Italo Calvino - Contos - A memória do mundo

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Contos de Italo Calvino, retirados de A Memória do Mundo, Editorial Teorema.

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Contos de Italo Calvino, retirados de "A Memória do Mundo", Editorial Teorema:"Quem se contenta""Consciência""A ovelha ranhosa""O regimento perdido""Amor longe de casa""A decapitação dos chefes"

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Contos de Italo Calvino, retirados de A Memória do Mundo, Editorial Teorema.

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QUEM SE CONTENTA

Era uma vez um país onde era tudo proibido.Ora como a única coisa não proibida era o jogo do mata, os súbditos

reuniam-se em certos campos que ficavam por detrás dos país e aí, jogando ao mata, passavam os dias.

E como as proibições vieram umas de cada vez, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que achasse mal ou não soubesse adaptar-se.

Passaram os anos. Um dia os notáveis do país viram que já não havia razão para que tudo fosse proibido e mandaram arautos avisar os súbditos de que podiam fazer o que queriam.

Os arautos foram aos locais onde costumavam reunir-se os súbditos.- Saibam – anunciaram – que já nada é proibido.Eles continuaram a jogar ao mata.- Não perceberam – insistiram os arautos. – São livres de fazerem o que

quiserem.- Muito bem – responderam os súbditos. – Nós jogamos ao mata.Os arautos bem se afadigaram a recordar-lhes todas as ocupações boas e

úteis que haviam tido no passado e poderiam ter novamente de agora em diante. Mas eles não ligavam e continuavam a jogar, um lance a seguir ao outro, sem pararem sequer para ganhar fôlego.

Vendo que as tentativas eram vãs, os arautos foram dizê-lo aos condestáveis.

- Resolve-se bem – disseram os condestáveis. – Proibimos o jogo do mata.Foi então que o povo fez a revolução e os matou a todos.Depois, sem perder tempo, tornou a jogar ao mata.

Condestável:1. Militar antigo comandante do exército;2. título do infante que, nas grandes solenidades, acompanhava o rei e se colocava à direita do trono real; 3. estribeiro-mor)

Arauto:1. HISTÓRIA (Idade Média) oficial que levava as declarações de guerra ou de paz, ou anunciava as funções públicas2. pregoeiro3. figurado mensageiro; correio4. figurado defensor)

Súbdito:que ou aquele que está dependente da vontade de outrem, vassalo.

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CONSCIÊNCIA

Veio uma guerra e um tal Luigi perguntou se podia ir, como voluntário.Todos lhe fizeram uma data de elogios. Luigi foi ao sítio onde davam as

espingardas, recebeu uma e disse: - Agora vou matar um tal Alberto.Perguntaram-lhe quem era esse Alberto.- Um inimigo – respondeu, - um inimigo que tenho.Eles deram-lhe a entender que devia matar inimigos de uma dada

qualidade, e não os que lhe apetecia.- Então? – disse Luigi. – Tomam-me por ignorante? Esse tal Alberto é

mesmo dessa qualidade, e desse país. Quando soube que estavam em guerra com eles, pensei: vou também, assim posso matar Alberto. Por isso é que vim. Alberto conheço-o muito bem: é um patife e por dinheiro fez-me passar um mau bocado perante uma mulher. São questões antigas. Se não acreditam, vou contar tudo tintim por tintim.

Eles disseram que sim, que estava bem.- Então – fez Luigi – expliquem-me onde está Alberto, assim eu vou lá e

combato-o.Eles disseram que não sabiam.- Não importa – disse Luigi, - vou perguntando. Mais tarde ou mais cedo

hei-de encontrá-lo.Eles disseram-lhe que não podia ser, que ele devia fazer a guerra onde o

pusessem eles, e matar quem calhasse, e de Alberto ou não Alberto não sabiam nada.- Vão ver – insistiu Luigi – tenho mesmo de lhes contar. Porque ele é

mesmo um grande patife e vocês fazem muito bem em fazer guerra contra eles.Mas os outros não quiseram saber.Luigi não conseguia fazer-se compreender: - Desculpem, para vocês se eu

mato um inimigo ou se mato outro é o mesmo. Mas para mim desagrada-me matar alguém que se calhar com Alberto não terá nada a ver.

Os outros perderam a paciência. Alguém lhe explicou muitas razões e como era a guerra e que um tipo não podia ir procurar o inimigo que quisesse.

Luigi encolheu os ombos. – Sendo assim – disse, - já não vou.- Não vais já, vais agora! – gritaram eles.- Frente-march’, um-dois, um-dois! – E mandaram-no a fazer a guerra.Luigi não estava satisfeito. Matava inimigos, assim, para ver se lhe calhava

matar também Alberto ou algum parente seu. Davam-lhe uma medalha por cada inimigo que matava, mas ele não estava satisfeito. – Se não mato Alberto – pensava – matei muita gente para nada. – E sentia remorsos.

Entretanto davam-lhe medalhas sobre medalhas, de todos os metais.Luigi pensava: - Mata hoje mata amanhã, os inimigos diminuirão e há-de

chegar também a vez daquele patife.Mas os inimigos renderam-se antes que Luigi encontrasse Alberto. Veio-

lhe o remorso de ter matado tanta gente para nada, e como se estava em paz, meteu todas as medalhas num saco e correu o país dos inimigos a oferecê-las aos filhos e às mulheres dos mortos.

Andando assim, aconteceu que encontrou Alberto.- Muito bem – disse ele, - mais vale tarde que nunca – e matou-o.Foi então que o prenderam; processaram-no por homicídio e enforcaram-

no. No processo fartou-se de repetir que o fizera para ficar em paz com a consciência, mas ninguém lhe deu ouvidos.

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A OVELHA RANHOSA

Havia uma terra onde eram todos ladrões.À noite todos os habitantes saíam, com as gazuas e a lanter- na cega, e iam

arrombar a casa de um vizinho. Tornavam a casa de madrugada, carregados, e davam com a casa assaltada.

E assim todos viviam em concórdia e sem dano, porque um roubava o outro, e este um outro ainda e assim por diante, até que se chegava a um último que roubava o primeiro. O comércio naquela terra só se praticava sob a forma de vigarice tanto por parte de quem vendia como por parte de quem comprava. O governo era um bando de criminosos agindo contra os súbditos, e os súbditos por sua vez só se preocupavam em defraudar o governo. Assim a vida prosseguia sem tropeções, e não havia ricos nem pobres.

Ora, não se sabe como, aconteceu que na terra se veio instalar um homem honesto. À noite, em vez de sair com o saco e a lanterna, ficava em casa a fumar e a ler romances.

Vinham os ladrões, viam a luz acesa e não entravam.Este facto durou pouco tempo: depois tiveram de fazer-lhe compreender

que se ele queria viver sem fazer nada, isso não era razão para não deixar fazer aos outros. Cada noite que ele passava em casa, era uma família que não comia no dia seguinte.

A razões destas o homem honesto não podia opor-se. Começou também a sair à noite, mas não ia roubar. Não havia nada a fazer: era mesmo honesto. Ia até à ponte e ficava a ver a água a passar por baixo. Tornava a casa, e encontrava-a roubada.

Em menos de uma semana o homem honesto viu-se sem tostão, sem comer, e com a casa vazia. Mas até aqui nada de mal, porque era culpa dele; o problema é que deste seu modo de vida nascia toda uma trapalhada. Porque ele deixava roubar tudo e entretanto não roubava nada a ninguém; assim, havia sempre alguém que ao chegar a casa de madrugada a encontrava intacta: a casa que ele deveria ter roubado. O facto é que ao fim de uns tempos os que não eram roubados ficaram mais ricos que os outros e já não queriam ir roubar. E por outro lado, os que vinham roubar a casa do homem honesto davam com ela sempre vazia; e assim iam ficando pobres.

Ora os ricos viram que, indo à noite à ponte, ao fim de uns tempos ficariam pobres. E pensaram: - Vamos pagar aos pobres para que vão roubar por nossa conta. – Fizeram-se os contratos, estabeleceram-se os salários e as percentagens: naturalmente continuavam sempre a ser ladrões, e tentavam enganar-se uns aos outros. Mas como sempre sucede, os ricos ficavam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.

