Literatura e Ensino II Miolo

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Literatura e Ensino II Florianópolis - 2014 Tânia Regina Oliveira Ramos Gizelle Kaminski Corso 12º Período

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Literatura e Ensino II

Florianópolis - 2014

Tânia Regina Oliveira RamosGizelle Kaminski Corso12º

Período

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Governo Federal

Presidência da República

Ministério de Educação

Secretaria de Ensino a Distância

Coordenação Nacional da Universidade Aberta do Brasil

Universidade Federal de Santa Catarina

Reitora: Roselane Neckel

Vice-reitora: Lúcia Helena Martins Pacheco

Secretário de Educação a Distância: Cícero Barbosa

Pró-reitora de Ensino de Graduação: Roselane Fátima Campos

Pró-reitora de Pós-Graduação: Joana Maria Pedro

Pró-reitor de Pesquisa: Jamil Assreuy

Pró-reitor de Extensão: Edison da Rosa

Pró-reitora de Planejamento e Orçamento: Beatriz Augusto de Paiva

Pró-reitor de Administração: Antônio Carlos Montezuma Brito

Pró-reitor de Assuntos Estudantis: Lauro Francisco Mattei

Diretor do Centro de Comunicação e Expressão: Felício Wessling Margotti

Diretor do Centro de Ciências da Educação: Wilson Schmidt

Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a Distância

Diretor da Unidade de Ensino: Felício Wessling Margotti

Chefe do Departamento: José Ernesto de Vargas

Coordenadora de Curso: Roberta Pires de Oliveira

Coordenador de Tutoria: Cristiane Lazzarotto-Volcão

Coordenação Pedagógica: Celdon Fritzen

Comissão Editorial

Tânia Regina de Oliveira Ramos

Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos

Cristiane Lazzarotto-Volcão

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Coordenação: Ane Girondi

Design Instrucional: Daiana Acordi

Diagramação: Tamira Silva Spanhol

Capa: Tamira Silva Spanhol

Tratamento de Imagem: Tamira Silva Spanhol

Colaboradores: Ana Luiza Bazzo da Rosa, Ana Maria Alves de Souza, Daniel Soa-

res Duarte, Jade Gandra Martins, Vanessa Gandra Martins

Copyright © 2011, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSC

Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer

meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-

ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Ficha Catalográfica

E82 Literatura e ensino II : literaturas de expressão portuguesa e outras linguagens - Tânia Regina Oliveira Ramos, Gizelle Kaminski Corso - Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2011. 184p. : il.

Inclui bibliografia UFSC. Licenciatura em Letras Português na Modalidade a Distância ISBN 978-85-61482-48-0 1. 1. Literatura - estudos literários e ensino médio. 2. Literatura - inova-ções tecnológicas. 3. Linguagens - diálogos. I. Ramos, Tânia Regina Oliveira. II. Gizelle Kaminski Corso

CDU: 869.0:37

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da

Universidade Federal de Santa Catarina

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Sumário

Unidade A - Poéticas do olhar ...................................................... 9

1 Para além do livro .........................................................................................11

2 As imagens e a literatura ou Estudos literários/visualidade .........31

Unidade B - Poéticas do gesto ....................................................49

3 Teatro: uma potência milenar ou Estudos literários/teatro ..........51

4 A literatura incorporada ou Estudos literários/performance ........81

5 O cinema e as adaptações ou Estudos literários/adaptações cinematográficas ..........................................................................................87

Unidade C - Poéticas dos sentidos ......................................... 103

6 Literatura e oralidade ou Estudos literários/oralidade ...............105

7 Em busca do som ou Estudos literários/música .............................117

8 Formas da memória ou Estudos literários/memória ....................131

Unidade D - Encontro final - literatura e outras linguagens ...................................................................................... 143

9 ENEM e a literatura ...................................................................................145

10 O texto literário e as pluralidades poéticas .................................163

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Referências ...................................................................................... 171

Referências das figuras ............................................................... 180

Endereços eletrônicos ................................................................ 183

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Apresentação

E sse é o último livro-texto de Literatura e Ensino II de nosso Curso de

Letras. Um livro que procurará mostrar o diálogo da literatura com

outras linguagens, o que permitirá uma interação interdisciplinar no

Ensino Médio, considerando a proposta do Ministério da Educação: Códigos,

linguagens e suas tecnologias. Um livro para o qual fizemos escolhas e procu-

ramos dialogar com outros leitores dessas tantas linguagens: Ana Maria Alves

de Souza, formada em Artes Plásticas; Daniel Soares Duarte, formado em Le-

tras e músico; Jade Gandra Dutra Martins, jornalista e especialista no teatro

de Nelson Rodrigues; e Vanessa Dutra Martins, historiadora e especialista na

linguagem das correspondências. Ana Maria é Mestra em Antropologia e Li-

teratura; Daniel é Mestre e Doutor em Literatura; Jade e Vanessa, Doutoras em

Literatura. Contamos, também, com a pesquisa científica de Ana Luiza Bazzo

da Rosa, licenciada em Letras, sobre a literatura e o ENEM. Fizemos questão

que cada um deles contribuísse com o nosso conhecimento e o conhecimento

de vocês. Gente que faz.

