendo-o a Pedrão, o líder de um grupo de criminosos que faz a manutenção da segurança da estação em troco do pagamento ilícito e coagido do serviço por parte dos pequenos comerciantes, que ali estabeleceram os seus negócios em lojas ou bancas ambulantes. Primeiro atrai Josué até sua casa, um pequeno apartamento que se localiza na periferia da cidade, sem áreas verdes visíveis e com uma densidade e construção muito elevada. É aí que Josué conhece Irene, com a qual simpatiza de imediato. Será esta personagem a voz da consciência de Dora, que se arrependerá de ter vendido a criança a Pedrão em troca de dinheiro, o qual gastará para comprar uma televisão a cores.

Dora coloca-se em perigo para resgatar Josué. O reencontro será fatal, já que o grupo de criminosos – anteriormente disfarçados de uma pretensa agência de adopção internacional – não permite retornos. A escrevedora de cartas decide então fugir da cidade e, aparentemente, cortar laços com o seu lugar habitual de vivência, pedindo a Irene que venda tudo o que puder do seu pequeno e pobre apartamento. Josué, magoado e confuso, reage de forma agressiva, dificultando o desejo de Dora em o acompanhar na viagem para a sua casa inicial, para o lugar da concepção, porém ela precisa de o seguir. Num verdadeiro instinto de sobrevivência individual e de responsabilidade sobre aquela criança, empreende a viagem Sul-Norte, com o objectivo de encontrar o pai e a restante família de Josué e a eles o entregar em segurança. Já não é só de Ana esta urgência. Também Dora e Josué pretendem voltar ao início de um percurso e de um projecto migratório que não é o deles (Haas, 2010), porém empreendido anos antes pelos pais da criança, e que resultou num desencontro. É hora de voltar.

As novas Geografias dos países de Língua Portuguesa

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3. A viagem: o percurso de Dora e Josué e a relação com os lugares A viagem, feita de autocarro, é longa e com várias paragens, voluntárias e involuntárias.

Por um lado, há momentos em que Dora quase desiste e pensa em não acompanhar Josué; por outro lado, nem sempre há transporte regular para o(s) destino(s) pretendido(s). A viagem não se torna longa, mas antes complexa e reveladora de aspectos relacionados com a dinâmica individual das personagens, os seus dramas e aspirações, assim como com a vivência territorial fora do ambiente urbano.

Na primeira parte do percurso Dora expõe o seu trauma de infância, ao se embriagar em público, situação comum no seu pai alcoólico com o qual pouco privou. Também Josué se embriaga, confirmando a possibilidade de repetição do facto na geração seguinte. Há uma pausa neste ponto da história, que se revelará num encontro com o passado. Tendo perdido de novo o autocarro, exaustos e famintos, um camionista – César - oferece comida e dá boleia aos dois viajantes. Dora revê na figura do camionista a figura do que tinha sido o seu pai, do ponto de vista profissional, e recorda a infância. César, como evangélico, sente-se prevaricador ao lado daquela mulher: primeiro quando é instigado a consumir álcool, numa das paragens para a refeição; mais tarde, quando inadvertidamente acoberta o roubo de comida numa das lojas para a qual transporta mercadorias. Dora insinua-se afectivamente e o camionista, receoso de um compromisso e atreito à liberdade que lhe dá a estrada, abandona-os numa paragem de autocarros, para desespero de Dora.

Para sair daquele lugar com Josué, troca o último bem que lhe resta – um relógio - por duas viagens numa carrinha de peregrinos que segue para uma romaria. A chegada é tensa e após uma discussão entre ambos, Dora sucumbe de exaustão.

É nesta parte da história que se dá o ponto de viragem no ciclo da pobreza. Josué, aproveitando as competências educativas da professora reformada, e analisando as necessidades de comunicação dos peregrinos, incentiva a Dora a retomar a sua actividade como escrevedora de cartas. Mais uma vez a população analfabeta, também ela exterior ao centro de peregrinação, requisita o serviço para enviar notícias e feitos milagrosos para as famílias que ficaram em casa. Só num dia, conseguem dinheiro suficiente para se hospedarem num modesto hotel, fazer uma refeição condigna e descansar convenientemente.

Destaque-se o papel da religião em todo o percurso (Santos, 2006). A imagem da Nossa Senhora e do Menino Jesus “aparece” ao longo do todo o filme: na pequena capela da estação de comboios; num quadro no apartamento de Dora; na romaria, durante o fogo de artificio e no local de pagamento de promessas. A vivência da espiritualidade e a convergência para um espaço de adoração, onde se dá o próprio milagre da viragem na história de Dora e Josué, apresenta-se como um pilar na vida de muitos intervenientes no filme, uma vez que é a espiritualidade que os faz suportar as agruras da vida e aceitar as limitações. O realizador destaca este aspecto, enfatizando-o como possibilitador da prossecução do itinerário, uma vez que são os peregrinos que permitem a obtenção de rendimentos materiais necessários.

Recuperados e remediados, seguem para a última etapa da viagem.

4. A chegada: finalmente o encontroA primeira morada da casa do pai de Josué está errada, ou melhor dizendo, já não está

actualizada. É um outro Jesus que lá mora, também com a esposa e filhos, como que a representar a família que poderia ter sido a da criança em viagem.

Mas a chegada de dois forasteiros à pequena povoação depressa chega ao conhecimento dos irmãos mais velhos de Josué - Isaías e Moisés – que querem conhecer “os amigos do pai”. Sem nunca se darem a conhecer a si nem às verdadeiras intenções, a mulher e a criança travam conhecimento com o seu quotidiano, com a casa e o bairro onde vivem. Apesar de se tratar de uma habitação modesta num traçado arquitectónico monótono e de baixo custo, os irmãos tiveram espaço suficiente para instalar uma promissora oficina de carpintaria. Além disso, a ausência de tráfego e o espaço exterior da rua, permite que os três irmãos joguem futebol e convivam com grande à vontade e em segurança (Pain, 2001). Saberão em breve que são irmãos, no entanto a empatia imediata entre ambos permite perceber que a viagem e o seu propósito estão quase concluídos.

Nas cenas últimas dá-se finalmente o encontro. Dora junta duas cartas no mesmo lugar, sobre um móvel e sob a fotografia do casal: Ana escrevera a Jesus, dizendo que desejava

Fátima Velez de Castro

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o reencontro; Jesus pedira a Ana que o esperasse, pois também ele viajara para a grande cidade e ansiava retornar. Pararia apenas uns tempos no garimpo, todavia a extrapolação do prazo de regresso leva a pensar que não o fará mais. Josué e os irmãos quedam-se com diferentes graus de esperança e expectativa. Certamente entenderão que a família está de novo reunida, no tempo e espaço que lhes é possível. Entretanto Dora sente que a sua missão está cumprida e deixa Josué na sua “casa”. Como recordação, cada um fica com uma foto tirada na romaria, em que ambos pousam ao lado da imagem do Padim Padre Cícero. Também ela finalmente se reencontra enquanto pessoa e enquanto mulher após imenso tempo de desencontros. A cena final, em que Josué se apercebe da partida da sua companheira de viagem, e em que Dora, envergando o vestido que a criança lhe oferecera de presente, segue pela estrada ao romper do novo dia, deixa ao espectador em jeito de conclusão: a de que a viagem de regresso culminou numa geografia feliz.

5. Bibliografia

Borba, Andreilcy Alvino; Lima, Herlander Mata (2011) – “Exclusão e inclusão social nas sociedades modernas: um olhar sobre a situação em Portugal e na União Europeia”. Serviço Social e Sociedade, nº106 (Abril/Junho), pp.219-240.Camargo, Fabíola Helena (2009) – Representação do analfabeto no filme “Central do Brasil”. Universidade Estadual de Campinas, Monografia de Licenciatura em Letras – Português, Brasil, 34 pp.Haas, Hein (2010) – “Migration and development: a theoretical perspective”. International Migration Review, nº44, 41 pp.Lucci, Elian Alabi (2011) – “A nova ordem mundial e a geografia do poder”. Ciência Geográfica, XV, Vol.XV (1), pp.13-17.Pain, Rachel et al (2001) – Introducing Social Geographies. Arnold Publishers, Nova Iorque, 308 pp. Santos, Maria da Graça Mouga (2006) – Espiritualidade, turismo e território: estudo geográfico de Fátima. Principia, Lisboa, 704 pp.Sen, Amartya (2003) – O desenvolvimento como liberdade. Gradiva, Lisboa, 384 pp.Tuan, Yi-Fu (2001) – Space and place. The perspective of the experience. University of Minnesota Press, EUA, 235 pp.

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O filme condicionando imagens einduzindo o turismo: o caso da “RoliúdeNordestina” no Cariri Paraibano

Luciano Schaefer PereiraDoutorando em GeografiaFaculdade de Letras, Universidade de Coimbra

Ingrydy Schaefer PereiraMestranda em AntropologiaCentro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal de Paraíba

Desde 1921, a microrregião paraibana do Cariri tem sido representada por inúmeras produções cinematográficas que utilizaram o município de Cabaceiras como cenário. Com o filme “O Auto da Compadecida” (1998), baseado na obra do poeta paraibano Ariano Suassuna, a cidade tem se tornado foco de turismo induzido pelo filme, tendo os gestores públicos criado, a partir de 2007, a marca ‘Roliúde Nordestina’ para o município, através de um projeto que torne Cabaceiras um polo cinematográfico. Este projeto, entretanto, não resultou em melhorias socioeconômicas para a população local, cuja expectativa é que este fluxo turístico, assim como a chegada constante de novas produções à cidade, traga consequências mais efetivas. Por outro lado, a produção fílmica realizada na região leva para outras áreas do país uma imagem de pobreza, ruralidade e seca, incentivando uma visão estereotipada do Sertão nordestino, o que pode ser explicado baseado nas teorias da política das representações, propostas por Hall (1997).

IntroduçãoO turismo fílmico, ou turismo induzido pelo filme, consiste em uma nova modalidade do

turismo cultural usado, por vezes, como sinônimo de turismo cinematográfico. Em termos conceituais, nesta modalidade se inserem os recursos turísticos de cultura popular, como as locações de uma determinada obra que é difundida nos meios televisivos, cinema ou internet, e que acaba servindo como uma mola propulsora para as atividades turísticas, ao divulgar uma determinada região que, agora, adentrará no universo turístico com uma rota cultural.

O filme tem o papel, neste caso, de recriar o território, gerando um novo atrativo extremamente distinto às condições históricas e culturais do local recriado e formando novos valores que são incorporados às películas exibidas. Como um dos impactos mais importantes que o cinema traz ao turismo, além do fato de servir como um disseminador de imagens motivadoras à prática turística, é a “capacidade de traduzir como ‘real’ o imaginário” (Campo et al., 2014: 161), ou seja, estabelece um conjunto de representações, que será discutido a posteriori.

Desde 1921, o município de Cabaceiras, localizado na microrregião do Cariri Oriental, no Estado da Paraíba, tem se tornado cenário de inúmeras produções cinematográficas nacionais, o que possibilitou adotar a alcunha de ‘Roliúde Nordestina’. Este nome fantasia, utilizado desde 2007, reinventou o espaço geográfico local, dinamizando a economia e modificando a qualidade de vida da população local, sendo uma tática comum para a construção de uma marca registrada e tornando-se um símbolo identitário para a região. A ligação entre turismo, território e cinema, mesmo que indiretamente, vêm de longa data, e o processo de globalização tem facilitado a disseminação de imagens que tem o papel de fortalecer este laço. Assim, as imagens relacionadas ao cinema, acabam por influenciar os destinos de viagem, principalmente nas últimas décadas e, no caso do Cariri Paraibano, em um período temporal menor. Os arredores do município de Cabaceiras, em especial o lajedo de Pai Mateus, ao se tornar cenário obrigatório de uma série de filmes produzidos na região,

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tornou-se símbolo icônico do semiárido sertanejo. Entretanto, no imaginário da população de parte do país, a imagem que se tem da região Nordeste é de uma área degradada, com gravíssimos problemas socioeconômicos e sem nenhum atrativo de ordem natural. Dependendo da maneira como o cinema perpetua esta imagem, acaba tendo culpa por esta deturpação da realidade.

Este trabalho propõe discutir duas questões primordiais que envolvem cinema, turismo e geografia: a possibilidade do fluxo turístico à região ter sido induzido pelos filmes que usaram como palco a cidade e; sob a ótica da política das representações, proposto por Hall (1997), o papel desta cinematografia para construir a imagem reproduzida do Cariri para outras regiões do país e, quiçá, do mundo e como esta política se territorializa no espaço, criando estereótipos e prejudicando a imagem. Entretanto, considerando a complexidade e multiplicidade dos discursos e conceitos acerca deste tema, manteremos à margem o histórico engendrado pelas Ciências Sociais, através de autores como Moscovici, Durkheim ou Levi-Bruhl, por exemplo, cujo tema foi recorrente em suas obras.

O turismo induzido pelo filme e o CaririO cinema tem diversos papeis para a sociedade moderna: entreter, divulgar e incentivar,

um ‘soft power’, onde o peso de cada um deles depende de como o filme é interpretado nas mentes de quem o vê, que é uma consequência da maneira como o filme constrói as representações e imagens, do ponto de vista cultural, e que será discutido mais adiante. Um espectador pode assistir uma determinada película, praticamente sem visão crítica, com o único intuito de passar 90 minutos longe da realidade vivida, num sentido estrito de entretenimento. É muito comum, entretanto, pessoas se deslocarem para um determinado local como consequência da motivação que a imagem exibida em um filme impulsiona, cuja intenção do turista, dessa maneira, é vivenciar um pedaço da realidade exposta nas imagens, sejam dos aspectos naturais, sejam dos aspectos culturais (Busby; Klug, 2001). Ou seja, o cinema tem o papel de influenciar comportamentos e formar opiniões, dinamizando atividades, sejam elas positivas ou não. O deslocamento até o local em que um filme foi gravado inclui benefícios esperados de ordem funcional, social, emocional, epistêmica e condicional como resultado da percepção que o espectador tem das imagens assistidas (Tapachi; Waryszak, 2000: 38).

Temos, nesse caso, o que Beeton (2005) chama de turismo induzido pelo filme, como uma especificidade do turismo cinematográfico, que é algo bem mais restrito. Deste modo, o turismo induzido pelo filme tem a capacidade de turistificar determinados territórios, podendo reinventar este espaço enquanto destino turístico, gerando novos efeitos, positivos ou negativos. Afinal, o cinema tem papel fundamental na maneira como conceitualizamos determinado território e, posteriormente, no modo como o vivenciaremos durante a atividade turística.

Esta prática turística, segundo a autora, pode se desenvolver ‘on- location’, ou seja, em cenários abertos, ou ‘off- location’, quando gravadas em estúdios. Em locais onde esta atividade ‘on- location’ está consolidada, empresas turísticas desenvolvem tours ao longo dos cenários e locais de filmagens, como igrejas, casas, entre outros, festivais comunitários e a reinvenção dos locais (Rilley et al., 1998).

Este turismo fílmico traz aspectos positivos e negativos: entre os positivos, a não necessidade de sazonalidade turística, que pode estar presente o ano inteiro e em qualquer situação climática (Schofield, 1996: 335). Como aspectos negativos, quando o fluxo é intenso, ressalta-se as mudanças no cotidiano da população local, como no trânsito, maior circulação de pessoas, aumento dos preços, entre outros.

Segundo Beeton (op. cit., p. 45), este destino turístico acaba por envolver uma gama de negócios, como o setor de transportes, acomodação, refeição, entre outros, gerando emprego e dinamizando a economia, às vezes revitalizando um espaço que estava ocioso e dando novas perspectivas à população local. Os organizadores de marketing de destino utilizam quatro estratégias para atrair visitantes, residentes e negócios: imagem, atrações, infraestrutura e marketing pessoal, tendo a imagem e as atrações um papel crucial (Kotler et al., 1993).

Uma estratégia para potencializar a imagem turística da região é justamente investir em seus patrimônio cultural e natural, desagregando a imagem de lugar pobre e agrário

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para um sítio onde o pitoresco e exótico se entrelaçam de maneira harmoniosa. O Sertão Nordestino, nomeadamente, é reconhecido como uma região pobre, seca e agrária, e as imagens reproduzidas nos filmes que possuem esta região como locação colaboram nesta situação. O belo pôr-do-sol sobre o lajedo de Pai Mateus, a vegetação xerófita típica, as pequenas casas coloridas, a igrejinha em frente à praça, o povo simpático, seus pratos típicos tendo o bode como matéria-prima são alguns exemplos de reconstrução de uma imagem que substitua uma imagem negativa de pobreza e seca, gerando uma identidade que pode tornar-se ícone turístico se adequadamente desenvolvido.

Esta situação paradoxal em que o cinema se insere torna-se, no mínimo, curiosa e motivo de reflexão: um instrumento indutor de imagens e um instrumento de imagem orgânica, duas realidades contrastantes, separadas por uma tênue linha de difícil nitidez. A imagem negativa transmitida pela filmografia poderia ser substituída pensando-se numa lógica de cinema induzido, comprometendo a liberdade da obra criativa ao implicar novos meios de se ver o sítio reproduzido, e seu povo.

Cabaceiras, a ‘Roliúde Nordestina’ O município de Cabaceiras localiza-se na microrregião do Cariri Oriental, na mesorregião

da Borborema e na sub-região do Sertão nordestino, segundo a regionalização de Rodriguez (2002), a cerca de 190 Km de João Pessoa (figura 1).

Segundo o Censo 2010, sua população é de 5035 hab., espalhados em uma área de cerca de 453 Km2, o que resulta em uma densidade demográfica de um pouco mais de 11 hab/ Km2.

Os indicadores socioeconômicos da região Nordeste estão entre os mais baixos do país, sendo a sub-região sertaneja a grande ‘região-problema’ do Nordeste, onde estas características negativas se potencializam. Consiste em uma região deficitária, do ponto de vista econômico, cuja economia se baseia em minifúndios policultores de subsistência e pecuária tradicional. Em alguns locais específicos, entretanto, desenvolveram-se ilhas de modernidade, como os arredores de Petrolina (PE)- Juazeiro (BA), no Vale do São Francisco, com seus pomares de frutas (melão e uva) ou Mossoró (RN), com a exploração de petróleo e sal, e agricultura moderna com cultivo de frutas (melão e manga). Ademais, sua população possui os mais baixos índices de desenvolvimento humano do país.

Do ponto de vista físico, o município localiza-se no Planalto da Borborema, no interior do ‘Polígono das Secas’, onde o clima semiárido é um dos mais rigorosos do Brasil, com precipitações na ordem de 300 mm/ ano, considerado o local mais seco do país. O meio biótico florístico adaptou-se a esse rigor climático, desenvolvendo xeromorfismos, enquanto os recursos hídricos apresentam déficits anuais, passando parte do ano em condições de intermitência.

Fig. 1 - Localização do município de Cabaceiras, inserido na Mesorregião da Borborema, na Microrregião do Cariri Oriental.Fonte: Silva (2014: 9)

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Com respeito ao geopatrimônio, destaca-se o famoso Lajedo do Pai Mateus (figura 2), um lajedo formado por caos de blocos de rochas monzograníticas que serviu de cenário para inúmeras produções, como novelas e filmes, sejam de ficção quanto documentais, pela sua beleza cênica incomparável, o que possibilitou ser conhecido por boa parte dos brasileiros. Este cenário, ao se tornar marcante, acaba por se associar à imagem do Cariri, gerando um símbolo que é utilizado, inclusive, pelos meios midiáticos para promover a propaganda local.

A estas características naturais entrelaçam-se um patrimônio cultural que simboliza o cotidiano de seu povo. Por este motivo, misturado a outros de ordem técnica, Cabaceiras, mais que qualquer outro lugar na região, tem se tornado destino de produções fílmicas, sejam cinematográficas ou televisivas, cujas narrativas, no geral, retratam as condições socioeconômicas da população, ambientado em um cenário de semiaridez.

Figura 2- As funcionalidades do Lajedo do Pai Mateus. a) Visão ampla do lajedo e de seus caos de blocos; b) cenário da novela “Aquele Beijo”, da TV Globo, produção de 2011; c) entrada ao Lajedo, com a cabana que serviu de cenário, conforme visualizados na fig. 2b.

Foto: 2a- Marcos Nascimento; 2b- G1; 2c-Marcos Nascimento.

Da filmografia produzida em Cabaceiras, boa parte se refere a documentários, de curta ou média- metragem, executados por realizadores locais, que mostram o cotidiano da população da região, desde 1921. Entretanto, o filme que deu notoriedade ao município foi “O Auto da Compadecida”, produção de 1998, com elenco nacional e baseado na obra do poeta paraibano Ariano Suassuna. Embora a narrativa seja passada em Taperoá, cidade-natal do autor, a cidade de Cabaceiras foi escolhida como cenário parcial do filme, que se tornou a maior bilheteria nacional do ano 2000. Considerando que o filme “torna-se geográfico pelos espaços que representa e pelas percepções territoriais que estimula” (Fernandes, 2013: 242), a escolha de Cabaceiras pouco influencia no resultado final pois ambas se localizam no Cariri e possuem uma paisagem natural e cultural, a grosso modo, similar. O alto nível de popularidade desta obra possibilitou atingir um público maior, que se tornou potencial turista cinematográfico. Desta maneira, um espaço degradado economicamente ganhou centralidade

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turística ao se tornar a imagem da narrativa literária de Suassuna, reconhecidamente mística e folclórica. Criou-se, assim, novas narrativas de regeneração que se basearam no patrimônio cultural urbano e rural e seu geopatrimônio, onde os signos e sinais embasaram estas novas representações do espaço.

Se a associação literária, que ocasiona representações culturais, é algo recorrente em outras partes do mundo, como Praga de Kafka ou a Nova Inglaterra de Henry Thoreau, para dinamizar e promover o turismo em algumas localidades, tal atividade no Brasil é incipiente, servindo como divulgador do patrimônio natural e cultural, e se fortalecendo quando levado às telas, pois a imagem tem um forte poder significador, como veremos adiante. No caso do Sertão, em especial o Cariri, a figura do escritor e poeta Ariano Suassuna tem tido papel crucial, pois alguns de seus livros acabaram se tornando obras fílmicas. O universo místico, baseado em literatura de cordel, do filme “O Auto da Compadecida” ou da microssérie “O Romance da Pedra do Reino”, por exemplo, com forte impacto visual, faz com que a paisagem natural tenha um papel predominante na história, e também foram cruciais para a escolha do sítio selecionado. O Cariri tornou-se marcante na obra de Suassuna, assim como a obra de Suassuna é importante divulgador da paisagem do Cariri.

Assim, o município de Cabaceiras tem se tornado um destino turístico induzido pelos filmes apenas recentemente, assumindo a função de espaço de consumo e de produção. Muitos turistas que fluem em direção ao município tem interesse de conhecer os cenários de filmes famosos ou o local por onde personagens atuaram, a exemplo de

João Grilo e Chicó, do “Auto da Compadecida”, anti-heróis do romance picaresco, de forte apelo popular, acrescentando uma nova categoria ao turismo fílmico, uma vertente topobiográfica.

Durante as semanas em que o filme foi gravado, parte da população participou das filmagens como figurantes, assim como parte do elenco interagiu com a comunidade local. Algumas residências do Centro Histórico serviram de cenário para a obra, e hoje tornaram-se pontos turísticos para quem visita a cidade (figura 3).

Até hoje, passados quase 20 anos da época da produção, os moradores ainda lembram desta participação, contando histórias aos turistas ou expondo fotografias que comprovam a veracidade dos fatos.

A escolha de Cabaceiras como lócus de filmagem é explicada principalmente por questões técnicas, como o clima semiárido, com pouquíssimas chuvas, a luminosidade praticamente anual e uma paisagem inóspita, que reflete, como um cenário de estúdio, as características da mesorregião do Sertão, com seus açudes e rios intermitentes, vegetação xerófita, solo pedregoso e geoformas belíssimas. Ademais, a área urbana mostra uma patrimônio cultural relativamente preservado, com suas pequenas casas coloridas, sua igreja e a praça, o pastor e suas cabras, as festas típicas e a religiosidade. Soma-se a isso o alargamento da extensão dos limites da atividade cinematográfica nacional, até então restrita ao eixo Rio - São Paulo, a procura de novos cenários e enredos, territorializados no espaço local e (re)construídos no enredo das obras fílmicas, representando um típico processo de difusão da produção cinematográfica. Estes elementos condicionam a filmagem e a mensagem que o realizador quer passar, muitas vezes ligadas, portanto, a imagens de pobreza, seca e ruralidade. Afinal,

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estas características, sociais e naturais, que influenciaram na escolha de Cabaceiras como lócus das filmagens, acabaram se revertendo em imagens que vão ser construídas e assumidas como uma realidade que se estende por todo o Sertão Nordestino e, às vezes, para a Região Nordeste, como se fossem uma realidade territorial verdadeira, estimulando uma imagem e resultando em efeitos reais e concretos.

O fluxo turístico em direção a cidade, até então, possuía uma sazonalidade restrita às festividades do chamado ‘Bode Rei’, um festival gastronômico anual, que ocorre geralmente nos primeiros fins de semana de junho, quando as festas juninas se aproximam. Todavia, a cidade tem apresentado dificuldades em se inserir em circuitos turísticos de cunho cultural, como um todo, ainda mais cinematográfico. Os impactos no desenvolvimento da região, automaticamente, tem sido modestos. Se a curto prazo, a dinâmica fílmica promove melhoria nas condições econômicas locais, a longo prazo estas imagens devem se transformar em formas de divulgação de seu patrimônio de modo a incrementar as atividades turísticas. A partir deste pressuposto, a administração pública local começou seus trabalhos para tornar o município de Cabaceiras um polo cinematográfico regional.

Em 2007, a Prefeitura Municipal desenvolveu um projeto para dinamizar a potencialidade de Cabaceiras como polo cinematográfico regional. Esse projeto, com financiamento do Banco do Nordeste, tinha o intuito de fortalecer a imagem da cidade como tendo vocação para o cinema. Assim, o Museu da Memória Cinematográfica e o Espaço Cultural do Banco do Nordeste foram resultados destes investimentos, sendo inseridos nos roteiros turísticos que passaram a, efetivamente, se desenvolver desde então (Silva, 2014, op. cit., p. 12- 13).

Em maio de 2007, foi decidido pelo poder público instalar, na entrada da cidade, um letreiro, com 70 X 5 metros, com os dizeres ‘Roliúde Nordestino’ (figura 4), uma alusão ao letreiro que existe no alto do morro em Los Angeles, na Califórnia. Este é um exemplo da turistificação do território, consequência do reconhecimento de suas potencialidades e visando, a curto prazo, dinamizar a economia de uma área estagnada, com melhoria da qualidade de vida da população local. Se estes efeitos, quase 10 anos depois de implementado o Projeto, foram sentidos, é o que veremos a seguir.

Figura 4- Placa na entrada da cidade, com os dizeres ‘Roliúde Nordestina’.

Foto: Marcos Nascimento.

O nome - fantasia ‘Roliúde Nordestina’, oficialmente adotado desde 2007, tem o papel de associar a produção fílmica a Cabaceiras, o que por si só acaba por se tornar um geossímbolo local, ou uma espécie de monumento, e se enraizar em outras regiões, como um slogan, propositalmente jocoso com seu aportuguesamento da palavra ‘Hollywood’, que sirva como atributo para estimular o turismo local. Fixado em um lugar estratégico, na entrada da cidade, no alto de um morro, acaba se tornando um ponto de visitação e de registro fotográfico, criando uma identidade para a cidade. Entretanto, é importante ressaltar que as preocupações imediatas no planejamento territorial não devem estar relacionadas, apenas, ao aumento do número de turistas em visita à Cabaceiras, mas também às consequências

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que este efeito tem para a comunidade local, ainda mais que esta comunidade, restrita e tradicional, facilmente pode ser afetada por mudanças de atitudes e representações sociais.

O plano municipal de desenvolvimento pecou em vários aspectos, o que ajuda a explicar seus parcos efeitos positivos. Segundo Silva (op. cit, p. 35; 37), a população não participou da pauta das discussões ou prioridades almejadas; não havia pretensão de viabilizar o desenvolvimento das habilidades performáticas ou técnicas de sua população, mesmo que ela eventualmente participasse, como figurante, de várias obras lá locacionadas; a comunidade não se envolveu na produção dos filmes, servindo apenas como receptores de tais produções. Assim, foi difundido entre a população nativa um sentimento de pertencimento àquela que seria a ‘Terra do Cinema’, o que seria suficiente per si como ferramentas para desenvolver uma cidadania, mesmo que não plena.

O autor (p. 86) afirma que são os gestores públicos aqueles que ovacionam as consequências positivas da visibilidade trazida com a indústria cinematográfica, como o aquecimento do setor de serviços e do comércio, advindo do incremento no fluxo turístico, discurso este que não é unânime entre a comunidade. Para ela, o cinema não foi difundido como prática local. Ou seja, a gestão tornou o território como uma vitrine para dois públicos especiais: os produtores de cinema e os turistas. À margem, a população assiste seu espaço sendo reinventado mas pouca participação tem sobre os eventos que decorrem.

Existiu no município, entretanto, a elaboração, por parte da Secretaria Municipal de Turismo, de cursos de formação de condutores turísticos, sob responsabilidade do SEBRAE, entrando na pauta do Plano Diretor da cidade, em 2007. É crucial uma visão empreendedora de que a popularidade de um filme como “O Auto da Compadecida”, que participou no incremento turístico regional, pode ser responsável também por criar um leque turístico de nicho, englobando outras nuances do filme, e não só as locações. Como exemplo, podemos citar características culturais do sitio e do povo do município de Cabaceiras, assim como a participação daqueles personagens que atuaram na obra como figurantes e que podem dar seu contributo de alguma forma. A curto prazo, um grupo de moradores locais, com idades entre 15 e 25 anos, se tornou guias turísticos informais, com o papel de apresentarem “um pouco da história de sua cidade, seus pontos turísticos e os lugares que serviram de cenários para alguns dos inúmeros filmes ali produzidos”, posteriormente contratados pelo Museu da Cinematografia, onde três selecionados dividem um salário mínimo (Andrade, 2008). Esse é o valor dado para aqueles que serão responsáveis em tratar diretamente com o turista e divulgar a verídica versão dos fatos que se sucedem no ‘Polo Cinematográfico Nordestino’.

Ademais, muitos dos turistas que visitam a região, portanto, tem interesse em conhecer o lajedo onde foram gravadas as cenas do filme “Cinema, Aspirinas e Urubus”, a casa de pau-a-pique da novela “Aquele Beijo” (figura 2b), a igreja ou a casa do padeiro do “Auto da Compadecida” (figura 3) ou o açude de “Romance”, e esta equipe de moradores realiza este desejo.

A política das representações e a imagem do CaririA palavra ‘representação’, do ponto de vista do senso comum, designa usar uma

imagem, como linguagem, reproduzindo uma ideia, que tenha um significado, ou represente o mundo de maneira significativa para outro. Do entendimento da imagem cinematográfica como cultura, com ênfase no seu significado, ao exercício da linguagem, Hall (op. cit.) ampliou o significado do termo ‘representação’, onde o discurso teria papel fundamental, baseado principalmente nas ideias de Foucault (1972). Assim, o autor considera as práticas de representação como uma chave fundamental para compreender como se processa e se organiza o mundo da cultura, uma vez que a linguagem ou, neste caso, a imagem tem o intuito de passar uma mensagem para o mundo, mensagem esta constituída de sentidos (figura 5). Afinal, representar é usar a imagem para dizer algo significativo a outrem.

Pela figura 5, temos a concepção de cultura como um conjunto partilhado de significados, o que possibilita a imagem funcionar como um processo de significação. A imagem atribui sentido, e seu significado deve ser compartilhado pelo acesso comum a ela. Como esta imagem é representada, ou seja, o que sentimos, pensamos e como fazemos uso dela é o que lhe dá significado, onde o papel da interpretação da imagem é fundamental. Ela possibilita a criação de um mapa conceitual partilhado, através do qual podemos compartilhar significados ou conceitos.

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Figura 5- Resumo da relação entre Cultura e Linguagem/ Significado através da Representação.

Fonte: modificado de #thinkindesignblog.wordpress.com.

A partir dos anos 1960, vários filmes com temática nordestina levaram além-fronteiras uma imagem do sertão: ‘Pagador de Promessas’ (1962), vencedor do Festival de Cannes; ‘Vidas Secas’ (1963), baseado na obra de Graciliano Ramos, entre outros. A temática das obras cinematográficas oriundas da ‘Roliúde Nodestina’ se manteve, estabelecendo uma imagem para o mundo sobre uma realidade de pensamento que reflete o cotidiano do povo do Cariri, assim como seu entorno enquanto paisagem natural. Esta imagem é estabelecida, assim, a partir de um conjunto de representações que são atravessados pela visão proveniente da população externa que as assiste, como por exemplo, no centro- sul do pais, uma visão deturpada que é incentivada pela filmografia nacional. Não podemos esquecer que estes significados culturais, segundo Hall (op. cit., p. 3) têm efeito real e regulam práticas sociais. Daí a visão xenófoba que uma elite minoria conservadora tem em relação à Região Nordeste, pois esta linguagem visual acaba por criar estereótipos, uma vez que os símbolos, narrativas, figuras, entre outros, ou seja, onde circula o significado simbólico, são erroneamente interpretados ou tendenciosamente representados. Afinal, os significados são construídos pelos sujeitos culturais, sendo embutidos na mente de quem os interpretam, que acaba se tornando algo natural. Assim, ao se referir a palavra ‘Nordeste’, no imaginário de parte da população do Centro- Sul, em especial do Sudeste, que convive diariamente com uma população migrante do Nordeste, afloram símbolos clássicos nordestinos, como o forró, a seca, o jumento, o chapéu de couro, entre outros.

A filmografia que retrata o Nordeste, com raríssimas exceções, retrata uma imagem miserável da região, uma terra do cangaço e do coronelismo, em pleno século XXI. Estas imagens possuem, portanto, um caráter social e que acabam moldando a construção do sentido através de um sistema de representação, conceitos e signos, o que Hall (op. cit., p. 25- 26) denominou de ‘teoria construcionista ou construtivista de representação’. O resultado é a construção de uma imagem do Nordeste que se generaliza, que não é uma verdade absoluta, mas apenas relativa. A relação das imagens com o espectador é afetado por diversos fatores: onde o filme foi visto, com quem e em que momento, gerando uma identidade maior ou menor com a obra e os elementos retratados por ela (Beeton, op. cit., p. 27).

A capacidade humana para o processamento mental da imagem (Hall, op. cit., p. 17- 18)

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como a um sistema de representação, torna a interpretação da imagem distintamente de um indivíduo para outro. Estes sons, imagens e palavras são os signos que representam os conceitos e relações conceituais, onde o cinema é capaz de estabelecer um tipo de comunicação em que a paisagem natural pode servir como chave de sua configuração, enquanto imagem. Assim, o processo que vincula conceitos, sinais e linguagens é o que se entende por representação, que por sua vez se aplica inteiramente a linguagem cinematográfica. Afinal, se a imagem tem o poder de motivar os viajantes, criar novas imagens, alterar aspectos negativos ou fortalecer imagens fracas, criando ícones (Beeton, op. cit., p. 20), pudemos exemplificar como o contrário também é verdadeiro.

Levando-se em consideração que o cinema é uma forma de representação que se compromete com as visões do mundo no contexto em que foi gerado, as obras filmografadas no Cariri não são uma exceção. O problema é que se a imagem tem o poder de formar conceitos, gera-se uma imagem recorrente estereotipada do sertão, a partir do Cariri, que acaba por se estender para toda a região Nordeste.

ConclusõesA sociedade moderna vive a era das imagens, onde boa parte do comunicação e da

informação se processa através do fenômeno imagético. A imagem tem o poder de influenciar atitudes e comportamentos, onde o modo como o espectador percebe o lugar representado acaba por condicionar tais atitudes e decisões espaciais. Os lugares filmados, ao serem disseminados por uma gama cada vez maior de meios de difusão, como cinema, TV e internet atingem um público maciço, onde a imagem atrativa acaba por ser inserida em um roteiro turístico, gerando uma nova funcionalidade para o espaço ao criar lugares específicos e territorializar a atividade do turismo (Fernandes, 2013: 240- 241).

O município de Cabaceiras, durante todo o século XX, tornou-se cenário de inúmeras obras cinematográficas que representavam sua paisagem natural e patrimônio cultural. Entretanto, a partir de “O Auto da Compadecida”, baseado na obra de Ariano Suassuna, poeta regional, associado a investimentos públicos para disseminar uma imagem de polo cinematográfico em pleno sertão, as atividades turísticas induzidas pelo filme tornaram-se incipientes, gerando renda e dinamizando a economia, mesmo que de modo parco.

Se as imagens influenciam os gostos, as ideias e condutas de quem as veem, a atração ou repulsão que elas geram proporcionam sentimentos topofílicos ou topofóbicos, respectivamente. No caso do Cariri paraibano, estes sentimentos se mesclam quando imagens de um geopatrimônio belíssimo e um patrimônio cultural rico é mostrado ao lado de condições de vida miserável de um povo que vive de maneira tradicional, sem os benesses da vida urbana moderna. Talvez este misto de atração e repulsão seja a causa de que, verdadeiramente, um fenômeno de turismo induzido pelos filmes não tenha se processado de maneira efetiva em Cabaceiras, o que requer novas estratégicas para reajustar e melhorar esta imagem fraca e contraditória.

O cinema possui uma linguagem que acaba levando ao pensamento ideias forjadas da realidade representada. Assim, o cinema serve a uma política de representações quando cria identidades que podem estereotipar uma determinada região. É a territorialização das representações, criando uma imagem da Região Nordeste como uma região seca, pobre e agrária, carregada de religiosidade e misticismo, pois esta é a imagem que as produções cinematográficas que utilizam o Cariri paraibano transmitem para o restante do país e, quando o alcance é maior, para o mundo.

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Endereço URLStuart Hall - Representation - Review. Disponível no site #thinkindesignblog.wordpress.com. Acesso em 02 maio 2015.

AgradecimentosOs autores agradece à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)- Ciência sem

Fronteiras (CSF) pelo financiamento desta pesquisa, através da bolsa de estudos para o Doutoramento Pleno em Geografia Física, pela Universidade de Coimbra (processo nº 11988-13/4).

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Novas geografias, crise e interdisciplinaridade: enfrentandodesafios propostos pela produção doespaço urbano na modernidadeEda GóesUNESP - BrasilProjeto CAPES/FCT

IntroduçãoMuitos são os autores, sobretudo das Ciências Sociais, que vem procurando definir a

Modernidade e suas mudanças. Dentre eles, Zygmunt Bauman (sociólogo polonês, radicado nos EUA há muitos anos) pode ser considerado um dos mais originais. Dentre as suas ideias que atestam isso, destaco duas.

A primeira diz respeito a sua origem. Para Bauman (2015), a Modernidade se inicia com o terremoto de Lisboa (1755), o que pode ser interpretado como reconhecimento da importância de Portugal que experimentava então período de intenso enriquecimento em função da descoberta de ouro em sua colônia, o Brasil1. O protagonismo atribuído a uma tragédia ocorrida nesse país, que implica necessariamente em levar em conta seus desdobramentos, possibilita uma ampliação do seu alcance para além do Hemisfério Norte.

Outra contribuição, mais conhecida e bem fundamentada, diz respeito à “metáfora dos líquidos” para explicitar características como flexibilidade, inconstância, velocidade das mudanças e das adaptações exigidas... fundamentais ao entendimento das experiências cotidianas de cada um de nós, e dos processos de urbanização (urbanização do mundo), por exemplo. A partir dessa metáfora (Modernidade líquida, Medo líquido, Amor líquido, Tempos líquidos...), Bauman (2007) identifica cinco mudanças experimentadas atualmente. Em primeiro lugar, menciona a “passagem da modernidade sólida para a modernidade lí-quida” (Bauman, 2007, p.7), na qual as organizações sociais (instituições que asseguram a repetição de rotinas, limitam comportamentos...) não podem mais manter sua forma por muito tempo e nem se espera que o façam, tornando inviáveis, por exemplo, projetos de vida. Entrevistas que vem sendo feitas nos últimos anos2, no âmbito de pesquisas desenvolvidas na área da Geografia Urbana, pelo GAsPERR (Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais)3, permitem que os impactos e expressões cotidianas dessa mudança sejam evidenciadas, como no seguinte exemplo:

... estamos perdendo nossas crianças para as drogas. Você vê que os presidentes de bairro tentam fazer alguma coisa, mas tudo é muito custo, muito caro. [...] aí eles perdem a referência de jogar um futebol, jogar um vôlei, jogar basquete, porque tem uma área de lazer no nosso bairro, uma academia, mas eles não vão participar porque entraram no vício [...] O primeiro passo a gente volta lá atrás: família! As famílias, com certo tempo, ela perdeu sua referência [...] Então quando você vê uma família desestruturada, quem sofre é a sociedade. [...] outro fator principal é a religião. [...] A pessoa tem que ter religião... (Pedro4,

1 - No âmbito do período colonial destaca-se o “ciclo do ouro” que ocorreu no século XVIII. A despeito do curto apogeu, entre 1730 e 1750, o volume de ouro retirado das Minas Gerais e levado para a metrópole portuguesa é estimado em mil toneladas. Parte significativa desse ouro foi transferida para a Inglaterra, em função dos acordos comerciais firmados com Portugal.2 - A inserção e o significado dessas entrevistas, como procedimento de pesquisa na área de Geografia Urbana, é questão discutida nos tópicos seguintes desse artigo.3 - Grupo de Pesquisa do Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP – Univer-sidade Estadual Paulista - Brasil.4 - Os nomes dos entrevistados sempre são fictícios.

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55 anos, funcionário público, Jardim São Bento, Presidente Prudente – SP)5

Em segundo lugar, Bauman (2007, p.8) discute “a separação entre poder e política”, uma vez que grande parte do poder de agir efetivamente, antes disponível ao Estado Moderno, agora se afasta em direção ao espaço global. Exemplar é o problema do desemprego, identificado como central por muitos cidadãos, mas cujos fatores são relacionados a decisões tomadas muito além das próprias fronteiras da nação.

O “fim da segurança comunal” (Bauman, 2007, p.8), apontado em terceiro lugar, também diz respeito à segurança garantida pelo Estado e ao seu monopólio da violência, mas é decorrente do fato de que a sociedade cada vez mais é representada como rede e não como uma estrutura, o que reforça a importância da fragmentação socioespacial, processo que vem caracterizando a produção do espaço urbano em cidades brasileiras. Nesse sentido, as observações de Pedrazzini e de Furedi são tão radicais, quanto instigantes:

Há mais estranhamento e distância entre dois bairros de uma mesma cidade, divididos pelas dinâmicas urbanas, que entre duas cidades com elementos comuns de urbanidade, construídas pelos mesmos modos globalizados de produção. (Pedrazzini, 2006, p.57)Cidadãos do Cairo e de São Paulo podem sentir o medo de maneira diferente dos de Paris e Londres, mas em todos esses lugares são os medos individualizados que predominam. (Furedi, 2009, p.7)

Em quarto lugar, “a impossibilidade de planejamento de longo prazo” (Bauman, 2007, p.9) que, quando aplicada à cidade, suscita o questionamento: estaremos nos confrontando novamente com a “colcha de retalhos”, como foram representadas muitas cidades europeias do século XIX, chamadas de “cidades liberais” por Benévolo (2003), até que as primeiras reformas urbanas, iniciadas em Paris (século XIX), revertessem esse quadro? Além disso, relacionando a terceira e a quarta característica, também questionamos: quando a insegurança não foi uma das características centrais das cidades?

Mas como a História ensina, é preciso atentar para as especificidades de cada período, para as relações entre as mudanças e as permanências, não como categorias excludentes, mas envolvendo contradições e retrocessos. Assim, a partir da Revolução Industrial, identificamos um novo aspecto assumido pela insegurança, que passou a ser associada quase exclusivamente à presença de inimigos internos diversos. Eram as multidões revoltosas e frequentemente violentas, os muitos pobres que se marginalizavam, incluindo as crianças, que passaram a agitar as ruas das cidades superpovoadas, as doenças que afetavam principalmente os mesmos pobres mal alimentados, mal abrigados e mal agasalhados, mas que a eles não se limitavam, transformando-se em epidemias. Enfim, a insegurança estava intimamente associada à problemática convivência dos diferentes segmentos sociais, dentre os quais se destacava, pelo papel que desempenhou na consolidação da sociedade capitalista, essa multidão de pobres que nunca deteve o controle do processo de transição, mas que dele se encarregou, sendo sempre, portanto, uma presença necessária e inevitável.

Frente a tal quadro, que foi se desenhando a partir do século XVIII, com diferentes ritmos, mas em âmbito mundial, estratégias de controle social foram sendo experimentadas, tendo muitas delas se institucionalizado: a polícia, a prisão, os asilos, os hospitais e manicômios, os códigos sanitários e de saúde pública, códigos de trânsito e de uso do solo urbano etc. Sem deixar de levar em conta que tais estratégias nunca foram totais, ou seja, sempre comportaram desvios, fissuras e até mesmo geraram revoltas, mesmo assim obtiveram considerável eficácia, sobretudo nos países que alcançaram maior desenvolvimento econômico e social. Nas últimas décadas, no entanto, em face das novas mudanças experimentadas pelo próprio modo capitalista de produção, essas estratégias de controle social vêm se revelando cada vez mais insuficientes, sobretudo com o crescimento da violência urbana que, embora assuma diferentes formas, atingindo com mais intensidade as grandes cidades dos países menos desenvolvidos, está longe de ser exclusiva dessas cidades e desses países.

Outro aspecto desse processo de mudanças aceleradas da cidade, marcado também pelo

5 - Entrevista realizada por Clayton Ferreira Dal Pozzo, durante pesquisa de doutorado defendida em 2015, sob o título “Fragmentação socioespacial em cidades média paulistas: os territórios do consumo segmentado de Ribeirão Preto e Presidente Prudente”.

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acúmulo de contradições que caracterizaram sempre a convivência forçada (Seabra, 2004, p.183), evidencia-se quando se compara o presente com o contexto antes referido (século XIX, até início do XX), quando era necessário aventurar-se em bairros perigosos para, de acordo com os preceitos liberais, esquadrinhar, intervir, controlar, sanear, normatizar, civilizar, enfim, modernizar tais espaços urbanos. Apostava-se num determinado futuro:

a literatura faz crer que a cidade chegou a ser promessa de um mundo melhor porque dela foi veiculada para a sociedade inteira uma imagem de mundo com novas possibilidades, principalmente para os imigrantes rurais que deixavam os arados e as enxadas. (Seabra, 2004, p.187)

Tais aspectos confrontam com as mudanças nos modos atuais de se lidar com o passado, com a memória e, portanto, com o próprio tempo, já que a impossibilidade de conceber algo além do presente impacta diretamente o futuro como algo novo, para além do que já está estabelecido no presente. Mas, se foi apenas de forma fragmentária, através de pistas e indícios (Ginzburg, 1989), que nossos entrevistados fizeram referência às dificuldades causadas por tal impossibilidade de visualizar o futuro, a supervalorização do presente foi predominante, expressando-se como o “modo pelo qual todo nosso sistema social contemporâneo começou, pouco a pouco, a perder a capacidade de reter o seu próprio passado, começou a viver em um presente perpétuo e em mudança perpétua” (Jameson, 2006, p.44), combinado à inexistência de expectativa de eventos ainda por vir, já que “os ´futuros` são reflexivamente organizados no presente” e por ele “colonizados” (Giddens, 2002, p.33 e p.112), quer pela impossibilidade, quer pela incapacidade de lidar com o novo, com o imponderável, sempre associado ao risco (Beck, 1998), seja ele de que natureza for. Podemos então compreender melhor a observação de Beck (1998, p.40) de que “o centro da consciência do risco não reside no presente, mas no futuro”, levando em conta as interpretações de Giddens e Jameson, que, por sua vez, estão presentes na seguinte passagem de entrevista feita com um casal residente em condomínio fechado de Marília, cidade média do interior do Estado de São Paulo (Brasil):

Com as medidas de segurança que a gente tomou, está de bom tamanho. Se no futuro a gente perceber que começou entrar bandidos e marginais em condomínios, aí nós vamos passar para um prédio, depois de prédio, se começarem a entrar, daí a gente não sabe para onde a gente vai, acho que daí vai para o céu! Ou para Miami, como a gente queria... (Andréia e Paulo, 41 e 60 anos, dona de casa e funcionário público aposentado, Marília)6

Por fim, Bauman (2007, p.10) constata que “as responsabilidades não [são] mais sociais, mas individuais”, o que implica, além de um enorme peso nos ombros dos indivíduos, uma valorização da flexibilidade. Embora sejam inúmeros os desdobramentos possíveis, destacamos dois deles, escolhidos por sua importância, um relativo à escala global e outro, à nacional (brasileira).

Muitos autores têm discutido a mudança de eixo da organização social, da produção para o consumo, ou, em outros termos, de uma organização baseada na disciplina, para outra em que as regras não são mais necessárias, bem como deixou de ser necessária uma parte crescente dos trabalhadores. A despeito do caráter polêmico de tal perspectiva, ela nos fornece um parâmetro para explicar outras transformações, como aquelas relacionadas ao comportamento dos jovens moradores de muitas periferias urbanas, e não apenas brasileiras, que têm sido constatadas por pesquisadores, citando-se, por exemplo, as mudanças no uso da linguagem. Assim, de acordo com André (2004), até o início dos anos 1990, aproximadamente, ladrão era a forma característica utilizada por agentes penitenciários e policiais para se referirem aos presos, suspeitos ou condenados, enquanto nos anos 2000, o termo passou a ser cumprimento corriqueiro entre jovens da periferia paulistana, entre manos7.

6 - Entrevista realizada no âmbito da pesquisa cujos resultados deram origem ao livro “Espaços fechados e cida-des: insegurança urbana e fragmentação socioespacial” (Sposito e Góes, 2013)7 - A constatação também expressa preocupante redefinição (ou indefinição) dos limites e distinções entre ordem e desordem, além de ser mais um forte indício da fragmentação experimentada pela cidade, na qual parece haver cada vez menos práticas e valores compartilhados.

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No caso brasileiro, a última constatação de Bauman estimula ainda que nos interpelemos sobre a possível reversão do sentido da emergência do sujeito. Num contexto em que os movimentos sociais urbanos assumiram grande protagonismo na transição em direção ao fim da ditadura militar (anos 1970 - 1980), a emergência desse sujeito político foi inicialmente festejada, mas posteriormente suplantada, inclusive pelas desilusões em relação à experiência com o socialismo real e às estratégias políticas a ele vinculadas, que tiveram forte impacto na produção acadêmica das Ciências Humanas. É exemplar a perspectiva adotada no livro de Eder Sader (1988), “Quando novos personagens entram em cena”, cuja “cena”, referida no título, é o panorama político e social (do final da década de 1970), muitas vezes também da cidadania, enquanto hoje, trata-se da emergência do indivíduo, cada vez menos interessado nas suas conexões sociais, de vizinhança etc., conforme o seguinte depoimento colhido num bairro popular de Ribeirão Preto (SP – Brasil) demonstra: “Segurança nenhuma! Eu e Deus mesmo. [...] Tem policiamento, mas acho que não resolve”8.

Com base nas mudanças abordadas na obra de Bauman (2007), cuja particularidade talvez resida na capacidade de articular aspectos subjetivos a mudanças objetivas, sobretudo de ordem econômica e política, tantas vezes constatadas por outros pesquisadores como mudanças nas formas de acumulação de capital e de concentração industrial e tecnológica, mudanças na produção e nos processos e relações de trabalho, privatização e desregulamentação..., enfim, chegamos a um quadro geral de “incerteza endêmica”, de insegurança, que vai muito além da violência urbana, mas não a exclui.

