JANEIRO FEVEREIRO 2013 ISSN 1519-4906 · Discursos do desenvolvimento da dança para pessoas com...

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2011Impresso no BrasIl

Línguas e instrumentos linguisticos 23/24 / Campinas: Capes-Procad -Universidade Estadual de Campinas; Editora RG, 2011 :

Unicamp, 1997-2009 Semestral. ISSN 1519-4906 1. Línguística - Periódicos 2. Análise do discurso - Periódicos 3. Semântica - Periódicos 4. História - Periódicos I. Universidade Estadual de Campinas CDD - 410.05 - 412.05 - 900

2013

Línguas e instrumentos linguisticos 31 / Campinas: CNPq -Universidade Estadual de Campinas; Editora RG, 2013 :

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LÍNGUAS E INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS

Edição: Projeto História das Idéias Lingüísticas no Brasil Editora RG

Diretores/Editores: Eduardo Guimarães e Eni P. Orlandi

Comitê Editorial: Bethania Sampaio Mariani (UFF),Carolina Zucolillo Rodriguez (Unicamp), Claudia Pfeiffer (Unicamp), Carlos Luis (Argentina), Charlote Galves (Unicamp), Diana Luz Pessoa de Barros (USP), Eduardo Guimarães (Unicamp) Elvira Narvaja de Arnoux (Argentina) Eni P. Orlandi (Unicamp), Francine Mazière (França), Francis Henry Aubert (USP), Freda Indursky (UFRGS), Jean-Claude Zancarini (França), José Horta Nunes (Unesp), José Luiz Fiorin (USP), Lauro Baldini (Univás), Luiz Francisco Dias (UFMG), Maria Filomena Gonçalves (Portugal), Mónica Zoppi-Fontana (Unicamp), Norman Fairclough (Inglaterra), Rainer Henrique Ramel (México), Rosa Attié Figueira (Unicamp), Sheila Elias de Oliveira (Unicentro), Silvana Serrani-Infante (Unicamp), Simone Delesalle (França), Suzy Lagazzi (Unicamp), Sylvain Auroux (França)

Comitê de Redação: Carolina Zucolillo Rodriguez, Claudia Pfeiffer, José Horta Nunes, Lauro Baldini, Mónica Zoppi-Fontana, Sheila Elias de Oliveira, Suzy Lagazzi

Secretaria de Redação: Sheila Elias de Oliveira, Lauro Baldini e Vinícius Massad Castro

Revisão dos artigos: Todos os artigos são revisados por pares observando-se os seguintes parâmetros: nível de contribuição para a comunidade científica, qualidade da escrita do texto, relevância da bibliografia.

Mês e ano dos fascículos: junho e dezembro

Periodicidade de circulação: semestral

ISSN: 1519-4906

Número seqüencial de páginas: a numeração inicia sua contagem na página de olho da revista, figurando – em algarismos arábicos – a partir da página número cinco até o final.

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SUMÁRIO

Apresentação

Autoridade da informaçãoEduardo Guimarães

Tutores ou senhores? Uma análise semântica da palavra tutor em tutelas brasileiras do período pós-aboliçãoJorge Viana Santos e Dilma Marta Santos

Discursos do desenvolvimento da dança para pessoas com deficiênciaEliana Lúcia Ferreira

Casar: um estudo argumental e prototemático Ângela Cristina Di Palma Back e Magdiel Medeiros Aragão Neto Saber linguístico e história urbana: a produção do nós nacionalCarolina P. Fedatto

Argumentação, linguagem e história: sentidos à carta testamento de VargasDanilo Ricardo de Oliveira

CRÔNICAS E CONTROVÉRSIASSaussure e o Curso de linguística geral: uma relação de nunca acabar Maria Iraci Sousa Costa

RESENHAMOLLICA, Maria Cecilia; GOMES DA SILVA, Cynthia Patusco; BAR-BOSA, Maria de Fátima S. O. Olhares Transversais Em Pesquisa, Tecno-logia e Inovação: o desafio da educação formal no século XXI. Rio de Janeiro: Tempo BrasileiroCristiane Dias

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APRESENTAÇÃO

O número 31 de Línguas e Instrumentos Lingüísticos traz um conjun-to de textos sobre questões semânticas e discursivas, e a resenha de uma obra que reúne diferentes perspectivas acerca de uma relação funda-mental para a educação na atualidade: aquela entre ensino e tecnologias da informação.

Autoridade da informação, de Eduardo Guimarães, abre este número trazendo uma análise enunciativa que nos faz refletir sobre os imaginá-rios sociais do que é relevante nestes tempos de Internet. Partindo da afirmação “Se não está no Google, não existe”, e do seu questionamento por meio de um ponto de interrogação entre parênteses em um texto postado na Internet, o autor analisa a pergunta como contra-argumento que se opõe à enunciação por autoridade que afirma o Google como lugar necessário de atestação do que há.

Em Tutores ou senhores? Uma análise semântica da palavra ‘tutor’ em tutelas brasileiras do período pós-abolição, Jorge Viana Santos e Dilma Marta Santos mostram, em mais uma análise argumentativa, como se constrói legalmente, no Brasil pós-Abolição da Escravatura, a manu-tenção de um estado de escravidão por meio da figura jurídica do tutor para crianças filhas de ex-escravas.

Eliana Lúcia Ferreira, em Discursos do desenvolvimento da dan-ça para pessoas com deficiência, reflete discursivamente sobre a dança como linguagem que mostra sentidos de pessoas com deficiência. Sen-tidos que quebram as expectativas dos dançantes e dos que os vêem em movimento, possibilitando a construção de uma ética mais solidária, para além do individualismo dominante.

‘Casar’: um estudo argumental e prototemático, de Ângela Cristina Di Palma Back e Magdiel Medeiros Aragão Neto, busca contribuir para a descrição do português pela sistematização da estrutura semântica ar-gumental do verbo ‘casar’, propondo que suas variações (x casa(-se), x casa(-se) com y e z casa x com y) devem ser interpretadas como polissê-micas.

Saber linguístico e história urbana: a produção do ‘nós’ nacional, de Carolina P. Fedatto, discute os imaginários representados na passagem da ideia de monumento à de patrimônio e os sentidos da produção da

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coesão nacional materializada linguisticamente no pronome ‘nós e’ ba-seada num passado comum, que tem as cidades como vestígio e instân-cia de fala em nome da nação.

A relação entre argumentação e enunciação é abordada novamente por Danilo Ricardo de Oliveira em Argumentação, linguagem e história: sentidos à carta testamento de Vargas. A carta-testamento de Getúlio Vargas é analisada na cena enunciativa que divide Locutor e Alocutá-rios, e os coloca em relação com a palavra ‘povo’ e suas determinações. Por meio dessas relações, o Locutor-presidente reafirma o seu lugar de político e se projeta como mártir, significando sua morte como a serviço do povo.

A seção Crônicas e Controvérsias traz o artigo Saussure e o Curso de Linguística Geral: uma relação de nunca acabar, de Maria Iraci Sousa Costa. A autora reflete sobre o caráter arbitrário do signo tal como pro-posto por Saussure no Curso de Linguística Geral, buscando relacioná--lo às discussões que permeiam o plano de escritura do Curso, em notas escritas por alunos e pelo próprio Saussure.

A resenha deste número é do livro Olhares Transversais Em Pesquisa, Tecnologia e Inovação: o desafio da educação formal no século XXI, orga-nizado por Maria Cecilia Mollica, Cynthia Patrusco e Maria de Fátima Barbosa. Cristiane Dias destaca na obra os diferentes olhares sobre a relação entre tecnologia e educação, a pertinência dos eixos temáticos propostos, a visibilidade de pesquisas em andamento no Brasil sobre o tema, além da sua capacidade de motivar questões sobre este momento em que a educação entra em relação necessária com as tecnologias da informação.

Com este número, Línguas e Instrumentos Lingüísticos espera ofere-cer mais uma vez reflexões consistentes e originais para a reflexão sobre a língua e a linguagem.

Os Editores

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AUTORIDADE DA INFORMAÇÃO

Eduardo GuimarãesDL-IEL/Labeurb - UNICAMP

RESUMO: Este artigo traz uma análise da afirmação “Se não está no Google, não existe”, na relação com a pergunta “Se não está no Google, não existe (?)”. Inscrito em uma semântica enunciativa não-referencialis-ta e não-cognitivista, o autor mostra que o segundo enunciado funciona como um contra-argumento que se opõe à enunciação por autoridade que sustenta o primeiro, contra-argumento este agenciado na relação entre língua e história.

ABSTRACT: This article presents an analysis of the affirmative statement “If it is not on Google, it doesn’t exist”, in relation to the question “If it is not on Google, it doesn’t exist (?)”. Based upon a non-referentialist and non-cognitivist enunciative semantics, the author shows that the second statement operates as a counter-argument that opposes the authoritative utterance that supports the first one, and that this counter-argument is configured thanks to its inscription in the relation between language and history.

Vivemos a era das chamadas “tecnologias da informação”. E este modo de nomear estas tecnologias da atualidade já significa a força “argumentativa” que a enunciação de uma palavra (informação), e de expressões correlacionadas, apresenta. O sentido desta nomeação (tec-nologias da informação) significa, entre outras coisas, que estamos de-terminados a funcionar na sociedade pelo modo como a relação com a informação produz redes e instrumentos que nos agenciam pela força dos sentidos por eles produzidos e dos modos de produzi-los.

Nesta conjuntura quero me deter na análise de um enunciado cujo sentido significa esta relação.

Vou me dedicar à análise do enunciado

(1) Se não está no Google, não existe.

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Vou me dedicar a analisar este enunciado na relação com outros enunciados correlacionados.

Este enunciado, que circula de vários modos atualmente, eu o vou tomar a partir de uma busca que fiz no próprio Google, e onde encontrei o seguinte texto:

T1-“Se não está no Google, não existe (?)A frase acima é uma máxima da internet. Se você acessou o site criado por Larry Page e Sergey Brin, pesquisou e não encontrou o que buscava, bem, é bem provável que você esteja pesquisando por algo que ainda não existe. Algo que não tenham (sic) nem mesmo o registro de uma vaga idéia sobre ele, afinal, não foi pos-sível obter informações pelo Google.Mas se você é um ávido usuário da internet, já deve ter se depa-rado com a escassez (ou até mesmo a ausência) de informações claras sobre algum assunto ou item. Até porque o Google não re-aliza buscas internas em determinadas redes ou serviços da web, limitando algumas buscas.O Baixaki lista agora uma série de dicas para que você tenha cer-teza de que espremeu a internet atrás daquilo que procura.”(www.tecmundo.com.br/google/4994-nao-achei-no-google-e-agora-.htm - em 24 de outubro de 2012).

Vou analisar, no texto considerado, o enunciado (1), na sua relação com o enunciado:

(2) Se não está no Google, não existe (?)

Antes de passarmos à análise, lembramos que, de nosso ponto de vista, os enunciados significam por integrarem textos. E estes são, nesta medida, unidades de significação que integram enunciados1. Nossa aná-lise vai considerar os enunciados em questão enquanto integrados a este texto. Isto nos permitirá também, a partir desta entrada no texto, refletir sobre sentidos que ele produz ao integrar estes enunciados.

Tomando-se o título do texto T1, (2) Se não está no Google, não existe (?)

Pode-se parafrasear (2) por

(2a) Dizem que no Google encontra-se tudo que se procura.

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(2b) Dizem “eu afirmo que se não está no Google, não existe”(2c) É mesmo possível afirmar que “se não está no Google, não exis-

te”?

A paráfrase (2c) se deve a que o enunciado (2) não é “se não está no Google não existe?”. O modo de apresentar a pergunta em (2) a coloca incidindo sobre o engajamento performativo de (1), sobre o aconteci-mento de dizer (1), e não simplesmente sobre o dito em (1).

Admitindo-se este modo de parafrasear, podemos dizer que o título do texto T1 traz em discurso relatado o enunciado (1) que se repete em enunciações variadas e constantes. E este aspecto, o da repetição, está ligado a que (1) é um enunciado que funciona como uma máxima, as-pecto reconhecido pelo próprio T1 que o cita.

Por outro lado, se consideramos a pergunta (2c), observamos que ela é paráfrase de

(2c’) Não se pode afirmar que “se não está no Google, não existe”.

que funciona, em certa medida, como paráfrase de

(2c’’) Não é verdade que “se não está no Google, não existe”.

Assim a pergunta que incide sobre a veracidade do que se diz em (1) se apresenta, e já o indicamos acima, tal como o próprio texto, como uma contestação à enunciação que afirma o enunciado (1). Mas vamos analisar mais de perto o enunciado (1) e o enunciado (2) que de algum modo o cita e contesta.

Argumento de AutoridadeTomando o enunciado (1), podemos considerar a seguinte paráfrase:

(1a) No Google encontra-se tudo que se procura. (1b) O que não está no Google não existe.

Admitida esta paráfrase para (1), somos levados a considerar que sua enunciação significa numa cena enunciativa2 como:

E1 – (1’a) no Google encontra-se tudo que se procura

(1’) l-x - L AL – al-x

E2 – (1’b) O que não está no Google não existe.

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Podemos considerar tal constituição da cena enunciativa, levando em conta que o que está significado em (1’a) não é dito ao mesmo título que o que está em (1’b). Uma primeira diferença se pode observar con-siderando que (1’a) pode ser parafraseado por

(1’a’) Como se sabe (como todos sabemos – como é sabido) no Google encontra-se tudo que existe.

Ao passo que o que está dito em (1’b) pode ser parafraseado por

(1’b’) considerando que sabemos que no Google está tudo que existe, afirmo (posso afirmar) que aquilo que não está no Google não existe.

Deste modo há uma diferença no modo de dizer e significar (1’a) e (1’b). Por outro lado há que se levar em conta que em (1) a afirmação de algo torna-se aquilo que garante sua existência. A afirmação constitui a própria garantia de sua verdade. Como podemos explicar este modo de significar?

Avancemos um pouco mais. Voltando à cena enunciativa represen-tada em (1’) podemos considerar que E1 é um enunciador genérico, já que esta voz (veja a paráfrase (1’a’)) é uma voz difusa que mostra, na perspectiva de E1, que “no Google encontra-se tudo que se procura”. Por outro lado podemos considerar que uma voz individual se respon-sabiliza por “(afirmo) o que não está no Google não existe”. Ao mesmo tempo podemos considerar que o l-x (um l-internauta) é agenciado pela voz genérica e L é agenciado pela voz individual.

Antes de avançar na interpretação do que pudemos descrever, vou trazer aqui o que se conhece como argumento de autoridade.

Para começar tomemos a definição de Perelman e Tyteca (1958, P.411):

O argumento de prestígio mais nitidamente caracterizado é o argumento de autoridade, o qual utiliza atos ou julgamentos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova em favor de uma tese.

Ducrot (1984, P.140), de uma maneira mais técnica, diz:

Eu direi que se utiliza, a propósito de uma proposição P, um argu-mento de autoridade, quando, ao mesmo tempo:1. indica-se que P já foi, é atualmente, ou poderia ser objeto de uma asserção;

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2. apresenta-se esse fato como se valorizasse a proposição P, como se a reforçasse, como se lhe ajuntasse um peso particular”.

Um outro aspecto a considerar aqui é que este argumento de autorida-de, recusado como válido em manuais de retórica, é de grande interesse para o modo de significação em muitos casos. Perelman e Tyteca dizem mesmo que apesar de os positivistas considerarem o argumento de auto-ridade como fraudulento, eles, ao contrário, consideram que “o argumen-to de autoridade é de uma importância extrema, e se é sempre permitido, em uma argumentação particular, contestar seu valor, não se pode, sem mais, descartá-lo como irrelevante...” (Perelman e Tyteca, 1958, p. 412).

De nosso ponto de vista, isto é tanto mais importante, porque o que está em jogo não é a existência de algo, mas como um enunciado signi-fica nestas condições.

Voltemos ao enunciado (1) e à configuração da cena enunciativa em (1’). Claramente podemos dizer que (1’a), enunciado do lugar de E1, funciona como um argumento de autoridade: apresenta um dizer como uma afirmação que tem um peso particular, que sustenta a enunciação de (1’b). E é nesta medida que (1) funciona como a sustentação de sua própria verdade. (1) produz uma garantia circular sobre o que significa, e neste plano está, aparentemente, do ponto de vista enunciativo, imune a contra-argumento.

Argumento de Autoridade e Contra-ArgumentoComo vimos no início, tomamos o enunciado (1) num texto que tem

o objetivo de dizer que há muita informação na internet à qual não se chega pelo Google. O enunciado (1) é um enunciado que, de algum modo, está relatado pelo enunciado (2), que aparece como título de um texto. Retomemos o enunciado

Se não está no Google, não existe (?)

Este enunciado, tal como consideramos antes, pode ser parafraseado como segue:

(2a) Dizem que no Google encontra-se tudo que se procura.(2b) Dizem “eu afirmo que se não está no Google, não existe”(2c) É mesmo possível afirmar que “se não está no Google, não existe”?

Como vimos, o que este parafraseamento mostra é que a pergunta não incide, simplesmente, sobre o que se afirma em (1) relatado em (2).

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A pergunta incide sobre a enunciação de (1), coloca em questão o fato de se afirmar (1). Deste modo podemos considerar para (2) a seguinte cena enunciativa (as perguntas (2’c1) e (2’c2) aqui são o modo de levar em conta (1), considerando a cena enunciativa (1’):

E1 – (2’a) No Google encontra-se tudo que se procura.E2 – L1- (2’b) eu afirmo que se não está no Google não existel-x - L E3- (2’c1) – É mesmo possível afirmar (é verdade

que) no Google encontra-se tudo que se procura?E3 – (2’c2) É mesmo possível afirmar (é verdade que) “se não está no Google, não existe”?

E neste caso observa-se que E1 significa enquanto enunciador ge-nérico, mantemos aqui a análise que fizemos para (1), e E2 como um enunciador individual que agencia L1. Por outro lado E3 é também um enunciador individual que agencia L e l-(x internauta). E a pergunta de L (na verdade as perguntas) produz um outro movimento argumenta-tivo. Tal como dizem Anscombre e Ducrot (1983), uma pergunta total, de resposta direta sim/não, tal como em (2), tem a mesma direção argu-mentativa que o enunciado negativo correlacionado.

Para avançar nesta reflexão, tomemos a pergunta significada em (2), na forma de (3): paráfrase de (2’c1) e (2’c2):

(3)Estas afirmações estão corretas/é possível fazer estas afirma-ções?

Note-se que podemos imaginar para (3) a seguinte continuidade, na voz de um mesmo L:

(3a)Estas afirmações estão corretas? Mas não creia que quero te contestar.

E soaria estranho, nas mesmas condições, por redundante,

(3b) Estas afirmações estão corretas? Eu quero te contestar.

Por outro lado, podemos considerar (3c) paráfrase de (3d):

(3c) Estas afirmações estão corretas? Você quis nos enganar.

(3d) Estas afirmações não estão corretas. Você quis nos enganar.

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Ou seja, a diretividade argumentativa da pergunta é a mesma da ne-gação, nestes casos.

Por outro lado, considerando o texto do qual (2) é título, observamos que se trata de um texto que se desenvolve, exatamente, segundo a di-reção argumentativa do não. Note-se que o primeiro parágrafo do texto T1, que sustenta uma argumentação na direção apresentada por (1), é um argumento preterido pela relação concessiva que se estabelece em enunciações como A mas B3. Como se vê, o segundo parágrafo do texto, introduzido por mas, é o argumento que se impõe pelo texto, exatamen-te enquanto oposto ao que se argumenta no primeiro parágrafo (aquilo que se pretere). Ou seja, a pergunta em (2) direcionou o texto que aí se produz para

(2’) Não é verdade que se encontra tudo no Google.

Assim podemos considerar que tanto

(2c) Estas afirmações (2a e 2b) são corretas?

quanto

(2c’) Estas afirmações (2a e 2b) não são corretas.

orientam para (2’). E neste caso podemos considerar que em (2) tem-se o que se conhece como uma pergunta retórica (funcionamen-to claramente explicado pelo sentido da direção argumentativa destas perguntas totais)4. Ou seja, trata-se de uma pergunta que já traz sua resposta, e sempre uma resposta negativa. E assim acaba significando a afirmação da negação correspondente. Ou seja, o enunciado (2) per-gunta se as afirmações (2a) e (2b) são corretas e traz a resposta de que não são corretas.

De outra parte, a contestação através da pergunta traz, de um lado, um elemento diverso da contestação pela negativa direta: L, agenciado em (2), não confronta diretamente o L1 agenciado em (1) e citado em (2); de outro lado, a contestação realizada se mostra, em certa medida, como realizável, por estar neste modo de enunciação. Por se apresen-tar como pergunta retórica, a negativa afirmada tem a mesma força de contestação que o argumento de autoridade tem. A direção argumenta-tiva da pergunta retórica, exatamente porque não discute o argumento, coloca-o como inexistente. Tanto o argumento de autoridade quanto a pergunta retórica tiram sua força argumentativa por não dizerem dire-tamente o que dizem.

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Assim chegamos ao seguinte, o Google traz um enunciado que sus-tenta que há tudo nele e que não há tudo nele. Nada de especial neste funcionamento da orientação argumentativa neste caso. O que há é que esta argumentação traz uma particularidade: sustenta a “importância” de um instrumento tecnológico específico, e, ao fazer isso, sustenta o próprio sentido como mera informação: o todo disponível são infor-mações que o instrumento encontra onde estiver. De um lado um argu-mento de autoridade sustentando que o todo das informações podem ser encontradas no Google, de outro uma pergunta já direcionando a argumentação para o contrário do argumento de autoridade. A signi-ficação da argumentação por autoridade é, fundamentalmente, a sus-tentação da hegemonia disto que chamamos um buscador, um motor de busca (um buscador “interessa” enquanto seja capaz de encontrar as “informações” de que precisamos). E a afirmação contrária, ou conclu-são contrária, formulada no modo da pergunta retórica, não é impedida de significar, pelo próprio modo de funcionamento da tecnologia, do buscador. O funcionamento desta tecnologia produz, então, sentidos que não só não podem ser compreendidos como informações, como também são sentidos que significam contra o sentido de informação.

ConclusãoO interesse nisso é que, ao sustentar em (2), no texto T1, um argu-

mento contrário ao argumento em (1), temos um L que contesta a au-toridade do Google. Contestação que o Google não tem como deixar de mostrar, como forma mesmo de sustentação da sua autoridade.

De outra parte, o modo de (2) contestar o argumento de autoridade em (1) só pode se dar admitindo-se a afirmação de (1) e a autoridade que o sustenta, admitindo-se seu caráter de evidência.

Projetando o resultado dessa análise semântica para a reflexão dos sentidos destas novas tecnologias, podemos observar que, dada a na-tureza do instrumento (o buscador, o motor de busca), ele não contém nada (um buscador não contém nenhuma das informações que procu-ra), mas é significado como “contendo” tudo, veja que o enunciado (1) afirma

(1) Se não está no Google, não existe.

Podemos considerar que estamos diante de uma metáfora5, pela qual um enunciado como

(1c) Se não encontrou pelo Google, não existe.

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tem o não encontrou reescrito e condensado por não está. Ou seja, o enunciado (1c) é reescriturado e condensado pelo enunciado (1). Esta metáfora faz assim significar o Google como um ambiente da rede onde há tudo, mesmo que nele nada haja.

E nesta medida, nele não só encontramos um contra-argumento que, ao opor-se ao argumento de autoridade, opõe-se à própria autoridade, e que nos leva ao próprio enunciado que contesta a autoridade. O Goo-gle não “sabe” que o contestam, o Google nos leva ao argumento que o contesta e isso, ao mesmo tempo, sustenta o argumento de autoridade. O enunciado analisado adensa toda a contradição entre a afirmação do acesso a toda a informação e a impossibilidade disso, que acaba por sig-nificar circularmente, a sua própria sustentação (ao estar dito que nem tudo, nem toda informação é acessível, afirma-se que toda ela é acessí-vel). Estamos diante do que vou chamar de controvérsia da informação, sustenta-se que toda informação está no Google, ao se contraditar que toda informação está no Google. Ela, a controvérsia, é constituída por uma argumentação de autoridade, e que sustenta socialmente o lugar das chamadas novas tecnologias da informação, e por uma argumenta-ção que coloca diretamente em questão esta autoridade.

Particularmente interessante no caso analisado é que a contestação do argumento de autoridade, e assim da própria autoridade, se faz por um movimento de sentido muito particular, uma pergunta retórica, que ao ser feita, ao incidir sobre o argumento de autoridade já o nega. Trata--se de um embate argumentativo que se apresenta como fora de qual-quer necessidade de sustentação veritativa. Não se trata da existência das coisas empiricamente, trata-se de como elas estão significadas.

A análise dos enunciados considerados coloca em pauta isto que chamei controvérsia da informação. Ou seja, significar instrumentos como buscadores, como tecnologias da informação, faz significar a in-formação como um todo acessível e ao mesmo tempo significa-se a im-possibilidade disso. (1) e (2) afirmam isso e contradizem isso. E mais, (2) se apresenta, como “informação” no próprio espaço garantido pelo enunciado (1).

Do nosso ponto de vista, e foi por isso que chamei o confronto de sentidos em (2) de controvérsia (e não de paradoxo e muito menos falá-cia), o que interessa na análise dos enunciados (1) e (2) não são as infor-mações, mas o modo de significar destas tecnologias, em condições his-tóricas específicas, e que a análise dos enunciados nos leva a entender. A contradição na controvérsia não tem que ser “resolvida”, ela significa uma “condição” do funcionamento destes instrumentos tecnológicos.

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Notas1 A este respeito ver Guimarães (2011).2 No sentido que dou a esta noção (Guimarães, 2002). L = Locutor (que se apresenta como responsável pelo dizer); AL= o correlato de L; l-x = lugar social de locutor; al-x = correlato de l-x; E = enunciador, um lugar de dizer (uma “perspectiva” do dizer).3 A este respeito ver, por exemplo, Guimarães (1987).4 Ver em Anscombre e Ducrot (1983, p.127-137) uma discussão mais específica sobre o funcionamento da pergunta retórica.5 A respeito do funcionamento da metáfora, tal como a considero, ver Guimarães (2011).

Referências BibliográficasANSCOMBRE, J-C.; DUCROT, O. (1983) L’argumentation dans la lan-

gue. Bruxelas: Mardaga.DUCROT, O. (1984) “A argumentação por Autoridade”. In: ______. O

dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987, p.139-159.GUIMARÃES, E. (1987) Texto e Argumentação. Campinas: Pontes.GUIMARÃES, E. (2002) Semântica do Acontecimento. Campinas: Pon-

tes.GUIMARÃES, E. (2011) “Uma Hipótese sobre a Metáfora”. In: RODRI-

GUES, E. A. et. al. (Orgs.) Análise de discurso no Brasil. Pensando o impensado sempre, uma homenagem a Eni Orlandi. Campinas: RG, p.359-371.

PERELMAN, Ch.; OLBRECHTS-TYTECA, L. (1983) Traité de l’argumentation. Bruxelas: Editons de l’Université de Bruxelles.

Palavras-chave: argumentação, enunciação, autoridadeKey-words: argumentation, enunciation, authority

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TUTORES OU SENHORES? UMA ANÁLISE SEMÂNTICA DA PALAVRA TUTOR

EM TUTELAS BRASILEIRAS DO PERÍODO PÓS-ABOLIÇÃO

Jorge Viana Santos1

UESBDilma Marta Santos2

UESB/FACE

RESUMO: Neste artigo, analisam-se enunciados de seis processos de tutela da cidade de Rio de Contas-Bahia, ocorridos entre 1888 e 1895, comparando-os a enunciados das Ordenações Filipinas, nas quais se fun-damentam, para depreender os funcionamentos de sentidos da palavra ‘tutor’. Mobilizando categorias da Semântica Argumentativa, os autores postulam que em tais documentos se materializam sentidos que argumen-tam em favor da manutenção da condição de escravizado de crianças fi-lhas de ex-escravas no Brasil Pós-Abolição.

ABSTRACT: This article analyzes statements of six cases of guardianship in the city of Rio de Contas, Bahia, that occurred between 1888 and 1895, comparing them with statements of the Portuguese law Ordenações Filipi-nas, on which these cases are based, in order to observe the functioning of senses of the word ‘tutor’ (‘guardian’). Mobilizing categories of Argumen-tative Semantics, the authors postulate that such documents materialize senses that argue in favor of the maintenance, in Post-Abolition Brazil, of the condition of enslaved for the children of former-slave mothers.

1. IntroduçãoAnalisar o sentido de tutor requer que compreendamos, ainda que

em linhas gerais, princípios legais que fundamentaram a sociedade bra-sileira no final do século XIX, contexto em que se encontram os proces-sos de tutela aqui estudados. A base jurídica que fundamentou as tutelas

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foram as Ordenações Filipinas, sobretudo nos títulos referentes à famí-lia, tendo em vista que a relação de tutela ocorre dentro desse âmbito.

Desse modo, duas concepções de família devem ser abordadas para que possamos entender em quais contextos circularam o sentido de tu-tor: de um lado, o contexto europeu, original das Ordenações; de outro, o contexto brasileiro pós-abolição, no qual se encontravam as tutelas da cidade de Rio de Contas-Bahia.

No contexto europeu, no qual se baseiam as Ordenações Filipinas, a estrutura familiar era predominantemente patriarcal e possuía um nú-cleo constituído por pai, mãe e filhos, nessa ordem hierárquica, que se complementava com a figura do avô e avó, tios e primos, e outros pa-rentes.

Até certo ponto, no contexto brasileiro do final do século XIX, seme-lhantemente à Europa, funcionava entre os brancos (livres, senhores) um modelo de família patriarcal/senhorial. Porém, paralelamente a essa modalidade de família, considerando que vigorava o regime escravis-ta, existia também a família escrava composta predominantemente por mãe e filhos3.

Conforme Malheiro (1866), enquanto na família patriarcal/senho-rial a figura do pai/patriarca era de relevância reconhecida, na família escrava brasileira, a mãe com seus filhos demarcava o único espaço de convivência familiar permitida para sua classe, independentemente da existência da figura do pai. Para esse jurista,

O Direito Romano já havia reconhecido e firmado o princípio de que – o escravo não tinha nem tem família; entre escravos não ha-via, em regra, casamento, apenas contubernium, união natural ou de fato; nem parentesco, nem poder marital, ou pátrio (Malheiro, 1866, p.59)4.

A falta de uma estrutura familiar regulamentada por lei entre os es-cravos foi considerada por Slenes (1998) estratégias dos senhores de es-cravos. Para o autor,

O resultado de uma política senhorial de ‘tolher e solapar’ todas as formas de solidariedade entre os cativos, a ‘família” escrava’ – não apenas a ‘linhagem’, mas também a família conjugal/nuclear, com o pai ‘presente’ na vida dos filhos – praticamente inexistiu (Slenes, 1998, p.1).

Slenes (1998, p.2) explica que, quando aconteciam os casamentos oficiais entre os escravos, os senhores os “[...] encaravam não apenas

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como uma instituição que contribuía para a reprodução, mas também como um elemento simbólico essencial para seu domínio”.