Qual o objetivo dessa disciplina? Projetar a futura prática como docentes,

como profissionais e como leitores para essas outras linguagens. Formados

em Letras, professores, deverão estar abertos para essas novas linguagens. Na

medida em que nossos olhos se voltam para o século XXI, é preciso que os

estudos literários no ensino médio, especialmente, se voltem para a estética

das novas tecnologias, para a música, para o cinema, para as artes plásticas,

para o teatro, para a memória, para a oralidade. Se a estética tem um papel tão

dominante no pensamento moderno, isto resulta, em parte, da versatilidade

do conceito. Preferimos aqui ler a ideia mesma do mundo como artefato.

Na relação estética e modernidade, que norteou o nosso olhar sobre as coisas

ditas, o que se revelou mais do que a necessidade de procurar o oculto foi a fa-

cilidade de adentrar o simbólico. Lendo deste lugar, verificamos com grata sur-

presa o quanto os estudos literários, em diálogo com outras linguagens artísti-

cas, tornam-se uma audaciosa tentativa de ler o moderno e a modernidade, ou

reler a tradição, para caracterizar produtos culturais de certas formas díspares

na sua caracterização estética. Ou não seriam tão diferentes assim? Por que

não considerarmos os atos da vida social como obras-de-arte? Literatura, artes

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plásticas, música, cinema, textos memorialísticos, fotografia, correspondência,

dramaturgia, convive(ra)m harmonicamente sem fronteiras e reconhecendo

os limites de suas representações.

Para você, leitora, leitor, uma oportunidade de olhar diferente por diferentes

olhares. Pretendemos aguçar em você uma percepção mais atenta, sensível,

perspicaz, mas não menos crítica, nas relações (in)findáveis que a literatura

estabelece com as outras linguagens. E, para que esse percurso ocorra de ma-

neira proveitosa e eficiente, elaboramos dez capítulos que problematizam, dis-

cutem, evidenciam algumas dessas relações que aqui denominamos: Poéticas

do olhar, Poéticas do gesto, Poéticas dos sentidos, Poética do fazer divididas

– mas não encerradas, estagnadas – e definidas por aquilo que lhes é primeira-

mente predominante: o olhar, o gesto, o sentido, o pensar. Em Encontro final

– Literatura e outras linguagens, apresentamos uma leitura de um livro con-

temporâneo que procura mostrar a possibilidade de usarmos esta poética dos

sentidos no ensino médio. Um número ímpar de possibilidades, de relações,

de liames, de emaranhamentos.

Tânia e Gizelle

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Unidade APoéticas do olhar

Figura 1 - La Lectrice soumise. René Magritte. 1928.

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Capítulo 01Para além do livro

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Para além do livro

Uma educação pela pedra, por lições; para aprender da pedra frequentá-

-las. João Cabral de Melo Neto. In: A Educação pela Pedra.

Vamos começar nossa disciplina com uma cena. Em pleno século XXI, dois intelectuais do século passado clamam pela eternidade do livro. Incon-formados com a era virtual? Resistentes à parafernália tecnológica? Embora não nos seja conveniente arriscar uma resposta, essas são algumas das per-guntas que pairam na cabeça de alguns dos leitores a respeito do “discur-so-manifesto” instaurado em Não contem com o fim do livro (2010). Em tempos de se pensar nas relações que a literatura estabelece com as novas tecnologias , algo que – é importante ressaltar – não é de hoje, Umberto Eco e Jean-Claude Carrière aparentemente movimentam-se em sentido contrá-rio (ou não?!): querem tranquilizar os leitores para a impossibilidade do fim do livro – em seu formato tal qual o conhecemos. Precisamos ter em mente que o semiólogo e escritor italiano e o dramaturgo e roteirista francês são colecionadores natos de incunábulos e bibliófilos assumidos; são capazes de pagar caro por exemplares antigos e de correr atrás de livros que a crítica e a história sempre trataram por inexistentes.

Essa discussão ainda nos direciona para o clássico ensaio de Walter Benjamin, A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, ori-ginalmente publicado em francês, na revista do Instituto de Investigação Social Zeitschrift für Sozialforschung, em 1936. Se os incunábulos são os li-vros impressos nos primeiros tempos da imprensa, ou seja, antes de 1500, e possuem sua validade também por causa dos poucos exemplares que deles

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Figura 2 - Não contem com o fim do livro. Humberto Eco e Jean-Claude

Carriere Ed. Record, 2010.

Figura 3 - Jean-Claude Carrière. Figura 4 - Umberto Eco.

BibliófilosAmantes, colecionado-res de livros, especial-mente raros, antigos, preciosos.

IncunábulosLivros impressos nos primeiros tempos da imprensa, anteriores a 1500.