Boaventura de Souza Santos (2002 e 2006) acrescenta importantes complicadores a esse quadro já bastante complexo. Para ele (2002), vivemos uma “crise do contrato social”, entendido como “a metáfora fundadora da racionalidade social e política da modernidade ocidental”9, com base na qual podemos desvendar a profunda diferenciação entre o que é aceitável e inaceitável para diferentes moradores de uma mesma cidade, a que se referiram, ainda que indiretamente, muitos de nossos entrevistados10, quando falaram, por exemplo, da “mudança nos valores”, que explicaria o aumento da violência urbana. A esse respeito, é exemplar a declaração de Marcola (líder do PCC)11, quando cumpria pena na Penitenciária de Regime Especial de Presidente Bernardes (SP – Brasil), ao que tudo indica, dada por telefone celular, ao jornal O Globo (julho de 2006) e divulgada pela internet:

Eu era pobre e invisível [...] Já somos uma outra espécie, já somos outros bichos, diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração [...] A morte para nós é o presunto diário desovado numa vala...

Em que pesem seus esforços para impressionar e amedrontar, as referências que norteiam esse trecho do depoimento são significativas, por tocar numa questão limite, a morte, e noutra central nesta sociedade, a visibilidade, desvalorizando a primeira e supervalorizando a segunda, numa dialética de identificações e desidentificações. A impossibilidade de se chegar a consensos mínimos entre os moradores de uma mesma cidade, apontada por Souza Santos (2002), ainda que de modo indireto, também adquire maior relevância frente ao depoimento radical acima citado. Além disso, o autor identifica um processo de substituição do contrato social pela economia de mercado, promovida pela globalização articulada à sociedade de consumo e da informação (Souza Santos, 2006). Como sua expressão, o que se reivindica é a inclusão pelo consumo e não mais pelos direitos, conforme já observava Milton Santos (2002, p.25), em 1978, “em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário”.

Em todos esses aspectos, as cidades são, simultaneamente, expressão e fator de processos amplos, próprios da Modernidade. Assim, a contribuição da Geografia Urbana é fundamental, ainda que a interdisciplinaridade seja entendida como alternativa para evitar a

8 - Entrevista realizada por Clayton Ferreira Dal Pozzo, durante pesquisa de doutorado defendida em 2015, op cit.9 - O autor baseia-se nessa constatação para comprovar a necessidade de uma nova concepção de Estado (Santos, 2002). 10 - Entrevistas realizadas com moradores de condomínios fechados de Marília, Presidente Prudente e São Carlos, no Estado de São Paulo – Brasil, no âmbito da pesquisa cujos resultados deram origem ao livro “Espaços fechados e cidades: insegurança urbana e fragmentação socioespacial”, op. cit.11 - Organização criminosa criada no interior de penitenciárias paulistas, o PCC, Primeiro Comando da Capital, começou a ser conhecido quando organizou uma megarrebelião penitenciária em fevereiro de 2001.

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compartimentação da realidade e possibilitar a apreensão da sua complexidade. São algumas das potencialidades da Geografia Urbana que pretendemos demonstrar nesse texto.

1. Pesquisas em Geografia Urbana: muito além da metrópoleDois pressupostos norteiam as proposições desse tópico. Primeiro, numa perspectiva

quantitativa, é importante reconhecer que parte significativa da população mundial é urbana, mas não vive em metrópoles, ao mesmo tempo em que a maior parte dos conhecimentos produzidos nas pesquisas sobre questões urbanas volta-se ao “fato metropolitano”.

Segundo, a partir de parâmetros qualitativos é possível propor definições para “cidades médias” que permitem, por exemplo, caracterizar cidades como Coimbra e Presidente Prudente, como cidades médias, levando em conta as diferenças entre a rede urbana brasileira e a portuguesa, os tamanhos populacionais de cada uma e as relações entre espaço e tempo (Correia, 2007). Assim, Coimbra tem 102.202 habitantes, uma universidade fundada em 1290 com cerca de 20 mil estudantes do mundo todo, enquanto Presidente Prudente foi fundada em 1917, tem atualmente 203.370 habitantes e desempenha notável centralidade no Oeste Paulista, região do estado de São Paulo onde se localiza e na qual predominam as pequenas cidades.

A despeito do caráter sumário dessa comparação, ela já sugere que a compreensão dos processos de produção do espaço urbano exige o recurso constante aos pares dialéticos: perto e longe; visível e invisível; dentro e fora; espaço e tempo; geral e particular. O último ganha ainda maior importância quando levamos em conta o impacto das crises econômicas, como a atual, que tem significado perdas para muitos, como é o caso dos portugueses. Mas tem significado o fim daquilo que não foi mais que uma promessa para os brasileiros, ou mesmo, que chegou a ser uma construção ideológica, como a expressão “nova classe média”12, empregada para se referir a 50,45% da sua população, em 2009, sugere.

A problematização do par dialético “geral e particular” ganha novo sentido, quando voltamos às contribuições originais de Bauman (2015), para quem uma revolução já está em curso, a crise econômica mundial faz parte dela, assim como o “fim das classes médias”. Além das diferentes espacialidades, as diferentes temporalidades, e suas relações, precisam ser levadas em conta, e uma das perspectivas possíveis para articula-las é a do cotidiano.

2. Para não dizer que não falei das flores13: Geografias da vida cotidiana como uma proposta de investigação

Segundo Lindón (2006), a “geografia da vida cotidiana” não é interesse novo, mas não chega a constituir um campo, por seu caráter transversal: geografias urbanas, culturais, do turismo... Torsten Hagerstrand (1916 - 2004, Escola de Lund, Suécia) foi um dos primeiros geógrafos a contribuir para a análise sistemática das práticas com sua espaço-temporalidade. São reconhecidas as inovações metodológicas presentes em seus trabalhos, como registros sistemáticos de práticas espaço-temporais, trajetórias diárias, tempos empregados – casa/trabalho, compras, lazer... – produzindo uma linguagem sistemática. No entanto, ele não leva em conta a subjetividade constitutiva da vida cotidiana, o que foi evidenciado a partir dos anos 1980, com o reconhecimento de que não há prática sem seu sentido, ao mesmo tempo em que o tempo também é reconhecido em sua complexidade, deixando de ser reduzido à duração das práticas, uma vez que envolve repetição, ciclos, tendências, trajetórias espaço-temporais... Mas boa parte desses avanços decorre de contribuições de outras disciplinas (sociologia, psicologia social, linguística, história...), das quais as “Geografias da vida cotidiana se retroalimentam” (Lindón, 2006, p.357).

A partir das contribuições dessa geógrafa mexicana, chega-se a assertiva de que: As Geografias da vida cotidiana estudam a relação espaço/sociedade nas suas interações, que se referem a pessoas situadas espaço/temporalmente em um contexto intersubjetivo desde o qual dão sentido ao espaço e ao outro, em um processo constante de interpretação (resignificação) e de construção dos espaços de vida. (Lindón, 2006, p.357)

12 - Expressão empregada pelo Governo Federal, pela mídia e pelo marketing, para se referir à expansão do consumo verificada a partir do primeiro Governo Lula (2003 – 2006).13 - Referência livre à letra da música de Geraldo Vandré, “Caminhando”.

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Ao demonstrar que questões aparentemente banais expressam dimensões da vida social que merecem análise profunda, evidencia a importância do reconhecimento de sujeitos ativos, mesmo que suas práticas não cheguem a ter o alcance e o rol de possiblidades disponíveis para os agentes, representados pelas grandes empresas, pelo poder público e, inclusive, pelos movimentos sociais (organizados). No entanto, não se trata de adotar a perspectiva presente na obra de Henri Lefebvre (marxista), na qual a vida cotidiana se concebe como totalmente organizada pelo capital, o que implica na interpretação do cotidiano como alienação, a partir de análise estrutural (Lindón, 2006, p.376).

O que se busca é reconhecer o papel desempenhado pelos citadinos no cotidiano, com ênfase na produção dos espaços urbanos que envolvem a possibilidade de inovação, mesmo que tal possiblidade nem sempre seja facilmente idenficável aos pesquisadores, exigindo, portanto, o desenvolvimento de procedimentos metodológicos adequados e de fundamentação teórica capaz de lidar com a referida dialética entre mudança e permanência, entre conformismo e resistência.

Com base nesses pressupostos, o que propomos é o re(encontro) com os sujeitos sociais, pela pesquisa empírica urbana (que se teoriza), como vem sendo feito em pesquisas como “Espaços fechados e cidades: insegurança urbana e fragmentação socioespacial”14, na qual foram entrevistados moradores de espaços residenciais fechados de classe média e elite de três cidades médias paulistas; “Os sentidos da casa própria: condomínios populares fechados e novas práticas espaciais em Presidente Prudente e São Carlos”15, na qual foram entrevistadores moradores de espaços residenciais populares fechados e de bairros populares abertos dessas duas cidades do Estado de São Paulo (Brasil); “´Uma cidade, um shopping, uma experiência`: o Shopping Iguatemi Ribeirão Preto e as relações reais e simuladas com o espaço urbano”16, na qual são entrevistados trabalhadores desse shopping center; “Fragmentação socioespacial em cidades médias paulistas: os territórios do consumo segmentado de Ribeirão Preto e Presidente Prudente”17, na qual foram entrevistados moradores de diferentes espaços urbanos, de favelas a condomínios de luxo.

Nessas e noutras pesquisas, um dos procedimentos metodológicos empregados, por vezes o principal, envolve a preparação cuidadosa de roteiros temáticos de entrevistas, contatos para viabilizar o agendamento de entrevistas com sujeitos diversos (citadinos residentes em diferentes espaços urbanos, sujeitos bem informados [administradores públicos e privados, comerciantes, empresários, delegados de polícia etc.], jovens consumidores e trabalhadores de shopping centers, moradores de espaços residenciais populares fechados, moradores de espaços residenciais fechados de classe média e elite...), gravação e posterior transcrição das mesmas, organização do material transcrito e análise, sempre levando em conta os objetivos de cada projeto de pesquisa, mas tendo em comum o reconhecimento de cada entrevistado como “sujeito social”.

Além dos resultados que vem sendo alcançados, apostamos na potencialidade de pesquisas realizadas a partir da perspectiva do cotidiano, sobre o Programa Habitacional Minha Casa Minha Vida (MCMV), em vigor no Brasil desde 2009 (Governo Lula: 2003/2010 – Governo Dilma Roussef: 2011/2015). O MCMV entregou até abril de 2015, 2,09 milhões de unidades habitacionais, subsidia unidades habitacionais a partir do crédito e da redução de juros do financiamento. Esse programa é direcionado a três faixas de renda mensal (com formatos e taxas diferentes):

Faixa 1: até R$ 1.600, através de cadastro na prefeitura municipal e � pré-análise, pagam 5% da renda bruta familiar, em até 120 meses;� Faixa 2: até R$ 3.100;� Faixa 3: até R$ 5 mil. �

A despeito da grande oportunidade para milhões de brasileiros, sobretudo quando se leva em conta um déficit habitacional na Faixa 1, de 90,9% (até 2009), o MCMV sofre duras críticas, sobretudo por enfrentar a questão habitacional, mas reproduzindo (ou agravando) outros problemas urbanos, como o isolamento e a falta de perspectiva dos jovens, dificuldades

14 - Livro publicado em 2013 por Sposito e Góes (op. cit.) com resultados de pesquisa desenvolvida desde 2007.15 - Dissertação defendida por Viviane Fernanda de Oliveira em 2014.16 - Pesquisa de iniciação científica realizada por Marina Clementoni Costa Borges desde 2014.17 - Tese de doutorado defendida por Clayton Dal Pozzo em 2015, op. cit.

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de acessibilidade, conflitos entre vizinhos, ameaça de dominação de grupos criminosos... No lançamento, em 2009, foi “apresentado como uma das principais ações do governo

em reação à crise econômica internacional e também como uma política social de grande escala” (Shimbo, 2010, p.93). A partir do subsídio de unidades habitacionais, crédito para aquisição de habitações e ainda redução de juros, o objetivo do programa é “impactar a economia através dos efeitos multiplicadores gerados pela indústria da construção” (Cardoso e Aragão, 2013, p.35). A prioridade aos interesses das empresas construtoras se revela tanto na operacionalização do programa, como no volume de recursos destinados. Segundo Fix e Arantes (2009), 97% do subsídio público disponibilizado, com recursos da União, são destinados à oferta e produção direta por construtoras privadas, e apenas 3% a entidades sem fins lucrativos (como cooperativas e movimentos sociais).

Cardoso e Aragão (2012, p.44) sintetizam em oito pontos as críticas realizadas por diversos especialistas quanto ao MCMV, das quais destacamos quatro: 1. falta de articulação do programa com a política urbana; 2. ausência de instrumentos para enfrentar a questão fundiária; 3. problemas de localização dos novos empreendimentos; 4. grande escala dos empreendimentos.

Todas essas críticas, assim como os resultados das primeiras pesquisas realizadas em cidades nas quais o MCMV teve empreendimentos implantados, não apenas reafirmam os problemas previstos, em função da desconexão entre política habitacional e política urbana, como acrescentam novos problemas, decorrentes das novas temporalidades que caracterizam a produção e a difusão das representações sociais. Assim, poucos meses após sua ocupação, já são considerados por muitos citadinos, como espaços perigosos a serem evitados18, ou seja, reproduzem os processos de segregação socioespacial, assim como seus desdobramentos, tão negativos para aqueles que vivenciam cotidianamente os estigmas territoriais, quanto para os demais moradores da cidade. Isso se evidencia, por exemplo, quando os jovens pobres moradores desses grandes e distantes conjuntos habitacionais recém-inaugurados transpõem os limites do bairro, insistindo em exibirem-se dentro de uma estética global juvenil. Destacam-se através da presença marcante das turmas e dos atos de violência, ensejando um modo de “re-territorialização” na ampliada “ética do lazer” que predomina no “lado oficial da cidade” (Diógenes, 1998, p.38).

Nas cidades brasileiras, a “sociedade do consumo” (Baudrillard, 1991) é reproduzida, com todos os encobrimentos e distorções que implica, inclusive a supervalorização da aparência, do parecer ao invés do ser, e de outros atributos notadamente individuais, aos quais os jovens são particularmente suscetíveis.

Todos esses processos estão presentes em cada um dos espaços urbanos, com suas características gerais e particulares, produzindo socialmente citadinos, que são também sujeitos que produzem espaços urbanos, cada um dentro das suas possibilidades, as quais também são socialmente produzidas. Mas as críticas ao MCMV não levam em conta a atuação dos moradores desses grandes conjuntos habitacionais, seja em suas estratégias, individuais e coletivas, para enfrentar os problemas que surgem no seu cotidiano, justamente quando o acesso à casa própria foi conquistado, seja na identificação de outros problemas, além daqueles previstos pelos pesquisadores, ou seja, as críticas não consideram esses citadinos pobres como sujeitos sociais, inclusive em sua heterogeneidade, como homens e mulheres, jovens e velhos, trabalhadores e pensionistas, conectados e desconectados etc.

Como os pares dialéticos - local e global; homogêneo e heterogêneo; continuidade e descontinuidade; mudança e permanência; material e imaterial; consumidor e cidadão; centro e periferia; encolhimento do Estado e centralidade do Estado – se articulam em cada uma das áreas periféricas de cidades brasileiras impactadas pelo MCMV? Pesquisas que respondam a essa questão precisam ser realizadas com especial atenção às consequências da inclusão pelo consumo, aos limites e possibilidades que enseja, uma vez que integram o amplo rol de contradições contemporâneas às quais as concepções de modernidade buscam dar sentido.

Em seguida, transcrevemos fragmentos das primeiras entrevistas feitas com novos moradores desses conjuntos habitacionais implantados nos últimos anos (desde 2013),

18 - Em pesquisa realizada em Araçatuba e Birigui (SP), com base em entrevistas de citadinos residentes em di-ferentes áreas das duas cidades, Magrini (2013) recolheu depoimentos que identificam os empreendimentos do MCMV, recentemente ocupados, como áreas perigosas.

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especialmente da Faixa 1, em Presidente Prudente19, com o intuito de evidenciar sua poten-cialidade:

Na verdade, tem horas que eu acho que ninguém gostaria de morar aqui nesse bairro, por causa desse problema: você é honesto, você trabalha, você anda em cima da lei do seu país, aí você é discriminado pelo bairro?

É longe! Ele é longe. Porque é uma coisa que não dá pra você ir a pé. É longe, se você não tiver dinheiro, você não sai.

Aqui é difícil a gente sair, fica mais em casa. Lazer não tem. Só se subir lá para o centro.

Os coitados dos meninos vão jogar bola lá embaixo, vira e mexe meu filho vem com o pé cortado, alguma coisa machucada. Não tem um campinho, não tem nada no jeito!

Esse é um bairro que ele é fora da cidade, ele não é dentro. Quer dizer que nós não somos ninguém?

Quem não tem carro não sai daqui... De sábado e domingo eles põem um [ônibus] hora sim, e outro hora não ... [as casas] eram todas iguais. Eram só dois quartos, banheiro e cozinha. Não tinha muro, não tinha nada. A gente foi mexendo aos pouquinhos. Muramos. Colocamos piso, porque só tinha piso na cozinha e no banheiro. A gente foi melhorando...20

Fotos 1 e 2: Conjuntos habitacionais João Domingos Neto e Tapajós, Presidente Prudente, SP, Brasil.Fonte: Eda Góes, fevereiro de 2015.

19 - As fotos tem objetivo ilustrativo, o que se justifica em função do público alvo desse periódico.20 - Entrevistas realizadas por Viviane Fernanda de Oliveira como parte de sua pesquisa de doutorado.

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Para terminar, perguntamos: “hoje vivemos o fim do futuro”21? A partir de pesquisas realizadas na perspectiva da Geografia do Cotidiano, e do reencontro com os sujeitos sociais que ela possibilita, pode ser que a resposta seja negativa. E pode ser que essa seja uma perspectiva importante de pesquisa para outras geografias, não apenas no Brasil.

Referências Bibliográficas

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21 - Pergunta que poderia ser formulada com base em Bauman (2001), Beck (1998), Giddens (2002), Jameson (2006), entre outros.

Eda Góes

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O contributo do turismo sustentável para ainclusão das comunidades e para a promoção da paz em áreas transfronteiriças: a Área Transfronteiriça de ConservaçãoOkavango Zambeze – ATFC KAZA/Angola

Amélia CazalmaDoutora em Ciências da Educação pela Universidade de Granada e

Doutoranda em Turismo e Desenvolvimento pela Universidade de Coimbra

Lúcio CunhaCEGOT – Universidade de Coimbra

Fernanda CravidãoCEGOT – Universidade de Coimbra

1. Introdução - Áreas Transfronteiriças de Conservação (ATFC)A nível da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) existem vários

instrumentos na forma de políticas e quadros legais que proporcionam um ambiente propício para o estabelecimento e desenvolvimento das ACTFs na região, incluindo o Protocolo sobre Conservação de Fauna Bravia e Policiamento da SADC (1999), Protocolo sobre Florestas da SADC (2002), Protocolo sobre os Cursos de Água Partilhados da SADC (2002) e a Estratégia Regional de Biodiversidade da SADC (2006). Os acordos relevantes sobre a conservação e gestão dos ecossistemas marinhos baseiam-se na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar - CNUDM (1982), a Convenção para a Proteção, Gestão e Desenvolvimento do Ambiente Marinho e Costeiro da Região da África Oriental - Nairobi (1985), a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição causada por Navios - MARPOL (73/78) e a Convenção sobre a Prevenção da Poluição Marinha por Alojamento de Resíduos e Outras Matérias - Londres (1972).

De acordo com Programa da SADC para as ATFCs (2013), o conceito da gestão conjunta de recursos naturais partilhados para além das fronteiras internacionais ganhou impulso considerável na sequência da Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada no Rio de Janeiro, Brasil, em 1992. Em 2004, os países que ratificaram a Convenção sobre a Diversidade Biológica adotaram, durante o Congresso Mundial de Conservação, o objetivo de estabelecer e fortalecer “redes regionais, áreas protegidas transfronteiriças e a colaboração entre áreas vizinhas protegidas para além de fronteiras nacionais”, sob o seu “Programa de Trabalho para as Áreas Protegidas”. Um novo marco alcançado neste Congresso foi o lançamento dos “Parques para a Paz”, uma iniciativa da Peace Parks Foundation (PPF) e a União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN).

A fronteira é, em termos gerais, um espaço de demarcação e limite, longe dos centros gravitacionais dos respetivos países e, em muitos casos, até é um factor de conflito, que é trabalhado de forma diferente. Por via da centralidade ecológica e do paradigma ambiental, a fronteira pode ser um fator de progresso e de cooperação entre comunidades que, apesar de separadas do ponto de vista político-administrativo, vivem nos mesmos ecossistemas.

Uma área protegida representa sempre um risco social porque impõe limites ao uso dos recursos, mas também constitui uma oportunidade para o bem-estar e a participação das

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comunidades que nela ou dela vivem.Desde os primórdios dos anos noventa, vários Estados Membros da SADC têm estabelecido

as ACTFs por meio de um acordo bilateral ou multilateral, como proposto no Protocolo da SADC sobre Conservação da Fauna Bravia e Policiamento de 1999.

De acordo com as nossas anteriores abordagens (Cazalma et al., 2014), existem 18 Áreas Transfronteiriças de Conservação em ambientes terrestres e marinhos entre os Estados Membros da SADC, e algumas envolvem parcerias com Estados não-membros da SADC.

O território angolano integra 4 destas áreas Transfronteiriças de Conservação: a ATFC KAZA (Angola, Botswana, Namíbia, Zambia e Zimbabwe), a ATFC Iona Skeleton Coast (Angola e Namíbia); a ATFC Maiombe Forest (Angola, Congo Democrático e Congo Brazaville) e a ATFC Liuwa Plains Mussuma (Angola e Zâmbia).

Relativamente à ATFC KAZA e de acordo com o seu Tratado Constitutivo (2011) a gestão regional apresenta os seguintes órgãos constituintes na sua estrutura organizacional que compreendem (i) o Patrono da ACTF KAZA; (ii) o Comité Ministerial composto pelos Ministros responsáveis pelo meio ambiente, recursos naturais, vida selvagem e turismo dos países parceiros; (iii) Comité Directivo do Projecto sob os auspícios do Secretariado da SADC composto pelos Secretários Permanentes ou Directores Nacionais dos Ministérios responsáveis pela ACTF KAZA dos cinco países parceiros; (iv) o Comité Técnico dos oficiais oriundos dos países parceiros e os seus intervenientes respectivos; (v) Comités Nacionais Directivos; (vi) os Grupos de Trabalho e (vii) o Secretariado da ACTF KAZA; (viii) o País Coordenador, conforme organigrama abaixo (figura 1):

Figura 1 – Organigrama do projecto ACTF KAZA

Amélia Cazalma | Lúcio Cunha | Fernanda Cravidão

156As novas Geografias dos países de Língua Portuguesa

Patrono da ACTF KAZA Em Dezembro de 2006, os Ministros aprovaram a recomendação da nomeação de um

“Patrono” para a ATFC KAZA para liderar e promover o desenvolvimento da ATFC KAZA. Esse cargo ainda não foi preenchido, contudo, estará aberto a personalidades reconhecidas internacionalmente e a personalidades eminentes de qualquer país parceiro. Foi orientação do Presidente da República de Angola, de 15 de Janeiro de 2015, que fosse criada uma Comissão de Honra composta pelos cinco Chefes de Estado dos Países integrantes, este Comité ainda esta por concluir. Em nosso entender será uma grande valia, ter este Comité de Patronos em funcionamento, pois ajudará a dirimir vários constrangimentos, assim como proporcionará uma alavancagem política ao desenvolvimento da área da ATFC KAZA.

Comité Ministerial O Comité Ministerial da ACTF KAZA representa o nível superior de responsabilização e

decisão da ACTF KAZA e é composto pelos ministros responsáveis pelas pastas ministeriais de ambiente, recursos naturais, vida selvagem e turismo de cada país parceiro.

Comité Directivo do Projecto O Comité Directivo do Projecto é composto pelos Secretários Permanentes dos países

parceiros ou Directores Nacionais, Secretariado da SADC, o agente executor do projecto, agências doadoras. Este órgão supervisiona e monitoriza o uso e gestão dos fundos doados em prol do desenvolvimento da KAZA.

Comité Técnico O Comité Técnico é composto por Altos Funcionários dos governos, das autoridades

locais, do Secretariado do KAZA e um representante do Secretariado da SADC. O Comité Técnico da ACTF KAZA (TC) possui a responsabilidade dupla de garantir a implementação do programa através da tradução das decisões do Comité Ministerial em planos de acção e da supervisão do funcionamento e funções do Secretariado da ACTF KAZA.

Comités Nacionais Diretivos Este fórum representa os vários atores da ACTF KAZA que participam no processo de

planeamento geral e de desenvolvimento. Sugere-se que os Comités Nacionais Diretivos funcionem a nível nacional e local. A nível nacional, a composição dos Comités Nacionais Diretivos compreende atores importantes com o mandato para influenciar as decisões sobre a ACTF. Os Comités Nacionais Diretivos foram estabelecidos em todos os cinco países.

Grupos de TrabalhoO estabelecimento e o desenvolvimento da ACTF KAZA incluem outros sectores para

além do âmbito da conservação de recursos naturais e do desenvolvimento do turismo. Para conceder a esses sectores a oportunidade de participarem no processo de planeamento da ACTF KAZA, foram criados três grupos de trabalho: Defesa e Segurança; Turismo e Comunicação e Conservação e Comunidade, cada país parceiro indicou representantes para os diferentes grupos que poderão ser provenientes dos sectores público ou privado de cada país. Esses peritos temáticos reúnem-se regularmente para orientar as atividades da ACTF KAZA no domínio específico com uma abordagem integrada e harmonizada.

Secretariado da ACTF KAZA As operações quotidianas do estabelecimento e desenvolvimento da ACTF KAZA são

conduzidas e coordenadas pelo Secretariado da ACTF KAZA. O Secretariado é composto por uma equipa chefiada por um Director Executivo, um Director do Programa, um Oficial de Administração, um Tradutor de Português e Consultores; recebe apoio dos países parceiros através dos cinco Oficiais de Ligação. A equipa principal está baseada na sede do Secretariado, em Kasane, Botswana. Os Oficiais de Ligação estão baseados nos países parceiros respetivos, com vista a facilitar as contribuições de nível nacional no processo de planificação e desenvolvimento da ACTF.

País Coordenador O papel principal do País Coordenador é o de coordenar as atividades da ACTF KAZA

em nome dos demais países parceiros numa base rotativa de dois anos seguindo a ordem alfabética. O País Coordenador concede liderança enquanto ponto focal na condução dos processos de planificação da ACTF KAZA e de desenvolvimento e devera garantir que o

157Amélia Cazalma | Lúcio Cunha | Fernanda Cravidão

Secretariado desempenhe em conformidade com os resultados esperados.

2. Caracterização da Área Transfronteiriça de Conservação Okavango Zambeze – ATFC KAZA A Área Transfronteiriça de Conservação Okavango Zambeze é uma iniciativa de cinco

países da região que têm como visão “estabelecer uma área transfronteiriça de conservação e destino turístico de nível internacional nas regiões das bacias hidrográficas dos rios Kubango e Zambeze de Angola, Botswana, Namíbia, Zâmbia e Zimbabwe (figura 2) no contexto do desenvolvimento sustentável”. Abrange uma área para 519912,00 Km21.

Figura 2 - Mapa de Delimitação geográfica da ATFCs KAZA, Fonte: IDP (2011), adaptado.

A ATFC KAZA tem como valores a aceitação, entendimento, igualdade, transparência, inclusão, respeito mútuo, respeito pela soberania entre os estados. Foi criada com o objectivo de promover a conservação da biodiversidade, o desenvolvimento socioeconómico, as relações de paz e a cooperação regional. Assim, definiu-se que a sua actuação se deveria pautar pelos seguintes pressupostos:

- Trazer benefícios ecológicos transversais à região - preservar a natureza e os seus sistemas, sobretudo os que foram afetados pelo traçado arbitrário das fronteiras internacionais; proteger e controlar os recursos naturais partilhados, como as bacias hidrográficas e as espécies animais, diminuindo o risco de perda da biodiversidade; e uniformizar as políticas de ocupação do solo e as estratégias de controlo dos recursos naturais.

- Maximizar as vantagens socioeconómicas por via do desenvolvimento turístico partilhado � em que a abordagem regional para a conservação da biodiversidade e do desenvolvimento do turismo irão surtir efeitos socioeconómicos positivos que se devem aos seguintes factores: distribuição de turistas por uma área alargada, permitindo-lhes visitar numa única viagem mais do que um país; melhoria das condições económicas dos agregados familiares através da criação de emprego em várias operações turísticas; capacitação económica das comunidades rurais através do estabelecimento de entidades legais ou fundos, formação em

1 - Dimensão actualizada a partir do Secretariado Regional da ATFC KAZA (2014).

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desenvolvimento; e medidas de diminuição dos custos operacionais- Desenvolver o espírito de cooperação organizacional, fomento de um espírito cola-

borativo entre os países parceiros através da cooperação em atividades várias no alcance de benefícios mútuos; incentivo à distribuição geográfica equitativa de atividades económicas que irão limitar a migração económica e contribuir para promover a paz e a estabilidade na região; monitorização partilhada dos recursos naturais e da vida selvagem na ATFC KAZA, quer nacional, quer regionalmente.

Alguns dos princípios que os Estados Parceiros se comprometem a respeitar para a realização dos objetivos enunciados no Tratado são:

Respeito pela igualdade de soberania, integridade territorial, estruturas e sistemas 1. jurídicos dos Estados Parceiros;

Defesa da solidariedade, paz e segurança no contexto da ATFC KAZA;2. Reconhecimento do facto que o direito de uso dos recursos naturais e do património 3.

cultural acarreta consigo a obrigação de atuação de modo responsável de forma a garantir a conservação e gestão eficaz dos recursos naturais vivos e não vivos para as gerações futuras;

Prevenção do uso excessivo de recursos naturais e garantia que o uso dos recursos 4. naturais seja proporcional à capacidade produtiva das espécies. Onde for adequado, os Estados Parceiros tomarão medidas tendentes a reabilitar as populações de espécies em decadência ou habitats degradados e impedir a destruição injustificada de habitats através da poluição ou qualquer outra atividade humana;

Transformação da ATFC KAZA num programa que ilustre e exiba a partilha de 5. benefícios, a igualdade, a boa governação, a colaboração e a cooperação.

3. Vantagens organizacionais Para além das vantagens económicas e ambientais, um projecto desta natureza pode

ser também responsável por importantes vantagens organizacionais para os países parceiros, como refere o Tratado da ATFC KAZA (2011), das quais destacamos:

Criar boas relações entre os países parceiros à medida que se esforçam no sentido 1. de cooperar em vastas atividades de benefícios mútuos;

Criar benefícios económicos e sociais a partir do desenvolvimento turístico sustentável 2. que, por sua vez, permitem beneficiar indiretamente as comunidades;

Colaborar e cooperar através das fronteiras com distribuição geográfica equitativa 3. de atividades económicas que irão limitar a migração económica e contribuir para promover a paz e a estabilidade na região;

Criar um controlo de colaboração mais forte entre as entidades responsáveis 4. pelos recursos naturais e o controlo da vida selvagem na KAZA ATFC, quer nacional, quer regionalmente.

Corroborando o exposto no Tratado do KAZA, nomeadamente as vantagens ou benéficos organizacionais entre os cinco países que constituem a ATFC KAZA, dos inquéritos efetuados a 340 elementos amostrais conforme mostra o Gráfico 1, sendo 29.60% de Angola, os restantes 4 países com a mesma percentagem de 17,60% cada, cerca de 70,8% (Bem/Muito Bem), mencionaram que a ATFC KAZA proporciona benefícios organizacionais entre os países que o constituem (figura 3).

Figura 3 – Percepção das populações acerca dos benefícios organizacionais (entre os países) proporcionados pelo KAZA

As novas Geografias dos países de Língua Portuguesa

159Amélia Cazalma | Lúcio Cunha | Fernanda Cravidão

ComunidadeA ACTF KAZA cobre uma vasta zona dos cinco países parceiros, na qual existe uma

grande variedade de usos de terra, incluindo agricultura, zonas protegidas e zonas de caça e da vida selvagem. A Iniciativa da ACTF não requer que as populações sejam deslocadas ou transferidas para além das fronteiras da ACTF, mas antes procura aplicar uma abordagem da conservação da biodiversidade que integra as populações e abrange a paisagem regional. O desenvolvimento nas comunidades e aldeias contidos a nível da ACTF KAZA não é contraditório aos objetivos da ACTF KAZA e a própria ACTF corresponde a um veículo através do qual o desenvolvimento pode complementar a conservação da biodiversidade, garantindo a sustentabilidade ambiental.

Os governos dos países parceiros reconhecem que as comunidades locais que residem e estão situadas à volta das zonas protegidas devem ser os beneficiários imediatos dessa iniciativa, não obstante o objetivo primário da iniciativa a ACTF ser a conservação da biodiversidade.

Estima-se que a população da área ronda os 2 - 2.5 milhões de habitantes, que já suportam o custo de viverem em estreita proximidade das zonas protegidas, por terem de lutar contra a destruição de produtos agrícolas e da propriedade devido ao conflito entre humanos e a vida selvagem, bem como pelo direito limitado de uso dos recursos naturais e pela ameaça de doenças transmitidas pelos animais. Com excepção dos centros de turistas reconhecidos e estabelecidos, essas comunidades tendem também a ser mais vulneráveis, uma vez que sofrem de alto nível de pobreza, analfabetismo e subdesenvolvimento. As iniciativas da ACTF estão preparadas para servir de veículo de mudança nessas zonas, permitindo a partilha de conhecimento e de aptidões para além das fronteiras, a nível comunitário e governamental, concentrando-se no desenvolvimento de turismo e outras fontes alternativas de subsistência, revendo os direitos das comunidades locais relativamente aos recursos naturais, promovendo a capacitação comunitária a nível das comunidades locais para gerir os recursos naturais e celebrar acordos com o sector privado e, finalmente, pela geração de receitas para os projectos de desenvolvimento.

Na qualidade de interveniente fundamental na iniciativa da KAZA, torna-se essencial que a Comunidade tenha uma voz no processo de planeamento e desenvolvimento da ACTF KAZA. Essa voz é oferecida através de uma variedade de meios. A nível nacional, vários Comités Diretivos Nacionais compreendem a representação das Organizações Baseadas na Comunidade. Os Planos de Desenvolvimento Integrado também compreendem a representação das Organizações Baseadas na Comunidade.

Neste contexto, foi constituído o Grupo de Trabalho da Comunidade que compreende os conhecimentos técnicos relevantes de cada país parceiro. Através desse Grupo de Trabalho orienta-se o desenvolvimento da ACTF com vista a garantir que os interesses das comunidades locais em cada país parceiro sejam abordados, a informação seja disseminada de forma eficaz e haja o intercâmbio da informação com elas.

4. Desenvolvimento Turístico, Território, Desterritorialização e Território Mundo Segundo Fernandes (2013), o fenómeno turístico é um importante modelador das

paisagens, das territorialidades pessoais e coletivas e dos fluxos de capitais e pessoas, tendo sido o foco de múltiplos processos de reconversão funcional de lugares em crise e de promoção de grupos sociais mais vulneráveis que, através do turismo, participam na mobilidade de diferentes categorias de capital.

O Autor refere que o turismo se dispersou para espaços de diversidade e de maior sensibilidade ecológica e social. Os territórios turísticos tornaram-se social, cultural e eco-nomicamente mais fragmentados a ponto de ser difícil pensar o mundo sem o turista que hoje se coloca na proximidade de populações com graus heterogéneos de vulnerabilidade segundo Steil (2006). Mostra ainda Fernandes (ob. cit.) vários exemplos pelo mundo fora de destinos que são territórios de elevada precariedade social, como o Nepal, Goa, Índia, Egipto, Africa do Sul e Quénia, entre outros. Mostra-nos, também, que em muitos microterritórios, o turismo tem sido um fator de mudança e abertura à influência e territorialização locais de escalas geográficas mais alargadas. Em muitos casos o turismo acelerou a terciarização da economia, da população ativa e do espaço, estimulou a circulação da moeda e a mercantilização do quotidiano, alterando os ritmos, as opções e as trajetórias de vida da

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população local. Para Haesbaert (1997) desterritorialização é um conceito aplicado a «fenómenos de

efectiva instabilidade ou fragilização territorial, principalmente entre grupos socialmente mais excluídos e/ou profundamente segregados, de facto impossibilitados de construir e exercer efectivo controle sobre os seus territórios, seja no sentido de dominação político-económica, seja no sentido de apropriação simbólico-cultural».

Rogério Haesbaert (apud Sposito, 2004), trata do território com diferentes enfoques e traz-nos uma classificação em que se verificam três direcionamentos básicos: 1) jurídico-político, onde “o território é visto como um espaço delimitado e controlado sobre o qual se exerce um determinado poder, especialmente o de caráter estatal”; 2) culturalista, que “prioriza dimensões simbólicas e mais subjetivas, o território visto fundamentalmente como produto da apropriação feita através do imaginário e/ou identidade social sobre o espaço”: 3) económico, “que destaca a desterritorialização em sua perspectiva material, como produto espacial do embate entre classes sociais e da relação capital-trabalho”.

Assim, segundo Rogério Haesbaert (2007) como síntese da multiplicidade de feições que o território e os processos de territorialização assumem num mundo dito globalizado, pode-se afirmar que:

1. A construção do território resulta da articulação de duas dimensões fundamentais, uma mais material e ligada à esfera político-económica, outra mais imaterial ou simbólica, ligada sobretudo à esfera da cultura e do conjunto de símbolos e valores partilhados por um grupo social. Pelo que, o território pode estar vinculado tanto ao exercício do poder e ao controle da mobilidade via fortalecimento de fronteiras, quanto à funcionalidade econômica que cria circuitos relativamente restritos para a produção, circulação e consumo;

2. Num sentido mais imaterial ou simbólico, o território pode moldar identidades culturais e ser moldado por elas, que fazem dele um referencial muito importante para a coesão dos grupos sociais;

3. Por outro lado, o território, além de ter diferentes composições na interação entre as dimensões política, econômica e simbólico-cultural, pode ser visto a partir do grau de fechamento e/ou controle do acesso que suas fronteiras impõem, ou seja, seus níveis de acessibilidade.

O mesmo autor enfatiza ainda que no panorama atual do mundo com todas as suas complexidades e processos, muitas vezes excludentes, como a crescente globalização e a fragmentação a um nível micro ou local, servindo de refúgio à globalização, identifica uma multiterritorialidade reunida em três elementos: os territórios-zona, os territórios-rede e os aglomerados de exclusão. Nos territórios-zona prevalece a lógica política; nos territórios rede prevalece a lógica econômica e nos aglomerados de exclusão ocorre uma lógica social de exclusão socioeconómica das pessoas. Para nós, as Áreas Transfronteiriças de Conservação têm o enquadramento nos três elementos apresentados pelo Autor, o que obrigará a que os intervenientes das ATFC’s acompanhem em tempo real todas as variáveis, a fim de que sejam minimizados os aspetos negativos e alavancados os aspetos positivos, permitindo que as Comunidades façam parte da inclusão e não exclusão. Dito doutra forma, pretende-se esbater a lógica política dos territórios-zona, facilitar a criação de territórios rede com base na actividade turística e, sobretudo, evitar que as comunidades envolvidas no processo de desenvolvimento turístico se tornem “aglomerados de exclusão”, mas antes constituam parte efectiva da rede económica em criação.

Para Fernandes (2008) a desterritorialização pode ocorrer em função do local, isto é, desterritorialização in situ, quando a desvinculação espacial ocorre nos próprios espaços quotidianos, o que é o mesmo que processos de desterritorialização fixos, ou a desterritorialização ex situ, que se refere aos casos em que o desenraizamento com o lugar ocorre por deslocação do indivíduo ou grupo, isto é desterritorialização em movimento. Efectivamente essa preocupação é passível de se encontrar em várias ATFCs, pois a Comunidade pode ser deslocada do seu ambiente e muitas vezes sem o cuidado de se minimizar as dificuldades inerentes a sua adaptação em outro local e mesmo de assegurar a sua própria sobrevivência, a exemplo dos Povos Koissans.

A desterritorialização implica sempre reterritorialização, ninguém fica sem território, o problema é que essa reterritorialização pode ser precária e, um modelo de desenvolvimento, como o turismo, que promova reterritorializações precárias (menos acesso a água e à

As novas Geografias dos países de Língua Portuguesa

161Amélia Cazalma | Lúcio Cunha | Fernanda Cravidão

saúde, por exemplo) não serve. Refere Fernandes (2013) que o turismo incorre no risco de desterritorialização pelo efeito de quatro fatores essenciais, que o autor enfatiza, mas para o nosso estudo apresentamos três:

A perda de espaço público, devido ao aumento da insegurança (por questões como a) a criminalidade);

A redução das acessibilidades (pela construção de barreiras, pela privatização dos b) espaços coletivos, pelo aumento das densidades de uso, pela inflação do preço dos solos, pela patrimonialização e gentrificação de espaços até então centrais na territorialidade de grupos mais vulneráveis);

A degradação dos recursos naturais (como, por exemplo, a água);c)

ANDRADE (1995) estabelece uma diferenciação clara entre território e espaço. O território associa-se mais à ideia de integração nacional, de uma área efetivamente ocupada pela população, pela economia, pela produção, comércio, transportes, fiscalização, etc. É no território que as relações capitalistas efetivamente se fazem presentes. Já o espaço é mais amploe abrangente que o território, englobando também as áreas vazias que ainda não se territorializaram, isto é, que ainda não sofreram uma ocupação humana efetiva. O problema aqui é que o território da empresa turística, o da área protegida e o dos diferentes membros das comunidades locais não coincidem e podem ser conflituosos. As áreas Transfronteiriças de Conservação e no nosso exemplo a ATFC KAZA, é um espaço com 519911,51 Km2, com uma população diminuta, entre 2 a 2.5 milhões de habitantes, ou seja com uma densidade abaixo dos 5 hab/Km2, ou seja podemos considerá-lo efetivamente um espaço em vias de territorialização, segundo a definição do Autor, pois estas áreas têm como objectivo a preservação da natureza, muito mais do que uma ocupação ou dominação económica ou política.

Novas TerritorialidadesRessalta Rogério Haesbaert (1997) que entre as novas territorialidades em gestação,

talvez a mais surpreendente seja aquela que envolve a escala mundo. É a sua existência, afinal, que de diversas maneiras coroaria os processos de globalização, de certa forma legitimando-os, na medida em que a dimensão política da globalização, o controle político dos fluxos (especialmente de capitais), é a menos evidente. Simbolicamente, territórios como os das reservas naturais e patrimónios da humanidade podem ajudar na consolidação de uma identidade-mundo, capaz de unir numa mesma “rede-território” toda a civilização planetária, que pela primeira vez, desde a Segunda Grande Guerra, coloca em risco sua própria existência na superfície da Terra.

Segundo Edgar Morin e Anne Brigitte Kern (1993) estaríamos a vivenciar um processo de territorialização radicalmente novo, pelo menos no tocante à escala planetária, com a formação de uma nova identidade territorial, um novo espaço a controlar (e preservar) de maneira conjunta, a Terra em sua totalidade (ou a “Terra Pátria”), a possibilidade de uma sociedade global no sentido positivo, onde valores como a democracia, a autonomia e os direitos humanos seriam universalizados. Para isso, uma nova identidade sócio -territorial, também planetária, torna-se imprescindível. Assim, a consciência global dos problemas (ecológicos, político-militares, econômicos, médico-sanitários...) pode constituir um primeiro passo.

Lévy (1992) refere que “o homem em geral não tem maior significação hoje do que no passado; mas a generalidade dos homens ganha sentido”. O novo padrão que tenta moldar a sociedade vai gradativamente diminuindo as distâncias no nível planetário, de acordo com a “sociedade-mundo” de Jacques Lévy, temos uma distância nula, pois “todos os pontos da Terra pertencem a uma mesma sociedade” (1992) através de redes sincronizadas.

Em nosso entender e de acordo com o tema que queremos estudar, as áreas transfronteiriças de conservação na SADC e, em particular, a Área de Conservação Okavango Zambeze, com 519911,51 km2, envolvendo cinco países, com a dimensão que possuem e que se juntam para, num determinado território, trabalharem de forma conjunta, melhorarem a vida das comunidades, protegerem a biodiversidade, são pequenos exemplos e, quiçá, pequenos territórios em dimensão planetária que fazem o ser humano sentir-se um cidadão planetário e permitir-se zelar pela preservação do Planeta de uma forma geral e não só no território

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onde se encontra inserido.Relativamente à importância do turismo, no conceito das novas territorialidades, Dias

(2011) refere que “o movimento de pessoas que provoca, aproxima indivíduos de lugares distantes, intensifica as mudanças de hábitos, facilita a comunicação de diferentes povos, estabelecendo regras de convivência e compreensão entre a diversidade étnica e racial do mundo. Neste sentido, pode falar-se do turismo como uma das faces da globalização, de intensificação da redução ou da eliminação de barreiras nacionais, não só para o aumento do fluxo de bens e mercadorias, mas também da circulação e do contacto inter-culturas”. Para o mesmo autor, o turismo contribui para aumentar a consciência e a identidade de cada povo, assim como para conhecer as suas diferenças face a todos.

5. O Desenvolvimento do Turismo Sustentável e o Turismo de Base Comunitária O turismo constitui uma das maiores atividades económicas a nível mundial mas esta

apresenta um conjunto de impactes negativos que importa mitigar. Têm sido realizados vários encontros com líderes mundiais no sentido de acertar métodos que promovam o turismo numa óptica de sustentabilidade. Salienta-se a Cimeira da Terra, em 1992, no Rio de Janeiro, de onde resultou a Agenda 21, documento que pretende definir uma estratégia conjunta e sustentável. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Cimeira da Terra (RIO 92), em 14 de Junho de 1992, fez surgir um documento orientador que foi designado por Agenda 21 que procura identificar um conjunto de questões ambientais e de desenvolvimento que ameaçam o futuro económico e ecológico do planeta, procurando definir uma estratégia global com uma visão mais sustentável de utilização de todos os recursos. Este programa de ação resultou de um consenso internacional de 182 países que procuraram assegurar o futuro sustentável do planeta. Este programa é composto por 40 capítulos e 115 programas de áreas específicas que, no seu conjunto, procuram criar uma estratégia de ação global com vista a uma nova aprendizagem dos usos e práticas ate então utilizadas.

Sob influência da Agenda 21, em 1996, três organizações internacionais, a Organização Mundial do Turismo, (WTO), o Conselho Mundial do Turismo e Viagens (WTTC) e o Conselho da Terra2 (EC) juntaram-se e lançaram um programa sectorial de desenvolvimento sustentável intitulado Agenda 21 para a Indústria das viagens e do turismo. O documento realça a importância estratégica e económica das viagens e do turismo, pondo em destaque os benefícios inerentes a uma atividade sustentável. Deste documento emergiram princípios de que ressaltamos alguns, a saber:

A indústria do turismo devera contribuir para que as pessoas tenham padrões de 1. vida saudáveis e produtivas em harmonia com a natureza;

A indústria do turismo deverá contribuir para a conservação, proteção e recuperação 2. do ecossistema da terra;

As nações devem cooperar no sentido de promover um sistema económico aberto, 3. em que o comércio internacional dos serviços de viagens e turismo possa ocorrer numa base de sustentabilidade;

A proteção ambiental devera ser parte integrante do processo de desenvolvimento 4. turístico;

A indústria turística deverá usar a sua capacidade para criar postos de trabalho, quer 5. para pessoas do sexo feminino, quer para toda a população local;

Os assuntos e decisões do desenvolvimento turístico deverão ser tratados com a 6. participação dos cidadãos que se preocupam com estas questões.

Para Dias (2011) o turismo apresenta várias dimensões, que devem ser consideradas numa perspectiva sustentável em equilíbrio harmónico constante, nomeadamente:

1. A dimensão económica, que gera diferentes impactes nas comunidades, tais como níveis de rendimentos, trabalho e investimentos;

2. A dimensão social, que permite que as pessoas satisfaçam a necessidade de conhecer as coisas novas, além do contacto entre os diferentes grupos sociais que produz efeitos nos

2 - O Conselho Terra é uma Organização não Governamental, que foi criada em resposta à Conferência do Plane-ta para acompanhar a implementação da Agenda 21 e os acordos do RIO92 (WTTC, WTO, EC, 1996)

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estilos de vida;A dimensão cultural, em que há uma imensa troca cultural entre a comunidade local 1.

e os visitantes, alterando valores e costumes;A dimensão ambiental, uma vez que a prática do turismo pode contribuir para 2.

alterar ou preservar os processos ecológicos essenciais e a diversidade biológica.Podemos também afirmar, como afirmam vários autores, que o turismo é ambivalente

por oferecer oportunidades de bem-estar positivas e, por outro lado, ser um factor de risco, criando algumas dinâmicas negativas.

Esta agenda procura dar um contributo real, oferece orientações, análise e exemplos benéficos em termos económicos, ecológicos, sociais e culturais.

6. O Turismo de Base ComunitáriaSegundo Ivan Bursztyn (2012) as discussões envolvendo o turismo de base comunitária

(TBC) no mundo, de um modo geral, estão vinculadas ao debate sobre como a atividade turística pode contribuir para a redução da pobreza nos países do sul do mundo. É com esse propósito que organismos internacionais, como as Nações Unidas, com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Organização Mundial do Turismo (OMT), por exemplo, vêm promovendo ações de fomento ao TBC, principalmente na Ásia, África, América Latina e Caribe. A estratégia de promover encontros entre as pessoas dos países mais ricos e as comunidades de países pobres em atividades de turismo com carácter responsável pode proporcionar, segundo esses órgãos, uma sensibilização nesses visitantes, uma vez que conhecem os problemas, mas também as riquezas e as pessoas, vivenciando o cotidiano com suas tristezas e alegrias. O Autor refere que o conhecimento adquirido não é só intelectual, mas mexe com os sentimentos e o cotidiano, favorecendo vínculos de proximidade e solidariedade.

Durante a Conferência das Nações Unidas para Desenvolvimento Sustentável, a Rio +10, realizada em Johanesburgo, em 2002, a OMT lançou o Programa de Turismo Sustentável e Eliminação da Pobreza (Sustainable Tourism – Eliminating Poverty ou simplesmente STEP) com o objetivo de contribuir para o esforço global da redução da pobreza, estabelecido pelas Nações Unidas como um dos principais objetivos. Nos anos subsequentes, o STEP promoveu uma série de seminários em países da África, Ásia e América Latina que visavam sensibilizar os governos regionais para a adoção de ações que tinham como objetivo a redução da pobreza. Esses seminários e debates deram origem a uma série de publicações da entidade sobre o tema (WTO, 2002, 2004, 2005 e 2006). Em paralelo, a OMT liderou um movimento de captação de recursos para financiar projetos em países menos desenvolvidos. Foram selecionados como projectos: 24 na África, 16 nas Américas, 10 na Ásia e Pacífico e um na Europa; mais da metade destes estão diretamente focados no fomento às iniciativas de TBC. Outras iniciativas de promoção do TBC no mundo houve, principalmente, europeias, com atuação junto de países da Ásia e da África no intuito de beneficiar as comunidades locais com os recursos gerados pelo turismo. Organizações como SNV (Holanda), WWF (Inglaterra), IUCN, entre tantas outras, ligadas ou não a governos de países ricos, vêm fomentando o TBC em países como Namíbia (ASHLEY & GARLAND, 1994; WILLIAM et al., 2001), Botswana (MBAIWA, 2002), só para citar alguns exemplos de países membros da ATFC KAZA.