Nesse sentido, Nabuco (1883, p.113) salienta que “durante três sé-culos a escravidão, operando sobre milhões de indivíduos, em grande parte desse período sobre a maioria da população nacional, impediu o aparecimento regular da família nas camadas fundamentais do país”.

Assim, será considerando, por um lado, o modelo de família patriar-cal que funcionou no contexto europeu e brasileiro no final do século XIX e, por outro lado, a família escrava brasileira desse mesmo pe-ríodo, que buscaremos analisar os sentidos específicos que a palavra tutor assumiu em cada um deles, fazendo com que as tutelas brasileiras funcionassem para, caracteristicamente, beneficiar os candidatos a tuto-res, a saber, os ex-senhores brasileiros. Metodologicamente, buscando, pois, resposta para a questão: qual o sentido de tutor no Brasil pós--abolição?, consideraremos, comparativamente, dois recortes: o sentido de tutor nas Ordenações Filipinas; e o sentido nas tutelas brasileiras. Como fundamentação teórica, optamos pelo ponto de vista semântico argumentativo, especificamente a Teoria da Argumentação na Língua, tal como postulada em Ducrot (1973), Anscombre e Ducrot (1976), Du-crot (1984) e Ducrot e Carel (2005), dos quais mobilizamos precipu-amente os conceitos de operador argumentativo, polifonia (sobretudo enunciador), adjetivação negativa, aspecto, argumentação interna (AI) e argumentação externa (AE).

2. Análise e discussão2.1 O sentido de Tutor nas Ordenações

As Ordenações Filipinas continham títulos específicos5 referentes aos processos de tutela, que traziam um repertório de orientações tanto para os pretendentes a tutores quanto aos possíveis órfãos. Tratava em especial de quem poderia ser candidato a tutor e as atribuições que o mesmo deveria ter como responsabilidade para com o órfão.

Por isso, o sentido de tutor nas Ordenações Filipinas pressupõe que se considerem dois critérios de escolha: tutores previstos em testamen-to; e tutores não previstos em testamento.

De um lado, os tutores previstos em testamento eram escolhidos de acordo com a vontade do pai patriarca, independentemente do grau de parentesco, o laço sanguíneo ou a condição financeira dos tutores.

Ressalte-se que a feitura de um testamento se dá na existência de bens, fato que evidencia a característica senhorial/patriarcal de ter pos-se. Considera-se também o pai que, tendo o domínio, preocupa-se com a manutenção e/ou aumento dos bens e faz com que ele possa assumir para si o direito de indicar, de maneira incontestável, até mesmo pelo

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Estado, o tutor que desejar para o filho/órfão. Esta escolha do tutor sem necessidade de considerar nenhum critério que não a própria vontade de pai patriarca caracteriza o poder senhorial que inclusive pode des-considerar os critérios fundamentais que o Estado adotará, caso não haja tutor em testamento, a saber: grau e laço sanguíneo, condição fi-nanceira.

Conforme Santos (2008, p.192), posse, domínio e poder se relacio-nam com a figura do senhor que, “[...] não é uma forma de tratamento substantivada como nos dias atuais”, mas “[...] a contraparte exata do es-cravo”. Este senhor, por sua vez, possui a qualidade de ter senhorio, que, para este mesmo autor, “diz respeito ao conjunto de normas, costumes, que legalizam a figura do senhor [...] e remete a característica de posse e domínio” garantida pelo Direito Costumeiro6. Portanto, semanticamen-te, senhorio tem uma argumentação interna que pode ser determinada pelo aspecto Posse PT Domínio. É de acordo com esse sentido atribuído semanticamente a entidade senhorio, que o pai patriarca e portanto, se-nhor, pode, valendo-se das características conferidas a ele pelo Direito Costumeiro, escolher o tutor, considerando para isso apenas a sua von-tade própria. A vontade de um senhor é o resultado das características de posse, domínio e poder. Assim, vontade de um senhor no contexto de família patriarcal é, diferentemente de vontade/desejo, caraterizável semanticamente como vontade PT poder. Estabelece-se, desta maneira, a característica fundamental da entidade senhorio, representada pelo as-pecto senhorio PT poder.

Esse fato, a vontade senhorial resultado de posse, domínio e poder, fica evidenciado em vários trechos das Ordenações Filipinas, como é o caso do excerto (1):

Excerto 1 (Ord.)7

O Juiz de Órfãos terá cuidado de dar Tutores e Curadores a todos os Órfãos e menores (...). E para saber como há de dar os ditos Tutores e Curadores, primeiramente se informará se o pai, ou avô deixou em seu testamento Tutor, ou Curador a seus filhos, ou netos (Ord. Livro IV, Título 102, p.994 – Grifo nosso).

Aqui nota-se que o locutor/Juiz, representando a voz do Estado, terá cuidado de dar Tutores, impondo, em certa medida, o estabelecimento de tutor ao órfão de forma imperativa que se caracteriza numa estru-tura lexical dada pelo encadeamento dar PT impor, ao invés de outra, também possível, dar PT oferecer. Acontece que essa imposição feita pelo Estado obedecia a um critério de escolha, revelado pelo operador argumentativo primeiramente: a vontade do pai patriarca sobressai-se

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a qualquer ordenamento jurídico. A autoridade indiscutível do pai pa-triarca é respeitada assim pelo Estado, na medida em que este só deter-mina tutor para o órfão na circunstância em que o senhor não tenha deixado em testamento materializada a sua vontade, ou seja, o Estado só age após e considerando o primeiramente: em primeiro lugar, a vontade do pai, depois o Estado.

De outro lado, os tutores não previstos em testamento eram escolhi-dos segundo um quadro que obedecia rigorosamente a critérios hierar-quizados imperativamente pelo Estado, distribuídos em dois núcleos: o familiar e o não familiar.

a) O núcleo familiarO núcleo familiar subdividia-se em dois subnúcleos: o subnúcleo dos

genitores, formado por mãe e avó; e o subnúcleo dos parentes.Em primeiro lugar, no subnúcleo dos genitores, a mãe ou a avó apre-

senta-se nas Ordenações Filipinas como a segunda possibilidade para se dar tutores aos órfãos. Nele, evidencia-se a prevalência do laço sanguí-neo e do grau de parentesco ratificando, ainda que de maneira implícita, tanto o poder econômico ao qual a viúva (mãe do órfão) também tem direito quanto o dever de manutenção da herança, numa demonstração de zelo pelos bens familiares. É o que se pode notar em (2):

Excerto 2 (Ord.)

(...) se o órfão, ou menor não tiver Tutor ou Curador, dado em testamento, nem mãi ou avó, que seja sua Tutora ou Curadora na maneira que dito he, o parente mais chegado, que tiver no lugar, ou termo, onde estão os bens do órfão será constrangido, que seja seu Tutor ou Curador. (...) E em quanto fôr achado pa-rente do órfão idôneo e pertencente para ser seu Tutor, não seja constrangido a isso algum estranho (Ord. Livro IV, Título 102, p.1001 – Grifo nosso).

Nesse exemplo, observamos na oração se o órfão, ou menor não ti-ver Tutor ou Curador, dado em testamento, nem mãi ou avó uma con-dicional8 que envolve em sua argumentação interna um aspecto como se não há tutor em testamento PT convoca-se mãe ou avó, configurando a mãe ou avó como a segunda possibilidade de tutela prevista em lei, ou seja, se não há um tutor expresso em testamento, imediatamente a mãe ou avó assumirá essa função. Neste caso, além de mostrar a priorização do laço sanguíneo e do grau de parentesco, ratifica-se o senhorio do pai patriarca na medida em que a mãe, mesmo sendo a mãe do órfão,

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a priori, a pessoa naturalmente ideal para tutela, precisa ser determina-da legalmente pelo Estado como tutora. Esse funcionamento duplo da condicional mencionada, “[...] confirma a tese da TBS de que relativas apositivas e condicionais podem exercer uma função argumentativa so-breposta às suas funções adjetivas normais, por assim dizer” (Santos, 2008, p.240).

Em segundo lugar, no subnúcleo dos parentes, considera-se para es-colha do tutor primordialmente o critério de melhor condição financei-ra, isto em detrimento do grau de parentesco. Entenda-se, portanto, que o parente em melhores condições financeiras será constrangido pelo Estado a assumir a tutoria do órfão, ainda que esse parente não mante-nha com o órfão o grau mais próximo de parentesco. Essa preferência pelo parente abonado demonstra, em certa medida, que o Estado tem duas preocupações: além de conservar a estrutura familiar, zelar pela manutenção dos bens, pressupondo-se que um parente abonado tenha as habilidades necessárias para geri-los. O excerto abaixo exemplifica:

Excerto 3 (Ord.)E em quanto o Juiz achar parente do órfão abonado para ser Tutor, não constrangerá o que não for abonado, ainda que seja parente mais chegado em grao, de maneira que somente por fal-ta do abonado seja constrangido o não abonado (Ord. Livro 4, Título 102, p.1002 – Grifo nosso).

Observa-se que o excerto inicia-se com uma oração subordinada temporal E em quanto o Juiz achar parente do órfão abonado [...], intro-duzida pelo marcador em quanto, marcador esse que indica semantica-mente que a prioridade é para o parente abonado9. Ainda nesse excerto, o uso do verbo constranger indica uma estrutura lexical que pode ser ca-racterizada pelo encadeamento normativo constranger PT obrigar, de-monstrando que o locutor/Juiz, representando a voz do Estado, impõe ao parente abonado uma condição que não pode ser contrariada. Dessa maneira, o Estado, imperativamente, assegura a manutenção da família patriarcal, procurando manter a integridade da família e, sobretudo, a integridade dos bens.

b) O núcleo não familiarVistas as características do núcleo familiar, passemos ao núcleo não

familiar que, por seu turno, tem como característica principal a escolha de um estranho, desde que obedeça hierarquicamente aos critérios de: i) ser ‘um homem bom do lugar’, e ii) ser ‘abonado’. Consideremos o excerto 4:

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Excerto 4 (Ord.)E não se achando parente ao órfão para poder ser constrangido, o Juiz obrigará hum homem bom do lugar, que seja abonado, discreto, digno de fé e pertencente para ser Tutor e Curador do dito órfão, e para guardar e administrar sua pessoa e bens, que o órfão tiver nesse lugar: ao qual fará entregar o dito órfão, e todos seus bens por scripto (Ord. Livro IV, Título 102, p.1002 - grifo nosso).

Primeiro, com relação ao critério ser um homem bom do lugar, ob-serva-se no enunciado o Juiz obrigará hum homem bom do lugar que a estrutura lexical do verbo obrigar indica que o locutor/Juiz, assumindo de forma imperativa a voz do Estado, permanece determinando a tu-tela de um órfão, ainda que o escolhido seja um estranho. Portanto, a estrutura lexical do verbo obrigar, formado aqui normativamente como obrigar PT constranger10, indica que não há possibilidade de o tutor se negar a essa obrigação dada pelo Estado.

Entretanto, observa-se em segundo, que ser um homem bom do lu-gar, não é, nas Ordenações, o mais importante. Isso porque tal critério só funciona como contraparte do segundo: ser abonado. Ser abonado, em princípio, indica ter bens, o que, de certa maneira, diminui a proba-bilidade de o tutor querer e/ou necessitar utilizar em seu favor os bens do órfão que são, a rigor, os bens da família.

Ainda, em (4), observamos no enunciado e para guardar e adminis-trar sua pessoa e bens, que o órfão tiver nesse lugar a estrutura lexical do verbo guardar, determinado por um aspecto do tipo normativo guar-dar PT proteger e administrar por administrar PT gerir nos indica que a função do tutor se resume às questões administrativas financeiras, não estando ao seu cargo a função de substituir o pai do órfão nem questões afetivas e sentimentais11.

Em suma, o sentido de tutor nas Ordenações Filipinas se estabelece de acordo com os critérios apresentados. Primeiro, o Estado cumpre a determinação do pai/patriarca. Segundo, determina, de forma impera-tiva, os tutores do núcleo familiar que têm prioridade: a mãe ou a avó. Terceiro, na falta destas, o Estado constrange um parente que, priori-tariamente precisa ser abonado. Em quarto, na falta do parente abona-do, o Estado constrange um parente não abonado. Esgotam-se assim as possibilidades hierarquizadas de parentes para a função de tutor, o que, nas Ordenações, demonstra a preocupação do Estado em preservar, so-bretudo, a administração dos bens dentro da família patriarcal. A der-radeira alternativa para tutor de um órfão, segundo as Ordenações Fili-pinas, é a escolha de um estranho abonado que, assim como os demais,

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será constrangido pelo Estado a assumir a tutoria. Assim, o sentido de tutor previsto nas Ordenações Filipinas pressupõe que se considere a escolha do pai patriarca, ou a determinação do Estado para a função de guardar e administrar os bens do órfão. Desta maneira, observamos que em nenhuma das possibilidades de se dar tutor ao órfão houve a pré--disposição voluntária do escolhido.

Pelo exposto, confirma-se, pois, nas Ordenações a obrigatoriedade estabelecida imperativamente pelo Estado de a função de tutor, com seus sentidos específicos, ser assumida, legalmente, por um parente ou um estranho abonado.

2.2 O sentido de tutor em processos de Tutela da cidade de Rio de Contas-BA

No Brasil Pós-Abolição, a busca por tutelas de filhos de ex-escravas se tornou comum tendo em vista que os ex-senhores pretenderam dar continuidade a funcionamentos, que juridicamente já se haviam extin-guido com a abolição. Por conta disso, os seis processos de tutela da ci-dade de Rio de Contas-Bahia, corpus desta análise, estão historicamente situados no período imediatamente pós-abolição o que, em certa medi-da, aponta para um contexto sócio-histórico marcado pelas mudanças ocorridas com a extinção do escravismo, pelo menos no campo legal.

Então, tendo visto na seção anterior que o sentido de tutor nas Or-denações Filipinas baseava-se em critérios de escolha e, em princípio, estava coordenado com o tipo de família em que se estabelecia a tutela12, pode se perguntar: e no Brasil, qual o sentido de tutor, considerando famílias escravas como alvos de tutelas pelos seus ex-senhores?

Postulamos como hipótese que o sentido de tutor nas tutelas brasi-leiras se configura como aquele que, ao invés de obedecer aos critérios de escolha e de cumprir com as funções estabelecidas pelas Ordenações, cria no seu discurso (no sentido ducrotiano do termo), encadeamentos argumentativos que, no nível da frase, revelam aspectos os quais, sobre-tudo pelo fenômeno da interdependência semântica13, simetricamente qualificam/predicam positivamente a figura do tutor, desqualificando simultaneamente a figura da mãe, promovendo assim condições espe-cíficas que permitam que ele enquanto um ex-senhor, seja voluntaria-mente não um, mas o único candidato possível a tutor de um filho de ex-escrava, diferentemente do sentido de tutor nas Ordenações Filipi-nas.

Na sequência, analisaremos o sentido da palavra tutor nos enuncia-dos de processos de tutela da cidade de Rio de Contas. Para tanto, em 2.2.1, consideramos na família escrava brasileira os sentidos das figuras que a compõe, a saber, pai, mãe e filho em contraponto com as figuras

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da família patriarcal, as quais, como vimos, foram fundamentais para o estabelecimento do sentido de tutor nas tutelas das Ordenações. Ain-da nesse item, além de considerar as figuras da família, será necessário também considerar o Estado, como mediador na instituição dos pro-cessos de tutela. Já em 2.2.2, estabeleceremos como esses sentidos fun-cionam como uma condição imprescindível para a constituição de um sentido específico de tutor nas tutelas brasileiras.

2.2.1 A família escrava e o Estado: alguns sentidos das figuras envol-vidas no processo de tutoria em sua co-relação com tutor

No Brasil, a família escrava, diferentemente da família patriarcal, não era composta por um núcleo familiar coeso. No entanto, as figuras que a compunham eram, lexicalmente, as mesmas da família patriarcal (pai, mãe e filho): os sentidos materializados nas Ordenações e nas tutelas brasileiras é que se diferiam. O mesmo acontece com o sentido de Esta-do que, em sua materialização, assume sentidos diferentes nas Ordena-ções e nas tutelas brasileiras.

a) A figura do paiSe nas Ordenações, como vimos, pai é caracterizado com o senti-

do de patriarca e gestor de bens, nas tutelas brasileiras, pai se apresenta com uma função diversa: a função de genitor normalmente ausente, não necessariamente morto. Isto fica caracterizado, linguisticamente, por exemplo, em (5):

Excerto 5 (Tut.)Diz Estanislau Francisco de Azevedo que, tendo em sua compa-nhia os menores Maria de 14 annos e José de 12, filhos naturaes de sua ex escrava Romana, solteira, libertada pela Lei de 13 de Maio do corrente anno, o suplicante quer encarregar-se da tutela dos ditos menores, para os zelar e tratar de sua educação, pelo grande amor, que lhes tem, visto como a mãe dos menores não tem os meios precisos para lhes dar educação alguma.(Tutela nº 1, f.2,cx 2, estante 12, 06/07/1888 - AMRC14).

Nesse exemplo, a caracterização adjetiva da ex-escrava Romana como solteira comporta a ideia de que os filhos naturaes não tem pai pre-sente, sendo esse apenas o genitor. No entanto, em se tratando de uma ex-escrava, solteira não remetia apenas ao estado civil, mas à condição de ter um filho natural (mãe solteira de família escrava), diferente da-quela que possuía um filho legítimo (mãe casada de família patriarcal). Nesse enunciado, portanto, observa-se que o uso do adjetivo solteira,

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funciona, argumentativamente, não só para caracterizar a figura do pai ausente, como também ao mesmo tempo para caracterizar depreciati-vamente, do ponto de vista do locutor/senhor (candidato a tutor), a mãe da criança, motivo da tutela.

b) A figura da mãeNo tocante à figura da mãe, seu sentido nas Ordenações Filipinas é

caracterizado como a genitora e no máximo a candidata possível à tutela dentro núcleo familiar, ao passo que, nas tutelas brasileiras, o sentido de mãe a pressupõe como a figura principal da família escrava, pois funciona como a fonte de perpetuação da escravidão. É através do nascimento de filhos assistidos pela Lei do Ventre Livre que se presume a possibilidade de tutela. Assim, a mãe nas tutelas brasileiras é caracterizada pelo locutor/tutor que se utiliza do recurso da adjetivação negativa para desqualificá--la. Para Ducrot (2005, p.93), a negação se caracteriza ao “[...] descrever o sentido de não-é como uma transformação do sentido de é”. Isso signifi-ca que, embora a voz preponderante seja a do locutor/tutor, outras vozes aparecem representadas por enunciadores (os positivos) ao qual o locu-tor/tutor não se assimila, assimilando-se ao E2 negativo. Por conta disso, ao caracterizar negativamente a figura da mãe, simultaneamente ele se caracteriza positivamente, como podemos ver em dois exemplos.

Primeiramente, no excerto 6, o locutor/tutor caracteriza a figura da mãe como [...] aquela que não tem os meios precisos para dar educa-ção[...]:

Excerto 6 (Tut.)o suplicante quer encarregar-se da tutela dos ditos menores, para os zelar e tratar de sua educação, pelo grande amor, que lhes tem, visto como a mãe dos menores não tem os meios precisos para lhes dar educação alguma.(Tutela nº 1, cx 2, estante 12, 06/07/1888 - AMRC).

Aqui, o locutor/tutor15 ao assumir a responsabilidade do enunciado [...] a mãe dos menores não tem os meios precisos para lhes dar educação [...], convoca simultaneamente, devido à negação, um Enunciador E1 que sustenta que [...] a mãe tem os meios precisos [...] e um E2, que sus-tenta que [...] a mãe não tem os meios precisos[...], ao qual esse locutor se assimila.

Uma segunda característica atribuída a figura da mãe pelo locutor/tutor é apela para os princípios morais, adjetivando-a como meretriz, como se vê no exemplo 7:

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Excerto 7 (Tut.)Diz o Dor. Theobaldo de Castro Meira, que tendo em sua com-panhia, criando e educando os menores de treze annos de idade, Paulo, e Sebastião, aquelle filho da ex escrava Rosa, e este da ex escrava Emilianna, ambas meretrizes, e sem meios de criarem e de darem qualquer educação necessária e útila seos ditos filhos menores (...)(Tutela nº 5, cx 2, estante 12, 09/04/1891 - AMRC).

Nesse excerto, o locutor/tutor no enunciado [...] ambas meretrizes [...] desqualifica moralmente a figura das mães. A entidade linguística meretrizes pode ter em sua argumentação externa um encadeamento do tipo mãe-escrava PT meretrizes e uma argumentação interna16 Mãe--escrava PT Sem valor. Ao caracterizar suas ex-escravas como meretri-zes, o locutor/tutor quer enfatizar a condição de promiscuidade em que elas viviam. É notório que, em épocas de escravidão, alguns senhores de escravas utilizavam-se dos seus direitos de propriedade e explora-vam do corpo de suas escravas não apenas em seu benefício próprio, mas também da venda dos serviços dessas mulheres no mercado da prostituição. Nesse processo, materializa-se argumentativamente uma adjetivação que antes da abolição funcionava de maneira a denegrir a figura do senhor da escrava, pois este, em tese, obrigaria a sua escrava à condição de meretriz, agora, no pós-abolição, funciona nesse processo, desqualificando mães ex-escrava.

Essas duas características17, em conjunto, desqualificam a figura da mãe e qualificam, simetricamente, a figura do tutor. Demonstra-se, com isso, um funcionamento muito específico de argumentação adjetiva nega-tiva nas tutelas brasileiras. Isso porque, no momento que o locutor/tutor desqualifica a mãe como aquela que [...] não tem os meios precisos [...], está apontando argumentativamente, para o fato de que [...] ele tem os meios precisos[...]. Da mesma maneira, ao mencionar que a mãe é incapaz, si-metricamente qualifica a si como capaz. Ao mencionar que a mãe [...] não tem princípios morais [...], fato marcado na palavra meretriz, o locutor/tutor aponta para a conclusão de que ele tem os princípios morais.

c) A figura do EstadoO Estado consiste em outro elemento que tem fator decisivo na ins-

tauração das tutelas. Como demonstrado acima, nas Ordenações Fi-lipinas, ele apresenta-se de forma imperativa ainda que respeitando a vontade do pai/patriarca: difere-se, nisso mesmo, do sentido das ações do Estado brasileiro em dois pontos fundamentais, detectados em enun-ciados do corpus.

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Primeiro ponto: ao invés de apresentar-se semelhante ao Estado Português que visava resguardar a estrutura familiar fazendo cumprir primeiramente a determinação (vontade) do pai patriarca registrada em testamento (como previam as Ordenações), o Estado brasileiro, no caso das tutelas analisadas, desconsidera em certa medida a existência de uma família escrava (agora “ex-escrava”) que, mesmo possuindo uma estrutura peculiar diversa do modelo europeu e brasileiro senho-rial, era família. Tal desconsideração patenteia-se quando observa-se que, do ponto de vista jurídico, qualquer família seria merecedora de apoio no tocante à sua preservação, sobretudo no pós-abolição, quan-do todos os brasileiros, em tese, passavam a ser iguais perante a lei. Juridicamente, sabe-se que processos, de maneira geral, se caracteri-zam por ter duas partes que alegam um objeto/elemento em comum, cabendo a um mediador (normalmente o Estado, através de seu apa-rato jurídico) julgar a pertinência do pleito em favor de uma ou outra parte. No caso específico das tutelas brasileiras, uma das partes, repre-sentada pelo candidato a tutor, apresenta-se privilegiada ao requerer a tutela de filhos de mães ex-escravas. Isto porque, o Estado, acolhendo esse requerimento, assume a possibilidade de dar tutores a crianças que tem seus pais e são desprovidos de bens, ou seja, legaliza a tutela de crianças que não possuem as características básicas que configuram a necessidade de tutor conforme as Ordenações (Lei que, em princí-pio, deveria ser a consultada): ser órfão (ter o pai/patriarca falecido) e ter bens a serem administrados. Nessa medida, o Estado, que funciona de forma imperativa nas Ordenações Filipinas, nas tutelas do Brasil, age de acordo com o Direito Costumeiro, fazendo prevalecer a vonta-de do senhor, embora, agora, ex-senhor. Caracteriza-se, deste modo, uma tutela sui generis em que o órfão tem pai e não tem bens, fatos que se apresentam no excerto seguinte:

Excerto 8 (Tut.)Diz Manoel Alves Pereira Marques, que tendo em seo poder a in-gênua Virginia, menor de doze annos de idade, filha dos libertos João e Raimunda e sendo seos pais absolutamente incapazes de darem qualquer educação a dita ingênua (...)(Tutela nº 3, cx. 2, estante 12, 07/07/1888 – AMRC).

Como se observa, nesse exemplo, o enunciado [...] filha dos libertos João e Raimunda [...], confirma a existência dos pais, e ao mesmo tempo, o enunciado [...] absolutamente incapazes de darem qualquer educação [...], confirma que esse órfão (que não é órfão no sentido das Ordena-ções, pois tem pais vivos) não possui bens.

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Por sua vez, o segundo ponto se define pela postura do Estado que, ao invés de determinar imperativamente tutores de acordo com os crité-rios estabelecidos pelas Ordenações, nas tutelas brasileiras, é convocado, quase imperativamente, pelo candidato a tutor para validar/legalizar uma tutoria de filho de ex-escrava nascido sob a Lei de 1871. Desta forma, o Estado situa-se numa posição imperativa, não como nas Ordenações Fi-lipinas, mas, praticamente, apenas para fazer cumprir a determinação do candidato a tutor em detrimento de avaliar, juridicamente, a pertinência legal do pedido de tutela. É o que fica demonstrado no excerto 9:

Excerto 9 (Tut.)o suplicante quer encarregar-se da tutela dos ditos menores, para os zelar e tratar de sua educação, pelo grande amor, que lhes tem, visto como a mãe dos menores não tem os meios preci-sos para lhes dar educação alguma.(Tutela nº 1, cx 2, estante 12, 06/07/1888 - AMRC).

Nesse enunciado [...] quer encarregar-se [...], o locutor/tutor utiliza o verbo quer e não requer, normalmente utilizado nos textos jurídicos, adotando um tom imperativo que historicamente marca uma posição social hierárquica praticamente igual ao próprio Estado, representado pelo locutor/Juiz. Quando assume essa posição, o locutor/tutor asseme-lha-se ao pai/patriarca das Ordenações que possuía vontade e, portanto, poder de inclusive, ter a sua vontade resguardada pelo Estado. Revela-se uma continuidade da relação de senhorio18 estabelecida entre Senhor e Estado e, em se tratando particularmente das tutelas estudadas no perí-odo do pós-abolição, entre ex-senhor e Estado. Semanticamente, a es-trutura lexical do verbo querer tem uma AE19 dada pelo aspecto norma-tivo querer PT desejar. Não obstante, aqui nesse exemplo, esse mesmo verbo é determinado por um sentido que, somado ao sentido de desejo, se complementa num possível aspecto do tipo querer PT poder, poder este relacionado a um desejo, só que de ordem senhorial.

Como se vê, a ação do Estado, expressa nesses dois pontos comenta-dos, contribuiu sobremaneira para que surgisse a tutela especificamente brasileira: o tutor (um estranho, não pertencente ao núcleo familiar) se auto-apresenta como candidato viável a tutela de crianças que, chama-das de órfãs, tem pais e, além disso, não possuem bens.

2.2.2 Um sentido específico de tutor: o tutor (tipicamente) brasileiroTendo observado que o sentido de pai, mãe e Estado funcionaram de

maneira específica em seus determinados contextos, a saber, o contexto da família patriarcal e o contexto da família escrava, pode-se dizer que

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tal fato determinou, em certa medida, que o sentido de tutor também fosse materializado de maneira distinta em seu contexto específico: quer dizer, materializado nas tutelas brasileiras, o sentido de tutor, se caracte-riza por quatro pontos.

Num primeiro, o tutor das tutelas brasileiras se caracteriza por ser aquele que, para tutelar um filho de ex-escrava, demonstra que o seu poder conti-nua funcionando na relação constituída entre ex-senhor e Estado e também na relação entre ex-senhor e ex-escravo, como se observa no excerto 10, embora a escravidão já tivesse sido extinta no 13 de maio de 1888:

Excerto 10 (Tut.)Diz Joaquim Ramos da Trindade, negociante, residente n’esta Ci-dade, que tendo sido restituida à liberdade a escravizada Priscilli-na, que fôra do domínio de sua sogra, D. Emilia da Silva Ribeiro, ficou a referida Priscillina, além de outros filhos, uma menina de nome Olaia, de menor idade; e como seja Priscillina, mãe da dita menor, incapaz de lhe dar a precisa educação, porquanto e sabida sua vida de devassidão, quer o supp° [suplicado] acceitar a Curadoria da mês .ma e tel-a debaixo de suas vistas.(Tutela nº 2, cx 2, estante 12, 06/07/1988 - AMRC).

Note-se que, nesse excerto o enunciado [...] quer o supp° aceitar a Curadoria[...] demonstra que o locutor/tutor, ao utilizar o verbo quer mantém com o Estado uma relação hierárquica de superioridade. Esta relação pode ser representada por um aspecto do tipo querer PT poder.

Da mesma maneira que a relação de poder é mantida entre o tutor e o Estado, ela é mantida entre o tutor e o ex-escravo. No enunciado [...] tel-a debaixo de suas vistas[...], o operador argumentativo debaixo indica o lugar e a condição em que os ex-escravos e seus filhos se encon-travam diante do tutor/senhor, fazendo prevalecer uma hierarquia que, juridicamente, já não mais existia com o fim da escravidão.

Um segundo ponto refere-se ao fato de que o tutor se caracteriza como aquele que alega idoneidade e poder econômico, evidenciando, nesse sentido, a condição de posse e superioridade diante dos pais/mãe da criança pretendida para tutela. Se não, vejamos:

Excerto 11 (Tut.)Diz Manoel Alves Pereira Marques, que tendo em seo poder a ingênua Virginia, menor de doze annos de idade, filha dos liber-tos João e Raimunda (...)(Tutela nº 3, cx 2, estante 12, 07/07/1988 - AMRC).

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Observe-se que em (11) a oração adverbial [...] tendo em seu poder a ingênua Virginia [...], destacada em negrito, demonstra que, mesmo que o período já seja pós-abolição, o locutor/tutor quando utiliza a expressão [...] em seu poder [...] traz à cena um E1 que indica um ponto de vista indiferente a esse fato. O encadeamento evocado pelo locutor/tutor ten-do em seu poder destaca uma posição de senhorio que historicamente se mantém, independentemente da extinção da escravidão no 13 de maio de 1888. Em sua argumentação externa (AE), a palavra posse, nos remete a um aspecto do tipo normativo posse PT domínio que também nos conduz a uma argumentação interna do tipo posse PT senhor, aspectos estes já vistos quando tratamos do sentido de tutor nas Ordenações. Observamos que estando o locutor/tutor na posição de senhor, afirma que tem em seu domínio a ingênua Virgínia, ainda que esta tenha sido contemplada com a Lei do Ventre Livre e, a rigor, não pudesse ser considerada como escrava, tanto na vigência da Lei como também após a abolição.