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existem, as técnicas de reprodução retiraram o caráter de unicidade, originalidade dessas e de tantas outras obras artísticas. A autenticidade da “obra de arte” vem definida pelo hic et nunc do original, e as reproduções sobremaneira “desvalorizam-no” pondo em questio-namento a noção de (ou a perda da) “aura” do objeto artístico e o seu valor de culto como realidade expos-ta. É, talvez, por essa relação entre aura, valor cultual e autenticidade, uma espécie de experiência religiosa, ritualística, sobre as obras de arte e, acrescentemos, os incunábulos, que Eco e Carrière manifestam-se a res-

peito da permanência do livro. E, como Benjamin (2000, p. 223) salienta em seu ensaio, “são notórias as imensas transformações introduzidas na litera-tura pela impressão, isto é, pela reprodução técnica da escrita”. De 1936 para cá muita coisa mudou, e não foi apenas a técnica de impressão que alterou nossa maneira de encarar a literatura, as artes, e as suas (re)produções, mas a internet, aliada às evoluções da tecnologia, foi uma das responsáveis para que pensássemos em estabelecer relações como “literatura e tecnologia”, “li-teratura digital”, “literatura eletrônica” e passássemos a pensar na existência de um Homo zappiens (VEEN; VRAKKING, 2009).

O livro de Eco e Carrière foge dos padrões tradicionais de um texto teórico. Trata-se de uma conversa-entrevista informal, na qual os estudio-

sos dialogam livremente sobre diferentes temas e assuntos (estritamente relacionados a livros, leitura, cultura por exemplo) intermediados pelo jornalis-ta francês Jean-Philippe de Tonnac. Assim, em seu discurso-manifesto, ou, poderíamos dizer, em sua sólida homenagem a Gutemberg, os autores pro-curam demonstrar que o livro (o códex impresso) sobreviveu – e ainda sobrevive – por séculos. Em-bora não seja intencional, e talvez os dois intelec-tuais pretendam demonstrar o contrário, seu ma-nifesto-homenagem-a-Gutemberg os transforma muito mais em “apocalípticos” do que propriamen-te em “integrados”.

Figura 6 - Volume antigo, manuscrito, organizado em cadernos, unidos entre si por costura e encadernação.

Figura 5 - Digitalização do acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universi-dade de São Paulo (USP).

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Capítulo 01Para além do livro

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Das duas uma: ou o livro permanecerá o suporte da leitura, ou existirá

alguma coisa similar ao que o livro nunca deixou de ser, mesmo antes

da invenção da tipografia. As variações em torno do objeto livro não

modificaram sua função, nem sua sintaxe, em mais de quinhentos anos.

O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventa-

dos, não podem ser aprimorados. (CARRIÈRE; ECO, 2010, p. 16-17).

O livro, ou a ideia daquilo que comumente conhecemos por livro, não perderá sua essência, funcionalidade, especificidade porque, segundo Eco, é como a colher, o martelo, a roda, a tesoura; não pode ser aprimorado. Se o livro desaparecer completamente, algo muito semelhante a ele será certa-mente inventado. Para os nostálgicos amantes dos livros, a tecnologia pode tornar-se protagonista e vítima de sua própria evolução e desenvolvimento. Jean-Claude Carrière, em páginas adiante, traz à tona essa questão, dizendo:

ainda somos capazes de ler um texto impresso há cinco séculos. Mas somos

incapazes de ler, não podemos mais ver, um cassete eletrônico ou um CD-

-ROM com apenas poucos anos de idade. A menos que guardemos nossos

velhos computadores em nossos porões. (CARRIÈRE; ECO, 2010, p. 24).

Se a tecnologia pode ser vítima de sua própria evolução, a exemplo do que cita o roteirista francês, nós também o somos. A respeito disso,

Vale lembrar, e a referência ali não é

gratuita, que Umberto Eco escreveu

um importante ensaio sobre a ques-

tão da cultura de massas na era tec-

nológica, intitulado: Apocalípticos e

integrados. Caso tenha interesse em

mergulhar nesta leitura, fornecemos

a referência completa: ECO, Umberto.

Apocalípticos e integrados. São Paulo:

Perspectiva, 1970.Figura 7 – Capa de uma

edição do livro Apocalípticos e Integrados.

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comenta Umberto Eco: “procurei desesperadamente a primeira versão de meu Pêndulo de Foucault, que eu devia ter gravado em disquete nos anos 1984 ou 1985, sem sucesso. Se eu tivesse batido a máquina o meu romance, ele ainda estaria aqui”. (CARRIÈRE; ECO, 2010, p. 68). E, ciente de fazer parte de uma geração que cresceu e amadureceu sem a presença dos computadores, o escritor italiano acrescenta:

nós utilizamos o computador, mas imprimimos como loucos. Para um

texto de dez páginas, imprimo cinquenta vezes. Estou matando uma

dúzia de árvores, ao passo que talvez não matasse mais de dez antes da

entrada do computador na minha vida. (CARRIÈRE; ECO, 2010, p. 101).

As novas tecnologias ocupam um lugar central nas representações do mundo, sonhos e desejos da sociedade contemporânea, discursos e instituições cujo modo de pensar organiza-se ao redor de parte da vida da sociedade e do imaginário social. O “novo” está sempre relacionado ao futuro, desenvolvimento, progresso tecnológico; novo adaptar-se à sociedade que enfrenta a dificuldade do porvir, do desconhecido, do estar em constante mudança.