Havia ricos tão ricos que já não precisavam de roubar e de mandar roubar para continuarem a ser ricos. Mas se deixassem de roubar ficariam pobres porque os pobres os roubavam. Então pagaram aos mais pobres dos pobres para que defendessem as suas coisas dos outros pobres, e assim instituíram a polícia, e construíram as prisões.

Deste modo, logo poucos anos após o acontecimento do homem honesto, já não se falava de roubar nem de ser roubado mas só de ricos ou de pobres; no entanto continuavam a ser todos ladrões.

Honesto só houve esse tal, que morreu de repente, de fome.

Gazuas:1. ferro de abrir fechaduras2. chave falsa

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O REGIMENTO PERDIDO

Um regimento de um poderoso exército devia desfilar pelas ruas de uma cidade. Logo aos primeiros alvores da madrugada as tropas alinharam no quartel em formação de parada.

O sol já subia alto no céu e as sombras encurtavam-se ao pé das franzinas árvores da parada. Sob os elmos pintados de fresco, os soldados e os oficiais destilavam suor. O coronel, do alto do seu cavalo branco, fez um sinal: rufaram tambores, toda a fanfarra começou a tocar e o portão do quartel lentamente rodou nos gonzos.

Lá fora abriu-se a vista da cidade, sob um céu celeste atravessado por moles nuvens, a cidade de chaminés a verter bigodes de fumo, de terraços com as cordas cheias de molas de roupa, de reflexos dos raios de sol a bater nos espelhos das cómodas, de cortinas-mosquiteiros a prenderem-se nos brincos da madame de cesto no braço, um carrinho de gelados com guarda-sol e a caixa de vidro dos cones, e a rasar o chão um papagaio de papel vermelho todo encaracolado que corria arrastado pelas crianças por um longo cordel e pouco a pouco se elevava nos ares e se endireitava contra as moles nuvens do céu.

O regimento começou a avançar ao ritmo dos tambores, com um grande bater de tacões na calçada e o chiar das rodas das peças de artilharia; contudo, ao ver à frente aquela cidade tranquila, cordial, ocupada com a sua vida, cada um dos militares se sentiu como que indiscreto, importuno, e a parada saltou aos olhos de todos como coisa deslocada, fora de tom, uma coisa que se podia mesmo passar bem sem ela.

Um tambor, um tal Pré Gio Batta, fingiu continuar a sua função começada mas mal tocou a pele do tambor. Saiu um baixinho tiquetaque, mas não só dele: geral; porque no mesmo instante todos os outros tambores fizeram como Pré. Os clarins, a seguir, fizeram só um solfejo de suspiros, porque ninguém soprava com fôlego. Os soldados e os oficiais, lançando à sua volta olhares de mal-estar, pararam com uma perna no ar e depois foram-na baixando devagarinho, e retomaram a marcha em pontas dos pés.

Assim a compridíssima coluna, sem que fosse dada nenhuma ordem, avançava nas pontas dos pés com movimentos lentos e encolhidos, e um abafado frufru de passos. Os encarregados das peças de artilharia, vendo junto de si aqueles canhões tão deslocados, foram assaltados de repente por um sentimento de pudor: alguns quiseram ostentar indiferença, caminhar sem nunca olhar para o lado das peças, como se estivessem a passar por ali por mero acaso; outros mantinham-se o mais encostados às peças que podiam, como que para escondê-las, poupando à gente aquela visão tão desagradável e inurbana, ou punham-lhes por cima cobertores e mantas, de modo a fazê-las passar despercebidas ou pelo menos a não chamarem a atenção; outros ainda tinham em relação aos canhões um comportamento de afectuoso escárnio, davam palmadas no cano, na culatra, e apontavam-nos uns aos outros com meio sorriso: tudo para demonstrar que a sua intenção não era a de se servirem deles com fins mortíferos, mas só levá-los à rua como grotescos aparelhos, grandes e esquisitos.

Aquele confuso sentimento atingiu também a alma do coronel, Clelio Leontuomini, que instintivamente baixou a cabeça à altura da do cavalo. O cavalo, por seu lado, começou a mover as patas cheio de pausas, com a cautela dos animais de tiro. Mas bastou um momento de reflexão para que o coronel e o cavalo retomassem o seu andamento marcial. Leontuomini, dando-se rapidamente conta da situação, lançou uma ordem seca:

- Passo de parada!

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Os tambores rufaram, depois começaram a dar pancadas cadenciadas. O regimento recompôs-se velozmente e agora avançava pisando o terreno com agressiva segurança.

- Pronto – disse para consigo o coronel mirando pelo canto do olho a sua tropa, - é mesmo um verdadeiro regimento em marcha.

No passeio um ou outro transeunte ainda se deteve a fazer alas à parada, e olhou com ar de quem queria interessar-se e se calhar até comprazer-se com tanto gasto de energias, mas sente dentro de si algo que não percebe muito bem, um vago sentimento de alarme, e de qualquer modo tem demasiadas coisas sérias na cabeça para se pôr a pensar em sabres e canhões.

Sentindo-se olhados, as tropas e os oficiais foram novamente assaltados por aquela leve e inexplicável perturbação. Continuaram a marchar impávidos em passo de parada, mas não conseguiam livrar o coração da dúvida de que estariam a fazer mal àqueles bons cidadãos. O soldado Marangon Remigio, para não se distrair com a presença deles, mantinha sempre os olhos baixos: quando se marcha em coluna as únicas preocupações são o alinhamento e o passo; quanto a tudo o resto, é o comandante que trata. Mas como o soldado Marangon faziam mais cento e tal soldados: aliás, pode-se dizer que todos eles, oficiais, alferes, coronel, marchavam todos sem nunca levantar os olhos do chão, seguindo confiantes a coluna. Assim viu-se o regimento, em passo de parada, fanfarra à cabeça, virar para um lado da rua, sair do terreno asfaltado, meter por uma alameda do jardim público e avançar decidido pisando ranúnculos e lilases.

Os jardineiros andavam a regar o jardim e o que vêem? Um regimento que avança de olhos fechados sobre eles, batendo os tacões sobre a relva. Aqueles desgraçados já não sabiam como segurar as mangueiras, para não dirigirem os jactos de água contra os militares. Acabaram por pô-las na vertical, mas os jactos com um longo repuxo caíam em direcções insuspeitadas; um regou da cabeça aos pés o coronel Clelio Leontuomini que avançava todo empertigado também de olhos fechados.

O coronel com o duche estremeceu e lançou um grito:- Aluvião! Aluvião! Mobilizar para os socorros!Depois recuperou logo e retomou o comando do regimento para o fazer

sair do jardim público.Mas ficara um tanto decepcionado. Aquele grito «Aluvião! Aluvião!»

traíra uma sua secreta e quase inconsciente esperança: que de repente sucedesse um cataclismo natural, sem vítimas mas perigoso, e desfizesse a parada, e desse modo ao regimento de se prodigalizar em obras úteis à população: construção de pontes, salvamentos. Só assim ficaria bem com a sua consciência.

Saído do jardim público, o regimento encontrou-se noutra zona da cidade, não a de largas avenidas onde estava estabelecido que desfilasse, mas um bairro de ruas mais pequenas, estreitas e tortuosas. O coronel decidiu que atalharia por estas ruelas para alcançar a praça sem mais perdas de tempo.

Uma insólita animação reinava naquele bairro. Os electricistas punham as lâmpadas com longas escadas e levantavam e baixavam os fios do telefone. Os engenheiros da construção civil mediam as ruas com as palas e fitas métricas enroláveis. Os operários do gás, armados de picaretas, abriam grandes buracos no pavimento das ruas. Os alunos das escolas davam passeios em fila. Os pedreiros passavam os tijolos uns aos outros pelo ar gritando: «Hop! Hop!». Os ciclistas, emitindo longos assobios, transportavam escadas às costas. E a todas as janelas das casas as empregadas torcendo trapos molhados para dentro de grandes baldes, lavavam vidros muito direitas nos parapeitos.