Por seu turno, num terceiro ponto, como se esclarece no excerto 13, tutor se caracteriza como aquele que alega a convivência com a criança, demonstrando que o domínio estabelecido na relação entre ex-senhor e filho de ex-escrava prevalece após a abolição:

Excerto 12 (Tut.)Diz Estanislau Francisco de Azevedo que, tendo em sua com-panhia os menores Maria de 14 annos e José de 12, filhos natura-es de sua ex escrava Romana, solteira, libertada pela Lei de 13 de Maio do corrente anno (...)(Tutela nº 1, cx 2, estante 12, 06/07/1888 - AMRC).

Nesse exemplo, o enunciado [...] tendo em sua companhia [...], que funciona como oração subordinada, pode estabelecer um aspecto do tipo normativo tendo em sua companhia PT já moram/convivem. Nes-se enunciado, está materializada a relação de domínio que o ex-senhor ainda exerce sobre os seus ex-escravos e seus filhos, quando demonstra que estes ainda convivem com ele, independentemente da abolição já ter sido promulgada, o que, aliás, também está materializado, através do enunciado [...] libertada pela Lei de 13 de Maio do corrente anno[...].

Enfim, no quarto e último ponto, o tutor se caracteriza como aquele que possui uma relação tal com o Estado que, ao invés de estar subor-dinado a ele, o subordina a sua vontade (ainda) senhorial na medida em que o convoca imperativamente para legalizar uma tutoria de filho de ex-escrava nascido sob a Lei de 1871. Essa relação imperativa que o tutor estabelece com o Estado se ampara em dois argumentos que não estão estipulados por lei.

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Como primeiro argumento, observamos que, diferentemente do tu-tor das Ordenações que é constrangido pelo Estado, o tutor das tutelas se dispõe voluntariamente. É o que se patenteia, por exemplo, em (13):

Excerto 13 (Tut.)o suplicante quer encarregar-se da tutela dos ditos menores (...)(Tutela nº 1, cx 2, estante 12, 06/07/1888 - AMRC).

Aqui, o enunciado [...] quer encarregar-se [...] evidencia que, volun-tariamente, o ex-senhor deseja tutelar o filho de sua ex-escrava. A estru-tura lexical do verbo querer não se associa normalmente com a estru-tura do verbo encarregar-se, pois tal verbo pode ser representado pelo aspecto do tipo encarregar-se PT ocupar-se. Encarregar-se assim, nesse contexto, traz um sentido de voluntariedade. O tutor, ele próprio, quer para si o encargo. Trata-se, portanto, de um voluntário.

Já o segundo argumento refere-se ao fato de que o Estado, ao deferir a tutela em favor do tutor, confere a este a garantia jurídica da continu-ação da relação já existente entre senhor e filho de escrava, nos moldes da Lei 2040 de 1871. Vejamos:

Excerto 14 (Tut.)Diz Antonio Caetano Alves da Silva morador no districto de Bôa Sentença d’este termo, que tendo em sua companhia os menores Rafael de idade de doze annos e Rufina de idade de quinze annos filhos naturaes da ex escrava Angelica (...)(Tutela nº 6, cx 2, estante 12, 24/08/1894 - AMRC).

Nesse caso, o enunciado [...] que tendo em sua companhia [...], admi-te uma relação que já existe e pode ser provada por meio da argumenta-ção externa tendo em sua companhia PT convive em que o locutor/supli-cante apenas quer oficializar por meio da tutela algo que já acontece, ou seja, a criança já está em sua companhia desde que nasceu, e, portanto, pode continuar vivendo, desta vez, regido por um processo de tutela que confere ao tutor o direito absoluto sobre a criança tutelada.

Em suma, o sentido de tutor nas tutelas brasileiras se estabelece em consonância com os sentidos das figuras que compõe a família, pai, mãe e também com a figura do Estado.

3. ConclusãoPor fim, respondendo a pergunta inicial, observamos que, por um

lado, o sentido de tutor nas Ordenações Filipinas foi materializado con-siderando, sobretudo, um conceito de família no interior de um sistema

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patriarcal, onde a necessidade de um gestor para os bens dessa família se fazia imprescindível em face da situação de morte do patriarca. Por conseguinte, a indicação de um tutor para órfão pelo Estado partia da premissa de que ele, o órfão, enquanto juridicamente menor, não pode-ria gerir os bens deixados por seu pai, ainda que vivesse em companhia de sua mãe. Assim, nas Ordenações, a figura do tutor – e, como vimos, os seus sentidos respectivos – surge da necessidade de gerência de bens e não pela simples condição de orfandade na qual ficara a criança pela perda de seu pai. Por outro lado, nas tutelas brasileiras, processos ins-taurados para obtenção de tutela de crianças filhas de ex-escravas, como os analisados –, a figura do tutor surge pela necessidade de mão de obra não remunerada, tendo em vista que o regime de escravidão já se havia extinguido e o mercado de trabalho exigia dos ex-senhores providências com relação a isso.

Noutras palavras: enquanto nas Ordenações a figura do órfão era condição básica para o surgimento da figura do tutor, nas tutelas brasi-leiras, crianças que tinham seus pais ou, pelo menos, a mãe viva eram arroladas em processos de tutela sem que a família destas, se constituin-do como parte adversária no processo, tivesse direito a qualquer reivin-dicação.

Dessa forma, ao tratarmos do sentido de tutor, nas Ordenações Fi-lipinas e nas tutelas brasileiras observamos que, nessas, o sentido que funcionou pretendeu caracterizar o ex-senhor, candidato voluntário a tutor, como a melhor – e mais: a única – possibilidade de tutor para o filho da ex-escrava, desconsiderando inclusive o fato de essa criança ter seus próprios pais, enquanto naquelas, nas Ordenações, o sentido que funcionou nos demonstrou que o figura do tutor, juridicamente constrangido a tutor pelo Estado, era caracterizada como um gestor e administrador de bens. Essas duas acepções tão distintas de uma figura que, em princípio, deveria ter as mesmas características, nos apresenta, semanticamente, sentidos diferentes, demonstrando que, se juridica-mente o regime escravocrata já se havia extinguido, os funcionamentos na língua se faziam tão presentes que foram capazes de contribuir com argumentos em favor de uns (ex-senhores) em detrimento de outros (fi-lhos de ex-escravas): órfãos que não eram órfãos. tutores que não eram (num certo sentido) tutores: eis a língua, com a sua historicidade, (re)contando a História.

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Notas1 Doutor em Linguística pela UNICAMP. Professor da Universidade Estadual do Su-doeste da Bahia (UESB), campus de Vitória da Conquista-BA, nos Programas de Pós-Graduação em Linguística (PPGLIN) e Pós-Graduação em Memória, Linguagem e So-ciedade (PPGMLS). 2 Mestre em Linguística pela UESB. Professora da Faculdade de Ciências Educacionais (FACE) e da rede estadual de ensino. 3 Tal característica ficou patente, comprovada, nos autos de tutelas da Cidade de Rio de Contas-Bahia que pesquisamos.4 Segundo Malheiro (1866, p.56), o princípio regulador é de que o filho da escrava nasce escravo ou Partus Sequitur Ventrem – como dispunha o Direito Romano, independente de que o pai fosse livre ou escravo.5 Os livros I e IV das Ordenações se referem, entre outras coisas, a orfandade e tutoria, motivo por que consideramos nesse trabalho os seus títulos 88/89 e 102. 6 Cunha (1986 apud Grinberg, 1994), afirma que existia “[...] na sociedade brasileira do século XIX, um direito positivo, campo no qual se relacionavam cidadãos, e um direito costumeiro, espaço das relações privadas de dependência e poder. As contendas entre senhores e escravos estariam inseridas nesse segundo campo, e assim o único papel do Estado seria o de homologar uma decisão senhorial”. 7 Como utilizamos aqui excertos das Ordenações, e outros dos processos de tutela, os diferenciamos com as abreviaturas (Ord.), no primeiro caso; e (Tut.), no segundo. Reto-mamos aqui temas discutidos em maior profundidade em Santos (2013). Igualmente, os exemplos aqui citados e analisados tomamos de Santos (2013).8 Conforme Ducrot (2005, p.64), a argumentação interna também se dá em orações condicionais em que realiza a estrutura se X PT Y.9 Para Houaiss (2004, p.4), “abonado” significa: qualificado como bom; abastado, rico. 10 Essa estrutura aparece de forma diferenciada nas tutelas.11 Tal fato nas tutelas brasileiras – como se verá abaixo – apresenta-se diferente.12 Lembremos, a família patriarcal, que, regida por um pai patriarca, tinha a absoluta necessidade de um tutor para o filho primogênito, caso este pai viesse a falecer.13 Interdependência semântica, conforme Ducrot (2005, p.16), diz respeito ao fato de que cada um desses segmentos (X e Y), quando encadeados como X PT Y e X NE Y, tomam seu sentido somente na relação com o outro.14 AMRC: sigla de Arquivo Municipal de Rio de Contas.15 Vale salientar que os candidatos a tutores já eram chamados de tutores nas capas dos processos.16 Conforme Carel e Ducrot (2005), a argumentação interna (AI) de uma entidade e está constituída por um certo número de aspectos a que pertencem os encadeamentos que parafraseiam essa entidade e. Assim, a AI funciona como uma espécie de paráfrase da entidade e, em que essa própria entidade não figura no aspecto.17 Para outras características, consultar Santos (2013).18 “Quanto ao senhorio, ele diz respeito ao conjunto de normas, costumes, que sus-tentam, legitimam e legalizam a figura do Senhor como, por assim dizer, a contraparte exata do escravo”, afirma Santos (2008, p.192).19 Conforme Carel e Ducrot (2005), a argumentação externa (AE) de uma entidade linguística e está constituída pelos encadeamentos que vão para e ou vem de e,em que a entidade figura no aspecto.

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Referências BibliográficasCAREL, M.; DUCROT, O. (2005) La Semántica Argumentativa: una

introducción a la Teoría de los Bloques Semánticos. Buenos Aires: Colihue, 2005.

DUCROT, O. (2005) “Los bloques semánticos y el quadro argumentati-vo”. In: CAREL, M.; DUCROT, O. La Semántica Argumentativa: una introducción a la Teoría de los Bloques Semánticos. Buenos Aires: Co-lihue, 2005, p.27-50.

GRINBERG, K. (1994). Liberata: a lei da ambiguidade: as ações de li-berdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

HOUAISS, A.; VILLAR, M. S.; FRANCO, F. M. M. (2004). Dicioná-rio Houaiss da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

MALHEIRO, P. (1866). A Escravidão no Brasil: ensaio histórico, ju-rídico, social - v. 1. Petrópolis: Vozes, 1976. Edição original: 1866.

NABUCO, J. (1883). O Abolicionismo. Petrópolis: Vozes, 2012. Edição Original: 1883.

PORTUGAL. Ordenações Filipinas (1603). Livros 1 e 4, Títulos 88, 89 e 102. In: Ordenações Filipinas, Edição de Cândido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro: 1870.

SANTOS, D. M. (2013). Da liberdade à tutela: uma análise semântica do caminho jurídico percorrido por filhos de ex-escravas no Bra-sil Pós-Abolição. Dissertação (Mestrado em Linguística). Programa de Pós-Graduação em Linguística da UESB, Vitória da Conquista, 2013.

SANTOS, J. V. (2008). Liberdade na Escravidão: uma abordagem se-mântica do conceito de liberdade em cartas de alforria. Tese (Dou-torado em Lingüística). Instituto de Estudos da Linguagem da UNI-CAMP, Campinas, 2008.

SLENES, R.W.; FARIA, S.C. (1998). “Família escrava e trabalho”. In: Revista Tempo, v.3, n. 6, p. 1-7, dez. 1998.

Palavras-chave: argumentação; escravidão; tutelaKeywords: argumentation; slavery; guardianship

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DISCURSOS DO DESENVOLVIMENTO DA DANÇA PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Eliana Lúcia FerreiraUFJF

RESUMO: Discursivamente a dança é estruturada diferentemente da lin-guagem verbal, já que se estrutura para mostrar sentidos. Enquanto lin-guagem, apresenta conteúdo semântico, organização sintática e eloquên-cia. Este artigo busca compreender os discursos da dança para as pessoas com deficiência como linguagem não-verbal, pensando os efeitos do verbal sobre o não-verbal, sob a ótica da Análise de Discurso francesa. A autora mostra que a dança supera a ética do sujeito individual, projetando senti-dos para uma ética mais solidária.

ABSTRACT: Discursively, dance is structured differently from verbal language, given that it is structured to show meanings. As a language, it contains semantic content, syntactic organization and eloquence. This article aims at understanding the discourses on dance for people with dis-abilities, considering the effects of verbal on non-verbal language, under the perspective of French Discourse Analysis. The author shows that dance overcomes the ethics of the individual, projecting meanings towards an ethics of solidarity.

Introdução Uma das grandes dificuldades detectadas na área da dança, ao longo

de sua história, refere-se a seu caráter efêmero, o que para muitos teóri-cos tem dificultado a interpretação e definição de seu objeto central – o corpo/movimento – e a obra coreográfica.

Durante muito tempo, sua transitoriedade foi utilizada para situá--la dentro de uma visão historiográfica cumulativa, linear e hierárquica. Em decorrência, a compreensão da dança nos seus diversos aspectos ficou, muitas vezes, restrita à análise de aspectos técnicos do corpo (fun-cional), enfatizando sua visualidade. No entanto, o corpo que dança não

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busca apenas explorar possibilidades de movimentos e suas relações espaço-temporais.

Para a compreensão dos discursos da dança para as pessoas com deficiência como linguagem não-verbal, partimos de certos princípios teóricos que dizem respeito aos efeitos do verbal sobre o não-verbal. As linguagens não-verbais são mais plurais em seus modos de significar. O imaginário de linearidade e “lateralidade” do verbal acabam por sub-meter essa pluralidade à unidade do sentido, imposta pelo verbal. Vale ressaltar que não existe o não-verbal em estado pleno sem que o verbal fundante aí esteja presente.

Quando se assume a dança como linguagem, sabemos que ela ne-cessita ser considerada um meio de comunicação, uma forma de signi-ficação, diferente da linguagem verbal. Isso se dá porque ela tem uma ordem própria, tem suas especificidades significativas e, principalmen-te, porque ela não significa por si própria. A dança se significa porque os homens dançam e estabelecem relações de sentidos entre si. Existe uma relação do homem com o simbólico constituído pela história e pela cultura.

Discursivamente a dança é estruturada diferentemente da linguagem verbal, já que a dança se estrutura para mostrar sentidos. Muitas vezes, ela não apresenta sentimento e ideias que podem ser ditas com palavras.

Com isso, o gesto corporal que incorpora o que é significado pelo corpo, está presente aqui no sentido de dar linguagem, fornecer dis-cursividade para dizer coisas que a dança propicia, mas que ela não diz porque ela significa de outra maneira. E com a Análise do Discurso é possível interpretar alguns sentidos, sem perder a especificidade da lin-guagem da dança.

Dessa forma, para ser linguagem, a dança precisa: a) ter significa-do – conteúdo semântico; b) ser estruturada – organização sintática; c) ser dançada – eloquência; Essas características são totalmente em inter--relação umas com as outras.

Assim, a dança não é vista como uma alternativa de comunicação, mas como um outro discurso, uma outra maneira de significar e de se significar que não pode ser reduzida à linguagem verbal.

O homem tem necessidade dessas diferentes formas de se significar justamente porque uma maneira de significar e significar-se não é re-dutível à outra. O sentido não tem essa completude, pois o simbólico é aberto. Podemos perceber então que o significado da dança é complexo e ambivalente e que o sentido da dança depende das experiências pes-soais.

Portanto, para a compreensão da dança como linguagem, foi neces-sário considerar também alguns aspectos importantes do movimento

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corporal para a produção da comunicação não-verbal: quem diz, para quem diz, onde diz e como se diz. São estas categorias do movimento que constituem as condições de produção de sentido da linguagem.

Dança e deficiênciaA estética e a arte são grandes marcos para a compreensão da dança,

pois historicamente se pode observar que estas discursividades orga-nizaram o sentido de corpo ideal, tornando inviável a prática da dança para as pessoas que não se enquadram dentro dos padrões que elas estabelecem. Esta imagem corporal se mantém como um modelo de construção social, que faz sentido porque passou a ser o nosso “modelo identitário”, fazendo com que todos busquem configurar-se de acordo com o modelo vigente, tomado como “normalidade”.

Os sentidos constituídos nessas discursividades da estética e da arte comprometem e selecionam a população praticante e não praticante de diversas modalidades corporais, em especial, da dança. O que está dito, nestes discursos, é que a pessoa com deficiência física, ao apresentar um corpo diferente, torna-se um desviante social. Com o seu corpo imper-feito, ela vivencia “impossibilidade e incapacidade” corporais, que, além de indesejáveis do ponto de vista do padrão de produtividade exigido em nossa sociedade, fogem aos padrões estéticos de beleza, tornando este indivíduo um estigmatizado social.

O estigma, em nossa sociedade, tem o sentido do discurso domi-nante, onde o diferente tem que se subordinar ao esquema de uma lógi-ca em que cada um enxerga em si, a culpa pela diferença, o que o leva, de uma forma geral, a perpetuar a condição de deficiente e reproduzir os argumentos em que se apoiam em racionalizações da concepção de estigma, constituindo, assim, formas de segregação e marginalização.

No entanto, ao internalizar o estigma, (ao dar-lhe sentido, mesmo que negativo) a pessoa com deficiência não o faz a partir de uma atitude unilateral; trata-se de um produto das relações sociais estabelecidas com base em determinados valores sócio-culturais, que constitui o imaginá-rio social.

Este discurso de limitação corporal repercute constantemente em sentidos da incapacidade de realização de funções sociais, transforman-do a concepção de “homem social”, em “homem-corporal”.

Na contra mão destes discursos, espetáculos de dança com pessoas com deficiência vêm despertando grande interesse nos meios artísticos e acadêmicos como fruto, ao que parece, de algumas propostas contem-porâneas de criação de dança que buscam, como em outras fases histó-ricas de nossa cultura, dar voz a determinados grupos sociais através da arte.

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Estas questões remetem à reflexão de dois aspectos: no primeiro mo-mento, estamos falando de um corpo que se configura em um estado definitivo, em que o sujeito é de fato deficiente, tratando-se de uma si-tuação criada pela interação entre incapacidades físicas e os obstácu-los que o social interpõem entre o sujeito e o meio. No outro, estamos falando da arte que defende a particularidade da experiência artística, isto é, a necessidade de se considerarem os conteúdos simbólicos que incorporam etos e eidos, os sentimentos e valores de culturas específicas.

Neste sentido, a capacidade dos corpos de operarem no mundo so-cial é medida pelos aspectos culturais e biológicos. O corpo humano é uma entidade visível e esta visibilidade tem um importante papel na relação de sentidos estabelecida entre as pessoas e nos encontros da vida social.

Para manter esta identidade corporal, pré-estabelecida em nossa sociedade, ou simplesmente para se ter a ilusão de que fazemos parte deste modelo, a indústria e o comércio, a cada dia, oferecem mais recur-sos que prometem, de uma maneira ou de outra, nossa integração nesse processo, ou seja, nos são oferecidos alguns recursos para que possamos legitimar e evidenciar uma imagem/modelo corporal que possa ser vis-to a partir de uma cultura codificada para operar como um indicador de ordem social e prestígio.

A partir deste modelo identitário, com ajuda dos vários recursos que nos são apresentados, nos fazem embarcar num processo de cons-trução de modelo corporal que às vezes, por um lado, passa a ser uma identidade visível, e esta visibilidade passa a ser a nossa nova identidade, da personalidade, da individualidade e do valor social, ou seja, somos totalmente tomados por um modelo corporal e apresentamos isto, mui-tas vezes, como sendo a totalidade do nosso ser.

Mas, o modelo corporal não apenas se faz dizer, ele não é uma sim-ples produção transparente de sentidos. Ele estabelece limites e define comportamentos sociais, é uma forma de nos reconhecermos neste pro-cesso da vida contemporânea.

A relação entre o modelo corporal social e o modelo biológico dos seres humanos, vistos do ponto de vista de uma população minoritária, é uma enorme contradição. No modelo corporal social torna-se possível a configuração social porque desencadeia-se a possibilidade dos sujeitos identificarem-se. Porém no modelo biológico, configura-se um estado em que o sujeito é, de fato, uma forma, uma estrutura determinada e visível.

Em se tratando de deficiência, a sociedade mantém uma constância em fazer recair sobre o deficiente inúmeros desvios e impossibilidades que ela própria possui. Neste sentido, o patológico passa a ser o indicati-

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vo para se retirar do social a responsabilidade da gênese e da acentuação da deficiência em geral. Eficientes e não eficientes são os elementos que marcam a diferença, por isto as propostas educacionais têm sido para o deficiente ser readaptado, reabilitado para se inserir no contexto em que vive. A nosso ver, a não adaptação destes conceitos é que leva à estigma-tização das pessoas aceitas socialmente.

Com isto, a dança para pessoas com deficiência é vista apenas em seu conteúdo. No entanto, é o modo de significar que interessa: não o que significa, mas como significa. O que é importante é a processualidade, a historicidade de se significar, é ver a maneira como os sentidos vão se processando no sujeito, porque, ao se significar, o sujeito se signifi-ca. Isto é fundamental porque no processo da relação da dança com o deficiente, vai ocorrer uma intervenção justamente na maneira de ele significar a si mesmo. Ao produzir sentido, os dançarinos estão se pro-duzindo como sujeitos, estão se significando.

E isto é possível porque a maneira como o sentido se forma nele, nem ele tem esse controle, porque é social e histórico. E através do trabalho de dança, se pode interferir na maneira como esse sujeito se significa e significa a relação dele com a sociedade. E é isto que interessa e que faz sentido na arte da dança.

Nesse confronto entre dança/corpo e suas complexidades, o que se pode observar é que se tem uma perspectiva de trabalho na utilização e exploração das mais diversas formas de expressão corporal. Nesta multiplicidade das práticas artísticas, encontram-se maneiras de se re--elaborar a valorização pessoal e, conseqüentemente, a auto-estima dos sujeitos. O desenvolvimento da dança para as pessoas com deficiência envolve uma transformação cultural. Isso só é possível na medida em que pela dança os grupos praticantes buscam considerar a forma estéti-ca como estrutura a partir da qual conteúdos dados da cultura – noções e valores – a tradição ou o passado são reelaborados no presente, com vistas para o futuro, objetivando garantir a continuidade de mudanças sócio-culturais.

Linguagem corporalO corpo, como vem se apresentando hoje, é atravessado por mui-

tas possibilidades de sentidos ancorados no domínio corporal e sócio--cultural. O corpo “fragmentado”, aparentemente desconexo, explora as possibilidades do movimento, da dinâmica e do espaço e começa a conviver no meio social da dança como um todo.

É no corpo que estão inscritas as particularidades do seu momento e das suas possibilidades. Não há como categorizar ou definir um corpo deste novo século, uma vez que a multiplicidade é a marca visível deste

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novo tempo. Segundo Greiner (1999, p.9), neste novo panorama o cor-po:

Nada mais é do que a sua própria materialidade, construindo uma dança cujas imagens ora estão no corpo e nos artefatos que ele cria de maneira inseparável, ora nos novos designs, estendidos por outros corpos, que apresentam registros de diferentes mapea-mentos do mundo. A complexidade é a sua nova morada.

Portanto, na dança para as pessoas com deficiência, outros aspectos, também ideológico-materiais, são relevantes na produção da lingua-gem. Entre eles, a relação emocional com o movimento, o nível de com-plexidade deste movimento e a adequação do movimento às condições anatômicas do dançarino.

Sendo assim, uma técnica da dança ajustada às condições motoras individuais a cada dançarino deve ser utilizada em função de ampliar o conhecimento acerca da linguagem do movimento e de servir de instru-mento facilitador para a descoberta de habilidades motoras específicas.

Desse modo, a aquisição das habilidades específicas da dança não pode ser imposta por uma determinada técnica. Ela deve ser adquirida por um método no qual o dançarino pode determinar o seu processo de descoberta do conhecimento corporal, para que possa, assim, constituir sentidos que signifiquem os seus sentimentos constituídos pelos gestos corporais simbolizados (materializados) na linguagem não-verbal. A partir do momento que se constitui a forma material de expressão, se constitui a própria identificação. Assim, o sujeito se reconhece no senti-do que se produz e intervém na sua relação com o social.

As experiências vivenciadas no estudo sugerem que o discurso cor-poral tem um poder diferente das palavras. Os gestos corporais signifi-cam valores, objetivos e mudanças sociais.

Segundo Orlandi (1990), a partir do momento em que significamos o nosso mundo, o mundo das coisas e o mundo das pessoas, estabelece-mos, ao mesmo tempo, o nosso espaço na sociedade e os nossos valores sociais. No significar dos gestos corporais no imaginário e nas imagens simbolicamente construídas no discurso corporal é que estabelecemos uma via de compreensão do significado dos movimentos da dança. As-sim, a dança deixa de ser mero veículo da liberdade de sentimentos para ser a própria linguagem dos sentimentos praticada pelo discurso cor-poral.

Partindo desse entendimento, apontamos como sendo alguns indí-cios da compreensão do significado da dança:

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1) Muito dos gestos que são sentidos na dança não podem ser reduzidos a símbolos verbais que busquem explicitá-los. O que é sentido não pode ser explicado, necessita apenas ser sentido e significado.2) Em muitos momentos, a dança tem o sentido de recriar o mundo através de símbolos e formas materiais.3) O sentido da dança se materializa na forma de imagens.

A dimensão dos sentidos do gesto do movimento constituído como linguagem não pode ser representado, significado pelas palavras, por-que simplesmente ele significa de outra maneira; a recriação do mundo através da linguagem não-verbal apresenta-se como uma metáfora. Isso é possível porque se faz em relação ao que o dançarino viveu e vive na sua experiência direta com o mundo; a dança é a linguagem corpórea de cada pessoa que significa principalmente a existência de movimento no corpo.

Diante do exposto acima, identificamos como sendo sentidos da dança para as pessoas com deficiência física:

1) O sentido da dança é pessoal, subjetivo e muitas vezes intros-pectivo, mas se encontra sempre relacionado com o coletivo.2) Os gestos corporais engendrados e formalizados nas coreogra-fias lhes permitem ser lançados num labirinto de ideias, ideias que são gestos materializados, gestos que dizem, que significam. E significam o que faz sentido no sentido da vida. Isto é a prática simbólica.3) A repetição do fazer e refazer o gesto é uma forma de lapidá-lo e desdobrá-lo em seus diferentes significados.4) A dança, em primeira instância, dá o sentido de ordem. O mo-vimento sobre uma cadeira de rodas, muitas vezes desestabiliza-dor, cria na instância corpórea/social uma tensão de transforma-ção e pode transformar os sentidos.5) Os gestos corporais apresentam uma especificidade no movi-mento. É preciso compreender essa especificidade como especifi-cidade, não como inferioridade.

Sabemos que o fundamental da dança é a imagem e a sua configura-ção no espaço, seu significado dentro da cultura. O discurso da dança, pela historicidade, se filia a uma tradição em que ele é produtivo para a cultura, no sentido que já existe uma certa tradição cultural na sociedade.

A quebra do unívoco e a busca pelo múltiplo abrem espaço para que se investiguem novas configurações sobre o corpo que dança, que não

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estejam sustentadas pelos sistemas da dança dominante. Consequente-mente, não podemos pensar em uma única dança, em um único corpo e uma única forma de construir sequências de movimentos que resul-tam em coreografias. A dança, ao abrir espaço para a inserção de dife-rentes corpos, ao trabalhar a conexão do movimento com as marcas da identidade corporal daquele que a executa, desconstrói e reforma as representações de corpo na sua performance, expondo aspectos como a ambivalência e a (im)perfeição.

ConclusãoDe uma forma geral, a visibilidade do corpo com deficiência provoca

reflexões sobre o papel que vem sendo assumido por esses corpos, já que eles começam a ocupar espaços até então dominados pelos corpos ideais. A apresentação no palco de um corpo com deficiência, distante da perspectiva de fomentar o sentimento de compaixão, pode levar cada um da plateia a dialogar/confrontar a história desse corpo com a histó-ria, valores e (pré)conceitos do seu próprio corpo. Por esse caminho, o dançarino pode desafiar as representações de corpo que estão estabele-cidas na dança.

A presença de corpos diferenciados neste espaço antes reservado a perfeição está suscitando implicações para o ensino da dança. Por outro lado, esta participação também está trazendo muitas indagações em re-lação ao que é o movimento e o que é dança.

Entender a dança implica em aceitar que a mesma é constituída de técnica (objetividade); emoção (subjetividade) e interpretação (dada pelos sentidos históricos) os quais se inter-relacionam.

No entanto, é necessário ainda romper as barreiras sociais e oferecer condições para que os dançarinos com deficiência consigam se trans-cender e colocar na prática o que eles gostariam que fossem seus movi-mentos corporais.

Desta maneira, o discurso pedagógico do ensino da dança e em espe-cial da dança para pessoas com deficiência precisa centrar-se na possibi-lidade de dinamizar as formas de relação dos sujeitos com os saberes, de modo que professor e aluno sejam parceiros na experiência de produzir o saber, pois a produção do sujeito com deficiência que dança resulta de confluências marcadas pela complexidade. E é nessa relação de conflitos e confluências que o sujeito se constitui e é constituído.

Vale ressaltar que a dimensão estética clássica na dança nos remete a ética do individualismo, a qual sugere uma memória de exclusão de cor-pos. A dança para as pessoas com deficiência busca novos significados, tais como o prazer e a possibilidade de conviver com as diferenças e as diversas possibilidades de dialogar com a sociedade.

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Esta linguagem é uma experiência corporal que está além da estética da modernidade. Ela se coloca em movimentos sociais múltiplos e se interage em outros significados que supera a ética do sujeito individual, projetando para uma ética mais solidária. Nesse sentido, a Dança pro-põe um exercício de cidadania deste sujeito que dança.

Ao longo da história, muitos dos espaços sociais foram negados à pessoa com deficiência física. A dança passa a ser mais uma nova for-ma de sociabilidade, mais uma nova forma de identificação do sujeito. Nesse sentido, a dança para essas pessoas é uma forma de perceber o mundo e ser percebido nele; relacionar-se efetivamente com o mundo e ser nele integrado.

Referências BibliográficasLABAN. R. (1985). Danza educativa moderna. Barcelona: Paidós.FEATHERSTONE, M. (1995). Cultura de consumo e pós-modernismo.

São Paulo: Studio Nobel.GREINER. C. (1999). “Corpos em crise: uma introdução”. In: Repertó-

rio Teatro e Dança. Salvador; ano 2, n. 2, p.7-11.ORLANDI, P. E. (1990). Terra á vista: discurso do confronto velho e

novo mundo. São Paulo: Cortez: Ed. da Unicamp.ORLANDI, P. E. (1995). “Efeitos do verbal sobre o não verbal”. In:

Rua. Campinas: Nudecri.ORLANDI, P. E. (1996). Interpretação: autoria, leitura e efeitos do traba-

lho simbólico. Petrópolis: Vozes.