Figura 9 – Angelus Novus. Paul Klee. 1920.

Figura 8 - No romance, Belbo, Diotal-levi e Casaubon são os funcionários responsáveis pela seleção de títulos para uma editora que descobriu um “ramo de ouro”: o ocultismo. Fonte: Editora Record.

O progresso, segundo Walter Benjamin.

Há um quadro de Klee que se

chama Angelus Novus. Repre-

senta um anjo que parece querer

afastar-se de algo que ele encara

fixamente. Seus olhos estão es-

cancarados, sua boca dilatada,

suas asas abertas. O anjo da his-

tória deve ter esse aspecto. Seu

rosto está dirigido para o passa-

do. Onde nós vemos uma cadeia

de acontecimentos, ele vê uma

catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as

dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos

e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e pren-

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Capítulo 01Para além do livro

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A cada novo aparato, uma nova modelação do tempo e espaço do sujeito na sociedade. Da marcação-solar ao controle de um relógio mensurável e calculável do tempo, grudado ao pulso, à presença di-gital da hora em celulares, painéis eletrônicos de hora e temperatura em ruas, bem como na tela do computador. Cada vez mais, o sujeito desfragmenta-se dentro de si, assumindo uma postura de completa in-dividualidade. Computadores, celulares, agendas eletrônicas tornam--se a extensão do elemento materializado chamado “corpo”, porque a tecnologia, segundo Jean Baudrillard (1991, p. 139), é “a sofisticação funcional de um organismo humano, que lhe permite igualar-se à na-tureza e investir contra ela triunfalmente”.

O professor José Luís Jobim, em O texto no meio digital (2009) efe-tua um mapeamento das alterações que as tecnologias fizeram na nossa vida, no cotidiano, na “textualidade”, e o quanto cada um de nós acabou por se moldar a elas. Jobim também discute esquematicamente formas mais tradicionais de publicação (livros, revistas acadêmicas, jornais de publicação diária) diante das formas digitais.

Meu ponto de vista básico é que, se quisermos entender a complexida-

de das relações entre o universo dos textos “em papel” e o dos digitais,

precisamos nos afastar de duas posições extremas: 1) a que acha que o

meio digital significa uma inovação radical, permanente e que vai subs-

tituir e eliminar de vez todos os suportes textuais que o precederam; 2)

a que acha que devemos nos manter apenas no âmbito do papel e das

formas textuais relacionadas a ele. (JOBIM, 2009, p. 59).

Em sua exposição acima, Jobim diz que precisamos nos desvencilhar de julgamentos extremos, radicais, apocalípticos, porque o meio digital não vai eliminar por completo os suportes textuais que o precederam.

de-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las.

Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele

vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa

tempestade é o que chamamos progresso. (BENJAMIN, 2010, p. 226).

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Acrescenta que não devemos ficar alheios a ele [meio di-gital], numa postura “saudosista”, inflexível, e glorificarmos apenas os textos que se encontram em papel. Nunca é de-mais lembrar, como assevera Jobim (2009, p. 61) em seu tex-to, “tecnologias são apenas ferramentas”. E o problema não reside na falta de informações, mas em sua quantidade, de como filtrá-las, de saber o que é “artigo” confiável ou não.

Em outro trecho de seu texto, o professor lança a se-guinte afirmação:

se uma certa imagem de literatura, vigente no mínimo desde o século

XVIII, a associa à forma de livro, não há também como ignorar que parte

do que chamamos de literatura no Ocidente originalmente não tinha a

forma de livro (por exemplo, as literaturas clássicas grega e latina): o que

fica claro, quando comparamos o livro às formas anteriores a ele (como

o rolo de pele de animais e também às posteriores (como os arquivos

eletrônicos), é que o livro também é uma tecnologia. Desde o rolo até

o arquivo eletrônico o que temos são técnicas diferentes de processa-

mento de texto, que se transformam em causa e/ou consequência de

práticas de leitura e escrita. (JOBIM, 2009, p. 62).

Em 1999, dez anos antes da publicação do texto de Jobim, o pro-fessor da Universidade Carlos III, de Madrid, Antonio Rodríguez de las Heras, proferiu a conferência El libro digital. Na sua fala, Heras atentou para uma questão interessante: a de que o “livro” é o objeto que melhor representa, em séculos, o humanismo, tornando-se um “bem simbóli-co” responsável por apresentar a cultura e o conhecimento acumulados. Além disso, o livro sempre “residiu” em um espaço concreto, institucio-nalizado – biblioteca, livraria, monastério, palácio, por exemplo –, e era necessário que o leitor se deslocasse a algum desses pontos para chegar à informação. Com a invenção da imprensa e a impressão dos livros em códice, o leitor passou a “carregar” o livro para onde bem quisesse, mas ainda precisando se deslocar até uma livraria, biblioteca, por exemplo, para ter acesso a ele. No ambiente digital, o leitor não precisa sair de casa, e um livro digital pode ser aberto ao mesmo tempo por diferentes

“Régis Debray pergun-tou-se o que teria acon-

tecido se os romanos e gregos tivessem sido

vegetarianos. Não tería-mos nenhum dos livros que a Antiguidade nos legou em pergaminho,

isto é, numa pele de ani-mal curtida e resistente”. (CARRIÈRE, 2010, p. 104).