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Assim o regimento teve de continuar o desfile por aquelas ruas tortuosas abrindo caminho pelo meio do emaranhado de fios do telefone, fitas métricas, escadas de mão, buracos no chão, turmas de raparigas peitudas, e apanhando no ar tijolos, «Hop! Hop!», evitando trapos molhados e baldes que as empregadas emocionadas deixavam cair do quarto andar.

O coronel Clelio Leontuomini teve de admitir que se perdera no caminho, Inclinou-se do cavalo para um transeunte e perguntou:

- Desculpe, sabe o caminho mais curto para a praça principal?O transeunte, um homenzinho de óculos, ficou um pouco a pensar:- É uma volta complicada; mas se quiserem eu levo-os por dentro de um

pátio para a outra rua, e poupam pelo menos um quarto de hora.- Poderá passar o regimento todo por esse pátio? – perguntou o coronel.O homenzinho avaliou a tropa com um olhar e fez um gesto incerto:- Bem! Pode-se experimentar – e caminhou à frente direito a um portão.Assomando aos varandins ferrugentos dos patamares, todas as famílias

daquele prédio se debruçaram a ver no pátio o regimento que tentava entrar com cavalos e artilharias.

- Onde é o outro portão por onde se sai? – perguntou o coronel ao homenzinho.

- Portão? – perguntou o homenzinho – Se calhar não me expliquei bem. Tem de se subir até ao último andar, e daí passa-se para a escada de serviço de um prédio vizinho, cujo portão dá precisamente para a outra rua.

O coronel queria continuar a cavalo também por aquelas escadas estreitas, mas ao cabo de dois andares decidiu deixar o cavalo amarrado ao corrimão e continuar a pé. Também quanto aos canhões, decidiram deixá-los no pátio, e um sapateiro comprometeu-se a tê-los debaixo de olho. Os soldados subiam em fila indiana e em cada patamar abria-se alguma porta e uma criança gritava:

- Mãe! Anda ver. Os soldados a passar! Está a desfilar o regimento!No quinto andar, para passar daquela escada a uma outra secundária que

levava aos sótãos, tiveram de fazer um pedaço de patamar. Todas as janelas davam para algum desolado quarto com muitas enxergas, onde viviam famílias cheias de filhos.

- Entrem, entrem – diziam os pais e as mães aos militares. – Descansem um pouco, devem estar cansados! Passem por aqui que o caminho é mais curto! Mas a espingarda deixem-na lá fora; por causa das crianças, percebem…

Assim o regimento desfalcava-se pelos andares e corredores. E naquela confusão, o homenzinho que sabia o caminho ninguém mais lhe pôs a vista em cima.

Veio a noite e ainda as companhias e os pelotões continuavam a correr escadas e patamares. No alto do telhado, empoleirado no cimácio, estava o coronel Leontuomini. Via abrir-se por baixo de si a cidade espaçosa e límpida, com o tabuleiro de xadrez que constituíam as ruas e a grande praça vazia. Com ele, agachado em cima das telhas, estavam uma patrulha de soldados, armados de bandeirinhas coloridas, pistolas de raios, e lanternas pisca-pisca.

- Transmitam – dizia o coronel. – Depressa, transmitam: Zona impraticável… Impossibilitados avançar… Aguardamos ordens…

Ranúnculos:1. BOTÂNICA planta herbácea (ou as suas flores) da família das Ranunculáceas, com flores de variadas cores, cultivada, em Portugal, nos jardins2. BOTÂNICA flor dessa planta(Do lat. *ranuncùlu-, de ranucùla-, «pequena rã»)

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Aluvião:1. GEOLOGIA depósito de materiais provenientes da destruição das rochas e transportados pelas águas correntes para determinado lugar, originando por vezes jazigos de valiosos minérios (jazigos sedimentares)2. materiais transportados dessa forma3. inundação4. grande quantidade

Enxergas:1. colchão grosseiro de palha2. cama pobre

Cimácio:ARQUITECTURA moldura que remata a cornija(Do gr. kymátion, «id.» pelo lat. cymatìu-, «cimalha»)

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AMOR LONGE DE CASA

Às vezes um comboio vai pela beira ferrada do mar e nesse comboio vou eu de partida. Porque eu não quero ficar na minha terra cheia de sono e de hortas, a decifrar as matrículas dos carros forasteiros como o rapaz montanhês sentado na balaustrada da ponte. Eu cá vou-me embora, adeus terra!

No mundo, além da minha terra há outras cidades, umas à beira-mar, outras não se sabe porquê perdidas no fundo das planícies, à beira dos comboios que chegam não se sabe como, após voltas e mais voltas arquejantes por campos e campos. De vez em quando saio do comboio numa destas cidades e tenho sempre um ar de viajante maçarico, com os bolsos cheios de jornais e os olhos irritados por ciscos.

À noite apago a luz dentro da cama nova e fico a ouvir os eléctricos, depois penso no meu quarto da minha terra, remotíssimo na noite, parece impossível que no mesmo momento existam dois lugares tão afastados. E, não sei bem onde, adormeço.

De manhã, lá fora pela janela há tudo para descobrir, se é Génova ruas que sobem e descem e casas para baixo e para cima e o correr do vento de uma para outra, se é Turim ruas direitas sem fim, a emergir do parapeito das varandas, com uma dupla fila de árvores que se esfuma lá ao fundo nos céus brancos, se é Milão casas que viram as costas umas às outras no parques de nevoeiro. Deve haver outras cidades e outras coisas para descobrir: um dia irei lá ver.

O quarto porém é sempre o mesmo em todas as cidades, parece que o mandam de cidade em cidade as «madames» assim que sabem que vou chegar. Até os meus apetrechos da barba sobre o mármore da cómoda parece que os encontrei assim ao chegar, não que os tenha posto eu, com aquele seu ar inevitável e tão pouco meu. Posso habitar anos um quarto e depois mais anos noutros quartos absolutamente iguais, sem conseguir senti-lo como meu, dar lhe a minha marca. É que a mala está sempre pronta para tornar a partir, e nenhuma cidade de Itália é a boa, e em nenhuma se encontrar trabalho, e em nenhuma cidade o encontrar trabalho satisfaz porque há sempre outra cidade melhor aonde se espera ir trabalhar um dia. Assim as coisas estão sempre nas gavetas como as tirei um dia da mala, prontas para voltar lá para dentro.

Passam os dias e as semanas e ao quarto começa a vir uma rapariga. Posso dizer que é sempre a mesma rapariga porque em princípio uma rapariga é o mesmo que outra, uma pessoa estranha, com quem se comunica através de uma formulário obrigatório. Tem de se passar algum tempo e fazer muitas coisas com esta rapariga, para chegarmos os dois a compreender a explicação; e então começa a época das enormes descobertas, a verdadeira e talvez única época entusiasmante do amor. Depois passando ainda mais tempo e fazendo mais outras muitas coisas com esta rapariga, verificamos que também as outras eram assim, que eu também sou assim, que todos somos assim, e cada gesto seu aborrece por ser como que repetido por milhares de espelhos. Adeus, rapariga.

A primeira vez que vem ter comigo uma rapariga, digamos Mariamirella, eu toda a tarde faço pouco: continuo a ler um livro e depois verifico que passei vinte páginas olhando as letras como se fossem figuras; escrevo e afinal faço desenhos no branco da folha e todos os desenhos juntos tornam-se o desenho de um elefante, ao elefante faço os sombreados e no fim torna-se um mamute. Então enraiveço-me com este mamute e rasgo-o; é possível, todas as vezes tão infantil, um mamute?

Rasgo o mamute, toca a campainha: Mariamirella. Tenho de correr a abrir a porta antes que a madama assome à grade da retrete a gritar; Mariamirella fugiria assustada.

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A madama morrerá um dia estrangulada pelos ladrões: está escrito, nada a fazer. Ela julga evitá-lo não indo abrir a porta quando tocam, e perguntando: - Quem é q’chama? – da grade da retrete, mas é uma precaução inútil, os tipógrafos já compuseram o título – A sublocatária Adelaide Braghetii estrangulada por desconhecidos – e só esperam pela confirmação para paginar.