Palavras-chave: dança, integração social, deficiênciaKey-words: dance, social integration, disability

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CASAR UM ESTUDO ARGUMENTAL E PROTOTEMÁTICO

Ângela Cristina Di Palma Back UNESC1

Magdiel Medeiros Aragão Neto UFPB/UFAM2

RESUMO: Este artigo apresenta uma sistematização da estrutura semân-tica de ‘casar’, mais especificamente da estrutura de argumentos, que se apresenta como: x casa(-se), x casa(-se) com y e z casa x com y. Funda-mentados no Léxico Gerativo de James Pustejovsky (1995) e na teoria de papéis prototemáticos de Dowty (1991), os autores concluem que o item lexical ‘casar’ pode apresentar uma nova estrutura semântica, ainda não prevista por Pustejovsky (1995). Diante dessas diversas possibilidades de realização, defendem tomá-lo como uma estrutura polissêmica.

ABSTRACT: This paper presents a systematization of the semantic struc-ture of the verb ‘casar’ (to marry); in particular, of the structure of argu-ments, presented as: “x casa(-se)”; (“x marries him/herself ”); “x casa(-se) com y” (“x marries him/herself with y”); e “z casa x com y” (“z marries x with y”). Based on the Generative Lexicon, by James Pustejovsky (1995) as well as on Dowty’s (1991) thematic proto-roles theory, the authors con-clude that the lexical item ‘casar’ may present a new semantic structure, not yet foreseen by Pustejovsky (1995). Given its various possibilities of occurrence, they argue it should be taken as a polysemic structure.

IntroduçãoCom este trabalho, busca-se sistematizar a estrutura semântica de

casar, mais especificamente a de argumentos, que ora se apresenta com um (x), ora com dois (x, y) ou (z, x/y/x e y) e, ainda, com três (z, x, y) argumentos saturados, ou seja, sintaticamente realizados, como em: x casa(-se), x casa(-se) com y e z casa x com y (na seção1). Diante dessas diversas possibilidades de realização, defendemos a posição de que es-tamos diante de uma estrutura polissêmica. O estudo se pretende sin-

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crônico, considerando não somente o significado dicionarizado, como também o conhecimento que os falantes nativos possuem intuitivamen-te.

A fim de defender a ideia posta, a fundamentação se dará com base no aparato teórico do Léxico Gerativo (na seção 2), de James Pustejo-vsky (1995), a partir do qual se mapeia a estrutura semântica de um item lexical, levando-se em conta seu uso criativo no contexto senten-cial, no qual se estabelece o significado atribuído às expressões.

Por meio do mapeamento semântico de um dos quatro níveis3 de representação – estrutura de argumentos – (seção 3), conclui-se que esse item lexical pode apresentar uma nova estrutura semântica, ainda não prevista por Pustejovsky (1995).

Para tornar nossa análise mais explicativa e explícita, além do Léxico Gerativo (LG), traremos para a discussão a teoria de papéis protote-máticos de Dowty (1991), cuja lista de propriedades escalares e não--atomistas torna mais dinâmica a noção de tematicidade.

1. Casar: mesma categoria lexical e polissemia lógicaAntes de iniciarmos propriamente a discussão acerca da estrutura

semântica do verbo casar, algumas considerações se fazem necessárias. Para tanto, devemos salientar que, em linhas gerais, um dos principais problemas é saber o que afinal significa casar atualmente.

Comumente, chama-se de casamento a “simples” união sem forma-lização civil ou religiosa – Elisabeth Taylor4, por exemplo, foi casada oito vezes; uniões, provavelmente, informais –, até porque a convivência hoje gera praticamente todos os vínculos legais que outrora existiam apenas em casamentos civis.

Conforme Houaiss (2001), casamento significa união voluntária de um homem e uma mulher, nas condições sancionadas pelo direito, de modo que se estabeleça uma família legítima. O dicionário (op. cit.) registra esse significado como ligado à esfera jurídica. Contudo, esse significado faz parte do conhecimento enciclopédico que, segundo esse dicionário, ainda registra outros, como 1) ato ou efeito de casar, e, por extensão de sentido, sem mencionar os figurados, 2) qualquer relação comparável à de marido e mulher, o que remete ao que já havíamos intu-ído sobre os casamentos de Liz Taylor, agora ratificado pelo dicionário.

Vale lembrar, porém, que um casamento não é necessariamente uma união voluntária entre duas pessoas; pode ser também uma união inde-pendente da volição de pelo menos um dos participantes. Desse modo podemos interpretar casar “apenas” como unir: casarunir. Se assim o fizermos, poderemos dar conta de usos considerados metafóricos tais como “Ele casou as araras azuis” e “João casa bem meias com sapatos”.

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Podemos ainda dar conta das expressões casamento religiosounião_religiosa e casamento civilunião_civil, sentido este segundo que cobre a expressão parceria civil e faz com que atribuamos/reconheçamos identidade se-mântica entre parceria e casamento no contexto homoafetivo.

Nossa intenção, para com este trabalho, é dar um tratamento sin-crônico do conhecimento lexical, aquele conhecimento que os nativos têm intuitivamente sobre os itens lexicais de sua(s) língua(s) mãe(s), e possibilita não só generalizações como também detalhamento com o máximo de granularidade linguisticamente analisável.

O objetivo, então, é o de propor para casar um significado mais geral, unir, englobando os casos compatíveis como “unir-se a alguém” e “unir alguém”. O primeiro caso ilustra casar como uma estrutura que pode realizar-se como segue em (01) e possíveis alternâncias sintáticas que veremos mais adiante:

(01) Mariana casou(-se) com o engenheiro.

Os casos comparáveis a “unir alguém” têm como realização (02) com suas respectivas alternâncias sintáticas:

(02) O padre/juiz casou Mariana com/e o engenheiro.

Embora pareça que estamos diante de dois verbos diferentes, que faz uso da mesma forma, mostraremos que estamos diante de um mesmo item lexical que mantém os mesmos significados básicos por ser logica-mente polissêmico: propriedade inerente das línguas humanas em fun-ção de sua capacidade polimórfica.

A análise mostra-se pertinente na medida em que assumimos ter o mesmo verbo casarunir com realizações sintáticas diferentes para as duas sentenças acima expostas. Essas diferentes realizações, assumimos base-ados em Pustejovsky (1995), são frutos da interação entre argumentos e eventos5 componentes do significado do verbo.

Alguns pesquisadores, a exemplo de Riemer (2010), Levin & Hovav (2005) e Cruse (2000), ao tratarem da realização argumental, observam comumente relacionar-se a noção de argumento à de papel temático, função semântica, e por meio dessa relação analisar preferências de ar-gumentos em relação a determinadas funções sintáticas, o que implica uma tentativa de emparelhamento entre função semântica e função sin-tática. Por exemplo, o argumento mais agentivo o padre/juiz, no exem-plo (02) acima, tende a exercer a função de sujeito, os menos agentivos (Mariana e o engenheiro) a função de objeto. Essas preferências temáti-cas acabam por acarretar a assunção de uma hierarquia temática. Diver-

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sas e atrativas, e, até certo ponto, explicativas, são as propostas de hierar-quização temática desde Fillmore (1968) até o presente. Levin & Hovav (2005, p. 183), entretanto, afirmam que “[...] many thematic hierarchies are meant to be a shorthand for capturing local empirical generalization and should not be considered a universal construct”6.

Pelo que, entretanto, se observa de casar, os objetos (Maria/o enge-nheiro), argumentos mais pacientes e menos agentivos, podem também exercer a função de sujeito, caso não haja um agentivo prototípico (o padre/juiz). Nesse caso, tem-se o que comumente se chama, na literatura sobre diátese verbal, de voz média/medial, tópico amplamente discutido em trabalhos como o de Levin & Hovav (2005) e Cambrussi (2007). Nessa voz, sem a estrutura sintática da passiva, um objeto, ou ambos, passa a exercer a função de sujeito, e o outrora sujeito da voz ativa, um argumento mais agentivo, não mais é recuperado se não houver uma especificação, conforme mostram (03)–(11) abaixo. O outro argumento que resta então como completo verbal exerce a função de objeto indire-to, podendo este ser ou não ser realizado sintaticamente:

(03) *Mariana e o engenheiro casaram(-se) com o padre.(04) *Mariana casou(-se) com o padre.(05) Mariana casou(-se) com o padre Júlio.

(06a) Mariana e o engenheiro casaram(-se) com o padre Júlio.(06b) ??Mariana e o engenheiro casaram(-se) a si mesmos com o padre Júlio.

(07a) Mariana casou(-se) com o engenheiro.(07b) ??Mariana casou(-se) a si mesma com o engenheiro.

(08a) Mariana casou(-se) mesma.(08b) ??Mariana casou(-se) a si mesma.

(09a) O engenheiro casou(-se) com Mariana.(09b) ??O engenheiro casou(-se) a si mesmo com Mariana.

(10a) O engenheiro casou(-se).(10b) ??O engenheiro casou(-se) a si mesmo.

(11a) Mariana e o engenheiro (se) casaram.(11b) Mariana e o engenheiro (se) casaram a si mesmos.

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Duas observações aqui são vitais. A primeira refere-se à versão de ocorrência dessas sentenças com o se e a segunda sem ele.

Diferindo de trabalhos como o de Camacho (2003), que nega um es-tatuto argumental para o se indicativo de voz média, mas por outro lado concordando com o mesmo autor que em sentenças na voz média o uso do enfático a si mesmo gera grande estranheza, como mostram (06b)–(11b), podemos analisar que as ocorrências do se em (05) e (06a)–(11a) têm a função de indicar que a sentença encontra-se na voz média pois o sujeito não é percebido como claramente agentivo, uma vez que nem Mariana nem o engenheiro são legitimados a promulgarem um casa-mento tal qual um juiz, padre, pastor, rabino etc.

Semanticamente, o que se tem é que “[...] A formulação medial só será selecionada se o estado de coisas for verbalizado do ponto de vista da entidade afetada, que também é a responsável pelo desencadeamento desse estado de coisas. [...]” (Camacho, 2003, p.120). Como essa inter-pretação semântica dá-se sintaticamente pode ser formulada segundo duas orientações teóricas. Em uma delas, baseando-se na noção de acu-mulação de papel temático de Perini (2006) e de outros linguistas lista-dos em Riemer (2010) e Levin & Hovav (2005), podemos assumir que um argumento, pela própria natureza do seu verbo, pode acumular mais de um papel temático: nos exemplos acima os sujeitos Mariana, O enge-nheiro, Mariana e o engenheiro e o respectivo pronome se a eles anafori-cos. Seguindo a outra orientação teórica, que não admite cumulação de papel temático, poderíamos assumir que os sintagmas em questão não são sujeitos, mas sim tópicos que ao serem movidos de sua posição de objeto direto, onde recebera o papel de paciente, ali deixam um prono-me como vestígio. As duas perspectivas teóricas são interessantes, mas a primeira se mostra mais econômica para os propósitos de formalização que aqui empreendemos.

Já no caso das ocorrências de (05) e (06a)–(11a) sem o se, parece ha-ver uma tendência à percepção/compreensão de uma maior agentivida-de dos sujeitos Mariana, O engenheiro e Maria e o engenheiro, mas ainda assim uma não total agentividade, tanto que podem ser traduzidas pela forma pronominal nos dialetos que usam essa forma. Assumimos po-rém que aquilo que mais se ressalta nesse caso não é uma maior agenti-vidade porém uma menor passividade, devido à ausência do pronome que pode ser interpretado como o argumento que sofre o evento e ao sujeito repassa-o por causa da co-indexação. Isso nos leva a interpretar que tais versões sem o se estão também na voz média, ainda que o se-gundo argumento não esteja saturado por elemento algum.

Associado ao traço de agentividade, temos outra estrutura: a de um sujeito agentivo, mas sem o objeto indireto, como em (12)–(14) abaixo.

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Contudo em estruturas nas quais esse sujeito tem alta agentividade, não é possível o complemento ser saturado apenas por um objeto indireto, como mostram (15)–(17).

(12) O padre casou Maria.(13) O padre casou o engenheiro(14) O pai casou a filha. (15) *O padre casou com Maria.(16) *O padre casou com o engenheiro.(17) *O pai casou com a filha.

Observemos que (15) e (16) podem ser gramaticais7 se forem inter-pretadas como sentenças na voz média, se o padre não for o agentivo realizador da cerimônia por se tratar de um ex-padre (já que muitas ve-zes falamos de “ex” como se ainda fossem no momento). Ou seja, (15) e (16) podem ser gramaticais se o padre em questão for um ex-padre e um dos cônjuges. Se a saturar o primeiro argumento tivéssemos: “o pastor”, (15) seria gramatical; “o juiz”, (15) e (16) seriam gramaticais. Em nossa cultura, (17) porém só seria gramatical se o pai, o pastor ou o juiz tivesse casado no mesmo evento em que a filha casou com outro nubente.

Por fim, se o sujeito tem alta agentividade, a sua pronominalização é impossível, como mostram (18)–(20) abaixo.

(18) *O padre casou-se Mariana com o engenheiro.(19) *O padre casou-se Mariana e o engenheiro.(20) *O padre casou(-se) com Mariana e o engenheiro.

A sentença (20) seria possível se fosse interpretada como uma sen-tença na voz média e, de novo, “o padre” fosse equivalente a “o ex-padre”. E ainda assim haveria pelo menos duas interpretações distintas: uma na qual o ex-padre teria se casado simultaneamente a Mariana e ao enge-nheiro; e outra na qual o ex-padre teria se casado em uma fase da sua vida com Mariana e noutra fase com o engenheiro, ou seja, tornado-se cônjuge de ambos.

O que possibilita essa análise de (20) como podendo ser média é o fato de o sujeito poder ser não só agente, mas também paciente, passi-vidade essa que é uma característica prototípica do sujeito da voz mé-dia. Considerando que as sentenças médias, a exemplo de A porta bateu com o vento, têm a propriedade de o sintagma que não exerce a função de sujeito precisar ser introduzido por uma preposição (Cf. Cambrussi, 2007), podemos assumir que para os casos de verbos como casar, que têm dois complementos do tipo argumento default e um deles se realiza

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sob a forma pronominal, o outro complemento precisa necessariamen-te ser introduzido por preposição, mesmo que esse terceiro seja cons-tituído de sintagmas nominais coordenados. Quando essa regra não é obedecida temos casos como (18) e (19). Em (18) a preposição com in-troduz apenas um sintagma o engenheiro e, como a posição de segundo argumento já está saturada pelo sintagma se, o sintagma Mariana fica sem função sintática porque também não está coordenado a nenhum outro sintagma, ou seja, é um sintagma excedente, um sintagma sem ar-gumento para saturar. Em (19) o sintagma Mariana e o engenheiro estão coordenados ocupando a mesma função sintática, ou seja, saturando uma única posição argumental, mas ainda assim a sentença não é gra-matical porque casar quer que pelo menos um dos seus complementos seja introduzido por preposição e nem se nem Mariana e engenheiro são introduzidos por preposição.

O exposto nos exemplos acima nos possibilita argumentar a favor de uma explicação para a polissemia do verbo casar, cujo tratamento teórico será o do Léxico Gerativo e dos papéis prototemáticos de Dowty (1991), na seção a seguir.

2. Léxico GerativoO Léxico Gerativo (LG) surge, em meados da década de 1990, como

uma teoria visando a explicar a extensão de sentido lexical, consideran-do o uso criativo das palavras. A abordagem prevê um sistema sensível o bastante para gerar novos sentidos que são semanticamente apropriados a contextos8 linguísticos específicos; consequentemente, não há um gerador único, o que há, na verdade, são mecanismos que agem, organicamente, com estruturas lexicais a fim de criar significado ou mesmo expandi-lo.

O aparato teórico se constitui como capaz de recursivamente atribuir significado às expressões. Para captar as facetas da significação quanto à construção, a teoria apresenta uma composicionalidade de forma en-riquecida. A composicionalidade em Frege (1978) expõe uma composi-ção (a + b + c) que gera algo já existente em (a), (b) e (c). No LG, o foco não se pauta nessa lógica; acredita-se que o resultado possa gerar algo que não havia de forma explícita em (a), (b) e (c).

A visão de léxico, nessa perspectiva, é de um todo altamente estru-turado, cuja estrutura interna é maior do que assumem outras teorias lexicais, como a do Léxico de Enumeração de Sentidos (SEL, de Sense Enumeration Lexicon)9, por exemplo, que apenas fornece uma lista de sentidos que o item lexical possui.

Teorias lexicais que listam sentidos possuem uma concepção de lín-gua monomórfica se para cada sentido houver uma entrada lexical. Pode, porém, ocorrer que os sentidos sejam todos listados na mesma entrada;

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nesse caso, temos uma teoria polimórfica irrestrita. Independentemente de a concepção de língua ser monomórfica ou polimórfica irrestrita, os itens lexicais parecem ser interpretáveis a partir de um único significado, e, diante de uma ambiguidade, a solução que se apresenta é a listagem múltipla de palavras a fim de garantir interpretações únicas para os seus sentidos. Contrário ao SEL, o LG assume um polimorfismo fraco, i.e., uma semântica fracamente polimórfica em que todos os itens lexicais são semanticamente ativos, atuando sob restrições bem delimitadas.

Todo o processo aí descrito expõe um fluxo de interação constante entre os itens lexicais, de modo que os itens são combinados no interior das estruturas da qual fazem parte, como sintagmas; aí está a noção de contexto da qual falamos. A interação, então, passa a evidenciar capaci-dades gerativas que são progressivas na medida em que recobrem e ex-pandem os significados, o que envolve um poder recursivo decorrente do sistema composicional que é capaz de gerar significados a partir dos quais se atribui à palavra um núcleo de significação.

A fim de evitar a sobregeração de sentidos, o poder recursivo, cer-tamente, sofre restrições, e, para tanto, fazem-se necessários níveis de representações semânticas que não se confundem com meros papéis te-máticos. Segundo James Pustejovsky (1995), o propósito, quanto a esses níveis de representação, é assumir que a semântica de um item lexical α pode ser definida como uma estrutura consistindo de pelo menos quatro componentes: α = <A, E, Q, I>. Em que: 1) A é a estrutura de argumentos; 2) E é a estrutura de evento; 3) Q a estrutura de qualia, e I é a estrutura de herança lexical. A cada um desses níveis de representa-ção corresponde uma forma interpretação e análise. A fim de capturar a natureza gerativa da criatividade lexical, mais especificamente do fe-nômeno de extensão de sentido, a explicação formal da língua é assim fornecida com base nessa constelação de estruturas, e também de três mecanismos gerativos que não serão aqui abordados.

Evidentemente, uma representação lexical adequada não pretende responder pelo cômputo de inferências extralinguísticas envolvidas no processo interpretativo, mas contribuir como um dos muitos níveis numa caracterização enriquecida da estrutura contextual, fazendo com que a abordagem teórico-analítica seja capaz de apreender o uso criati-vo das palavras em contextos diferentes.

Visando a captar toda a significação potencial que o léxico pode ex-primir e explicando, inclusive, a natureza polimórfica da língua, frisa-se que se faz necessária uma apreciação da estrutura sintática sem a qual, segundo Pustejovsky (op. cit.), o estudo da semântica lexical está fadado ao fracasso; assim, o meio pelo qual o significado se constitui não pode ser dissociado da estrutura que o transporta.

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Pustejovsky (1995) propõe-se a apreciar mais em detalhes os aspec-tos gerativos ou composicionais da semântica lexical, do que somente olhar para a decomposição limitada a um número de primitivos – e.g., Quillian (1968), Collins and Quillian (1969), Fodor (1975), Carnap (1956), Brachman (1979) apud Pustejovsky (1995). Para tanto, cabe à abordagem do LG descrever a semântica lexical acionando um apara-to que envolve os quatro níveis de representação que interagem entre si, e podem ser submetidos à ação dos mecanismos gerativos. Para os propósitos deste trabalho, e já no tópico a seguir, focaremos apenas na estrutura de argumentos.

3. Construindo a estrutura de argumentos do verbo CASARPustejovsky (1995) pontua que a estrutura de argumentos de uma

palavra diz respeito à especificação mínima de sua semântica lexical. Trata-se de um componente necessário, entretanto não único para cap-turar a caracterização semântica de um item lexical.

Vejamos os tipos de argumentos ilustrados pelo autor (op. cit., p. 63–64):

1. Argumentos autênticos10: parâmetros do item lexical que de-vem ser saturados; e.g.:João chegou tarde.

2. Argumentos default: parâmetros que participam nas expres-sões lógicas de qualia, mas não necessariamente precisam ser sa-turados; e.g.:João construiu uma casa de madeira.

3. Argumento sombreado: parâmetros que são semanticamente incorporados ao item lexical. Geralmente são saturados apenas quando há necessidade de operações de subtipificação ou de es-pecificação discursiva; e.g.:João beijou Maria com um beijo ardente.

4. Adjuntos autênticos: parâmetros que modificam a expressão lógica, mas que são parte da interpretação situacional, e não são vinculados a qualquer representação semântica de item lexical específico. Isso inclui adjuntos que expressam modificação tem-poral ou espacial, pois podem se adjungir a qualquer classe verbal (semanticamente cheia); e.g.:Mary dirigiu até Nova Iorque na terça-feira.

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Tendo como parâmetro os tipos de argumentos acima listados, pas-semos, então, a aplicá-los aos contextos sentenciais nos quais se apre-senta o verbo casar. Com relação a sua estrutura de argumentos, o pro-pósito é sustentar que o exemplo (21) esboça umas das arquiteturas que mais se aproximam, do ponto de vista da realização sintática, à estrutura semântica. Vejamos, então, o raciocínio passo a passo.

(21) Mariana casou-se11 com o engenheiro.

O enunciado acima se apresenta, em princípio, sintaticamente com três posições argumentais, Mariana, se e com o engenheiro, entenden-do-se que o saturador segundo argumento, se, tem o mesmo índice de referência do sujeito, ou seja, Mariana e se fazem referência à mesma pessoa, como segue:

(21a) [Mariana]1 casou-[se]1[com o engenheiro]2.

A ausência do se pode ser interpretada como objeto nulo/insaturado, continuando a posição argumental a ter o mesmo índice, mas desprovi-da de realização fonológica.

(21b) [Mariana]1 casou-[Ø]1 [com o engenheiro]2.

Isso posto conduz a uma interpretação que pressupõe para casar a projeção de dois argumentos autênticos com o mesmo índice referen-cial. Entretanto, outras configurações sintáticas são possíveis. Vejamos:

(22) Mariana casou.

Considerando a interpretação de objeto insaturado, temos em (22) uma insaturação de outra ordem quando comparado a (21b). O terceiro argumento, com o engenheiro, não se realizou e, em contexto mínimo, podemos não precisar dele, pois Mariana pode ter casado com o en-genheiro, com o farmacêutico, com o jovem médico, enfim pode ser qualquer um, desde que seja uma entidade do tipo humano com algum valor temático que veremos mais adiante. É essa possibilidade, de poder o nubente de Mariana ser de qualquer tipo, desde que seja humano, que valida a sua interpretação como outro objeto insaturado. Assim, casar nos possibilita reconhecer em sua estrutura de argumentos, dois objetos insaturados, e uma proposta possível para esses objetos é tratá-los, se-guindo a tipologia argumental de Pustejovsky (1995), como argumentos defauts. Com base nesse tratamento, estamos diante da seguinte confi-

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guração para casar: um argumento autêntico e dois defauts. Com isso, pode-se obter a alternância sintática, considerando os exemplos (21) e (22), como segue em (23):

(23) Mariana e o engenheiro (se) casaram12.

Os exemplos (21), (22) e (23) apresentam possibilidades de reorga-nização sintática nas quais se assenta o que podemos, em linhas gerais, chamar de alternância de focalização de eventos e valores temáticos par-tir dos quais se interpreta os participantes envolvidos nos subeventos, que envolvem a mudança de estado dos envolvidos13. Daí podermos di-zer que casar é um verbo de mudança de estado.

O significado de mudança de estado, que poderia ser interpretado como significado de base caso não quiséssemos argumentar a favor de o verbo casar ser logicamente polissêmico, tem como contrapartida o significado de criação, que discutiremos em trabalho em fase de con-clusão. O significado de criação apresenta/focaliza o evento de pro-cesso que culmina com a mudança de estado, afetando os saturadores14 de argumentos que têm ao mesmo tempo algum valor agente e algum valor paciente e, por essa “ambiguidade” temática, esses saturadores po-derem assumir distintas funções sintáticas. A comum associação entre agentividade e desencadeamento de processo parece validar uma classe de verbos que apresenta comportamento parcialmente similar a casar, a exemplo dos encontrados nos excertos que seguem:

“O lobisomem lutava corpo a corpo com a gente viva.” (Rego, 1960, p.37 apud Back no prelo)15 “Trocava pássaros com outros amadores” (Assis, 1997, p.25 apud Back no prelo) “convive com tantas outras” (Queiroz, 1988, p.106 apud Back no prelo) “cruzaram com o Dr. Celso” (Queiroz, 1988, p.57 apud Back no prelo) “correspondia-se com Capitu” (Assis, 1997, p. 211 apud Back no prelo) “dividir contigo os direitos de autor” (Assis, 1997, p.14 apud Back no prelo) “vou jogar com eles” (Assis, 1997, p.149 apud Back no prelo) “acotovelava-se com outras semelhantes à beira de uma estrada” (Queiroz, 1988, p. 27 apud Back no prelo) “a reflexão casa-se muito bem à curiosidade natural” (Assis, 1997, p. 144 apud Back no prelo)

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“ia competir com aquele monge da Bahia pouco antes revelado” (Assis, 1997, p.90 apud Back no prelo) “seu automóvel chocou-se com outro” (Queiroz, 1988, p. 13 apud Back no prelo)

Tomemos apenas o primeiro enunciado, da relação acima, com a fi-nalidade de mostrar suas possibilidades quanto à realização sintática:

(24) O lobisomem lutava com a gente viva.(25) O lobisomem e a gente viva lutava.(26) O lobisomem lutava.(27) A gente viva lutava.

Vale salientar que, segundo Dowty (1991), exemplos do tipo (24) e (25) parecem ser sinônimos por representarem o mesmo estado de coi-sas do mundo em que “os lutadores” são os mesmos participantes nos dois casos. (24) e (25) diferem, no entanto, em relação a (26) e (27), porque não se tem expresso com quem ou o quê o lobisomem ou a gente viva lutava. Entretanto, analisar tais exemplos sem alguma noção de te-maticidade é fazer uma investida pouco explicativa. Diferenças semân-ticas começam a apresentar-se quando percebemos que os exemplos (24) e (26) implicam que apenas o lobisomem, de algum modo, é apre-sentado como agente (principal) do ato de lutar, mas em (25) a agentivi-dade é atribuída a ambos, lobisomem e a gente viva, uma vez que ambos estão coordenados na função sintática de sujeito do evento denotado pelo verbo lutar, gerando assim dois sentidos para a sentença: 1) o lobi-somem e a gente viva lutam entre si; e 2) o lobisomem e a gente lutavam contra alguma outra entidade.

Uma abordagem mais explicativa precisa unir à estrutura de argu-mentos a noção de papéis temáticos a fim de resolver questões como a que acima se apresenta. Pois, como mostram Badia & Saurí (2006) e Aragão Neto (2007), essas duas abordagens apenas supostamente são teorias excludentes entre si e também apenas supostamente de um lado se apreende o léxico, basicamente, a partir da estrutura de argumentos e de outro lado com base unicamente nos papéis temáticos.

A representação para os argumentos de um item lexical, ARG1, ..., ARGn, apresenta-se em uma estrutura de traços, em que o tipo de argu-mento é diretamente codificado na estrutura de argumento, ARGSTR, como mostra o esquema abaixo.

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Aplicando o esquema acima ao item lexical casar e considerando a

interpretação dos exemplos (21), (22) e (23), inicialmente representa-mos a estrutura de argumentos conforme segue:

O item lexical casar pressupõe, em sua estrutura de argumentos, três entidades do tipo indivíduo dentro de um mesmo conjunto18. No caso da estrutura de argumentos representada no esquema (2), as entidades envolvidas estão inseridas dentro do conjunto dos humanos. Entretan-to, o verbo casar pode supostamente apresentar outra configuração de argumentos que seja considerada problemática para o LG, pois se pode entender que por se tratar de outra configuração, trata-se igualmente de outra estrutura argumental e, por conseguinte, de outro item lexical. Diante disso, tem-se que buscar uma representação cuja geometria dê conta dessa complexidade em que se tem para casar o significado UNIR ALGUÉM. Consideremos o exemplo a seguir:

(28) O padre casou Mariana com o engenheiro.

De imediato percebemos que (28) se apresenta com três argumentos a exemplo de (21), contudo o segundo argumento não possui o mesmo índice referencial do primeiro, o que requer a sua realização fonológica em nível sintático, como em (28a):

(28a) [O padre]1 casou [Mariana]2 [com o engenheiro]3.

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Mesmo diante da distinção entre (21) e (28) com relação ao índice referencial, a estrutura de argumentos se mantém: um argumento au-têntico e dois defaults, como se constata a partir da gramaticalidade de (29) em que se observa uma sentença com um argumento autêntico, um argumento default saturado, Mariana, e outro default não saturado, a pessoa com a qual Mariana foi casada.

(29) O padre casou Mariana.

Isso mostra que casar com o significado de UNIR a si próprio ou UNIR alguém são simétricos quanto à estrutura de argumentos, man-tendo-se, para todos os exemplos aqui apresentados, o esquema (2).19

Quando sintagmas como o padre, o pastor, o juiz, o rabino etc. ocu-pam a posição de sujeito, podemos ver que os seguintes comportamen-tos sintáticos são avalizados pela estrutura semântica de casar:

(30) [O padre]1 casou [Mariana]2 [com o engenheiro]3.(31) [O padre]1 casou [Mariana]2 e [o engenheiro]3.(32) [O padre]1 casou-[os]2&3.

Tomando como base a indexação em (30), (31) e (32), podemos in-terpretar que as três sentenças expressam o mesmo valor referencial, ou seja, o mesmo estado de coisas. Mas o que queremos destacar aqui é que se nota que o casar do padre é de um tipo de casar distinto do que vimos no casar de Mariana, em (21) acima, pois: 1) em (30)–(32), a agenti-vidade está presente no padre como aquele que realiza a cerimônia e oficializa a união, mas isso não exclui certa agentividade, pela aceita-ção, daqueles que estão a serem casados, apenas têm-se agentividades diferenciadas devido ao papel que desempenham; e 2) em (21), o agen-te causador (realizador e oficializador) da união, não está presente na realidade sintática, de modo que certa agentividade é atribuída apenas aos casantes, ou mais fortemente apenas a um deles, Mariana. Assunção similar, no que diz respeito a diversos níveis de agentividade, encon-tramos na teoria de papeis prototemáticos de Dowty (1991), à qual, no tópico a seguir, propomos alguns acréscimos e relacionamos ao LG, e utilizamos para melhor analisar casar.