Já existem diversas ini-ciativas de digitalização

de livros e Bibliotecas Digitais com diferentes formatos, visite os sites

www.literaturabrasi-leira.ufsc.br e http://

aplauso.imprensaoficial.com.br/ para comparar

as técnicas de proces-samento do texto que

foram utilizadas.

Figura 10 - Laringafone, 1929, similar ao telefone, a novidade era conversar mantendo a boca fechada, apenas com a vibração das cordas vocais. Disponível em: <http://www.life.com/gallery/25371/30-dumb-inventions#index/6>.

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Capítulo 01Para além do livro

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leitores. Em consonância com essas reflexões, o excerto acima de Jobim nos faz justamente refletir, que nós, da área das Humanas, mais espe-cificamente do curso de Letras, por conta de nosso salutar apego aos livros, acabamos por reconhecê-los como os únicos e exclusivos objetos que traduzem uma ideia de literatura pelo fato de eles terem sido prio-ritariamente o suporte dos textos. Como bem salienta Jobim, o livro (códice impresso) é uma técnica de processamento de texto, assim como o pergaminho e o texto digital.

Segundo o professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Alckmar Luiz dos Santos, em Leituras de nós: ciberespaço e literatura (2003), a confusão e, acrescentemos, a associação entre texto literário e livro é constante, e isso ocorre porque

o sucesso dessa base material – o livro – se explica por ela ter consegui-

do associar maneabilidade a permanência. O texto literário nunca saberia

permanecer idêntico a si próprio, já que sua objetividade não se confunde

com uma materialidade que na tradição impressa se assenta no livro. As-

sim, se este é linear (nem todos os livros, mas aceite-se a simplificação em

nome da imensa maioria), se o livro é então limitado e estável, o mesmo

não pode ser dito do texto, qualquer que seja ele, sobretudo o literário. O

que ocorre com a mudança da base material, da página impressa para o

meio eletrônico, é que, em certo sentido, o livro se aproxima do texto, ele

se deixa contaminar pela fluidez, por determinada imprevisibilidade, pela

não-linearidade que foram, sempre, as do próprio texto. Aquilo que no

texto é intertextualidade, no livro eletrônico encontra correspondência na

pluralidade de percursos e na heterogeneidade de materiais (associações

de matéria verbal, imagens, sons etc.). (SANTOS, 2003, p. 21-22).

E, se o livro digital, por suas notáveis diferenças, “assombra-nos”, ou tem nos assombrado quando do seu surgimento, isso também acon-teceu com os leitores de outros tempos, acostumados que estavam aos volumes de textos dispostos em rolos.

Quando começou a se difundir o códice, o leitor de volumes enrolados

resistia à ideia de que a leitura se fragmentava ao passar a folha, acostu-

VolumesA palavra ‘volume’ vem do verbo latino ‘volvere’, que significa enrolar.

HERAS, Antonio

Rodríguez de las. El

libro digital. Confe-

réncia. Disponível em:

<http://www.uoc.

edu/humfil/digithum/

digithum2/catala/Art_

Heras/index.htm>.

Acesso em: 15 fev.

2011. [A tradução do

excerto em espanhol

para o português está

sob nossa responsabi-

lidade].

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mado que estava ao suave deslocamento das colunas de texto em rolo.

Por que continuamos empenhados, uma vez que nos acostumamos a

ler com essa brusca fratura, a que também fratura nossa leitura na tela?

Por que não podem diluir-se lentamente essas palavras brancas no ne-

gro da tela, e talvez não todas de uma vez, para que outras novas se en-

caixem na parte do texto que ficou pendente? Por que não incitar com

esses recursos a sinestesia a perceber – e explorar – a profundidade da

tela? Apareceriam, então, capacidades expressivas que não são alcançá-

veis sobre o papel, mas que pertencem ao livro digital. O resultado seria

que surgiria um livro na tela que não é a virtual do códice de papel. Já

não há papel, tampouco página.

Querendo ou não, a história da leitura, da literatura, dos leitores, está completamente ligada à evolução da tecnologia do livro. E quem apresenta essa ideia é a crítica americana Katherine Hayles, em livro recentemente traduzido para a língua portuguesa, Literatura eletrônica – novos horizontes para o literário (2009). Afirma Hayles (2009, p. 20),

Assim como a história da literatura impressa está profundamente liga-

da à evolução da tecnologia do livro, que foi sendo construída em um

crescendo de inovações técnicas, a história da literatura eletrônica se

entrelaça com a evolução dos computadores digitais, à medida que es-

tes foram sendo reduzidos em tamanho.