Mariamirella está ali à média luz, com um chapelinho à marinheiro de pompom e a boca em coração. Abro a porta e ela já preparou toda uma conversa a fazer assim que entra, uma conversa qualquer, porque tem de discorrer muito enquanto a conduzo através do corredor escuro até ao meu quarto.

Deveria ser uma conversa longa, para não ficar no meio do meu quarto sem saber o que dizer. O quarto não tem apoios, desesperado na sua desolação: o espaldar de ferro da cama, os títulos de livros desconhecidos na pequena prateleira.

- Vem ver da janela, Mariamirella.A janela é uma janelão com a balaustrada de peito sem varanda, no alto de

dois degraus e parece que nos fartamos de subir. Lá fora, o mar avermelhado das telhas. Olhamos os telhados a perder de vista à nossa volta, as toscas chaminés que a certa altura explodem em baforadas de fumo, os absurdos peitoris em cornijas onde ninguém se pode debruçar, os muros dos recintos vazios, no alto das casas em ruínas. r antigo humano.

- Diz lá.Tirei-lhe o chapelinho à marinheiro e fi-lo voar para cima da cama.- Não. Tenho de me ir embora. Pus-lhe uma mão no ombro, uma mão quase

inchada que não sinto como minha, como se nos tocássemos através de uma cama de água.

- Já viste muito?- Bastante.- Desce.Descemos e fecha-se a janela. Estamos debaixo de água, andamos às cegas

com sensações informes. Pelo quarto paira o mamute, terroPõe-no na cabeça, eu tiro-lho e lanço-o ao ar, agora corremos atrás um do

outro, brincamos de dentes cerrados, o amor, eis o amor um pelo outro, um desejo de arranhões e dentadas um pelo outro, de murros até, nas costas, e depois um beijo cansadíssimo: o amor.

Agora fumamos sentados frente a frente: os cigarros são enormes entre os nossos dedos, como objectos mantidos debaixo de água, grandes âncoras afundadas. Porque não somos felizes?

- O que tens? – fez Mariamirella.- O mamute – digo eu.- O que é? – faz ela.- Um símbolo – respondo.- De quê? – diz ela.- Não se sabe de quê – digo eu. – Um símbolo.- Vês – digo eu, - uma noite estive sentado à beira de um rio com uma

rapariga.- Como se chamava?- O rio chamava-se Po, e a rapariga Enriça. Porquê?- Por nada: gosto de saber com quem andaste antes.- Bem, estávamos sentados na margem cheia de ervas do rio. Era Outono, de

noite, as margens já estavam escuras e sobre o rio descia a sombra de dois homens em pé a remar. Na cidade começavam as luzes e nós sentávamo-nos na margem de lá do

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rio, e em nós havia aquilo a que se chama amor, aquele rude descobrir-se e procurar-se, aquele áspero sabor um do outro, bem sabes, o amor. E em mim havia tristeza e solidão, naquela noite à beira das negras sombras dos rios, tristeza e solidão dos novos amores, tristeza e saudade dos amores antigos, tristeza e desespero dos amores futuros. Don Juan, triste herói, antiga condenação, nele há tristeza e solidão, nada mais.

- Também comigo, assim? – diz Mariamirella.- E se falasses um pouco de ti, agora, se dissesses um pouco o que sabes?Pus-me a gritar com raiva; às vezes ao falar sente-se como que o eco, e

enfurecemo-nos.- O que queres, destas coisas, de vocês homens, não consigo compreender.É assim: as mulheres só tiveram notícias falsas sobre o amor. Muitas notícias

diferentes, todas falsas. E inexactas experiências. Aprende-se que aquilo é o mais importante de tudo, a finalidade de tudo. Depois, vê bem, apercebo-me de que nunca se chega àquilo, realmente àquilo. Não é o mais importante de tudo. Eu queria que não houvesse nada disto, que se pudesse não pensar no assunto. E afinal espera-se sempre. Talvez se devesse ser mãe para atingir o verdadeiro sentido de tudo. Ou prostitutas.

Pronto: é maravilhoso. Todos temos a nossa explicação secreta. Basta descobrir a sua explicação secreta e ela deixa de ser uma estranha. Estamos enroscados ao pé um do outro como grandes cães, ou divindades fluviais.

- Vês? – diz Mariamirella. – Se calhar tenho de medo de ti. Mas não sei onde refugiar-me. O horizonte está deserto, só lá estás tu. Tu és o urso e a gruta. Por isso eu agora estou enroscada no meio dos teus braços, para que tu me protejas do medo de ti.

No entanto, para as mulheres é mais fácil. A vida corre nelas, grande rio, nelas, as continuadoras, há a natureza segura e misteriosa, nelas. Havia o Grande Matriarcado, dantes, a história dos povos fluía como a das plantas. Depois, o orgulho dos zangões: uma revolta, eis a civilização. Penso-o, e não acredito.

- Uma vez não consegui ser homem com uma rapariga, no prado de um monte – digo. – O monte chamava-se Bignone e a rapariga Ângela Pia. Um grande prado, no meio dos arbustos, lembro-me bem, e em cada folha um grilo a saltar. Aquele cantar dos grilos, altíssimo, sem termos protecção. Ela não compreendeu bem porque é que me levantei e disse que o último teleférico estava quase a partir. Porque se ia de teleférico àquele monte: e ao passar pelos pilares sentia-se fazer-se um vazio cá dentro e ela disse: «Parece-me quando tu me beijas». Isto, lembro-me, para mim foi um grande alívio.

- Não deves dizer-me essas coisas – diz Mariamirella. – Já não existiria nem o urso nem a gruta. E até em meu redor não haveria senão medo.

- Vê bem, Mariamirella – digo eu, - não devemos separar as coisas dos pensamentos. A maldição da nossa geração foi esta: não podermos pensar aquilo que se fazia. É isto: por exemplo, há muitos anos (falsifiquei o cartão de identidade porque ainda não tinha a idade permitida) fui com uma mulher numa casa de tolerância. A casa de tolerância chamava-se Via Calandra 15 e a mulher Derna.

- Como?- Derna. Naquele tempo ainda havia o império e a única coisa nova era que

as mulheres das casas se chamavam Derna, Adua, Harrar, Dessiè.- Dessiè?- Até Dessiè, creio eu. Queres que te chame Dessiè, de agora em diante?- Não.- Bem, voltando àquela vez, com aquela Derna. Eu era jovem e ela grande e

peluda. Fugi. Paguei o que tinha a pagar e fugi: parecia-me que ao corrimão das escadas tinham assomado todas a rir-se nas minhas costas. Bem, isto não é nada: é que assim

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que cheguei a casa aquela mulher tornou-se uma coisa pensada e então já não me meteu medo. Deu-me um desejo dela, um desejo dela de morrer… Isto é: que para nós as coisas pensadas são diferentes das coisas.

- Pronto – diz Mariamirella, - eu já pensei todas as coisas possíveis, vivi centenas de vidas com o pensamento. O de casar-me, ter muitos filhos, abortar, casar com um rico, casar com um pobre, tornar-me uma mulher de luxo, tornar-me uma mulher da rua, bailarina, freira, vendedeira de castanhas, actriz, deputada, enfermeira voluntária, campeã. Muitas vidas com todos os pormenores. E todas a acabarem felizes. Mas na vida verdadeira nunca acontece nada dessas coisas pensadas. Assim, todas as vezes que me acontece fantasiar, assusto-me e tento afastar os pensamentos, porque se sonho uma coisa ela nunca acontecerá.

É uma delícia de rapariga, Mariamirella; uma delícia de rapariga quer dizer que compreende as coisas difíceis que digo e as faz tornarem-se logo fáceis. Apetecia-me dar-lhe um beijo, mas depois penso que ao beijá-la pensaria beijar o pensamento dela, e ela pensaria que era beijada pelo pensamento de mim, e não faço nada.

- É preciso que a nossa geração reconquiste as coisas, Mariamirella – digo eu. – Que pensemos e façamos no mesmo momento. Mas não que façamos sem pensar. É preciso que entre as coisas pensadas e as coisas já não haja diferença. Então seremos felizes.