O turismo comunitário é visto por alguns autores como meio para a inserção de desenvolvimento econômico de uma determinada área, como meio de interação e desenvolvimento social, concretização da consciência de preservação ambiental, cultural e como meio para a sustentabilidade. Para o sucesso do desenvolvimento turístico de base comunitária é necessário ter em conta os diversos fatores determinantes para sua afirmação, não poderá ser desenvolvido apenas pela comunidade em si, pois a mesma deve estar ciente de seu papel e responsabilidade, conforme enfatiza Carvalho (2007):

“O turismo comunitário apresenta-se sendo desenvolvido pela própria comunidade, onde seus membros passam a ser ao mesmo tempo articuladores e construtores da cadeia produtiva, onde a renda e o lucro permanecem na comunidade contribuindo para melhoria de qualidade de vida, levando todos a se sentirem capazes de cooperar e organizar as estratégias do desenvolvimento do turismo. Além de requerer a participação de toda a comunidade, considera os direitos e deveres individuais e coletivos elaborando um processo de planeamento participativo, desenvolvendo assim a gestão participativa, ou seja, os atores

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sociais na sua maioria se envolvem com as atividades desenvolvidas no local de forma direta ou indireta tendo sempre em vista a melhoria da comunidade e de cada participante, levando em conta os desejos e as necessidades das pessoas, a cultura local e a valorização do patrimônio natural e cultural”.

De acordo ainda com Carvalho a sociedade deve estar madura, composta por indivíduos habilitados para a formação sólida de uma comunidade e só então com seu amadurecimento e em formações associativas atingir o desenvolvimento comunitário, pelo que é necessário o desenvolvimento do indivíduo dando-lhe condições mínimas e recursos básicos para o efeito. Mostra Carvalho (2007) que, “para que ocorra o desenvolvimento, é preciso priorizar a satisfação de algumas necessidades humanas no que diz respeito à saúde, educação, moradia, lazer, emprego e renda”. À semelhança de outros modelos de desenvolvimento turístico, é ressaltada a importância de incentivos públicos para a participação privada e da população na atividade, sendo a comunidade trabalhada para a receptividade e também para a preservação de patrimónios ambientais e culturais, a tomada de consciência da importância do turista, por forma a que se alcance o sucesso do destino. No turismo comunitário não é diferente. Existe a necessidade de sincronia entre os setores, é extremamente importante que a comunidade esteja consciente da sua organização e apoio para exploração do turismo, já que este modelo possibilita a participação ativa e direta da comunidade, fazendo com que esta usufrua das oportunidades geradas pela atividade e não seja excluída e os seus membros utilizados apenas como mão de obra barata.

Dessa forma, o turismo comunitário surge como uma possibilidade de preservação de culturas e oportunidade em busca de uma fatia de mercado como afirma Coriolano (2006): Seus organizadores elaboram críticas ao modelo excludente e tentam produzir serviços turísticos de forma associativa, comunitária, juntando esforços, ideias e as poucas condições financeiras de pessoas que se agrupam para desenvolver serviços, assim, é realizado de forma compartilhada. Enfatiza Coriolano (2003) que “[...] o turista é atraído pela simplicidade, pelas belezas naturais, calmaria e a rusticidade do lugar” segundo a autora uma das principais características do turismo comunitário é a criação de interação entre a comunidade e os turistas, havendo interação e respeito mútuo entre as partes, permite que as relações sejam mais humanizadas, de cooperação e encurtam se as distancias emocionais entre as comunidades e os turistas. Deste momento proporcionara ao turista a criação de um sentimento de empatia pelo Território/Espaço, pelas comunidades permitindo ao turista a criação de sentimento de preservação, inclusão e paz.

O Turismo de Base Comunitária, também deve assentar na criatividade, que percorre o modelo de gestão mas que passa também pela identificação/ criação de novas formas de capital.

7. Área Transfronteiriça de Conservação Okavango Zambeze. Uma síntese do Empreendimento Comunitário

Em observância aos objetivos da Área Transfronteiriça de Conservação Kavango Zambeze (ATFC KAZA) que se consubstanciam na inclusão e desenvolvimento das Comunidades, a ATFC KAZA e a African Wildlife Foundation (AWF) estão a apoiar em conjunto a Comunidade de Sekute a desenvolver um empreendimento do turismo comunitário que seja rentável e sustentável em Livingstone - Zâmbia, como parte da sua emancipação socioeconómica e como estratégia para o alívio da pobreza das populações, bem como de conservação dos corredores de vida selvagem e proteção do ecossistema do Zambeze.

O lodge de Pesca de Machenje é propriedade da Comunidade da Comunidade de Sekute, possui 10 camas e está localizado numa área de pesca do peixe-tigre - um alvo procurado pelos pescadores à linha no mundo inteiro. Situado na margem do Rio Zambeze, numa rota migratória de vida selvagem, dista 70 kilometros de Livingstone, a capital de turismo da Zâmbia. A ATFC KAZA e AWF apoiam o desenvolvimento do mesmo em termos financeiros e técnicos. A SCDT (Organização do Desenvolvimento da Comunidade de Sekute), fez uma parceira com um operador privado, Taonga Safaris (Ltd) para gerir o lodge sob um acordo de 10 anos. No âmbito do modelo entre a comunidade e uma parceira privada, o Taonga irá providenciar capital operacional, bens móveis e a equipa de gestão, e a

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165Amélia Cazalma | Lúcio Cunha | Fernanda Cravidão

comunidade concordou em arrendar as instalações do lodge. O Taonga e a SCDT irão partilhar os benefícios financeiros das operações do Lodge, de acordo com os termos da parceria. É o primeiro modelo do seu género na Zâmbia, bem como na área do KAZA, organizado pela ATFC KAZA, e objetiva:

1. Consolidar a sustentabilidade dos projetos comunitários dado que o lodge será gerido por um operador turístico com experiência que tem ligações aos mercados regionais e internacionais de turismo;

Maximizar os benefícios económicos para as comunidades ao mesmo tempo que 2. se minimiza o risco empresarial;

Transferir as capacidades empresariais e de gestão por parte do sector privado para 3. as comunidades, e

Demonstrar os benefícios socioeconómicos. 4.

As comunidades deverão utilizar os lucros do lodge de Pesca Machenje para empreender projetos comunitários de desenvolvimento, conforme o acordado pela liderança da Organização do Desenvolvimento da Comunidade Sekute (Figuras 4 e 5).

Figura 4 - Logde Machenje na Zambia; Fonte: Secretariado Regional da ATFC KAZA (2013)

Figura 5 - Lodge Machenje na Zambia; Fonte: Secretariado Regional ATFC KAZA (2013)

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Em nosso entender os benefícios que são propalados na divulgação dos projetos de Base Comunitária, fundamentais no tocante à organização das comunidades, por forma a que estas se desenvolvam a partir dos benefícios daí provenientes, não me parece que seja real, pois das visitas efetuadas a várias áreas e com a organização desse tipo de projectos, as comunidades se desenvolvem de forma muito lenta, pois a rentabilidade dos seus projetos não permite todo um desenvolvimento para o melhoramento da vida dos mesmos. Por exemplo, se analisarmos a geodiversidade de Lesotho, esta permite perceber que só com somas avultadas se poderão erguer infraestruturas melhoradas para as comunidades. A questão é como as mesmas poderão criar esses meios a partir dos projetos de turismo de base Comunitária se os Estados ficarem a espera que se desenvolvam a partir dos benefícios das suas atividades?

Para nós, o Turismo de Base Comunitária devera passar pelos seguintes aspetos:Organização das Comunidades por forma a apresentarem as suas culturas, 1-

permitindo que outros cidadãos do mundo, conheçam essas culturas, os seus valores etc., como exemplo da vila cultural Thaba Siku em Maseru.

Os Governos deverão assumir o seu papel que é a criação de condições de vida 2- dignificante para as suas Comunidades e não deixar que elas se desenvolvam com o benefício dos projetos organizados pelas mesmas, mesmo que financiadas pelos Governos ou por outras organizações, nomeadamente o desenvolvimento das infraestruturas básicas, escolas hospitais, residências condignas e outras.

Os benefícios do Turismo de Base Comunitária, deverão reverter para formação 3- da Comunidade, o melhoramento das comunidades e vice-versa, pelo contacto com os visitantes de outras partes do mundo. A garantia do seu envolvimento na decisão da região, a inclusão nos projetos e nos diversos níveis de decisão, de emprego e a respetiva formação especializada nas diversas áreas do saber.

ConclusõesO desenvolvimento do turismo sustentável, de acordo com a salvaguarda das instituições

responsáveis pela sua organização e a salvaguarda da vida das comunidades pode permitir uma alavancagem da melhoria das condições de vida das comunidades, através do aumento de emprego e elevar o nível académico das comunidades, a fim de garantir uma interação com mais qualidade.

Apesar da controvérsias apresentadas por vários autores no tocante aos efeitos negativos do turismo, parece-nos que o maior problema passa pelo desenvolvimento do ser humano, evitando a sua ganância, a ausência de valores morais, pois o Turismo se constitui em nosso sentir e ver, uma alavanca para a união, inclusão planetária e estabilização da paz… Quando crescermos do ponto de vista humano e espiritual, analisaremos os territórios na óptica de Território - Mundo, conforme mostra Rogério Haesbaert (1997).

O desenvolvimento Sustentável do Turismo é fundamental para o desenvolvimento socioeconómico da região e, em particular, para o alívio da pobreza e melhoria das condições socioeconómicas das comunidades que vivem no interior da ATFC KAZA e nas suas zonas contíguas. O desenvolvimento turístico de Base Comunitária, permitirá o engajamento de vários stakeholders nomeadamente as instituições dos Estados, o Sector Privado, Organizações Não Governamentais, Líderes tradicionais e Comunidades locais.

A cooperação dos Países na gestão do desenvolvimento turístico sustentável e de Base Comunitária nas áreas transfronteiriças, constitui um grande incentivo e um contributo para a paz regional e não só.

Ainda de acordo com Ivan (2012) podemos concluir que as oportunidades de engajamento, cidadania e reforço dos laços sociais podem ser consideradas como benefícios não monetários decorrentes das práticas de TBC. Destaca-se que o vínculo estabelecido com o território é um outro benefício, normalmente não contabilizado pelas estatísticas. Por terem relação afetiva com os lugares, em função da história familiar, das tradições e da cultura, os empreendimentos desenvolvidos por iniciativas comunitárias têm mais responsabilidade.

Para grande parte das iniciativas de TBC os ativos ambientais, também se configuram como um dos principais atrativos para os visitantes. Por estarem localizadas em regiões rurais, algumas iniciativas utilizam a beleza paisagística da sua localidade para atrair os visitantes e oferecerem, além do convívio com os moradores da comunidade, a oportunidade de

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167Amélia Cazalma | Lúcio Cunha | Fernanda Cravidão

desfrutar do ambiente onde vivem. Outra característica importante a ser ressaltada nos casos de Turismo de Base Comunitária é a relação direta com áreas protegidas.

Ressaltamos também a questão da desterritorialização nas áreas Transfronteiriças de Conservação, que consideramos de capital importância a ser trabalhada com bastante acuidade, pelo facto de existirem comunidades, que vivenciaram e ainda vivenciam este processo, nomeadamente os povos Khoisans, que em nome da conservação e proteção da biodiversidade e do turismo, estão eles desprotegidos.

Aprender a viver coletivamente é uma exigência das sociedades, cada vez mais multiétnicas e multiculturais, onde a liberdade individual implica o respeito pelo pluralismo de natureza económica, política, cultural ou religiosa (Delors, 1996). O reconhecimento do património cultural e da identidade social e territorial, que formam o sentido de pertença a uma comunidade, deve ser equilibrado pela abertura intercultural gerada por vivências plurais e diversificadas.

Por tudo o que foi exposto, permitimo-nos considerar que o desenvolvimento do turismo sustentável, na da Área Transfronteiriça de Conservação do Okavango Zambeze se constitui como um fator de inclusão, integração, estabilização, desenvolvimento e promoção da paz.

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Os riscos naturais nos estudosgeográficos em Cabo Verde

Sílvia MonteiroUniversidade de Cabo VerdeDoutoranda PRODEMA na Univ. Federal do Ceará

George Satander FreireUniversidade Federal do Ceará

Lúcio CunhaCEGOT – Universidade de Coimbra

Os estudos sobre os riscos naturais despertam hoje o interesse de académicos de vá-rias áreas científicas e de profissionais de diferentes actividades. Neste âmbito, o papel da Geografia e, particularmente, dos geógrafos físicos, tem sido determinante. Este interesse tem vindo a aumentar fortemente, uma vez que se assiste um aumento das catástrofes em vários locais do mundo e, sobretudo, a um forte aumento da sua mediatização, aumento que parece ser mais o resultado de aumento da exposição das sociedades a áreas de risco, do que, propriamente de um aumento de frequência e intensidade dos processos naturais perigosos.

Cabo Verde, um país que em toda a história da sua existência, vem sofrendo os efeitos nefastos das manifestações de riscos, potenciados pela sua localização geográfica na faixa Saheliana e pela sua origem vulcânica, destacando-se as secas, muitas vezes prolongadas; a desertificação; a erosão acelerada dos solos; as cheias e inundações; os movimentos em massa; as tempestades; as erupções vulcânicas; e os sismos.

Existe, no país, uma grande preocupação com a problemática dos riscos naturais, não só no seio da comunidade académica, mas também no âmbito das políticas governamentais de gestão do território, no sentido de refletir e encontrar soluções de mitigação dos efeitos ne-fastos que podem potenciar, principalmente quando assistimos um aumento da população, muito acelerado principalmente nos principais centros urbanos do país.

Pretendemos neste trabalho abordar a problemática dos riscos naturais em Cabo Verde, apresentando alguns casos concretos e realçando a preocupação e o interesse dos geógrafos cabo-verdianos neste tipo de estudos.

IntroduçãoPelo menos desde os anos oitenta do século passado os estudos sobre os riscos naturais

começaram a despertar o interesse de académicos e profissionais de várias áreas científicas e, neste âmbito, os geógrafos têm tido um papel de destaque.

Marandola Jr. e Hogan (2003), referem que o estudo dos natural hazards é uma tradição entre os geógrafos, desde a década de 1920, sendo que esta tradição surge na Geografia muito antes dos apelos mundiais acerca da degradação ambiental planetária ou mesmo an-tes dos apelos mais recentes ao resgate da qualidade de vida urbana. De entre os vários geó-grafos de língua inglesa que se têm dedicado a esta temática, destacam-se Gilbert F. White, considerado um dos mais importantes, assim como Ian Burton e Robert W. Kates. De entre os de língua francesa salientamos J. Tricart (1992) e L. Faugères (1990).

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Atualmente, este interesse vai ganhando uma importância crescente, uma vez que se assiste um aumento das consequências das catástrofes em vários locais do mundo, ainda que este se deva mais a um aumento da exposição das sociedades em áreas consideradas de risco do que a um aumento da frequência e da intensidade dos processos naturais perigosos. Isto tem contribuído para alertar para a necessidade do estudo da distribuição temporal e espacial dos fenómenos perigosos e da vulnerabilidade das populações, com o intuito de conseguir uma gestão mais eficaz dos territórios, no que à gestão dos riscos diz respeito.

Em toda a história da sua existência, Cabo Verde tem vindo a sofrer com os riscos natu-rais e com os efeitos nefastos das suas manifestações, principalmente com as crises de seca e com as fomes subsequentes, com diferentes intensidades e ritmos desde que as ilhas se en-contram povoadas. De facto, o arquipélago de Cabo Verde encontra-se sujeito a uma grande diversidade de riscos naturais, muitos deles devendo-se à sua posição geográfica que lhe confere condições de acentuada aridez climática, com forte irregularidade nas precipitações. Não só os riscos de seca são intrínsecos a esta posição climática mas também outros, como a desertificação, a erosão acelerada dos solos, as cheias e inundações, os movimentos em mas-sa, as tempestades e alguns riscos biológicos típicos de regiões tropicais com características climáticas semelhantes às de Cabo Verde, nomeadamente os relacionados às doenças como dengue, malária e cólera. Para além destes, ainda há os riscos relacionados com a geodinâ-mica interna, nomeadamente com a atividades vulcânica e sísmica.

A par desta elevada perigosidade intrínseca, verifica-se um acréscimo significativo da vulnerabilidade das populações, particularmente nas áreas urbanas em expansão, o que im-pulsiona um incremento do risco nas ilhas de São Vicente (Mindelo), Sal (Santa Maria e Es-pargos), Boa Vista (Sal Rei) e, principalmente, em Santiago (Praia). Recorrendo a este último exemplo, Praia, a cidade capital, tem sofrido um crescimento muito acelerado nos últimos anos, albergando em 2010, cerca de 27% da população nacional. Este crescimento tem sido fomentado pelos fluxos migratórios, tanto internos (êxodo rural e migração das restantes ilhas) como externos, provenientes dos países vizinhos da África Ocidental.

O ritmo acelerado do crescimento populacional na capital como nas outras cidades não tem sido acompanhado por políticas e/ou por programas habitacionais capazes de dar uma resposta eficaz à procura. Consequência disso é a proliferação de bairros espontâneos nos subúrbios das cidades, bairros em que as construções surgem da noite para o dia, sem obe-decer a qualquer tipo de planeamento e não dotados de infra-estruturas de abastecimento de água, electricidade e saneamento.

Estes bairros considerados ilegais, de ocupação espontânea, tendem a localizar-se na sua maioria em áreas elevada suscetibilidade em termos de riscos naturais (principalmente nos leitos de cheia das ribeiras e em vertentes declivosas), sendo ocupados fundamentalmente por uma população de muito baixo rendimento, o que nos leva a falar na segregação socio-espacial destes territórios e populações.

As questões levantadas acerca dos riscos e da expansão urbana no território cabo-verdia-no têm merecido preocupação de alguns geógrafos cabo-verdianos que se têm dedicado aos estudos dos riscos, tentando compreender quer os processos naturais perigosos, quer os seus impactes na sociedade. Os estudos já desenvolvidos têm, em regra, um carácter académico e estão publicados em dissertações, teses e artigos científicos, podendo ser utilizados como subsídios às entidades de gestão do território nacional. De entre os geógrafos que se têm dedicado a esta problemática, podemos mencionar: Monteiro (2007); Monteiro et al. (2009, 2011); Medina do Nascimento (2009, 2010, 2011); Correia (2007); Tavares (2006, 2011), Lima (2012) e Borges (2013).

Pretendemos neste trabalho, abordar de uma forma geral os riscos naturais no território nacional e o seu impacte na sociedade, destacando a elevada susceptibilidade e vulnerabili-dade das áreas de recente expansão urbana.

Cabo Verde e os riscos naturaisO arquipélago de Cabo Verde situa-se aproximadamente a 500 km da costa ocidental

africana, entre os paralelos 14º 15’ e 17º 18’ de Latitude N, e os meridianos 22º 40’ e 25º 22’ de Longitude W de Greenwich (fig.1).

De acordo com Amaral (2007), em função dos ventos alísios, o arquipélago é dividido em dois grupos: Barlavento (constituído pelas ilhas de Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, S. Nicolau, Sal e Boa Vista) e Sotavento (Maio, Santiago, Fogo e Brava).

Sílvia Monteiro | George Satander Freire | Lúcio Cunha

170As novas Geografias dos países de Língua Portuguesa

Figura 1 - Localização geográfica do arquipélago de Cabo Verde na Costa Ocidental Africana

Relativamente às condições climáticas, Cabo Verde insere-se na zona de clima tropical seco, com influências do Sahel, devido a sua proximidade com essa região.

As chuvas em Cabo Verde são, essencialmente, resultantes da deslocação para Norte da convergência intertropical, que provoca a estação húmida de Julho a Outubro. As precipita-ções são, assim, concentradas durante os meses de Agosto e Setembro (mês de maior fre-quência das cheias e das consequentes inundações), período durante o qual cai, em média, 60% a 80% da quantidade anual de precipitação. Esta regista, também, uma forte variabili-dade interanual (fig.2), tanto do ponto de vista da quantidade, como da sua distribuição no tempo e no espaço.

Quando as precipitações não ocorram, verificam-se crises relacionadas com a falta da água, tanto para irrigação, como para o consumo, principalmente nas áreas rurais que de-pendem integralmente da água proveniente das chuvas que é armazenada em reservatórios ou conseguida através da exploração da água subterrânea.

O ano de 2014, é um bom exemplo disso, já que praticamente não choveu em todo o território nacional, e isso teve um impacte muito negativo, com um mau ano agrícola em que escassearam os produtos alimentares e os pastos para os animais.

Figura 2 – Pluviosidade em Cabo Verde: variabilidade anual de 1981 a 2010 (Fonte: INMG)

171Sílvia Monteiro | George Satander Freire | Lúcio Cunha

Quando as precipitações ocorrem, frequentemente ocorrem sob a forma de fortes chu-vadas (chuvas intensas) e, não é raro que, em determinadas localidades, a precipitação total do ano seja produzida em apenas duas ou três grandes chuvadas isoladas. Isto é válido tanto para as ilhas altas, onde se registaram valores diários da ordem dos 590 mm em Monte Ve-lha, ilha do Fogo, como para as ilhas de relevo menos vigoroso, como os 350 mm na Vila do Maio, tendo em consideração que a média anual das precipitações no país é de ordem de 250 mm (Monteiro, 2007 e Monteiro et al., 2009).

Em consequência destas situações pluviométricas extremas ocorrem cheias, inundações e movimentos em massa nas vertentes, que originam crises com grandes prejuízos, principal-mente na agricultura, solos e infra-estruturas. Exemplo de algumas das crises resultantes das chuvas torrenciais são as ocorridas em 1938, 1950, 1961 em Santo Antão, 2009 em São Ni-colau, em 2013 na Boa Vista e Santo Antão e Santiago, com efeitos fortemente destrutivos, resultando em óbitos e perdas económicas severas, como a destruição de estradas, de terras agrícolas e pontes (Lima, 1999; Lima et al., 2003 e Monteiro, 2007 e 2011).

Pretendendo hierarquizar alguns dos principais riscos naturais que o território cabo-verdiano está sujeito, apresentamos a seguinte matriz (quadro 1), que, apesar do carácter necessariamente subjetivo da metodologia utilizada, adequa-se claramente ao processo de hierarquização dos processos perigosos e dos riscos que se lhes estão associados, com base em quatro critérios fundamentais, ainda que diferentemente ponderados: o histórico dos eventos perigosos, o grau de exposição geral das populações, os efeitos do pior cenário pre-visível e, finalmente, a probabilidade de ocorrência do fenómeno.

Quadro I – Matriz de análise de riscos em Cabo Verde, segundo a metodologia do OEM1 (2008)

No caso do conjunto do país, ressalta claramente a importância do clima nos riscos na-turais. Destacam-se, claramente, os riscos hidrogeomorfológicos, nomeadamente as inunda-ções e os movimentos em massa nas vertentes, que assumem o lugar cimeiro na hierarquia. Seguem-se riscos também diretamente relacionados com o clima como as secas, as tempes-tades, a bruma seca, a erosão hídrica, a desertificação, que integra, de modo genérico alguns dos anteriores processos, e as doenças ambientais, que embora se relacionem muito com as condições de vida da população, também têm nas condições climáticas do arquipélago, um importante fator de desencadeamento.

1 - Oregon Emergency Management: Hazard Analysis Methodology

172As novas Geografias dos países de Língua Portuguesa

Crescimento urbano e os riscos associadosNa análise do crescimento urbano identificado sobre as cidades cabo-verdianas, Nas-

cimento (2011) afirma que o crescimento urbano é desproporcional ao desenvolvimento urbano. A mesma autora considera ainda haver vários outros aspetos, que contribuem para antecipação de desequilíbrios e impactos ambientais urbanos como a morfologia do espaço, a elevada densidade demográfica, a ocupação espacial espontânea, a composição física e química dos resíduos produzidos, bem como a impermeabilidade do solo que normalmente se apresenta pavimentado, provocando formação de poças de água estagnada, foco de in-setos e outros vetores transmissores de doenças.

A falta de políticas de ordenamento territorial adequadas às necessidades das popula-ções e à organização urbana são responsáveis por outros problemas e mesmo por verdadeiros riscos ambientais, como o mau cheiro proveniente do deficiente sistema de recolha e trata-mento do lixo ou da utilização indevida do espaço público para a satisfação de necessidades fisiológicas. Ambas as situações evidenciam pouca civilidade, demanda por serviços, equipa-mentos e infraestruturas públicas urbanas em decorrência do êxodo rural e da incapacidade de melhoramento das condições básicas urbanas (NASCIMENTO, 2011).

Destacando o caso da maior cidade de Cabo Verde, a cidade da Praia, capital do país, esta tem evidenciado um crescimento acelerado, albergando, atualmente, cerca de 27% da população nacional que foi de 491.683 habitantes, em 2010 (quadro 2). Em vinte anos, a sua população dobrou, ou seja passou de 61.644, em 1990, para 127.832 habitantes em 2010. O aumento populacional tem sido promovido por fluxos migratórios internos (êxodo rural) e por imigração de cidadãos provenientes dos países vizinhos da África Ocidental, em decorrência de inúmeros problemas, conflitos e tensões de natureza política, econômica, cultural, étnica, ética e social.

Pela incapacidade de respostas efetivas das autoridades na provisão de meios e estraté-gias adequadas à resolução dos problemas econômicos, sociais e ambientais, os responsá-veis políticos designam este tipo de crescimento urbano como “incongruente” (TAVARES, 2011).

Quadro 2 – Evolução da população do país e das quatro principais ilhas com centros urbanos em expansão, entre 1990 e 2010

Fonte: Instituto Nacional de Estatística de Cabo Verde

O arquipélago de Cabo Verde sempre foi vulnerável à manifestação de inúmeros riscos naturais. Todavia, alguns dos riscos se destacam como: cheias/inundações e movimentos de materiais em vertentes, fenômenos intensificados pela ocupação sistemática de áreas ina-propriadas para habitação, como vertentes declivosas, leitos de cheia e valas de drenagem. Ambos os processos foram motivados pelo crescimento urbano acelerado, principalmente na cidade da Praia, onde não foi observado o acompanhamento de políticas públicas de orde-namento territorial como respostas às demandas apresentadas.

Assiste-se, assim, à proliferação de bairros espontâneos nas principais cidades do país (fig.3), principalmente em áreas suburbanas, inadequadas à ocupação humana, sem qual-quer tipo de planejamento, infra-estrutura básica de saneamento, eletricidade e água para consumo. As construções nas vertentes declivosas e nos fundos de vale são, em parte, decor-

173Sílvia Monteiro | George Satander Freire | Lúcio Cunha

rentes da precaridade dos serviços de fiscalização para cumprimento das posturas autárquica pelo órgão competente na administração pública do País.

Figura 3 – Bairros espontâneos ou “ilegais” nos principais centros urbanos do país

As principais cidades caracterizam-se pela existência de um grande deficit de habitação, principalmente de habitação social, ocorrendo, simultaneamente, uma grande especulação imobiliária, em relação aos preços dos terrenos para construção e/ou das próprias habitações, traduzindo-se em dificuldade de acesso a terrenos para construção, mesmo sob o efeito de intervenções da autarquia local.

As inundações e os movimentos em massa, principalmente os fluxos e quedas de blocos, são frequentes, contribuindo quer para a degradação ambiental, quer para a degradação da qualidade de vida dos citadinos. A vulnerabilidade é ainda maior em zonas de elevada peri-gosidade, ocupadas pela população de baixa renda, sem grande capacidade de resposta e de resiliência perante a manifestação de riscos. Estudos e observações revelam que a construção das habitações não segue nenhuma regra técnica ou diretrizes de engenharia da construção civil, assim como os materiais usados são precários e/ou de baixo custo, o que faz acrescenta a vulnerabilidade do edificado à já elevada vulnerabilidade social das populações.

Considerações finaisA temática dos riscos assume cada vez mais destaque e as suas manifestações são uma

das maiores evidências dos desequilíbrios causadas pelas ações humanas ao ambiente. O crescimento desordenado das áreas urbanas, produzido sem o acompanhamento de infraestruturas básicas, a ocupação das áreas de riscos e a falta de políticas que visem o desenvolvimento sustentável integrado das cidades criam fragilidades ambientais que, por vezes, potenciam grandes desastres.

Em vários países do mundo, principalmente nos países em desenvolvimento, onde Cabo Verde se insere, verifica-se um aumento dos riscos urbanos provocados, não princi-palmente pelo aumento dos fenômenos perigosos, mas sobretudo pelo aumento da ex-posição e da vulnerabilidade social. Observa-se ainda que territórios com maior fragilidade ambiental foram ocupados por grupos e/ou comunidades de população mais carente, com baixos rendimentos, o que faz com que essa população tenha uma precária capacidade de resistência e resiliência frente aos eventos perigosos.

O crescimento urbano nem sempre tem sido acompanhado pelo desenvolvimento ur-bano e portanto, vários são os problemas derivados do crescimento rápido das cidades.

174As novas Geografias dos países de Língua Portuguesa

Esta problemática tem sido motivo de preocupação de profissionais de várias áreas científi-cas, em que os geógrafos se destacam, tendo tido um papel muito importante na compre-ensão dos fenómenos perigosos e dos seus impactes nas sociedades, como subsídio para mitigar os problemas da gestão do território.

O planeamento e ordenamento do território, constituem a resposta necessária e ur-gente a essa dinâmica, de forma a assegurar uma apropriada gestão do território e dos riscos que se lhe associam.

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(Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros

Eduardo Lourenço*Diretor Honorífico do CEI

O tema deste Seminário: “(Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros - Os Países de Língua Portuguesa e suas Novas Geografias” deixa-me de alguma forma embaraçado por não saber o que possa dizer de interessante a este respeito.

É verdade que escrevi, há muito tempo e alguém publicou por mim, um certo número de reflexões acerca do que foi a nossa atitude de portugueses, durante séculos, a partir do momento em que saímos do território europeu para outros territórios, uns descobertos e onde não havia ninguém a quem colonizar, outros com quem travamos relações coloniais ou colonialistas. Essa reflexão é uma reflexão sobre aquilo que durante quinhentos anos foi uma tal evidência para nós de que tínhamos direito a ser, porque tínhamos descoberto terras desconhecidas, mares desconhecidos… em que o nosso destino, escrito nos astros, era que fossemos aqueles que nos sentíamos em casa, embora estando na casa dos outros sem autorização deles.

Embora tenha feito esse género de meditações, um pouco masoquistas, que assumo, elas são sobretudo tentativas de pensar a nova situação. Uma vez que esse nosso famoso império, que existiu não apenas em termos oníricos e em função dos sonhos compensatórios do pequeno país que foi responsável por territórios muito longe dos europeus de onde partiu e que, uma vez terminado, se podia pensar esse contencioso doloroso de um passado recente. Tudo isso tinha relegado essa nossa vivência de antigos colonizadores, bem ou mal aceites para a História. Penso que a nossa situação atual de um pequeno país que, durante quinhentos anos, se pensou grande sobretudo em termos de ordem europeia, ele que é um país tão pequeno, com tão pouca influência na Europa, se pensou grande porque tinha essas famosas terras longínquas, onde assentou sem autorização dos outros. A começar por Cabo Verde, pela Guiné e mais tarde pelo Brasil… mas Portugal é um dos países a quem podia acontecer, na lógica da civilização planetária ou semi planetária, que era, até então, a do mundo, de lhe acontecer a mesma coisa. Sempre pensei que, uma vez findo o capítulo império imperial, real ou onírico, que não tínhamos terminado com o problema que nos pôs quer no passado, quer no presente, e sobretudo no futuro, com esse mundo, que nós pensávamos nosso, que foi nosso subjetivamente, oniricamente, para nos compensar do que eramos de pouco. Mas que devia ser um tema em que, nós querendo ou não, nos iria fixar numa atenção nostálgica interminável. Nos mitos gregos, há um que é mito de Deucalião semelhante ao mito do dilúvio e, quando o dilúvio acontece, os deuses recomendam a Deucalião que, para povoar a terra tinham que escolher as pedras e deitar para as costas as suas pedras e que novos filhos nasceriam desse gesto recriador de alguma coisa que tinha sido destruída, morta ou perdida. Pensava que eramos como Deucalião. Vamos passar o resto da nossa vida, que é longa, quase infinita, com o império que pensávamos que tínhamos ou que tivemos, em certos momentos mais do que noutros, que pensávamos que esse sonho tinha terminado e acabou, não vamos ocupar-nos desse império perdido, mais do que nos

*Intervenção por ocasião do Seminário (Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros

Os Países de Língua Portuguesa e suas Novas Geografias realizado no dia 23 de abril de 2015, na FLUC

176As novas Geografias dos países de Língua Portuguesa

ocupamos do que quando o tínhamos, porque penso que esse relacionamento faz parte da nossa história humana com outros povos, com outras culturas, com outras línguas. É qualquer coisa que é inerente ao estatuto da Humanidade enquanto tal.

O caso de Portugal não é único, mas um entre outros que em termos análogos se chama colonização. Fazem parte da História Universal e que, por mais discutidos que devam ser os termos em que essas colonizações tiveram lugar - e são diferentes de uns territórios para outros, de uns tempos para outros - se criam através de um laço que é muito mais profundo e mais duradouro nas suas consequências, nos seus efeitos do que podemos imaginar. Mesmo se são processos de dominação de um povo num certo momento sobre o outro ou de representantes desse povo sobre o outro, os laços reais que se criam, a não ser que sejam dominações absolutamente bárbaras, destruidoras ou absolutas: são laços estranhos, mas que continuam a fazer parte não só do nosso presente, mas a condicionar o nosso futuro. Penso que temos sorte! É uma coisa estranha, talvez não se apercebam… quando veio o 25 de abril e que, em poucos dias, poucos meses, os portugueses tiveram de abdicar não espontaneamente (naturalmente ninguém abdica espontaneamente), mas foram forçados do exterior a dar-se conta que o tempo do domínio estava terminado, não podia ser recuperado. Tinham de fazer uma leitura daquilo que foi o seu passado enquanto colonizadores e, na medida do possível, compreender agora melhor aquilo que eram os colonizados, quando eles não foram capazes de os compreender como eles pediam para ser compreendidos ou deviam ser compreendidos. Só me interessei por esta questão porque estava na França quando começou a descolonização universal primeiro, e depois a descolonização particular relativa à França e, particularmente, aquele momento que é conhecido como a Guerra da Argélia. Portanto, vivi a Guerra da Argélia como se fosse qualquer coisa que dissesse respeito a Portugal, mas sobretudo com a convicção de que aquilo com que a França estava confrontada, que não era uma coisa à parte, que era um movimento universal a que ninguém escaparia, e mais não lhe escaparia um pequeno país como o nosso. Tratou-se de uma colonização assumida como tal, com vantagens em todas as ordens de uma das nações tida pelos outros como exemplar em várias áreas não só de riqueza, sabedoria, técnicas, etc. Ora nós, sendo uma nação sem essas capacidades comparáveis às de França, íamos ter de abdicar desses domínios vários que tínhamos através da terra. O que acontece é que os portugueses inventaram, para seu próprio consolo, que o seu colonialismo não era igual aos outros. O problema é que todos os colonizadores pensam a mesma coisa. O seu colonialismo é que é bom, o dos outros não é tão bom como isso e o nosso era o melhor de todos. Não seria o melhor de todos mas também não foi o pior. Vejam que não passaram quarenta anos sobre o 25 de abril e as consequências nessa ordem foram a abdicação assumida de um império de quinhentos anos, que podia ser para um país, tão pequeno como Portugal, a perda do sopro do sentido que tinha sido a sua história durante séculos e que nos íamos afundar numa espécie de tristeza de lágrimas sem fim pelo império perdido, por essa gente que nos amava tanto e que, afinal de contas, tinha acordado e não queria mais que nós fossemos os dominadores e eles os dominados.

Só agora, ao fim de quarenta anos, estamos a perceber o que se passou na Guiné, em Moçambique, em Angola…para não falar do outro nosso ex-império. O que se passou com outras nações colonizadoras da Europa, que também tiveram de abdicar, forçados pelos dominados do seu antigo império ou da pretensão de manter esse império para sempre. Engraçado agora é que estamos a perceber o que era esse império verdadeiramente, porque o império - direi para empregar uma fórmula que eu tenho a tendência, um pouco narcísica, de repetir “que o império não existiu” - existiu para quem lá estava mais do que para o continente. Foram portanto eles que nos obrigaram a dizer “não isto não é assim, não queremos, acabou” e separaram-se. É de facto extraordinário! Não sei se algum dos países que colonizaram os outros países teriam ao fim de tão poucos anos um espetáculo como este que nos é fornecido agora a nós ex-colonizadores, ex-imperialistas, ex-império factício ou fictício, que vem para a televisão contar como se fosse uma história de família aquilo que foi dramático durante os treze anos que durou o confronto entre nós e as antigas colónias portuguesas batizadas de províncias. Então, vê-se que alguma coisa houve nessa nossa presença entre outras, culturas, outros futuros, nações e que o diálogo continuou, porque se criaram laços ao longo dos quinhentos anos, mas provavelmente até os maiores laços se criaram durante a própria luta em que os antigos colonizados lutavam para reclamar

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o seu direito a serem eles próprios a regerem o seu próprio destino. Vejo dificilmente que em França fosse possível, hoje, ver na televisão aquilo que nós vemos: os franceses e os argelinos estarem num debate quase fraterno como se já se conhecessem desde o pai Adão a discutir e não se tivesse passado nada. Não acredito!

Penso que os laços que se criaram com África e em geral por todos os outros países, já não falamos do Brasil, que é um caso que foi resolvido há mais de duzentos anos e que era um caso pouco diferente do caso de África. No caso do Brasil, não sei o que é que se lhe pode aplicar, é muito difícil imaginar o que foi a nossa relação com o Brasil, porque não foi uma relação de conquista propriamente. O Brasil não era conquistável; era um território em que os seus autóctones, os índios brasileiros, não tinham capacidade de se defender de um ataque guerreiro. Era como se tivessem chegado àquelas margens e se tivessem instalado. Os índios não podiam impedir totalmente que as pessoas se instalassem ali e isso prolongou-se durante séculos. Com as nações africanas não foi isso que aconteceu. Foram primeiro relações de comércio, depois as relações de comércio de uma certa gratuidade, passaram a ser relações de instalação forçada nesses territórios de obrigar os outros a trabalhar em função do colonizador futuro, portanto temos um paradigma completamente diferente do que foi o nosso relacionamento com o Brasil. Apesar de tudo, englobamos todos os países que falam ou que admitiram que a sua própria língua, o português como língua oficial. Vejo agora que essa famosa designação, os famosos PALOP já não são PALOP são CPLP, gosto mais! O PALOP parece um monstro um pouco difícil até de ler. O PLP é melhor, mais racional, mais claro, penso que o nosso relacionamento a vários níveis com os ex- PALOP e os PLP vai ser mais natural.

Penso que vamos viver, no futuro, com mais naturalidade, com uma familiaridade maior, relações com as antigas colónias do que vivemos, não só com os outros que não falam a nossa língua, mas também com os outros, com o próprio Brasil que foi a coroa da glória da nossa presença no mundo, enquanto descobridores, para não dizer colonizadores. A palavra custa muito a empregar em relação ao Brasil, gosto mesmo que os brasileiros me expliquem que espécie de colonização foi a nossa, para me dizerem quem são e quem é que nós somos. Isto são reflexões de alguém que não tem nenhuma qualidade historiográfica para se pronunciar. É um desejo, é um puro desejo de imaginar que estes quinhentos anos, não foram os quinhentos anos no sentido próprio, mas sobretudo nos últimos cem anos, depois que a vontade de dominação em termos modernos são aqueles que justificam não o último e em definitivo confronto entre colonizados e colonizadores que durou nos anos sessenta e anteriormente nos finais do século XIX, quando a Europa inteira se sentia como centro da colonização do resto do mundo. Nós somos um caso particular e mais antigo, apenas. A Europa inteira projetou-se sobre o mundo que havia e continua. Já não continua menos, que já não podemos como dizem na minha terra “com uma gata pelo rabo”, mas se não somos europeus são outros que se encarregam daquilo que é o reflexo da humanidade inteira aqueles que são mais poderosos, que dominam os outros. Vai haver um espaço onde a antiga língua portuguesa foi admitida como língua oficial que vai ser um passo de encontro verdadeiro. Agora que já não há aqueles obstáculos que durante séculos havia entre nós. É pelo menos o que desejo, que este encontro seja apenas um reencontro que estava latente e que agora pode ser explicitado e vivido de uma maneira mais pacífica, mais aberta mais clara e sem todas estas justificações, que não eram justas para manter um domínio sobre alguém que não quer o nosso domínio e não nasceu para ser dominado pelos outros.

Uma última nota sobre os dois países da Ibéria: Portugal e Espanha pertenceram à primeira fase da colonização dos colonizadores europeus, foram os dois primeiros. Primeiro porque Espanha aparece no processo de colonização cem anos depois de Portugal, como efeito de todas as Descobertas dos portugueses, ou encontros com outros países ao longo do Atlântico e depois no Pacífico, que os portugueses realizam e depois há o golpe de Colombo. Um golpe mais extraordinário. De repente, o sentido da busca que era o oriente muda-se no sentido do ocidente e descobre-se uma nova terra incógnita e um novo mundo. Esse novo mundo vai ser da parte da Espanha, que é uma grande potência da Europa na época. Maior potência que a França, esse novo mundo vai ser conquistado, no sentido forte do termo, porque os espanhóis vão encontrar diante deles nações tão insuspeitadas, tão cultas ou tão cultivadas como as que conhecíamos da Antiguidade no Egipto, na China, mas sobretudo no Egipto, que foi o primeiro paradigma. O México vai ser conquistado a ferro e fogo como o Perú.

Eduardo Lourenço

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Nada disso podia acontecer com um país tão pequenino como Portugal, que tinha apenas um milhão e meio de habitantes quando se lançou nessas aventuras e os países com que se encontrou a Índia era uma tal imensidade que podíamos estar só pela vontade dos outros na beirinha, só por razões de comércio e não pela vontade de conquistar. Todavia, houve um movimento conquistador português absoluto, que é o momento do Albuquerque. É uma coisa que ainda hoje me espanta, quando se passa diante do monumento dos Jerónimos. Um pequeno povo tem esse atrevimento de desafiar, lá longe, de resto um inimigo tradicional e com que estávamos confrontados no velho mundo, quero dizer, não menos os indianos que propriamente outros adversários, mas isso é história para poema épico, que já foi escrito, não podemos escrever outro, mesmo que pudéssemos não eramos capazes. Agora temos de nos confrontar como os bons da fita. Depois de termos sido os maus da fita, sem termos o poder para o ser. Felizmente, penso que toda esta história vai ser outra vez revisitada, reescrita por nós em primeiro lugar, mas penso igualmente no outro lado, porque nós não temos ainda um discurso, pelo menos eu não tenho, também não sou historiador… Agora queremos ter a plena palavra do outro. Não a confiscámos, talvez por ignorância, mais do que por outra coisa, mas precisamos saber o que foi para nós esse império pela boca daqueles que eram objeto dessa dominação ou desse domínio. Portanto, interessa-nos tudo quanto vem das novas culturas para que possamos perceber o que fomos, não na nossa própria imagem narcísica, mas no que fomos aos olhos dos outros com quem estávamos confrontados: alguns na convicção do sentido da história, como se dirá mais tarde, e outro estudo simplesmente porque assim é o movimento da humanidade. Estamos muito atentos a tudo quanto as novas gerações de africanos escrevem, dizem, pensam e, para isso, é que são necessários seminários como este.

As novas Geografias dos países de Língua Portuguesa

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Nós Terra, Nós Geografia: Contributos para uma geografia de Cabo Verde

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Cabo Verde segundo Maria Luísa Ferro Ribeiro: território e sociedade

“é assim o cabo-verdiano: orgulhoso do centro da terra onde vive, sofre e labuta contra a permanente estiagem, os olhos no estrangeiro, o coração nas ilhas” (Germano de Almeida, Estórias contadas).

A Ilha de Santiago e o arquipélago crioulo de Cabo Verde1. Maria Luísa Ferro Ribeiro tornou-se a primeira geógrafa de Cabo Verde ao concluir a sua licenciatura em Geografia, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 1961, com a apresentação da tese A Ilha de Santiago: contribuição para o estudo da sua fenomenologia socioeconómica. Através deste trabalho somos introduzidos por Maria Luísa Ferro Ribeiro no universo crioulo, na complexa teia sociocultural da maior ilha de um arquipélago que obteve, noutras circunstâncias, a atenção de diversos estudos geográficos. O trabalho, além de nos evidenciar como Cabo Verde é profundamente marcado pela geografia, transporta-nos a um tempo em que cada cabo-verdiano era o centro de um mundo cujas fronteiras coincidiam com a sua ilha: “Naquele tempo, o mundo todo resumia-se à ilha da Boa Vista. É certo que dos mapas dos livros da escola primária nós tínhamos uma confusa consciência de outras terras, cujos nomes éramos obrigados a decorar e depois salmodiar à professora, valendo uma reguada ou uma palmatoada cada serra ou rio omitidos. Porém, a sua existência resumia-se ao pedaço de papel às cores e riscas diversas fixado na parede da escola e que percorríamos rapidamente e a breves saltos do pequeno indicador. Nada comparado à imensidão da nossa ilha, que exigia um dia de jornada, fosse a pé fosse a lombo de burro, de uma povoação para outra” (Germano de Almeida, Estórias Contadas).

Ocupando uma latitude próxima dos trópicos, os dez pedaços de terra que emergem do meio do Atlântico encontram-se cercados de um mar que envolve fisicamente a terra e sentimentalmente as suas gentes, insularidade decisiva na construção do imaginário cabo-verdiano, do seu modo de ser e de viver, de estar na vida e no mundo. Os efeitos erosivos sobre terrenos de tão profundas e plutónicas origens ocasionaram uma morfologia vulcânica que atinge a sua plenitude no Fogo, um modelado mais apagado pela velhice no Maio, Boa Vista ou Santa Luzia, que mantém uma rude virilidade em Santiago, Santo Antão, São Vicente, Brava, Sal ou São Nicolau.

Cabo Verde depende dramaticamente de um clima agreste e da irregularidade de chuvas incertas. Flagelados do Vento Leste, à mercê que aqueles acasos favoreçam a abundância, olham o céu, sentem a terra e pensam na colheita do milho como um destino que ditará o ritmo da vida e o estado do corpo e do espírito: “Dizem que milho semeado em pó vem com mais força, “é sementeira natural”. De qualquer maneira, destino de homem de enxada é cavar e semear. Este é que é destino de homem: cavar e meter grão. A espiga vem do desígnio de Nosso Senhor. Se não vem é porque Ele não quis. Seja feita a sua vontade”

(Manuel Lopes, Os Flagelados do Vento Leste).Estes factores e uma geografia madrasta conjugaram-se para imprimir dureza ao meio

e impor uma incessante labuta quotidiana pela sobrevivência. Cabo Verde atravessou-se no

1 - Rui Jacinto. Texto incluído em Almeida, A. C., Gama, A., Cravidão, F. D., Cunha, l. e Jacinto, R. (2003) – Fragmentos de um retrato inacabado. A Geografia de Coimbra e as metamorfoses de um país. Coimbra. IEG, Universidade de Coimbra.

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caminho de diferentes rotas, foi charneira no intercâmbio de gentes, de mercadorias, de saberes, de culturas que transformaram o arquipélago na plataforma de um diálogo vivo entre raças e culturas. As vicissitudes de cinco séculos de história e as características sociais inerentes ao processo de povoamento proporcionam um quadro humano sincrético e único, tão fascinante para o geógrafo como para a generalidade dos visitantes.

O meio natural e um peculiar ambiente humano ditaram a acção do homem, a Europa e a África moldaram a identidade do cabo-verdiano, âncoras do um forte apego à terra, mas, também, de um desejo de evasão e de aventura, de partida e de regresso. A pequena dimensão física e económica do território e a endémica escassez de recursos não deixaram outro destino senão o mar, a emigração, a saudade: “A vida de marinheiro não o deixava gozar direito a sua família. Sentia às vezes vontade de deixar aquela vagabundagem e de ir para o pé dos seus. Ia cuidar da propriedade de Patim e abrir uma loja à beira da estrada” (Teixeira de Sousa, Contra mar e vento).

Com a emigração emerge uma nova estrutura social: “Frank dos Mosteiros era agora dono dum sobrado em S. Filipe, tornado assim homem tão importante como foi Nhô Pedro Simplício Veiga” (Teixeira de Sousa, Ilhéu de Contenda); a emigração persiste toca fundo na alma do povo, embora “nem a emigração teve poder suficiente para fazer perigar esse “eixo” dolorosamente nascido do isolamento. Porque sendo um país que conta no exterior com mais do dobro da sua população interna, muito facilmente poderia sofrer efeitos erosivos catastróficos a nível cultural e de identidade. Mas o cabo-verdiano continua carregando consigo sua cultura, vivendo nas sete partidas a cachupa, o grogue e a morna, e nunca hesitando em evidencia-la, porque nada no mundo será capaz de o fazer aceitar que Cabo Verde não continue o centro do mundo.”

A língua, a música e a gastronomia são exemplos de um património que a cada instante se renova; como a literatura, cujas páginas estão impregnadas de uma geografia realista e plena de sentimento, permitindo-nos efectuar verdadeiras viagens de estudo, deambular por S. Nicolau com Chiquinho, avançar no Fogo Contra mar e vento. Volvidos quarenta anos após a elaboração daquele trabalho e um quarto de século sobre a independência do país, outras referências matriciais de Cabo Verde se sobrepuseram, construindo uma realidade económica e social qualitativamente diferente.

Na Hora di Bai fica-se a apreciar um povo que das agruras da vida e de tanta ausência magoada construiu uma poética sofrida, casando-a com uma musicalidade que transformou em hino e bandeira, como aquela personagem de Baltazar Lopes cujas “mornas que ele compunha não tinham o sainete atrevido e saltitante das canções da sua terra (Boa Vista). Era sempre uma história de amores tímidos, desesperos silenciosos, pasmos contemplativos perante a morabeza e a graça branda do crecheu” (Baltazar Lopes, Chiquinho. Romance caboverdeano).

. Cabo Verde: introdução e enquadramento2. Quem, viajando por mar ou por ar se aproxima do arquipélago de Cabo Verde defronta-se com uma sucessão de ilhas onde a marca exterior é uma aridez confinante com a mais viva agressividade. Montanhas agrestes emergem do Oceano num emaranhado de montes e vales, vales na generalidade secos e montes que por vezes apresentam pequenas manchas verdes nos seus flancos lá onde os bancos de nuvens tocando o solo – humedecendo-o sem o molhar – facilitam o ciclo vegetativo de certas espécies mesmo que a chuva tão avara como desejada insista em primar pela ausência ou por uma desconcertante exiguidade.

Destas ilhas, três – Sal, Boavista e Maio – mais velhas reportando a sua emersão a tempos geológicos mais recuados, apresentam-se quase planificadas atestando de caminho a força niveladora dos agentes modeladores.