A ensaísta vai tratar de aspectos da literatura que é “nascida” no meio digital, aquela que é criada pelo uso de um computador e (geral-mente) lida por uma tela: a literatura eletrônica. Por ser fruto de um com-putador, de combinações binárias de 0 e 1, a literatura eletrônica produz outros gêneros literários, muitas vezes, caracterizados pelas diferentes formas que o usuário os vivencia, como exemplo: a “ficção de hipertex-to” (geralmente escrita em Storyspace – programa de hipertexto criado por Michael Joyce, Jay Davi Bolter e John Smith), e a “Ficção interativa” – apresenta elementos de jogo mais acentuados. No entanto, a demarcação entre literatura e jogos de computador não é nítida, pois muitos jogos têm componentes de narrativa, ao passo que muitas obras de literatura ele-trônica têm elementos de jogo. Além disso, não podemos desconsiderar

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Capítulo 01Para além do livro

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a ideia de que os atuais jogos de video game são grandes narrativas, cujo personagem principal é o espectador, o jogador, melhor dizendo, aquele que “lê”, interage e joga; aquele que constrói a sua narrativa à medida que avança no jogo. Se muitas gerações “aprenderam” inglês jogando video-game, como negar sua eficiência em matéria de “leitura”, de “narrativi-dade”? E que oportunidade melhor para brincar de ser “Indiana Jones”, “Darth Vader” e até mesmo “Dante”, que não por intermédio de jogos? Está, sim, instaurado um novo emblema de leitores. A ficção interativa apresenta elementos de jogo mais acentuados, e não avança sem a parti-cipação dos usuários. Em páginas adiante, a autora acrescenta:

Um jogador de videogames experiente tem uma percepção intuitiva

de estratégia de jogos que pode faltar a um leitor de livros impressos;

um leitor de livros impressos sabe como coordenar a subvocalização

com percepção consciente em modos que são desconhecidos para um

jogador de videogames (HAYLES, 2009, p. 145).

O excerto acima nos faz pensar a respeito das diferentes habilida-des de leitura e de como os leitores acabam se configurando de acor-do com os meios pelos quais realizam a leitura. Questionamos: seria a literatura eletrônica “Literatura” ou apenas uma continuação experi-mental da literatura impressa? Uma tentativa de resposta seria, talvez, porque experienciamos um deslocamento originário do “eletramento” (ULMER apud HAYLES, 2009, p. 37). Ou seja, somos também leitores de textos eletrônicos, de hipertextos. Partindo da perspectiva do eletra-mento apresentada por Ulmer, nós nos tornaríamos, então: “e-leitores”?

Embora o hiperlink seja considerado um traço distintivo da li-teratura eletrônica, extrapolando a habilidade do leitor de escolher o seu percurso, as notas de rodapé, notas finais, referências, já o vinham fazendo há tempos. Segundo Hayles (2009, p. 29), “a “página”, outros-sim, torna-se uma topologia complexa que se transforma rapidamente de uma superfície estável para um espaço “jogável”, no qual o leitor é participante ativo”. Na verdade, o entendimento de página passa a ser o de rolo, mas um rolo que, em geral, se desenrola verticalmente (CHAR-TIER, 2002). E acrescentemos: um rolo que apenas se desenrola, nunca

HiperlinkAtalho para outro hipertexto.

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se fecha sobre si mesmo, extravasa possíveis fronteiras, limiares, confins, e que, acima de tudo, pode ser infinito. O que são algumas pesquisas no Google senão rolos infinitos de possibilidades? E a cada site visitado, a “consolidação” visual e virtual de hiper-rolos? De hipertextos?

Alckmar Luiz dos Santos (2003, p. 104) afirma que dois elemen-tos centrais dão fisionomia própria ao hipertexto: “sua capacidade de produzir significações: a velocidade de circulação e de desdobramento (vale dizer, de sedimentação) das obras, com base em uma arquitetura

Figura 11 - Capa de uma edição do livro A vida: modo de usar.

O caso de Georges Perec é exemplar. O escritor francês imaginou

sua obra mais importante – La Vie Mode d’Emploi – Romans (1978)

– a partir da convivência de dois modos de leitura: a convencional

e a não-sequencial. O leitor pode começar a ler o texto seguindo

a ordem dos capítulos proposta pela organização material do livro

ou a partir do sumário que, além da marca de ordem convencional,

produz “links” entre capítulos referentes ao mesmo personagem ou

O caso de Georges Perec é exemplar. O escritor francês imaginou sua

obra mais importante – La Vie Mode d’Emploi – Romans (1978) – a

partir da convivência de dois modos de leitura: a convencional e a

não-sequencial. O leitor pode começar a ler o texto seguindo a or-

dem dos capítulos proposta pela organização material do livro ou a

partir do sumário que, além da marca de ordem convencional, pro-

duz “links” entre capítulos referentes ao mesmo personagem ou ao

mesmo espaço do imóvel (elevadores, escadas – o romance narra a

vida das personagens no prédio de apartamentos da rua fictícia Si-

mon-Crubellier em Paris) através de uma numeração arábica ao lado

dos títulos dos capítulos. Assim, sem obedecer à sequência dos capí-

tulos do livro, o leitor pode seguir apenas a história de Percival Bar-

tlebooth (um dos personagens principais do livro) pulando da pá-

gina 148 da edição francesa para a 397, 454, 495 e, finalmente, 574.