- Porque é assim? – pergunta-me.- Vê bem, não é assim para todos – digo. – Eu em criança morava numa

grande vivenda, no meio de balaustradas altas como voos sobre o mar. E passava os dias atrás destas balaustradas, menino solitário, e cada coisa para mim era um estranho símbolo, os intervalos das tâmaras penduradas em cachos nos pedúnculos, os braços disformes dos cactos, estranhos sinais no saibro das alamedas. Depois havia os grandes, que tinham o dever de tratar com as coisas, com as verdadeiras coisas. Eu não devia fazer nada senão descobrir novos símbolos, novos significados. Assim fiquei toda a vida, ainda me movo num castelo de significados, não de coisas, dependo sempre dos outros, dos «grandes», dos que manobram as coisas. E afinal há quem desde pequeno tenha trabalho a um torno. A uma ferramenta para fazer coisas. Que não pode ter um significado diferente das coisas que faz. Eu quando vejo uma máquina olho-a como se fosse um castelo mágico, imagino homenzinhos pequeníssimos a girar por entre as rodas dentadas. Um torno. Sabe-se lá o que é um torno. Sabes o que é um torno, Mariamirella?

- Um torno, não sei bem, agora – diz ela.- Deve ser importantíssimo, um torno. Deviam ensinar toda a gente a usar

um torno, em vez de ensinar a usar uma espingarda, que é sempre um objectivo simbólico, sem uma verdadeira finalidade.

- A mim não interessa um torno – diz ela.- Vê bem, para ti é mais fácil: tens máquinas de costura para te salvares,

agulhas, sei lá que mais, fogões de gás, até máquinas de escrever. Tu tens poucos mitos de que te devas libertas; para mim todas as coisas são símbolos. Mas isto é certo: temos de reconquistar as coisas.

Vou-a acariciando, devagarinho.- Diz lá, sou uma coisa, eu? – diz ela.- Ugh – digo eu.Descobri uma pequena covinha num ombro, por cima da axila, macia, sem

osso por baixo, do tipo das covinhas das faces. Falo com os lábios na covinha.- Ombro como face – digo eu. Não se percebe nada.- Como? – pergunta ela. Mas não lhe importa nada o que digo.

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- Corrida como Junho – digo eu, ainda na covinha. Ela não compreende o que faço mas fica satisfeita e ri-se. É uma delícia de rapariga.

- Mar como chegada – digo, e tiro a boca da covinha e pouso nela a orelha para ouvir o eco. Só se ouve o seu respirar e, lá longe, sepultado, o coração.

- Coração como comboio – digo eu.Pronto: agora Mariamirella não é Mariamirella pensada mais a Mariamirella

verdadeira: é Mariamirella! E o que fazemos agora não é uma coisa pensada mais uma coisa verdadeira: o voo por cima dos telhados, e a casa que se recorta como as palmeiras na janela da minha casa na terra, um grande vento levou o nosso último plano e transporta-o pelos céus e pelas filas avermelhadas das telhas.

Na praia da minha terra, o mar deu por mim e faz-me festas como um grande cão. O mar, gigantesco amigo, de pequenas mãozinhas brancas que raspam a areia, ei-lo que ultrapassa os contrafortes dos molhes, endireita a branca barriga e salta os montes, ei-lo que chega festivo como um imenso cão de patas brancas de remoinho. Calam-se os grilos, todas as planícies são invadidas, campos e vinhas, agora só um camponês ergue o tridente e grita: já está, e o mar desaparece como que bebido pela terra. Adeus, mar.

Ao sair, Mariamirella e eu pusemo-nos a correr pelas escadas abaixo até perdermos o fôlego, antes que a madama assome à grade e tente perceber tudo olhando a nossa cara.

Ciscos:1. Pó de carvão2. Aparas míudas3. lixo4. miudezas arrastadas pelas enxurradas5. corpúsculo que se introduz nos olhos; argueiro.(Do lat. ciniscùlu-, dim. de cinis, «cinza»)balaustradas

Balaustrada:Série de balaústres que formam corrimão ou resguardo.

Balaústres:1. Colunelo geralmente usado no suporte de corrimões e peitoris2. parte lateral da volupta de um capitel jónico(Do gr. balaústion, «flor da romãzeira brava», pelo lat. balaustìu-, «balaústre», pelo it. balaustro, «id.»)

SaibroMistura de areia e argila, usada para preparar argamassa; areia argilosa(Do lat. sabùlu-, «areia»)

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A DECAPITAÇÃO DOS CHEFES

1.

O dia em que cheguei à capital devia ser a véspera de uma festa. Nas praças estavam a montar palanques, a pôr bandeiras, fitas, palmas. Ouviam-se marteladas por todos os lados.

- É a festa nacional? – perguntei ao dono do bar.Apontou para a fila de retratos atrás de si. – Os nossos chefes – respondeu. –

É a festa dos chefes.Pensei que fosse uma proclamação de novos eleitos. – Novos? – perguntei.Por entre o bater dos martelos, os altifalantes que faziam as experiências, o

guinchar das gruas, quase gritando.O homem do bar fez sinal que não: não se tratava de novos chefes, já o eram

há tempos.Perguntei: - O aniversário de quando tomaram o poder?- Uma coisa assim – explicou ao meu lado alguém que entrara. –

Periodicamente, chega o dia da festa e calha-lhes a eles.- Calha-lhes a eles o quê?- Subir ao palanque.- Qual palanque? Já vi muitos, um a cada cruzamento.- A cada um calha um palanque. Os nossos chefes são muitos.- E o que fazem? Discursos?- Não, discursos não.- Sobem lá para cima, e o que fazem?- O que quer que façam? Esperam um pouco, enquanto duram os

preparativos, e depois a cerimónia acaba em dois minutos.- E vocês?- Vemos.Havia grande movimento no bar: carpinteiros, serventes que descarregavam

dos camiões os objectos para ornamentar os palanques – machados, cepos, cestos – e ficavam a beber cerveja. Eu dirigia as minhas perguntas a um qualquer e respondia sempre outro.

- É uma espécie de reeleição, afinal? Uma confirmação dos lugares, digamos, dos mandatos?

- Não, não – corrigiram-me. – Não compreendeu! É o fim do prazo. O seu tempo acabou.

- E então?- Então deixam de ser chefes, de estar lá em cima: caem.- E para que é que sobem aos palanques?- Dos palanques pode-se ver bem como cai, o salto que dá, cortada rente, e

como vai parar ao cesto.Começava a compreender, mas não tinha bem a certeza.- A cabeça dos chefes, querem dizer? No cesto?Fizeram sinal que sim. – É isso. A decapitação. Essa mesmo. A decapitação

dos chefes.Eu tinha chegado ali de fresco, não sabia de nada, não tinha lido nada nos

jornais.- Assim, amanhã, de repente?

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- Quando calha calha – disseram. – Desta vez calha a meio da semana. Faz-se feriado. Tudo fechado.

Um velho acrescentou, sentencioso: - O fruto quando está maduro colhe-se, a cabeça decapita-se. Deixaria morrer os frutos nos ramos?

Os carpinteiros prosseguiram no seu trabalho: em certos palanques estavam a instalar a armação de pesadas guilhotinas; noutros fixavam solidamente cepos para a degolação com o cutelo, sobre cómodos genuflexórios (um dos ajudantes fazia a experiência de se baixar com o pescoço no cepo, para ver se estava à altura certa); noutro local ainda montavam uma espécie de bancas de carniceiro, com regos para escorrer o sangue. No sobrado dos palanques estendiam oleados, e já estavam preparadas as esponjas para os limpar dos salpicos. Todos trabalhavam com brio; ouvia-se rir, assobiar.

- Então vocês estão satisfeitos? Odiavam-nos? Eram maus chefes?- Não, quem disse isso? – olharam-se entre si, surpreendidos. – Bons. Enfim,

nem melhores nem piores que muitos. Eh, sabe-se como são: chefes dirigentes, comandantes… Quando se chega a estes postos…

- Porém – fez um deles, - eu destes gostava.- Eu também. E eu também – fizeram eco outros. – Nunca tive nada contra

eles.- e não se importam que os matem? – disse eu.- O que se há-de fazer? Se um tipo aceita ser chefe já sabe como vai acabar.