4. Casando papéis prototemáticos com a estrutura de argumentos do verbo CASAR

A teoria de Dowty (1991) propõe apenas dois papéis prototemáti-cos: agente e paciente, recebendo cada um desses papéis certa seleção de propriedades/traços. O papel prototemático de agente apresenta um

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total de cinco propriedades. Quanto mais traços agentivos um deter-minado sintagma possuir, mais ele será agente, e quanto menos traços, menos agente será; assim, “o padre”, em (30) acima, é mais agentivo que “Mariana”, em (21a), (21b) e (22) também acima.

Com base no exposto, os exemplos (21) e (30) poderiam ser con-siderados dois verbos diferentes. Entretanto, o casar da Mariana está semantica e estruturalmente relacionado ao casar do padre. O processo de casar e o estado de casado resultante são garantidos nos dois casos, e, justamente por isso, ambas as sentenças são sintaticamente bem forma-das. Podemos dizer que a semântica do verbo casar em (30) evidencia três participantes que tomam parte dos eventos contidos na estrutura de eventos do verbo, sendo que apenas um, o padre, controla a experiência, gerando a cerimônia da qual ele, como causador, participa mais agenti-vamente do que os demais participantes20.

Segundo Cruse (2000), não há concordância quanto a melhor ma-neira de descrever o papel semântico dos participantes de um evento/situação. O autor afirma também que as propostas de Fillmore (1968), em se tratando de papéis temáticos, “[...] had an elegant simplicity, but history shows elegant simplicity to be a fragile thing in linguistics [...]”21 (Cruse, 2000, p. 282). Cruse (op. cit.) afirma ainda que uma alternativa moderna para lidar com a agentividade é assumir que o papel AGEN-TIVO requer um agente prototipicamente animado, que não só forne-ce energia para a realização de uma ação mas também atua consoante sua vontade. Contudo, nem sempre é assim que funciona. Entre outros exemplos tratados pelo autor, em o vento fechou a janela percebe-se um agente como causativo, mas que não é animado.

Considerando, então, a realização sintática de casar em (30), a agen-tividade pode ser percebida nos três participantes, o que coloca a ques-tão de como atribuir a esses argumentos os papéis adequados. Cruse (op. cit., cf. p. 284) observa que existem, obviamente, vários casos fronteiri-ços e intermediários que podem seguir subdividindo-se. A discussão dá evidências de que estamos diante de um caso fronteiriço em se tratan-do do item lexical casar em que temos graus diferentes de agentividade envolvendo os participantes, muito próximo do que segundo Dowty (1991) chamou de pacientes e/ou agentes menos, ou mais, prototípicos.

Vale lembrar também que há casos em que algum agentivo apresenta ainda alguma passividade: se o padre casou Mariana e/com o engenheiro, é certo que Mariana e o engenheiro sofreram a ação de casamento rea-lizada pelo padre e, por consequência, tiveram seus estados civis altera-dos de solteiros para casados. Assim, em (30) não basta reconhecermos que “Mariana” e “o engenheiro” são agentivos menos prototípicos do que “O padre”, é preciso também se reconhecer que os nubentes são em

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algum grau também pacientes.Apesar de James Pustejovsky (1995) rejeitar a noção de papéis (pro-

to/micro)temáticos para a sua versão do LG, outros trabalhos, a exem-plo de Badia e Saurí (2006) e Aragão Neto (2007), assumem que tal modelo de léxico pode se tornar mais explicativo se se vale de papéis (proto/micro)temáticos. Tal assunção também é feita aqui por nós, po-rém com o diferencial de, como já nos propusemos desde o início deste trabalho, utilizarmos como norte a teoria de papéis prototemáticos de Dowty (2001). Essa teoria mostra-se relevantemente produtiva por ser flexível devido ao uso de traços que envolvem uma certa noção de es-calaridade, aqui potencializada por nós, e que podem compor-se umas com as outras, descartando a noção binária, e menos explicativa, dos papéis temáticos tradicionais, que geralmente são assumidos como ex-cludentes entre si.

Para tornar nossa análise em termos de papéis prototemáticos mais explícita, fortemente baseados em Dowty (2001), apresentamos logo abaixo uma proposta de sete propriedades para os papéis prototemá-ticos de agente e de paciente. Salientamos, assim como faz o autor, que essas sete propriedades não se pretendem exaustivas. Elas são as neces-sárias para a análise aqui empreendida.

ProtoagentesA1 = Existe independentemente do evento designado pelo verbo;

João precisa de sapatos novos.A2 = Move-se (relativamente à posição de outro participante) ou é utilizado para;

A bola entrou na cesta.A3 = Tem consciência ou percepção;

João sabe/viu a questão.A4 = Tem aceitação, resignação ou envolvimento de/em um evento ou estado;

João aceitou o beijo.A5 = Tem intenção;

João nadou.

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A6 = Causa um evento, ou mudança de estado ou criação de outro participante;

O vento apagou o fogo.A7 = Causa intencionalmente um evento, ou mudança de estado ou criação de outro participante.

João cortou o queijo.

ProtopacientesP1 = Não move-se (relativamente à posição de outro participante);

A bola entrou na cesta.P2 = É objeto de consciência, percepção ou manipulação;

João sabe/viu/folheou o livro.P3 = É resultado de aceitação/resignação de um evento ou estado;

João aceitou o beijo.P4 = Não tem intenção;

João desmaiou.P5 = É afetado por um evento ou mudança de estado provocado por outro participante;

O vento apagou o fogo.P6 = É afetado por um evento ou mudança de estado provocado intencionalmente por outro participante.

João cortou o queijo.P7 = Não existe independentemente do evento designado pelo verbo;

João construiu uma casa.

De acordo com a proposta acima, quanto maior o número atrelado ao protopapel mais prototípico é ele e o sintagma por ele designado. Assim sendo, o agente (A7) que intencionalmente causa um evento ou mundança de estado ou criação de outro participante é o mais prototípi-co de todos. Já (A6), que sem intenção, seja porque motivo for, causa um evento ou mudança de estado ou criação de outro participante, é menos prototípico do que (A7) e mais prototípico do que (A5), pois este é o que

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mesmo tendo agido com intenção não causa um evento ou mudança de estado em outro participante. O mesmo raciocínio vale para os proto-pacientes, de forma que o mais prototípico é (P7), que se quer chega a existir independentemente do evento designado pelo verbo.

Para então implementar nossa proposta de papéis prototemáticos na arquitetura do LG, formalizaremo-la em termos de índices superes-critos aos respectivos argumentos, como em (33) abaixo. Esses índices, vale salientar, como vemos na estrutura de argumentos de casar, podem ser cumulativos indicando que as propriedades listadas junto aos papéis prototemáticos, além de escalares, não são excludentes entre si, pelo contrário, podem ser cumulativas por serem passíveis de se comporem umas com as outras. Retomemos agora o Esquema 2 enriquecido com o que acabamos de propor.

(33) [O padre]A7 casou [Mariana]A4,P6 ([com o egenheiro]A4,P6).

Ao analisar exemplos como “Kim and Sandy married” e “Kim mar-ried Sandy”, Dowty (1991) afirma que “Marrying, playing chess, debating and other such activities (e.g. fighting) are actions that by their nature require the volitional involvement of two parties: one can’t understand the essential nature of these actions without knowing that.”22 (p. 584, itálicos ou autor). É interessante, entretanto, lembrar que volição geral-mente nos remete à ideia de vontade própria, mas sabemos, por exem-plo, que muitas pessoas se casam mesmo não querendo. Considerando esse fato, assumimos que para o verbo casar volição não é uma proprie-dade essencial. A propriedade essencial é haver aceitação/resignação/envolvimento, pois certamente há pessoas que aceitam se casar, ou me-lhor, serem casadas simplesmente porque não têm outra opção; dou-tra forma, sem aceitação de pelo menos uma das partes, não existe o evento de casar. Inclusive lembremos que histórica e culturalmente há a pergunta por parte do padre: “X você aceita Y como seu/sua esposo/esposa?” mas não pergunta “X você tem vontade de casar-se com Y?” ou “X você tem vontade de que Y seja seu/sua esposo/esposa?”. Como resultado, para os nubentes argumentos de casar atribuímos o valor pro-

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totemático A4 e P6. Para aos nubentes atribuirmos a propriedade de vo-lição, e valor A5, precisaríamos ter um conhecimento extralinguístico a respeito de casamentos específicos, ou seja, precisaríamos saber se, além de aceitarem o casamento, os nubentes queriam de fato se casar. Esse mesmo valor A4 mostra-se também pertinente para os demais verbos acima elencados por Dowty – jogar xadez, debater, brigar etc. –, afinal, às vezes: 1) não queremos jogar xadrez ou outra coisa qualquer, mas nos resignamos a preencher o tempo; 2) muitos políticos não querem debater, mas aceitam fazê-lo porque a imprensa os cerca; e 3) acabamos brigando sem querer.

Voltando a analisar a estrutura de argumentos que apresentamos para o verbo casar, aventamos agora a hipótese de que, quando um ver-bo possui mais de um argumento com o mesmo papel prototemático, aquele que for mais prototípico assume a posição de sujeito. Essa hi-pótese baseia-se: 1) na possibilidade de cumulação de papel temático, de Perini (2006); e 2) na hierarquização de papéis temáticos, de Levin & Hovav (2005). Evidência a favor dessa hipótese é que, para casar e outros verbos sintaticamente equivalentes, não podemos combinar agentes com prototipicidades distintas sem gerarmos agramaticalidade, como mostram (34)–(35) abaixo.

(34) *[O padre]A7 e [Mariana]A4,P6 casaram o[ engenheiro]A4,P6.(35) *[O Padre]A7 e [o engenheiro]A4,P6 casaram [Mariana]A4,P6.

(34) e (35) interpretadas na voz ativa são agramaticais pois não apre-sentam coordenação de sujeitos, mas sim, como mostram as agentivi-dades distintas, uma tentativa de se coordenar o sujeito com um dos objetos: o padre, A7; Mariana e o engenheiro, A4. Comparemos as duas sentenças com as três abaixo.

(36) [[O padre]A7 e [o pastor]A7] casaram [o engenheiro]A4,P6.(37) [[O padre]A7 e [Mariana]A7] casaram [o engenheiro]A4,P6.(38) [[O Padre]A7 e [o engenheiro]A7] casaram [Mariana]A4,P6.

Supondo que em (37) Mariana não seja um dos cônjuges e em (38) o engenheiro também não seja um dos cônjuges, (36), (37) e (38) são gramaticais porque tem-se realmente coordenação de sujeitos, já que ambos têm o mesmo papel prototemático: A7. Assim sendo, a necessi-dade de coordenação se estende então a papeis prototemático; mas vale salientar que isso não implica que todos os sintagmas que têm os mes-mos papeis prototemáticos podem-se coordenar aleatoriamente, pois poderíam levar a falsas paráfrases, como nos mostra a série em (39).

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(39) [[O padre]A4,P6 e [Mariana]A4,P6] casaram(-se) com [o enge-nheiro]A4,P6.23, 24

<==>25(39a) [O engenheiro]A4,P6 casou(-se) com [[o padre]A4,P6 e [Mariana]]A4,P6.<=/=> (39b) [O padre]A4,P6 casou-se com [[o engenheiro]A4,P6 e [Mariana]A4,P6].<=/=> (39c) [Mariana]A4,P6 casou-se [[com o engenheiro]A4,P6] e [o padre]A4,P6].

Ao longo da construção da estrutura de argumentos de casar, le-vantamos distintas interpretações e comparações a fim de evidenciar a ambiguidade estrutural do verbo em questão e de representar as geome-trias relevantes envolvidas. Como resultado, observamos haver regras prototemáticas e, mais do que simetria quanto à estrutura de argumen-tos para (21)26 e (30)27, alternâncias semântico-sintáticas da mesma es-trutura de argumentos.

5. Considerações finaisA análise do item lexical casar aqui feita, com base na teoria do Léxi-

co Gerativo e dos papeis prototemáticos, toma como cerne as conside-rações teóricas de Pustejovsky (1995) e Dowty (1991), respectivamente, e mostra que o verbo em questão tem recebido um tratamento bastante simples para suas propriedades semânticas e comportamentos sintáti-cos. Isso decorre do fato de casar manter-se categorialmente como um único verbo, mesmo desdobrando-se em duas possibilidades de mani-festação sintática, o que ocasiona sua extensão de sentido e é resultado da combinatória entre funções semânticas e funções sintáticas.

Como dos quatro níveis que compõem a estrutura semântica, pau-tamos nossa investigação focalizando apenas uma delas, a estrutura de argumentos, este trabalho nos leva a continuar o estudo com vistas a in-vestigar se, nas duas vozes, casar apresenta-se como contendo um even-to complexo estruturado com dois subeventos, de modo que o primeiro envolva um processo de transição e o segundo o estado resultante. Isso posto, entendemos que será por meio da análise de, pelo menos, mais duas estruturas semânticas – eventos e qualia - que poderemos obser-var se existem motivações que atestam não só a ambiguidade mas uma polissemia lógica para casar e outros verbos que possam ser analisa-dos como uma mesma classe lexical, ainda não prevista por Pustejovsky (1995).

Análises semânticas como estas têm implicações. Uma delas é de na-tureza teórico-metodológica, pois podem ajudar a resolver problemas

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quanto a possibilidades de variação linguística em se tratando de deli-mitar o significado que se busca a fim de postular os limites da variação. Além disso, a verticalização deste estudo pode contribuir epistemolo-gicamente para delimitar as variáveis semânticas com vistas a explanar com propriedade o significado do significado. Por fim, outra implica-ção, certamente, é de natureza pedagógica, pois descrever a língua im-plica em conhecê-la, torná-la significativa a fim de contribuir para que os professores façam mediações quando do tratamento didático.

Notas1 Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina e, atualmente, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense e coordenadora do Grupo de Pesquisas LITTERA - Correlações entre cultura, processamento e ensino: a linguagem em foco.2 Doutor em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e, atual-mente, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB, campus João Pessoa) e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Amazonas (UFAM, campus Manaus), membro do Grupo de Pesquisa Semântica, léxico e cognição da UFPB. Temas de investigação: estrutura lexical, interface léxico e gramática, interface semânti-ca e sintaxe, argumentação e música brega.3 Os outros três níveis dizem respeito às estruturas de eventos, de qualia e de herança lexical que, neste trabalho, não serão abordados. 4 Atriz norte-americana, reconhecida internacionalmente por ter atuado em diversos filmes, a exemplo de Gata em Teto de Zinco Quente (Cat on a Hot Tin Roof ).5 Em trabalho futuro discutiremos a estrutura de eventos.6 “[...] muitas hierarquias temáticas devem significar apenas uma formulação para se capturar generalizações empíricas específicas e não devem ser consideradas um cons-tructo universal”.7 A noção de gramaticalidade que adotamos aqui não envolve apenas boa formação sintática, mas também semântica, morfológica e fonológica.8 O contexto a que nos referimos diz respeito aos conhecimentos lexicais, excluindo quaisquer situações que remetam ao extralingüístico, i. e, ao contexto pragmático.9 Para maiores esclarecimentos, ver Pustejovsky (1995).10 A opção neste trabalho foi por traduzir a expressão true como autêntico em função de verdadeiro acarretar na possibilidade de um argumento default não ser verdadeiro. Pa-rece-nos que um argumento, mesmo quando não se realiza sintaticamente, aproxima-se da autenticidade esperada para proceder com a análise, uma vez que o interpretamos. No caso do português, por exemplo, o argumento com função de sujeito mesmo estando apagado (elíptico) é previsto e interpretado como tal. Do contrário, há argumentos que podem ser interpretados como default ou ainda como sombreado, pois, quando apare-cem, não necessariamente sua ausência seria interpretada. Em suma, todos são argu-mentos verdadeiros, mas autêntico cabe àquele que sempre que é previsto, realizado ou não sintaticamente, a fim de garantir a gramaticalidade. Vale registrar que para alguns o termo ‘autêntico’ acarreta o mesmo problema de ‘verdadeiro’. O que se levanta é, na realidade, uma dúvida de até que ponto os argumentos ‘default’ e ‘sombreado’ podem ser tratados de fato como argumentos, pois eles têm uma certa ‘cara’ de adjuntos.11 Em princípio, tanto o exemplo (20) quanto o (21) pode ser expresso com o se

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evidenciando o que, tradicionalmente, conhecemos como voz reflexiva. Segundo a tradição gramatical, os verbos reflexivos agrupam-se em pronominais essenciais (Ma-riana se arrependeu do que fez.); e pronominais acidentais (Mariana se escondeu do João.) cujos verbos não necessariamente fariam uso do pronome se (Mariana escon-deu João.). Ao tentarmos enquadrar o verbo casar dentro de um dos grupos, perce-bemos que ele parece estar na interface. Como essencial, o se junto ao verbo casar se apresenta sem conteúdo semântico. Já como acidental, o verbo casar pode fazer uso ou não do se, isso é, sem dúvida, o que caracteriza esse grupo; entretanto, diferente-mente do que ocorre com os verbos que se enquadram nesse grupo, casar não muda o estado de coisas por ora se apresentar com ou sem o se. Enquanto percebemos di-ferença sistemática quanto ao estado de coisas em Mariana se escondeu de João / Ma-riana escondeu João, não o atestamos em Mariana se casou com João / Mariana casou com João. Provavelmente, o que temos aí conduz a uma reflexão acerca da voz média cujo resquício se conserva no português. Segundo Sproviero (1997), a voz média in-dicaria a fase da consciência não destacada do mundo, isto é, o homem e o mundo não se separavam, integravam o mesmo todo e a linguagem exprimia essa relação integral. Então, ao enunciarmos Mariana casou com o engenheiro, não precisamos detalhar a reflexividade de que ela mesma casou, essa relação está posta integralmente: ela como sujeito protagoniza seu próprio casamento. Lauand (1997) observa que certos verbos reflexivos tentam indicar dualidade simultânea sujeito/objeto na ação. Ainda, segun-do ela, no castelhano, com seus muitos usos reflexivos, isto é muito nítido: ‘se murió’, por exemplo, morrer não é uma ação exercida pelo sujeito, mas, sempre o sujeito protagoni-za sua própria morte. Em função do exposto, optamos por entender que casar quando acompanhado do se não afeta o estado de coisas, de modo que não o interpretaremos como argumento nas estruturas em questão. 12 A leitura do exemplo (22) diz respeito a “Mariana” se casar com o “engenheiro”. Mas uma outra interpretação é possível: a de que eles podem ter casado com outras pessoas (argumento default).13 Quando discutirmos a estrutura de eventos e de qualia, poderemos fechar a questão do significado de base.14 Na sentença “O engenheiro casou com Mariana.”, o engenheiro e Mariana são satura-dores, ou seja, sintagmas que estão saturando dois argumentos de casar. Um saturador é um sintagma que satisfaz às exigências gramaticais de um dado argumento e por isso se manifesta como a realização sintático-fonológica desse argumento. Para discussão aprofundada ver Aragão Neto (2007).15 Estas ocorrências (de Assis, Rego, Queiroz) foram extraídas de acervos literários com vistas a mostrar a regularidade que já se apresenta na língua portuguesa desde o início do século XX, o que não contraria o nosso recorte sincrônico do verbo casar.16 D-ARGi corresponde à representação do argumento defaut.17 S-ARGi corresponde à representação do argumento shadow.18 Inserimos essa consideração por entender que o verbo casar envolve em sua estrutura de argumentos objetos individuados pertencentes, de algum modo, a uma determinada classe. No caso acima, trata-se da classe dos humanos (Mariana, engenheiro). A inclusão do conceito de classe valida construções como do tipo A reflexão casa-se muito bem à curiosidade natural conforme relacionado anteriormente. Assim, podemos juntar em uma mesma classe reflexão e curiosidade na classe das virtudes, cuja relação se estabele-ce a partir da composicionalidade entre tópico (a reflexão) e o predicado. Em princípio, parece não se tratar de um uso metafórico, uma vez que o significado de casar se man-tém como UNIR; entretanto, há uma mudança no quale agentivo: x casa com y em que

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‘x’ e ‘y’ não pertencem a classe dos humanos, logo não porta agentividade. Para maiores detalhes, ver a seção 2.3 deste ensaio. 19 A exemplo de Back (no prelo), outra alternativa de análise seria organizar em classes os verbos com o mesmo comportamento sintático numa proposta puramente sintática. O autor analisa uma classe de verbos regidos pelos prepositivos com (não comutável por sem), de, a e por, que permitem a sua transformação em locução composta no com-plemento que configura o argumento na posição sintática de objeto. Alguns exemplos analisados por este autor (negritos nossos) são:“compara tu a situação de Príamo com a minha” (Assis, 1997, p.190) “confundi os modos de criança com expressões de caráter” (Assis, 1997, p.156.) “não confundam purgatório com inferno” (Assis, 1997, p.177) “unindo a sua despedida à dos moços, num curioso arremedo de sucesso” (Queiroz, 1988, p.93) “não unia a frase nova à antiga” (Assis, 1997, p.97) “uma cortina de chita separa essa peça do quarto do casal” (Queiroz, 1988, p.29) “alternando os jantares da Glória com os almoços de Mata-cavalos” (Assis, 1997, p.161) “substituiu a zanga por um ronrom doce e meigo” (Queiroz, 1988, p.111)Diferente de Back (no prelo), o propósito desse trabalho não é prioritariamente sintá-tico, pois comungamos com Pustejovsky (1995) que devemos conhecer a estrutura que transporta os significados, e se o foco da organização da língua elege como módulo principal o aparato semântico, então a sintaxe se apresenta gramaticalmente estruturada por ser avalizada pelo módulo semântico que, por assim dizer, dita as regras.20 A leitura de (30) também é possível em inglês, visto que Dowty (1991, p. 584), em nota de rodapé, explica que a leitura relevante em Kim married Sandy é aquela na qual Kim é o parceiro que se casa e não o oficial que realiza a cerimônia.21 “[...] tiveram uma simplicidade elegante, mas a história mostra que simplicidade elegante é algo frágil em linguística [...]”.22 “Casar(-se), jogar xadrez, debater e outros atividades tais como essas (e.g. lutar) são ações que pela sua natureza requerem o envolvimento volicional de duas partes: nin-guém pode entender a natureza essencial dessas ações sem saber isso.”.23 Estamos considerando aqui apenas a leitura em que o padre e Mariana tornaram-se cônjuges do engenheiro. Não a leitura em que tenha havido dois ou três casamentos simultaneamente.24 Observemos que (36) e (36a) acarretam também (I)–(IV), mas não são por essas sentenças acarretadas. ==> (I) O engenheiro casou-se com o padre. ==> (II) O engenheiro casou com Mariana. ==> (III) O padre casou-se com o engenheiro. ==> (IV) Mariana casou-se com com o engenheiro.25 Utilizamos “<==>” para “acarreta e é acarretado por” e “<=/=>” para “nem acarreta nem é acarretado por”.26 Lembrando o exemplo: “Mariana casou-se com o engenheiro”.27 Lembrando o exemplo: “O padre casou Mariana com o engenheiro.”

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Palavras-chave: casar; léxico gerativo; papéis prototemáticosKeywords: to marry; generative lexicon; thematic proto-roles

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SABER LINGUÍSTICO E HISTÓRIA URBANA: A PRODUÇÃO DO NÓS NACIONAL1

Carolina P. Fedatto2

UFMG

RESUMO: Este artigo trata das relações que o desenvolvimento do saber sobre a linguagem estabelece com outros domínios de saber. Através da conceituação do texto como um processo material de inscrição de sentidos, a autora discute os imaginários representados na passagem da ideia de monumento à de patrimônio e os sentidos da produção da coesão nacio-nal baseada num passado comum, do qual as cidades são um vestígio.

ABSTRACT: This article focuses on the relations that the development of knowledge about language establishes with other domains of knowl-edge. Through the conceptualization of text as a material process of in-scription of senses, the author discusses the imaginary passage from the idea of monument to the idea of patrimony, and the senses present in the production of national cohesion based on a common past, of which cities are a vestige.

A historicidade dos saberesO estudo da história de um campo disciplinar (por exemplo, a lin-

guística ou a gramática) ou, mais amplamente, da constituição de um domínio de saber, como o conhecimento sobre a linguagem, se faz, tradicionalmente, pelo exame dos textos escritos que fundam ou ex-põem o desenvolvimento de conceitos e teorias. Neste caso, interessa--se por todo documento escrito que possa remeter à formação do sa-ber sobre a língua, desde listas de palavras, comentários explicativos em textos antigos, glossários lexicais bilíngues até reflexões filosóficas sobre a natureza da linguagem, exposição de métodos e teorias, des-crições gramaticais, leis, etc. (Auroux, 1989, p.13-37). Um domínio de saber, entretanto, se constitui também pelo modo como seus discur-sos circulam socialmente através de discussões e imagens publicadas

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em diferentes suportes (Orlandi, 2002). Além disso, sabemos que há cruzamentos entre domínios diversos, que a ciência se relaciona com a arte, com a religião, com a filosofia e com as técnicas. Os trabalhos dedicados à análise do vasto terreno de documentos sobre a língua (caracterizando-se, portanto, por serem, de alguma forma, metalin-guísticos) contribuem de maneira fundamental para a compreensão do lugar atual dos estudos da linguagem em nossa sociedade; seja por-que trazem à luz acontecimentos não conhecidos (um modo de fazer com que outros sentidos circulem), seja porque constroem as relações de continuidade e ruptura necessárias à explicação dos trajetos desse domínio de saber.

Se o texto, entendido de maneira ampla como um processo de ins-crição (verbal, visual, sonora, significante, enfim), é convocado para a explicação da constituição de um saber é porque ele goza, por defini-ção, do estatuto de vestígio na relação com o horizonte de retrospecção (Auroux, 2006, p.107) desse saber, isto é, o conjunto de conhecimen-tos que o antecedem e nele interferem. Por outro lado, se um saber se impõe sobre outros também possíveis é porque há algo da ordem do institucional que legitima a produção desse conhecimento e, sime-tricamente, algo da ordem do quotidiano que sustenta esse processo. Sabemos também que uma condição fundamental para um saber se instituir é a afirmação da existência do objeto desse saber; afirmação que não é independente da política de sua circulação em diversas ins-tâncias textuais (tanto linguísticas, como em livros, panfletos, cartas e jornais, quanto imagéticas, como em placas de rua e desenhos ar-quitetônicos). Acreditamos, portanto, que nenhum saber se constitui sem deixar traços no ordinário do sentido (Pêcheux, 1990, p.49) e sem encontrar aí um dos pilares de sua estabilidade. Sendo uma realidade histórica, o conhecimento tem sua existência real na temporalidade ramificada da constituição quotidiana do saber, não na atemporalidade ideal que estabelece uma ordem lógica para que o verdadeiro possa ser descoberto (Auroux, 1992, p.11).

Porque é limitado, o ato de saber possui, por definição, uma es-pessura temporal, um horizonte de retrospecção, assim como um horizonte de projeção. O saber (as instância que o fazem tra-balhar) não destrói seu passado como se crê erroneamente com frequência; ele o organiza, o escolhe, o esquece, o imagina ou o idealiza, do mesmo modo que antecipa seu futuro sonhando-o enquanto o constrói. Sem memória e sem projeto, simplesmente não há saber. (Auroux, 1992, p.11 e 12)

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Saber sobre a linguagem e saber urbanoNo que diz respeito ao saber sobre a língua, Sylvain Auroux apre-

senta as bases para que a compreensão de que o aparecimento e a divul-gação dos instrumentos fundadores das ciências da linguagem (escrita, gramáticas e dicionários) decorrem de condições materiais da existên-cia humana, tais como a organização em sociedade e a consequente for-mação das cidades que impôs a necessidade de gerir a vida em comum (registrar nascimentos e mortes, cobrar impostos, demarcar terrenos, etc.) (Rodríguez-Alcalá, 2011 e Cavingneaux, 1989, p.99). Esses rudi-mentos práticos do surgimento da escrita rapidamente cederão lugar à observação do próprio funcionamento da linguagem. O estabelecimen-to de unidades e paradigmas de uma língua, a comparação entre elas e a normalização da grafia são atividades metalinguísticas que só se torna-ram possíveis, segundo Auroux, pela objetivação da linguagem através da escrita. Da mesma forma, a difusão de gramáticas e dicionários a partir do século XVI deriva da necessidade de construir línguas nacio-nais, seja para ensinar aos povos qual deve ser a sua língua (nos casos de endogramatização), seja para aprender a língua dos povos dominados a fim de lhes ensinar a língua do colonizador (nos casos de exograma-tização) (Auroux, 1992, p.74)3 imperativa para a eficácia do governo e da conquista, a unidade linguística de uma nação é traçada a partir da constituição simultânea de uma unidade territorial que se materializa através da instrumentalização de espaços e línguas para além do nacio-nal e com uma orientação determinada: do velho para o novo mundo. Embora saibamos que o processo de formação das nações tenha tam-bém assumido formas diferentes da descrita acima,4 focalizamos aqui a centralização do saber linguístico e espacial que, podendo adquirir con-tornos diversos, foi um instrumento decisivo para a consolidação do estado nacional enquanto gerenciador das relações de saber.

Esses episódios indicam que a história do saber não é desvinculada do espaço onde sua produção se efetiva nem das condições sócio-históricas que tornam possível (e muitas vezes imperiosa) a demanda por um deter-minado tipo de saber – e pelo objeto que ele constrói. O desenvolvimen-to de instrumentos linguísticos pressupõe a afirmação/teorização de uma língua a ser descrita num espaço determinado. Essa língua não é nem aquela falada pelos habitantes/cidadãos (empírica), nem uma pura abs-tração científica. O saber sobre a língua se funda, certamente, numa reali-dade possível (reconhecível, aceitável) de língua ao mesmo tempo em que modifica efetivamente a identificação dos sujeitos em relação a ela. Além disso, seu funcionamento não escapa nem ao imaginário da normatização nem à fluidez de seus usos reais.5 mas é buscando se legitimar enquanto uno que esse saber se inscreve no espaço e até mesmo, arriscamos dizer,

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que o imaginário de unidade representado no saber sobre a língua produz um espaço tanto como consequência da realidade que ele adquiriu quanto como efeito das condições que a forma-histórica do espaço impõe para as relações sociais. Essa conceituação discursiva de Carolina Rodríguez--Alcalá (2011) sobre o espaço enquanto uma forma que (assim como os sujeitos e a língua) acontece historicamente reafirma o papel material-mente determinante e contingente da história na formulação dos senti-dos. Dessa maneira, a necessidade de saber uma língua é elemento, ao mesmo tempo, de coesão e disputa na medida em que a constituição do saber sobre essa língua é um artefato construído com base numa história específica que coincide com a ascensão da burguesia, a consolidação do capitalismo mercantil, a urbanização e a formação dos estados nacionais (Auroux, 1992, p.28-29). A conjunção desses processos leva a identificar uma língua a um território, construindo uma relação de causalidade lógi-ca entre a unidade da língua e a unidade do espaço.