(VENEGEROLES, Roberto; MURAD, Samira; VICENTE, Renato. A teia do conhecimento: modo de usar. Revista USP, n. 80, fev. 2009. . Disponível em: <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S0103-99892009000100004&script=sci_arttext>. Acesso em: 10 ago. 2011.)

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Capítulo 01Para além do livro

21

de significantes até então impossível”. Quando se refere à velocidade de circulação e de desdobramento, Santos está atentando para o fato de que, muitas vezes, passamos rapidamente (demais) de um texto a outro, bem como para os percursos ilimitados de leitura que podem ser traçados na web. Ou seja, em uma leitura, podemos nos desdobrar, nos deslocar para inúmeras janelas e, a cada vez que a intentarmos “repetir”, o percurso poderá ser diferente.

Continuemos pensando essas questões por um outro viés. Segundo Hayles (2009), a literatura no século XXI é computacional, porque qua-se todos os livros impressos são arquivos digitais antes de se tornarem livros. É assim que obras são escritas, editadas, compostas e enviadas às máquinas computadorizadas que as “transformam” em livros, nos formatos em que os conhecemos. Mas, mesmo com esse entendimen-to, Alckmar Luiz dos Santos (2003, p. 61) faz uma ressalva bastante in-teressante, ao dizer, “não deve nos surpreender que o novo campo da literariedade eletrônica ainda pague tributo a elementos e perspectivas da tradição impressa”. Um exemplo disso pode ser constatado com a pu-blicação em livro de uma novela folhetinesca na internet da escritora ca-rioca Ana Paula Maia. Em 2006, sua novela foi publicada apenas na web e, durante meses, os leitores acompanharam pela tela os 12 capítulos de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, que foi impresso (em livro) apenas em 2009, pela Editora Record, com um novo final – para possi-velmente seduzi-los/convencê-los [seus então leitores] a adquirir o livro.

Outro exemplo pode ser constatado na publicação de 416 máximas, ou posts do Twitter – como comumente diriam alguns –, do escritor gaú-cho Fabrício Carpinejar em livro intitulado: www.twitter.com/carpinejar

Leia trecho do livro em: <http://www.entreri-nhasdecachorrosepor-cosabatidos.blogspot.com/>. Acesso em: 6 mar. 2011.

Para pensar melhor sobre essas questões que vimos colocando, sugeri-

mos o “hipertexto” de André Vallias, Antilogia Laboríntica, disponível em:

<http://www.refazenda.com.br/aleer/>. Acesso em: 23 fev. 2011. Vale

lembrar que este exemplo foi retirado de Santos (2003) para demons-

trar que ligações hipertextuais pré-programadas não dão conta de to-

das as possibilidades de leitura.

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Literatura e Ensino II

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(2009). Como se sabe, o Twitter é uma rede social na qual o interlocutor, quando da elaboração de mensagens/posts/comentários, não pode ultra-passar o número de 140 caracteres. Por conta disso, os comentários são extremamente breves. Exemplificamos com dois comentários, postados em sua página do Twitter, em 23 de março de 2011:

Carpinejar, observador atento, ressalta em poucas palavras triviali-dades contemporâneas e escolheu aquelas que lhe pareceram mais im-portantes para publicar, registrar em códice impresso. Leia alguns dos posts retirados do livro:

No casamento, escolhemos um lado da cama para ficar.

Depois da separação, somos obrigados a sofrer pela cama inteira.

6:00 PM Aug 13th from web

(CARPINEJAR, 2009, p. 38).

Eu me complico de propósito. A facilidade nunca traz recompensa.

5:44 PM Aug 13th from web

(CARPINEJAR, 2009, p. 38).

Escritor se contenta com pouco. Crítico destaca voz própria e autor

suspira de alegria, festeja o que já tinha antes de publicar o livro.

5:30 PM Aug 13th from web

(CARPINEJAR, 2009, p. 38).

Sou um mau exemplo dando bons conselhos.

5:17 PM 13th from web

(CARPINEJAR, 2009, p. 39).

Figura 12 - Reprodução dos twitts do escritor Fabrício Carpinejar.

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Capítulo 01Para além do livro

23

Não há como não ser sábio na paixão, senão ela não acontece.

7:07 PM 13th from web

(CARPINEJAR, 2009, p. 39).

O escritor já possuía seu público garantido na rede e, por sua le-gião de fãs e seguidores [followers] no Twitter, tinha mais leitores do que qualquer publicação impressa poderia angariar. Mas, a ousadia e a irreverência de Carpinejar na publicação das máximas [comentários] foram responsáveis por instaurar a migração de seus posts – típicos e próprios do ambiente virtual – para o registro “eterno”, fixo, material do papel – o livro, atingindo, possivelmente, outros leitores, muitos deles prováveis desconhecedores de seus comentários virtuais. Essa passagem – ambiente virtual para o impresso – também pode significar a busca por um status de literariedade, nem que o seja como epígrafe em textos, e uma provável investida para o não esquecimento, em virtude da efe-meridade do universo digital, onde tudo pode ser atualizado, remodela-do, modificado com um clique do mouse. E, à nossa reflexão a respeito do livro de Fabrício Carpinejar, acrescentamos que nossas práticas de arte realizam-se “como produção de possibilidades de produção de ma-terialidades” (SANTOS, 2003, p. 50).