Uma – o Fogo – exibe-nos na beleza portentosa do seu aparelho vulcânico um dos mais majestosos espectáculos que a Natureza pode exibir – espectáculo de força e grandiosidade

2 - Os textos e as fotografias que a seguir se apresentam foram retiradas de A Ilha de Santiago: contribuição para o estudo da sua fenomenologia sócio-económica, tese de Geografia apresentada por Maria Luísa Ferro Ribeiro, em 1961, no Instituto de Estudos Geográficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, um dos trabalhos fundadores da Geografia de Cabo Verde.

Nós Terra, Nós Geografia

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ante o qual o tão reclamado Vesúvio parece um fenómeno natural de 3ª plano.Outras – S. Vicente, S. Nicolau, Santiago, Santa Luzia, Santo Antão –, ocupam a posição

intermédia entre o jovem e brutal relevo de Fogo e as quase planas ilhas orientais oferecendo os mais chocantes contrastes.

Lá ao fundo para sul como que envergonhada da sua pequenez a ilha Brava parece aí colocada para contrastar com a brutalidade plutónica do Fogo.

Se esse viajante prossegue seu caminho sem se deter ficará sem se aperceber que por detrás daqueles montes escalvados há vales cuja verdura contrasta deliciosamente com a agrura vigorosa e amachucante da periferia.

Ele ficará ignorando que naquelas pequenas povoações que viu de longe (pequenas cidades de aspecto pobre, pequenas vilas ou aldeias em extrema decadência algumas, (outras tentando progredir), vive, labuta um povo que constitui uma das mais estranhas e curiosas experiências humanas de todos os tempos.

O homem havia de vir pelas caravelas portuguesas veiculadas pela energia do mesmo alisado de Nordeste servindo a maior epopeia de todos os tempos – o espantoso empreendimento dos descobrimentos portugueses.

Outros homens viriam mais tarde trazidos pelos primeiros. Mas estes vinham agora do continente negro e ao contraste das configurações oferecidas pelo meio físico juntava-se o contraste do aspecto físico dos homens oriundos de dois continentes servidos por duas raças.

É então que começa a maior experiência “laboratorial” executada com matéria-prima humana: brancos e negros vão fundir-se na mais positiva coexistência harmónica para dar lugar, séculos depois a um povo novo – o crioulo cabo-verdiano.

Condicionalismo geográfico. Um clima tende para desértico quando o seu máximo pluviométrico é de 250 mm e se atendêssemos ao total da pluviosidade poderíamos rotular o clima de Cabo Verde de desértico se não houvesse mais factores a ponderar. Mas considerando que a amplitude térmica é pequena e que as chuvas são periódicas e o clima do arquipélago afasta-se do tipo desértico. (…)

Orgãos Marquês

Formas talhadas pela erosão (notar a arborização do interior)

A devastação da vegetação primitiva que aliás nunca chegou a formar matas cerradas, se deu em larga escala por intervenção desordenada do homem e a acção das cabras que tudo invadem, o que agravou ainda mais a aridez. Mas não pode ser esta a razão das estiagens que são consequência da situação geográfica do arquipélago e do jogo dos ventos que o afectam.

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Apesar da altitude e exposição do relevo determinarem diferenciações climáticas dentro da ilha, o contraste que se nota não é tão pronunciado que se cheguem a esboçar climas completamente diferentes. De facto, a altitude não atinge valores tão elevados, que se possa falar de um clima tropical das zonas baixas e de um clima temperado dos altos cumes.

Outras formas derivadas do trabalho erosivo

Monte das Vacas Maciço d’ Antónia

Antigos aparelhos vulcânicos

Aspetos do litoral. Pastagem (notar a ausência de vegetação)

A ilha de Santiago é das mais acidentadas do arquipélago caracterizando-se pelos seus cumes elevados, grandes ravinas e desfiladeiros quase inacessíveis. A ilha é totalmente modelada pela erosão que talhou no basalto formas caprichosas que lembram as coisas mais curiosas: aqui a rocha destaca-se como uma coluna delgada isolada do resto do material basáltico, ali forma cabeços arredondados, mais além agulhas elevadas e ao longe recortam-se no horizonte como que um castelo em ruínas. O nome de alguns montes provêm da sua forma extravagante – o “Marquês”, serra que faz parte do Maciço da Antónia lembra ao longe a figura de Pombal; os Órgãos, Pau de Pilão e outras serras têm a forma evocada pela sua designação.

Não há aparelhos vulcânicos em actividade nem formas eruptivas frescas, porque a ilha foi das primeiras a virem a lume e portanto largamente exposta à erosão que fez desaparecer a configuração primitiva. Contudo, pela disposição dos materiais podem-se localizar os centros vulcânicos donde jorrou o material que forma a maior extensão desta ilha.

Nós Terra, Nós Geografia

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No litoral ou no interior destacam-se de vez em quando na planura das achadas…

Panorama agrícola e modo de vida rural. Iniciados os descobrimentos, Santiago pela sua posição privilegiada em relação às grandes rotas marítimas viu-se de repente valorizado como entreposto comercial e enriquecido em espécies oriundas dos mais variados pontos do globo. A mais importante foi sem dúvida o milho que se adaptou perfeitamente ao clima, pois o seu ciclo de desenvolvimento processa-se dentro do pequeno período pluvioso e em breve aumenta a sua área de expansão e ocupa os melhores terrenos da ilha.

Plantação de bananeiras Campo de milho

Originário da América do Sul, foi introduzido em Cabo Verde anos antes de 1515 e a partir desta data pode-se dizer que o destino histórico do arquipélago muda por completo.

A política da colonização sofre uma verdadeira revolução, pois à actividade comercial, fundamento da vida na ilha, segue-se uma fase agrícola, possível graças a este cereal de grande valor alimentar capaz de assegurar a manutenção da população.

No século XVI outra cultura de rendimento, o café, vem enriquecer o património agrário; encontrou boas condições para o seu desenvolvimento nas vertentes húmidas expostas aos ventos predominantes e passou a constituir a espécie mais lucrativa e de maior aceitação no mercado internacional pela sua óptima qualidade. A purgueira também foi introduzida na mesma altura e é extraordinária a maneira como ela se multiplicou, aparecendo em todo o lado, desde as regiões baixas até aos cumes inacessíveis das mais altas elevações, conservada ainda hoje em grandes extensões porque não é apreciada pelas cabras, flagelo da agricultura. Também do Brasil veio a mandioca empregada no fabrico da “farinha de pau” que substitui o trigo quando de má qualidade mas que apesar de muito apreciada e largamente difundida não chegou a ter a importância do milho.

Embondeiro Cana de açúcar Colheita de milho

Mas o período de florescimento e grandeza da ilha não dura muito tempo! Já no século XVIII e ainda meados do XIX, os cronistas acusam a sua decadência e o estado de abandono que reina por toda a parte. Intensamente só se faz a cultura da cana sacarina, com o fim de preparar a aguardente, mas por processos muito rudimentares sendo assim a quantidade e qualidade deficientes; por toda a parte um desinteresse completo pelas demais culturas

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– o milho, o feijão e a mandioca apenas são produzidos em quantidade que cheguem para o sustento de um ano e o cultivo das plantas tintureiras é quase que abandonada, apesar de serem apreciadas e constituírem uma boa fonte de rendimento. Delas as mais importantes tinham sido a urzela e o dragoeiro. Este é uma espécie de palmeira que no início dos descobrimentos cobreia grande extensão da ilha; foi planta muito apreciada porque do tronco se extraia uma resina conhecida por “sangue de drago” de muita procura e aceitação, do comércio; das suas folhas faziam-se cordas empregadas nas amarras e cabos, muito utilizados numa ilha em que a actividade marítima é a principal.

Ao mesmo estado de abandono foram votadas as culturas do tabaco e algodão, que cresciam espontaneamente sem nenhuns cuidados.

Trabalhos agrícolas

Mas esse mesmo milho que salvou a ocupação das ilhas, havia de, pela sua extrema sensibilidade às irregularidades pluviométricas, constituir também o calcanhar de Aquiles desse mesmo povoamento.

Assim a grande produção dos anos bons afundava o cabo-verdiano numa ilusória fartura criando-lhe em anos de boas chuvas a ideia de uma facilidade de vida tragicamente desmentida logo que faltavam as chuvas de Outubro.

A princípio enquanto os vales não estavam superpovoados a fome instalava bruscamente fazia vítimas apenas naqueles núcleos populacionais exclusivamente dependentes das encostas onde o milho era cultivado em regime de sequeiro.

Mas com o andar dos tempos a própria natureza da altura do milho, a destruição de bosques e vária vegetação subespontânea para cultivar este cereal, numa constante preocupação de alargamento da sua área de expansão, pôs em andamento o mecanismo de degradação dos solos, fenómenos que aqui encontravam óptimas condições de evolução devido ao regime torrencial das chuvas (tipo aguaceiro) e do carácter declivoso da orografia.

As crises provocam não só brutal quebra da população como se vê dos gráficos e do quadro como ainda desorganizam totalmente a economia do arquipélago. Tendo este fenómeno incidido periodicamente sobre a população ao longo de vários séculos não podemos deixar de ficar marcado na maneira de ser do povo. Pode-se dizer sem receio de errar, que as crises moldaram o cabo-verdiano impondo-lhe muitas das suas características actuais. Uma dessas características é a descrença e o temor do futuro, que o leva geralmente a viver o presente sem preocupações de amealhar pois antigamente mesmo com algum dinheiro se podia morrer de fome por falta de víveres para comprar.

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As condições corológicas e climáticas da ilha não lhe permitem alimentar a sua população. Esta tem vivido em estado de subnutrição crónica e mesmo quando a fome aguda não impõe razias catastróficas a fome crónica tem feito as suas devastações sob as formas patológicas da desnutrição ou carências vitamínicas de várias ordens. (…)

Actualmente o governo de Cabo Verde está fazendo um esforço sério no sentido de alterar o estado actual de coisas e o primeiro sintoma palpável da nova atitude foi o facto de não ter havido mortes durante a crise provocada pela seca de 1959 enquanto que as crises de 1941-1942 e 1946-1948 fizeram no seu conjunto trinta mil vítimas!

População e território: povoamento, casa rural e sociedade. O homem havia de vir pelas caravelas portuguesas veiculadas pela energia do mesmo alisado de Nordeste servindo a maior epopeia de todos os tempos – o espantoso empreendimento dos descobrimentos portugueses.

Outros homens viriam mais tarde trazidos pelos primeiros. Mas estes vinham agora do continente negro e ao contraste das configurações oferecidas pelo meio físico juntava-se o contraste do aspecto físico dos homens oriundos de dois continentes servidos por duas raças.

É então que começa a maior experiência “laboratorial” executada com matéria-prima humana: brancos e negros vão fundir-se na mais positiva coexistência harmónica para dar lugar, séculos depois a um povo novo – o crioulo cabo-verdiano. (…)

Em 1858 a vila da Praia foi elevada à categoria de cidade por Decreto de 29 de Abril por ser a principal povoação do arquipélago tanto pelo número de habitantes, como pelo desenvolvimento do seu comércio. Contava 2255 habitantes, sendo destes 280 escravos e era cabeça de um concelho que constava de 6 freguesias que abrangiam uma população de mais de 13.000 habitantes.

Já nesta altura havia alguns bons edifícios, dois poços bem construídos e abundantes de água, um mercado diário bem abastecido de géneros alimentícios, o que evidencia o franco progresso da cidade.

Enquanto se desenvolvia a cidade da Praia, a antiga cidade da Ribeira Grande caminhava a largos passos para a decadência, nada restando hoje do seu antigo esplendor, antes está reduzida a um montão de ruínas e a um conjunto de casebres de aspecto miserável.

Casas típicas

A forma da casa quadrangular, sem escada interior. Sem varanda, mostra uma semelhança com as casas do sul de Portugal, estando ausentes os tipos de habitação do norte.

A disposição das casas em pequenos núcleos populacionais, os caminhos murados, o arranjo das propriedades constituem uma réplica da paisagem do sul de Portugal. Certas palavras como por exemplo: xerém, balaio, Bia, são comuns na linguagem de Cabo Verde e Algarve. O xerém, prato preparado com o milho moído, vulgarmente usado neste arquipélago também faz parte da ementa quotidiana algarvia.

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Outro tipo de casa Cozinha

Tipos de povoamento

Dominava em Santiago o regime latifundiário e o branco, detentor de enormes extensões de terra encontrou condições e teve forças para se firmar como um autêntico senhor com um outro preconceito racial. Unia-se às escravas negras apenas com o intuito de satisfazer os seus caprichos e não com o propósito de constituir família, mas as suas disposições não duram muito tempo por contrárias às suas tradições e, vários documentos testemunham o seu procedimento generoso para com os filhos naturais e mãe destes a quem foram feitas várias doações.

Convinha-lhe no entanto, manter bem vincada a distância que o separava do negro para evitar que factores de ordem sentimental comprometessem o estado económico das suas terras e fomentavam a união entre os escravos porque os filhos destes pertenciam-lhe de direito e assim o número de braços que dispunha para a exploração das suas propriedades era maior.

Trapiche

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Transporte

Além disso, nas estiagens que causam uma grande baixa na população, determinavam a venda de escravos para os poupar à fome, e passada a crise novos elementos eram adquiridos para fazer face às exigências de exploração agrícola. Santiago facilitava pela sua posição as frequentes renovações de escravos que teriam de passar pelas mesmas fases de adaptação climática e social do que retardava a assimilação.

Destes factos resultou uma mestiçagem menos profunda nesta ilha o que é facilmente denunciado pela análise do quadro racial do arquipélago. O Censo de 1950 dá como total da população 147.326 habitantes, assim distribuídos pelo arquipélago:

Ilhas Brancos % Mistos % Negros %

Boavista

Brava

Fogo

Maio

Sal

Santiago

Santo Antão

S. Nicolau

S. Vicente

21

565

182

2

98

881

394

42

849

0,7

7,1

1,1

0,1

5,5

1,5

1,4

0,4

4,4

2.353

6.815

16.209

1.028

1.637

21.931

23.787

10.174

17.792

81,4

86,2

97,0

55,0

91,8

37,3

85,6

98,7

93,1

517

523

314

840

49

36.051

3.622

89

470

17,9

6,0

1,9

44,9

2,7

61,2

13,0

0,9

2,5

O senhor e o escravo vivem lado a lado e conjugam os seus esforços para a realização de fins comuns e na ameaça de perigos, fogem juntos para sítios melhor defendidos. Portanto a sua aproximação foi mais fácil e a miscigenação mais profunda.

Se a assimilação foi menos completa e a miscigenação se processou com menor intensidade em Santiago do que no resto do arquipélago, também não é de estranhar que as reminiscências afro-negras se localizem mais abundantemente nesta ilha. Mas os costumes africanos transplantados, sob a influência do catolicismo e da civilização ocidental, perderam muito da sua pureza e afastaram-se do seu sentido original.

Há factos que denunciam logo a sua origem negra, mas outros há de tal maneira

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complexos em que as duas culturas estão tão profundamente interpenetrados que é muitas vezes difícil, senão impossível, dizer qual a influência negra ou qual o contributo europeu. (…)

Se a população vai crescer rapidamente embora se façam obras de fomento estas dificilmente melhorarão o estado médio da população excepto se recorrer a soluções auxiliares das quais a emigração parece ser a mais simples e rendosa.

Emigração não como contratados para S. Tomé e Angola pelos muitos inconvenientes que ela comporta, mas sim para países estrangeiros sob a fórmula de emigração livre mas orientada pelo Serviço de Emigração Nacional.

O cabo-verdiano emigrado nunca esquece a terra e a família e enquanto fora vai mandando dinheiro aos seus e mais tarde procura regressar para vir morrer na terra de que tem saudades.

No campo prático esta atitude do cabo-verdiano representa a possibilidade de fluxo de divisas estrangeiras simultânea dum necessário alívio de pressão demográfica que de há muito se vem fazendo sentir.”3

Apontamentos para uma geografia cultural. Seria interessante fazer um estudo comparativo entre o folclore cabo-verdiano e o brasileiro, e notar a evolução sofrida por factos de início semelhantes, de acordo com o meio físico e quadro económico. Mas este já é um assunto que sai fora do âmbito do nosso trabalho e que deve ser antes tratado por especialistas competentes. Instrumentos de uso quotidiano, a alimentação, alguns hábitos, jogos, etc., revelam imediatamente a sua origem africana.

Quanto aos negros tudo leva a crer que o maior contingente veio do Sudão, pois as sobrevivências africanas apesar de muito apagadas ainda são suficientes para denunciar a sua origem. Mas além dos sudaneses, escravos doutra origem devem ter contribuído para o povoamento da ilha. E assim, se a liturgia religiosa da tabanca revela uma influência acentuada da cultura sudanesa, a sua organização político-social aproxima-se das sociedades congolesas (bantu). Enquanto que o cimbó, acessório indispensável do batuque veio do Sudão, a “tchbeta” parece estar mais perto da cultura congolesa.

Certo cerimonial do casamento como a imobilidade e silêncio da noiva, na véspera do casamento evidencia traços da cultura islâmica, talvez trazidos por negros sudaneses islamizados.

Pilão. Foi introduzido em Cabo Verde pelos negros da costa da Guiné onde continua ainda hoje a ser o instrumento mais empregado para a moagem e descasque dos cereais. É um objecto indispensável, ponto de partida para toda a culinária e auxiliar prestimoso das fainas agrícolas. É largamente empregado na moagem doméstica do milho e, ainda em variados trabalhos agrícolas como a debulha dos cereais e descasque do café e da purgueira.

Mó de pedra Pilão

3 - Maria Luísa Ferro Ribeiro, Ilha de Santiago: contribuição para o estudo de uma fenomenologia sócio-econó-

mica, 1961

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Alimentação. A alimentação é feita com base no milho com o qual se confeccionam os mais variados pratos, mas nunca o pão, o que é sem dúvida uma herança do que ficou dos antepassados negros.

A cachupa é o prato mais característico e o alimento básico de toda a população. Consta essencialmente de milho (“cochido”, a que se junta em menores proporções, feijão, batata doce, mandioca, banana verde, peixe ou carne, mas que nas classes mais pobres se reduz muitas vezes, apenas a um cozido de milho e feijão. Pode-se dizer que a maior parte do tempo da mulher cabo-verdiana é dedicada à preparação da cachupa.

Ainda com o milho se fazem o fongo, a brinhola, a djagacida, o milho aliado, útil quando o pobre não dispõe de dinheiro para a gordura e combustível necessários para a preparação da cachupa. Se a atitude de utilizar o milho para a alimentação sem preocupação de fabricar o pão é africana, pratos como o xérem e o rolão são correntes no Algarve e nas Beiras, o que revela mais uma vez convergências das duas culturas no sentido de contribuir para a solução do mesmo problema.

“Diabo dentro” Aspectos do mercado

Jogo do Ouri. É o único jogo africano que se pratica em Cabo Verde. É jogado sobre uma peça de madeira, de pedra com doze orifícios hemisféricos cada um com quatro sementes. Há vários processos de jogar sendo os mais vulgares: o direito português e o cego (inglês).

Ouri

192

Tabanca. Há bem poucos anos ainda, era frequente em Santiago a tabanca a única sobrevivência do culto africano organizado em Cabo Verde, embora sem o seu significado primitivo.

Tabanca originariamente significava povoação e ainda hoje é este o seu significado nalgumas tribos da Guiné donde vieram os negros para o povoamento da ilha. Dispersos pelas exigências do regime da escravatura, longe da tribo de que faziam parte, sentem a necessidade de qualquer laço de união com os outros indivíduos com os mesmos usos, costumes e língua e daí o sentido especialmente afectivo que adquire a palavra tabanca que passa a designar uma associação de socorros mútuos.

A Organização compreendia à frente o rei ou o chefe com o seu conselheiro, mestre das cerimónias religiosas, aos quais estavam subordinadas a hierarquia civil e militar; uma rainha às ordens das quais estavam as mulheres (cativa) e as raparigas (filhas de santo); na época das festas há personagens cómicos que com as suas palhaçadas fazem rir toda a assistência.

Os sócios prestavam assistência moral e material nos casos de doença ou morte, auxílio nas construções de casas e trabalhos agrícolas e contribuem com uma cota mensal para as despesas da tabanca.

Os festejos começavam no dia 3 de Maio, anunciados pelos músicos que tocam tambores e búzios, atrás dos quais dançam em requebros lascivos as filhas de santo. A festa prolongava-se até ao dia de S. João data em que era mandada celebrar uma missa na Igreja Matriz, seguida de ladainhas na capela privativa entoadas em coro por todos os presentes.

Batuques. Santiago é a única ilha que conserva ainda hoje o batuque, de origem africana. O esquema mais frequente é o seguinte: uma cantadeira ou cantador que faz de solista, um grupo que faz o coro, acompanhado da “tchbeta”; no meio do terreiro a dançarina; as danças são sempre acompanhadas pelo cimbó.

A “tchbeta” consiste em marcar o ritmo batendo nas coxas as palmas das mãos. A sua origem é muito discutida, talvez bantu pela sua semelhança com o termo Ku-beta que em bantu designa batuque.

O cimbó de origem sudanesa, é acessório indispensável de batuque formado por um bojo de cabeça forrado de pele como o tambor.

Depois de batuque segue-se a “finaçon” cantiga improvisada por uma cantadeira sobre motivos da circunstância acompanhada apenas por bater de palmas.

Casamentos. Uma vez que a rapariga aceite o namoro, dá ao rapaz um sinal – uma pedrinha, uma mola para o cabelo, outra coisa qualquer – e mediante isto ele pode fazer o pedido que consiste em entregar pessoalmente uma folha de papel selado onde nada vai escrito ao pai da noiva. Discute com ele as possibilidades financeiras e aceitando o rapaz como noivo da filha toma o papel e guarda-o no local mais seguro da casa. O papel testará o comportamento do rapaz, pois caso ele falte à palavra há uma testemunha da sua pouca seriedade. Há raparigas que têm 7 ou 8 folhas de papel selado…

Afora o pormenor do sinal e da forma singular como é feito o pedido, a festa do casamento em todas as outras localidades faz-se mais ou menos da mesma maneira. É anunciada por meio de foguetes e começa com o “pilão” – preparação do milho para a festa – oito dias antes do acontecimento. Feito o aviso pelos foguetes, as mulheres de manhã cedo partem para a casa da noiva com o pilão e respectivos paus e com o milho ou feijão que desejam oferecer.

Na véspera do casamento há nova reunião para preparação do “cúscus”, do “xérem”, matança de animais, etc., tarefas que são executadas num ambiente festivo em que o batuque tem supremacia sobre qualquer outra distracção.

À noite a noiva sentada numa cadeira especial devidamente ornamentada, o “assento”, escuta a chamada “finação”, cantiga adequada ao dia que constitui uma exortação ao seu comportamento futuro. Permanece em silêncio quase absoluto e numa perfeita imobilidade desde a véspera até depois de efectuado o casamento.

Depois dos conselhos a noiva entra em casa mas o noivo finge que vai entrar, volta as costas, anda uns metros e faz isto três vezes seguidas; só da terceira vez e com ar alheio a tudo é que entra em casa aonde se junta à mulher, indo ambos ocupar o “assento”.

Este gesto significa que o lugar da mulher é em casa e o dele é na rua e como tal pode

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entrar ou sair à sua vontade.Se a pureza da noiva for reconhecida o noivo manda deitar foguetes e então procede-se

à entrega das ofertas que são as mais variadas: uma corda que simboliza o animal que há-de vir, um balaio pequeno em representação das quartas de mantimentos, peças de pano da terra, dinheiro, etc. Caso contrário o noivo aparece no dia seguinte com uma manga enrolada ou perna das calças arregaçada.

Funerais. Quando a morte sobrevem acorrem os vizinhos e parentes para “armarem a esteira” e colaborarem nos trabalhos caseiros pois durante oito dias a família do morto nada deve fazer. Permanece sentada na esteira durante este período de tempo e aí recebe os pêsames e numa gritaria infinda pranteiam o morto, recordando todas as suas qualidades e pelo seu intermédio enviam-se saudades aos outros mortos.

Fazem grandes quantidades de comida para todos que aí acorrem; esta nunca deve ser rejeitada, colocada na mesa e apenas pode ser servida em pratos de barro feitos na terra.

Crioulo. O crioulo, dialecto que se fala no arquipélago, não é mais do que o português arcaico que sofreu modificações e se simplificou ao contacto com as populações afro-negras. Tem estruturas morfológicas integralmente de cunho português e de léxico do qual só uma pequena parte não provém do reinol.

O que dá aparência de aberração ao crioulo em comparação com os dialectos da metrópole reduz-se aos seguintes factos: a) Aspecto fonético; b) Simplificação do sistema morfológico; c) Sobrevivência de arcaísmos.

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Cabo Verde: uma incompleta bibliografia geográfica

Rui JacintoCEGOT - Universidade de Coimbra

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. Geografia de Cabo Verde: o ciclo colonial (até 1975)Obras fundadorasRIBEIRO O. (1954). A ilha do Fogo e as suas erupções. Lisboa, Junta de Investigação do Ultramar, Memórias, Série geográfica I.RIBEIRO, Maria Luísa Ferro (1961) - A Ilha de Santiago. Contribuição para o estudo de uma fenomenologia sócio-económica. Tese de licenciatura em Geografia apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.Algumas passagens da tese foram publicadas, entre Janeiro e Junho, em Cabo Verde: boletim de propaganda e informação:. Apontamento etnográfico sobre a ilha de Santiago. Ano XIII, n.º 148 (Janeiro de 1962), p. 7-14.. Apontamento etnográfico sobre a ilha de Santiago. Ano XIII, n.º 149 (Fevereiro de 1962), p. 10-15.. Vida da ilha de Santiago há cem anos. Ano XIII, n.º 150 (Março de 1962), p. 12-14.. Condicionalismo histórico da ilha de Santiago. Ano XIII, n.º 151 (Abril de 1962), p. 4-9.. Ilha de Santiago: panorama agrícola e vida rural: estado actual da agricultura. Ano XIII, n.º 152 (Maio de 1962), p. 26-31.. Ilha de Santiago: principais culturas e seu valor económico. Ano XIII, n.º 153 (Junho de 1962), p. 30-35.AMARAL, Ilídio (1964) - Santiago de Cabo Verde. A terra e os homens. Memórias da Junta de Investigação do Ultramar,

195

nº 48, Lisboa. [Reedição em 2007: Associação das Universidades Portuguesas, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, UniCV, Universidade do Algarve, IICT]. [Tese de Doutoramento].

Maria Luísa Ferro Ribeiro: outros trabalhos publicadosCoexistências culturais. In: Cabo Verde: boletim documental e de cultura. - vol. XV, nº 19-21/175-177 (Abr.-Jun. 1964), p. 13 – 26.O valor pedagógico da disciplina de Geografia. In: Cabo Verde: boletim documental e de cultura. - Ano XV (nova fase), n.º 13-15/169-171 (Outubro-Dezembro de 1963), p. 44-49.Didáctica da geografia. In: Seiva. - Vol. XI, nº 7-8 (1971).Centro de Documentação e Informação para o Desenvolvimento: orientações e estratégia. In: Seminário sobre informação lusófona e desenvolvimento agrícola: que cooperação ACP/CEE. - Lisboa: [s.n.], 1988. - 41 p.OLIVEIRA, Henrique; Ribeiro, Maria Luísa Ferro; Chantre, Maria de Lurdes; Ribeiro, Óscar; Monteiro, Maria de Fátima Varela; Duarte, Dulce Almada; Albuquerque, Luís de (1978) - Documentos elaborados pela delegação de Cabo Verde à intenção do “Encontro de Ministros de Educação e Educadores de Moçambique, S. Tomé e Príncipe, Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde”, Bissau... [Texto policopiado] / Cabo Verde: MEC, 1978?]. Sobre o ensino superior. In: A semana. - Ano II, nº 96 (1993), p. 9.

O legado dos mestresMARTINS, Alfredo Fernandes (1943) – Alguns reparos à classificação de colónias proposta por Hardy. Boletim do Instituto de estudos Franceses, vol. II/III, 1941/43, pp. 187-208. (Republicado em: Cadernos de Geografia, nº1, IEG.MARTINS, Alfredo Fernandes (1964) - O condicionalismo geográfico na expansão portuguesa. Boletim da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, Coimbra, 5GIRÃO, Aristides de Amorim (1936) - Lições de Geografia Humana, GIRÃO, Aristides de Amorim (1952) - Portugal e o Brasil no mundo de amanhã. Brasília, vol. II, Coimbra.DAVEAU, Suzanne; RIBEIRO, Orlando - La zone intertropicale humide. Paris: Armand Colin, 1973. (Collection U. Série “Géographie”). RIBEIRO, Orlando - Aspectos e problemas da expansão portuguesa. Lisboa: Fundação da Casa de Bragança, 1955. [Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1962. (Estudos de Ciências Políticas e Sociais; 59)].RIBEIRO, Orlando - Problemas humanos de África. Lisboa: Edições Maranus, 1961. (Sep. de: Colóquios sobre Problemas Humanos nas Regiões Tropicais, N. 51).RIBEIRO, Orlando (1954) – As ilhas atlântidas. [s. l.: s. n.]. Naturália, V. 4, F. 3). RIBEIRO, Orlando (1955) - Primórdios da ocupação das ilhas de Cabo Verde. Separata da Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, tomo XXI, n.º 1.RIBEIRO, Orlando (1956) – As ilhas de Cabo Verde no princípio do século XIX. Memórias de António Pusich, publicadas e anotadas por Orlando Ribeiro. Garcia da Horta, IV (4), Lisboa: 605-634.RIBEIRO, Orlando (1961) - Geografia da expansão portuguesa. Lisboa: Universidade de Lisboa, (Sep. de: Arquivos da Universidade, N. 2). RIBEIRO, Orlando (1974) – Prefácio in MONTEIRO JÚNIOR, Júlio. - Os rebelados da Ilha de Santiago, de Cabo Verde: elementos para o estudo sócio-religioso de uma comunidade. Pref. do Prof. Orlando Ribeiro. [Cabo Verde]: Centro de Estudos de Cabo Verde, 1974. RIBEIRO, Orlando (1974) - Destinos do Ultramar. Lisboa: Livros Horizonte. Colecção Horizonte; 26.

Outros trabalhos pioneiros de pendor geográficoASSUNÇÃO C.F.T. (1954). Expedição científica à ilha do Fogo. Estudos petrográficos (1952-1953). Lisboa, Junta de Investigação do Ultramar, in: Memórias, Série petrográfica I, 156 pp. BEBIANO J.B. (1932). A geologia do arquipélago de Cabo Verde. Serviços de Geologia de Portugal, tomo XVIII.275 pp. CARVALHAL A. (1943). Fisionomia meteorológica da ilha de Santiago de Cabo Verde. Praia, Imprensa Nacional de Cabo Verde. CHEVALIER, A (1935). La flore de l’archipel du Cap Vert. Paris: Revue de botanique appliquée, t.XV, pp.733-1090. SERRALHEIRO A. (1970). Geologia da Ilha de Maio (Cabo Verde). Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 103 pp.

. O período pós-colonial (1975-2001)DAVEAU, Suzanne (1988) - Nótula sobre aspectos recentes e actuais da erosão fluvial na ilha de Santo Antão, Cabo Verde. Finisterra, XXIII, 46, p. 287-301.DIAS, Maria Helena (1999) – Marcas portuguesas na moderna cartografia cabo-verdiana. Finisterra, XXXIV, 67-68: 95-109.REBELO, Fernando (1999) – Riscos de inundação rápida em Cabo Verde. Apontamentos de observação numa breve visita à Praia e ao Mindelo em Junho de 1999. Finisterra, XXXIV, 67-68, pp.: 47-55.FERREIRA, Denise de Brum (1983) - Étude de la convection au-dessus de l’Atlantique tropical au large de l’Afrique Occidentale. Lisboa: Centro de Estudos Geográficos, 1983 (Linha de acção de geografia física: Relatório. 16)FERREIRA, Denise de Brum (1985) - La crise climatique actuelle dans l’archipel du Cap Vert. Quelques aspects du problème dans l’île de Santiago. Finisterra, XXII, 43, pp.: 113-152. FERREIRA, Denise de Brum (1986) – Étude sur la sécheresse dans l’ile de Santiago (Cap-Vert). CEG, Lisboa.FERREIRA, Denise de Brum (1987) - La crise climatique actuelle dans l’archipel du Cap Vert: quelques aspects du probléme dans l’île de Santiago. In: Finisterra, vol. 22 (nº 43).- (1987), p. 113-152.MOTA, A. Teixeira da (1991) - Cinco séculos de cartografia das ilhas de Cabo Verde. Lisboa : Junta de Investigações do Ultramar, p. 11-16. PAGREY, Pierre (1990) - Le climat de l’ Atlantique Oriental, des Açores aux îles du Cap Vert : d’aprés Denise de Brum Ferreira. Finisterra.- vol. 25 (nº 49).- (1990), p. 191-199.SEMEDO, José Maria (1977) - Manifestações festivas de Tabanca. In: Cultura. - A. 1, nº 1 (Set 1997), p.80-83.

196Nós Terra, Nós Geografia

SEMEDO, José Maria (1991) - Espaço geográfico no romance “o escravo”. In: Pré-textos: Ideias e Cultura, Nº 0: 4-6.SEMEDO, José Maria (1992) - Cidade da Praia: alguns aspectos da sobreposição dos modos de vida rural e urbano no espaço da cidade. In: Pré-textos, Ideias e Cultura. Nº 1: 52-59.SEMEDO, José Maria (1993) - A revolta de Ribeirão Manuel na perspectiva da implantação da república portuguesa. Praia: Movimento Pró-Cultura.SEMEDO, José Maria (1993) - Un archipel vulcanique dispersé. In: Notre Librairie : Revue du Livre : Afrique, Caraibes, Océan Indien. Nº 112 (1993), p. 6-11.SEMEDO, José Maria (1995) - A segunda fase do PFIE em acção. In: Educação: Boletim Informativo do Ministério da Educação e do Desporto. - Ano IV, nº 17 (1995), p. 18-19SEMEDO, José Maria (1996) - A Tabanca e a sua origem (The Tabanca and its origin). In: Fragata: Revista de Bordo dos TACV Cabo Verde Airlines, Nº 10 (1996), p. 21-24.SEMEDO, José Maria (1997) - Tabanca: o renascer de uma tradição. In: Cultura: Revista Semestral. - Ano 1, nº 1 (1997), p. 80-83.SEMEDO, Jose Maria (1998) - O milho, a esperança e a luta. In: Cabo Verde: insularidade e literatura (coord. Manuel Veiga). Paris: Editions Karthala, 1998: 81-92.SEMEDO, José Maria (1999) - Plantas endémicas de Cabo Verde (Endemic plants: Cape Verde is remnant of mankind). In: Fragata: Revista de Bordo da TACV - Cabo Verde Airlines. - Nº 21 (1999), p. 48-49.SEMEDO, José Maria; Maria R. Turano (1995) - Cabo Verde: O ciclo ritual das festividades da Tabanca. Praia: Spleen, 153 p.SERRALHEIRO, A. (1976) – A geologia da ilha de Santiago (Cabo Verde). Tese de Doutoramento apresentada a Universidade de Lisboa.

Estudos de pendor geográficoCARREIRA, António (1982) – Estudos de economia Caboverdiana. INCM.CARREIRA, António (1983) – Cabo Verde. Formação e extinção de uma sociedade escravocrata (1460-1878). Instituto Cabo-verdeano do Livro. Praia, 2ª Edição.CARREIRA, António (1983) – Migrações nas ilhas de Cabo Verde. Instituto Cabo-verdeano do Livro. Praia.CARREIRA, António (1985) – Demografia cabo-verdiana: subsídios para o seu estudo, 1807-1983. Instituto Cabo-verdeano do Livro. PraiaFERNANDES, José Manuel (1996) - Cidades e casas da Macaronésia. 2ª ed. Porto: FAUP. 420 p.

Teses de Doutoramento em Geografia: do colonial (1964) ao período global (2012)AMARAL, Ilídio (1964) - Santiago de Cabo Verde. A terra e os homens. Memórias da Junta de Investigação do Ultramar, nº 48, Lisboa. [Reedição em 2007: Associação das Universidades Portuguesas, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, UniCV, Universidade do Algarve, IICT].BRUM FERREIRA, Denise de (1990) - Le climat de l’A tlantique Oriental, des Açores aux îles du Cap Vert. Thèse de doctorat d’ Etat submetida a Paris-Sorbonne (26 outubro 1989).LESOURD M (1995). Etat et Société aux Iles du Cap-Vert. Ed. Karthala, Paris.COSTA, Fernando Eduardo Lagos (2002) - Evolução geomorfológica quaternária e dinâmica actual na bacia da Ribeira Seca (Santiago oriental - Cabo Verde). Lisboa, Dissertação equivalente a Doutoramento apresentada ao Instituto de Investigação Científica Tropical para prestação de provas de acesso à categoria de Investigador Auxiliar, 270 p.. NASCIMENTO, Judite Medina do, (2009) - La croissance et le Système de Gestion et de Planification de la Ville de Praia (Rep. du Cap-Vert), Thèse de Doctorat présenté a l’U.F.R. de Lettres et Sciences Humaines de l’Université de Rouen, Rouen. [Publicado em 2011 com o título : La croissance et le système de gestion et de planification. Un cas d’etude sur la ville de Praia au Cap Vert. Saarbrucken-Germany: Editions universitaires européennes.]SANTOS, Aquiles Celestino Vieira Almada e (2011) - A insularidade e suas condicionantes económicas. O caso dos pequenos estados insulares em desenvolvimento. Tese de doutoramento em Geografia (Geografia Humana), Universidade de Lisboa, IGOT.FURTADO, Clementina (2012) - As migrações da África Ocidental em Cabo Verde: atitudes e representações. Doutoramento em Ciências Políticas e Sociais pela Université Libre de Bruxelles.

. O período da globalização (depois de 2001)

. Teses de Mestrado em Geografia CARVALHO, J.N. (2003) - O Sonho de Emigrar para o Brasil: Territórios de Diáspora cabo-verdiana no Rio de Janeiro, Niterói. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Federal Fluminense (UFF). NASCIMENTO, Judite Medina do, (2004) - O crescimento urbano e a estrutura funcional da cidade da Praia, Tese de Mestrado em Geografia Humana, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa.ALMADA E SANTOS, A. C. (2004) - O Comércio Retalhista no Centro da Vila de Sintra. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de Lisboa.SEMEDO, J. M. (2004) - O parque natural da ilha do Fogo Cabo Verde: Subsídios para a sua gestão e seu desenvolvimento. Dissertação de mestrado apresentada à Fundação Universitária Iberoamericana.TAVARES L.F. (2005) - Décentralisation et développement local dans un micro-état insulaire: le Cap-Vert, défis et enjeux pour la ville de Praia. Dissertation de master présentée á l’Université de Rouen – France.BORGES A. (2005) - O património ecológico e arqueológico da Cidade Velha: Subsídios para o Uso Sustentável dos Recursos Naturais e do Desenvolvimento Turístico. Dissertação de mestrado apresentada à Fundação Universitária Iberoamericana.FURTADO, Clementina Baptista de Jesus (2006) - A emigração em Cabo Verde de 1974 a 2000 o concelho de São Miguel: emigração, retorno e desenvolvimento local. Geografia Humana e Planeamento Regional e Local, Dep. Geografia, Fac. de Letras, Univ. de Lisboa.TAVARES, C. (2006) - A Política de Solos na Política Urbana, a sua relevância na Cidade da Praia – Cabo Verde. Dissertação

197Rui Jacinto

para obtenção de grau de Mestre em Gestão do Território, Faculdade de Ciências Sociais e Humana da Universidade Nova de Lisboa. MASCARENHAS, J. M. (2007) - A problemática do solo e da água e o ordenamento do território em Santiago (Cabo Verde). Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Nova de Lisboa.FERNANDES, M. F. (2007) - Sistema de informação geográfica na gestão do cadastro urbano municipal aplicado ao Município da Praia. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Nova de Lisboa. MONTEIRO, Sílvia (2007) - Riscos naturais e vulnerabilidades no concelho da Ribeira Grande. Ilha de Santo Antão (Cabo Verde). Coimbra, Dissertação de Mestrado em Dinâmicas Sociais e Riscos Naturais apresentada às Faculdades de Ciência e Tecnologia e de Letras da Universidade de Coimbra. CORREIA, Romualdo B. (2007) – Modelação cartográfica em ambiente SIG de susceptibilidade à erosão hídrica dos solos. Caso da bacia da Ribeira dos Picos Santiago (Cabo Verde). Dissertação de Mestrado em Geografia apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. BORGES, Carlos António (2007) - Do Platô à cidade: evolução da forma urbana da cidade da Praia, Cabo Verde, Prova Final de Licenciatura apresentada ao Departamento de Arquitectura, Coimbra.LIMA, L. H. (2008) - Áreas protegidas e/ou zonas de desenvolvimento turístico em Cabo Verde: O caso de Boavista. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade de Aveiro MOTA, Alicia Maria da Cruz (2008) - As comunidades imigrantes em Cabo Verde: os chineses em São Vicente e a sua participação no desenvolvimento do comércio. Tese de mestrado em Geografia económica (Lisboa). PINA, R. M. (2008) - Associativismo e desenvolvimento local em Cabo Verde: O percurso de Revitalização Rural na Ilha de Santiago. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade de Lisboa.PINA, P. (2008) - O desenvolvimento urbano do Munícipio da Praia. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade de Lisboa. GAMBÔA, M. S. (2008) - Impactos decorrentes da expansão da cidade de assomada, Município de Santa Catarina - Cabo Verde. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal de Florianópolis. COSTA, M. M. (2008) - O ordenamento do território e o desenvolvimento do turismo: o caso da ilha de Santiago - Cabo Verde. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Nova de Lisboa. CARVALHO, Ineida (2009) – Monitoramento Ambiental da estrada de São Domingos – Assomada, ilha de Santiago, Cabo Verde, com enfâse na compartimentação geomorfológica. Dissertação de Mestrado, apresentada à Universidade Federal de Pernambuco.LOPES, Ermelinda Emílio Mendes (2011) - Mulheres e Ambiente: A problemática da apanha de inertes na Ilha de Santiago (Cabo Verde). Dissertação de Mestrado em Geografia, especialidade em Geografia Física, Ambiente e Ordenamento de Território, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.GARCIA, Carina (2011) - Processo de desertificação na Ilha de Santiago (Cabo Verde: orientações estratégicas para o combate à desertificação). Dissertação de Mestrado em Gestão do Território, Especialização em Ambiente e Recursos Naturais Lisboa, Departamento de Geografia e Planeamento Regional, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. SILVEIRA, Enoque Monteiro Barbosa da (2011) - Áreas Residenciais Clandestinas na Cidade da Praia: Caso Latada e Achada Eugénio Lima Trás. IGOT Dissertação de mestrado apresentada à Universidade de Lisboa. CORREIA, Armindo Freitas (2011) – A gestão do território municipal em Cabo Verde: o caso de Santa Catrarina de Santiago. Dissertação de Mestrado apresentada à FCSH da Universidade Nova de Lisboa. FERNANDES, Nélida Furtado (2012) - Evolução Urbana e Planeamento Urbano da Cidade de Assomada (Cabo Verde). Relatório de Mestrado em Geografia (especialização em Ordenamento do Território e Desenvolvimento), no âmbito do Estágio realizado na Câmara Municipal de Santa Catarina, apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.LIMA, Isabel Pires (2012) - Inundações urbanas: desafios ao ordenamento do território. O caso da Cidade da Praia (Cabo Verde). Tese de mestrado, Geografia - Geografia Física e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território.PINHEIRO, João (2014) - Análise e Cartografia da Suscetibilidade a Movimentos de Vertente e Erosão Costeira em Cabo Verde: Caso de estudo a Ilha de São Nicolau. Mestrado em Sistemas de Informação Geográfica e Modelação Territorial aplicados ao Ordenamento.BELMIRA, Antónia Brito Goth (2014) - Geopatrimónio da ilha de São Nicolau: Valorização Geoturística. Relatório de Mestrado em Geografia apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Teses de Mestrado em outras disciplinasCABRAL, José (2005) - O papel do turismo no desenvolvimento de Cabo Verde: turismo e combate à pobreza: nu djunta-mô. Lisboa: Universidade Técnica de Lisboa, Instituto Superior de Economia e Gestão. 221 p. Tese de Mestrado.NUNES, Irene - Turismo, desenvolvimento e dependência em Cabo Verde. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux. 2009. 90 p. Relatório de Estagio.QUERIDO, Carlos António de Pina Querido dos Reis (2007) - Do Platô à cidade: evolução da forma urbana da cidade da Praia, Cabo Verde. Coimbra: [s. n.] 61 p. Prova Final de Licenciatura apresentada ao Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.CRUZ, Antero Ulisses - Três tempos, três portos, três portas: 1 mar urbano. Coimbra: [s. n.], 2001. 103 p. Prova Final de Licenciatura apresentada ao Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. CRUZ, Eliseu Monteiro - Análise da evolução urbana da cidade do Mindelo. Coimbra: [s. n.], 2003. 40 p. Prova Final de Licenciatura apresentada ao Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. DAUN, Maria do Carmo Farias; SANTOS, Lorena - Turismo em Cabo Verde: um estudo exploratório. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. 2009. 93 p. Dissertação de Mestrado.GALINA, Sandra Elisa Rodrigues - De Dom Rodrigo a Mindelo: ensaio sobre a fundação de uma cidade. Coimbra: [s.

198Nós Terra, Nós Geografia

n.], 2004. 102 p. Prova Final de Licenciatura apresentada ao Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. GARCIA, Carina; FONSECA, Sanny - As Redes de Equipamentos educativos e o Ordenamento de Território em Cabo Verde – O caso da Ilha de Santiago [Em linha]. Praia : 2009. [Consult. Maio 2009].SAMPAIO, Catarina Maria Garção Serra Coelho - Habitação rural em Santo Antão. Coimbra: Departamento de Arquitectura da FCTUC. 2008. 125 p. Tese de Mestrado.SANTOS, Analiza Chantre Silva - Museu do Porto Grande de Mindelo. Coimbra: [s. n.], 2005. 62 p. Prova Final de Licenciatura em Arquitectura apresentada à Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. MORAIS, Joaquim Jorge Monteiro - Cabo Verde: um projecto de país e a ideologia da educação como estratégia para o desenvolvimento – estudo da constituição do ensino técnico. Paraná: Universidade Federal do Paraná. 2009. Dissertação de Mestrado.

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Maria Luísa Ferro Ribeiro, a primeira geógrafa de Cabo Verde.

Homenagem

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Si ka badu, ka ta biradu:Cabo Verde, os Países de Língua Portuguesa e a Geografia de Coimbra

Rui JacintoCEGOT - Universidade de Coimbra

1. Oportuna e justa homenagem à pioneira da Geografia de Cabo Verde: Maria Luísa Ferro Ribeiro

“Quem, viajando por mar ou por ar se aproxima do arquipélago de Cabo Verde defronta-se com uma sucessão de ilhas onde a marca exterior é uma aridez confinante com a mais viva agressividade. Montanhas agrestes emergem do Oceano num emaranhado de montes e vales, vales na generalidade secos e montes que por vezes apresentam pequenas manchas verdes nos seus flancos lá onde os bancos de nuvens tocando o solo – humedecendo-o sem o molhar facilitam o ciclo vegetativo de certas espécies mesmo que a chuva tão avara como desejada insista em primar pela ausência ou por uma desconcertante exiguidade.”

Estas palavras, com que Maria Luísa Ferro Ribeiro abre a sua tese de licenciatura, defen-dida em 1961, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, continuam a ser uma boa e sintética introdução à Geografia de Cabo Verde. Quando me documentava para a primeira viagem profissional ao arquipélago, realizada em 1990, o Professor José Manuel Pereira de Oliveira, seu colega de curso e admirador confesso, recomendou-me a leitura da referida tese, cuja existência então desconhecia. Pediu-me que procurasse a sua autora para a cumprimentar, o que proporcionou um fugaz encontro, nesse longínquo mês de Fevereiro daquele ano, na cidade da Praia, num edifício da Praça da Escola Grande, no Plateau, onde se localizava o serviço que então coordenava.

Ainda retenho desse primeiro contacto pessoal (e único até ao dia de ontem), o olhar vivo e penetrante de Maria Luísa Ferro Ribeiro, cuja personalidade me pareceu tão discreta quão inquieta, sensível e firme no modo como explanou com desenvoltura e jovialidade tropical o seu profundo conhecimento sobre a Geografia de Cabo Verde e o lugar deste novel país no mundo. Relatou-me com paixão a saga permanente que nestas latitudes o homem trava com o meio, a austeridade implacável do quadro natural, a exiguidade dos recursos, a precariedade social sem esquecer a dimensão intangível e envolvente do universo mágico da mundivivência cabo-verdiana. Durante o breve encontro, que balançou entre crença no futuro e sodad nostálgica dos Tempos de Coimbra, passou em revista os alicerces matriciais que estruturam as telúricas permanências físicas e humanas de Cabo Verde, as mudanças aceleradas ocorridas nos 15 anos que nos separavam da independência e nas três décadas que tinham decorrido desde que calcorreou A Ilha de Santiago, em trabalho de campo, para elaborar a sua contribuição para o estudo da sua fenomenologia sócio-económica.

Ao percorrer as ilhas havia de confirmar a argúcia das suas observações, como verteu uma geografia vivida em informação refletida e num conhecimento assertivo sobre uma realidade tão dura quanto austera. Para quem, como eu, possuía um conhecimento me-ramente académico e literário, portanto, elementar, esparso e fragmentado, a leitura da tese sobre Santiago e a sua atualização escutada de viva voz permitiu rasgar horizontes sobre um mundo vagamente conhecido e lançar novos olhares sobre um território e um povo a que me rendi pela candura e sedução que emanam.

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Socorro-me de José Luis Hopffer C. Almada (2008) para situar Maria Luísa Ferro Ribeiro no panorama feminino da produção literária e cientifica de Cabo Verde: antes da independência, “é igualmente no Boletim Cabo Verde que Maria Luísa Ferro Ribeiro publica os seus inúmeros artigos sobre a etnografia caboverdiana, particularmente a referente à ilha de Santiago, assim comungando de uma das principais preocupações ensaísticas do labor claridoso. ( ) Às mulheres escritoras (no sentido de cultoras da poesia ou da prosa de ficção) acresce um significativo número de mulheres das áreas do ensaio e da investigação científica e universitária e, por isso, autoras de relatórios, estudos, teses, dissertações e outros trabalhos científicos, maioritariamente inéditos em livro. ( ) É, neste contexto, que às pioneiras Maria Luísa Ferro Ribeiro, Dulce Almada Duarte e Elisa Andrade vieram juntar-se outros nomes de mulheres investigadoras e autoras de livros, como, por exemplo, Maria Haidée Ferro, Isabel Lima Lobo, Amália Melo, Isabel Ferreira Lopes, Zelinda Cohen, Roselma Évora, Iva Cabral, Deirdre Meintel, Marlise Baptista, Fátima Monteiro, Cláudia Correia, Margarida Brito, Lígia Évora, Vanda Monteiro, Maria Adriana Carvalho, Maria de Lurdes Chantre ou, mais recentemente, Ana Eunice Araújo, Rosa Maria Morais, Goreth Freire, co-autoras com Eliezer Brito Semedo, de Lukas - Notisia Sabi di Jizus (versão em crioulo do Evangelho de S. Lucas)”.