A história de constituição do espaço urbano traz, portanto, vestí-gios da história de produção da língua nacional. No cruzamento dessas duas histórias está uma condição de possibilidade para o saber nacional, considerado em um aspecto importante da institucionalização do co-nhecimento: o confronto entre diferentes modos de formulá-lo. Nossa tese é de que essa íntima relação entre língua e espaço é um dos mo-tores para a instituição do saber nacional. A espacialização de saberes nas cidades e sua interferência nos processos de identificação do sujei-to urbano-nacional serão objeto de nosso estudo. Consideramos que as relações de determinação são equívocas, visto que toda dominação instala, no momento mesmo em que se constitui, a possibilidade da re-sistência (Pêcheux, 1997, p.304 e 1990, p.16-17) sendo a linguagem um jogo de forças e sentidos antagônicos onde a história determina os ca-minhos da metáfora, seus sentidos estão sempre em movimento apesar de parecerem bastante estabilizados quando inscritos em uma determi-nada formação discursiva, como, a da arquitetura de uma época, dos documentos oficiais, da historiografia nacional ou das ficções urbanas. A inscrição de outros/novos sentidos na história se faz assim mesmo, do interior de uma formação discursiva mais ou menos delineada, e é esse um modo de resistir às formas de o estado individualizar os sujeitos. Esse fato teórico nos conduz sempre a pensar que a possibilidade da resistência está inscrita nas relações de sentido e que o discurso histó-rico, materializado em textos escritos e edificados (Ricoeur, 2007), pode deixar transbordar novos equívocos.

A forte ligação simbólica entre linguagem e espaço permite refletir simultaneamente sobre a construção da nacionalidade através da ur-banidade e da língua nacional em duas esferas muitas vezes disjuntas:

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a institucional e a quotidiana. Tomando-as enquanto faces da mesma moeda, perguntamos sobre a fundação e a sustentação das relações en-tre essa instância objetivamente estabelecida e esse lugar não circuns-crito por conta de sua generalidade.6 inspirados pelo pensamento do historiador Michel de Certeau (1994, p.64) em sua teorização do quo-tidiano, buscamos descrever a erosão que desenha o ordinário enquanto aberturas que marcam seu traço sobre as margens onde se mobiliza uma ciência, reorganizando o lugar onde se produz o discurso. Desde Freud (1927, 1929), o ordinário pode se insinuar em campos científicos bem constituídos com a força de uma condição de possibilidade. sem esse saber não-sabido do quotidiano, nenhuma ciência pode se construir. Tradicionalmente, a divisão do saber e da teoria define, de um lado, um conhecimento referencial e inculto e, de outro, um seu discurso elucida-dor. Essa divisão se ancora em definições estabilizadas para as palavras ‘saber’ e ‘teoria’. Ligado ao orgânico, o saber oscila entre o estético e o cognitivo (ter faro, tato, gosto ou juízo, instinto, inteligência); enquanto a teoria, remetida a seu sentido clássico, restringe-se a ver, fazer ver ou contemplar (Certeau, 1994, p.144). Nessa óptica, o quotidiano se redu-ziria simplesmente ao inapreensível. Está aí justamente a sua comple-xidade. É essa estranheza com relação ao inteligível da ciência que pre-tendemos discutir através da historicização quotidiana dos processos de produção do saber no espaço.

Por sua existência material e também pelos discursos sobre sua cons-tituição, as cidades configuram lugares no imaginário social que produ-zem uma ambiência talhada pelo trabalho da memória, um lugar en-carnado: que tanto habita o corpo dos sujeitos e dos sentidos quanto se deixa habitar por eles. O conceito de ambiência, tal como proposto pelo sociólogo e urbanista francês Jean-Paul Thibaud (2002), faz uma crítica à abstração e à objetividade com que o espaço é tratado em algumas áre-as do conhecimento: apenas como uma extensão homogênea, contínua e divisível. Ao olharmos para os diferentes modos de estruturação do espaço, considerando que sujeitos históricos aí habitam, se identificam e produzem sentidos, estamos considerando que ele atua materialmente na formulação das práticas sociais; o espaço enquadra, determina, situa, põe em relação (P. Henry apud Orlandi, 2010, p.13). O autor observa que não podemos jamais estar em face de uma ambiência; contemplan-do-a, avistando-a. A ambiência, enquanto meio material onde se vive, nos envolve, invade, entorna, suporta a existência. Podemos pensá-la, então, como um meio que concentra materialmente a memória, como um espaço que, ao se textualizar, deixa pistas de uma autoria da cidade e arquiva uma história que acontece quotidianamente, como uma memó-ria a céu aberto, em carne viva, resvalo em tinta fresca.

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Poucas vezes questionamos o papel do quotidiano na instituciona-lização de saberes e modos de vida. Raramente pensamos nos efeitos que a organização do espaço (em cidades, ruas, prédios e nomes) tem na produção dos sentidos de um povo, de um país, de uma língua. As cidades são edificadas, contadas e construídas materialmente tanto na arquitetura quanto no discurso sobre a sua história. As construções ur-banas são, portanto, o rastro de um efeito de localização: elas bem po-dem situar o trajeto mais imediato do sujeito pelos caminhos citadinos como estabelecer os sentidos acumulados nas disputas por sua perma-nência na memória. É no jogo entre o institucional e o quotidiano que a cidade é construída. Um seu imaginário vai sendo edificado através da produção de pontos de referências7. Recontar essas histórias é fazer falar o político enquanto disputa de sentidos que tem no discurso (a língua na história) sua base material.

No efeito de unidade de uma cidade se produz um lugar de onde (se) dizer a (sua) história. Aí está marcada a sua função-autor. Isto que se apresenta enquanto materialidade urbana é resultado de acomodações e resistências silenciosas que se escondem nos detalhes, debaixo de ca-madas de tinta, sob uma fachada de concreto, atrás de um novo nome ou no vazio da demolição... Assim, o texto urbano vai construindo e refletindo uma rede de saberes que se tornaram quotidianos (nomes próprios, sistemas de ideias, filiações políticas). Ao se situarem, esses sa-beres recortam sentidos para o espaço e formulam as construções como lugares de significação para diferentes posições-sujeito (posições em re-lação à instituição, ao lugar social: alunos, fiéis, funcionários, nobres, pobres, gentios, escravos, cidadãos, leitores, eleitores, contribuintes...). Esse embate absorve determinados sentidos e também deixa brechas para a irrupção de imprevistos. Como salienta M. Pêcheux (1990, p.49), é importante que se aborde, de alguma forma, “as condições (mecanis-mos, processos...) nas quais um acontecimento histórico (um elemento histórico descontínuo e exterior) é suscetível de vir a se inscrever na continuidade interna, no espaço potencial de coerência próprio a uma memória”. Perguntando quem, quando, onde, como, por que e analisan-do o modo pelo qual, através da linguagem, o confronto com a história vai marcando a cidade e reclamando sentidos, podemos problematizar isso que é habitualmente visto enquanto evidência e olhar para as cons-truções urbanas como artefatos simbólicos e políticos que, pela sobre-posição de determinados saberes no espaço, intervêm no modo como uma cidade, remetida a um país, significa o imaginário nacional, inau-gurando e projetando posições para seus habitantes. Assim buscamos dar consequência para o papel das condições de produção do discurso na constituição do saber no urbano.

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Do monumento ao patrimônioOs discursos que fundam determinados lugares como referência ge-

ralmente estabelecem uma relação com a noção de patrimônio enquan-to lugar material de identificação. Esquecendo que a representação da origem é sempre imaginária, a eleição daquilo que um país herdou do passado, funda um ponto comum onde se pode reconhecer enquanto nação. A textualização das cidades que passaram pelo processo de colo-nização, por exemplo, se inaugura em imaginários de retrospecção fun-dados na história dos povos colonizadores. Assim, o desenho urbano pode ser visto como o rastro de uma invenção de passado que deseja sobrepor-se às práticas espaciais dos povos que antes habitavam o terri-tório. Não sem ambiguidade, as construções que se transformaram em referência, elevadas também, em vários casos, ao estatuto de patrimônio histórico, são qualificadas através de pares antitéticos como lugares de resistência ou submissão, invenção ou empréstimo, progresso ou deca-dência. Os limites dessas disjunções devem ser compreendidos através da rede de discursos que fundou a noção de patrimônio.

Seguindo a clássica reflexão de Françoise Choay (1992, p.14-15), começaremos por explorar a instalação da diferença teórica entre mo-numento e monumento histórico. A autora relembra a origem latina da palavra monumento, derivada de monere (advertir, lembrar); aquilo que interpela a memória. Monumento é todo artefato construído para se lembrar ou fazer lembrar a outras gerações pessoas, acontecimentos, sacrifícios, ritos ou crenças. O monumento tem, assim, uma forma es-pecífica de agir sobre a memória: o passado convocado pela afetivida-de adquire um modo sensível (concreto) de presença. Defesa contra o traumatismo da existência, o monumento é garantia de origem e fuga da inquietude dos começos, ele tenta acalmar a angústia da morte e do aniquilamento.

A função do monumento, nesse sentido original, vai progressiva-mente perdendo importância nas sociedades ocidentais, com tendência à ressignificação e ao apagamento. Choay percorre alguns dicionários franceses e constata uma mudança no sentido da palavra no final do sé-culo XVII. No dicionário de A. Furetière (1690) ela observa a passagem de um valor de memória para um valor arqueológico. O Dicionário da Academia Francesa (1694) instala a função memorial no presente atra-vés de um deslizamento em direção a valores estéticos e prestigiosos. Com a revolução de 1789, o monumento passa a denotar o poder, a gran-diosidade e a beleza. Hoje, o monumento se impõe sem plano de fundo, interpela no instante, trocando seu antigo estatuto de signo (estar no lugar de) pelo de sinal (ser rastro, resto, amostra). Esse apagamento da função de memória do monumento tem, segundo a autora, duas causas.

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Primeiramente, o lugar de destaque que as sociedades ocidentais deram ao conceito de arte a partir do renascimento (a construção de um mo-numento passa a ser revestida de uma exigência de perfeição, o ideal de memória é substituído pelo ideal de beleza). Em segundo lugar, o desen-volvimento, aperfeiçoamento e difusão das memórias artificiais, como por exemplo, a invenção da imprensa que confere à escrita um poder sem precedentes. O imaginário inaugurado pela difusão em massa do texto escrito abala (sem dúvidas, mas não sem contestações) o estatuto social da memória. Aos que se encantam com o poder de quase satura-ção da escrita face às mnemotécnicas opõem-se os que aí enxergam a morte do monumento. As novas formas de conservação do passado o aprisionam sob formas mais palpáveis, em livros, fotografias e vídeos. A fotografia, especificamente, provocou uma reviravolta na relação com a memória. Segundo Choay (1992, p.18), ela é uma forma de monu-mento ao individualismo da nossa época, “o monumento da sociedade privada, que permite a cada um obter em segredo o retorno dos mortos, privados ou públicos, que fundam a sua identidade.” Por outro lado, a fotografia contribui também para a semantização do monumento-sinal. É pela circulação e difusão de sua imagem que o monumento chega às sociedades contemporâneas. A autora afirma que qualquer construção pode ser promovida a monumento pelas novas tecnologias. Elas acabam legitimando a réplica visual, pouco importa que a realidade construída não coincida com suas representações mediáticas ou com suas imagens inventadas (Choay, 1992, p.19).

O monumento passa a ter, portanto, um caráter volitivo deliberado cujo destino é fazer reviver no presente um passado imerso no tempo. É o que ela chama de monumento histórico, uma criação a posteriori, uma seleção, entre outras construções possíveis, daquelas que serão o testemunho de uma história. Françoise Choay distingue dois modos es-senciais de relacionar a memória viva com a história vivida. De um lado, um edifício pode ser considerado um objeto de saber que se integra linearmente ao tempo; ele é, de tal modo, relegado ao passado: testemu-nha, marca, rastro. De outro, ele pode afetar a sensibilidade artística do presente sendo considerado, muitas vezes sem a mediação da memória ou da história, uma obra de arte. Em qualquer dos casos, por ocupar imaginariamente um lugar definitivo no conjunto fixado pelo saber, o monumento histórico exige, pela lógica deste mesmo saber, uma con-servação sem reservas.

Mas as práticas de conservação dos monumentos históricos pressu-põem, ao menos, o estabelecimento de um quadro histórico de refe-rência, a atribuição de um valor particular ao tempo e a sua passagem e a naturalização de valores estéticos. Essa história, segundo Choay,

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vai se constituindo pouco a pouco pela fusão de fragmentos que, pri-meiramente, foram designados como antiguidades, depois, como mo-numentos históricos. A autora percorre desde a fase “antiguizante” do Quattrocento, onde os monumentos eleitos pertenciam unicamente à antiguidade, até a fase de consagração, que institucionaliza a conserva-ção do monumento histórico estabelecendo uma jurisdição de proteção. Nesse percurso, ela relata o processo de valorização de objetos do passa-do através de um trabalho epistêmico do século das luzes e seu projeto de democratização do saber. Diferentemente dos humanistas do século XV, que viam nos monumentos antigos a ilustração dos testemunhos de autores gregos e latinos, os antiquários do XVIII desconfiam dos livros e consideram que o passado se revela em testemunhos involuntários, em inscrições públicas e, sobretudo, através do conjunto material de produ-ções de uma sociedade. Dessa forma, a invenção da ideia de antiguidade nacional reflete o desejo de prover a tradição cristã de um conjunto de edifícios históricos que possam afirmar a originalidade e a excelência da civilização ocidental. Daí a necessidade de conservação incondicional desse “patrimônio”, pois ele representa a própria identidade da nação. A autora mostra que mesmo a legislação europeia de proteção dos monu-mentos históricos coloca as questões afetivas como causa da necessida-de de preservação.

É com a revolução francesa que as antiguidades nacionais passam a pertencer a toda a nação, deixando de significar um tesouro intocável do passado para ter um valor econômico construído através de metá-foras sequenciais, como herança, sucessão, patrimônio e conservação. Sob pena de prejuízo financeiro, mas nunca perdendo o apelo afetivo de antiguidades nacionais, os bens patrimoniais são objeto de uma con-servação iconográfica que transcende as fronteiras do tempo e do gosto. O estado revolucionário tem a necessidade de adaptar os bens naciona-lizados aos seus novos usuários descobrindo novas funções para o que foi herdado. Nesse ponto, Choay coloca uma interrogação provocadora em relação à postura face à herança de um passado com o qual se deseja romper:

Devaient-ils forcement admettre qu’une nation peut se donner le droit de détruire les fondements matériels de son histoire ? Postu-ler des commencements absolus et penser qu’une nouvelle vision du monde puisse être institutionnalisée de toutes pièces revient à s’installer au cœur de l’utopie qui aboli le temps, au profit du pur instant et non de l’éternité, comme elle le prétend. (Choay, 1992, p.84)

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Ela continua, tomando partido quanto à necessidade de resistir aos sentidos que o passado adquiriu:

Rompre avec le passé ne signifie ni abolir sa mémoire ni détruire ses monuments, mais conserver l’une et les autres dans un mou-vement dialectique qui, à la fois, assume et dépasse leur significa-tion historique originelle, en l’intégrant dans une nouvelle strate sémantique. (Choay, 1992, p.85)

Todavia, não podemos esquecer que o passado é recortado a partir de um tempo futuro, que ele é invenção e seleção que institui a posterio-ri uma tradição. A ideia de nação funda-se sobre aquilo que é preciso lembrar-se de esquecer para construir esse efeito de um. Se o monumen-to perdeu, como mostra Choay, sua função de memória, o patrimônio instala a função de vínculo material com o passado através de um bem que apresenta mais do que um valor afetivo ou de memória. Eficiente, a noção de patrimônio carrega ainda um valor de propriedade que ne-nhuma sociedade capitalista ousaria destruir. Assim assegura-se imagi-nariamente a evidência da necessidade de preservação do patrimônio histórico.

Hoje, quando vilas operárias se deterioram à sorte do tempo, quando casarões coloniais dão lugar a parques de estacionamento, quando de-graus de igrejas barrocas servem de leito, provisório mas habitual, para aqueles que não têm um teto, como não ver na necessidade incondicio-nal de preservar o patrimônio histórico uma construção que se furta a enfrentar o papel do passado na constituição da diferença social e dos processos de segregação, por exemplo, e não só do caráter congregador da nacionalidade? As construções urbanas são, muitas vezes, recober-tas sob formas extremas de “salvaguarda do patrimônio” que acabam “defendendo” a cidade de seus próprios habitantes, como se o espaço significasse por si só, independentemente das relações sociais, sem os sujeitos e sem as histórias que vieram e que estão por vir.

F. Choay conclui l’allégorie du patrimoine com uma reflexão sobre a competência humana de edificar, num claro paralelo com a competência linguística. Em sua obra mais recente, a historiadora retoma essa ideia:

Ce qui est en cause dans la problématique actuel du patrimoine, si nous voulons opter pour le destin d’homo sapiens sapiens plutôt que pour celui d’homo protheticus, c’est, redisons-le, la capacité de notre espèce à habiter le monde et à continuer de développer ce que j’ai appelé ailleurs notre « compétence d’édifier ». En effet, l’édification matérielle de notre cadre de vie relève de la même

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compétence symbolique que le langage. Et, de même que la com-pétence de parler (un langage articulé) engage identiquement lo-cuteur et auditeur, de même la compétence d’édifier engage iden-tiquement bâtisseur et habitant.L’institutionnalisation des sociétés humaines ne transite pas seu-lement par l’usage et la différence de leurs langues, mais aussi par les modalités différentes de leur insertion spatiale et temporelle dans le monde. (Choay, 2009, p.XLIV)

Através da comparação com a linguagem enquanto uma faculdade que pode ser realizada de formas diferentes, a autora afirma a importância da relação com o espaço para as sociedades humanas tendo como base uma relação de analogia face à linguística gerativa (Rodríguez-Alcalá, 2002, p.24-25). Quando se toma a linguística como a ciência-piloto das ciên-cias humanas, o funcionamento da linguagem é tido como um modelo retirado de suas condições de produção para explicar o funcionamento da cidade. Nessa perspectiva, a sociedade pode prescindir do simbólico. Como afirma Rodríguez-Alcalá, também se abstrai a constitutividade do simbólico quando a relação entre a linguagem e o espaço é encarada sob a forma da covariação, em que o espaço é considerado externo à língua, mas afeta seu funcionamento porque introduz mais um fator (o geográ-fico) de diversidade. De fato, toda a tradição dos estudos da linguagem funda-se sobre a investigação da tríade linguagem – sujeito – mundo. As diversas formas de conceituar cada um desses elementos, bem como as re-lações entre eles, estão, grosso modo, na base das diferenças entre as teorias linguísticas. A partir das pesquisas na área da saber urbano e linguagem, Rodríguez-Alcalá, explicita o modo pelo qual a teoria do discurso com-preende a relação entre sujeito, linguagem e mundo. Discursivamente, nem o sujeito é a representação psicológica de características biológicas, nem o mundo em que vive pode ser confundido com o meio natural. Tan-to o sujeito quanto o espaço resultam de um processo simbólico que se dá na história e que é constitutivo, mesmo que imaginariamente não-sabido. Diante da evidência do sujeito e da evidência do dizer, caberia, segundo a autora, elaborar uma terceira evidência:

Que é o que poderíamos chamar a “evidência do mundo”, pela qual este se apresenta como meio natural pré-constituído, apa-gando-se o processo histórico de produção do espaço (político) da vida humana. É essa a contribuição específica e inovadora que, a nosso ver, a reflexão promovida na área saber urbano e linguagem visa trazer para os estudos do discurso (e da cidade). (Rodríguez-Alcalá, 2009)

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Não devemos, consequentemente, esquecer que o espaço é histó-rico porque é habitado por sujeitos históricos que produzem sentidos im-previstos na espacialidade do saber. No caso da cidade moderna, podemos dizer que os pontos de referência instauram lugares cuja sig-nificância é apropriada pelo espaço nacional urbano. O traçado dessa historicidade deve ser explicitada e não negada se quisermos compreen-der como um país constrói, através do quotidiano, suas referências mais institucionalizadas.

Fundamentados numa concepção filosófica materialista, questiona-mos a transparência do sujeito, da língua e do espaço e, por isso, sus-peitamos da evidência da noção de patrimônio. A palavra patrimônio designa um bem herdado que descende, segundo as leis, de pais a filhos. Emprestada do vocabulário jurídico, essa palavra carrega a marca das relações familiares, que pressupõem um vínculo tido como natural en-tre antecessores e herdeiros. As construções urbanas de outras épocas são, portanto, investidas de um caráter hereditário e forjam, assim, o vínculo que funda o imaginário de unidade entre os cidadãos de um país. A eficácia desse discurso repousa na afetividade historicamente imputada aos antepassados com os quais temos uma ligação naturali-zada. O discurso das relações de parentesco passa a significar também o espaço nacional como aquilo que herdamos do passado e que deve-mos, portanto, preservar, já que nos identificamos a ele. É também pela via da sucessão que a noção de patrimônio implica a de propriedade. O patrimônio é um bem cuja enunciação de propriedade constrói um nós fundador da nação. A produção desse efeito de coesão está na base das análises realizadas na terceira parte da tese, onde estudaremos o discur-so da construção do espaço urbano no Brasil através de marcas diversas.

Um lugar de representação do nós nacionalPara compreendermos a natureza discursiva desse nós nacional e

finalizar esta discussão entrelaçando a materialidade linguística à ma-terialidade histórica, gostaria que nos detivéssemos sobre a reflexão de Émile Benveniste (1997, p.256) sobre as relações de pessoalidade. Será que podemos explicar o nós como sendo o plural da primeira pessoa? O linguista afirma que as relações propostas entre as três formas do sin-gular (a saber, eu: pessoa subjetiva, tu: pessoa não-subjetiva e ele: não--pessoa) deveriam corresponder nas formas do plural. Mas, nos pro-nomes pessoais, a passagem do singular ao plural não implica apenas uma pluralização. De saída, a unicidade inerente ao “eu” contradiz essa possibilidade, pois o “nós” não é uma multiplicação de objetos idên-ticos, mas sim uma junção entre o “eu” e o “não-eu”, formando uma totalidade na qual os componentes não se equivalem. No caso do nós

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inclusivo (eu + vocês), predomina a segunda pessoa, no caso do nós ex-clusivo (eu + eles), prevalece a primeira; dominância que se acentua no caso do nós indiferenciado das línguas indo-europeias, a ponto de a jun-ção entre dois elementos tornar-se perceptível apenas com uma análise mais apurada. De forma geral, então, a pessoa verbal no plural exprime uma pessoa amplificada e difusa: “o ‘nós’ anexa ao ‘eu’ uma globalidade indistinta de outras pessoas.” (Benveniste, 1997, p.258).

Entretanto, poderíamos dizer que, o nós nacional anexa a um imaginário de unidade uma globalidade distinta de outras pessoas, já que é justamente a produção da diferença entre nós e eles ao mes-mo tempo em que sua necessidade de representação (referenciação e predicação) o confunde com o lugar enunciativo da não-pessoa. Benveniste termina seu artigo com a emblemática afirmação de que somente a terceira pessoa, sendo uma não-pessoa, admite um verda-deiro plural. Mas em que consiste esse verdadeiro plural? Pelos in-dícios de sua escrita, podemos admitir que o plural no sentido dado por Benveniste equivale a uma multiplicação de objetos idênticos, o ‘mais de um’ desse mesmo um, ou seja, a produção de identidades pela afirmação da igualdade.

É justamente assim que compreendemos o funcionamento do nós nacional. Ele produz um plural de igualdade que deseja ser a delimi-tação da nação através da repetição dos iguais, é um nós inclusivo no qual ninguém diz “eu”, pois exige a representação coletiva da generali-dade indecisa que o compõe e que importa porque produz um lugar de identificação. O nós nacional, assim como a não-pessoa, suporta uma amplitude referencial que não reflete apenas a presente instância do dis-curso, mas tenta estabelecer uma referência objetiva: nós equivale à na-cionalidade e, como tal, demanda uma representação que fale por si ou em seu nome. Até agora, podemos afirmar que a cidade fala em nome da nação e a construção de um patrimônio materializa o engajamento dos cidadãos a esse espaço abstrato.

Notas1 As reflexões presentes neste artigo são fruto de minha pesquisa de doutorado defendi-da em 2011 no IEL/UNICAMP e financiada pela FAPESP.2 Doutora em Linguística pelo IEL/UNICAMP. Pesquisadora de pós-doutorado na Uni-versidade Federal de Minas Gerais.3 Segundo Auroux (1992, p.74), a diferença conceitual entre endo e exogramatização baseia-se “na situação dos sujeitos que efetuam a transferência, segundo eles sejam ou não locutores da língua para a qual ocorre a transferência”.4 Ver Hobsbawm, E. (1990).5 Inspirado na diferença entre língua imaginária e língua fluida estabelecida por Orlandi & Souza (1988).

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6 Lembramos aqui a imagem de Roland Barthes (2008, p.34): assim como o poder, o quotidiano é como uma água que escorre por toda parte.7 O conceito de “ponto de referência” foi desenvolvido em minha tese de doutorado. (Fedatto, 2011).

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Palavras-chave: história urbana, dêixis, discursoKey-words: urban history, deixis, discourse

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ARGUMENTAÇÃO, LINGUAGEM E HISTÓRIA: SENTIDOS À CARTA TESTAMENTO DE VARGAS1

Danilo Ricardo de Oliveira2

RESUMO: Este artigo apresenta uma análise do texto A Carta Testamen-to do Presidente Getúlio Vargas, da perspectiva enunciativa da Semântica do Acontecimento. Trata, especialmente, do modo pelo qual sua argumen-tação se constitui a partir da cisão do Locutor e, muito particularmente, do Alocutário. Analisa, ainda, os sentidos da palavra ‘povo’, dando visibi-lidade à sua inscrição na memória histórica.

ABSTRACT: Based on the enunciative perspective of the Semântica do Acontecimento (Semantics of the Utterance Event), this article brings an analysis of Brazilian former President Getúlio Vargas’s testament-letter. It shows specifically the way argumentation is organized by the scission of the ‘Addresser’ and, particularly of the ‘Addressee’. The word ‘people’ is also analyzed, in its inscription in historical memory.

IntroduçãoPropomo-nos, neste artigo, a um trabalho de análise de texto com

base em procedimentos próprios da semântica do acontecimento3. To-mando especificamente A Carta Testamento do Presidente Getúlio Var-gas como objeto de análise, procuraremos compreender fatos de lingua-gem – especialmente a argumentação – que nos levem a conclusões que, se não apagam nosso gesto interpretativo – ou justamente porque não o apagam –, reabrem para a discussão a importância da análise de texto enquanto “prática fundamental para pensar aspectos da história, e da vida atual, do conhecimento em geral” (Guimarães, 2011, p.12).

23 de agosto de 1954: uma data, um ponto na história. Por si só, não há o que determine, nesta datação, qualquer sentido: ela faz sentido a olhos interessados de quem vê nela um evento que a faça significar, a olhos que a tomam como intervalo suficiente, como ponto espesso o bastante para merecer uma atenção histórica. A História não é, aqui, uma sequência de datas com os eventos que elas encerram; é, antes,

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múltipla: histórias só integram História enquanto significadas, enquan-to tomadas por um gesto simbólico de linguagem que antes dá sentido aos eventos e, assim, recorta diferentemente as datações. História: efeito de interpretações4.

Tentamos desfazer, pois, de antemão, qualquer ideia de um sentido primeiro que não advenha de uma relação com a linguagem e com su-jeitos. Mesmo um evento temporalmente marcado, como o que toma-mos para análise, produzirá, seguramente, sentidos distintos segundo o recorte5 interessado: ora determiná-la no quadro dos estudos da histó-ria política do Brasil, ora inscrevê-lo na temporalidade instituída pelos estudos sobre a política industrial ocidental. Ainda que se possa notar alguma intersecção entre os efeitos desses recortes, ela não será senão efeito de outro recorte, de outro desvio. A natureza de qualquer evento ou objeto está sempre tomada, constituída, pela motivação e pelo méto-do de quem se debruça sobre ele enquanto objeto de análise.

Como objeto de análise linguística, particularmente tomado sob o interesse pelo estudo da significação, mas também sensível ao interesse histórico, A Carta Testamento do Presidente Getúlio Vargas pode per-mitir uma melhor compreensão do evento que, embora possa ser deli-mitado historicamente pela datação, tem efeitos outros pelo texto que o precede: reflexo da futuridade própria do acontecimento de linguagem, como procuraremos demonstrar. Nosso lugar não é isento de interesse e, tampouco, de um horizonte de olhares possíveis, o que implica dizer que nossa análise não é, por um lado, senão uma interpretação, limitada por interesses e pelo método de que lançamos mão, e, por outro, não é única e, tampouco, exaustiva.

1. A carta testamento: argumentação, sentido e procedimentos semânticos1.1 Argumentação e Cena Enunciativa

O primeiro aspecto que nos chama atenção no contato com A Carta Testamento do Presidente Getúlio Vargas é a unidade construída mesmo sob uma coexistência de “destinatários”. Há, como poderemos perceber, uma partição no texto que delimita destinatários diferentes, pela cons-trução de cenas enunciativas distintas.

Dissemos cena enunciativa: referimo-nos à configuração do espaço imaginário onde se distribuem, no acontecimento, os lugares de enun-ciação. Trata-se, antes, de um espaço político, marcado, de um lado, pela língua que determina o acontecimento e, por outro, pelas formas e pos-sibilidades de enunciar. De um lado, pois, a cena enunciativa se constrói sob um espaço de enunciação que constitui o indivíduo enquanto falan-te6, enquanto determinado pela língua. São os espaços de enunciação

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que, à medida que representam a distribuição das línguas, determinam, de antemão, possiblidades e contingências do dizer:

Os espaços de enunciação são espaços de funcionamento de lín-guas, que se dividem, redividem, se misturam, desfazem, trans-formam por uma disputa incessante. São espaços “habitados” por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de dizer. São espaços constituídos pela equivocida-de própria do acontecimento: da deontologia que organiza e dis-tribui papéis, e do conflito, indissociado desta deontologia, que redivide o sensível, os papéis sociais (Guimarães, 2002 [2005, p. 18]).

Esta mesma cena enunciativa, de outro lado, distribui, ainda poli-ticamente, os lugares de enunciação. Há sempre aquele que diz, aquele que se apresenta como a origem do dizer; porém, esse acesso à palavras só ocorre de um lugar social que também determina os meios e as for-mas desse acesso: respectivamente, há um Locutor, mas que diz sem-pre de uma posição social x, enquanto locutor-x. Nesse acesso à palavra há, ainda, o encobrimento desse lugar social, inclusive para sustentar o Locutor enquanto “lugar que se representa no próprio dizer como sua fonte” (Guimarães, 2011, p.22); encobrimento que se dá enquanto lugar de dizer, enquanto enunciador (universal, individual, genérico)7.

Mas há, também, aquele para quem se diz, a contraparte do Locutor, também agenciado em lugar social, no acontecimento da enunciação: tratamos, então, de Alocutário, predicado por sua condição y enquanto alocutário-y.