Não pretenderá morrer na cama!Os outros riram-se: - Seria cómodo! Um tipo dirige, dirige, e depois, como

se não fosse nada com ele, larga tudo e volta para casa…Um fez: - Então, digo-vos eu, é que todos quereriam ser chefes! Até eu

estava pronto, olhem, cá estou eu!- Eu também, eu também – disseram muitos, a rir.- Eu cá não queria – fez um de óculos, - assim não: que sentido teria?- É verdade. Que gosto haveria em ser chefe desse modo? – intervieram

várias vozes. – Uma coisa é fazer aquele trabalho sabendo o que te espera, e outra é… mas como se podia fazê-lo, se não fosse assim?

O dos óculos, que devia ser o mas culto, explicou: - A autoridade sobre os outros faz uma coisa única com o direito que têm os outros de te fazer subir ao palanque e abater-te, um dia não muito remoto… Que autoridade teria um chefe, se não estivesse cercado por esta espera? E se não lha lessem nos olhos, a ele próprio, esta espera, por todo o tempo que dura o seu cargo, segundo a segundo? As instituições civis assentam neste duplo aspecto da autoridade; nunca se viu civilização que adoptasse outro sistema.

- Contudo – objectei, - poderia citar-vos casos…- Quero dizer: verdadeira civilização – insistiu o dos óculos, - não falo dos

intervalos de barbárie que mais ou menos têm existido na historia dos povos…O velho sentencioso, o que primeiro havia falado dos frutos nos ramos,

resmungava qualquer coisa para consigo. Exclamou: - O chefe manda enquanto tiver a cabeça garrada ao pescoço.

- O que quer dizer? – perguntaram-lhe os outros? – Quer dizer que se por acaso um chefe, imaginemos, passar os limites, e se não lhe cortarem a cabeça, fica ali a dirigir toda a vida?

- Assim não se passavam as coisas – assentiu o velho, - nos tempos em que não era claro que quem opta por ser chefe opta por ser decapitado a curto prazo. Quem tinha o poder guardava-o bem…

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Aqui eu podia entrar no diálogo, citar exemplos, mas ninguém me ligaria importância.

- E então? Como faziam? – perguntaram ao velho.- Tinham de decapitar os chefes à força, a mal, conta a sua vontade! E não

em datas estabelecidas, mas só quando já não aguentavam mesmo mais! Isto acontecia antes que as coisas fossem reguladas, antes que os chefes aceitassem…

- Oh, só faltava que não aceitassem! – disseram os outros. – Havíamos de ver essa!

- As coisas não são assim como vocês dizem – interveio o dos óculos. – Não é verdade que os chefes sejam obrigados a sofrer as execuções. Se o dissermos perdemos o verdadeiro sentido das nossas ordenações, a verdadeira relação que liga os chefes ao resto da população. Só os chefes podem ser decapitados, por isso não se pode querer ser chefe sem querer ao mesmo tempo o golpe do cutelo. Só quem sentir esta vocação pode tornar-se chefe, só quem se sentir já decapitado a partir do primeiro momento em que se senta num posto de comando.

Pouco a pouco os clientes do bar foram escasseando, cada um tornara ao seu trabalho. Reparei que o homem dos óculos se dirigia só a mim.

- É isto o poder – continuou, - esta espera. Toda a autoridade de que se goza não é senão o anunciar da lâmina que silva nos ares, e se abate com um corte limpo, todos os aplausos não são senão o início deste aplauso final que acolhe o rolar da cabeça no oleado do palanque.

Tirou os óculos para os limpar no lenço. Notei que tinha os olhos cheios de lágrimas. Pagou a cerveja e foi-se embora.

O homem do bar inclinou-se para o meu ouvido. – É um deles – disse. – Vê? – Tirou uma pilha de retratos debaixo do balcão. – Amanhã tenho de retirar aqueles e pendurar estes. – O retrato de cima era o do homem dos óculos, uma má ampliação de uma fotografia tipo passe. – Foi eleito para suceder aos que deixam o lugar. Amanhã tomará posse do cargo. Calha-lhe a ele, agora. Acho que fazem mal em dizer-lhes de véspera. Ouviu o tom dele? Amanhã assistirá às execuções como se fossem já a sua. Fazem todos isto, nos primeiros dias; impressionam-se, exaltam-se, parece-lhes sei lá o quê. A «vocação»: que palavrão que foi ele buscar!

- E depois?- Conforma-se, como todos. Têm muitas coisas para fazer, não pensam mais

nisso, até que também chega o dia da festa para eles. Ou pelo menos: quem pode ler no coração dos chefes? Fingem que não pensam nisso. Outra cerveja?

Genuflexório:Estrado baixo, com encosto para os braços, em que uma pessoa se ajoelha para rezar

2.

A televisão mudou muitas coisas. O poder, outrora, ficava distante, figuras remotas, empertigadas num palanque, ou retratos dando-se ares com expressões de uma altivez convencional, símbolos de uma autoridade que mal se conseguia relacionar com indivíduos de carne e osso. Agora, com a televisão, a presença física dos homens políticos é uma coisa próxima e familiar; as suas caras, ampliadas pelo vídeo, visitam diariamente as casas dos cidadãos privados; cada um, tranquilamente afundado no seu sofá, descontraído, pode observar o mínimo movimento de feições, o bater incomodado das pálpebras à luz dos reflectores, o nervoso humedecer dos lábios entre cada duas palavras… Especialmente nas convulsões da agonia o rosto, já bem conhecido por ter

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sido enquadrado tantas vezes em ocasiões solenes ou festivas, em poses oratórias ou de parada, exprime todo o seu ser: é nesse momento, mais que em nenhum outro, que o simples cidadão sente o governante como seu, como algo que lhe pertence para sempre. Mas já antes, por todos os meses anteriores, sempre que o via aparecer no pequeno écran e majestosamente cumprir as suas funções – por exemplo a inaugurar escavações, a espetar medalhas no peito dos meritosos, ou apenas a descer escadinhas de aviões agitando a mão aberta – já estudava naquele rosto as possíveis contracções dolorosas, tentava imaginar os espasmos que antecederiam o rigor mortis, distinguir no pronunciar dos discursos e dos brindes os tons que caracterizariam o estertor extremo. Nisto consiste precisamente o ascendente do homem público sobre a multidão: é o homem que terá uma morte pública, o homem cuja morte temos a certeza de assistir, todos juntos, e que por isso é rodeado em vida pelo nosso interesse curioso, antecipador. Como eram as coisas antes, no tempo em que os homens públicos morriam ocultos, já não conseguimos imaginá-lo; hoje faz-nos rir o ouvir dizer que definiam por democracia certas suas ordenações de então; para nós a democracia só começa no dia em que se tem a segurança de que no dia estabelecido as telecâmaras enquadrarão a agonia da nossa classe dirigente na sua totalidade, e, no fim do mesmo programa (mas muitos espectadores nesse momento apagam o aparelho) a tomada de posse do novo pessoal, que ficará no cargo (e em vida) por um período equivalente. Sabemos que nas outras épocas o mecanismo do poder também assentava nos assassínios, em hecatombes ora lentas ora repentinas, mas os mortos, salvo raras excepções, eram pessoas obscuras, subalternas, mal identificáveis; frequentemente as matanças passavam em silêncio, eram oficialmente ignoradas, ou justificadas com motivos rebuscados. Só esta conquista, já definitiva, a unificação dos papéis do carnífice e da vítima numa rotação contínua, permitiu extinguir nas almas todo o resquício de ódio e de piedade. O primeiro plano do encolher das maxilas escancaradas, a carótida revirada que se debate dentro do colarinho engomado, a mão que se ergue contraída e lacera o peito cintilante de condecorações, são contemplados por milhões de espectadores com sereno recolhimento, como quem observa os movimentos dos corpos celestes no seu cíclico repetir-se, espectáculo que quanto mais nos é estranho tanto mais sentimos como confortante.