O percurso da nossa homenageada, depois duma incursão precoce pela investigação geográfica, passou pela educação, onde deixou marcas na didática da Geografia e na formação de professores, tendo sido a Primeira Directora do Curso de Formação de Professores do Ensino Secundário (CFPES), Escola que foi elevada, em 1996, a Instituto Superior de Educação (ISE), que funcionaram na Escola Grande e, depois, quando evoluiu para a Universidade de Cabo Verde , instituída em 2006, passou a funcionar nas actuais instalações do Palmarejo. Havia de ocupar muitos outros cargos públicos, nacionais e internacionais, ser Membro do Conselho Executivo e Consultora da Unesco, da Unicef e do Instituto do Sahel, além de Embaixadora Plenipotenciária de Cabo Verde em Paris.

A obra precursora e pioneira sobre Cabo Verde, um dos atuais PLP, que Maria Luísa Ferro Ribeiro realizou na Geografia de Coimbra, o percurso profissional dedicado à educação, à divulgação cientifica e cultural sem deixar de abraçar outras causas públicas e cívicas são motivos suficientes para justificarem a presente homenagem, integrada num evento promovido pela sua Universidade quando, ao comemorar 725 Anos, resolveu realizar a XVII Semana Cultural da Universidade de Coimbra sob o lema Tempo de encontro(s). A resposta do CEI ao repto lançado pela Universidade, sua parceira com o Município da Guarda e a Universidade de Salamanca, neste projeto inovador de cooperação territorial e transfronteiriço, concretizou-se neste (Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros, mais uma reflexão que promove sobre Os Países de Língua Portuguesa e suas Novas Geografias.

2. As Novas Geografias dos Países de Língua PortuguesaO imaginário lusófono tornou-se, definitivamente, o da pluralidade e da diferença e

é através desta evidência que nos cabe, ou nos cumpre, descobrir a comunidade e a con-fraternidade inerentes a um espaço fragmentado, cuja unidade utópica, no sentido de partilha em comum, só pode existir pelo conhecimento cada vez mais sério e profundo, assumido como tal, dessa pluralidade e dessa diferença. Se queremos dar algum sentido à galáxia lusófona, temos de vivê-la, na medida do possível, como inextricavelmente portuguesa, bra-sileira, angolana, moçambicana, cabo-verdiana ou são-tomense.

Eduardo Lourenço (1987) - “Errância e busca do imaginário lusófono”. In A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia, Gradiva: 112.

No ano em que se comemoram 40 anos de independência dos países africanos que partilham em comum a língua portuguesa (PALOP) e volvido mais de meio século sobre a defesa da tese de licenciatura de Maria Luísa Ferro Ribeiro, (re)encontramo-nos para partilhar este momento carregado de significado e simbolismo. Importa por isso refletir prospetivamente sobre o papel da Geografia nos processos de desenvolvimento e de cooperação territorial, designadamente nos diferentes Países de Língua Portuguesa, bem como nos caminhos que a Geografia de Coimbra pode trilhar para aprofundar o diálogo com os geógrafos, as geografias e restante comunidade científica da vasta CPLP.

Foi referido na apresentação deste seminário que os debates e as análises comparativas entre as diferentes geografias dos PLP devem ser perspetivadas a partir dum diálogo

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intergeracional, interdisciplinar e prospetivo. Situemo-nos, pois, perante estas três coorde-nadas: i) o diálogo intergeracional deve proporcionar o debate entre diferentes gerações de geógrafos; ii) o diálogo interdisciplinar deve facultar a troca de pontos de vista dos geógrafos com investigadores de outras áreas do saber; iii) o diálogo prospetivo deve discutir as tendências que as geografias emergentes nos PLP estão a desenhar, as trajetórias de futuro que a investigação está a trilhar.

Não podemos estranhar, portanto, que o seminário que decorreu ao longo do dia fosse percorrido por temas como Outras Geografias: geografia, viagens e paisagens literárias, Geografia e imagem: foto(geo)grafia e território ou As novas Geografias dos PLP: geógrafos e experiências de investigação geográfica. Não parece despropositado nem despiciendo que, neste contexto, o debate sobre estas matérias tenha sido complementado com a Exposição Transversalidades: Fotografia sem Fronteiras. Território, Sociedades e Culturas Ibéricas em tempos de mudança, iniciativa que, a nosso ver, reúne todas as condições para ser replicada em Cabo Verde.

Houve quem tivesse anunciado o fim da história, acreditando que o consenso universal sobre a democracia colocaria um ponto final nos conflitos ideológicos (Francis Fukuyama, 1992), quem prescrevesse o fim da Geografia, crendo que as novas tecnologias da informação a tornariam obsoleta pela interconexão dos mercados financeiros, a padronização da cultura e das comunicações (O’Brien, 1990, 1992; Greig, 2002), quem vaticinasse um mundo plano por causa da inexorável e invasiva mundialização geral (Thomas Friedman, 2005). Porque a teoria do fim da geografia e a do mundo plano ignoram quatro realidades geográficas extremamente presentes e incontornáveis - a escala local, a escala regional, a distância e a não omnipresença da pessoa humana -, no limiar do novo milénio começou-se a falar da vingança da geografia (Robert Kaplan). Hoje como ontem, a Geografia continua a revelar uma capacidade impar para analisar e interpretar as velhas linhas de fratura económicas, sociais, culturais e “politicas que estão reemergindo” (Sanguin, 2014: 30).

A Geografia continua a ser imprescindível pelo inegável contributo que presta à promoção duma cultura territorial cidadã, à interpretação das dinâmicas territoriais e pelo papel dos geógrafos na definição de estratégias mais assertivas e sustentáveis de desenvolvimento e cooperação territorial. O debate ocorrido no dealbar do novo século agitou a comunidade geográfica que assistiu a mudanças que alteraram tanto as geografias locais e globais como o modo de ser Geografo e de fazer Geografia. No caso que mais nos importa, os Países de Língua Portuguesa (PLP), dispersos por diferentes continentes, apresentam grande variedade de contextos naturais, económicos, sociais, culturais e políticos que são o resultado das localizações, dos processos históricos e da integração nos respetivos continentes, com destaque para África, Europa e América.

Repartida por uma geografia complexa e que atravessa profundas transformações, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) engloba mais de 280 milhões de pessoas que fazem do português a língua mais falada no hemisfério sul e a quinta no mundo. Se associarmos a este quadro uma privilegiada posição (geo)estratégica global concluiremos que A (Nova) Geografia dos Países de Língua Portuguesa encerra múltiplas oportunidades, tanto ao nível da acção como da investigação, que não podem ser negligenciadas pelos decisores públicos nem pela comunidade científica, sobretudo num momento de crise e incerteza como o que atravessamos.

O tempo e o modo de ser Geógrafo e fazer Geografia estão a mudar e a Geografia de Coimbra, na confluência de saberes e afetos, deve temperar na devida proporção coração e razão para, na senda dos que nos antecederam, responder afirmativamente ao desafio de continuar a desbravar As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa . Geografias que se desdobram numa enorme diversidade de paisagens físicas e humanas que nos surpreendem e deslumbram a cada nova descoberta.

3. Da minha geografia vê-se o mar: Maria Luísa Ferro Ribeiro e a Geografia de Cabo Verde revisitada

“Cabo Verde fabrica o seu próprio chão, inventa a sua própria água, repete dia a dia a criação do mundo. Porém, se uma simples pessoa não cabe numa crónica, como caberiam um povo e um país?”(José Saramago, Caboverdiando. In Jornal de Letras, Lisboa, 14 de outubro de 1989).

Rui Jacinto

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Ainda hoje me interrogo acerca das razões que motivaram uma jovem, nos anos 50, a atravessar o Atlântico rumo a Coimbra para estudar Geografia, então uma disciplina tão desconhecida como, nos dias que correm, é desvalorizada pelo pragmatismo empregabilista. Talvez Ferreira de Castro tenha razão quando infere que a nostalgia deve ter nascido numa ilha e só numa pequena ilha se compreende, integralmente, o subtil significado da distância. Essa sufocação que dá a terra sem continuidade, como se o aro líquido que a estrangula se viesse fechar também em volta da nossa garganta, desperta constantes rebeldias e constantes impotências, acorda mil sentimentos ignorados, remexe, tortura, cava fundo na alma até o momento desta se submeter por falta de mais energias.

Tais sentimentos só podem despertar desassossego aos que sentem dificuldade em compreender as agruras do mundo que os rodeia, em lidar com um quotidiano duro e pesado como aquele em que tropeçava Maria Luisa Ferro Ribeiro ao percorrer as ruas da Praia ou do Mindelo. Estávamos no tempo em que os galos ainda cantavam na baia e o Porto Grande, na hora di bai, era mais uma etapa no calvário dos flagelados do vento leste que rumavam por �Ess caminho longe?/ Ess caminho/ Pa São Tomé. Compreendo que a metáfora criada por Germano de Almeida para traduzir o cosmopolitismo mindelense - Do Monte Cara Vê-se o Mundo (2015) -, fosse resposta insuficiente para uma jovem que aspirava, fora dos horizontes circunscritos da ilimitada fronteira líquida, encontrar um sentido para a vida e para as gritantes desigualdades económicas e sociais que a envolviam.

A expetativa de encontrar uma réstia de luz ou de esperança que respondesse a incertezas e ansiedades, mesmo que inconscientemente, terá levado a nossa homenageada a procurar respostas numa imaginada Geografia Claridosa. Vislumbro sobressalto, generosidade e sonho onde outros poderão encontrar desejo de evasão ou determinismo; sem enjeitar motivações provenientes duma geografia poética, que atormenta as almas mais sensíveis ou românticas, não ignoro a inquietude duma poética da geografia tão cara e tão presente entre os poetas insulares.

O impulso geográfico também pode ter emanado da geograficidade latente na obra dos escritores que estavam em voga, que se tinham unido em torno da Revista Claridade, essa geração atormentada que comungou preocupações, interpelou consciências e mergulhou no mais fundo do chão pátrio, que no (re)encontro com as raízes acabou por impregnar a identidade cabo-verdiana duma endógena e telúrica geografia. Dois títulos sugestivos e lapidares, dados à estampa por Jorge Barbosa, Arquipélago (1935) e Ambiente (1941), são percorridos por esta tocante sonoridade geográfica, bem espelhada no poema Paisagem: – Malditos / estes anos de seca! / Mete dó / o silêncio triste / da terra abandonada / sob o peso / do sol penetrante! / ( ) Em tudo / o cenário dolorosíssimo / da estiagem / - da fome!.

Aqui chegado, recorro ao remate duma crónica de viagem do nosso mestre, Professor Alfredo Fernandes Martins, aguarelista de paisagens e emoções:”Lembro-me de vós, lembrei-me do velho peregrino, lembrei-me de mim. E no fluir do íntimo diálogo recordei certas páginas” (fim de citação), particularmente o poema A condição de ilhéu, que Daniel Filipe incluiu em Ilha Imaginada, do seu livro Pátria lugar de exílio, cujo título encerra o mais profundo imaginário cabo-verdiano: Cerro os olhos e observo a paisagem interior: / cumes, rios, valados, desenham-se no espaço, / contornados a dor, / com certezas de régua e de compasso. // Um potro alado acena um adeus necessário. / Uma flor abre em leque a corola macia/ e perfuma de pranto o horto imaginário, / onde invento sozinho outra geografia.

Sem a presunção de inventar sozinho outra geografia aguardo com expetativa o que Maria Luísa Ferro Ribeiro nos irá revelar sobre as motivações mais íntimas que a terão levado a fazer esta sua tão improvável opção.

A Geografia de Coimbra só terá a ganhar em aprofundar o diálogo e a cooperação entre territórios, Universidades e redes de investigadores dos países lusófonos, que significa, também, honrar os Professores Amorim Girão, Alfredo Fernandes Martins, José Manuel Pereira de Oliveira, Fernando Rebelo ou António Gama Mendes, mestres que nos precederam nas suas reflexões sobre essas longínquas paragens. Fazer este caminho é responder positivamente à mais íntima e capital interrogação: Nós como futuro. Eduardo Lourenço, que ousou fazer tal pergunta para nos interpelar coletivamente, também adiantou uma lidima e subtil resposta: “Povos e indivíduos só têm o passado à sua disposição. É com ele que imaginam o futuro”.

Entre futuro e passado “a geografia serve antes de mais para lutar contra o esquecimento”, entre presença e ausência apelamos a Virgílio Ferreira para continuarmos a sonhar que – da

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minha geografia vê-se o mar. Este mar que nos une também nos permite acreditar que cooperar é preciso e que Geografia, Investigação e Desenvolvimento (GEOIDE) constituem uma trindade indissociável. A homenagem a Maria Luísa Ferro Ribeiro que aqui nos reúne só pode ser entendida como mais um momento que ganhámos não o fim duma viagem. Aproveitemo-la como cais de partida para um próximo reencontro, que podia acontecer, em 2016, na Praia, para celebrarmos:

- a reedição anotada da tese de Maria Luísa Ferro Ribeiro quando se comemoram 55 anos da sua apresentação;

- a institucionalização da cooperação informal que tem existido entre a Geografia de Cabo Verde e a Geografia de Coimbra, que já produziu frutos como a edição conjunta duma colectânea de trabalhos, elaborada por geógrafos das duas escolas, intitulada Interioridade/ Insularidade Despovoamento/ Desertificação;

- a elaboração duma Geografia de Cabo Verde que aproveite e valorize o potencial cientifico geográfico já disponível no país, a partir duma efetiva participação local.

Fomos avisados por José Saramago que”uma simples pessoa não cabe numa crónica” e por Mia Couto (Interinvenções: 78) que não existe geografia que nos seja exterior. Os lugares – por mais que nos sejam desconhecidos já nos chegam vestidos com as nossas projecções imaginárias. O mundo já não vive fora de um mapa, não vive fora da nossa cartografia interior. Por isso, não sendo objetivo deste (re)encontro celebrar o regresso de qualquer filho pródigo, a presente homenagem a Maria Luísa Ferro Ribeiro ficaria incompleta se não recordássemos, também, os que fabricam o seu próprio chão, inventam a sua própria água, repetem dia a dia a criação do mundo. Para terminar, “caboverdiando”, expresso uma convicção que nos é tão cara, recorrendo ao meu péssimo crioulo, de que me penitencio perante Eugénio Tavares e de tantos dos presentes: Si ka badu, ka ta biradu (para regressar tem de se partir).

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Alice MatosDoutorandaUniversidade de Aveiro

Saúdo todos os presentes e agradeço a oportunidade que me é dada de proferir umas palavras neste acto de homenagem à Dra Maria Luísa Ferro Ribeiro, evento em boa hora organizado por esta ancestral Universidade de Coimbra, no âmbito da 17ª Semana Cultural, Tempo de Encontros.

Fui convidada a participar nesta homenagem, enquanto ex-aluna do Curso de Formação de Professores do Ensino Secundário (CFPES), ramo de Português (1979-1983), e na qualidade de primeira bacharel do referido Curso, a completar a licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, como bolseira do extinto ICALP, Instituto de Língua e Cultura Portuguesa, no quadro da cooperação entre o Ministério da Educação de Cabo Verde e o Governo de Portugal.

Entendi que não falaria, nesta ocasião, na primeira pessoa. Antes como um “nós”, um colectivo de professores que a partir dos finais dos anos setenta viu as suas histórias de vida tomar novo rumo, aberta que foi a possibilidade de poderem formar-se no próprio país, Cabo Verde recém independente.

Falarei como um nós, onde incluo a homenageada neste evento, a Dra Luísa Ribeiro, porque implicada directamente nos momentos-charneira das nossas vidas, momentos em que, tal como definidos pelos teóricos das histórias de vida dos professores, constituem etapas significativas no processo do desenvolvimento profissional docente, marcando novos rumos no evoluir das trajectórias individuais e colectivas.

Estamos em 1978. Três anos após a independência de Cabo Verde. A nível da educação, o país tem dois liceus, escolas primárias nos principais centros populacionais, um centro de formação para professores do ensino básico em Santiago. Nenhuma outra estrutura de formação de professores.

É nesse contexto que surge o Curso de Formação de Professores do Ensino Secundário. Em 1978, para as áreas de Ciências Naturais e Matemática e, no ano seguinte, para a disciplina de Português.

Maria Luísa Ferro Ribeiro, então Directora do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Educação, foi a autora intelectual - e moral , deste projecto que cedo se tornou numa das grandes causas da educação, naquela conjuntura. Por ela se bateu a Dra Luísa e como bateu!

Tempos difíceis esses, com constrangimentos de toda a ordem onde a euforia, a vontade de fazer, o optimismo e a confiança confrontavam-se amiúde com a resistência de alguns, a descrença e o pessimismo de outros.

É esse o contexto. E era o Homem, o cabo-verdiano, o leitmotiv ou não fosse ele o único recurso que contava. Era nele que urgia investir. E foi nisso que Luísa Ferro Ribeiro se inspirou: na crença de que capacitando o homem, cria-se uma das condições necessárias, senão a principal, para mudar o resto.

O projecto concebido e liderado por esta mulher que não pára, foi ganhando adeptos, na educação e fora dela.

As relações que sempre manteve com Portugal, enquanto estudante universitária e enquanto reconhecida profissional, os contactos privilegiados com as pessoas certas para apoiarem a causa e a sua concretização, dentro e fora de Cabo Verde, determinaram uma rede de playdoiers que só as lideranças inteligentes conseguem mobilizar.

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E foram tantas as pessoas e instituições a darem-nos a mão. A darem-nos, a mão, sim, porque o projecto passou a ser uma causa colectiva, aqui e lá, uma construção a várias mãos.

O CFPES nasceu no segundo piso do Liceu Domingos Ramos, na cidade da Praia. Num extremo, um cubículo. Um cubículo onde cabiam uma mesa, uma máquina de escrever e uma estante. Era a secretaria. Do lado de lá, duas salas cedidas pela direcção do Liceu. Depois quatro. Nelas decorriam as aulas. Depois, os laborários. Depois um centro de recursos.

Nestas condições, os três primeiros Cursos foram realizados. Com sucesso. Depois deles, outros, uma segunda leva e mais uma. E outros, para professores do ensino básico, também.

Depois… cresceu tanto que buscou novas instalações, e foi mudando de sede, ao ritmo da demanda sempre crescente.

De Curso de Formação passou a Escola de Formação. De Escola a Instituto. De Instituto Superior de Educação a Universidade de Cabo Verde. Esta a génese do ensino superior no nosso país. Particularmente, da Universidade Pública de Cabo Verde, onde alguns de nós continuam a caminhada, na investigação e na docência.

Nesta história cabem tantas pessoas! Escrevo cada nome, à medida que me vêm à cabeça. Apenas com um pedido prévio de desculpas pelos que, por lapso de memória, não forem referidos. Escrevo, sem a preocupação de distinção de cargo académico ou hierarquia. António St’ Aubyn, Jorge Veiga e Luísa Veiga. Manuel Ferreira. Salazar Ferro. Prof. Luís de Albuquerque. Aurora Murteira e Mário Murteira. Alberto Carvalho, Humberto Duque. Henrique Oliveira, Eng. Mota Gomes, para apenas mencionar alguns nomes de portugueses e nacionais envolvidos, porque também cooperaram connosco, professores provenientes da Alemanha do Leste, Cuba, Brasil.

No cerne do projecto que continua a sua evolução, a Dra Luísa Ribeiro. A mulher que não pára. Não pára de pensar. Nas coisas e nas pessoas. Não pára de fazer, de agir. E sobretudo, não pára de desafiar contextos, problemas, situações, de incentivar pessoas. De dar as mãos aos que a rodeiam, se não de os pôr à frente, para que o que tiver que ser feito o seja, da melhor maneira.

Sei do que falo, desafiada que fui tantas vezes pela Dra Luísa a fazer coisas, a assumir lideranças Vi-me, �vi-me� esse o termo certo, vi-me como orientadora de estágio, no ano seguinte ao término do meu bacharelato. A orientar estágio de colegas meus, da segunda leva do Curso de Formação de Professores. �Temos dois grupos de estágiários e apenas uma metodóloga. Portanto, tens que avançar!� disse-me a Dra Luísa, assim de chofre. Engoli em seco, tamanho o susto! O que penei a preparar-me para fazer bem o que precisava de ser feito! E assim saiu a segunda leva de professores!

Os desafios continuaram. No final do nosso Curso, o ICALP ofereceu um estágio de um mês ao melhor aluno do Curso de Português. A Dra Luísa chamou-me ao gabinete, para me dar a boa notícia. Mal tive tempo de a digerir, oiço-a: �Não, estágio não. Tu vais mas é completar a licenciatura!� Como assim, Dra Luísa?

O que se passou nesse Verão foi uma autêntica maratona. Estava tudo por fazer: pedido de reconhecimento do Curso, equivalências, vistos, licenças de serviço, bolsas, enfim, tudo. E tudo dependia da desejada agilidade da nossa administração pública e da do país que nos deveria acolher no início do ano lectivo.

Não posso deixar de recordar os longos serões de trabalho, desses já longínquos três meses. Mais os finais de semana, já que nos dias úteis o tempo escasseava, eu a orientar estágio, a Dra Luísa, a dirigir o Gabinete de Estudos. As demandas da Universidade de Lisboa eram diárias. As notas para os serviços, dentro e fora, os ofícios, como lhes chamávamos naquele tempo, sucediam-se. Relatórios por elaborar. Discursos e intervenções, quase sempre redigidos a quatro mãos.

Os bolinhos e o chá trazidos pela Constantina, sempre na hora H, a mousse de manga feita na minha casa, adoçavam esses momentos de trabalho e afecto, que recordo com muita saudade.

Fiz, sem o saber, um curriculo de formação, mas ao contrário, partindo dos sumários de todas as disciplinas dos três anos do Curso, cujo levantamento constituía uma exigência para obtenção das equivalências, a parte substantiva do dossier a submeter à Universidades em Portugal. Depois, a sua validação pelos docentes.

Alice Matos

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As equivalências foram estabelecidas, o Curso de Formação de Professores reconhecido. Abria-se assim, uma nova era para os estudantes cabo-verdianos desejosos de continuar os estudos. Em Lisboa, depois em Coimbra, nesta Universidade.

O que aprendi consigo, Dra Luísa! Paralelamente ao cúrriculo formal, ditado pelos objectivos explícitos da formação de professores, desenvolvia-se uma espécie de currículo oculto, que me deu competências que me serviram para a vida. E continuam a servir.

Tive sempre ao meu lado a senhora, o meu par mais desenvolvido, que me lançava os andaimes, assim chamados pelas teorias socioconstrutivistas, para que eu conseguisse chegar onde era necessário e construir, progressivamente outras aprendizagens, uma nova praxis.

Alonguei-me, nesta narrativa, mas não poderia falar deste percurso que foi a todos os títulos colectivo, sem referir essas recordações-referência.

E termino. Mas, não antes de fazer esta inconfidência: há dias, depois de falar consigo ao telefone, lá em casa, diz-me o Mário: esta mulher não pára. Uma inspiração, uma referência para mim.

Não pare, Dra Luísa. Continue a construir castelos, como tantos que já construiu ao longo da sua vida, com as pedras que vai encontrando pelo caminho, tal como escreveu Fernando Pessoa. E continue a desafiar-nos!

Bem haja, Dra Luísa. Muito obrigada pela vossa atenção.

Nós Terra, Nós Geografia

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Sílvia MonteiroUniversidade de Cabo VerdeDoutoranda PRODEMA na Univ. Federal do Ceará

Muito boa tarde a todos! Pedindo desculpa pela minha informalidade, cumprimento todos os membros da mesa

e dirijo uma saudação muito especial à Dra. Maria Luísa Ferro Ribeiro, que tive o prazer de conhecer pessoalmente neste Seminário, o que, para mim, foi motivo de grande felicidade e proveito pessoal.

Mais do que palavras pessoais, as palavras que lhe vou dirigir serão proferidas em nome da Universidade de Cabo Verde, a jovem Universidade de que sou docente e que muito deve à nossa homenageada e que, por isso, muito se honra de participar nesta justa homenagem. Sou portadora duma mensagem pessoal, fraterna e amiga, da Senhora Reitora da Universidade de Cabo Verde, Professora Doutora Judite do Nascimento, para a Dra. Maria Luísa Ferro Ribeiro que, deste modo, se associa a esta oportuna iniciativa, uma vez que motivos de força maior a impedem de estar presente.

Começo por agradecer ao Centro de Estudos Ibéricos (CEI), ao Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT) e ao Departamento de Geografia da Universidade de Coimbra esta homenagem, que é também muito cara à Universidade de Cabo Verde e que corresponde ao reconhecimento do valor científico, pedagógico e, sobretudo, humano da Drª Maria Luísa Ferro Ribeiro, do seu exemplo e percurso de vida, do seu carácter, da obra que foi construindo em Cabo Verde e dos múltiplos serviços que ao longo do tempo prestou ao nosso país.

Gostaria muito de ressaltar uma a uma estas qualidades da nossa homenageada, mas sabendo não estar à altura de fazê-lo do modo justo que ela merece, vou deixar para outros esta tarefa. Não posso, no entanto, deixar passar esta oportunidade sem que, em nome da Universidade de Cabo Verde lhe agradeça o trabalho, o esforço, a inteligência e o saber que colocou na criação e desenvolvimento do Ensino Superior em Cabo Verde, nomeadamente na criação do Instituto Superior de Educação (ISE), embrião da universidade pública de Cabo Verde. Se hoje somos uma universidade estabilizada, apostada na qualidade do ensino e da investigação, com forte crescimento, tanto ao nível dos cursos de graduação como de pós graduação, devemo-lo ao empenhamento de docentes, alunos e funcionários, bem como de muitos amigos que, dentro e fora de Cabo Verde, continuam a dar o seu inestimável contributo à nossa Universidade, sendo justo destacar a velha e sempre renovada Universidade de Coimbra que uma vez mais nos acolhe de braços abertos. Mas, devemo-lo, também ao esforço pioneiro da Dra. Maria Luísa Ferro Ribeiro.

Por isso, Drª Maria Luísa Ferro Ribeiro, a UNICV, Universidade de Cabo Verde agradece-lhe todo o esforço e dedicação que colocou na criação do Ensino Superior em Cabo Verde e todo o apoio que, estou certa, continuará a dar à sua Universidade.

Muito obrigado!

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“O vulcão perto das raízes/ E a viola não longe do coração”1

Rui AlarcãoProfessor Doutor Antigo Reitor da Universidade de Coimbra

Magnífico Reitor, Senhora Embaixadora de Cabo Verde, Senhor Diretor do Departamen-to de Geografia da Faculdade de Letras, ilustres representantes da Universidade de Cabo Verde e de instituições de Formação de Professores, Senhora Dr.ª Maria Luísa Ribeiro, nossa ilustre homenageada, ilustres convidados - não podendo deixar de realçar o Senhor Professor Eduardo Lourenço, um dos nossos mais eminentes pensadores contemporâneos –, minhas Senhoras e meus Senhores.

A Senhora Dr.ª Luísa Ribeiro pediu-me que usasse da palavra, ainda que brevemente, nesta cerimónia. Bastava o seu pedido, mas ele foi reforçado pela organização do Simpósio “(Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros - Os países de língua portuguesa e as suas novas Geografias”, simpósio integrado na 17ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra. Agra-deço o convite, que muito me sensibilizou, mas pus um problema de legitimação: Porquê eu? Legitimidade formal não me faltaria, atento o convite. E legitimidade substantiva ou substancial?

Presumo que houve, nesse convite, um motivo subjetivo e emocional, e um outro mais objetivo e racional. Ter-se-á entendido que à amizade que nos une, a mim e à Dr.ª Luísa, acrescem razões institucionais para a minha fala, hoje e aqui. A Senhora Dr.ª Luísa Ribeiro sabe que, no desempenho de funções oficiais, me tornei um grande admirador de Cabo Ver-de, da sua terra, das suas gentes, da sua cultura, da competência, seriedade e sociabilidade dos cabo-verdianos. Ocorre-me um verso de Corsino Fortes, com quem contactei em Cabo Verde e depois como Embaixador em Lisboa, e que fala do País como: “O vulcão perto das raízes/ E a viola não longe do coração”.

Confessadamente, sou um admirador de Cabo Verde. Nos os anos em que fui Reitor, e foram dezasseis anos, estabeleceram-se frequentes e excelentes relações entre a Universidade de Coimbra e as autoridades académicas e políticas do Arquipélago. Eu, passe a imodéstia, terei sido uma das faces desse relacionamento. Relacionamento que, de resto já vinha detrás. Ainda há pouco foram lembradas pessoas como o Professor Luís Albuquerque, o Professor Jorge Veiga, a Dra. Luísa Veiga. O Professor Jorge Veiga, destaco, acompanhou-me como Vice-Reitor nos meus mandatos e foi um elemento fundamental no estreito relacionamento com Cabo Verde.

Aqui avulta a figura da nossa homenageada. Fui várias vezes a Cabo Verde enquanto reitor, foi mesmo uma das primeiras visitas fora de Portugal que fiz nessa qualidade, ao Ar-quipélago, onde já anteriormente tinha estado. Fui, as mais das vezes, apenas como reitor da Universidade de Coimbra, mas também lá estive em representação do Conselho de Rei-tores ou como representante das Associações das Universidades de Língua Portuguesa, cuja

1 Intervenção do Professor Doutor Rui Alarcão na sessão de homenagem à Dr.ª Maria Luísa Ferro Ribeiro, por oca-sião do Seminário “(Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros - Os países de língua portuguesa e as suas novas Geografias”, realizado em Coimbra, a 23 de abril de 2015.

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constituição ocorreu, e não foi por acaso, na cidade da Praia, capital do País. Conhecia a Dr.ª Luísa quando ela, já eu Reitor, veio a Portugal com o Ministro da Educação, Manuel Faustino, justamente para falar do Curso de Formação de Professores e de outros assuntos relevantes para o ensino, nomeadamente numa perspetiva de desenvolvimento do Ensino Superior.

A este propósito, cumpre salientar a longa e cuidadosa preparação do surgimento da Universidade de Cabo Verde, o que atesta bem o alto sentido de responsabilidade e o saudá-vel realismo das autoridades politicas e académicas cabo-verdianas. A Universidade pública surgiu após longos anos de preparação, por só então estarem criadas as condições para o sucesso.

A minha primeira visita oficial a Cabo Verde teve lugar em 1982, no primeiro ano do meu reitorado. Comecei por ser recebido pelo Comandante Pedro Pires, que era Primeiro-Ministro, e no programa estava prevista uma apresentação de cumprimentos. Pensei eu que era uma questão de cortesia e de cumprimentos oficiais, não seria uma audiência prolongada, para falar de temas que eu iria discutir com o Ministro da Educação e uma série de pessoas, nome-adamente com a Dr.ª Luísa, e fiquei surpreendido porque o Primeiro-Ministro me concedeu uma longa audiência em que não só se mostrou perfeitamente senhor dos dossiers que eu iria discutir em Cabo Verde, como também fez afirmações sobre a Universidade de Coimbra que me deixaram impressionado pela amplitude e rigor que revelavam.

Voltei a encontrar-me, tempos após, com Pedro Pires, então já Presidente da República, bem como, em diversos momentos e circunstâncias, com outras autoridades da vida política e cultural do País. Nomeadamente com Mascarenhas Monteiro, que estudou em Coimbra, e com quem tive bastantes contactos, quer na altura em que era Presidente do Supremo Tribunal, quer quando foi Presidente da República. Com o Presidente Aristides Pereira, que foi doutorado honoris causa pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e a quem fiquei devendo inúmeras atenções. Com o Dr. Carlos Veiga, Primeiro-Ministro, com quem me encontrei por diversas vezes. Com vários ministros da Educação, José Araújo, Ma-nuel Faustino, que já referi, Corsino Tolentino. Com o muito prezado Amigo Dr. David Hopfer Almada, que foi Ministro da Justiça, Ministro da Cultura e do Desporto, deputado, candidato a Presidente da República; com Abílio Duarte, Presidente da Assembleia Nacional. Nestes e noutros muitos passos político-académicos, e não só, que dei em Cabo Verde, quantas vezes me encontrei com a Dr.ª Luísa, altamente competente, sempre activa e disponível.

A Dr.ª Luísa Ribeiro é, de facto, uma destacada personalidade da vida cívica, política, académica e sócio- cultural de Cabo Verde. Primeira licenciada cabo verdiana em Geografia pela Universidade de Coimbra, como sabemos, professora em vários graus de ensino, con-selheira académica e política, nomeadamente do Dr. Carlos Veiga como Primeiro-Ministro, teve uma muito relevante intervenção na implantação e desenvolvimento da democracia em Cabo Verde. Foi também membro da Comissão Instaladora da Universidade, Diretora Geral da Educação, Embaixadora plenipotenciária em Paris e na UNESCO, desempenhou várias outras funções, ficando sempre credora da maior consideração e respeito. Por este nosso relacionamento pessoal e institucional, intenso e duradouro, compreendo que a Senhora Dr.ª Luísa Ribeiro tenha desejado a minha presença e a da minha Mulher, nesta homenagem, que tão justamente lhe é prestada.

Senhora Dr.ª Luísa Ribeiro, querida Amiga, aqui lhe deixo, nestas curtas e despretensiosas palavras, mais uma expressão de grande admiração e amizade.

Rui Alarcão

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Dr.ª Madalena NevesEmbaixadora de Cabo Verde em Portugal

Fui convidada enquanto Embaixadora, mas inscrevo-me na lista das amigas e das pessoas que privaram com a Dra. Luísa Ribeiro e que aprenderam muito com ela. Queria também destacar a coincidência, uma coincidência feliz, o facto de esta homenagem acontecer, hoje, no Dia do Professor Cabo-Verdiano, dia que está ligado ao nome de Baltazar Lopes da Silva.

Coincidência, ou não coincidência, também o facto da geografia da vida da Dra. Luísa ter começado como professora. E que de certeza tem nos alunos, naqueles que puderam aprender com ela, numa sala de aulas, também memórias e referências importantes. Mas se hoje podemos, em Cabo Verde, dizer que a universidade já “ dobrou a página da dificuldade “começamos com um pequeno grupo, tendo como pioneira a Dra. Luísa Ribeiro.

A história já foi aqui contada. Por isso vou deixar apenas algumas referências que foram sintetizadas pelo e atual Ministro do Ensino Superior e Ciência: “Precisando de quadros para desenhar e executar diferentes políticas públicas de desenvolvimento, Cabo Verde a seguir à independência tinha um problema. Entre o ensino primário em expansão naqueles tempos e o secundário havia um gargalo. Em todo o arquipélago havia até ao final dos anos 70 apenas dois liceus: um no Mindelo, o mais antigo, e o da Praia. Era então preciso dar acesso ao ensino secundário para se poder vir aumentar a prazo o número de candidatos ao ensino superior. Mas criar escolas secundárias implicava ter professores habilitados e ali é que se situa o nó. A Professora Luísa Ribeiro mobilizou a Universidade de Coimbra, obtendo nela professores e gestores para criar a primeira experiência nacional de formação de professores de ensino secundário, que é um nível de ensino pós-secundário e superior. Esta experiência é hoje vista como o marco fundador do ensino superior em Cabo Verde e através dela criaram-se laços duradouros entre a Universidade de Coimbra e Cabo Verde.“

Hoje Cabo Verde pode dizer, com orgulho, que tem mais alunos universitários no país do que tem fora. Fizemos este percurso, se quisermos construímos “ este trilho de felicidade”, que foi aqui descrito pela professora Alice, começando com o Curso de Formação de Profes-sores, nos anos setenta, avançando para um Instituto Superior de Educação e, mais tarde, em 2006, como foi dito, quando se reconheceu que estavam reunidas as condições, então, com a instalação da Universidade, com a sua criação. Hoje, temos, também, dos melhores indicadores de educação em África. Sementes lançadas e que permitiram a Cabo Verde cons-truírem este país que hoje é reconhecido no mundo. Na área da educação, particularmente, com os melhores indicadores, garantindo o acesso a todas as crianças e a todos os adoles-centes, portanto, as nossas estatísticas mostram que nos jovens até aos quinze anos 99,9% sabe ler e escrever. É um feito notável para um país que comemora, este ano, quarenta anos de independência.

Um outro elemento que eu gostaria de destacar e, porque estamos num encontro, a terminar um encontro sobre a geografia, é que a Dra. Luísa (ou a Luisinha) trabalhou sim a geografia e formou-se em geografia, mas cuidou, essencialmente, da componente humana, tanto perspetivando aquilo que seria o ensino superior em Cabo Verde, mas nas suas relações pessoais e institucionais. A apresentação do encontro de hoje, se pudermos sintetizar esse

215Madalena Neves

objetivo, eu diria que traduzem aquilo que é a Dra. Luísa Ribeiro. Esta homenagem é justa e Cabo Verde associa-se à Universidade de Coimbra neste mo-

mento de reconhecimento. Queria também aproveitar para transmitir uma mensagem de carinho de reconhecimento da Ministra da Educação e Desporto e do primeiro Reitor da Universidade de Cabo Verde, o atual Ministro do Ensino Superior e Ciência, António Correia e Silva, que me pediu para transmitir à Dra. Luísa um abraço amigo, um abraço de reconhe-cimento de Cabo Verde, do sistema de Ensino Superior em Cabo Verde, por todo o trabalho que desenvolveu. Diria que, como Cabo Verde, a Dra. Luísa, enquanto mulher Cabo Verdia-na, permitam-me destacar esta qualidade, enquanto mulher Cabo Verdiana, aprendeu com o vento a bailar na desgraça e ressuscita, todos os anos, para desespero daqueles que nos querem impedir a caminhada.

Parabéns, Dra. Luísa! Parabéns aos organizadores do encontro. O nosso obrigado à Universidade de Coimbra, na pessoa do Magnifico Reitor.

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Dr.ª Maria Luísa Ferro RibeiroGeógrafa

Magnífico Reitor, Professor Doutor João Gabriel Silva, gostaria de lhe agradecer por se dignar honrar com a sua presença este acto que pretende homenagear uma simples aluna que teve o privilégio de estudar nesta prestigiada Universidade.

Igualmente gostaria de cumprimentar o Professor Eduardo Lourenço, Director Honorífico do Centro de Estudos Ibéricos, uma referência para todos nós, e agradecer a honra que nos dá com a sua presença. Obrigada Professor.

Dizer um obrigada em determinadas situações não é suficiente para expressar os nossos sentimentos. É o que me acontece neste momento. Na ausência de melhor vocábulo agrade-ço, sensibilizada e, confesso, um pouco embaraçada, com um muito obrigada a morabeza e a generosidade das vossas palavras

À senhora Embaixadora, Dra. Madalena Neves, por me fazer sentir mais próxima da nos-sa terra. Feliz coincidência deste dia com o Dia do Professor Caboverdiano, que também é o meu dia. Como diz Baltazar Lopes “o corpo que é escravo vai, o coração que é livre fica”. Queira transmitir, Senhora Embaixadora, ao Doutor António Correia e Silva, Ministro do En-sino Superior e Ciência e à Dra Fernanda Marques, Ministra da Educação e Desporto, o meu reconhecimento pela mensagem amiga que tiveram a gentileza de me enviar.

Ao Professor Doutor Rui Alarcão, que acompanhou o processo de construção do ensino superior em Cabo Verde, conforme ficou bem explicito na intervenção com que nos brindou. As suas palavras amigas e gehnerosas, Professor, transportaram-me aos primórdios da cria-ção da Escola de Formação de Professores do Ensino Secundário em Cabo Verde e do papel que enquanto Reitor desta Universidade teve na sua afirmação e aceitação como uma Ins-tituição de Ensino Superior

Ao Dr. Rui Jacinto, que interiorizou a essência da caboverdianidade, como ficou bem expresso pela forma convicta e sentida do seu entendimento da realidade física e cultural de Cabo Verde.

Dra. Sílvia Monteiro, agradeço por compartilhar este momento comigo. Encontro de duas geógrafas pertencentes a gerações diferentes, mas que comungam do mesmo objecti-vo - trabalhar em prol da educação do nosso país. Gostaria que transmitisse à Doutora Judite Nascimento, Reitora da Universidade de Cabo Verde, o meu agradecimento pela mensagem que teve a amabilidade de me enviar.

Dra. Alice Matos, as suas palavras emocionaram-me. Revivi por momentos toda a nossa luta para pôr de pé um projecto em que todos nós, principalmente os mais directamente envolvidos, acreditávamos ser uma base segura para o lançamento dos primeiros passos para a criação do Ensino Superior. Recordo os sentimentos contraditórios que a miúde nos assal-tavam - certeza, dúvida, entusiamo, angústia, inquietação mas que no final se saldavam em confiança. Mas, Dra. Alice, “ uma andorinha não faz a primavera”...

O sucesso do projecto só foi possível pelo facto de alunos, professores e direcção cons-tituírem um corpo único que, num ambiente de compreensão e complementaridade ruma-vam na mesma direcção - o acreditar na viabilidade da criação de uma instituição de cariz superior. Tarefa difícil? Sem dúvida. O que poderia ser fácil num país recém independente?

A peça principal foram vocês, os alunos, que confiaram, aderiram e trabalharam ardu-amente. Confiaram e venceram. Hoje são docentes de prestígio em escolas secundárias e universidades.

Sonhei que um dia vocês, os primeiros alunos, seriam os homenageados.“E quando o homem sonha”...

217Maria Luísa Ferro Ribeiro

As vossas palavras confundiram-me… O tempo parou por instantes. Interrogo-me: - Essa pessoa sou eu? Terei feito tudo isto?

E sem saber bem porquê veio-me à memória um episódio ocorrido com o Dr Manuel Du-arte, jurista e intelectual caboverdiano, muito conhecedor de particularidades da nosso his-tória, em especial as da Cidade Velha. Contando uma das suas curiosas histórias, recheada de detalhes muito pouco conhecidos, a um grupo numa visita àquela localidade um senhor aproximou-se dele e disse:

Homi, nhô ê antigue prope Homem, o senhor é mesmo antigo Se ele aqui estivesse com certeza que me diria: Mudjer, nha ê antiga prope Mulher, a senhora é mesmo antiga.

Interiozo a longa caminhada que já percorri nesta estrada da vida.Regresso ao presente e ao espírito do feliz tema que inspirou o Seminário (Re)Encontros

em tempo de (Des)Encontros e recordo os versos do compositor e poeta brasileiro Vinícius de Morais.

“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.Doutora Maria Fernanda Cravidão, Doutor Lúcio Cunha, Doutor Rui Jacinto, organiza-

dores deste evento, grata pela vossa benevolência e gentileza em me considerar merecedora de um acto desta natureza.

Sem falsa modéstia penso que esta homenagem deveria ser dirigida, com toda a justiça, à Universidade de Coimbra que me deu as ferramentas e a Cabo Verde pelo saber das suas gentes. Eu, apenas,um veículo de comunicação nem sempre utilizado da forma mais correcta nem à altura das fontes que me levaram a dissertar sobre Santiago.

Os meus agradecimentos ao Professor Doutor Agostinho Almeida Santos, Cônsul ho-norário de Cabo Verde em Coimbra, ao Engenheiro Carlos Machado, Cônsul honorário de Cabo Verde no Porto, por se dignarem a assistir a este acto, enquadrado no ano em que se comemoram os quarenta anos da nossa independência.

Ao meu filho, à minha família, meus suportes de sempre.Aos meus colegas e amigos que marcam pontos assinaláveis deste meu percurso que já

vai longo, em que o nosso convívio foi sempre pautado pelo companheirismo, ajuda mútua, cumplicidade, e porque não, pela saudade dos que, como eu, vieram da “terra longe”.

A todos que quiseram partilhar este momento comigo um bem haja.A realização deste acto suscitou-me a oportunidade de reflectir sobre o meu percurso de

vida, as minhas opções, encontros e desencontros focalizado em três marcos:- Cabo Verde- Geografia- Coimbra

E a minha primeira reflexão parte de um ponto. Porquê a opção de seguir o Curso de Ciências Geográficas?

Influência de alguém? - NãoOu seria porque a Geografia estudada até ao quinto ano me teria entusiasmado? Tam-

bém não foi o caso. Era na época uma disciplina demasiado descritiva, baseada na memori-zação, em suma, pouco entusiasmante. Até hoje sou capaz de citar de memória nomes de montes, rios e seus afluentes, cabos e linhas férreas de Portugal. De Cabo Verde, como das outras colónias, apenas se ensinavam umas breves generalidades.

Foi uma opção muito minha, até porque não havia professor de Geografia para o curso complementar dos liceus. Estudei sem nenhum apoio e, no final do ciclo, apresentei-me a exame. Fui examinada pelo Professor Guilherme Chantre, professor muito estimado pelos seus alunos como ficou patenteado pela recente homenagem realizada pelos mesmos na cidade do Mindelo, ilha de S.Vicente

Na minha decisão pesou muito as aulas de história ministradas pelo Dr. Aurélio Gonçal-ves, pedagogo, escritor e filósofo que marcou muitas gerações. Eram aulas que ultrapassa-

218Nós Terra, Nós Geografia

vam o âmbito do programa oficial para abordar, sempre que oportuno, assuntos ligados à nossa realidade, em particular os problemas que mais afectavam Cabo Verde. E, numa destas aulas, o tema da lição foi uma questão muito actual na época. A seca e a fome que assola-vam Cabo Verde, destacando a situação da ilha de São Nicolau, ilha essencialmente agrícola. Famílias que emigravam, gente que morria pelas ruas e crianças evacuadas para a ilha de São Vicente para escaparem à fome. Relatou um facto que até hoje persiste na minha memória. Um homem à beira da morte e que até ao último suspiro balbuciava - papa com fava, papa com fava, pa fa…, pa...

E concluiu a aula com esta interrogação: será uma fatalidade, o destino de um povo sem sorte como diz a morna?

(...) Si tchuba bem morrê fogode Si ca bem tchuba morrê di sedi Povo sem sorte ca tem ramede Tchorá bo sina tchorá cretcheu (…)

(...) Se a chuva vem morre-se afogado Se a chuva não vem morre-se de sede Gente sem sorte não há remédio Chora a tua sina chora amor (...)

Veio-me à ideia então, uma situação, que se enquadrava no cenário descrito pelo profes-sor, ocorrida na minha infância.

Lembrei-me da Rosa, uma criança recolhida pela minha mãe, de entre as muitas que eram enviadas para São Vicente para escapar à fome, conforme o relato do Professor Aurélio Gonçalves. Pouco mais velha do que eu. Estava num grande estado de inanição e, natural-mente, necessitava de cuidados especiais.

Impressionou-me sempre essa situação - uma garota numa terra estranha, numa família desconhecida, uma criança que de repente fica sem raízes.

E passei a observar e a tentar compreender a realidade que me cercava. A chuva que caía no mar e não na terra, colegas minhas que viviam só com a mãe porque o pai estava “embarcado”, conversas que eu ouvia sobre as inumanas condições em que viviam os “con-tratados” de São Tomé.

Então decidi que teria que escolher uma alínea que me poderia abrir as portas para um curso que me levasse a questionar o porquê da difícil situação da nossa realidade, a encon-trar respostas para o ciclo que nos apertava. Confiante, a minha opção foi seguir o curso de Ciências Geográficas. A geografia, pensava eu, poderia proporcionar-me os conhecimentos para a compreensão da realidade das nossas ilhas.

Foi o meu encontro emocional com a Geografia. Hoje posso dizer que encontrei a geo-grafia a partir de problemas sociais. Geografia Social? Geografia Cultural? Fica a interroga-ção.

A compreensão, embora intuitiva, das relações entre a Sociedade e a Natureza explicam, para além de um conjunto de circunstâncias favoráveis, o facto de ter o privilégio de ser a primeira geógrafa caboverdiana. Hoje este mesmo caminho já foi trilhado por muitos jovens que formam um corpo prestigiado de docentes e investigadores do nosso país.

Novo encontro. Desta vez Coimbra. Reencontro com a geografia, agora de forma racio-nal, embora a parte afectiva e as inquietações de caracter social estivessem sempre subja-centes.

O curso de Ciências Geográficas iria de encontro às minhas expectativas? Interrogava-me.As aulas magistrais de Geografia Tropical do Professor Fernandes Martins, proporciona-

ram-me as primeiras respostas. E o acolhimento que o meu primeiro trabalho sobre a seca em Cabo Verde teve da parte do Professor Amorim Girão fêz-me sentir a solidariedade de alguém que partilhava as minhas angústias mesmo vivendo noutro espaço geográfico. Ficou registado na minha memória o gesto do Professor - fez um donativo para as vítimas da seca, (...) “O Professor Girão fez-se nosso irmão” (...) escreveu a escritora caboverdiana Maria Helena Spencer.

219Maria Luísa Ferro Ribeiro

Não houve hesitações no momento da escolha do tema da tese da licenciatura. Esteve sempre claro no meu espírito que teria de versar sobre Cabo Verde e, concretamente, so-bre a ilha de Santiago onde vivia. Também estava consciente das dificuldades que teria de enfrentar. Orientação à distância numa época em que as comunicações eram difíceis, limita-ção quanto ao acesso à bibliografia, dificuldade de deslocação ao interior da ilha devido às péssimas condições da rede viária e, não menos relevante, os entraves inerentes ao regime colonial expressos, entre outros aspectos, na restrição à liberdade de expressão e na proibi-ção de manifestações culturais de raiz africana.

Naturalmente se fosse hoje, ou 40 anos atrás, o trabalho seria diferente. Outro contexto, novas abordagens, consentâneas com a realidade da sociedade da época e com a minha forma de a compreender e de a interpretar. O mundo evolui e o homem não fica parado no tempo. Assim não me parece de grande relevância a hipótese de uma possível actualiza-ção. Seria outro trabalho, com características completamente diferentes. A tese reflecte o meu entendimento da essência do pensamento geográfico baseado na unidade do espaço territorial na diversidade das suas vertentes, visando a interpretação da relação Sociedade/Natureza. Decorridos cinquenta anos o mundo já é outro. E a Geografia acompanhou os avanços da ciência, das tecnologias, dos novos sistemas de informação e o processo de globalização incorporando novos elementos e conceitos nas abordagens sobre o espaço ge-ográfico. Apesar dos avanços registados nos últimos anos, a definição do conceito de espaço geográfico, objecto do estudo da Geografia, é ainda motivo de discordâncias teóricas.

Sem pretender entrar em especulações teóricas, considero que a abordagem do geó-grafo brasileiro Milton Santos, que propõe o conceito de “formação socio-espacial” para definir o objecto da “geografia nova”, o que, de certa forma, mais se aproxima das linhas de orientação que o desenvolvimento da minha tese deixa transparecer.

“Vivemos uma época de especialização do conhecimento, causado pelo pro-digioso desenvolvimento da ciência e da técnica, e da sua fragmentação em inumeráveis afluentes e compartimentos estanques. A especialização permite aprofundar a exploração e a experimentação, e é o motor do progresso; mas determina também, como consequência negativa, a eliminação daqueles de-nominadores comuns da cultura graças aos quais os homens e as mulheres podem coexistir, comunicar-se e se sentir de algum modo solidários”(...) Mario Vargas Llosa

A Geografia não poderia deixar de acompanhar este movimento de especialização da ci-ência. Tal como em outras áreas, a excessiva especialização poderá conduzir à fragmentação do saber, à quebra da unidade do espaço geográfico, objecto de estudo desta disciplina.

Perante estas considerações, é evidente, que o tema que inspirou a minha tese poderá ser abordado numa óptica diferente, com a possibilidade de serem utilizados conhecimen-tos e instrumentos de análise susceptíveis de favorecer um conhecimento mais próximo da realidade. A realidade sociopolítica mudou substancialmente nestes quarenta anos de Independência Nacional. Cabo Verde dispõe hoje de uma universidade pública e de várias universidades privadas, de um número significativo de geógrafos, de especialistas de diversas áreas, de um conjunto de trabalhos versando temas sobre a realidade caboverdiana sobre os mais diferentes aspectos.