São, pois, o Locutor – tomado por um lugar social e por um lugar de dizer – e o Alocutário – também tomado por seu lugar social determi-nado pelo acontecimento – que constituem a cena enunciativa. No texto que tomamos para análise, podemos observar uma frequente reiteração do eu que se representa fonte do dizer: “se desencadeiam sobre mim”, “Não me acusam”, “sufocar a minha voz”, “Sigo o destino”, “Tive de re-nunciar” etc. Há, pois, um Locutor que, grosso modo, determina certa unidade do texto. Esse Locutor, ainda que pudéssemos lhe determinar seu lugar social enquanto presidente, não se diz presidente. Digamos, aliás, que não se diz presidente porque, possivelmente, esse Locutor não está afetado só (ou principalmente) por essa posição de presidente, mas por uma posição que sua condição de presidente lhe permite reivindi-car: é, antes, o relato pessoal de vitórias, as comparações que estabelece nesse relato e sua própria referência à História que o agenciam enquanto mártir (de um povo). É como representante do povo que o Locutor é

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afetado em primeiro lugar; mas esse lugar, porque determinado, então, pelo populismo, é então estreitado ao lugar de quem, pelo povo, só pode ser mártir. Estranho lugar social de onde falar, mas lugar que funciona por projetar, no texto, sua própria futuridade: “... saio da vida para en-trar na História”; funciona, sobretudo, por projetar também um futuro possível entre as formas por que a História possa tomar Getúlio Vargas.

Podemos afirmar que a história concede ao Locutor um lugar onde se sustentar, a possibilidade de argumentar. Todo o memorável da língua funciona, na temporalidade do acontecimento do texto, sustentando sua argumentação. Do Locutor ao locutor-mártir vemos um agenciamento que funciona pelo passado histórico que o próprio acontecimento re-corta. É na voz de Cristo, na imagem de Cristo, que se identifica um lugar de mártir que permite ao Locutor dizer, sobretudo em um país majoritariamente cristão:

Escolho este meio de estar sempre convosco. (...) Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa cons-ciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio, respondo com o perdão.

É a História, pois, que faz sentido no Locutor e lhe permite um lugar social que determina a cisão constitutiva do acontecimento da enun-ciação, no qual “há uma disparidade entre o presente do Locutor e a temporalidade do acontecimento” (Guimarães, 2011, p.24). Digamos, ainda, que, talvez muito singularmente na consistência deste texto em análise, é a história “que sustenta a argumentatividade, como algo pró-prio da temporalidade do acontecimento. O memorável (um passado) sustenta uma relação de orientação argumentativa e assim projeta como interpretar o futuro do texto” (Guimarães, 1987, [2007, p. 211]).

Não se trata, contudo, de um gesto consciente de Locutor que escolhe seu lugar social. É, ao contrário, o próprio acontecimento que agencia o Locutor nesse lugar. Da mesma forma, é o próprio acontecimento que impõe o apagamento desse lugar, inclusive para que esse Locutor seja significado em um lugar de dizer. É nesse apagamento que o Locutor, no caso em análise, reitera insistentemente seu lugar como enunciador universal:

Ou seja, um lugar de dizer que se apresenta como não sendo so-cial, como estando fora da história, ou melhor, acima dela. Este lugar representa um lugar de enunciação como sendo o lugar do que se diz sobre o mundo. O enunciador universal é um lugar que

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significa o Locutor como submetido ao regime do verdadeiro e do falso (Guimarães, 2002 [2005, p. 25], grifo do autor).

O que reforça a determinação política da cena enunciativa no tex-to em questão é, ainda, a configuração do Alocutário. Trata-se de um texto que coordena cenas enunciativas nas quais o Alocutário ora são todos os brasileiros, ora são, mais especificamente, opositores políticos – identificados por “grupos econômicos e financeiros internacionais” e “grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia de trabalho”. Essa divisão do alocutário é, aliás, uma operação argumentativa, pois sustenta a posição do Locutor. Observemos o segundo parágrafo da Carta Testamento:

(1) (A) Sigo o destino que me é imposto. (B) Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros in-ternacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. (C) Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. (D) Tive de renunciar. (E) Voltei ao governo nos braço do povo. (F) A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime da garantia do trabalho. (G) A lei dos lucros extraordinários foi detida no Congresso. (H) Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. (I) Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onde de agitação se avoluma. (J) A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. (K) Não querem que o trabalhador seja livre.

Chamamos a atenção, primeiramente, para o silêncio constitutivo deste breve parágrafo: a maior parte dos períodos que o estruturam são compostos basicamente por coordenação. Entre esses períodos não há qualquer outro elemento de ligação (conjunção) que se encarregue de estabelecer a diretividade do texto. Contudo, essa diretividade opera. Digamos, primeiro, que o período marcado por (A) é reescriturado por especificação pelos períodos de (B) a (J). Resumidamente, temos uma reescritura que faz “destino” significar, neste texto: liderar e vencer uma revolução; iniciar o trabalho de libertação; instaurar a liberdade social; renunciar; voltar ao governo; sofrer oposição por seus projetos. Não menos importante é percebermos que há uma cisão a partir do período (F), o qual é também reescriturado por especificação nos períodos de (G) a (J): embora tratem de fatos distintos, a atuação do Congresso (G) e a má aceitação da revisão do salário mínimo (F) marcam as formas de

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oposição ao governo, explicitam os meios pelos quais se desenvolveu a campanha subterrânea contra o regime da garantia do trabalho.

Para compreender a orientação argumentativa construída no texto, olhemos, primeiramente, os períodos de (B) a (E):

(1a) (B) Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma re-volução e venci. (C) Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. (D) Tive de renunciar. (E) Voltei ao governo nos braço do povo.

Há, pois, um truncamento entre (C) e (D): enquanto (C) argumen-ta para o sentido de que [o trabalhador deve ser livre] (r), (D) impõe uma restrição a essa orientação, pois a imposição da renúncia de Vargas (D) orienta para [o trabalhador não deve ser livre] (não r). O período (E), contudo, limita a restrição imposta por (D): a volta de Getúlio ao governo restabelece o argumento dado por (C). Prevalece, pois, de (B) a (E) – mesmo diante do silêncio quanto às adversidades, seja para o governo, seja para a oposição – a orientação r de que [o trabalhador deve ser livre]8.

α. [[(B) ─) r] [(C) ─) r] [mas [(D) ─) não r] mas [(E)] ─) r]]] ─) r

De (F) a (J), porém, prevalecem argumentos para não-r, como po-demos observar pelo período e pela representação da orientação argu-mentativa dados abaixo:

(1b) (F) A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime da ga-rantia do trabalho. (G) A lei dos lucros extraordinários foi detida no Congresso. (H) Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. (I) Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onde de agitação se avoluma. (J) A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero.

β. [[(F) ─) não r] [(G) ─) não r] [(H) ─) não r] [(I) ─) não r] [(J) ─) não r]] ─) não r

A chave, pois, para compreendermos a orientação argumentativa do trecho está na passagem de (E) a (F). Seguramente não é impossível dizer que temos, no silêncio político do texto, uma construção como:

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(1c) (E) Voltei ao governo nos braço do povo. Contudo, (F) A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime da garantia do tra-balho.

É essa breve passagem que permite ao Locutor, no acontecimento, argumentar pela liberdade do trabalhador ao mesmo tempo em que dá ao texto uma orientação argumentativa de que [o trabalhador não é li-vre] em “Não querem que o trabalhador seja livre” (K). Essa oposição entre a orientação argumentativa e argumentação é singularmente forte para um Locutor tomado por uma posição política da história.

Considerando as análises da direção argumentativa presentes em α e β, teríamos uma argumentação que poderia ser assim representada em γ:

γ.

Sucintamente, γ9 permite-nos chegar à seguinte construção parafrás-tica referente a todo o período (1):

(1d) (A) Sigo o destino que me é imposto porque (K) Não querem que o trabalhador seja livre.

Ao analisarmos a paráfrase (1d) acima e compará-la com nossa aná-lise em γ, percebemos que o enunciado (K) atribui sentido a enunciado (A), reescriturado por substituição num procedimento de sinonímia. O enunciado (K) aparece, então, como enunciado que nos apresenta a conclusão, mas de uma forma bastante peculiar: a conclusão que consti-tui (K) é também parte do sentido do destino do enunciador: a restrição à liberdade do trabalhador é posta, em (K), como fato que sustenta o enunciado (A) e, nessa medida, permite, a um só tempo, observar o agenciamento do enunciador enquanto mártir e sustentar o gesto em-pírico (e político) do Locutor de (A). Entre (A) e (K) é (A) a conclusão final de todo o parágrafo analisado em (1), o que nos permite mostrar como a reescrituração é também um procedimento argumentativo, pois reforça, especifica, define, enumera, desenvolve ou totaliza um argu-mento único, sempre o apresentando como novo.

Sumariamente, o parágrafo analisado em (1) permite-nos observar como, no texto em análise, a argumentação está longe de se apresentar

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como qualquer evidência: argumento e conclusão são um só, apenas en-trecortados por reescriturações que produzem uma circularidade argu-mentativa. Toda a representação de γ resume-se, a partir de (1d), em γ’:

γ’. [[(K) ─) não r] ─) (A)]

Com base em (1d) e analisando mais detidamente o enunciado (K), perguntamo-nos, afinal, a quem o verbo “querer” se refere. Mais um silêncio que funciona a propósito da argumentação do texto. Vejamos, pois, que duas leituras são possíveis:

(1d’) (A) Sigo o destino que me é imposto porque eles (K) Não querem que o trabalhador seja livre.

Temos, neste caso, uma cena enunciativa em que o alocutário é to-mado por uma posição genérica de “brasileiro”. Dessa forma, essa pri-meira cena poderia ser esquematizada por:

L – Euni – l-mártir ↔ al-brasileiro – AL 10

Assim, o texto se dirige ao povo brasileiro sustentando uma oposi-ção entre o locutor-mártir e “grupos internacionais [aliados a] grupos nacionais revoltados contra o regime da garantia do trabalho” (de (F)). Como há grupos nacionais envolvidos na oposição ao governo, é a par-tir deles que se constitui a segunda cena enunciativa:

(1d’’) (A) Sigo o destino que me é imposto porque vocês (K) Não querem que o trabalhador seja livre.

A segunda cena que vemos então constituída é:

L – Euni – l-mártir ↔ al-opositor – AL 11

Embora tenhamos ilustrado apenas brevemente essa coexistência de cenas enunciativas, ela perpassa todo o texto: “Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação...”; “Não querem que o povo seja independente”; “E, aos que pensam que me derrotaram, respondo com a minha vitória”. Ao longo de todo o texto, o que podemos depreender são, sempre, duas cenas enunciativas, marcadas ora por um alocutário bastante genérico, ora por um grupo específico deste que, porque aliado a grupos internacionais, é a oposição à “liberdade nacional” (em (I)) – o que faz terreno, na materialidade da língua, à história do nacionalis-

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mo que marcou o período de Vargas. Trata-se, pois, de um Alocutário cindido por um estreitamento de seu lugar social: entre o brasileiro e o “brasileiro”-opositor, num jogo de sentidos em que, por ser oposição, o segundo alocutário apenas pode ser considerado enquanto opositor e silenciado enquanto “brasileiro”.

Embora curto, o texto argumenta sempre por essa cisão do alocu-tário. É essa cisão que aparece, no acontecimento, enquanto silêncio e polifonia: ao apresentar a conclusão do parágrafo analisado, não é senão a voz do opositor – a quem caberia a afirmação de que “o povo não deve ser livre” –, fração quase indistinta da voz genérica do “brasileiro”, que constitui a voz do Locutor.

Diante dessa diferença de foco, importa-nos enfatizar, sobretudo, como a cisão da cena enunciativa tem efeito, no acontecimento, para o próprio agenciamento do Locutor: à medida que é o Alocutário que aparece cindido entre as cenas, o lugar social do locutor enquanto már-tir é ratificado. É, pois, por sua indistinção no tratamento com Alocu-tários separados no acontecimento que o Locutor pode ser tomado por sua ilusão de origem, de unidade, de integridade e, assim, ser agenciado como locutor-mártir para dizer, indistintamente, aos brasileiros: “Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será vossa bandeira de luta”.

1.2 Designação e argumentação: o que “povo” designaDe modo não menos importante, é a palavra “povo”, incisivamente

presente no texto, que nos interessa também observar. É essa palavra, pois, pelos sentidos que tem no texto, que pode nos permitir compreen-der ainda melhor o funcionamento do acontecimento de linguagem e os efeitos desse quando associado a um evento da História.

Lançamos mão, então, de um procedimento semântico que permite compreender, pela observação das relações transversais que são cons-truídas na temporalidade do acontecimento, o que “povo” significa. A partir da observação das reescriturações de “povo” – ou seja, dos modos pelos quais “povo” aparece insistentemente dito “de novo” com sentidos outros – procuraremos compor o Domínio Semântico de Determinação (DSD)12.

Construir o DSD da palavra “povo” é dizer o sentido dessa palavra pelas relações que ela estabelece com outras no texto em análise. São es-sas relações entre palavras (ou entre palavra e expressões) que, à medida que se estabelecem, fazem com que as palavras determinem umas às ou-tras, signifiquem-se, produzam sentido: “as palavras significam segundo as relações de determinação semântica que se constituem no aconteci-mento enunciativo. Ou seja, são relações que se constituem pelo modo como se relacionam com outra no texto...” (Guimarães, 2007, p.80).

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Observemos aqui, de partida, o primeiro enunciado do texto em questão:

(2) Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coorde-naram-se e novamente se desencadeiam sobre mim.

“Povo” aparece em (2) determinado, enunciativamente, por Getúlio. Para melhor observarmos essa determinação, observemos paráfrases possíveis de (2):

(2a) Há forças e interesses contra o povo.(2b) Essas forças e esses interesses agem contra mim.

(2a) e (2b), no limite, explicitam o paralelismo possível entre “Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se” e “no-vamente se desencadeiam sobre mim” de (2). Notemos, pois, que o “e” do enunciado (2) explicita uma coordenação. Nessa relação coordena-tiva, “mais uma vez” da primeira oração é reescrito por “novamente” da segunda; “as forças e os interesses” da primeira oração, na mesma medida, é reescrita por elipse, na segunda, em “[as forças e os interes-ses] desencadeiam”. O que podemos, pois, entender, por (2a) e (2b) e pelo paralelismo observado na formulação de (2) é uma relação tal que Getúlio ├ Povo13.

Como nosso interesse não é uma análise exaustiva, procederemos a recortes decisivos para o quadro que pretendemos compor. Assim, pas-semos à sequência (3) abaixo, também integrada ao texto.

(3) Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subter-rânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia de trabalho.

O que observamos em (3) é uma relação de causa-consequência eli-dida na associação entre o primeiro e o segundo enunciado. Notamos uma construção em que o primeiro enunciado, “Voltei ao governo nos braços do povo” provoca “A campanha subterrânea (...) contra o regime de garantia de trabalho”. Sucintamente, o que temos é:

(3a) Eu [Getúlio] voltei ao governo por decisão do povo.(3b) Por causa da minha volta, grupos internacionais aliaram-se a grupos nacionais revoltados contra o regime da garantia de trabalho.O que percebemos, pois, é uma relação em que há uma oposição

entre Getúlio (determinado previamente por povo) e “grupos nacio-

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nais revoltados contra o regime da garantia de trabalho”. Nessa medida, “grupos nacionais revoltados contra o regime da garantia de trabalho” opõem-se, também, a povo. Contudo, essa oposição instaura outro sen-tido, estabelecido especificamente por “contra”. Observemos (3c):

(3c) Minha volta ao governo provocou grupos nacionais revolta-dos contra mim [contra o povo].

O DSD que obtemos até então, a partir das relações depreendidas também de (3), poderia ser esquematizado em:

O que podemos observar seguramente no DSD acima é o caráter político do cenário brasileiro significado por Vargas. Seu regime popu-lista só poderia se sustentar à medida que seu nome não está a par com “grupos nacionais” – porque aliados a “grupos internacionais” –, mas determinando “povo”. Pensando ainda a argumentação no texto, esse DSD permite-nos dizer que, pela relação de antonímia frente a Getúlio e povo, os grupos nacionais constituem-se como um argumento prete-rido; trata-se, afinal, de um argumento que sustenta a liderança perante o povo. Mais ainda: o estatuto do agenciamento do Locutor tal como vimos acima é ratificado por essa oposição criada pelo acontecimento.

Mas o sentido deste DSD ainda não se esgota: à medida que Getúlio é determinado por “regime da garantia de trabalho”, é a inserção massiva do Brasil no modo de produção capitalista que é significada historica-mente como efeito de política de governo. De outro lado, à medida que “regime de garantia de trabalho” determina também “povo”, é a impos-sibilidade de um regime capitalista sem uma força produtiva que está significada. Determinação em mão dupla que, se não apaga a oposição e parece contraditória, mostra como a palavra é afetada pelo Político, que “está assim sempre dividido pela desmontagem da contradição que o constitui” (Guimarães, 2002 [2005, p. 16]).

Inclusive para mostrar a força da história, da condição social, no acontecimento de linguagem e, portanto, também do sentido, observe-

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mos como a sequência (4) nos oferece dados interessantes para nossa análise.

Era escravo de povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém.

Observemos, antes, nosso novo DSD, para melhor ilustrarmos nossa interpretação:

A escravidão, que determinaria – por antonímia – povo, determina, antes, Getúlio: condição fundamental para que este se diga, antes, “re-presentante” do povo. Mas, ao mesmo tempo, essa escravidão aparece para determinar o papel de Getúlio e do povo, determinado também por sua força de trabalho. É assim que o sistema argumenta no aconte-cimento: Getúlio e povo estão numa oposição a “grupos nacionais”, por-que determinados por “grupos internacionais”; mas, ao mesmo tempo, Getúlio, povo e os próprios grupos nacionais estão em oposição à escra-vidão. É a própria História, pois, que está sendo reescrita no texto. Para melhor recompor essa História e o DSD, vejamos como nossa análise se reforça pela presença de (5) e (6).

(5) Não querem que o trabalhador seja livre.(6) Não querem que o povo seja independente.

Novamente um paralelismo que faz povo significar enquanto sujeito ao trabalho. Paralelismo que, aliás, faz funcionar também o nacionalis-mo:

(7) Lutei contra a espoliação do Brasil.(8) Lutei contra a espoliação do povo.Brasil que só pode ser nação por seu povo. Povo que só pode ser

identificado por sua nação. Brasil e povo que, contudo, só coincidem

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por um eu que se confia origem não só do dizer, mas também dessa própria determinação histórica entre povo e Brasil. Observemos nosso DSD:

Incluímos, então, “trabalho”, ainda mais incisivamente determinan-do “povo”, e Brasil, como resultado dos paralelismos de (5) e (6) e de (7) e (8). Dizer que trabalho determina “povo” ao mesmo tempo em que “regime da garantia de trabalho” é dizer o papel político do governo, então representado por Getúlio, o qual é a diferença porque é a “garan-tia”. Mais fortemente: dizer que liberdade determina “povo” e trabalho (decorrência dos enunciados (5) e (6)) é dizer, também, que a submissão ao sistema é condição para a liberdade nesse sistema.

Uma observação ainda mais detida de nosso DSD acima permite ver que incluímos, também, “espoliação”. A sequência (7), em sua relação com (3) – particularmente com “A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regi-me de garantia de trabalho” –, ao ressaltar a imagem de nação, recompõe a oposição ao não nacional, ao estrangeiro, aos “grupos internacionais”: são esses grupos, afinal, que aparecem em (3) representando a oposição, o “contra” o povo, “contra” Getúlio, contra o “Brasil”. É o memorável que (7) recorta do acontecimento que enfatiza o sentido de “grupos interna-cionais”: lutar contra a espoliação do Brasil é lutar contra esses grupos. É só à medida que aparece explicitamente “Brasil” que “grupos internacio-nais” encontram uma projeção de sentido que, marcada pela oposição, indicia outra presença da história no texto: o movimento nacionalista. O “povo” só pode ser brasileiro porque identificado como não interna-cional; ao mesmo tempo, “grupos nacionais” estão em oposição a “povo” porque estão determinados por “grupos internacionais”.

Há ainda outros sentidos de “povo” no texto em questão, mas nosso interesse, reafirmamos, não é uma análise exaustiva. Fizemos recortes

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específicos que julgamos decisivos para ilustrar o procedimento semân-tico de que lançamos mão e sua contribuição para uma análise de texto. Embora tenhamos reservado ainda algumas considerações finais, espe-ramos, de antemão, que a análise do texto escolhido tenha mostrado como a reinclusão da História nos estudos linguísticos é produtiva para a compreensão da linguagem e, nessa medida, também da própria His-tória do Brasil.

ConclusãoFizemos um percurso de análise de texto a partir da Semântica do

Acontecimento e esperamos, a partir dele, ter ilustrado brevemente as relações que a linguística estabelece com outros domínios sem, contudo, perder sua especificidade. Nosso trabalho de análise de A Carta Testa-mento de Getúlio Vargas, nesse sentido, é uma tentativa, de um lado, de ilustrar como, na prática de análise da linguagem, as relações com a história ficam recompostas; de outro lado, porém, é também um em-preendimento que busca chamar a atenção para a relevância da análise linguística para uma nova compreensão da História ou, para o caso ana-lisado, da história política do Brasil.

Sobre esta história, afinal, importa observar que o agenciamento de Getúlio enquanto mártir é (e)feito na própria língua. É, pois, à medida que fala de um lugar aberto por um precedente histórico, o lugar de Cristo, que Getúlio pode silenciar sobre o gesto que acompanharia seu testamento: deste lugar de mártir que empresta a história cristã, dar a vida não é suicídio, é dar um passo num caminho já conhecido, talvez já predestinado. Silenciar essa causa mortis faz sentido pelo agenciamento do Locutor: trata-se, pois, de um silêncio que argumenta, que sustenta o Locutor perante seus Alocutários.

Ao mesmo tempo, finalmente, falar ao povo, deste lugar histórico de mártir, reitera outra posição que, aliás, constitui o sujeito Getúlio: a posição política. À medida que elenca as vitórias e os entraves de sua vida política, seu texto compõe o cenário eleitoral no qual sua relação com o povo lhe credita o voto que a História já lhe reservara. Getúlio, no fundo, se elege para uma eternidade na história de uma nação.

Notas1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico  e Tecnológico – Brasil.2 Mestrando em Linguística – IEL/UNICAMP.

3 Ver, sobretudo, Guimarães (2002, 2011).4 Para melhor compreender nossa posição sobre a relação entre História e sentido, ver, sobretudo, Henry (1984). 5 Utilizamos aqui a noção de “recorte” tal como proposta por Orlandi (1984).

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6 “Os falantes não são os indivíduos, as pessoas que falam esta ou aquela língua. Os fa-lantes são estas pessoas determinadas pelas línguas que falam”. (Guimarães, 2002 [2005, p.18]).7 Para ver a distinção entre enunciador universal, genérico e coletivo, ver Guimarães (2005, p.23-26; 2011, p.19-29).8 Os símbolos ─) e r indicam, respectivamente, a direção argumentativa apresentada pelo argumento (apresentado entre parênteses, com letras que representam enuncia-dos). Os colchetes encerram a relação proposta por cada argumento ou grupo de argu-mentos e suas respectivas conclusões.9 A indicação NT, no esquema, indica que há, entre α e β, uma relação adversativa, tal como frequentemente estabelecida por operadores como “mas”, “embora” ou “no en-tanto”, por exemplo. Como demostrado por Guimarães [1997 (2007)], sequências mar-cadas por essa relação frequentemente predominam enquanto argumento. No caso em análise, teríamos uma situação em que a sequência α é apresentada como comentário, contrapondo-se a β, apresentado como tema.10 Usamos aqui L, Eind, l-mártir, al-brasileiro e AL como indicação de Locutor, Enun-ciador individual, locutor mártir (lugar social do locutor), alocutário brasileiros (lugar social dos alocutários) e Alocutário, respectivamente. Manteremos o uso de algumas dessas abreviações no trabalho com outras cenas enunciativas.11 Tal como al-brasileiro, al-opositor indica o locutor social do alocutário.12 No quadro teórico da semântica do acontecimento, o Domínio Semântico de Deter-minação (DSD) permite representar, gráfica e sumariamente, o sentido de uma palavra. Sobre o DSD, ver Guimarães (2007, pp.77-96).13 Utilizamos aqui: x ┤y, em que ┤ significa determina; da mesma forma, podem apa-recer os sinais ─ (significando sinonímia) e _____ (significando antonímia).

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Palavras-chave: história, argumentação, determinaçãoKey-words: history, argumentation, determination

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CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS

SAUSSURE E O CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL: UMA RELAÇÃO DE NUNCA ACABAR1

Maria Iraci Sousa Costa2

O Curso de Linguística Geral, as notas dos alunos, os escritos de Saussure e muitas discussões

O Curso de Linguística Geral (CLG), obra sobre a qual se edificou, diretamente ou não, toda a linguística moderna (Benveniste, 1989), é uma obra póstuma organizada por Albert Sechehaye e Charles Bally, a partir de três cursos ministrados por Saussure na Universidade de Ge-nebra. Tais cursos foram ministrados ao longo de três anos (1906-1907; 1908-1909; 1910-1911), por ocasião da substituição de Joseph Werthei-mer. As ideias do mestre genebrino ressoaram como um contraponto aos estudos linguísticos realizados na época, pois “Saussure recusava quase tudo o que se fazia no seu tempo. Ele achava que as noções cor-rentes não tinham base, que tudo repousava sobre pressupostos não ve-rificados, e sobretudo que o lingüista não sabia o que fazia” (Benveniste, 1989, p.14).

Tendo em vista a importância de tais questionamentos apontados por Saussure nos cursos e o impacto que suas reflexões poderiam ter para os estudos da linguagem (sobre os quais o mestre nada publi-cou), após a morte de Saussure, em 1913, Albert Sechehaye e Char-les Bally tomaram a iniciativa de organizar uma publicação com os ensinamentos de Saussure. Entretanto, o que Saussure havia deixado sobre os cursos eram apenas algumas notas manuscritas esparsas, que, segundo Bally e Sechehaye, eram insuficientes para a publica-ção de um livro. Além disso, os idealizadores do projeto não haviam assistido integralmente aos cursos ministrados pelo mestre, e todo o material de que eles dispunham para a organização eram notas manuscritas de outros alunos que haviam assistido ao curso e que, na sua maior parte, não eram linguistas. Nesse sentido, os editores afirmam que: “era mister, para cada curso, e para cada pormenor do

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curso, comparando todas as versões, chegar até o pensamento do qual tínhamos apenas ecos, por vezes discordantes” (CLG, Prefácio à primeira edição, p.2). Considerando essas e outras dificuldades, o objetivo dos editores era: “tentar uma reconstituição, uma síntese, com base no terceiro curso, utilizando todos os materiais de que dis-púnhamos, inclusive as notas pessoais de Saussure. Tratava-se, pois, de uma recriação” (Ibid., p.3).

Posteriormente, o CLG sofreu duras críticas desencadeadas após Robert Godel publicar, a partir de 1941, em números sucessivos dos “Cahiers Ferdinand de Saussure”, outras fontes do CLG que não fo-ram consultadas pelos editores, além de anotações inéditas de Saus-sure que começaram a ser divulgadas nos “Cahiers” a partir de 1954. Em 1957, Robert Godel publica o livro “Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale” (As fontes manuscritas do Curso de Linguística Geral), que confrontava o CLG com as anotações dos alunos, mostrando que as fontes consultadas pelos editores e a forma de reconstrução dos cursos ministrados não se correspondiam entre si, e o CLG não correspondia a nenhuma delas. Bouquet e Engler (2012) questionam o rótulo “fontes” atribuído por Godel ao corpus recenseado se uma grande parte desses documentos não serviu de fonte para a elaboração do texto editado por Bally e Sechehaye.

Mais tardiamente, em 1996, oito décadas após a publicação do CLG, foram encontrados os manuscritos de Saussure em um anexo de sua residência e também um livro ainda não concluído, “Da dupla essência da linguagem”3, revelado em 2002, nos “Écrits de Linguisti-que Générale” (Escritos de Linguística Geral), organizado por Simon Bouquet e Rudolf Engler. A partir do estudo das notas saussurianas, estudiosos como Simon Bouquet insistiram sobre o ponto de que a tese defendida no CLG não corresponderia à tese de Saussure. No que diz respeito ao arbitrário do signo, por exemplo, Simon Bouquet (2004) afirma com veemência que os editores não só criaram enun-ciados que não têm registro em nenhuma das fontes manuscritas como também tais enunciados se contrapõem às ideias de Saussure.

Um dos pontos mais discutidos desde a publicação do CLG, que acompanha o desdobramento das discussões com a publicação das notas dos alunos e também das notas saussurianas, é a temática do arbitrário do signo. Trata-se de uma discussão que remonta às pri-meiras reflexões sobre a linguagem e que continua a instigar diver-gências entre aqueles que se aventuram a estudar esse objeto tão fu-gidio que a Linguística tomou para si como seu objeto de estudo, a língua.

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“O princípio da arbitrariedade do signo não é contestado por nin-guém” (CLG, p. 82)

A maior parte das críticas ao CLG é direcionada ao princípio da ar-bitrariedade do signo, sobre o qual se afirma, curiosamente, que não há contestações, o que, segundo Arrivé (2010), é essencialmente exato na época de Saussure. No entanto, segundo esse mesmo autor, essa afir-mação implica o esquecimento de opiniões contrárias que, em muitos momentos da história da reflexão sobre a linguagem, foram formuladas sobre o arbitrário do signo. Essa questão da arbitrariedade é um dos as-pectos da teoria de Saussure que mais gera debate e continua sendo um ponto de divergência entre os estudiosos. O ponto de discórdia está no exemplo escolhido para ilustrar o princípio da arbitrariedade do signo. As discussões em torno desse exemplo apontam para o fato de que ele estaria em flagrante contradição com a definição de signo, isto é, esse exemplo estaria apontando para uma concepção de língua enquanto nomenclatura, rejeitada por Saussure, e que acabaria implicando deslo-camento da relação arbitrária entre o significado e o significante para a relação entre o signo e o referente.

Quem vai dar início a esse debate é Benveniste, referido por vários estudiosos como um dos primeiros a questionar o princípio da arbitra-riedade. Segundo Normand (2009), Benveniste

corrige a formulação do CLG, julgada confusa, afirmando que o arbitrário, ao contrário do que parece dizer o CLG, é somente entre o signo e a realidade exterior à língua, uma vez que a relação entre o significante e o significado é, por sua vez, ‘necessária’ aos olhos do locutor (Normand, 2009, p.146-147).