Estertor: Ruído da respiração do moribundo.

Hecatombes:1. Antigo sacrifício de cem bois2. Sacrifício de muitas vítimas; carnificina; mortandade3. Grande destruição; devastação(Do gr. hekatómbe, «sacrifício de cem bois», pelo lat. hecatombe-, «hecatombe; sacrifício de cem vítimas»)

3.

Não querem matar-nos já? Esta frase, pronunciada por Virghily Ossipovitch com um leve tremor que

contrastava com o tom quase protocolar, embora carregado de ásperas tonalidades polémicas, em que se desenrolara a discussão até àquele momento, rompeu a tensão na assembleia do movimento «Volya e Raviopravie». Virghily era o mais jovem componente do Comité directivo; uma penugem fina sombreava-lhe o lábio proeminente; madeixas de cabelos louros caíam-lhe sobre os pardos olhos oblongos;

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aquelas mãos de nós avermelhados cujos pulsos saíam sempre de mangas de blusas demasiado curtas, não tinham tremido ao espoletar a bomba sob a carruagem do Czar.

Os militantes de base ocupavam todos os lugares à volta na baixa e fumosa sala da cave; a maioria sentada em bancos corridos e baixos, alguns acocorados no chão, outros em pé de braços cruzados encostados às paredes. O Comité directivo estava sentado ao centro, oito rapazes curvados em redor da mesa pejada de papéis, como grupo de camaradas de curso ocupados no arranque final antes dos exames estivais. Às interrupções dos militantes que lhes choviam em cima dos quatro cantos da sala, respondiam sem se virar e sem levantar a cabeça. De vez em quando, uma carga de protestos ou de consensos erguia-se da assembleia e – visto que muitos se punham de pé e se estendiam para a frente – parecia convergir das paredes para a mesa a submergir as costas do Comité directivo.

Libory Serapionovitch, o hirsuto secretário, tinha já várias vezes pronunciado a máxima lapidar a que com frequência se recorria para atenuar as divergências irredutíveis: - Se o camarada se separada do camarada, o inimigo une-se com o inimigo, - e a assembleia replicara em coro escandido: - A cabeça está à cabeça até ao além da vitória, vitoriosa e honrada amanhã cairá, - ritual aviso que os militantes do «Volya e Raviopravie» não deixavam de remeter aos seus dirigentes sempre que lhes dirigiam a palavra, e que os próprios dirigentes trocavam entre si como expressão de saudação.

O movimento lutava por instaurar, sobre as ruínas da autocracia e da Duma, uma sociedade igualitária em que o poder fosse regulado pela matança dos chefes eleitos. A disciplina do movimento, tanto mais necessária quanto mais a polícia imperial endurecia a sua repressão, exigia que todos os militantes devessem seguir sem discussão as decisões do directivo; ao mesmo tempo a teoria recordava em todos os seus textos que qualquer função de comando só era admissível se exercida por quem já havia renunciado a gozar dos privilégios do poder, e virtualmente já não devia ser considerado no número dos vivos.

Os jovens chefes do movimento nunca pensavam na sorte que lhes reservava um futuro ainda utópico: por agora era a repressão czarista que provia a uma renovação dos quadros infelizmente cada vez mais rápida; o perigo das prisões e das forcas era demasiado real e quotidiano para que as conjecturas da teoria tomassem forma nas suas fantasias. Um ar juvenilmente irónico, de desprezo, servia para remover das suas consciências o que afinal era o aspecto saliente da sua doutrina. Os militantes de base sabiam tudo isto, e como compartilhavam com os membros do directivo riscos e privações, assim compreendiam o seu espírito; e no entanto conservavam o sentido obscuro do seu destino de justiceiros, para o exercer não só sobre os poderes constituídos mas também sobre os futuros, e não podendo exprimir-se de outro modo, ostentavam nas assembleias uma atitude arrogante, que embora limitando-se a um modo formal de comportamento, não deixava de pairar sobre os chefes como uma ameaça.

- Enquanto o inimigo à nossa frente for o Czar – disse Virghily Ossipovitch, - é estulto quem procura no Czar o camarada, - afirmação talvez inoportuna, e certamente mal recebida pela barulhenta assembleia.

Virghily sente uma mão apertar a sua; sentada no chão aos seus pés estava Evghenya Ephraïmovna, de joelhos encolhidos dentro da saia toda plissada os cabelos em carrapito na nuca e pendentes dos dois lados do rosto como voltas de um macio novelo. Uma mão de Evghenya subira ao longo das botas de Virghily até encontrar a mão do jovem contraída no punho, e tocou-lhe o dorso como numa carícia consoladora, e depois espetou as unhas agudas arranhando-o lentamente até fazer sangue. Virghily compreendeu que o que naquele dia se movia na assembleia era uma determinação

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obstinada e precisa, algo que lhes dizia respeito directamente a eles, os dirigentes, e que seria revelado daí a pouco.

- Nenhum de nós jamais esquece, camaradas – interveio a acalmar os ânimos Ignatsy Apollonovitch, o mais idoso do Comité, que passava por ser o espírito mais conciliador, - o que não deve ser esquecido… contudo, é justo que vocês no-lo recordem, de quando em quando… embora – acrescentou, com um risinho na barba, - para nos recordar já se ocupem o suficiente o conde Galitsine, e os cascos dos seus cavalos… - Aludia ao comandante da Guarda imperial que com uma carga de cavalaria tinha recentemente desfeito uma sua manifestação de protesto, na ponte do Manejo.

Uma voz, vinda sabe-se lá donde, interrompeu-o: - Idealista! – e Ignatsy Apollonovitch perdeu o fio à meada. – E porquê? – perguntou, desconcertado.

- Crês que basta guardar na memória as palavras da nossa doutrina? – disse, do outro lado da sala, um magricelas que se fizera notar entre os mais agitados da última leva. – Sabes porque é que a nossa doutrina não se pode confundir com as de todos os outros movimentos?

- Claro que sabemos. Porque é a única doutrina que quando tiver conquistado o poder, não poderá ser corrompida pelo poder! – resmungou, inclinada sobre os papéis, a cabeça rapada de Femya, aquele dentre eles que era chamado o «ideólogo».

- E porque esperamos para a pôr em prática – insistiu o magricelas, - pelo dia em que conquistarmos o poder, minhas pombinhas?

- Agora! Aqui! – ouviu-se gritar de vários lados. As irmãs Marianzev, chamadas «as três Marias», avançaram por entre os bancos chilreando «Com licença! Com licença» e ficando enredadas com as longas tranças. De braços dobrados, traziam toalhas, cantarolando e empurrando os homens, como se estivessem pondo a mesa para um refresco na varanda da sua casa de Ismahilovo.

- Tem esta diferença, a nossa doutrina – o magricelas continuava a sua prédica, - que só se pode escrever com o corte de uma lâmina afiada na pessoa física dos nossos amados dirigentes.

Houve um rebuliço e derrubar de bancos porque muitos da assembleia se levantaram e dirigiram para a frente. Quem mais dava empurrões e levantava a voz eram as mulheres: - Sentados, meus irmãozinhos! Queremos ver! Que prepotência, mãe santíssima! Daqui não se vê nada! – e assomavam por entre as costas dos machos os seus rostos de professorinhas a quem os cabelos curtos debaixo dos bonés de pala pretendiam dar um ar resoluto.

A Virghily só uma coisa podia fazer vacilar a coragem, e era um sinal qualquer de hostilidade da parte feminina. Levantou-se chupando o sangue dos arranhões de Evghenya nas costas da mão, e mal lhe saíra da boca essa frase: - Não querem matar-nos já? – quando se abriu a porta e entrou o séquito de bata branca empurrando os carrinhos carregados de ferros cirúrgicos cintilantes. A partir desse momento algo na atitude da assembleia mudou. Começaram a chover frases cerradas: - Mas não… quem falou em matar-vos?... a vós, os nossos dirigentes… com o afecto que temos por vós e tudo o resto… o que faremos sem a vossa orientação?... o caminho ainda é longo… estaremos sempre aqui convosco… - e o magricelas, as raparigas, todos os que antes pareciam constituir a oposição se prodigalizaram a encorajar os chefes, com um tom tranquilizante, quase protector. – É só uma coisinha leve, de grande significado mas em si nada grave, oh oh oh, um tanto dolorosa, certamente, mas é para que se possa reconhecer-vos como chefes a sério, os nossos chefes bem amados, uma mutilação, é só isso, faz-se num instante, uma pequena mutilação de vez em quando,

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não o leveis a mal por tão pouco, é isto que distingue os chefes do nosso movimento, o que mais senão isto?