“A cada época, novos objetos e novas ações vêm juntar-se às outras, modifi-cando o todo, tanto formal quanto substancialmente” (Milton Santos)

Regresso ao tema do seminário. E o meu reencontro com Cabo Verde concluída a formação como professora do ensino

secundário! sete anos depois do início dos meus estudos em Portugal - licenciatura, ciências pedagógicas, estágio pedagógico, exame de estado.

Anos sessenta. Implementam-se medidas para a mitigação da fome pelas autoridades coloniais, encorajam-se os caboverdianos à emigração para responder às necessidades de mão de obra na metrópole. Lisboa começa a ser um importante centro de irradiação de imigrantes para o resto da Europa. E eu, de regresso á minha terra. Reencontro com Cabo Verde, novo encontro para mim. O novo estava em mim. Firme o chão que piso na hora da

220Nós Terra, Nós Geografia

chegada, com a convicção, que fui construindo, que munida de conhecimentos, de expe-riências, de práticas poderia contribuir para mudar a realidade que me atormentava. Tinha encontrado, em parte, respostas ás minhas inquietações que me levaram a seguir o curso de Ciências Geográficas.

Outras inquietações surgiram.Fecho os olhos e revejo como num filme imagens desse tempo outro, da terra que me

viu nascer e que agora me recebia. A mesma miséria estampada nos rostos das gentes da minha terra. Um reencontro com o que deixara e que fora, nessa altura, a razão da minha escolha: sair, preparar e regressar, na esperança de poder, de alguma forma, contribuir para reverter a situação.

Como passar do plano das convicções, das palavras ao acto de agir? A realidade era bem mais dura do que aquilo que, nós os estudantes sonhávamos.Olho ao redor, meço a dimensão do problema. Basta um olhar para compreender que

para mudar é preciso conhecer, saber com que contar. Não foi difícil concluir perante a exi-guidade de recursos, que um era certo: o homem. O caboverdiano dentro e fora. Eu já estava dentro. Meti mãos à obra convicta de que apostar nas pessoas, investir nelas, pela educação, formação, capacitação estaria a investir no futuro.

O ensino, a educação foi o palco dos acontecimentos futuros. Encontros, desencontros, reencontros.

Foi um tempo gratificante aquele em que leccionei a disciplina de Geografia no Liceu Adriano Moreira na cidade da Praia, hoje Liceu Domingos Ramos. Alunos que me ensina-ram a ensinar melhor, a entender também o sacrifício de muitas famílias para que os filhos pudessem estudar. Lição de vida. A determinação de muitos que não obstante dificuldades inúmeras não pouparam esforços para seguir os seus sonhos.

E recordo.Desculpem, estou sempre a ir ao passado.Sou antiga, compreendam.

Recordo uma minha aluna, muito boa aluna, que um dia me procurou informando-me que iria sair do liceu porque não era possível estudar com fome. Fiquei sem palavras. Afinal estava longe de conhecer a situação real da minha terra, a vida dos alunos a quem tinha a responsabilidade de ensinar. A situação da aluna foi resolvida. Era apenas uma dos muitos alunos que estariam em igual situação como rapidamente me apercebi.

Desencontro com Cabo Verde, por vicissitudes da vida, já que esta é por essência uma sucessão de encontros e desencontros. Fui leccionar para Angola e, mais tarde, para Portu-gal.

E mais um desencontro. Desta vez com a Geografia. E um novo encontro com Cabo Ver-de. Novo pela realidade de um país independente, novo para mim, imbuida do mesmo espi-rito que animava os caboverdianos e que o poeta Corsino Fortes retrata magistralmente:

Ontem fui lenha e lastro para navio Hoje sol semente para sementeira

Desencontro com a Geografia porque deixei de ser professora para participar na cons-trução de um novo sistema educativo consentâneo com a nova realidade de um pais inde-pendente.

Terá sido um desencontro com a geografia na realidade?Talvez não, directamente. Apenas uma intervenção mais abrangente, na qual estiveram

sempre presentes as convicções que fazem parte da minha forma de existir.E no processo de edificação de um novo sistema de ensino no Cabo Verde Independente,

houve um momento em que foi necessário intervir no topo da pirâmide educativa, que no caso de Cabo Verde era o ensino secundário, ponto frágil do sistema. Neste quadro insere-se a criação, quatro anos depois da Independência, de uma instituição vocacionada para a formação de professores do ensino secundário, o Curso de Formação de Professores do Ensino Secundário, actualmente Instituto Superior de Educação, integrado na Universidade

221Maria Luísa Ferro Ribeiro

de Cabo Verde. Nenhum país pode avançar se não tiver a capacidade de formar os seus agentes forma-

dores era a convicção de todos que apostavam na valorização dos recursos humanos, o bem mais precioso de Cabo Verde..

Só foi possível concretizar um projecto tão ambicioso, pela aceitação que teve da parte da Universidade de Coimbra, que pôs o seu prestígio e o saber dos seus professores a favor de um pequeno país recém independente que buscava, não obstante as limitações em recur-sos, diminuir progressivamente a dependência do exterior no domínio da formação dos seus quadros, numa primeira fase dos seus docentes.

Como escreveu Ondina Ferreira, professora e escritora caboverdiana por ocasião dos 25 anos do Instituto superior de Educação, (...) “com o seu ilustre escol de professores, a Univer-sidade de Coimbra foi pioneiro, co-fundador da Escola de Formação de Professores do Ensino Secundário “(...) embrião da Universidade de Cabo Verde”. (...)

Neste acto para mim marcante, gostaria de prestar o meu reconhecimento à Universi-dade de Coimbra e aos seus ilustres professores que estiveram desde o início envolvidos no projecto:

Professor Doutor Rui Alarcão, que abriu as portas para que os graus académicos obtidos em Cabo Verde fossem reconhecidos pela Universidade de Coimbra e, mais tarde, por todas as universidades portuguesas.

É neste quadro que se inscreve um facto que nos encheu de orgulho - a realização na cidade da Praia, no dia 26 de Novembro de 1986, da “Reunião Internacional Constitutiva da Associação das Universidades de Língua Portuguesa” (AULP). O Curso de Professores do Ensino Secundário é membro fundador da AULP, a par de prestigiadas universidades do espaço lusófono.

Saudoso Professor Doutor Luís Albuquerque, que já não está entre nós, que dirigiu a primeira equipa que se deslocou a Cabo Verde

A este propósito cito um extracto do trabalho elaborado pelos Professores Doutores Luísa Veiga e Jorge Veiga por ocasião da comemoração dos 25 anos do Instituto Superior de Educação:

(...) “ O já falecido Doutor Luís Albuquerque, ilustre Professor Catedrático da Univer-sidade de Coimbra e Homem de elevada cultura e saber, regressava de uma visita a sua filha, arquitecta e então residente na Praia. Com o entusiasmo e vivacidade que sempre lhe conhecemos, relatou-nos a incumbência de que vinha investido - encontrar uma equipa que colaborasse num dos muitos desafios que Cabo Verde enfrentava no período imediato à sua independência (...) a formação de quadros e num primeiro momento a formação de profes-sores do ensino secundário”(...)

Agradeço a presença da filha arquitecta Helena Albuquerque, minha amiga, que teve a gentileza de compartilhar este momento comigo. Helena Albuquerque, como o pai, partici-pou desde os primeiros anos pós-independência na caminhada rumo ao desenvolvimento.

Os Professores Luísa Veiga e Jorge Veiga que deram um valioso contributo não apenas no então Curso de Formação de Professores do Ensino Secundário, mas em particular, na Reforma do Sistema Educativo de Cabo Verde. Lamento profundamente que problemas de saúde não tenham permitido a sua participação neste acto.

Não resisto a citar mais um extracto do trabalho já referido da autoria desses Professores:“(...) Estava gerado o embrião do ensino superior em Cabo Verde (...) a criação do Curso

de Formação de Professores do Ensino Secundário, (...) o segredo residiu na abertura, con-fiança, respeito e solidariedade com que vivemos juntos e de modo construtivo a concretiza-ção de um ideal “(..).

E o curso entrou em funcionamento com a colaboração de vários professores dos quais destaco a Doutora Arminda Pedrosa, a quem agradeço ter feito os possíveis e impossíveis para estar aqui connosco. O meu reconhecimento.

E deixo para o fim os meus conterrâneos Professor Doutor António St Aubyn e o Inves-tigador Humberto Pascoal. E para o fim, porquê? Porque como caboverdianos que são, estão sempre disponíveis para responder ao apelo da terra.

Um agradecimento especial ao meu amigo Wladimir Brito, Professor Catedrático de Di-reito da Universidade do Minho, que tem dado uma valiosa contribuição noutras áreas. É o Pai da Constituição Caboverdiana como costumo dizer.

222Nós Terra, Nós Geografia

Valeu a pena o projecto?Hoje a Universidade de Cabo Verde é uma realidade e muitos dos alunos do Curso de

Formação de Professores do Ensino Secundário, “cobaias” de um projecto no qual confia-ram, são seus professores.

Desculpem a minha incursão no passado.Sabem, como diria o meu conterrâneo, mudjer, nha ê antiga, prope. Termino, citando o poeta britânico Lord Byron “O melhor profeta do futuro é o passado”

Um muito obrigada por partilharem este momento comigo.

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João Gabriel SilvaProfessor DoutorReitor da Universidade de Coimbra

Apenas conheci há pouco a Prof. Maria Luísa Ferro Ribeiro, portanto não vou falar sobre ela porque sendo eu antigo, não sou tão antigo que tenha convivido com ela aqui na Uni-versidade. Mas é uma enorme satisfação estar aqui porque, representando eu a Universidade neste momento, não há melhor prova da relevância daquilo que a Universidade faz do que um percurso como o da Prof. Maria Luísa, que já aqui foi descrito com muito sentimento.

No fundo, nós, numa escola, e a universidade é uma escola, com as suas características próprias, o que tentamos é construir pessoas, é dar uma vida às pessoas. Seguramente que tentamos vencer a fome, atingir o desenvolvimento, mas sobretudo abrir horizontes, abrir possibilidades para cada um. Um percurso como o da Prof. Maria Luísa, com todas as dificul-dades que aqui foram mencionadas, e que todos, em maior ou menor grau, conhecem de Cabo Verde e de outros locais do mundo, é a prova viva de que vale a pena todo este traba-lho que temos. Permitam-me fazer aqui uma pequena referência ao facto de a Universidade de Coimbra ter 725 anos. É uma reflexão que eu faço muitas vezes com os meus colegas, com os estudantes, com outras pessoas, sobre o facto de as universidades, não estou a falar agora de Coimbra em particular, mas das universidades em geral, terem de ter alguma uti-lidade, porque de outra forma não duravam tanto tempo. De facto, essa utilidade consiste antes de mais neste desbravar de novos caminhos para cada um, em que a escola dá uma ajuda tão decisiva.

Infelizmente a área da Geografia de Coimbra, embora miraculosa, não conseguiu resol-ver o problema da chuva em Cabo Verde (ou da falta dela), mas foi capaz de mostrar que o desenvolvimento de qualquer país, de qualquer região, de qualquer comunidade, é o desen-volvimento das pessoas dessa região, desse país, dessa comunidade. Essa é, de facto a nossa missão e a nossa lição.

Quero referir que tenho uma profunda admiração por Cabo Verde. Nunca estive em Cabo Verde, mas vou resolver isso rapidamente, pois em julho deste ano, daqui a pouco tempo, estarei em Cabo Verde para uma reunião da Associação das Universidades de Língua Portuguesa, que aqui já foi várias vezes mencionada. Possivelmente até irei antes, porque a Universidade de Coimbra está envolvida nesta contínua missão de trabalhar em conjunto com os outros, estando numa fase já muito avançada na construção conjunta do Curso de Medicina da Universidade de Cabo Verde, que estará, todos esperamos, já a funcionar no início do próximo ano letivo. Penso que é um passo muito importante, vai ser uma parceria muito próxima entre a Universidade de Cabo Verde e a Universidade de Coimbra. Como a Senhora Embaixadora sabe, o processo já está bastante avançado.

Tenho, de facto, uma enorme admiração por Cabo Verde, e acho que deve ser um exem-plo para Portugal, nestes momentos de maior dificuldade. Felizmente, com raras exceções, não se está a morrer à fome em Portugal, mas comparado com outros tempos recentes, mais prósperos, estamos a passar por momentos de dificuldade. Cabo Verde deve ser um exemplo a ter em conta em Portugal porque Cabo Verde, como Portugal, não tem petróleo ou outros recursos minerais relevantes. A geografia diz-nos que as zonas vulcânicas não são boas para encontrar petróleo e, portanto, a esperança de encontrar lá petróleo é pequena, mas em Portugal, felizmente, também não temos petróleo. Digo felizmente porque se olhar-mos por exemplo para África, vemos países ricos em petróleo em que a vida nem por isso é

224Nós Terra, Nós Geografia

particularmente feliz. Para alguns, muito poucos, sim, mas para a grande maioria o petróleo é apenas fonte de guerra, desgraça, pobreza, morte e fome. Fome não pela falta de chuva, mas porque o petróleo gera outros apetites e outras dificuldades. Portugal, felizmente, não tem petróleo mas tem as suas pessoas. Cabo Verde é um exemplo perfeito de um país que, a partir de recursos naturais muito limitados, consegue construir uma sociedade que é, neste momento, um exemplo em África e fora de África, essencialmente graças ao nível educacio-nal elevado da sua população.

Quando nós tantas vezes, aqui em Portugal, ouvimos nos últimos tempos dizer que afinal a história do sistema de ensino ser um fator de desenvolvimento não é bem verdadeira, por-que há tanto licenciado desempregado, temos de olhar para um país como Cabo Verde. Se os Cabo-verdianos aqui presentes discordarem peço-vos desculpa, mas é a minha visão um pouco afastada de quem nunca lá foi, mas em breve irá. Eu acho que a boa situação de Cabo Verde é uma demonstração plena de como aquilo a que a Prof. Maria Luísa Ferro Ribeiro dedicou a vida, o desenvolvimento das pessoas, é de facto aquilo que permite melhorar um país. Se Portugal fosse um país de analfabetos, as nossas dificuldades seriam muito piores do que as que temos. Basta um pequenino exercício de imaginação para o percebermos.

É claro que a educação não resolve tudo, mas também quem é que está à espera que exista uma varinha mágica?! Nunca há uma varinha mágica que substitua o nosso esforço, que substitua o nosso empenho, que substitua a nossa vontade, a nossa determinação mes-mo quando as circunstâncias são particularmente adversas. Não se esteja à espera de uma varinha mágica por parte do sistema de ensino ou de outro sistema qualquer que permita, permita o quê? Viver de papo para o ar sem fazer nada? Alguém está à espera que sem trabalho se chegue a algum lado? Isso é uma ilusão absoluta, que a vida da Prof. Maria Luísa Ferro Ribeiro mostra que é de facto uma ilusão.

Uma mulher imparável, ouvi aqui dizer várias vezes. De facto nós temos de estar sempre à procura das oportunidades, aproveitar os recursos que temos, encontrar formas de entusias-mar todos e com isso chegar a algum lado e, por isso, não conhecendo eu, até há bocadinho quando entrei nesta sala, a Prof. Maria Luísa Ferro Ribeiro, quero, em nome da Universidade de Coimbra, agradecer-lhe profundamente, porque que ela é uma personificação plena da razão de ser de uma universidade. Um percurso como o dela é o melhor agradecimento, o melhor retorno, que a Universidade pode ter de alguém que por cá passou.

Muitíssimo obrigado.

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António Gama: viagem mapas, memória

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António Gama y el viage:un geógrafo con una mirada abierta,sin fronteras

Valentín Cabero DiéguezUniversidad de Salamanca

Antonio Gama y el viaje: un geógrafo con una mirada abierta, sin fronteras.

Guardo un recuerdo entrañable y vivo de Antonio Gama. Compartimos algunos viajes lejanos, al trópico atlántico y al archipiélago de Cabo Verde, o al otro lado del mar y de los meridianos históricos, al gran Brasil, comparando así escalas y modos de vida insular con la inmensidad de los espacios del interior brasileño. Y en muchas ocasiones redescubrimos juntos la historia y los paisajes rayanos en nuestras rutas ibéricas. El viaje, las distintas modalidades de viajar y de mirar le apasionaban, aunque la preparación previa le resultaba un tanto incómoda.

Hasta el último momento, cuando ya las fuerzas le flaqueaban, participó con entusiasmo en los viajes de trabajo que desde el Centro de Estudios Ibéricos estaban programados en los curso de verano o en los seminarios intermedios de investigación. Siempre con su amabilidad y su sonrisa , que daban una expresión bondadosa e ingenua a su rostro, enmarcado a su vez por una densa barba y una cabellera bien prieta, que el tiempo tornarían en tonos grises y canosos. Y cómo no recordar la mirada de curiosidad y de asombro inocente ante cualquier descubrimiento o hecho desconocido y sorprendente que intentaba retener en su memoria o en su cámara fotográfica.

Las enseñanzas geográficas, la formación cívica y el viaje

Lo recuerdo vivamente enseñando a descubrir a los alumnos los paisajes rurales y las formas de ocupación de la Beira Interior desde la remota antigüedad hasta los tiempos actuales de “modernización”, de emigración y mudanza, manejando con gran conocimiento diacrónico la explicación de los procesos y señalando con detalle los hitos cronológicos más precisos. Su capacidad narrativa y oral aproximaba los hechos con gran naturalidad y sencillez a los alumnos, aunque le gustaba incorporar conceptos complejos o acontecimientos que requerían mayor profundidad, erudición y tiempo. Las explicaciones continuaban entonces en la próxima parada, en el almuerzo o en la cena. Después, Antonio Gama entraba en una fase de calma, y unas hermosas flores de miga de pan, hábilmente moldeadas con sus manos, completarían como regalo el final de la conversación o de la alegre convivencia gastronómica.

Desde los primeros años como profesor en la Universidad de Coimbra mantuvo una estrecha relación con los colegas españoles, particularmente con los compañeros y amigos de la Universidad de Salamanca y de León. Aquí llegaba con los alumnos portugueses de Geografía a enseñarles y descubrirles la ciudad de Salamanca y la rehabilitación de su centro histórico o las villas del interior fronterizo, a perderse con nosotros por los Arribes del Duero y la Sierra de la Culebra, a conocer la vida olvidada en las aldeas de Tras-os-Montes y en el entorno del Lago de Sanabria, o penetrar en la hondura cultural del Camino de Santiago y del Bierzo. Siempre viajaba acompañado de buenos mapas y de libros raros que completaban su saber y su mirada, y que prestaba generosamente a los alumnos. Su máquina fotográfica era una compañera inseparable, y pienso ahora que su archivo fotográfico – intentaba ordenarlo

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una y otra vez- guarda sin duda hermosos tesoros, igual que su biblioteca.En estos viajes nos traía las novedades bibliográficas y los últimos artículos acerca del

pensamiento geográfico. Le preocupaban las relaciones del poder con el territorio, las estrategias económicas de dominación, los conflictos sociales y geopolíticos, sin perder en ningún momento el relato que le habían enseñado los maestros de la geografía portuguesa. Respetaba esta herencia de clara influencia francesa, pero sentía la curiosidad intelectual de contrastar su percepción con las interpretaciones de los colegas lejanos o próximos, iniciando a partir de las aportaciones bibliográficas más recientes un intercambio y debate que podría prolongarse hasta altas horas de la madrugada. Y en nuestro entorno no faltaban los intercambios de pareceres y de estudio sobre la ciudad y las dinámicas urbanas con el profesor Julio Villar Castro, también acompañadas de los correspondientes viajes o trabajos de campo a las periferias suburbanas; con el profesor J.L. Alonso Santos descendía al análisis y discusión de los procesos económicos tanto desde una perspectiva teórica como empírica, comparando lo que estaba ocurriendo en Europa, en España y en Portugal.; con la profesora Mª Teresa Vicente Mosquete abordaba los temas más estrechamente relacionados con el pensamiento geográfico, desde los clásicos hasta las tendencias más criticas, que de alguna manera guardaban relación con su formación y licenciatura, entre 1968 y 1974, fecha de la “Revolución de los claveles” en Portugal; con el profesor Lorenzo López Trigal, los temas de debate eran sobre todo geopolíticos y más sociológicos, en unos momentos en que los movimientos sociales tuvieron una gran presencia urbana. Naturalmente que Antonio Gama era un gran conversador. Y le gustaba seguir la convivencia en la noche salmantina, enseñándoles a los alumnos los rincones más festivos de la ciudad. Entonces, en aquellos itinerarios nocturnos, se alargaban las conversaciones, deteniéndonos aquí y allá, en Plaza Mayor, en las Úrsulas, en la Calle Compañía, o más lejos, en el Puente romano, para reafirmar tal o cual argumento o para divagar sobre temas y problemas sobrevenidos al hilo del propio paseo y de la charla entre amigos. Tenía una ventaja sobre todos nosotros, que conocía muy bien la otra cara de Portugal, los países y tierras de habla portuguesa, de donde extraía ejemplos exóticos y elocuentes que nos descubrían otros mundos y otros viajes. Aprendíamos a ver con curiosidad el rico y complejo mundo lusófono, tan olvidado e ignorado por la universidad y la enseñanza española.

Entre nosotros, los geógrafos, hay ciertamente una tradición viajera que nos lleva a las propias raíces del saber geográfico en dos de sus iconos contemporáneos: Alejandro von Humboldt y Eliseo Reclus, que nos dejaron textos llenos de descubrimientos y de sentimientos de respeto a la naturaleza y al quehacer de los hombres, a la vez que desde un empirismo muy directo nos enseñaron un conocimiento riguroso de los territorios recorridos. Una reflexión que ponía el énfasis en la trascendencia del conocimiento y de la educación como un valor público que nos permite salir de la ignorancia. En esa estela de pensamiento se situaba Antonio Gama. Y con su erudición nos rememoraba a otros viajeros ilustrados que a partir de expediciones científicas ayudaron a conocer la naturaleza, los paisajes o las condiciones de vida política y económica de nuestra América Andina y del Pacífico. Entre los más señeros cabe recordar a Jorge Juan (1713-1773), Juan Celestino Mutis (1732-1808) o Alejandro Malaspina (1754-1810)1. Por ellos sentía una gran curiosidad Antonio Gama y por su repercusión en el conocimiento del mundo de aquellos viajes2.

Más allá de lo disciplinar: el pensamiento crítico e integrador

De la vida académica de Antonio Gama nos queda el testimonio de un viaje intelectual muy personal, que rompe con las fronteras de la especialización. La doble vinculación docente e investigadora al Instituto de Estudios Geográficos y al Centro de Estudios

1 - Ver al respecto el trabajo de Juan Pimentel: Jorge Juan, Mutis y Malaspina, viajeros científicos. Prólogo de Luis Carandell, Nivola, 2 - La tesis doctoral de Teodoro Bustamante Ponce: Una interpretación de la Naturaleza y el Espacio en Ecuador. Las áreas protegidas como discurso actual de conservación, Universidad de Salamanca, 2013(Inédita), realizada bajo mi dirección en el marco del Programa de Doctorado “El Medio Natural y Humano en las Ciencias Sociales, recoge un amplio capítulo sobre la incidencia de tales expediciones en el conocimiento de América del Sur y en el manejo de los recursos naturales, pp. 117-189.

António Gama: viagem, mapas, memória

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Sociales de la Universidad de Coimbra le convirtió en un profesor sin fronteras disciplinares y en una persona sin ataduras dogmáticas, viendo como los temas y problemas aparecen “cada vez más imbricados e interdependientes bajo el signo de la interdisplinariedad y de la complejidad”. De ahí que sus enseñanzas y trabajos abordasen temas y problemas tan sugerentes y fundamentales como los vinculados a los siguientes campos docentes, siempre con una honda reflexión conceptual:

Teoría y metodología- Espacios y sociedades- Geografía Política- Geografía Económica- Sociología y Antropología - Urbanismo y poder- Cambios territoriales- Relaciones de la Geografía y las ciencias Sociales-

Tales inquietudes fueron creando, a partir de de sus contactos personales y académicos, una amplia red de amistades y de complicidades intelectuales entre las que cabían todas las miradas que tuviesen una cierta dosis crítica y una sensibilidad discursiva e integradora. Entre ellos no puedo olvidar a los colegas más próximos, Rui Jacinto, Fernanda Gravidâo, Lucio Cuhna, Campar de Almeida , José Reis, Pedro Pita, Pedro Hespanha…, o los que estaba en Lisboa como Jorge Gaspar o Joao Ferrâo, todos ellos preocupados por el discurrir de Portugal y la formación republicana de la ciudadanía.

Hace algo más de diez años se presentó en Coimbra la exposición y el catálogo Fragmentos de un retrato inacabado. A geografía de Coimbra e as metamorfosis de un país, coordinado por Antonio Campar de Almeida, Antonio Gama, Fernanda Delgado Gravidâo, Lucio Cunha y Rui Jacinto3. Se inscribía en el Programa de Coimbra – Capital Nacional da Cultura 2003, y nos resumía de manera bien elocuente el quehacer de la Geografía portuguesa en el marco académico de la Facultad de Letras desde el principios del siglo XX y la proclamación de la República (1910). Recuerdo que Antonio Gama disfrutó con aquel trabajo colectivo, donde se recuperaban figuras históricas de la universidad de Coimbra y geógrafos ya ausentes como Alfredo Fernandes Martins, gran docente y comunicador. De alguna manera aquella tarea le descargaba y le liberaba de aquel compromiso administrativo que era presentar y defender su libro y disertación de doctorado.

Precisamente en estos Fragmentos nos dejó algunas de sus reflexiones acerca de la geografía y la ciudadanía,4 en unos momentos tan llenos de incertidumbre como de ilusiones rotas ante los procesos insensibles y crueles de la globalización. Tras un sugerente análisis de las ideas que ha modelado el pensamiento geográfico en los últimos tiempos desemboca con mayor detenimiento en la valoración de la geografía crítica para decirnos “A geografía debe ser entendida como un saber pensar el espaço, un saber que promova a consciencia do espaço para nele sabermos orgazar-nos e para nele sabermos viver e lutar por uma vida melhor, em que se posma consumar os sonhos de liberdade nas asas do desejo”

La compleja mirada histórica y literaria del viaje y del viajero

Desde una consideración más abierta e histórica, el viaje y los viajes tienen para nosotros varias lecturas y, por las conversaciones que tantas veces mantuvimos, creo que para Antonio Gama también: el viaje como descubrimiento, el viaje como conocimiento, el viaje como diálogo, y el viaje como convivencia. En relación al viaje como descubrimiento bien sabemos que es una constante histórica que lleva consigo generalmente tres hechos complementarios

3 - Fragmentos de un retrato inacabado. A Geografía de Coimbra e as metamofoses de um país, Instituto de Estudos Geográficos / Centro de Estudos Geográficos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra 20034 - Ver la colaboración “Geografía, conhecimento do espaço e cidadania”, escrito en colaboración con Antonio Campar de Almeida, en Fragmentos de un retrato inacabado., ob. cit. pp. 85-90

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de gran significado territorial y humano: la exploración, la conquista y la colonización. No descenderemos al análisis pormenorizado y detallado de tales hechos, aunque la idea nos subyugue. Las “descubertas” históricas y portuguesas apasionaban a Antonio Gama. Para nosotros existen tres referencias e hitos que hemos conmemorado una y otra vez5 y que configuran el imaginario colectivo de españoles y portugueses; me refiero al descubrimiento de América en 1492 por Cristóbal Colón, al Viaje de Vasco de Gama a la India en 1498 y a la circunnavegación del Mundo por Fernando de Magallanes y Sebastián Elcano en la expedición de 1519-15226. Unos viajes llenos de épica, de enfermedades y muertes como la del propio Adelantado F. Magallanes, que nos venían a enseñar tierras e islas desconocidas y a demostrar la redondez de la Tierra. Recuerdo aquí las palabras de Elcano:

“Y más sabrá Vuestra Majestad que aquello que más debemos estimar y tener es que hemos descubierto y dado la vuelta a toda la redondez del mundo, que yendo para el occidente hayamos regresado por el oriente.”

El conocimiento de mundos próximos o lejanos, tanto desde los hechos más físicos como más humanos, es la consecuencia más evidente del viaje. Lo acabamos de leer y los hemos señalado en relación a las aportaciones científicas de Humboldt o medioambientales de Reclus. Nunca, sin embargo, conoceremos del todo lo que nos rodea. En la actualidad tenemos el testimonio de una obra mayor y me atrevería a decir que única sobre esta dimensión; me refiero al gran texto del largo viaje del Danubio de Claudio Magris7. El propio autor nos lo dice de manera muy personal, profunda y a la vez sencilla: “El viaje danubiano es también un viaje del conocimiento, en el que el pobre viajero, mientras avanza por el territorio danubiano, se ilusiona con poder conocer, interpretar, controlar la vida que está alrededor de él con los instrumentos de su propia cultura. Pero, conforme va hacia delante, poco a poco, ese mundo, cada vez más, se le aparece como algo enigmático, tanto en la historia como en la vida. Le da casi la impresión de comprender cada vez menos, dándose cuenta de qué poco se entiende la vida con la cultura”.8

Al lado de las preguntas que nos llevan al conocimiento y a la superación relativa de la ignorancia, suele aparecer el diálogo bajo el signo de los porqués que interrogan al territorio, al paisaje, al otro, o que se miran a sí mismo. Se establece de este modo un diálogo enriquecedor con otros lugares, con otras gentes, con otras culturas, casi siempre presidido por la observación y la curiosidad. En la literatura española, algunos autores bien reconocidos como Camilo José Cela, José Luis Sampedro, Juan Goytisolo, Ramón Carnicer o Julio Llamazares, entre otros, recurren en sus narraciones viajeras a los diálogos como forma de explicar la realidad y de entender la vida de los protagonistas. Al respecto de El río que nos lleva se nos dice que “la solvencia con que Sampedro afronta el viaje, amén de las características paisajísticas, permite observar la situación del país y dar a conocer otra España interior que existe aún en el olvido del resto” “Estamos ante una obra de lirismo salvaje. Donde los héroes vivirán la amargura de la realidad desclasada de unos seres al margen de

5 - A finales del siglo XX, La Exposición Universal de Sevilla (1992), conmemorando el V Centenario del descubrim-iento de América y el viaje de Colón, y la Exposición Universal de Lisboa (1998), celebrando el viaje de Vasco de Gama a la India, con todo lo que supuso de movilización de recursos culturales y de equipamientos, renovaron con cierto optimismo los proyectos de países europeos a la vez que recordaban sus viajes épicos y “descubertas”. Para el bibliófilo amante de los viajes marítimos y de la ocupación de los nuevos territorios recuerdo los textos y las bellas imágenes que figuran en aquella colección publicada en Lisboa: “Oceános”…6 - Existe una amplia bibliografía al respecto de la que mencionamos tan solo la más reciente y transversal.SÁNCHEZ SORONDO, G., “Magallanes y Elcano, la travesía al fin del mundo”, Madrid: Nowtilus S.L. 2010. GONZA-LEZ OCHOA, J., “Breve historia de los Conquistadores”, Madrid: Nowtilus S.L. 2014.BENITES, M., “La mucha destemplanza de la tierra: una aproximación al relato de Maximiliano de Transilvano sobre el descubrimiento del Estrecho de Magallanes”, Tucumán Orbis Tertius: Universidad Nacional de Tucumán. 2013. LERNKERSDORF, G., “La carrera por las especias”. México. Estudios de Historia Novohispana, Vol 17, Número 17. 1997.7 - Puede seguirse la primera edición de Anagrama, Compactos, Barcelona, 1997; “El Danubio ha sido calificado como “un maravilloso viaje en el tiempo y en el espacio”, enlaza con el “tourisme éclairé” de un Stendhal o un Chateaubriand, e inaugura un nuevo género, a caballo entre la novela y el ensayo, el diario y la autobiografía, la historia cultural y el libro de viajes”.8 - Entrevista de Mercedes Monmany a Claudio Magris; “la experiencia de la frontera fue el primero y lejano origen de mis viajes”, Mercurio, nº 109, 2009, pp. 8-11

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la vida, como los parajes que recorren. Estos seres anónimos sirven para enhebrar un diálogo donde el paisaje y la geografía se trenzan en las palabras de los gancheros, para realizar este viaje hacia uno mismo. El viaje es, sin lugar a dudas, un acercamiento al conocimiento de uno mismo”.9

Posiblemente sea el espíritu de convivencia con el otro y con las culturas desconocidas la consecuencia más vital y humana del viaje, sin entrar en los pormenores antropológicos que supone el contacto entre los propios viajeros, o el contacto con la naturaleza y con nuevas formas de vida. Desde esta perspectiva el viaje conlleva la adaptación a nuevas circunstancias, el esfuerzo personal y colectivo ante las dificultades, y la comprensión y tolerancia que acompañan a la convivencia. Quizás sea el Camino de Santiago el mejor ejemplo a escala europea en el que concurren todas estas potencialidades y virtudes. En las raíces de los caminos que nos llevan a Santiago de Compostela se encuentra el viaje a los confines de la Tierra, a los “finisterres” del mundo conocido, uniendo el cielo y la tierra a través de la Vía Láctea y el campo de las estrellas dónde se cree que apareció la tumba del apóstol Santiago. Desde la primera guía del viajero, el Codex Calixtinus10, escrita por el fraile francés Aymerich Picaud, allá por el siglo XII, hasta la presentación y recomendación desenfadada de la ruta jacobea como viaje cultural europeo por el alemán Hape Kerkerling (Bueno, me largo, 2009)11, las bondades del camino para el encuentro, la convivencia y la amistad se han resaltado junto a las dificultades que han de superar los peregrinos en el transcurso del viaje. Se subraya asimismo que “Santiago es un lugar casi mágico y capaz de unir toda la cultura europea en una sola ciudad”(Hape Kerkeling).

Nos faltaría, pues, a mí entender, una quinta perspectiva que en mayor o menor medida entrelaza de manera misteriosa los tiempos más remotos con los actuales: el viaje como mito o el viaje y los mitos. Tenemos hermosos ejemplos en nuestro entorno peninsular como en aquel jardín de las Hespérides, donde el viajero de la antigüedad que atravesaba el Mediterráneo se iba a encontrar con árboles frutales de manzanas de oro cuidados por hermosas ninfas (hespérides) y un dragón de cien cabezas, o la leyenda de la Atlántida que ha traspasado los tiempos para quedarse entre nosotros en forma de música y de arte, o de la isla errante y fantasmal de San Borondón y de la ballena Jasconius, que tantos viajeros han pretendido descubrir y situar desde tiempos medievales muy cerca de las Islas Canarias, en las Islas Afortunadas. Siempre nos quedarán los enigmas y nuevas aventuras de descubrimiento.

Y ahí están la literatura y los escritores para acercarnos a través de viajes imaginarios o reales a lo desconocido, a los misterios y leyendas, o a lugares lejanos, exóticos e invisibles12. Ya hemos dicho algo al respecto, pero en la raíz de toda creación literaria topamos con “el más grande libro jamás escrito, La Odisea, el relato del viaje a través de la vida, es impensable sin el mar, pero también el mar es hoy impensable sin La Odisea. El mar, por tanto, tiene un doble valor simbólico. Ante todo representa la lucha, el desafío, la prueba, el enfrentarse con la vida, tal y como se aprecia por ejemplo en muchos de los grandes relatos y novelas de Conrad”, son palabras del propio Magris a partir de su mirada e identidad con el mar de su vida, el Adriático frente a la bahía de Trieste o bañando la península de Istria13. En el fabuloso viaje homérico de Ulises se encuentran todas las historias posteriores de los viajeros y del sentir del ser humano. Y vendrá La Eneida de Virgilio y las aventuras que figuran en los textos clásicos: Mio Cid, Simbad el Marino, Marco Polo, El Quijote, o las historias Swift, los viajes de Julio Verne, de Emilio Salgari, y de tantos autores que nos acercado a mundos lejanos y soñados.

Y no me resisto a incluir uno de los sonetos más hermosos de la literatura francesa, en el que se nos presenta a un Ulises que felizmente terminaría sus días en la paz sencilla del hogar,

9 - Ver Palabras y memorias de un escritor. José Luis Sampedro, de Francisco Martín Martín, Ed. Netbiblo, La Coruña 2007, pp. 149 y 15010 - El Codex Calixtinus o Liber Sancti Jacobi11 - Hape Kerkeling: Bueno, me largo. El Camino de Santiago, el camino más importante de mi vida, Suma de Letras, Madrid, 200912 - Cómo no recordar la obra tan bella y poliédrica de Italo Calvino, Las ciudades invisibles, esas ciudades imagi-narias e inventadas – atemporales, utópicas o infernales- que nos llevan desde el presente al siglo XIII y al viaje de Marco Polo. Se publicó por primera vez (Le cittá invisibili) en 1972 por la editorial Einaudi. 13 - ibidem

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frente al viajero roto, perdido y olvidado.Feliz quien como Ulises viaja con buena suerte o conquista los áureos vellones de Jasón y después, a la vuelta, con madura razón, dichoso en casa espera que le llegue la muerte. Aldea de mis padres: ¿cuándo volveré a verte, con tus humos azules? ¿en qué clara estación volveré a ver el huerto de mi pobre mansión que vale para mí como el reino más fuerte?

Más me placen los muros alzados por los míos que los templos de Roma soberanos y fríos; más que mármoles duros quiero pizarra fina.

Más mi Loira francés que el gran Tíber latino, más mi monte Lyré que el monte palatino y más que olas del mar mi canción angevina.

Joachim du Bellay (1522-1560)14

Detrás de las miradas viajeras de Antonio Gama había otras preocupaciones más dolorosas o lacerantes y que violentamente sacuden el transcurso de la historia. Las de los éxodos, los exilios, los destierros, las diásporas, las migraciones, las rutas de los esclavos, los caminos de los refugiados, los itinerarios y sendas de los desplazados, que han dejado sus rastros en la historia y en los mapas de manera casi siempre desgarradora y mutiladora. En las islas de Cabo Verde pudimos ver en silencio las huellas dejadas por aquellas rutas marítimas de la esclavitud. La literatura ha narrado con una honda sensibilidad estos hechos y también la fotografía ha recogido y dejado en sus imágenes el testimonio y dureza de sus locuras (Éxodos de Sebastián Salgado, por ejemplo), unas veces desde la escala de los acontecimientos y rupturas más próximas y familiares, y otras, las más desoladoras, desde la lectura de una escala superior, la de la humanidad más anónima que se desangra por los caminos de la migración. Estos días del verano y otoño del año 2015 vivimos el éxodo imparable de los refugiados que parten del próximo Oriente y huyen de la guerra, principalmente de Siria, y se dirigen hacia Occidente y al corazón de Europa, y continúan las huidas y salidas desde las costas africanas que cruzan precariamente el Mediterráneo y el Estrecho de Gibraltar en busca del refugio y amparo europeo. El drama puede leerse en los ojos asustados de los niños y en las lágrimas de los adultos, y la tragedia de la muerte ha quedado tristemente grabada una y otra vez en las aguas y playas del Mediterráneo.

14 - La versión en español es del escritor Rafael Sánchez Mazas. He aquí los versos originales:

Heureux qui, comme Ulysse, a fait un beau voyage,Ou comme cestuy-là qui conquit la toison, Et puis est retourné, plein d’usage et raison, Vivre entre ses parents le reste de son âge !

Quand reverrai-je, hélas, de mon petit village Fumer la cheminée, et en quelle saison Reverrai-je le clos de ma pauvre maison, Qui m’est une province, et beaucoup davantage ? Plus me plaît le séjour qu’ont bâti mes aïeux, Que des palais Romains le front audacieux, Plus que le marbre dur me plaît l’ardoise fine :

Plus mon Loir gaulois, que le Tibre latin, Plus mon petit Liré, que le mont Palatin, Et plus que l’air marin la doulceur angevine.

António Gama: viagem, mapas, memória

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El catálogo arriba indicado abre sus páginas con una cita del conocido Viagem a Portugal de José Saramago, que tomo prestada para cerrar con un sentido profundamente afectivo la semblanza y memoria de nuestro amigo Antonio Gama Mendes: “Nâo è verdade. A viagem nâo acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrannça, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia disse: “não há mais que ver”, sabia que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira em Verão, ver de dia o que se viu de noite, com Sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já”. Y volvemos, finalmente, a las palabras de Claudio Magris: “Viajar es antes que nada viajar en el tiempo; en el pequeño tiempo de nuestra vida individual, que se consuma mientras viajamos, pero también en ese tiempo más grande de la Historia que nos integra a todos a la manera de un gran río”15. El viaje no se acaba nunca, pero el viajero si. Estoy seguro que Antonio Gama viajó desde los sueños de su infancia a su aldea de Olheiros, a finales del año 2014, cuando su vida se apagaba y se integraba en ese gran río del tiempo. Espero y deseo que la tierra le sea leve.

15 - ibidem

Valentín Cabero Diéguez

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Viagem nunca feita:desenhar o mapa do mundo desconhecido 1

Rui JacintoCEGOT – Universidade de Coimbra

. Meu tempo é quando: António Gama, a viagem e o mapa do mundo desconhecido. O geógrafo é “um cientista que sabe onde ficam os mares, os rios, as cidades. As montanhas, os desertos”. O Principezinho, ao ouvir tal definição, depois de reconhecer que “É bem bonito, o seu planeta”, formulou com naturalidade a seguinte pergunta: “Há cá mares?”. Semelhante questão só poderia obter uma resposta igualmente singela: “- Não faço ideia – respondeu o geógrafo. / - Mas o senhor é geógrafo! / - Pois sou – disse o geógrafo – mas não sou explorador. Tenho uma falta absoluta de exploradores.”

Esta persistente falta de exploradores, a fazer fé no que nos conta Jon Fazman, em A biblioteca do geógrafo (2005; Gótica, Lisboa: 26), já terá levado o rei da Sicília a convocar o seu geógrafo (al-Idrisi) para o autorizar a embarcar na maior incumbência cartográfica da sua vida: desenhar o mapa do mundo desconhecido. A partida de António Gama, para uma missão porventura semelhante, deixou uma pesada ausência entre os que se habituaram a ouvi-lo descrever as cartografias físicas e humanas da Raia Ibérica Central. Foi Antoine de Saint-Exupéry, a que novamente recorremos, quem melhor expressou este sentimento quando, escreveu algures que “aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”

António Gama marcou presença em todos os Cursos de Verão, foi grande animador destas iniciativas e referência incontornável das respetivas viagens de estudo. Os mapas que verbalizou durante as intervenções que ia fazendo no terreno permitiam ler e interpretar, para além das aparências, as paisagens físicas, económicas, sociais, culturais e políticas que desfilavam diante dos nossos olhos: o lugar onde falava era o ponto de partida duma interminável viagem que transcendia fronteiras, geográficas e disciplinares, e nos projetava para dimensões mais elevadas, intangíveis e globais.

A singela evocação do seu nome, aqui e agora, é um gesto de reconhecimento a quem deu, ao CEI e aos Cursos de Verão, um contributo desinteressado, generoso e solidário, sem expetativa de qualquer tipo de retorno. Sem ficar prisioneiro de sentimentos pessoais ou amarrado à análise do seu legado cientifico, amplo e diverso, construído ao longo de décadas, que tentarei apreciar noutra sede, centro a minha atenção num tema e numa prática cara a António Gama e aos demais participantes que frequentam o Curso de Verão: a viagem.

António Gama recorria à viagem para, com ela e a partir dela, nos ajudar a ler e a interpretar o mundo desconhecido. Tornou-se nómada entre livros e bibliotecas, onde se deleitava como guia na arte de viajar entre esses labirintos infinitos de informação e de conhecimento. Esta viagem, como qualquer debate ou conversa, era pretexto para uma jornada que sabíamos onde começava mas nunca imaginávamos onde nem quando terminava. Sabemos agora, como Saramago, que “só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa”.

Escreveu outro poeta que “foi por um crepúsculo de vago outono que eu parti para essa

1 - Texto preparado para a sessão de apresentação do vídeo de Homenagem a António Gama, “Desenhar o mapa do mundo desconhecido”, cujo roteiro se apresenta no final, exibido no Curso de Verão 2015, na Guarda, em 8 de Julho.

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viagem que nunca fiz”, palavras introdutórias tanto da desassossegada viagem nunca feita por Fernando Pessoa como daqueles que partem em demanda de mundos nunca dantes navegados: “Eu não parti de um porto conhecido. Nem hoje sei que porto era, porque ainda nunca lá estive. Também, igualmente, o propósito ritual da minha viagem era ir em demanda de portos inexistentes – portos que fossem apenas o entrar-para-portos; enseadas esquecidas de rios, estreitos entre cidades irrepreensivelmente irreais” (Livro do Desassossego).

Os andarilhos, enquanto se desdobram em múltiplas itinerâncias, pela vida e pelo mundo, adquirem competências que melhor exprimirem sentimentos e motivações, como Vinicius de Moraes naquele soneto que descreve uma poética viagem: “De manhã escureço / De dia tardo / De tarde anoiteço / De noite ardo. // A oeste a morte / Contra quem vivo / Do sul cativo / O este é meu norte. // Outros que contem / Passo por passo: / Eu morro ontem // Nasço amanhã / Ando onde há espaço: / - Meu tempo é quando”.

. Geografia e viagem: das errâncias virtuais às paisagens reais. As primeiras viagens de António Gama terão sido a partir de histórias infantis, a avaliar pela referência frequente que fazia a Antoine de Saint-Exupery ou a Júlio Verne, evidenciando uma afinidade cúmplice com o nosso Mestre Alfredo Fernandes Martins. Na companhia daqueles autores e dos personagens que protagonizavam tão imaginárias e fantásticas viagens, como as propostas em O Principezinho (1943) ou A Volta ao Mundo em Oitenta Dias (1873), foi introduzido nesse modo peculiar de viajar enquanto despontava o gosto insaciável pela leitura e uma paixão ilimitada pelos livros.

Na sua aparente simplicidade, O Principezinho encerra uma geografia carregada de simbolismo, potenciado pela pluralidade e perfil de personagens tão díspares quanto o contador, o rei, a raposa, a rosa, a serpente ou o geógrafo. No planeta do velho solitário, do tamanho de uma casa, a nossa casa comum, existiam três vulcões, dois ativos e um extinto, e uma flor cuja beleza é proporcional ao seu orgulho. É este orgulho que, ao romper a tranquilidade do mundo do pequeno príncipe, motiva a viagem que o traz à Terra para, a partir dos vários personagens que encontra, repensar o que é realmente importante na vida. Ao renunciarmos à criança que fomos e que nunca deixará de residir em nós, assumimos o equívoco de alguns julgamentos, abdicamos de certos valores que só aprofundam o nosso isolamento e solidão.

Cinco semanas em balão (1862), primeiro grande sucesso de Júlio Verne, é o relato duma suposta viagem a África pelo ar: os detalhes sobre animais, cultura, coordenadas geográficas, etc., que condimentam o enredo, ainda despertam no leitor a curiosidade de saber se o relato é verídico ou ficção, pois, na verdade, nunca esteve em África nem viajou de balão. Com uma obra de mais de 100 títulos, vertidos em 148 línguas, Júlio Verne conseguiu a proeza de ser o autor, segundo a UNESCO, mais traduzido, demonstrando uma capacidade invulgar de imaginação e pesquisa. Entre a sua vasta produção literária encontramos livros que nos remetem para temas afins dos geográficos2 ou relacionados com a viagem (A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, 1872; Viagem ao Centro da Terra, 1864; Vinte Mil Léguas Submarinas, 1870).

Anteriormente, Xavier de Maistre, quando publicou Viagem à Volta do Meu Quarto (1794), reincidindo mais tarde com Expedição Noturna à Volta do Meu Quarto (1825), provou que existem outras possibilidades de viajar e evasão. Escreveu, então, que “quando viajo no meu quarto, raramente percorro uma linha recta: vou da mesa até um quadro que está colocado a um canto; daí parto em diagonal até à porta; mas ainda que, ao partir, a minha intenção seja a de me dirigir para lá, se encontro a poltrona no caminho não estou com cerimónias e instalo-me de imediato nela.” A prática deste tipo de viagem, circunscrita no espaço, ideal para pobres, enfermos e preguiçosos, pode contribuir para uma certa felicidade.

A geografia implícita nestes universos imaginários ajuda a contextualizar e contemplar o mundo real com outro olhar. Viagens como estas, virtuais, lúdicas ou de mera evasão, podem anteceder e complementar, tantas vezes, as realizadas pelos geógrafos para observar,

2 - De entre os demais destacaremos: Da Terra à Lua, 1865; À roda da Lua, 1869; Os conquistadores, 1870; Uma cidade flutuante, 1871; A ilha misteriosa, 1875; História das grandes viagens e dos grandes viajantes, 1878; A estrela do Sul, 1884; Norte contra Sul, 1887; O caminho da França, 1887; Dois anos de férias, 1888; A esfinge dos gelos, 1895; O senhor do mundo, 1904; A Aldeia Aérea, 1901; A invasão do Mar, 1905.

Rui Jacinto

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descrever e analisar as paisagens naturais ou antropizadas. Estas abordagens, começam quase sempre num qualquer livro, têm nos pontos altos locais privilegiados de observação. Lugares de excelência para este fim, os Miradouros permitem alcançar horizontes rasgados e obter imagens amplas que os transforma em verdadeiros Centros de Interpretação da Paisagem, a céu aberto, low cost, sem custo para o observador. Talvez seja esta a razão que levou a abandonar e desvalorizar os miradouros a favor de centros construídos de raiz, espaços fechados, pagos e equipados com uma parafernália tecnológica, que nem sempre facilita a compreensão ou a aquisição de conhecimentos.

A crescente demanda de paisagens virtuais, imaginárias, simbólicas e ficcionais não levou António Gama a abdicar de ser um geógrafo comprometido com as paisagens reais que os espaços amplos e abertos proporcionam. Admirador confesso de Claude Levy Strauss, entendia que o titulo que o autor deu à primeira parte de Tristes Trópicos - o fim das viagens -, não passava de mera metáfora. Viajante incansável, nas viagens de trabalho de campo ou nas viagens de estudo que orientava, sempre se fazia acompanhar duma máquina fotográfica, captando imagens de aspetos que lhe prendiam o olhar. A importância que atribuía à imagem era equivalente ao significado que granjeou na geografia, que passa pela fotografia e o cinema como por outros modos de expressão visual, que podem ir da cartografia à pintura.

O convívio com António Gama dava acesso ao vasto património que laboriosamente acumulou e que partilhava com generosidade, fosse na sala de aula, nos Cursos de Verão ou à mesa de qualquer café. Ao reler a Teoria da viagem. A poética da Geografia (Michel Onfray) apercebemo-nos da sua crença que a teoria da geografia, que tão bem dominava, também se pode construir e perspetivar a partir duma poética da viagem.

. Literaturas nómadas: ler e andar, ver e conhecer. Pioneiro em Portugal de estudos sobre a geografia do lazer, António Gama entendia o ócio, como Dumazedier, definido a partir do descanso, do divertimento e do desenvolvimento (três D’s). Dava relevo à evasão/compensação entendida “como fuga imaginária ou efetiva da realidade da vida”, sempre constrangedora e penosa, em que um dos contrapontos é o passeio no campo, ócio físico e ativo que enaltece o convívio com os espaços livres (Gama, 1992).