Essa crítica encontra-se no texto “Natureza do signo linguístico”, es-crito em 1939, onde Benveniste defende que o laço que une o signifi-cado e o significante não é arbitrário, pois entre esses dois elementos constitutivos do signo linguístico existe uma relação necessária, tendo em vista que um não pode ser evocado sem o outro. Juntos, o signifi-cado e o significante formam um, garantindo a unidade estrutural do signo linguístico. Para Benveniste (Ibid.), o exemplo usado no CLG não demonstra a arbitrariedade entre os dois elementos constituintes do sig-no, mas aponta para uma relação arbitrária entre o signo e a realidade, isto é, “o que é arbitrário é que um signo, mas não outro, se aplica a um determinado elemento da realidade, mas não a outro” (Benveniste, 1995 [1988], p.56). Nesse sentido, segundo Benveniste, afirmar que a relação entre significado e significante é arbitrária, porque, em línguas diferentes, existem palavras diferentes para designar um mesmo objeto,

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implica deslocamento da relação da arbitrariedade entre significado e significante, para uma relação do signo com algo que lhe é exterior, que é o objeto. Desse modo, é o referente que se mantém, enquanto o signo varia de uma língua para outra, por exemplo, quando um francês diz mer (mar) e um inglês diz sea, eles estão se referindo a uma mesma realidade. Portanto, para Benveniste, “o arbitrário só existe aqui em rela-ção com o fenômeno ou objeto material e não intervém na constituição do próprio signo” (Benveniste, 1995 [1988], p.57), ou seja, o arbitrário não está no signo em si, mas na relação do signo com a realidade. No entanto, a negação da arbitrariedade do signo não diminui o mérito de Saussure, pois segundo Benveniste:

O mérito dessa análise não é diminuído em nada, mas ao con-trário muito reforçado se se especifica melhor a relação à qual se aplica. Não é entre o significante e o significado que a relação ao mesmo tempo se modifica e permanece imutável, é entre o signo e o objeto; e, em outras palavras, a motivação objetiva da desig-nação, submetida como tal, à ação de diversos fatores históricos. O que Saussure demonstra permanece verdadeiro, mas a respeito da significação, não do signo (Ibid., p.58).

Benveniste aponta a flagrante contradição entre a definição de lín-gua sustentada por Saussure e o exemplo usado para ilustrar o caráter arbitrário do signo, mostrando que esse exemplo remete justamente a uma concepção de língua que Saussure recusa. O exemplo leva a uma concepção de língua enquanto nomenclatura, que associa as palavras às coisas, opondo-se à definição de língua enquanto sistema de signos, sustentada no CLG.

Para Simon Bouquet (2004), que valoriza as fontes manuscritas em detrimento do que coloca o CLG, Benveniste é induzido a formular crí-ticas não fundamentadas, em razão de seu desconhecimento dos textos originais, e, por isso, ele “se perde no percurso traiçoeiro do Cours, não atinge a teoria saussuriana” (Ibid., p.237). No texto “Benveniste et la re-présentation du sens: de l’arbitraire du signe à l’objet extra-linguistique”, publicado em 1997 e dedicado exclusivamente à crítica que Benveniste faz a Saussure, Bouquet defende que a reflexão de Benveniste é tão in-consistente quanto o texto dos editores e se propõe a “ilustrar como a crítica de Saussure por Benveniste se constrói sobre o plano de uma perspectiva enganosa. Esta perspectiva enganosa é aquela do Curso de Linguística Geral (doravante CLG)”4 (Bouquet, 1997, p.107).

Além disso, Bouquet (Id.) argumenta que “o texto de Bally e Se-chehaye tornou opaco o texto saussuriano e alimentou discussões in-

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termináveis sobre a questão do arbitrário, que começaram em 1916 e duraram meio século” (Id., 2004, p.237). Segundo Bouquet (1997), ao referir esse exemplo, Saussure estava tematizando, de forma estrita, a respeito da teoria do valor linguístico, uma vez que essa noção ainda não havia sido desenvolvida junto a seus alunos. Nesse sentido, Saussure estava ciente das possíveis complicações desse exemplo e, ao contrário do que aparece no Cours, o exemplo polêmico foi usado somente para ilustrar o princípio da arbitrariedade do significante, isto é, ilustrar a tese convencionalista da arbitrariedade, e, para isso, uma concepção ingênua de língua como nomenclatura era perfeitamente suficiente (Ibid.). Desse modo, o autor atribui à ingenuidade voluntária do exem-plo ao fato de que a teoria do valor ainda não havia sido desenvolvida, o que fez com que o princípio da arbitrariedade do significante fosse dado, inicialmente, como evidente para, posteriormente, ser retomado e desconstruído. O que, para Bouquet (Ibid.), pode ter “enganado” Ben-veniste é a formulação do CLG que ele cita no início de seu artigo: �A ligação entre o significante e o significado é arbitrária ou simplesmente o signo lingüístico é arbitrário”, a qual, segundo Bouquet (Ibid.), não se baseia em nenhuma das notas dos alunos. Bouquet (Ibid.) questiona Benveniste pelo fato de que, mesmo conhecendo as condições de elabo-ração do CLG, ele insiste em se dirigir a Saussure como autor do CLG. Isso, ainda hoje, é dado como uma evidência que se cristalizou, embora nunca tenha sido omitida a forma como o CLG foi elaborado. Bouquet, a partir dos textos originais de Saussure, os quais se chegou a acreditar que talvez nunca fossem encontrados ou talvez nem existissem, vem tentando insistentemente desassociar o CLG das ideias de Saussure.

No entanto, nem todos que tiveram conhecimento dos textos origi-nais saussurianos partilham do mesmo posicionamento de Bouquet e tampouco acreditam que a crítica de Benveniste seja infundada. Arrivé (2010), por exemplo, assume uma postura oposta a de Bouquet (Id.), sendo que, para ele, pouco importam “as invectivas contra os editores de 1916, [ou] as lamentações a respeito de outros projetos de edição” (Arrivé, 2010, p.23). Para esse autor, o CLG, em relação a Saussure, seria “o que são os Evangelhos apócrifos em relação à Verdade revelada” (op. cit.)5.

Quanto à polêmica em torno do princípio da arbitrariedade, Arrivé (Ibid.) considera que o exemplo dado no CLG é fiel à formulação inicial: “a ideia de ‘mar’ não está ligada por relação alguma interior à sequência de sons m-a-r que lhe serve de significante” (CLG, p.81)6. Se não existe uma relação natural entre a ideia de “mar” e a sequência de sons “m-a-r”, pressupõe-se que o significado “mar” poderia estar associado a outro significante existente na língua, mas qual seria, se a noção de valor im-

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plica oposição entre os signos da língua? Desse modo, essa relação arbi-trária entre o significado e o significante só poderia ser percebida a par-tir da comparação entre línguas diferentes. E assim, Saussure continua:

como prova: temos as diferenças entre as línguas e a própria exis-tência de línguas diferentes: o significado da palavra francesa boeuf (‘boi’) tem por significante b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica, e o-k-s (Ochs) do outro. (CLG, p.82).

Segundo Arrivé (Ibid.), é nesse ponto em que há um deslizamento do raciocínio saussuriano, pois, ao estabelecer uma relação entre línguas diferentes, pressupõe-se que o significado de “boeuf ” seja exatamente idêntico ao de “Ochs”, o que se contrapõe às posições anteriormente defendidas: “se ele descartou a concepção de língua como ‘nomencla-tura’, foi exatamente porque ela ‘supõe ideias prévias, preexistentes às palavras” (Ibid., p.61). Dessa forma, para Arrivé (Ibid.), a crítica de Ben-veniste não é infundada, pois, de fato, houve um equívoco por parte de Saussure e é, nesse sentido, que Arrivé (Ibid.) afirma que não

espanta nem um pouco ver Bouquet – que ignora Pichon e não se dá ao trabalho de citar nem Benveniste nem a proposição saus-suriana que ele critica – afirmar com segurança (1997, 290) que ‘Benveniste está em falta com a teoria saussuriana’. É evidente que Saussure deslizou do significado para o referente, recaindo com isso, talvez sem perceber, na concepção, anteriormente descarta-da, da língua como nomenclatura (p.64).

Além disso, em nota, Arrivé (Ibid.) destaca que a citação usada por Benveniste não encontra correspondente no CLG. Sobre a crítica de Benveniste, Arrivé (Ibid.) faz uma única ressalva quanto à relação ne-cessária entre o significado e o significante defendida por Benveniste. Para Arrivé (Ibid.), a análise realizada por Benveniste é incontestável, o que pode ser discutível é em que medida essa demonstração sustenta a tese da relação necessária entre significado e significante, porque, na visão de Arrivé (Ibid.), a análise de Benveniste é neutra em relação à questão do arbitrário ou da necessidade. Sendo assim, se, por um lado, Saussure não consegue demonstrar o princípio da arbitrariedade do sig-no, por outro, Benveniste também não consegue demonstrar a relação necessária entre significado e significante.

Roman Jakobson, que foi um dos primeiros a citar Saussure em outra língua que não o francês (Gadet, 2000), também vai entrar nessa dis-cussão sobre a arbitrariedade do signo, no texto “À procura da essência

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da linguagem”. Diferentemente dos autores já citados, Jakobson (1969) não discute se o signo linguístico é ou não arbitrário, suas críticas são direcionadas à pretensão de novidade da interpretação saussuriana so-bre o signo linguístico. Sempre com uma postura crítica em relação às dicotomias saussurianas, Jakobson (Ibid.) também vai colocar em cau-sa a originalidade das noções cardinais e dos princípios introduzidos por Saussure (Gadet, 2000). Para Jakobson (Ibid.), o grande legado de Saussure não poderia ser o princípio da arbitrariedade do signo, pois essa concepção, inclusive a terminologia adotada por Saussure, remonta à doutrina dos estóicos, que data de aproximadamente dois mil anos atrás. Dessa forma, Jakobson (Ibid.) procura mostrar que o princípio da arbitrariedade constitui um problema recorrente nos estudos da lingua-gem desde a Antiguidade, sendo que Saussure é apenas mais um que se dedica ao estudo da conexão entre som e significado. Dentre os auto-res que trabalharam com uma doutrina similar a de Saussure no sécu-lo XIX, Jakobson (Ibid.) aponta Humboldt, cujos trabalhos apontavam para a conexão apenas aparente entre o som e o significado, e também destaca Whitney (1867, 1874), que, por sua vez, definia a língua como um sistema de signos arbitrários e convencionais, doutrina essa que, in-clusive, vai ser retomada no CLG e passa a ocupar um lugar importante na teoria saussuriana. Em se tratando de originalidade, para Jakobson, “o pensador mais inventivo e universal foi provavelmente Charles San-ders Peirce” (Ibid., p.99), uma vez que

As notas de Semiótica que Pierce pôs no papel ao longo de meio século possuem significação de importância histórica, e se elas não tivessem permanecido inéditas, na sua maior parte, até 1930 e anos seguintes, ou se pelo menos, suas obras publicadas tives-sem sido conhecidas dos lingüistas, suas pesquisas teriam, sem dúvida, exercido influência única no desenvolvimento interna-cional da teoria lingüística (Ibid., p.100)

Assim, o princípio da arbitrariedade do signo proposto por Saussu-re é questionado sob dois aspectos, quanto à originalidade e quanto à natureza do signo linguístico. No entanto, tanto a questão do arbitrário assim como outras questões a ela relacionadas estão ainda mais longe de serem resolvidas com a descoberta dos manuscritos de Saussure em 1996, quando se revela que as “passagens do Cours que tratam do ‘arbi-trário do signo’ [...] servem a enunciados inteiramente criados por Bally e Sechehaye: nenhuma proposição correspondente sobre o arbitrário figura nas fontes” (Bouquet, 2004, p.232).

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Considerações finaisO CLG continua suscitando discussões polêmicas, seja pelas contra-

dições do Cours em si, seja pelas discordâncias entre as anotações dos alunos, ou ainda pelo distanciamento do CLG em relação aos escritos saussurianos originais. Sobre esses pontos, muitos estudiosos vêm to-mando diferentes posições, a saber, ou considera-se o CLG como uma farsa, na medida em que os editores teriam atribuído a autoria do CLG a Saussure sem que, no entanto, o CLG tenha uma única afirmação que esteja de acordo com as notas manuscritas do mestre, ou, ainda, prefe-re-se uma posição que defende a autoria do CLG como de Saussure e propõe um olhar para as próprias contradições do Cours, independente-mente da sua coerência com os escritos saussurianos originais. Haveria ainda uma terceira posição, a que consideraria os escritos originais na medida em que eles poderiam apontar para uma melhor compreensão do CLG em si, sem desautorizá-lo.

Apesar de o legado de Saussure ser apenas uma aproximação de seu pensamento, as suas reflexões foram muito profícuas e continuam a des-pertar debates e discussões na contemporaneidade. Se a língua é um objeto inatingível e a questão da arbitrariedade continua sendo tema de discussões intermináveis, não há como negar a importância da con-tribuição de Saussure não só para a Linguística, mas também para as ciências humanas. Nesse sentido, procuramos orientar nosso trabalho, mobilizando essas discussões sem, no entanto, tomar partido de uma ou de outra, pois entendemos que a essência do pensamento saussuriano continua sendo um enigma, uma vez que se trata de uma reflexão que não chegou a ser concluída. Não nos preocupamos em saber qual des-ses estudiosos está com a verdade, até mesmo porque os linguistas não se ocupam da verdade, interessa-nos apenas a riqueza da profundidade do empreendimento saussuriano e a repercussão de seus estudos ainda hoje. Assim, entendemos que o linguista aprendeu a conviver com o desconforto e a inquietação provocados pela natureza fugidia do objeto da Linguística e o que move as constantes reflexões sobre a linguagem é essa questão mal resolvida entre a Linguística e seu objeto, discussão essa que remonta sempre a Saussure.

 Notas1 Esse texto foi escrito inicialmente para avaliação da disciplina “Seminário Avançado em Saussure”, do Curso de Mestrado em Letras – Estudos Linguísticos (UFSM), durante o primeiro semestre de 2010, disciplina essa ministrada pela Professora Dr. Amanda Eloina Scherer. Agradeço à Professora Dr. Amanda Scherer, não só pela orientação e pelas importantes contribuições para a escritura desse texto, mas também pelo incenti-vo para levar adiante o desafio de estudar Saussure, esse grande linguista cujas reflexões nunca cessam.

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2 Acadêmica do segundo semestre do Curso de Doutorado em Letras – Estudos Lin-guísticos da Universidade Federal de Santa Maria – Santa Maria (RS-Brasil); E-mail: [email protected]. Bolsista CAPES. Orientanda da Professora Dr. Amanda Eloina Scherer.3 Na verdade, trata-se de um texto que “continua a ser, como dizer isso?, um rascunho, desde que se retire do termo rascunho toda e qualquer conotação pejorativa” (Arrivé, 2010, p.45). Esses documentos foram encontrados também em 1996 e agrupados por Bouquet e Engler “sob o título de ‘Da essência dupla linguagem’, eles provêm, em sua grande maioria de um grande envelope que contém maços de folhas da mesma natu-reza e do mesmo formato, sendo que várias delas trazem a menção: ‘Da dupla essência da linguagem’, ‘Dupla essência’ ou ‘Essência dupla (da linguagem)’”. (Bouquet e Engler, 2002, p.16)4 “illustrer comment la critique de Saussure par Benveniste se construit sur fond d’une perspective en trompe-l’oeil. Cette perspective en trompe-oeil, c’est celle du Cours de linguistique générale (ci-après CLG)” (Bouquet, 1997, p.107)”.5 Isaac Salum faz uma analogia semelhante no prefácio do CLG onde ele afirma que “Saussure - como Sócrates e Jesus - é recebido de ‘segunda mão’” (CLG, Prefácio à edição brasileira, p. XVI).6 Estamos considerando aqui a 27ª edição brasileira do CLG. Cabe ressaltar, uma vez que a edição que Arrivé cita traz a palavra “irmã” como exemplo no lugar de “mar”.

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RESENHA

MOLLICA, Maria Cecilia; GOMES DA SILVA, Cynthia Patusco; BARBOSA, Maria de Fátima S. O. Olhares Transversais Em Pesquisa, Tecnologia e Inovação: o desafio da educação formal no século XXI. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, 304pp.

O livro Olhares Transversais em Pesquisa, Tecnologia e Inovação: o desafio da educação formal no século XXI, organizado por Maria Cecilia Mollica, Cynthia Patusco Gomes da Silva e Maria de Fátima S. O. Bar-bosa, traz, em seu conjunto uma ampla reflexão sobre a “complexidade intrínseca a todo o processo educacional”, como explicitado na própria introdução da obra.

A partir de diferentes perspectivas e abordagens teóricas, como a neurociência, a sociolingüística, a análise crítica do discurso, a análi-se do discurso de linha francesa, entre outras, estudiosos da linguagem abordam em cada capítulo do livro questões prementes em nossa socie-dade contemporânea, no que se refere ao ensino-aprendizagem, leitura, escrita, ambiente escolar, ensino a distância, culturas minoritárias, entre outros aspectos de extrema relevância e interesse de estudiosos da lin-guagem e professores de diferentes níveis de ensino e formação.

Além disso, a obra apresenta um panorama interessante das pesqui-sas e projetos que vêm sendo desenvolvidos e aplicados no Brasil para uma Educação mais inclusiva e inovadora, no sentido de enfrentar os desafios colocados à educação formal pelo surgimento de um novo pa-radigma histórico que é o paradigma informacional.

Nesse sentido, o livro traz três grandes eixos temáticos, que cons-tituem as três partes do livro. A primeira parte, composta por quatro capítulos, aborda pesquisas e reflexões que dizem respeito ao eixo “Da pesquisa básica à sala de aula”. A segunda parte é também composta por quatro capítulos que desenvolvem o eixo temático “Dos gêneros dis-cursivos e das tecnologias à prática na escola”. A terceira parte do livro é composta por três capítulos que se desenvolvem sob o eixo temático “Dos contatos interculturais, das políticas educacionais à atuação do professor”.

No primeiro capítulo da primeira parte da obra, intitulado Neu-rociência, alfabetização e mestrado profissional: uma perspectiva para a educação dos brasileiros, as autoras Aniela Improta França, Marí-

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lia Uchôa Cavalcanti Lott de Moraes Costa e Daniela Cid de Garcia, mostram como as últimas pesquisas em neurociência têm contribuído para a compreensão das estruturas cerebrais relacionadas à aquisição da linguagem, adaptando os mecanismos neurais – o que as autoras apontam como reciclagem – e convertendo-os aos novos usos a que o cérebro seja submetido. Sendo assim, a pesquisa de Dehaene (2005), neurocientista francês, torna-se fundamental para descrever o funcio-namento de áreas do cérebro relacionadas à leitura e escrita, pois o autor e sua equipe localizaram uma área denominada Área da Forma Visual da Palavra Escrita que é onde se dá a reciclagem para a leitura. E neste contexto, a alfabetização é um processo de reciclagem, pois nela se dá a adaptação progressiva para nos tornar leitores hábeis. Progres-siva, sim, pois o reconhecimento das primeiras formas escritas ainda é, no âmbito da grafia, sem a correspondência fonética, sendo que este estágio acontecerá posteriormente, até a aquisição de uma Consciência Fonêmica, para, então, chegar a um estágio ortográfico, mas tudo isto passando pela educação formal. Deste modo, seria impossível pensar em um desenvolvimento da habilidade de leitura sem considerar que desde a infância o cérebro contém sistemas de “reconhecimento de objetos e os circuitos que subjazem a faculdade da linguagem” (p.21). Contudo, a pesquisa em questão reconhece que a compreensão da fala e o reconhecimento da invariância visual são elementos precursores para a leitura, competências estas que são imprescindíveis para o pro-cesso alfabetizador, e que a criança já o possui, desenvolvendo uma nova habilidade a cada estágio.

Embora não se saiba ao certo como é processado o reconhecimen-to visual da palavra, pesquisas psicolinguísticas sugerem que haja es-tágios prelexicais de decomposição e recomposição da palavra. Se-gundo Dehaene há duas rotas para que o processo de leitura ocorra: a rota fonológica e uma rota lexical e, segundo a maioria dos modelos de leitura que usam a neurociência da linguagem como subsídio para a estruturação de seus programas de leitura, a combinação destas duas é que completa o processamento da leitura. Sendo que a rota lexical é que vai distinguir um leitor de um não-leitor ou de um analfabeto funcional.

A discussão sobre os modelos de alfabetização não entra na questão política dos modelos adotados, mas a relação existente entre o Método Global, Construtivista ou sócio-interacionista e o método fônico, com a rota lexical já mencionada. Considerando que o Brasil, na maioria das instituições de ensino, adota o Método Global, a análise das autoras re-cai sobre os diferentes métodos e materiais de alfabetização.

O capítulo destaca o quanto a escolha metodológica é importante para o avanço da Ciência Cognitiva da Leitura.

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O segundo capítulo dessa primeira parte, intitulado O papel da cons-ciência fonológica na alfabetização de portadores de síndrome de Down, de Cynthia Patusco Gomes da Silva, coloca em discussão a importân-cia de se estimular a prática da Consciência Fonológica, que, segundo a autora, é um conjunto de habilidades metalinguísticas que partem do nível sintático para o fonológico, no processo de alfabetização ou para “minorar transtornos de leitura e escrita na população com síndrome de Down”. Considerando as dificuldades de natureza articulatória dos indivíduos com SD, mas também outros aspectos da SD, bem como o nível de dificuldade de cada criança ou jovem alfabetizando, é que o programa de habilidade metafonológica deve ser adotado. Embora não haja consenso entre os estudiosos no que se refere à relação entre CF e alfabetização, aponta a autora (p.47), preferindo, desse modo, assumir o modelo proposto por Ferreiro (2003), que pressupõe uma relação de reciprocidade entre matafonologia e alfabetização.

No que tange às propostas pedagógicas, a autora, apoiada em Stampa (2009), ilustra “que o exercício consciente da relação som-letra tende a atenuar déficits da lectoescrita durante o processo de alfabetização” (p.49).

O terceiro capítulo do livro, O professor do novo milênio, de autoria de Maria Cecília Mollica, vai discutir os “efeitos dos pontos problemáti-cos da relação fala/escrita nas produções textuais de sujeitos iniciantes na lecto-escrita” (p.58), como o objetivo de dar subsídios ao professor do novo milênio que se depara com as dificuldades da diversidade no letramento escolar sem muitas vezes ter acesso a estudos científicos que poderiam auxiliá-lo na compreensão das estruturas inovadoras da lín-gua.

O texto de Rogério S. Lourenço compõe o último capítulo dessa pri-meira parte do livro. Sob o título de Discurso e imagem nos enuncia-dos matemáticos, o autor aborda, da perspectiva da Análise do Discur-so de linha Francesa, as relações existentes entre Língua e o ensino da Matemática. Para tanto, propõe a análise dos enunciados do banco de questões da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP), com o objetivo de fazer uma crítica às concepções de ensino.

O autor corrobora a crítica feita por Cagliari (2000), para quem os problemas dos alunos com a matemática deriva, muitas vezes, de um problema de interpretação do enunciado ou da questão. Assim, para o autor do capítulo, o entrelaçamento entre língua e matemática auxiliaria no aprendizado tanto do português quanto da matemáti-ca, uma vez que as características da língua poderiam influenciar o raciocínio produtivo das respostas possíveis aos enunciados mate-máticos.

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Em sua segunda parte, o livro Olhares Transversais em Pesquisa, Tec-nologia e Inovação: o desafio da educação formal no século XXI traz as reflexões sobre o percurso dos “gêneros discursivos e das tecnologias à prática na escola”.

Nesse âmbito temático, o primeiro capítulo, A interface entre a aná-lise crítica do discurso e a comunicação científica: reflexões acerca da sua relevância acadêmica educacional, de Vânia Lisbôa da Silveira Guedes, propõe uma reflexão acerca da “contribuição da competência científica para o ensino e a pesquisa acadêmicos” (p.109). Ao colocar em relação a competência científica, na Ciência da Informação, e a análise crítica do discurso, na Linguística, visando o propósito comunicativo, a autora indica a complementaridade das Ciências da Linguagem e das Ciências da Informação no que se refere ao ciclo da informação e do conheci-mento. A importância desse capítulo está na preocupação da autora em mostrar como a comunicação científica pode contribuir para o conhe-cimento científico quando este entra em circulação por meio daquela, produzindo, assim, o que a autora chama complementaridade dessas duas ciências.

O segundo capítulo, A produção da redação escolar: uma reflexão so-bre a dissertação breve amparada na Teoria da Relevância, de Marcos Goldnadel, Aline Aver Vanin e Isabel Janostiac, aborda a complexida-de do termo dissertação, no que se refere à caracterização dos gêneros, chegando ao que os autores denominam dissertações breves. A partir do paradigma teórico da Teoria da relevância, com uma abordagem cognitivo-comunicativa, objetivam descrever e explicar a “constituição típica de um texto visto como evento comunicativo”. Para tanto, a refle-xão proposta acerca da produção de dissertações breves, fundamenta-se na obra de Sperber e Wilson (1995, 2004, 2008), entre outros, sobretudo no que se refere a aspectos como o princípio comunicativo da relevância atrelado ao princípio cognitivo, o que permitiria a elaboração por parte do ouvinte/leitor de “uma interpretação consistente por meio de estí-mulos relevantes”. Segundo os autores, a boa formação textual pauta-se sobre tais princípios de relevância que estão também ligados a noções de esforço e efeitos cognitivos.

A relação entre Educação e novas tecnologias também é abordada na segunda parte do livro, mais especificamente no terceiro capítulo, Edu-cação a distância: um espaço aberto, de Maria de Fátima S. O. Barbosa. Com um viés bastante promissor, que é a inserção do indivíduo no mer-cado de trabalho por meio da profissionalização do professor na EAD, a reflexão desenvolvida aponta para as implicações do surgimento das TICs no que se refere às forças de trabalho, chamando a atenção para a relação entre capital, trabalho e Educação. A autora aponta, a partir

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dos postulados de Lojkine (1999), para uma mudança de paradigma no campo da organização e gestão do trabalho, mudança essa que tem a competitividade como eixo norteador sendo ela, portanto, um modula-dor do tipo de trabalhador (professor) a ser formado. O capítulo conduz para uma reflexão mais ampla sobre os problemas da profissionalização e implementação da EAD no Brasil, bem como para as potencialidades desse campo de trabalho para o professor. Demonstra o investimento amplo do governo em Educação, o que propiciou, segundo a autora, o avanço da EAD, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Investi-mento esse que se limita à capacitação de profissional e infraestrutura, embutidos nos programas de governo tais como Proinfo e Moodle.

Mas até onde a Ciência da Informação pode, de fato, contribuir para uma Educação inclusiva tanto social quanto digitalmente?

A questão é também colocada em destaque no quarto e último ca-pítulo da segunda parte do livro, intitulado Competência informacional no contexto da Biblioteca escolar, de Aline Vieira do Nascimento, Arlete Sandra Mariano Alves Baubier e Raymundo das Neves Machado, que aborda a natureza e importância da competência informacional no con-texto da biblioteca escolar, cuja função educativa é destacada pelos auto-res ao afirmarem que o papel dos bibliotecários e professores é essencial para que a biblioteca seja mais do que o locus para o desenvolvimento da competência informacional, mas que, em torno dela ocorra o “desenvol-vimento de novas estratégias de busca do conhecimento e da melhoria da qualidade do ensino”. A biblioteca seria, assim, na concepção dos autores, “coadjuvante no processo de ensino-aprendizagem” (p.202).

Em torno do conceito de Information literacy, cuja tradução adotada pelos autores do capítulo é aquela proposta por Campello (2003), a sa-ber, competência informacional, não sem antes problematizá-la, o papel da biblioteca é trazido como “agente de transformação social”. Se, por um lado o papel da biblioteca escolar muda com as exigências de uma sociedade da informação e com o uso das TICs, a escola, por outro lado, deve, também, repensar seu papel em relação às bibliotecas, propondo ações integrativas que envolvam bibliotecários e docentes com o obje-tivo de desenvolver novas habilidades voltadas para o desenvolvimento da capacidade do aluno de selecionar informação, ou, nas palavras dos autores do Capítulo, ações de competência informacional.

Em sua terceira e última parte, o livro Olhares Transversais em Pes-quisa, Tecnologia e Inovação: o desafio da educação formal no século XXI traz as reflexões em torno dos “contatos interculturais, das políticas edu-cacionais à atuação do professor”.

O primeiro deles, de autoria de Mônica Maria Guimarães Savedra e Beate Höhmann, A Formação de professores bilíngües em projetos de

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revitalização de língua de imigrantes: o caso do PROEPO, problemati-za a formação de professores bilíngues a partir do projeto PROEPO – Programa de educação escolar Pomerano. O capítulo discute a “política de planificação linguística para inserção da língua pomerana na rede oficial de ensino” nas comunidades linguísticas de alguns municípios do Espírito Santo. Além disso, traz à tona questões como a cultura mi-noritária no ambiente escolar, bem como a formação de professores bi-língue português-pomerano, levando em conta as condições históricas de imigração no Espírito Santo, assim como dados estatísticos, uma vez que por meio do PROEPO, constatou-se um índice de 80% do uso coti-diano do pomerano pela comunidade. Deriva destes e de outros dados levantados pelo PROEPO a proposta de um planejamento linguístico que inclui formação de professores bilíngues, valorização da cultura mi-noritária, inserção da língua pomerana no currículo escolar.

O segundo capítulo desse eixo temático, Contato lingüístico e ensino: a contribuição de línguas indígenas na aprendizagem do português bra-sileiro, de José de Ribamar Dias Carneiro, Maria José Quaresma Vale e Antônio Luiz Alencar Miranda, traz uma reflexão sobre elementos da cultura e aspectos linguísticos das línguas aborígenes, com destaque para elaboração de materiais de ensino linguístico e orientações teóri-co-metodológicas “como oportunidade de se aliar experiência de vida, conhecimentos de mundo, valores sociais e culturais, práticas sociais, costumes, danças, cultos religiosos na produção do conhecimento regu-lar em sala de aula” (p.242-243). Os autores chamam a atenção para uma abordagem não apenas linguístico-gramatical, mas sociolinguística das línguas indígenas.

O capítulo que encerra esse eixo temático, intitulado Contribuições da Psicanálise aos desafios contemporâneos da educação, de autoria de Mariana M. da Costa, traz para o conjunto da obra a exposição de uma experiência, sob bases psicanalíticas, que utilizou o dispositivo da con-versação para viabilizar uma certa compreensão no ambiente escolar de problemáticas que atingem tanto o professor, desmotivado a ensinar, quanto o aluno, desinteressado em aprender. Tudo isso em função de uma mudança ou, nas palavras da autora, de uma crise na Educação, que produziu uma “massificação de diagnósticos” (p.279) para explicar problemas e “fracassos” escolares. Uma vez que a dificuldade passa a ser explicada por um viés psicológico, como os conhecidos Transtornos de Déficit de Atenção, Hiperatividade, Transtornos de personalidade, entre outros, a escola se isenta de compreender a própria dificuldade de edu-car, não tendo, esses efeitos, relação com a Escola, como aponta a autora do capítulo. Nesse sentido, o capítulo vai justamente trazer essas ques-tões para o âmbito da escola e problematizar a prática dos educadores

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a partir da noção de autoridade, que, segundo ela, entra em crise com a desverticalização das relações em função da mudança de paradigma do mundo.

A partir do panorama dos artigos, pode-se constatar a importância da obra Olhares Transversais em Pesquisa, Tecnologia e Inovação: o desa-fio da educação formal no século XXI que, por sua abrangência teórica, por seus olhares transversais e pela atualidade das questões que coloca em discussão, auxilia os estudiosos da linguagem na compreensão dos limites e dos desafios da educação no século XXI.

Cristiane DiasLabeurb/Nudecri - UNICAMP