Os membros do directivo já eram imobilizados por dezenas de braços robustos. Em cima da mesa colocavam as gazes, as bacias de algodão, as facas serrilhadas. O cheiro a éter impregnava o ambiente. As raparigas preparavam tudo rápidas, diligentes, como se desde há muito tempo cada uma já se tivesse preparado para a sua tarefa.

- Agora o doutor vai explicar-vos tudo muito bem. Vá, Tolya!Anatol Spiridionovitch, ex-estudante de medicina, avançou mantendo

erguidas as mãos enfiadas em luvas de borracha vermelha sobre o estômago já obeso. Era um estranho tipo, Tolya, que talvez para camuflar uma sua timidez fazia uma cómica careta infantil e se saía sempre com uma enfiada de ditos espirituosos.

- A mão… Eh, a mãozinha… a mão é um órgão preênsil… eh, eh… muito útil… por isso se têm duas… e os dedos, geralmente, são dez… cada dedo compõe-se de três segmentos ósseos ditos falanges… pelo menos, nos nossos países assim lhes chamam… falange falanginha falangeta…

- Pára com isso! Não nos chateies! Não venhas dar-nos lições! – A assembleia rumorejava. (Este Tolya no fundo ninguém simpatizava com ele). – Vamos aos factos! Força! Comecemos!

Em primeiro lugar trouxeram Virghily. Quando compreendeu que amputariam só a primeira falange do anular recuperou a sua coragem e suportou a dor com uma valentia digna dele. Outros em contrapartida gritaram; tiveram de ser muitos a segurá-los; felizmente a certa altura a maior parte desmaiava. As amputações correspondiam a dedos diferentes conforme a pessoa, mas em geral não mais de duas falanges para os dirigentes mais importantes (as outras seriam cortadas a seguir, um pouco de cada vez; tinha de se fazer que estas cerimónias se repetissem muitas vezes nos anos que se sucederiam). O sangue que se perdia era mais que o previsto; as raparigas limpavam-nos escrupulosas.

Os dedos amputados, em fila em cima da toalha, pareciam peixinhos degolados pelo anzol e trazidos para a margem. Em breve ressequiam e enegreciam, e, após uma curta discussão sobre a oportunidade de conservá-los num estojo, deitaram-nos no lixo.

O sistema da poda dos chefes obteve um grande sucesso. Com um dano para o físico relativamente modesto obtinham-se resultados morais de relevo. O ascendente dos chefes crescia com as mutilações periódicas. Quando uma mão de dedos cortados se erguia sobre as barricadas, os manifestantes faziam bloco e os ulanos a cavalo não eram capazes de dispersar a multidão aos gritos que os submergia. Os cantos, as quedas, os relinchos, os gritos: «Volya i Raviopravie!», «Morte ao Czar!», «Vitoriosa e honrada amanhã cairá!» corriam pelo ar gelado, sobrevoavam as margens do Neva, alcançavam a fortaleza de Pedro e Paulo, eram ouvidos até nas celas mais profundas onde os camaradas aprisionados batiam em cadência as correntes e estendiam pelas grades os cotos.

Escandir:1. decompor (versos) nas suas unidades métricas2. pronunciar (uma palavra) sílaba por sílaba

Estulto:insensato; néscio; imbecil

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Plissada:que tem pregas bem dobradas e muito juntas; série de pregas muito próximas feitas numa

peça de vestuário ou num tecido

Prédica:1. prática; sermão2. discurso

Prênsil:1. que prende ou se prende2. diz-se dos órgãos, como certos membros, apêndices, a cauda, etc., que podem realizar

preensão

Ulanos:cavaleiro do exército alemão ou austríaco, armado de lança

4.

Os jovens dirigentes, sempre que avançavam a mão para assinar um documento ou para sublinhar com um seco gesto uma frase num relatório, deparavam-se com os dedos cortados debaixo dos olhos, e isto tinha uma imediata eficácia mnemónica, estabelecendo a associação de ideias entre o órgão do comando e o tempo que se encurtava. Era um sistema prático, acima de tudo: as amputações podiam ser executadas por simples estudantes e enfermeiros, em salas operatórias improvisadas, com aparelhagens arranjadas ao acaso; se descobertos e presos pela polícia sempre no rasto deles, as penas previstas para uma simples mutilação eram leves, ou no entanto nunca comparáveis com as que apanhariam seguindo à letra as prescrições da teoria. Eram ainda os tempos em que a matança pura e simples dos chefes não seria compreendia nem pelas autoridades nem pela opinião pública; os executores seriam condenados como assassinos, e o móbil seria procurado em qualquer rivalidade ou vingança.

Em todas as organizações locais, e em todas as instâncias do movimento, um grupo de militantes, distinto do grupo dirigente, e cujos membros mudavam continuamente, encarregava-se das amputações; fixava os prazos, as partes do corpo, tratava da compra dos desinfectantes e, socorrendo-se do conselho de algum especialista, até pessoalmente manejava os instrumentos. Era uma espécie de comité de probos que não tinha influências sobre as decisões políticas, rigidamente centralizadas pelo executivo.

Quando aos chefes começaram a escassear os dedos, estudou-se o modo de introduzir qualquer variante anatómica. Primeiro foi a língua a atrair as atenções: não só se prestava a ablações sucessivas de fatias ou fibrilas, mas também como valor simbólico e mnemónico era o que havia mais indicado: cada corte incidia directamente sobre a fonação e as virtudes oratórias. Mas as dificuldades técnicas inerentes à delicadeza do órgão eram superiores ao previsto. Após uma série de intervenções as línguas foram postas de parte, e recuou-se para mutilações mais vistosas mas menos absorventes: orelhas, narizes, algum dente. (Quanto ao corte dos testículos, embora sem o excluir totalmente, foi quase sempre evitado, porque se prestava a alusões sexuais).

O caminho é longo. A hora da revolução ainda não soou. Os dirigentes do movimento continuam a submeter-se ao bisturi. Quando chegarão ao poder? Por muito tarde que seja, serão os primeiros chefes que não decepcionarão as esperanças que neles puseram. Já os vemos desfilar pelas ruas embandeiradas no dia da tomada do poder: arrancando com a perna de pau quem ainda tiver uma perna inteira; ou empurrando a cadeirinha com um braço quem ainda tiver um braço para a empurrar, os rostos ocultos

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por máscaras emplumadas para esconder as descarnações mais repugnantes à vista, alguns hasteando o seu próprio escalpe como um troféu. Nesse momento será claro que só naquele mínimo de carne que lhes resta poderá encarnar-se o poder, se ainda houver poder para existir.

Hirsuto: 1. que tem pêlos compridos, flexíveis e duros2. eriçado, cerdoso, áspero

Duma:A Duma (Ду́^ма em russo) é o nome dado à Assembleia Nacional da Rússia, criada em 1906

pelo czar Nicolau II, substituída pelo Soviete Supremo na sequência da revolução de 1917 e restabelecida com a queda do estado soviético, em 1991. Atualmente a Duma é composta por 450 deputados eleitos por 4 anos.

Ablações:1. acção de cortar; extracção2. CIRURGIA remoção de uma parte do corpo

Fibrilas:1. pequena fibra2. CITOLOGIA cada um dos elementos filiformes que entram na constituição das fibras

musculares (miofibrila) e de outras células, como as células nervosas (neurofibrila), etc.3. BOTÂNICA cada uma das últimas ramificações das raízes; fibrilha, radícula

Probos:1. que tem probidade2. justo3. honrado; honesto; íntegro; recto