Afirmou-se como um bom viajante nas várias modalidades, fossem viagens reais, virtuais, imaginárias ou literárias. A viagem nasce connosco, como o pecado original ou o contraído por Caim, sedentário agricultor que nutria uma inveja cega contra o irmão, Abel, por este exibir o espírito livre que é apanágio dos pastores e demais nómadas. O castigo divino que puniu o primeiro fratricida penitenciou Caim a uma errância que está na génese da viagem. Ao longo dos tempos, muitas lhe haviam de suceder, reais e imaginárias, míticas ou fantasiosas, como testemunha a literatura universal: a Odisseia de Homero, as Histórias de Heródoto, a Geografia de Ptolomeu ou As Viagens de Marco Pólo (1271), empreendidas pelo jovem mercador, em plena Idade Média, quando percorreu a Rota de Seda até à China.

Este mesmo itinerário havia de ser percorrido, de vários modos, vezes sem conta: Paul Pelliot explorou os oásis da Ásia Central, entre 1906 e 1908, que marcavam as etapas da rota da seda, enquanto Italo Calvino, mais tarde, a revisita em uma metafórica viagem que intitulou As cidade invisíveis (1972). Entre os múltiplos roteiros que foram sendo escritos ao longo da história destacaremos alguns clássicos: o Códice Calixtino, manuscrito do século XII, com iluminuras, compilando textos de diferentes autores, que serviu de guia ao peregrino ou ao virtual viajante pelo Caminho de Santiago; a Carta de Pêro Vaz de Caminha, relatando ao rei D. Manuel I a viagem e as impressões do achamento da terra que se viria a chamar Brasil, datada de Porto Seguro, onde a frota de Cabral aportou em 1 de Maio de 1500; a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, e os Lusíadas, de Luís de Camões, relatos da saga empreendida pelos portugueses, quando deram início a uma errância que ainda não terminou, como atesta o persistente e cíclico recrudescimento do êxodo emigratório.

Num outro registo, posteriormente, vão surgir As Viagens de Gulliver (Jonathan Swift, 1726), intituladas oficialmente Travels into Several Remote Nations of the World. In Four Parts, antecipando as explorações e as viagens científicas do século XIX. Entre estes relatos, onde se casa literatura e ciência, merece destaque A Viagem do Beagle, publicada por Charles Darwin, em 1839, Diário e Anotações duma viagem que foi, porventura, a mais famosa e frutuosa. As memórias e observações, detalhadas e minuciosas, do trabalho de campo realizado pelo naturalista ao redor do mundo, divulga a fauna, a flora, os costumes e

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as paisagens exóticas observadas numa jornada capital para fundamentar a teoria que havia de formular sobre a evolução e a seleção natural.

Nesta época surgem as Sociedades de Geografia, como a de Lisboa, fundada por Luciano Cordeiro, em 1875, principais impulsionadoras deste tipo de expedições. O patrocínio destas iniciativas, por parte da de Lisboa como das suas congéneres, tinha o propósito implícito de afirmar o domínio colonial. No nosso caso, tiveram mais eco as viagens realizadas por Hermenegildo Capello e Roberto Ivens, relatadas em De Benguela às Terras de Iaca: descrição de uma viagem na Africa Central e Ocidental (1881) e em De Angola á contra-costa: descripção de uma viagem atravez do continente africano (1886). Ainda resta, deste período áureo, a National Geographic, cujo primeiro número foi lançado em 1888, revista de culto para António Gama, que continuava militantemente a comprar, ler e emprestar a publicação oficial da National Geographic Society (NGS) americana.

Há, pois, uma literatura tocada pelo nomadismo, onde se relata uma qualquer viagem realizada por motivos profissionais, lazer, aventureira ou impulsionada por sentimentos românticos. A crónica e a literatura de viagens, que tiveram um forte impulso no século XX, dispersam-se por obras e autores que respondem a todos os estilos e a todos os gostos, de que referiremos alguns dos seus cultores: a Anatomia da errância (1997) que compila reflexões de Bruce Chatwin, que escreveu, além de Canto Nómada (1987), Patagónia (1977), o clássico mais consagrado deste género literário. A arte da viagem (Paul Theroux, 2012) e A arte de viajar (Alain de Botton, 2002) abrem outros horizontes para as infinitas possibilidades que temos de viajar, isto é, de nos perdermos e encontrarmos enquanto deambulamos pelo mundo.

Este género literário é tão diverso quanto os tipos de viagens e de autores que as perpetuam: A Viagem do Oriente, escrita por Le Corbusier, O Diário de Viagem, de Alberto Camus, que relata reflexões duma visita aos EUA e à América do Sul, em 1949, apenas publicado em 1978, contrastam com a célebre Viagem pela América, feita de mota, em 1951, por Ernesto Che Guevara e o seu companheiro Alberto Granado. O Grande bazar ferroviário, relata uma viagem de comboio feita por Paul Theroux, pela Europa, Oriente, Indochina, Japão e Sibéria, explora a sensação de viajar sobre carris, enquanto pela janela desfila um rosário de estações, pequenas cidades e uma ampla diversidade de cenários culturais e paisagísticos.

Sem uma referência à geografia literária da América Latina ficaria incompleto este atlas que pretende compilar mapas e esboços de viagens, feitas, projetadas idealizadas ou sonhadas pelo António Gama. O seu imaginário tinha no cume a geografia fictícia que emana do realismo fantástico de Gabriel Garcia Marquez, cujo território se localiza algures entre as margens do Mar das Caraíbas e as regiões mais remotas do continente Sul-americano, ilhas dum imenso arquipélago que o autor concebia ser governado por um general ancião e ditador, tendo como pontos cardiais a Crónica de uma morte anunciada, O amor nos tempos de cólera, Cem Anos de Solidão ou A última viagem do navio fantasma.

A geografia implícita a este tipo de literatura, que se define na confluência entre realidade e fantasia, permite viajar por territórios ausentes, distantes, desconhecidos que nunca ousaríamos visitar. Este périplo não dispensa uma referência a Ernest Hemingway e a William Somerset Maugham3, como às suas Histórias dos Mares do Sul (1936), obra lendária, igualmente cara ao Mestre Alfredo Fernandes Martins e à geração coimbrã sua contemporânea. Estas referências mergulham na mais antiga tradição geográfica, que necessitava da viagem e dos roteiros para obter informação imprescindíveis ao desenho de mapas e à descrição de lugares, regiões, países. A geografia é herdeira dum vasto património acumulado por grandes exploradores durante as viagens que fizeram. Lembremos apenas os contributos de Alexandre de Humboldt, que viajou pela América Latina, e de Vidal de la Blache, que consagrava as suas férias a percorrer de comboio e a pé, a França e os países vizinhos, com “a vontade de melhor formar os franceses e os fazer compreender o mundo através da prática do terreno e do conhecimento da geografia”, engajamento que ajuda a

3 - William Somerset Maugham (1874-1965) foi um dos “escritores de viagem” que mais se destacaram entre as duas guerras. Além de Histórias dos Mares do Sul tem entre a sua vasta bibliografia obras como Cavalheiro de Salão: Crónica de uma Jornada de Rangun a Hai Phong (1930), Meu Diário de Guerra (1940) e O Fio da Navalha (1944).

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construir tanto o cidadão como o geógrafo 4.

. Viagem sem fronteiras: da mátria Beira aos confins da geografia lusófona. São muitas e variadas as motivações e as formas de viajar, porque “tudo é viagem. É viagem o que está à vista e o que se esconde, é viagem o que se toca e o que se adivinha, é viagem o estrondo das águas caindo e esta subtil dormência que envolve os montes” (José Saramago, Viagem a Portugal). A viagem de afetos que estamos a seguir, na peugada de António Gama, pretende ser fiel ao seu espirito e feita ao sabor do seu imaginário.

Nesta senda, a caminhada ficaria incompleta sem uma incursão, mesmo que breve, pela geografia de aquém e além-fronteiras, da Beira maternal à mais remota região dum qualquer país de língua portuguesa. A viagem e o trabalho de campo despertam curiosidade e desejo, proporcionam experiencias solitárias ou de grupo como são as excursões caras aos geógrafos. Ambas têm os seus rituais e constrangimentos, exigem uma complexa logística para apoiar o viajante no transporte, na alimentação e no repouso, pois o verdadeiro viajante, além dos registos que tem de fazer para memória futura, escritos ou fotográficos, precisa de ir acompanhado de livros e de mapas que o orientem na caminhada.

Ainda tenho bem vivas algumas viagens que partilhamos, desde o inicio dos longínquos anos 70, ao redor da nossa casa, para observar as superfícies aplanadas dos tufos calcários de Condeixa, interpretar os cortes que expuseram tufos e travertinos nas vertentes talhadas pelas ribeiras ou apanhar poejo, no cume de algumas serras calcárias (Pega, p. ex.), localizadas no extremo norte do Maciço de Sicó. Efetuamos duas viagens de estudo que ficaram célebres, tendo por timoneiro o Professor Alfredo Fernandes Martins: em 1974, nos dias que antecederam o 25 de Abril, ao Maciço Calcário Extremenho e, no ano seguinte, à Beira Interior, que teve como pontos altos foram, as aulas magistrais, in loco, sobre os acidentes geomorfológicos da Beira Baixa. Foi assim na captura da Bazágueda, na epignia do Ponsul, no inselberg de Monsanto, aonde acabamos por não subir, pois, uma vez na Relva, porque estávamos em trabalho e não em turismo, continuamos jornada.

Além de algumas incursões no Pinhal Interior, passamos a fazer anualmente as Rotas Ibéricas, viagens de estudo transfronteiriças, integradas no Curso de Verão, organizado pelo CEI, onde António Gama era um dos coordenadores e grande ativista. Retenho ainda duas outras viagens memoráveis: a que organizou à Área Metropolitana de Lisboa e à Área de Influencia de Évora, em 1975, sob orientação do Professor Jorge Gaspar; a grande viagem, feita em 2011, que teve o significado de uma viagem de despedida, a algumas ilhas de Cabo Verde, onde nos deslocamos a lugares tão improváveis quanto Pedra Lume, na Ilha do Sal, Chão Bom, em Santiago, Monte Verde, em S. Vicente, ou Chã de Igreja, nos confins de Santo Antão.

Não existe um modo único de viajar e cada viajante deve desenhar o seu próprio itinerário, abordagem que exige preparação aturada, como era timbre de António Gama, que se munia de minuciosa e sofisticada bibliografia, informação geográfica, guias e outros relatos de viagem. No plano doméstico não dispensava dois clássicos obrigatórios: os vários Guias de Portugal, ideia visionária de Raul Proença, que lançou o primeiro volume em 1924 dedicado a Lisboa e Arredores, saindo o segundo, em 1927, sobre a Estremadura, o Alentejo e o Algarve; os Livros Guia das excursões realizadas durante o Congresso Internacional Geografia, realizado em Lisboa, em 1949 5. Qualquer saída para Portugal Central, Centro Litoral ou Maciço Calcário Estremenho continua a exigir uma leitura destes guias elaborados por Orlando Ribeiro e Alfredo Fernandes Martins. António Gama recorria com frequência ao Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, escrito por Orlando Ribeiro, editado em Coimbra, em 1945, sobre a qual deixou um longo testemunho, como se fosse a sua última lição.

Não dispensava, complementarmente, as perspetivas particulares e as visões de conjunto do país formuladas por Miguel Torga (Portugal, 1950) e José Saramago (Viagem a Portugal, 1983). A importância da viagem para este último autor está patente nos títulos de obras

4 - Paul Claval (2013) - Le rôle du terrain en géographie. [O papel do trabalho de campo na geografia, das epis-temologias da curiosidade às do desejo], Confins, 17. 5 - Orlando Ribeiro - Le Portugal Central, Livro Guia da Excursão “C” do Congresso Internacional de Geografia, Lisboa, U. G. I., reeditado pelo C. E. G., Lisboa, 1982, 180 p.Alfredo Fernandes Martins - Le Centre Littoral et le Massif Calcaire d’Estremadura, Livro Guia da Eexcursão “B” do Congresso Internacional de Geografia, Lisboa, U. G. I., 1949, 109 p.

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como A bagagem do viajante, 1973 e, além da referida Viagem a Portugal (1983), de A viagem do elefante (2008), para não falar de A jangada de pedra (1986), que não deixa de ser uma imaginária e intrigante viagem. O simbólico afastamento da Península da Europa além Pirenéus acaba por ser rematado com a simétrica A viagem do elefante, que pode representar, também no plano igualmente simbólico, o regresso do filho pródigo à casa europeia. Falar de viagem adquire, em qualquer caso, o duplo sentido de ida e volta, de partida e de regresso, tão presente no sentimento insular, eloquentemente captado pelo poeta cabo-verdiano Eugénio Tavares, o primeiro a escrever na sua língua materna, quando escreveu no seguinte verso: Si ka badu, ka ta biradu (Para se regressar tem de se partir).

Ao longo dos anos nunca deixamos de falar de viagens e de guias que nos habilitariam visitar com proveito outros lugares, regiões, países, desde Lisboa: o que o turista deve ver, guia turístico escrito propositadamente em inglês, em torno de 1925, por Fernando Pessoa), Guia de Ouro Preto (Manuel Bandeira, 1938), Bahia de Todos os Santos (1944) ou Pensageiro frequente (Mia Couto, 2010). O irresistível apelo do mar, que nos tornou pioneiros da globalização, deu-nos o incontido desejo de aventura e evasão, que continua a proporcionar obras como Uma viagem à Índia (2010), na versão de Gonçalo M. Tavares, a procura do Sul (1998; Miguel Sousa Tavares) ou Baía dos Tigres (1999), relato da viagem de Pedro Rosa Mendes, da costa à contracosta africana.

Estas viagens literárias são diálogos infinitos: Stefan Zweig, grande viajante, por vontade mas, também, por necessidade de refúgio e exílio, apresenta na sua vasta obra títulos como Viagens - Paisagens e cidades (1919), além dum premonitório Brasil, País do Futuro, ensaio que publicou em 1941. Sobre este país, numa carta que remeteu da Bahia a seus cunhados, faz a seguinte descrição do Brasil: “Você não pode imaginar o que significa ver este país que ainda não foi estragado por turistas e tão interessante - hoje estive nas cabanas dos pobres que vivem aqui com praticamente nada (as bananas e mandiocas estão crescendo em volta) e as crianças se desenvolvem como se estivessem no Paraíso”.

As geografias literárias da lusofonia continuam por desbravar, apesar de tentativas feitas por, entre outros, Vitorino Nemésio (Caatinga e Terra Caída. Viagens no Nordeste e no Amazonas, 1968) ou Agustina Bessa Luís (Breviário do Brasil, 2012), que nos deram interessantes olhares do Brasil. Ou o abraço entre a savana e os sertões, promovido por Ruy Duarte de Carvalho, quando lança o seu olhar africano, em Desmedida, crónica do Brasil. Luanda - S. Paulo - S. Francisco e volta (2006), sobre o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Estas geografias íntimas são um campo a explorar, sobretudo os seus redutos mais recônditos escondidos entre sertões, savanas e charnecas.

Territórios que confirmam esta sonhada e interminável viagem …

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Desenhar o mapa do mundo desconhecido6

António Gama Mendes(30.12.1948 - 31.12.2014)

Uma pérola de melancoliadesce levemente o rosto da saudade

Podes agora espreguiçar-te nos mapas,para que a Terra seja todos os caminhose se colha nos outonos o mistério da esperançae tudo nasça de novo sem limites(Rui Namorado)

Uma “certa tradição geográfica”: António Gama, um geógrafo peculiar, um heterodoxo inconformado

“António Gama faz parte de uma geração de charneira. Filhos do maio de 68, bafejados pela Primavera Marcelista e protagonistas do período pós-25 de abril, muitos dessa geração contribuíram, de modo voluntarioso e empenhado, para abrir a ciência, então vista como necessariamente neutra, à política, bem como a academia, ainda por muitos encarada como uma torre de marfim, à sociedade” (João Ferrão, 2015).

“Culto, dotado de uma inesgotável curiosidade científica, crente numa Geografia grandiosa, mas sem um perímetro bem delimitado. (…) Esta é a memória que guardo de António Gama, um académico utópico que sonhava com um estudo geral aberto às gentes e aos territórios, livre de correrias, burocracias e carreiras” (Jorge Gaspar, 2015).

“Heterodoxo inconformado, olhava com igual desconfiança a híper especialização acrítica que viu alastrar à sua volta, quase sempre tão redutora e estreita quanto as demais ortodoxias que, dogmaticamente, tentam impor um pensamento único ou confinar o conhecimento às estritas fronteiras disciplinares” (R. Jacinto; F. Cravidão; A. Campar; N. Santos; L.Cunha, 2015).

António Gama: apontamentos de um legado, fragmentos de uma obra

“O António Gama deixou-nos excelentes textos, exaltantes discussões, críticas rigorosas” [Jorge Gaspar].

Teoria da Geografia. “A questão da diferenciação em campos analíticos distintos entre o indivíduo e a sociedade, entre o micro e o macro ou o local e o global, deixa de ter o mesmo sentido, porque cada vez mais estas questões são vistas de um modo em que se privilegiam as interrelações, recorrendo a conceitos mediadores” (António Gama, 1998).

Geomorfologia. “E a sedução vem tanto no plano metodológico, na confrontação duma teoria como uma prática, como no epistemológico, numa exegese de prática-teoria na busca de rigor no discurso em geomorfologia, ao enfrentar um tema em que as formas de erosão e as formas de acumulação quaternária estão interdependentes e toma uma amplitude paralela no conjunto da problemática” (António Gama, 1974).

6 - Guião do vídeo de homenagem de reconhecimento pela colaboração desinteressada, generosa e solidária prestada por António Gama ao Centro de Estudos Ibéricos. (XV Curso de Verão, Sala Tempo e Poesia, Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço. Guarda, 8 de Julho de 2015).

António Gama: viagem, mapas, memória

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Geopolítica. “Houve tempo em que a água era considerada genericamente um bem livre. (…) A água, como qualquer recurso, tornou-se por consequência fulcro das relações de poder e geradora de conflitos, tornando o seu controlo e a sua posse, seja de rios, lagos, ou reservas subterrâneas, uma questão fundamentalmente política, e, portanto, de geopolítica” (António Gama, 2006: 43-59).

Cidade, moderna urbanização e seus paradoxos. A cidade aparece assim, desde a sua origem, como um lugar emblemático de poder. Poder que se inscreve sobre os corpos e sobre os espaços de modo a organizar as populações e os recursos que fazem parte dos territórios e dos quais são artífices. A cidade, surge por isso como uma obra humana, marcada numa primeira análise como um regulador económico das pessoas e das riquezas” (António Gama, 2012: 20, 83-94).

“Os espaços sociais e económicos que constituem as cidades estão atravessados por contradições e conflitos de apropriação. De utilização e de avaliação que os grupos sociais fazem do espaço e que se expressam na segregação dos usos, nas formas residenciais e nos diferentes tipos de desigualdades sociais. À nova ordem social também corresponderá uma ordem espacial, medida ou imposta pelos poderes instituídos e organizadores dessa ordem, com configurações de geometria variável” (António Gama, 2013; 133-135).

António Gama e o CEI: uma geografia de cumplicidades e afetos

Saíste da vida como se fosses viajar,levando discretamente a mala dos sonhos no arrepio da imaginação.(Rui Namorado)

Nota técnica*

Desenhar o mapa do mundo desconhecido[Excerto de A Biblioteca do Geógrafo de Jon Fasman, Gótica, 2006.]Organização e MontagemAntónio FreixoVozInês PatrãoCitaçõesHomenagem a um amigo. / Boa viagem, António Gama. [Poema de Rui Namorado - 2 de janeiro de 2015]Testemunhos (in Finisterra, nº 99, 2015)António Gama: um Geógrafo Peculiar (João Ferrão).Um geógrafo inquieto, um heterodoxo inconformado (Rui Jacinto; Fernanda Cravidão; António Campar de Almeida; Norberto Santos; Lúcio Cunha).António Gama ou uma “certa tradição geográfica” (Jorge Gaspar).António Gama: fragmentos da obra1974 – Os tufos de Condeixa. A morfologia da área dos tufos de Condeixa.1998 - Escalas, Representação e Acção Social. Cadernos de Geografia, 17, Coimbra.2006 - A água: uma questão geopolítica. In O Interior Raiano do Cento de Portugal – Outras Fronteiras Novos Intercâmbios. CEI, Iberografias, 8, 43-59.2012 - A cidade e a moderna urbanização: discursos, modelos e novas lógicas de organização espacial. CEI, Iberografias, 20, 83-94.2013 - As cidades e os processos de urbanização. Transversalidades. Fotografia sem fronteiras. Guarda: Centro de Estudos Ibéricos, 133-135.VídeoCedido por B’lizzard.FotografiasRui Jacinto, Luísa Ferreira, Lúcio Cunha, Arquivo do CEI / Arménio Bernardo, António Freixo.MusicaJesus Fernandes, Alone; Geraldo Vandré (1968) - “Pra não dizer que não falei das flores” / “Caminhando”.

https://vimeo.com/137154099

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Prémio Eduardo Lourenço[XI Edição | 2015]

244Prémio Eduardo LourençoPrémio Eduardo Lourenço

Agustina Bessa-Luís:breve perfil

Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa, celebrizada pelo pseudónimo literário Agustina Bessa-Luís, nasceu em 1922, em Vila Meã, Amarante. Talvez esta aproximação ao Douro da sua infância, que levou consigo mais tarde se instalou no Porto, tenha sido determinante como pano de fundo para a maior parte dos seus romances.

Agustina, que cedo demonstrou interesse pela Literatura Portuguesa e Inglesa em particular, obteve um lugar de destaque quando publicou A Sibila, em 1954. Esta obra, estudada durante décadas em escolas e universidades, constituiu um enorme sucesso e abriu-lhe portas para o reco-nhecimento público da sua grandiosa carreira literária.

Se muitos foram os romances que escreveu, não podem ser esquecidas as peças de teatro, as biografias, as crónicas, os ensaios, testemunhos de um corpus literário diversificado. A ligação ao cinema e ao teatro associam-na a nomes como Manoel de Oliveira, que adaptou ao cinema e ao teatro muitas das suas obras, e Filipe La Féria, que adaptou e encenou As Fúrias para o Teatro Nacional D. Maria II. Foi deste mesmo Teatro que foi Diretora entre 1990 e 1993.

A obra da Escritora tem uma projeção internacional de relevo, estando traduzida em várias línguas. A acompanhar esta projeção internacional da sua escrita, Agustina foi membro do Con-selho Diretivo da Comunitá Europea degli Scrittori (Roma, 1961-1962), e é membro da Academie Européenne des Sciences, des Arts et des Lettres (Paris) e da Academia Brasileira de Letras. Foi distinguida com o grau de «Officier de lÓrdre des Arts et des Lettres», atribuído pelo Governo Francês em 1989, e com o Grau-Oficial da Ordem Militar de Santiago de Espanha, em 1981, ten-do recebido ainda a Grã-Cruz da mesma Ordem, em 2006.

Para além destas distinções, a obra de Agustina Bessa-Luís obteve importantes prémios literá-rios nacionais e internacionais.

O Júri decidiu atribuir o Prémio a Agustina Bessa-Luís em reconhecimento da sua grande projeção nacional e internacional, expoente máximo da cultura portuguesa e ibérica, e valorizou na sua obra a profunda consonância com a grande tradição cultural ibérica, capaz de integrar e compreender Cervantes e Fernão Mendes Pinto, Nuno Gonçalves e Vélasquez.

O Prémio anual, que tem o nome do ensaísta Eduardo Lourenço, mentor e diretor honorífico do CEI, destina-se a galardoar personalidades ou instituições com intervenção relevante no âmbito da cultura, cidadania e cooperação ibéricas.

Para além do Vereador da Educação, Cultura e Turismo da Câmara da Guarda, Prof. Doutor Victor Amaral, o júri que decidiu a atribuição do Prémio Eduardo Lourenço 2015, era formado por João Gabriel Silva, Reitor da Universidade de Coimbra, María Ángeles Serrano, Vice-Reitora da Universidade de Salamanca, Valentín Cabero e Fernando Rodríguez de la Flor, professores da Uni-versidade de Salamanca, Manuel Santos Rosa e Pedro Pita, professores da Universidade de Coim-bra, e por mais três personalidades convidadas: Santos Justo e Pedro Bingre do Amaral (indicados pela Universidade de Coimbra) e José Luis Puerto (indicado pela Universidade de Salamanca).

A sessão solene de entrega do galardão teve lugar, na Guarda, no dia 3 de julho, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, na Guarda. A cerimónia contou com a presença do Secretário de Estado da Cultura, Dr. Jorge Barreto Xavier e do Prof. Eduardo Lourenço.

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2004 | Maria Helena da Rocha Pereira

Catedrática jubilada da Universidade de Coimbra, Maria Helena da Rocha Pereira desenvolveu ao longo da sua carreira uma intensa actividade pedagógica e científica nas áreas da cultura clássica greco-latina, cultura portuguesa e latim medieval. Foi a primeira mulher catedrática da Universidade de Coimbra, tendo ensinado ao longo de 40 anos e publicado mais de 300 trabalhos, entre ensaios e traduções. Jubilada desde 1995, a especialista em culturas grega

e latina, não abandonou a vida académica, continuando a orientar mestrados, a fazer conferências, a estudar e a escrever, estando ligada a trabalhos como a tradução completa da “Ilíada” de Homero.

2006 | Agustín Remesal

Jornalista e correspondente da TVE (cargo que exerceu em Lisboa de 2000 a 2004), Agustín Remensal é natural de Zamora, o que ditou uma estreita ligação à fronteira e a Portugal, compartilhando vivências e tradições raianas. Destacou-se pelo seu trabalho literário e profissional ligado a Portugal e Espanha, incidindo nas culturas e identidades fronteiriças. O documen tário “La Raya Quebrada” é uma obra de referência para a compreensão da história partilhada entre Espanha e Portugal.

Galeria de Galardoados

2007 | Maria João Pires

Reconhecida internacionalmente como uma exímia intérprete de compositores do período clássico e romântico, como Mozart, Chopin, Schubert e Beethoven, a pianista Maria João Pires percorreu – e esgotou – as melhores salas de espectáculo do mundo. Exemplo excepcional de como o talento português ultrapassa fronteiras, Maria João Pires é hoje uma referência internacional. Cidadã do Mundo, defende a ideia de uma

aproximação entre Portugal e Espanha por considerar que as diferenças culturais entre os dois países são no, no fundo, do mesmo tipo das que podem existir, por exemplo, entre a Catalunha e a Andaluzia. Maria João Pires destacou-se pelo trabalho de cooperação e intercâmbio cultural entre Portugal e Espanha, através do desenvolvimento de projectos comuns, com particular realce para os que têm tido lugar na região raiana.

2008 | Ángel Campos Pámpano

Natural de Badajoz, Ángel Campos Pámpano (1957-2008) distinguiu-se enquanto poeta, tradutor, editor e professor. Director da revista bilingue “Espacio/Espaço Escrito”, um projecto inovador no domínio das relações literárias entre os dois países ibéricos, traduziu destacados poetas portugueses como Fernando Pessoa, António Ramos Rosa, Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andersen, Ruy Belo e Al Berto, entre outros. Ángel Campos Pámpano interpretou singularmente a Fronteira, entendendo-a como forma de comunicação e não de separação. Em 2005 recebeu o Premio Extremadura a la Creación pelo livro “La semilla en la nieve”. A sua obra foi recolhida em diversas antologias.

Galeria de Premiados

Prémio Eduardo Lourenço

246Prémio Eduardo Lourenço

2009 | Figueiredo Dias

Jorge Figueiredo Dias é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Ensinou Direito Penal, Processo Penal e Ciência Criminal naquela Faculdade e, entre outras funções, integrou o Conselho Científico da Faculdade de Direito de Macau e foi membro do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Também foi presidente da Comissão de Revisão do Código Penal

e do Código de Processo Penal, membro do Conselho de Estado (1982/1986) e deputado à Assembleia da Republica de 1976 a 1978. Personalidade incontornável da nossa ciência jurídica nacional e internacional, Figueiredo Dias desenvolveu um trabalho relevante em Portugal e Espanha no âmbito das ciências jurídicas e em particular no Direito Penal.

2010 | César Antonio Molina

César Antonio Molina é autor de obras de ensaio, prosa e poesia e quando desempenhou o cargo de director do Instituto Cervantes «intensificou a colaboração ibérica com o Instituto Camões, realizando acções conjuntas que se viram reforçadas através do Ministério da Cultura do Governo de Espanha». “O seu trabalho cultural a partir do Círculo de Belas Artes de Madrid ampliou os laços peninsulares com a criação da “Semana de Cultura Portuguesa”, referiu o júri, lembrando que “como Director do Instituto Cervantes intensificou a colaboração ibérica com o Instituto Camões, realizando acções conjuntas que se viram reforçadas através do Ministério da Cultura do Governo de Espanha”. César Antonio Molina nasceu na Corunha em 1952 e é um destacado nome das letras espanholas, na prosa, na poesia e no ensaio. Além de ter presidido ao Instituto Cervantes e ao Círculo de Belas Artes de Madrid, ocupou a pasta da Cultura no anterior Governo de José Luis Zapatero.

José María Martín Patino, Escritor e Teólogo Jesuíta espanhol, foi o galardoado com o Prémio Eduardo Lourenço 2012. Nasceu em Lum-brales (Salamanca) em 1925. Licenciado em Filosofia e doutorado em Teologia desenvolveu uma intensa atividade de cariz social e litúrgico em Espanha. Foi fundador e preside à Fundación Encuentro, uma reco-nhecida plataforma de debate de cariz independente cujo objetivo é a

análise dos principais problemas da sociedade espanhola, promovendo espaços de com-preensão e consenso.Para além do protagonismo histórico e do papel que desempenhou nos anos da transição para o regime democrático em Espanha, o júri considerou relevante a trajetória e a atividade de Martín Patino e da Fundación Encuentro no desenvolvimento sócio-económico e coesão territorial na ampla zona transfronteiriça entre Portugal e Espa-nha, nomeadamente através do projeto “Raya Duero”, iniciativa de formação e educação nos meios rurais de baixa densidade.

2012 | José María Martín Patino

2011 | Mia Couto

Escritor, jornalista e biólogo moçambicano, António Emílio Leite Couto nasceu em 1955, na Beira. Filho de uma família de emigrantes portugueses chegados a Moçambique no princípio da década de 50, frequentou a escola primária na Beira e iniciou os seus estudos de Medicina em 1971, na Universidade de Lourenço Marques (actualmente, Maputo). Por esta altura, o regime exercia grande

pressão sobre os estudantes universitários. Ligado à luta pela independência de Moçambique, tornou-se membro da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). A partir do 25 de Abril e da independência de Moçambique, interrompeu os estudos para trabalhar como jornalista. Em 1985, ingressou na Universidade Eduardo Mondlane para se formar em Biologia. Iniciou o seu percurso literário em 1983 com o livro “Raiz de Orvalho” (poemas). Seguiram-se, entre outros, “Vozes Anoitecidas” (1986), livro de contos com que se estreou na ficção e

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Jerónimo Pizarro, Professor de Literaturas Hispânicas e investigador da obra de Fernando Pessoa, foi o galardoado com o Prémio Eduardo Lourenço 2013. Cidadão da Colômbia e de Portugal, é professor da Universidade dos Andes, titular da Cátedra de Estudos Portugueses do Instituto Camões na Colômbia e doutor pelas Universidades de Harvard

(2008) e de Lisboa (2006), em Literaturas Hispânicas e Linguística Portuguesa. No âmbito da Edição Crítica das Obras de Fernando Pessoa, publicadas pela INCM, já contribuiu com sete volumes, sendo o último a primeira edição crítica de Livro do Desassossego. Em 2013, assu-miu funções de comissário da presença portuguesa na Feira do Livro de Bogotá (Colômbia).

2013 | Jerónimo Pizarro

Prémio Eduardo Lourenço

Professor de Filologia Hispânica na Universidade de Évora, tendo-se destacado pela tradução de grandes vultos da cultura portuguesa con-temporânea como Fernando Pessoa, António Lobo Antunes, Manuel António Pina, José Gil e Teixeira de Pascoaes, entre outros. Considerado o especialista do Modernismo na Península Ibérica, António Sáez Del-

gado é um investigador raiano que cruza fronteiras há mais de uma década.

2014 | Antonio Sáez Delgado

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Intervenções na Sessão de Entregado Prémio Eduardo Lourenço 2015

249Prémio Eduardo Lourenço

Álvaro dos Santos Amaro Presidente da Câmara Municipal da Guarda

Senhor Secretário de Estado da Cultura,Senhor Reitor da Universidade de CoimbraSenhora Secretária Geral da Universidade de SalamancaSenhor Professor Eduardo LourençoFamília da Galardoada Agustina Bessa LuísRepresentante do Instituto CamõesMembros do júri do Prémio Eduardo Lourenço

Sejam bem-vindos à Guarda.É com grande satisfação que a nossa Cidade recebe nesta Biblioteca a Sessão de Entrega

do Prémio Eduardo Lourenço. É mais um momento de feliz associação entre dois nomes maiores da Cultura portuguesa contemporânea: Eduardo Lourenço e Agustina Bessa Luís.

Saúdo, em especial, a família de Agustina, que aqui a representa, o Pro-fessor Eduardo Lourenço, e os representantes das Universidades de Coimbra e de Salamanca e do Instituto Politécnico da Guarda, parceiros da Câmara Municipal da Guarda neste projecto de Cultura e Cooperação que é o Centro de Estudos Ibéricos.

Uma saudação muito especial ao Senhor Secretário de Estado da Cultura que, em nome do Governo da República, nos honra com a sua presença nesta que também é a sua terra.

Ilustres convidados,Minhas Senhoras e Senhores,O Prémio Eduardo Lourenço homenageia, em primeiro lugar, o filósofo e cidadão, o

ensaísta e o estudioso; aquele que, como raros, pensa Portugal, a Europa e o Mundo.Eduardo Lourenço é um dos nossos, beirão e raiano. Um D. Quixote Ibérico, como se

lhe referiu o galardoado anterior, António Sáez Delgado, há exactamente um ano nesta mesma sala: “Um Quixote que sabe olhar para o mundo e lê-lo com a lúcida simplicidade e inteligente ironia herdeira do melhor espírito de Sancho Pança”. Um intelectual ibérico que é um embaixador reconhecido da nossa Cultura e dos nossos valores.

Bem-haja, Senhor Professor Eduardo Lourenço, pela ideia, pelo incentivo e pela amizade. Bem-haja pelo desafio para que “a mais lusitana das fronteiras” se convertesse “na mais ibérica e dialogante das terras”.

O Prémio que hoje atribuímos tem galardoado personalidades com in-tervenção relevante no âmbito da Cultura, da cidadania e da cooperação inspiradas no espaço ibérico.

Este ano o júri decidiu – por amplo consenso – distinguir a escritora Agustina Bessa Luís.É para mim uma enorme honra, enquanto Presidente da Câmara Mu-nicipal da Guarda e

em nome da Direção do Centro de Estudos Ibéricos – que partilho com os Senhores Reitores das Universidades de Coimbra e de Salamanca –, fazer a entrega deste prémio à sua família. Estando retirada da vida pública – por compreensíveis razões de saúde – a galardoada está, assim, simbolicamente, hoje connosco.

Agustina é uma figura referencial da literatura portuguesa e um expoente da cultura ibérica, que inspirou diferentes gerações de leitores, escritores e ensaístas.

Mas é, também, o símbolo desta multi-pertença que nos leva desenhar traços de união onde outros vêm fronteiras. Pertence ao Minho, onde nasceu. Pertence ao Douro, de onde era o pai. Pertence a Zamora e à nossa vizinha Castela e Leão, de onde era a mãe. Pertence a Coimbra, onde escreveu as primeiras obras. Pertence ao Porto, onde se afirmou como romancista. Pertence a toda a parte, onde a lemos e admiramos. Onde nos entra pelos sentidos essa “indomável” escrita, paradoxal e surpreendente, como tão bem a caracteriza Eduardo Lourenço.

Agustina é – e permita-me que o cite de novo, Senhor Professor – a nossa “romancista-

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mor”, que nos oferece uma obra “torrencial e fulgurante”.Mas acerca da vida e da obra da galardoada, ouviremos com a maior atenção a Senhora

Professora Anamaria Filizola. Contudo, não quero deixar de sublinhar mais esta escolha feliz do júri do Prémio Eduardo Lourenço, por distinguir, mais uma vez, uma figura de tão singular talento na escrita, na interpretação humanista e promoção da Cultura de raízes ibéricas.

Uma vez mais, nesta Cidade mais alta, atingimos o topo.Temos, por isso, o desafio renovado de fazer mais e melhor.E neste repto, para qual todos estamos convocados, devemos também fazer uma reflexão

acerca do futuro deste Prémio e do seu mais nobre objectivo, que é a homenagem desta Terra ao seu ilustre pensador.

Guilherme de Oliveira Martins disse aqui, noutra ocasião, que “Eduardo Lourenço pensa Portugal como vontade e como comunidade plural de destinos e valores, pondo em diálogo os mitos e a razão e procurando afastar a maldição do atraso”.

A “maldição do atraso” não pode ser o destino ou a fatalidade destas terras raianas separadas por uma fronteira agora imaginária.

Falar de coesão territorial hoje pressupõe que a união e o desenvolvimento das regiões de fronteira dos dois países prossiga através de valores imateriais como os séculos de História partilhada, as vivências em comum e as cumplicidades, mas também através de estratégias concertadas de desenvolvimento.

Desta cidade de fronteira lutaremos pelo progresso e pela coesão dos territórios que são de baixa densidade mas têm – ou temos que o descobrir – um elevado potencial.

Não quererá Eduardo Lourenço associar-se a esta batalha contra a “maldição do atraso”? Não poderá o Prémio com o seu nome incentivar e distinguir, também, aqueles que nos ajudam a pensar e a concretizar estratégias de progresso?

Deixo aqui este desafio aos Senhores Reitores das Universidades de Coimbra e Salamanca e a toda a comunidade do Centro de Estudos Ibéricos. Teremos certamente oportunidade de pensar em conjunto e tentar conjugar as duas perspectivas: celebrar os valores consagrados mas incentivar as novas valias, nos mais amplos campos criativos; reconhecer um percurso mas ajudar abordagens inovadoras. Estou certo de que a ideia não desagradará ao Diretor Honorífico do nosso Centro de Estudos Ibéricos.

Cabe-nos a tarefa maior de assumir a História e o legado dos que a fazem em cada dia, mas de encarar o futuro com optimismo e confiança.

É um desafio que nos convoca para um trabalho persistente para que, no novo ciclo de políticas comunitárias, aproveitemos todas as oportunidades de desenvolvimento e coesão.

O Centro de Estudos Ibéricos vai ter aqui uma importante e reforçada missão, na ligação entre as instituições que o compõem, no envolvimento de novos parceiros e agentes e num protagonismo ainda mais activo em políticas de cooperação territorial.

O CEI é uma sigla que me diz muito e quero que diga muito também à Guarda. Porque a Cultura e o Conhecimento são uma das bases do de-senvolvimento social. E porque esta Cidade não é interior. Desculpem-me, mas não é. Só era interior quando tínhamos fronteiras e quando nos definíamos como “inimigos”. Tudo isso é passado longínquo. Um passado anterior à própria ideia de Europa, que tantas interrogações nos provoca por estes dias. Não há espaço mais europeu do que a nossa Península Ibérica. É uma espécie de Europa antes da Europa. E nós, na Guarda, estamos no centro de tudo. No centro da distância entre Lisboa e Madrid. Na confluência dos caminhos entre o mar e o continente. No eixo de um mundo global.

Isto somos nós, a Guarda.Somos o cruzamento de muitos labirintos de saudades, sim.Mas somos, também, um lugar com enorme potencial nos caminhos para o Futuro.

251Prémio Eduardo Lourenço

Eduardo LourençoDirector Honorífico do CEI

Agustina Bessa-Luís não é apenas uma escritora entre outras, embora das mais célebres da Literatura Portuguesa.

Há muito que para todos aqueles que pertencem à geração a que eu também pertenço (por contiguidade e nada mais...), Agustina Bessa-Luís foi percebida como um caso à parte dentro da história da Literatura Portuguesa do século XX. Quando publicou a sua famosa “Sibila” tivemos a impressão de que nada havia de comparável àquele livro, que ela, ainda relativamente jovem, tinha escrito e que modificou a perspetiva que podemos ter sobre a leitura – não só da literatura contemporânea, dela e daquilo que a sucede – mas de toda a nossa Literatura.

Nestas coisas de talentos ou génios diversos do alto reconhecimento, só Agustina podia merecer o título de génio. Agustina é, verdadeiramente, não só uma natureza genial no sentido, no grau de imprevisibilidade, de originalidade da sua imaginação, da sua escrita, mas também qualquer coisa ainda mais rara, uma espécie de abundância inexplicável, de torrente indomável acerca de uma experiência ao mesmo tempo limitada como é a de cada um de nós. Seria como se o génio da espécie e, sobretudo, o génio da própria memória da Literatura e Língua Portuguesa, se tivesse concentrado nela e que nada pudesse realmente inscrevê-la de uma maneira tradicional ao lado de outras, tal é a sua fulgurância, o seu sentido das contradições profundas que são todo o destino humano. Ela não é uma filósofa, é mais do que isso! Lembro-me que, em tempos, numa sessão dedicada a Fernando Pessoa, no Porto, alguém passou um papelinho com a pergunta “qual é o maior poeta português?”, que circulou nas mesas, e foi espantoso que alguém tivesse escrito “Agustina Bessa-Luís”, que não passa por ser um poeta no sentido formal da palavra. Mas quem escreveu isso teve a consciência muito forte do que estava pensando, a expressão que lhe convém é: um imenso poeta, que é a categoria máxima de quem escreve.

A genialidade é a capacidade de ver para além do que nós vemos normalmente e de confabular isso em mitos, em histórias, em evocações, em criações de figuras que são, à primeira vista, como uma espécie de delírio sagrado. Basta lermos umas páginas de Agustina para entrarmos nessa torrente que não tem precedentes na história da Literatura Portuguesa e não sei quantas terá realmente no futuro... Comparando com os nossos grandes homens de escrita do passado, não vejo melhor comparação que com o universo de António Vieira. Para mim, estas são as duas figuras mais extraordinárias em matéria de criação propriamente literária, porque incontrolada, e o paradoxo é que não se esperaria que fosse uma mulher portuguesa dos meados do século XX.

Escrevi, em tempos, sobre Agustina Bessa-Luís, que ela pertence a uma constelação bem precisa na área de onde emerge. Ela não vem das capitais, vem do norte, da parte mais arcaica e mais profunda, historicamente falando, do nosso pequeno país e grande país. Ela vem do norte e vem também da Ibéria. A sua personalidade, essa espécie de genialidade torrencial, absoluta, essa espécie de génio da ficcionalidade, vem também das raízes do sangue espanhol que corre nas suas veias. Esse sangue só tem uma encarnação maior da nossa Península, que se chama Cervantes. Agustina é uma Cervantes, mas, ao mesmo tempo, uma Sherazade que conta, não só a história do seu pequeno mundo, um pequeno mundo que, como para outros grandes escritores, se torne resumo de todo o mundo porque, efetivamente, em cada pequeno mundo a humanidade está sempre toda presente. Mas não queria fazer mais considerações em volta do génio, porque basta ler uma página para

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perceber o que ela é. No seu último livro “O elogio do inacabado” o título diz tudo: o livro está realmente acabado, mas é um acabado sem fim e, ao mesmo tempo, um adeus sem fim que Agustina faz à Literatura e à sua própria vida. Uma página ou duas bastam para que mergulhemos, sem preparação de espécie alguma, no que são os textos e a realidade da literatura e num universo em particular que é o dela. Começo com o seu último livro, intitulado “Homens e mulheres”: «As coisas grandiosas devem ser narradas de uma maneira simples; as coisas mesquinhas, de uma maneira subtil. Outras há, porém, que de míseras ou soberbas, não se lhes encontra rosto. A existência tem um móbil para cada uma das criaturas. Não é a lei da sobrevivência que as move, nem a da autodestruição tão-pouco. São as coisas vividas, os tempos, as mudanças. Efeitos de amor e ódio os desenharam ao natural, que é o esmero da alma. Efeitos de amor e ódio. Como na peça de Calderón. Trata-se nesta história duma mulher a quem a culpa não humilhou, porque fez dela a imolação ao terror dos outros. Uma mulher que eu conheci.

Imaginai, não sei, um lugar pedregoso e feio, com carvalhas antigas plantadas entre penedos saibrentos. Um riacho que parecia correr sobre um leito de sal borbulhava no fundo dum verde precipício. As vides soltas pendiam dos tristes lódãos, as enxurradas abriam valas fundas nos caminhos. Um caminho - o resto eram trilhos de mulas onde se desfilava a sinistra processionária, a bicha dos pinheiros. Os seus novelos como que vidrados viam-se nos ramos; elas iam através das matas, em grandes fitas aveludadas. Pareciam ser atraídas por motivo mais poderoso que o da sobrevivência, porque transpunham os pinhais onde dispunham de farto alimento, e não paravam nunca. O pólen amarelo que as revestia ficava no chão como enxofre vertido. Acontecia isto na Primavera.

Por ali ficavam os moinhos. Dominavam o vale como fortalezas, como casamatas, iguais àquelas que se vêem nos Alpes Marítimos ao lado das pontes bombardeadas que jamais foram reconstruídas.»

E são estas passagens absolutamente imprevistas e tipicamente oníricas como se fossem realmente pura fantasia que fazem esta mistura de hiper realismo, não é? E de sonho:

«Havia ali um pouco dessa hostilidade fracassada e sem objeto. Os moinhos pareciam conter, em vez de mós titubeantes na sua moagem, em vez disso e de cestos feitos de silvas e palha painça, rebeldes fuzis silenciosos. Mas eram apenas moinhos.» Depois invocando um personagem: «Agora, retalhada a quinta, os moinhos tinham rendeiros, o Abel Seco, homem espesso de juízo, enorme, de rosto redondo, aluado e bonito. Cem anos de vida lenta, rochosa, sem vizinhos, fizeram-lhe a família circunspecta, de falas escassas. A solidão dera-lhe uma candura fria, um certo espanto do olhar que arremedava o sentimento. Aos quarenta anos Abel Seco era o homem muito perfeito de semblante grave, mais turvo do que risonho. A mulher apagava-se muito ao lado daquele Moisés moleiro. Era franzina, de expressão distraída por dores antigas meio esquecidas. Duas lindas filhas tinham-lhe morrido, já moças; tinham morrido encostadas ao seu peito, compostas, tristes, mas não saudosas de nada. Elas assim o diziam: “– Já não vou deitar as flores à Carminha, que casa em Março...” Era como uma falta de que cada uma acusasse, a sua falta nessa manhã de bodas, com o grupo das jocistas de blusa azul, atirando aos noivos camélias desfolhadas. O pórtico do mosteiro romano apresentava não sei que esplendor robusto, como uma condecoração de pedra, posta como horizonte daquele grupo absorto que posava para os retratos. (…)

Ali viveu Sousa Cardoso, mais além o Nobre, ambos contratados cedo pela morte, ambos vagabundos envergonhados como são os portugueses de bem. E Pascoais, contrito dalgum pecado celeste, viveu também nos próximos lugares, narrando a infância de Deus em versos transidos de orgulho que bem personificava a humildade. Ali, ali, os ventos dobram os ciprestes dos jardins mais mortuários do que os próprios cemitérios. O vento sibila por sob as portas principais dos casões abandonados onde as últimas obras pressagiaram a morte do velho amo. Fecharam-se as portadas, cresceram demasiado as guias das roseiras, os tanques cobriram-se de lentilha verde. Morreram envenenados os molossos acorrentados, e a sua casota apodrece com repas de palha estripadas do ninho. A casa vazia de um cão

253Prémio Eduardo Lourenço

é mais confrangedora do que a casa fechada pelo luto. O guardião despedido ou morto como que imprime maior deserto ao recinto outrora vigiado. Deserta de amigos, de cheiro, de acontecimentos. Portas que nunca tinham tido cor que a elas chegasse, porque eram abertas, de par em par. E delas se passava às cozinhas amplas e chispantes, com fornalhas esbraseadas e lares borralhentos onde apurava a comida com uma lentidão sumarenta e ditosa. Porém, em profundos cantos, lamentamos o êxodo das províncias, a terra que se exige industriosa compensação deixada talvez ainda a esse amor censurado dos seus tiranos desiludidos. É ainda a mesma e nós não. Somos os mesmos e ela não será mais igual. Algo se decompôs, algo se dissolveu no coração da terra. Os lugares existem, as árvores, as mais belas, foram protegidas e derramam a sua sombra escura. Mas talvez entristecêssemos, ou perdêssemos de facto os olhos de ver, como diziam os antigos. Ou então tudo deve ser assim. Já nos pesa o espírito para o leve cargo do passado, certos quadros perdidos onde estavam ainda todos aqueles que amamos.»

Isto é Agustina. Não é uma página, milhares de páginas de Agustina, são iguais a esta página. Uma página destas muitos escritores podem escrever, mas milhares destas páginas?! Não conheço nenhum!

Transcrição do discurso do Professor Eduardo Lourenço

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Agustina ou a peste do imaginárioAnamaria Filizola1

Sinto-me honrada e feliz com o convite do Centro de Estudos Ibéricos para fazer o elogio de Agustina Bessa-Luís, distinguida com o prémio Eduardo Lourenço. Reúnem-se na Guarda, que tardei a visitar, dois grandes nomes da cultura portuguesa, e não por acaso. Quem conhece a fortuna crítica da nossa autora, sabe da expressividade que aí tem o trabalho de Eduardo Lourenço, seu leitor, crítico e admirador desde sempre.

Há dois anos, por ocasião dos noventa anos de Eduardo Lourenço apre-sentei, no Centro de Estudos Portugueses da Universidade Federal do Paraná, onde decorreu minha carreira de professora, o texto intitulado “Eduardo Lou-renço leitor de Agustina Bessa-Luís ou Minha cara Agustina”, cujo final é o seguinte:

Também eu me rendo – dizia eu – às imagens encantatórias de Eduardo Lourenço, associações enraizadas na lenda e no mito da mulher que se salva por astúcia de saber narrar e por levar um carrinho de linhas no bolso da túnica. E me pergunto se fui equilibrada na homenagem ao jovem e sempre entusiasmado nonagenário ou se fiz duas justiças na mesma balança... Como agustiniana professa, considero os ensaios laurentinos matrizes ba-silares de posteriores trabalhos de maior fôlego sobre essa autora que Lourenço compara a uma sarça ardente. Creio que os escritos de Lourenço são um acerto de contas: sem precisar arregaçar as mangas e erguer os punhos, ele deixa knock out com finura – e repito – entusiasmo, os que não leram Agustina como ele considera que ela deveria ser lida.

Devedora de seu pensamento sobre Agustina, e não só, passo ao elogio da nossa homenageada, que intitulo Agustina ou a peste do imaginário, e que abro com duas epígrafes:

Os romances são a história, não do que acontece numa vida, mas do que se evitou que acontecesse. Agustina Bessa-Luís, O romanesco em Camilo – A enjeitada. Colóquio Letras, 54, mar. 1981.

É uma tapeçaria, mas de um género especial, aberta. (…) Bessa--Luís vai tecendo com uma mão o que destece com a outra. Nada parece guiá-la, na aparência, senão uma fidelidade sonâmbula à vontade de desfiar por sua própria conta um fantástico rosário de “relações humanas”, tornadas em suas mãos como elementos de um puzzle variável ao infinito.” (Eduardo Lourenço, Des-con-certante Agustina. O Tempo e o Modo, 22, dez. 1964)

No seu Longos dias têm cem anos – Presença de Vieira da Silva, Agustina declara-se frustrada por Vieira não lhe ter narrado uma sua ida com cinco anos a Brighton, onde assistiu à representação de Sonho de uma noite de verão, de Shakespeare. Diz ela: “Maria Helena contou muitas vezes as suas impressões a respeito desse encontro com o teatro feérico, com a pintura, em suma. A mim não contou. Tenho que improvisar sobre os escombros da memória

1 Professora reformada de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Paraná, Brasil.

255Prémio Eduardo Lourenço

e tirar doçura dum leão morto, que é o tema repetido” (p. 20-21). Sinto-me um pouco assim, a “tirar doçura do leão morto, que é o tema repetido” – o elogio à romancista –, acrescido o facto de falar na sequência do Prof. Eduardo Lourenço... que falou de Agustina!

Não tenho dúvidas de que os aqui presentes reconhecem o acerto da atribuição deste prémio ibérico a Agustina. Limitar-me-ei, pois, a sublinhar, de maneira concisa e aleatória, algumas razões pelas quais Agustina é hoje galardoada como a grande dama da literatura ibérica de língua portuguesa.

Recordarei que Agustina, a comum dos mortais, não é objeto de uma unanimidade nacional. Felizmente para ela e para nós. Nunca foi escritora de regime nem estandarte de igreja, o que lhe permitiu ser grande sendo original. Fugiu à cartilha neorrealista e foi por isso ostracizada. Teve obras premiadas, mas se teve desde o início o talento reconhecido, não lhe bastaram os prémios para evitar a pecha de retrógrada ou reacionária. Todavia, se não agradava à esquerda, também não agradava à direita. Creio ser acertado afirmar que nunca se deixou intimidar pelo que era dito sobre sua obra. Obra de génio, mas de génio impertinente, até irregular. E as irregularidades foram muitas vezes apontadas. O título de um artigo de Eduardo Lourenço, “Des-concertante Agustina”, diz bem da convivência de “suas virtudes mais raras e dos seus defeitos mais visíveis” A partir dos anos oitenta, com os romances em que a História é dominante em maior ou menor grau, sem deixar de ser des-concertante – e lembro O mosteiro ou As adivinhas de Pedro e Inês - podemos afirmar que cresce ou torna-se mais evidente uma cumplicidade com o público. “Sou profundamente cúmplice da sociedade portuguesa, cúmplice das pessoas (…) na medida em que as entendo e faço parte delas”, declara numa entrevista.

Mundo mundo vasto mundose eu me chamasse Raimundoseria uma rima, não seria uma solução

diz o poema de Carlos Drummond de Andrade. Pois o vasto mundo cabe todo na prosa de Agustina. Todos os seres são dignos de sua atenção. Mesmo os animais comparecem com suas personalidades e comportamentos, como o caniche que tinha um riso homérico...

As pessoas, começando pelas mais próximas, são personagens em po-tencial: “(Meu Pai) tinha um feitio de pura ficção porque era gentil, sen-timental, cheio de chiste e perigoso.” Cita uma carta de Vieira da Silva que confirma o que digo: “A Agustina, com a sua imaginação, poderá descobrir, inventar, melhor do que eu até possa dizer, aquela que eu sou” – escreveu Maria Helena. “Com os restos daquela que eu não sou, ainda pode criar a irmã que não tive.” Há muitas outras passagens que poderiam ser citadas. Imagino que desde sempre tenha sido assim. Agustina nunca contou quando teve consciência disso, mas ao escrever Mundo fechado (1948), seu primeiro romance, acredito que tenha feito um esforço para separar o mundo de Pedro, o protagonista, do seu. Estão lá umas tias que vivem no campo, está lá um rapaz a recuperar a saúde, a desejar a vida da cidade, tudo a evocar o Henrique de Souselas da Morgadinha dos Canaviais, do Júlio Dinis, mas com outro fôlego. A sibila (1954) já traz a metamorfose da ficção, e eis a família do pai retratada. Em seguida virá a da mãe, em Os incuráveis (1956), que voltará nas Memórias laurentinas (1996), e não esqueçamos de As pessoas felizes (1975), romance com muitos elementos autobiográficos. N´O livro de Agustina (2000) virão as fotos de família, legendadas e comentadas com luxo de detalhes. O enigma da origem metamorfoseada em ficção será a sua originalidade. Todos e todas são personagens, inclusive ela própria, representada ficcionalmente, como em Germa ou Maria, e nos textos assumidamente autobiográficos. Todavia, o discurso autobiográfico ou da genealogia familiar em Agustina não se confundem com a autoficção em que o autor se compraz em olhar para a sua própria alma, ou seja, para o seu próprio umbigo. A operação agustiniana é mais complexa, pois não se esgota no comprazimento narcísico nem num saudosismo de anos dourados, nem na comiseração de anos cinzentos. Se o real comparece,

256Prémio Eduardo Lourenço

e comparece sempre, é porque é a vida, com dias de chuva a seguir aos dias de sol. O “mundo mundo vasto mundo” é um vasto texto, sempre dado a ler e a ser reescrito, sempre aberto a interpretações, inacabado, pronto a ser retomado. A vida é o que conta e o que se conta. A singularidade de Agustina se faz presente nas obras não ficcionais, cujas ideias nos surpreendem sempre, pois a nossa autora não se prestaria a escrever fosse o que fosse para repetir o já dito. Pode dizer o improvável: pitonisa do verbo, não dirá o esperado.

“Ella misma es la sibila”, disse Carmen Martín Gaite em Tirando del hilo (2006) que vê, no romance homónimo, uma história “que enlaza con la epopeya rural, con el tema de las mujeres aparentemente sometidas pero indomables da raza galaico-portuguesa, con lo mágico, lo intemporal y lo sagrado.” É esse parentesco que faz da autora de Os incuráveis uma escritora ibérica, com raízes nas literaturas peninsulares que, do Amadis ao Lazarillo e a Cervantes, e de Camilo a Valle-Inclán e à própria Martín Gaite, a quem de novo recorro, se caracterizam pela “exuberancia de evocaciones, turbulenta e indisciplinada, de una aportanción de versiones orales hechas por personajes tan de carne y hueso como simbólicos”. Se a geografia literária de Agustina é ibérica, é-o privilegiadamente através do mais ibérico dos rios portugueses, o Douro, que “cruza el corazón de roble /de Iberia y de Castilla” (Antonio Machado). O Douro, escreve Agustina em Fanny Owen, “ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorgeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e à beira de água lavam os pés e os pecados.” Através da ficção agustiniana, na linhagem de Camilo, e frequentemente com a cumplicidade de Manuel de Oliveira, o rio adquire o estatuto literário de que o Tejo e o Mondego sempre se prevaleceram na lírica. As suas águas negras – lê-se em Vale Abrão –, parecem “conter uma pilha imensa de factos, precipitados ali com o ritual dos antigos povos que deixavam afundar-se nos lagos virgens e mancebos, e joias, e flores, não apenas como rito sacrificial, mas sobretudo como política de construir a memória.”

Oswald de Andrade, poeta modernista brasileiro, em seu livro de memórias Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe, conta que quando foi a Londres não viu Karl Marx, concisa afirmação metafórica que explica muitas de suas opções ideológicas e formais. Nas viagens que fez e que não fez, Agustina também não viu Marx; no entanto, sua memória viu Nietzsche e Freud. Não cabe aqui evocar Michel Foucault, mas, grosso modo, lembremos que os três pensadores constroem um paradigma epistemológico em que o que é dado a conhecer não revela a sua totalidade. Em última análise, a linguagem não diz o que diz, o que deixa para sempre o sujeito do discurso fraturado e esfíngico. Creio que ninguém aprendeu melhor essa lição do que Agustina, que freudianamente vai enfrentando as esfinges que se lhe aparecem sob diversas formas e nietzschenianamente pode afirmar que “só a morte da ilusão pacifica os homens”. É uma psicologia fina, impetuosa e aforística que, se agrada e convence a muitos, tem o dom de desagradar e irritar outros tantos. Mas é com esse método que não é metódico que Agustina produz seus textos ímpares, e com ele lê textos alheios e desconstrói lugares comuns que são repetidos sem cuidado. Assim, a partir dos sermões de Santo António pôde afirmar que a iconografia que lhe é atribuída, a saber, da aparição da Virgem com o Menino, não condiz com o seu pensamento, que Agustina considera pouco ou nada pueril. Outro bom exemplo é Camilo, que crê mais apaixonado pela própria escrita do que pelas muitas mulheres que frequentam a sua história de vida. Ou os medos infantis que estariam na causa das impetuosidades de D. Sebastião que põem a perder o reino. Ou a relação conflituosa e ambígua de António Nobre e Alberto de Oliveira, cuja separação levaria à tuberculose de Nobre, manifestada tardiamente, e não com a precocidade que alguns leem em seus versos. Se alguém exerce o direito ao livre pensamento, esse alguém é Agustina.

Para a escritora, a leitura é um biografema importante. A sua história pessoal está repleta de alusões a leituras da infância, da adolescência, vida a fora. Há a avó que mantinha um livro junto da costura e que muitas vezes chorava quando lia. Há a mãe, que lia pouco, o pai, que lia ainda menos, a biblioteca de um tio avô, que lhe proporciona o acesso aos clássicos da literatura universal. Nunca a leitura é desmerecida ou apontada como causa de atos alienados

257Prémio Eduardo Lourenço

ou irresponsáveis, como faz Flaubert com Ema Bovary ou Eça com a Luizinha. “Só nos livros eu encontrava companhia que não me obrigava a ceder,” nos conta a nossa autora. E a sua obra nos proporciona também a certeza de não termos que ceder ao fácil ou medíocre.

Paralelamente a este aspecto da sua história de vida, há imensas referências a autores de sua predileção, e a alguns dedicou ensaios primorosos. Detenho-me em duas passagens que cito:

Ler A Enjeitada e chorar é uma honra que já poucos têm. Compreender a obra de Camilo depende muito de uma experiência fatal, não exactamente empírica, e que nos marca para as coisas extremas da existência: as paixões, afirma no ensaio “O romanesco em Camilo – A Enjeitada”.

E afirma também, em “Dostoievski e a peste emocional”:Não sei se hoje, uma grande corrente da juventude compreenderá Dostoievski. Ela

começa a distanciar-se do processo mental que resulta num preconceito, e a natureza, mais ou menos destruidora do pestiferado emocional, é-lhe estranha.

Essas observações, escritas sem ressentimento de qualquer ordem nos anos oitenta, redundam no que vai declarar numa entrevista a Carlos Vaz Marques em 2003, quando afirma, igualmente sem ressentimento rançoso, o triunfo da contracultura. Diz então:

(…) (a contracultura) Triunfou na medida em que hoje ninguém está obrigado a ler os grandes livros. Ninguém tem muitas razões para lê-los e pode dizê-lo muito claramente.

(…) Já não é uma falta não ter lido os gregos. Mas haverá sempre quem os leia.Pergunto-me, com certa melancolia, se algum dia – em breve – iremos dizer como ela

disse da literatura de Dostoievski, que muito da obra de Agustina será lida “como uma esfumaçada cena de fundo”, e acrescento, com os loucos de família, sibilas da província, mulheres a carregar consigo o caixão do marido morto, tias a fiarem a roca...uma literatura contaminada pela peste do imaginário de um povo, de uma época, de um país, de um mundo. Não que esse mundo arcaico deixe de ter sentido, o grande público é que não busca a literatura que proporciona “esse extraordinário prazer ao ler um verso espantoso e ao saber o que é preciso para chegar a esse estado poético”, como ela diz. O mundo do fuso e da roca existe sempre em algum lugar, mesmo proibido. E o fuso pode mesmo picar o dedo de quem lhe ignora o uso, como ensina a história da Bela Adormecida.

Leitores de um tempo sombrio, em que inexistem critérios de valor, capacidade e coragem de exercício da crítica, podemos festejar a presença de Agustina e sua obra, a que podemos chamar de “presépio aberto”, epíteto que usou para elogiar o Kafka que se revela em quatro cartas escritas à irmã.

Dando uma vez mais a palavra à homenageada, termino reenviando à sua própria imagem, refletida no espelho que é Maria Helena Vieira da Silva. Ambas foram intelectual e artisticamente, uma para a outra, a irmã que nenhuma delas teve. Cito de Longos dias têm cem anos:

Uma vida longa não se descreve, ninguém a vê passar. Não é como uma carruagem que rola numa estrada, ou um astro fixo no céu. Está na pessoa, é o calor, o frio, os seus efeitos. A vida é o efeito duma animação interminável, e a arte é a maneira de exprimir a vida despojando-a dos costumes.

É nessa animação interminável que reside a singularidade e a perenidade da obra de Agustina.

Intervenção da Professora Anamaria Filizola, na Sessão de Entrega do Prémio Eduardo Lourenço 2015

258Prémio Eduardo Lourenço

É uma honra para minha mãe receber o Prémio Eduardo Lourenço 2015 atribuído pelo Centro de Estudos Ibéricos que tem como fundadores três entidades seculares de enorme prestígio social e cultural – a cidade da Guarda com carta foral de 1199 e as Universidades de Coimbra e Salamanca, as mais antigas de Portugal e Espanha – e que tem como seu diretor Vitalício o senhor professor Eduardo Lourenço, pensador admirado e escutado por minha Mãe a que acresce uma amizade sólida.

O peso institucional do Centro de Estudos Ibéricos; o prestígio de todos os anteriores galardoados, e a composição do Júri, muito acentuam a honra agora conferida por V. Exas.

Ao Instituto Camões agradeço ter apresentado a candidatura de minha Mãe a este prémio, proposta que sei ter sido subscrita por individualidades e instituições de prestígio. A todos agradeço a amizade.

Não posso deixar de realçar a importância deste Prémio que tem como patrono o professor Eduardo Lourenço é, podem crer, um facto que muito a sensibiliza pelo simbolismo que representa.

Deixar-me-á o senhor professor que leia parte de uma carta que Agustina lhe escreveu em 7 de Outubro de 1968 em que trata do primeiro encontro, de meus pais com o senhor e sua mulher, encontro que teve lugar em Nice.

Lendo:«Muito obrigado pela vossa companhia, diz o Alberto e eu. Gostei de o co-nhecer e

acho que foi o começo de uma amizade longa e equilibrada para além das afinidades. Sou reservada e você é pouco pródigo da sua simpatia. Mas a generosidade mais profunda nasce da compreensão mais imediata de que «c’était lui c’était moi» como dizia Montaigne a respeito do seu maior amigo.»

E de facto, desde então, começou uma amizade de meio século cheia de afinidades e de coincidências.

Tive a sorte de ter podido ouvir a sua entrevista à televisão Portuguesa no passado dia 10 de Junho em que se celebra o poeta maior, Camões.

Revelou então:Na minha infância vivi numa casa de mulheres, rodeado de tias solteiras, numa aldeia

coletiva como se fosse uma tribo.Uma coincidência de infâncias.Também minha Mãe cresceu na “casa do paço” no meio de tias solteiras entre as quais

a celebrizada no livro Sibila.A sabedoria de ambos começou a ser adquirida no seio da tribo familiar, escutando e

discernindo estórias e aforismos que marcam o caracter de ambos, os seus itinerários de vida.

Agradeço-lhe Senhor Professor a excelência da sua amizade e atenção que nos seus escritos e no seu ensinar sempre mereceu a Obra Literária de minha Mãe.

A todos que aqui quiseram estar presentes nesta homenagem o reconhe-cimento de minha Mãe.

1- Filha de Agustina Bessa-Luís

Mónica Baldaque1

259Prémio Eduardo Lourenço

Jorge Barreto Xavier Secretário de Estado da Cultura

Num momento em que se entrega este honroso Prémio a tão grande pessoa, dizer que a Guarda, através da constituição e desenvolvimento do Centro de Estudos Ibéricos, criou, aqui, uma raiz muito relevante ao seu desenvolvimento. Faz bem, Sr. Presidente da Câmara, em continuar e afirmar o papel desta Instituição no contexto daquilo que é a projeção do Município, da Cidade, da Região. De facto a Guarda, face ao seu desenvolvimento, tem que encontrar estratégias que não são evidentes no contexto de um Portugal depauperado de pessoas, temos uma população envelhecida, temos poucos nascimentos, enfrentámos, nos últimos anos, anos difíceis, a Europa vive situações mais sujeita a questões do que a respos-tas… às vezes é bom ter questões, mas há questões e questões. Não é fácil, por isso, a pers-petiva do desenvolvimento. Assim, queria dizer que o lugar da Cultura, que sempre defendi como sendo um lugar essencial na centralidade do desenvolvimento, é, certamente, o lugar em que estamos aqui hoje, é um lugar físico e é um lugar metafórico, é um lugar institucional e um lugar simbólico, no qual temos a possibilidade e a capacidade de, efetivamente, cons-truir dependentes essencialmente de nós próprios. Há coisas nas quais dependemos muito dos outros para construir há outra que dependemos essencialmente de nós. De facto, quan-do falamos do lugar da Cultura dependemos essencialmente de nós, por isso, o trabalho que aqui está em causa, a projeção que aqui está em causa tem como protagonistas todos aqueles que se queiram associar a esse protagonismo, que é um exercício de cidadania.

O Centro de Estudos Ibéricos é, por isso, uma plataforma que pode, de algum modo, constituir um desafio para a Guarda e uma porta relacional de grande relevância no contexto da Ibéria. Esta Ibéria que já foi vista como uma ameaça, esta Ibéria que hoje é uma Ibéria de nacionalidades, mas que sendo uma Ibéria de nacionalidades não se sobrepõe nem, neces-sariamente, subjuga às suas nacionalidades, ou seja, o contexto de uma constituição de uma Ibéria mais forte, não é, necessariamente, um contexto de fragilização identitária, por isso, o contributo que o Centro de Estudos Ibéricos pode dar numa ótica de desenvolvimento é de grande relevância e será também percebermos que a circunstância Portuguesa, Espanhola e Europeia bem justificam esta sedimentação do trabalho relacional da nossa Península.

Eduardo Lourenço, eu poderia dizer: “Caro Eduardo Lourenço, querido mestre”, mas também poderia dizer: “Querido Eduardo Lourenço, caro mestre”, mas julgo que neste caso as adjetivações são intermutáveis, com toda a propriedade, porque o amor ao intelectual e o afeto à pessoa fazem todo o sentido. No caso de Eduardo Lourenço dificilmente dissociamos o homem e do intelectual, porque, de facto, ele nos ensina um exercício de Humanismo que é um exercício raro, porque, muitas vezes, os intelectuais não são os homens e os homens não são os intelectuais. Por vezes há uma dissociação grande no exercício da afirmação do conceito e da palavra e no exercício específico daquilo que possa ser a pessoa na sua vida privada, no seu quotidiano. Não

é assim com Eduardo Lourenço, que é uma pessoa inteira e é, certamente, das coisas mais relevantes que podemos dizer sobre cada um de nós é se temos ou não a capacidade de sermos inteiros. Eu invocaria, já foi invocado, na carta que foi lida da Agustina, foi invocado Montaigne que, de alguma maneira, certamente um amigo de Eduardo Lourenço e invocava Montaigne para invocar as discussões que no seu círculo de amigos se faziam sobre os con-

260Prémio Eduardo Lourenço

ceitos de liberdade, igualdade e fraternidade. Discussões que se faziam, muitas vezes, num debate sobre o Humanismo Cristão. Esse debate de anunciação dos conceitos de igualdade, liberdade, fraternidade bem sabemos que tiveram um papel muito relevante na afirmação da Revolução Francesa e que foram, depois, muito relevantes na afirmação de um Humanismo ateu. A verdade é que são conceitos que ficaram muito associados a um modelo do exercício da vida cívica e política e é um modelo de referencial para a constituição política da Europa: a liberdade, a igualdade, a fraternidade. Eu queria dizer que isto são elementos constitutivos da pessoa que é Eduardo Lourenço ele, em muitas coisas, simboliza exatamente isso para lá de um paradigma de um humanismo Cristão ou humanismo ateu numa perspetiva que é essencialmente o ser humano inteiro e, por isso, digamos associar o seu nome a este Centro, associá-lo como a figura de referência para este Prémio, ao Centro de Estudos Ibéricos uma perspetiva que, obviamente, assim se abre para um humanismo e uma projeção territorial, simbólica e política, digo política no bom sentido da palavra porque, de facto, a “questão da política”, muitas vezes, é manchada por aquilo que é a “pequena política”. Mas a “grande política” é, essencialmente, a construção da polis que é aquilo a que todos nos obriga en-quanto cidadãos. Por isso, e, finalmente, o Prémio Eduardo Lourenço, quando chega por via desta Ibéria, que se constitui neste Centro, a Agustina, chega de uma forma, que já foi refe-rida por Anamaria Filizola, que refere a Agustina como quando fala de Marx, Nietzsche ou Freud, na perspetiva dos universos inacabados ou da impossibilidade dessa completude. Eu, apesar de tudo, e seguindo o que o Prof. Eduardo Lourenço estava a dizer, gostaria de referir que, curiosamente, há este problema no texto de Agustina que é a sólida qualidade literária para lá da página. Quero com isto eu dizer que a permanência de um algoritmo de qualidade no texto agostiniano nos leva a dizer que há uma completude e por essa via um universo em cada página e isso é, de facto, extraordinário. Realmente, também tinha procurado um texto para falar de Agustina, queria procurá-lo em casa, mas depois saí a correr de casa e já não podia voltar atrás e tentei saber no gabinete se havia algum livro de Agustina que eu pudesse trazer e só havia este, que é um conjunto de textos que ela escreveu no Independente em 2001, 2002 no Folhetim “O Mistério da Légua da Póvoa” vocês lembram-se do Mistério da Estrada de Sintra e o Mistério da Légua da Póvoa é um folhetim que Agustina escreveu no In-dependente durante mais ou menos dois anos. Pensei em trazer um folhetim… Mas de facto eu nunca tinha lido com atenção o que aqui está e naquela lógica, de que os folhetins são coisas menores, porque a perspetiva da literatura do folhetim é de uma coisa “menor”, mas abre-se este texto e precisamente acontece aquilo que Eduardo Lourenço dizia. O exercício da consistência atenção absoluta de um génio de escrita no feminino com a identidade espe-cífica de Agustina está aqui. Não é por ser um folhetim que é menor é, extraordinariamente, grande no exercício literário e por

isso se não se importam também vou ler um pouquinho de Agustina, mas acho que se percebe como ela a partir do particular, rapidamente, passa para o geral e sem nos querer dar uma lição nos ensina muito sobre a vida, diz ela: “Eu aprendi a ler nos folhetins, antes de dar entrada na paróquia do ensino primário já eu conhecia os segredos do Vaticano e os seus tumultos chefiados por um César Bórgia. Sem falar da cor da Rainha Margot e as desventuras do Máscara de Ferro. O folhetim foi o meu mundo pós familiar em que todos os conflitos da personalidade são postos à prova. Conhecemos a inveja, a cobardia e o amor como se fossem azares e não razões. Eu creio que a presença do espírito perante a vida vem desse encontro com as peripécias que não nos atingem só nos alimentam a imaginação. Aprendemos a não nos desiludir, porque não aspiramos a ser protagonistas de nada deste mundo. Bastamo-nos com ser parceiros na história que por ser fingida nos dá a garantia de ser inofensiva. Passa-se com os outros e, portanto, temos a liberdade melhor de todas que é de acreditar que estamos a salvo de tudo o que sucedeu e sucederá.”

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CEIAtividades | 2015

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I. Ensino e Formação

XV Curso de VerãoIberismo e Lusofonia: Paisagens, Territórios e Diálogos Transfronteiriços

Teve lugar de 8 a 11 de julho, na Guarda, a décima quinta edição dos Cursos de Verão, iniciativa que o Centro de Estudos Ibéricos realiza desde 2001 e que é uma das imagens de marca do Centro.

O Curso de Verão ofereceu novamente uma oportunidade atrativa para o intercâmbio cultural e o conhecimento dos territórios ibéricos. Tendo a Raia Central de Portugal e Espa-nha como pano de fundo, a XV Edição do Curso de Verão foi subordinada ao título genérico “Iberismo e Lusofonia: Paisagens, Territórios e Diálogos Transfronteiriços”. Os quatro dias de reflexão e debate duma realidade tão ampla e complexa, permitiram revistar êxitos e fracassos de duas décadas de cooperação transfronteiriça a partir das seguintes coordenadas temáticas que estruturaram o Curso:

. Paisagens, patrimónios e a valorização dos recursos do território;

. Desequilíbrios socioeconómicos e coesão territorial;

. Cooperação territorial e esbatimento de fronteiras;

. Outras fronteiras: intercâmbios de saberes e novos diálogos territoriais.

O debate destes temas foi complementado com visitas de estudo cujo trabalho de cam-po se integra nas Rotas Ibéricas organizadas segundo o lema: “andar, ver e conhecer”.

À semelhança de edições anteriores, o Curso foi creditado pela Universidade de Sala-manca com 32 horas e fez parte da oferta de Cursos de Verão daquela Universidade.

8 de Julho

Painel I. Paisagens, patrimónios e a valorização dos recursos do território

Moderação e Apresentação: Lúcio Cunha (Univ. Coimbra); M. Isabel Martín Jiménez (Univ. Salamanca)

. Paisaje y recursos naturales - Alipio García de Celis (Univ. Valladolid)

. A paisagem do cimo-Côa - revisitar o passado para compreender o presente?- Adélia Nunes (Univ.

Coimbra)

. Território e territorialidades na Chapada das Mesas no Maranhão/Brasil: entre tradição e moderni-

dade - Maria Lídia Bueno Fernandes (Univ. Brasília)

. Paisagem e Lugar: a relação homem-ambiente nas comunidades da porção norte do Parque Nacional

dos Lençóis Maranhenses, Maranhão-Brasil - Ulisses Denache Vieira Souza (Universidade Federal do Maranhão)

. Paisajes simbólicos en el occidente salmantino (comarcas de El Abadengo y La Ribera). Definición,

análisis y puesta en valor - Pedro J. Cruz

. De Braga a Astorga – Paisagens De Um Itinerário Peripatético Pela Via Antiqua – Daniel Vale

. Alminhas e cruzeiros do concelho do Sabugal: análise e compreensão do fenómeno através das

ferramentas SIG - Jorge Torres e Marcos Osório

. A Companhia de Diamantes de Angola (DIAMANG): Entre a Prospeção Mineira e a Exploração Indí-

264CEI Actividades | 2015

gena - Vanessa Pereira

. Os itinerários enquanto estratégias de animação territorial - Emanuel de Castro, Ana Lopes e Joana

Amaral (Instituto Politécnico da Guarda)

Painel II. Desequilíbrios socioeconómicos e coesão territorial

Moderação e Apresentação: Pedro Hespanha (Univ. Coimbra); Jerónimo Jablonski (Univ. Salamanca)

. Políticas territoriales y cohesión social - Fernando Manero (Univ. Valladolid)

. O turismo em Portugal: dinâmicas territoriais, coesão e competitividade - Claudete Moreira (Univ.

Coimbra)

. A Geodiversidade como patrimônio Turístico do Estado do Maranhão-Brasil: a singularidade dos

cenários naturais - Antonio Cordeiro Feitosa (Univ.Federall Maranhão)

. Participação das Comunidades na gestão do Património Mundial: o caso de Foz Côa/Siega Verde -

José Paulo Francisco

. As Tapeçarias Pastrana - Guillermo Rocafort Pérez e Paulo José Serra Gonçalves

. Comunidades e territórios de montanha: lugar, identidade, representações - Giampietro Mazza

. Narrativas (geográficas) da crise: o desemprego em áreas de baixa densidade - Ana Maria Cortez Vaz;

João Luís J. Fernandes

. A “Raia Seca”: Território Agrário Singular - Miguel Ángel Reimundez González

Evocação de António Gama. Conferência

Geografia, viagem, memória: para uma inclusão dos territórios olvidados - Valentín Cabero Diéguez

(Univ. Salamanca); Rui Jacinto (Univ. Coimbra)

Lançamento do Livro da Coleção Iberografias nº 30

“Espaços de fronteira, territórios de esperança: paisagens e patrimónios, permanências e mobilida-

des”

9 de julho

Trabalho de campo. Rota Ibérica: I. Paisagens e patrimónios fronteiriços

Roteiro: Guarda – (Ciudad Rodrigo – La Fuente de San Esteban – Vitigudino) – Barragem de Almendra – Fariza

– Fermoselle – Barragem de Bemposta – Mogadouro – Guarda

Coordenação: Rui Jacinto (Univ. Coimbra); Valentín Cabero Diéguez (Univ. Salamanca); José Ignacio Izquierdo

(Univ. Salamanca)

10 de Julho

Painel III. Cooperação territorial e esbatimento de fronteiras

Moderação e Apresentação: Valentín Cabero Diéguez (Univ. Salamanca); António Pedro Pita (Univ. Coimbra)

. Las experiencias de cooperación transfronteriza en el Sur Ibérico: el Algarve-Andalucía - Juan Antonio

Márquez (Univ. Huelva)

. Acessibilidade e integração territorial no eixo Aveiro-Vilar Formoso (R. Centro, Portugal) - Rui Ferreira

(Univ. Coimbra)

. Territórios especialmente vulneráveis e seu ordenamento: as especificidades das cidades gêmeas

entre Brasil e Uruguai - José Luiz de Moura Filho (Univ. Federal de Santa Maria)

. As relações artísticas transfronteiriças no século XVI e XVII: o contributo da ourivesaria religiosa na

geografia diocesana de Bragança-Miranda - Nuno Grancho

. Pontes de Palavras, um Rio que Une - Pedro Tavares e José Rua (Poetas do Guadiana)

. A ponte transnacional para um acesso igualitário aos serviços de saúde: discrepâncias na fronteira

entre a Beira Interior (Portugal) e a Província de Salamanca (Espanha) - Joaquim Patriarca

. Como o geográfico, o geológico e o ambiental surgem na determinação da componente linguística

e musical da romaria da Sr.ª do Almurtão em duas regiões distintas da Raia portuguesa: a Beira Alta e a

Beira Baixa - Helena Santana e Rosário Santana

. Últimas contribuciones medioambientales de los Tribunales de Cuentas - Antonio Arias

Painel IV. Outras fronteiras: intercâmbios de saberes e novos diálogos territoriais

Moderação e Apresentação: Rui Jacinto (Univ. Coimbra); José Ignacio Izquierdo (Univ. Salamanca)

. Experiencias internacionales: El apertura de la frontera: ¿nuevas identidades transfronterizas? - Jan

Mansvelt Beck (Univ. Ámsterdam)

265Ensino e Formação

. As paisagens do documentário. Uma visão sobre a geografia dos espaços rurais portugueses - Fátima

Velez de Castro (Univ. Coimbra)

. A experiência de lugar na literatura portuguesa contemporânea: uma leitura de Mário de Carvalho

- Márcia Manir Miguel Feitosa (Universidade Federal do Maranhão)

. A homogeneização da paisagem como determinação da lógica de monopolização do território

(Espanha e São Paulo - Brasil) - José Gilberto de Souza (UNESP - Rio Claro)

. As paisagens e a valorização dos recursos territoriais em comunidades tradicionais na zona costeira

amazônica - Márcia Aparecida da Silva Pimentel (Univ. Federal do Pará – UFPA)

. Uma história política da geografia: Camille Vallaux e as outras tendências da geografia francesa

(1899 - 1921) - Willian Morais Antunes de Sousa

. El asalto a la Embajada de España en Lisboa del 27 de septiembre de 1975 y sus consecuencias para

las relaciones ibéricas - José Luis Del Riego Santos

. Viver no limite: das fronteiras políticas e econômicas aos territórios favelados no Brasil - Rogério

Hasbaert (Univ. Federal Fluminense)

11 de julho

Trabalho de campo. Rota Ibérica II: Paisagens e patrimónios fronteiriços

Roteiro: Guarda – Sabugal – Sortelha - Belmonte – Covilhã - Fundão - Portela da Gardunha - Castelo Novo –

Guarda

Coordenação: Valentín Cabero Diéguez (Univ. Salamanca); Rui Jacinto (Univ. Coimbra)

266CEI Actividades | 2015

Ciclo de Conferências “Saúde sem Fronteiras”

Teve início no dia 14 de maio o 11º Ciclo de Con-ferências “Saúde sem Fronteiras” uma iniciativa que se realiza desde 2004 e que visa o debate e intercâmbio de experiências na área da Saúde. Coordenado cientifica-mente pelas Faculdades de Medicina das Universidades de Coimbra e de Salamanca, o Ciclo conta com a cola-boração da Ordem dos Médicos, da Ordem dos Enfer-meiros, da Unidade Local de Saúde da Guarda, Escola Superior de Saúde da Guarda e Liga Portuguesa contra o Cancro – Núcleo Regional do Centro.

As conferências do Ciclo foram as seguintes

14 de maio - “Termalismo e Saúde”Comunicações: Prof. Doutor Manuel Santos Rosa

- Instituto de Imunologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; Prof. Dr. Carlos Moreno Pas-cual - Departamento de Enfermería y Fisioterapia - Es-cuela de Enfermería y Fisioterapia de la Universidad de Salamanca; Dr. António Jorge Santos Silva - Sociedade Portuguesa de Hidrologia e Membro da Comissão de Competência de Hidrologia da Ordem dos Médicos; e Prof. Doutor Maximia-no Ribeiro, Prof.ª Doutora Paula Coutinho, Prof. Doutor André Araújo, Fábio Nunes (Estudan-te de Farmácia) - Escola Superior de Saúde – Instituto Politécnico da Guarda

18 de junho - “Evolução da saúde materna e perinatal em Portugal e em Espa-nha”

Comunicações: Prof. Dra. Pilar García González - Departamento de Ciencias Biomédicas y del Diagnóstico. Área de Pediatría. Facultad de Medicina. Universidad de Salamanca; Prof. Doutor José Paulo Moura - Serviço de Obstetrícia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE Maternidade Daniel de Matos; e Dr.ª Cremilda Sousa, Dr.ª Rita Oliveira - Servi-ço de Obstetrícia e Pediatria do Hospital Sousa Martins – ULS Guarda, Conselho Distrital da Ordem dos Médicos.

17 de setembro - “Surdez - Da Criança ao Idoso”Comunicações:

15 de outubro - “Medicina Forense e Direitos Humanos” Comunicações: Prof. Doutor Duarte Nuno Vieira – Instituto de Medicina Legal da Facul-

dade de Medicina da Universidade de Coimbra; Prof. Dr. Juan Salva Puig - Departamento de Ciencias Biomédicas y del Diagnóstico. Área de Medicina Legal y Forense. Facultad de Me-dicina. Universidad de Salamanca; Dr. José Valbom - Gabinete Médico-legal da Beira Interior - Núcleo da Guarda e Conselho Distrital da Guarda da Ordem dos Médicos; e Professores - Ermelinda Marques, Agostinha Corte, Maria Hermínia Barbosa, Luís Videira, António Batista, Paulo Tavares, Maria João Nunes - Escola Superior de Saúde da Guarda- IPG.

19 de novembro - “Saúde Oral Infantil” Comunicações: Prof. Dra. Mª Victoria Rascón Trincado - Departamento de Ciencias Bio-

médicas y del Diagnóstico. Área de Pediatría, Facultad de Medicina de la Universidad de Sala-manca; Prof. Doutora Ana Luísa Costa – Faculdade de Medicina - Universidade de Coimbra; Enf.ª Maria Manuela Afonso Povoa Giro - USP do ACES Aveiro Norte; e Dr. Luís Bismark - In-terno da especialidade de Medicina Geral e Familiar na USF A Ribeirinha Guarda.

267

II. Investigação

Apoios a Trabalhos de Investigação No âmbito do Projecto Territórios, Sociedades e Culturas em tempo de mudança, reali-

zou-se no dia 20 de junho de 2015, na Guarda, o Seminário Territórios, Sociedades e Cultu-ras em Tempos de Mudança.

O Seminário teve por objectivo promover a apresentação dos trabalhos resultantes dos

Apoios a Trabalhos de Investigação atribuídos em 2014, criando um espaço de debate, aber-to a investigadores que estão a realizar trabalhos sobre os referidos temas, que constituem problemáticas pertinentes para a definição duma nova agenda da coesão económica, social e territorial.

O programa contou com as seguintes comunicações:- Abertura: Victor Amaral (CM Guarda); Rui Jacinto (Universidade de Coimbra); Valentín Cabero (Universidade

de Salamanca)

Paisagens, Patrimónios e Valorização dos Recursos Naturais

Moderação: Lúcio Cunha (Universidade de Coimbra) e Ignacio Izquierdo (Universidade de Salamanca)

Comunicações:

. Práticas e saberes tradicionais na transformação do trigo: um estudo comparativo nos concelhos de

Vinhais, Hermisende e A Mezquita - Ivett Kereszt

. Caminhos da Cal e do Barro, uma Rota Cultural para o Barrocal Algarvio - Susana Cristina Calado

Martins

. A Questão Social na Mina de S. Domingos - Subsídios Para Uma Reflexão - Vanessa Alexandra Alvorado

Teixeira Pereira

Paisagens, Patrimónios e Valorização dos Recursos Culturais

Moderação: Fernanda Cravidão (Universidade de Coimbra); Maria Helena Cruz Coelho (Universidade de Coim-

bra); M. Isabel Martín Jiménez (Univ. Salamanca)

Comunicações:

. O Chão e o Verbo. O diagnóstico da pátria ibérica em Miguel Torga - Tiago Bruno Borges Rodrigues

Mesquita Carvalho

. O aproveitamento turístico da Via Romana XVIII (Via Nova) como possível vetor de desenvolvimento

socioeconómico dos municípios de Terras de Bouro e Lóbios - Maria Inês Gusman Correia de Araújo Barbosa

. Tradições de boas-vindas aos emigrantes portugueses - Patrícia João Gomes Esteves

268

. Disponibilidade léxica na Raia - Elena Gamazo Carretero

Dinâmicas e Processos de Reestruturação e Cooperação Territorial

Moderação: Rui Jacinto (Universidade de Coimbra); Valentín Cabero (Universidade de Salamanca)

Comunicações:

. Guarda: Cidade e Projecto - Cátia Sofia Viana Ramos

. Propostas de Regeneração da Atividade Comercial no Atual Cenário de Crise - Eva Sofia Loureiro de

Gouveia Lemos Belo

. Estratégias Regionais de Especialização Inteligente: Oportunidades de Reestruturação, Desenvolvi-

mento e Cooperação Territorial no contexto das regiões Ibéricas - Ricardo Filipe Ferreira Moutinho

Seminário (Re)Encontro em tempo de (Des)Encontros - Os Países de LínguaPortuguesa e suas Novas Geografias

Os Países de Língua Portuguesa (PLP), dispersos por diferentes continentes, apresentam grande variedade de contextos naturais, económicos, sociais, culturais e políticos, resultante das respetivas localizações, dos processos históricos e de integração regional na América do Sul, África e Europa. Esta comunidade, que se reparte por uma geografia diversa, rica e complexa, engloba cerca de 280 milhões de pessoas que fazem do português a língua mais falada no hemisfério sul e a quinta do mundo. Aliando estes aspetos a uma posição (geo)estratégica global privilegiada configura-se um quadro de múltiplas oportunidades que, num momento de crise e incerteza como o que atravessamos, não podem ser negligenciadas.

No ano em que se comemoraram 40 anos de independência dos vários países africanos que partilham a língua portuguesa, o CEI respondeu ao repto lançado pela Universidade de Coimbra para promover no decurso da XVII Cultural Cultural o evento (Re)Encontro em tem-po de (Des)Encontros: os Países de Língua Portuguesa e suas Novas Geografias. Esta iniciativa que tem por objetivo central aprofundar o diálogo entre a comunidade científica dos diferen-tes Países de Língua Portuguesa, analisando comparativamente as suas diferentes geografias a partir duma tripla perspetiva: i) diálogo intergeracional, proporcionando o debate entre diferentes gerações de geógrafos; ii) diálogo interdisciplinar, facultando a troca de pontos de vista dos geógrafos com investigadores de outras áreas do saber; iii) diálogo prospetivo, discutindo as tendências que que geografias emergentes nos PLP começam a desenhar, as trajetórias de futuro que a investigação está a trilhar.

Importa ainda, mais do que nunca, reavaliar a importância que a geografia sempre desempenhou na promoção da cultura territorial, o papel fulcral que o conhecimento das dinâmicas territoriais assume em qualquer estratégia sólida de cooperação entre pessoas, instituições e territórios dos diferentes países.

CEI Actividades | 2015

269

III. Eventos e Iniciativas de Cooperação

Prémio Eduardo Lourenço 2015: Sessão de Entrega a Agustina Bessa-Luís A sessão solene de entrega do galardão a Agustina Bessa-Luís teve lugar, na Guarda, no

dia 3 de julho de 2015, presidida pelo Presidente da Câmara Municipal da Guarda, Álva-ro dos Santos Amaro, e com a presença do Secretário de Estado da Cultura, Jorge Bar-reto Xavier, e do mentor e Diretor honorífico do CEI, Eduardo Lourenço. Estiveram tam-bém presentes o Reitor da Universidade de Coimbra, João Gabriel Silva, e a Secretária Geral da Universidade de Salamanca, María Luisa Martín Calvo, entre outras individualidades.

O Prémio anual, que tem o nome do ensaísta Eduardo Lourenço, mentor e Diretor hono-rífico do CEI, destina-se a galardoar personalidades ou instituições com intervenção relevante no âmbito da cultura e cooperação ibéricas.

O Júri decidiu atribuir o Prémio a Agustina Bessa-Luís em reconhecimento da sua grande projeção nacional e internacional, expoente máximo da cultura portuguesa e ibérica, e valo-rizou na sua obra a profunda consonância com a grande tradição cultural ibérica, capaz de integrar e compreender Cervantes e Fernão Mendes Pinto, Nuno Gonçalves e Vélasquez.

Para além do Vereador da Educação, Cultura e Turismo da Câmara da Guarda, o júri que decidiu a atribuição do Prémio Eduardo Lourenço 2015, era formado por João Gabriel Silva, Reitor da Universidade de Coimbra, María Ángeles Serrano, Vice-Reitora da Universidade de Salamanca, Valentín Cabero e Fernando Rodríguez de la Flor, professores da Universidade de Salamanca, Manuel Santos Rosa e Pedro Pita, professores da Universidade de Coimbra, e por mais três personalida-des convidadas: Santos Justo e Pedro Bingre do Amaral (in-dicados pela Universidade de Coimbra) e José Luis Puerto (indicado pela Universidade de Salamanca).

270CEI Actividades | 2015

Exposição “Agustina Bessa-Luís - Vida e obra”A propósito da Entrega do Prémio Eduardo Lourenço a Agustina Bessa-Luís, esteve pa-

tente de 3 de julho a 31 de agosto, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, na Guarda, a Exposição “Agustina Bessa-Luís - Vida e obra”, cedida ao CEI pelo Instituto Camões. A mos-tra biobibliográfica, concebida por Inês Pedrosa e João Botelho com o apoio da Guimarães Editores, visou dar a conhecer esta figura referencial da literatura portuguesa.

“Nasci adulta e morrerei criança” - Agustina Bessa-LuísFoi exibido no dia 21 de julho, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, na Guarda, o

documentário “Agustina Bessa-Luís: nasci adulta e morrerei criança”.

“Agustina: o estado da arte”Realizou-se no dia 10 de julho, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, na Guarda, a

conferência “Agustina: o estado da arte”, por Maria do Carmo Mendes.

Homenagem ao Prof. António Gama Mendes No âmbito do XV Curso de Verão - Iberismo e Lusofonia: Paisagens, Territórios e Diálogos

Transfronteiriços, foi prestada Homenagem ao Prof. António Gama Mendes. Como escreveu Jorge Gaspar, António Gama era um homem: “Culto, dotado de uma

inesgotável curiosidade científica, crente numa Geografia grandiosa, mas sem um perímetro bem delimitado. (…) Esta é a memória que guardo de António Gama, um académico utó-pico que sonhava com um estudo geral aberto às gentes e aos territórios, livre de correrias, burocracias e carreiras.”

Rui Jacinto, Fernanda Cravidão, António Campar de Almeida, Norberto Santos, Lúcio Cunha referiram-se a ele como “Heterodoxo inconformado, olhava com igual desconfiança a híper especialização acrítica que viu alastrar à sua volta, quase sempre tão redutora e estreita quanto as demais ortodoxias que, dogmaticamente, tentam impor um pensamento único ou confinar o conhecimento às estritas fronteiras disciplinares”.

Homenagem a Maria Luísa Ferro RibeiroNo âmbito do Seminário (Re)Encontros em tempo de (Des)Encontros - Os Países de Lín-

gua Portuguesa e suas Novas Geografias, realizado na FLUC, a 23 de abril, foi homenageada a Dr.ª Maria Luísa Ferro Ribeiro, primeira Geógrafa de Cabo Verde.

Debate “A pastorícia como fator de desenvolvimento sustentável”O CEI associou-se à Festa do Cobertor de Papa, em Maçaínhas, no dia 19 de setembro,

com o Debate “A pastorícia como fator de desenvolvimento sustentável”, que contou com comunicações de Valentín Cabero, Manuel Rodríguez Pascual, Luís Costa, Frederico Lucas e Miguel Gigante.

A Festa do Cobertor de Papa encerra o programa do Festival “Da Transumância ao Co-bertor de Papa”, uma iniciativa que se desdobrou em três momentos e em três localidades: Meios (“Tosquia e Gastronomia”), Fernão Joanes (“Festa da Transumância”) e Maçainhas, numa aposta de valorização de um dos recursos endógenos mais genuínos e diferenciadores desta região.

A ideia central foi divulgar o cobertor de papa e os atores envolvidos no seu ciclo produ-tivo. O programa da Festa contemplou animação, gastronomia, ateliers, espaço de debate, demonstrações etnográficas, desporto e venda de produtos.

271

Transversalidades 2015: Fotografia sem fronteiras. Territórios, Sociedades e Culturas em tempos de mudança

O projeto Transversalidades recorre à fotografia como meio para promover a cooperação territorial privilegiando-se as seguintes apostas: aproveitar o valor estético, documental e pedagógico da imagem para promover a inclusão dos territórios menos visíveis, inventariar recursos, valorizar paisagens, culturas e patrimónios locais; promover a cooperação entre pessoas, instituições e territórios, de aquém e além-fronteiras, formar novos públicos e usar as novas tecnologias de comunicação como meio privilegiado de comunicar.

O Júri da 4ª edição do Concurso, constituído por Rui Jacinto, Lúcio Cunha, Valentín Ca-bero, Henrique Cayatte, Gonçalo Rosa da Silva, Susana Paiva, Jorge Pena, Santiago Santos e Victorino García, reuniu nos dias 4 e 5 de setembro, na Guarda, tendo selecionado 20 fo-tografias premiadas entre mais de 1700 imagens submetidas por concorrentes de 12 países, onde relevam os de Portugal (219), Espanha (51), Brasil (50). As fotografias submetidas, que documentam a diversidade de Territórios, Sociedades e Culturas, foram selecionadas tendo em conta a qualidade e o valor estético das imagens, bem como a sua pertinência e adequa-ção aos temas do Concurso.

Os resultados foram os seguintes:. Melhor portfólio: Javier Arcenillas (Madrid, Espanha)

. Tema 1. Paisagens, biodiversidade e património natural Vencedor: Ary Attab Filho (São José do Rio Preto, Brasil)Menções honrosas: João Pedro Costa (Portimão, Portugal) Asier Gogortza (Bera -Pais Basco, Espanha)

. Tema 2. Espaços rurais: povoamento, atividades, modos de vida Vencedor: Susana Girón (Madrid, Espanha)Menções honrosas: Ricardo Miguel Couto Ferreira Catarro (Almeirim, Portugal) Rocío Garrido Martín (Huelva, Espanha) Nuno André Ferreira (Viseu, Portugal)

. Tema 3. Cidade e processos de urbanização Vencedor: António Alves Tedim (Maia, Portugal)Menções honrosas: António Carlos Pereira da Costa (Vila Nova de Gaia, Portugal) Jonathan Carvajal (Medellín, Colômbia) Miguel Louro Costa (Cascais, Portugal)

. Tema 4. Cultura e sociedade: diversidade cultural e social Vencedor: Tiago Lopes Fernández (Lisboa, Portugal)Menções honrosas: Arturo López Illana (Madrid, Espanha) José María Rubio Calonge (Castellón de la Plana, Espanha)

As fotografias premiadas e outras imagens que venham a ser selecionadas vão figurar num Catálogo e numa Exposição a realizar em novembro, na Guarda (Portugal).

O Concurso culminou, em novembro, com a inauguração de uma exposição e apresen-tação do catálogo que, para além das fotografias premiadas (melhor portfólio, vencedor de cada tema e menções honrosas) contou com outras imagens que completam uma cartogra-fia de lugares e pessoas dispersas no mapa e perdidos no tempo.

Investigação.

272

IV. Edições

Revista Iberografias n.º 11Este número da Revista Iberografias compila as comunicações proferidas no âmbito dos

Seminários “(Re)Encontros em tempo de (Des)Encontros - Os Países de Língua Portuguesa e suas Novas Geografias” e “Territórios, Sociedades e Culturas em Tempos de Mudança”.

À semelhança de anteriores edições, destaca-se o capítulo dedicado ao Prémio Eduardo Lourenço, atribuído em 2015 a Agustina Bessa-Luís, bem como uma pequena síntese dos premiados de edições anteriores.

Lugar ainda para o registo das atividades que o CEI realizou em 2015 e que marcam a vitalidade de um Centro que prossegue uma linha marcada pelo temática “Territórios e Culturas Ibéricas” e que se encontra cada vez mais aberto à cooperação e à colaboração institucional como forma de ultrapassar fronteiras e aproximar gentes e culturas.

Colecção IberografiasVolume n º 30 “Espaços de Fronteira,Territórios de Esperança: Paisagens e patrimónios,

permanências e mobilidades”Este número da Coleção Iberografias, apresentado em julho, coordenado por Rui Jacinto

e Valentín Cabero, reúne textos de vários autores escritos no âmbito do XIV Curso de Verão - Espaços de Fronteira, Territórios de Esperança: velhos problemas, novas soluções.

Catálogo “Transversalidades: Fotografia sem Fronteiras” – 2015O Catálogo Transversalidades reúne uma profusão de fotografias selecionadas que fo-

ram submetidas à 3ª edição do concurso com o mesmo nome, documentando a diversidade de Territórios, Sociedades e Culturas Ibéricas nas temáticas “Paisagens, biodiversidade e pa-trimónio natural”; “Espaços rurais, povoamento e processos migratórios”, “Cidade e proces-sos de urbanização” e “Cultura e sociedade: diversidade cultural e social”. O Catálogo conta com textos de: Rui Jacinto, da Universidade de Coimbra; Henrique Cayatte; Lúcio Cunha, da Universidade de Coimbra; Valentín Cabero, da Universidade de Salamanca; António Campar, da Universidade de Coimbra; Maria Auxiliadora e Thalita Xavier Garrido Miranda, da Univer-sidade Federal da Bahia; Álvaro Domingos, da Universidade da Beira Interior; José Borrachelo, da Universidade Federal do Ceará - Fortaleza - Brasil; José Manuel Simões, da Universidade de Lisboa (IGOT-UL); Maria Laura Silveira, da Universidade de São Paulo; Paulo Peixoto, da Universidade de Coimbra; e Roberto Lobato Correia, Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Através deste projeto o CEI procura superar o seu âmbito de atuação mais imediato, confinado à Raia portuguesa e espanhola, alargando-o a países de outros continentes onde figuram marcas da presença ibérica, promovendo desta forma o diálogo entre Territórios, Sociedades e Culturas e alicerçando uma nova cultura territorial mais responsável e inclusiva de pessoas e territórios.