A literatura digital, constituída pelas relações homem-máquina, se-gundo Hayles, será um componente importante do cânone do século XXI.

O envolvimento do meio impresso com a mídia contemporânea tem

sido acompanhado pela persistente angústia de parte de autores de li-

vros impressos de que o romance corre o risco de ser suplantado, com

leitores sendo afastados dos livros pela televisão, por filmes de grande

sucesso nas bilheterias, videogames e pelo vasto espaço de mídia da

World Wide Web. (HAYLES, 2009, p. 165).

Essa afirmação toca novamente na questão da angústia relacio-nada ao desaparecimento do códice impresso, e suposto (im)provável afastamento dos leitores dos livros pelo interesse em outras mídias e suportes, como: televisão, filmes, video games, internet. Retomando as palavras do professor Jobim, tecnologias são apenas “ferramentas”, e é

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Literatura e Ensino II

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por conta de diferentes ferramentas (e técnicas de toda ordem) que os textos digitais possuem determinadas características, segundo Kathe-rine Hayles (2009, p. 166-167), mencionadas a seguir:

• O texto mediado por computador é em camadas (proces-sos de interpretação progressivos produzem o texto que aparece na tela);

• No texto mediado por computador, o armazenamento fica se-parado do desempenho (no impresso, armazenamento e de-sempenho unem-se no mesmo objeto, ou seja, quando um li-vro é fechado, ele funciona como um meio de armazenamento. Quando é aberto, funciona como um meio de desempenho);

• Os textos mediados por computador manifestam uma tempo-ralidade fragmentada (o leitor não tem pleno controle da ve-locidade com que o texto se torna legível – pode demorar para carregar a página a ponto de nunca ser lida).

O texto eletrônico, segundo Santos (2003, p. 107), por ser o que é, “os-cila sem cessar entre textual e hipertextual, virtual e concreto, leitura e nave-gação, autor e leitor, linguagem verbal e multimeios, centros de significação e gênese rizomática, limite e infinitude etc”. E, por suas especificidades e características, como as apresentadas acima, os textos eletrônicos provocam diferentes experiências em nós. Entre as inúmeras possíveis, Alckmar Luiz dos Santos descreve uma bastante peculiar, que merece ser citada:

Por paradoxal que pareça, uma experiência importante que podemos

ter dos textos eletrônicos ocorre justamente quando desligamos o

computador e se apaga a tela. Nesse fundo opaco, que instantes atrás

eram brilhos e pixels, aparece uma figura esvanecente, nossa fisionomia,

um pálido reflexo que somente se mostra a partir do monitor desligado.

Desligada a máquina, o que se vê ao fundo, precariamente refletida, é

então essa nossa imagem diante da tela, trazendo à tona e explicitando,

talvez, o incômodo de uma posição em que nos surpreendemos inqui-

rindo subjetividades e perturbando identidades. (SANTOS, 2003, p. 24).

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Capítulo 01Para além do livro

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Embora os textos eletrônicos estejam abertos a e sejam passíveis de inúmeras possibilidades, por seus recursos de programação, visuali-zação, audição, por exemplo, ao se desligar a tela, volta-se justamente à origem: a fisionomia de um ser humano que se vê refletido no fundo ne-gro da tela emudecida e que duela com suas inquietudes permanentes. O “desligamento” momentâneo do mundo virtual para o real se revela na própria imagem refletida no espelho provisório do monitor. Porque “não é uma nova humanidade que é gerada pelo hipertexto, mas uma mesma humanidade que se desdobra continuamente, apoiando-se em instrumentos tecnológicos sempre diferentes e, às vezes, materialmente mais complexos” (SANTOS, 2003, p. 105).

De fato, os meios eletrônico-digitais fazem com que repensemos o espaço/meio em que a leitura, a literatura, é oferecida; de onde fala o autor, e como interage com o leitor diante da presença da tecnologia. A noção de autoria também parece multiplicar-se no ambiente virtual por intermédio de comentários em blogs, páginas de relacionamento, fóruns, redes sociais. Experimentos de criação coletivos e multiforma-tos estão aparecendo como uma alternativa de produção e inovação li-terária. Segundo Santos (2003, p. 33), “o leitor do hipertexto assume a função de produtor ou organizador de uma espetacularidade, de uma encenação, de uma topologização de significantes e de significações de que ele não pode deixar de participar”.

Não podemos deixar de mencionar, quando pensamos nas relações entre literatura e tecnologia, os blogs, pretensos diários virtuais, que se transformaram em importante ferramenta para postar conteúdos na internet e tornaram-se uma forma de divulgar e produzir literatura e crítica por exemplo. Por se caracterizarem como uma publicação em etapas, instaurarem uma leitura aparentemente fragmentária, os blogs resgatam a proposta dos folhetins do século XIX no Brasil, quando os textos eram publicados em capítulos nos jornais da época.

Os blogs foram, por muito tempo, associados aos diários pessoais manuscritos por serem também um espaço para confissões, intimidades, segredos, mas possuem características que lhes são próprias e, portanto,

Inúmeros romances de Machado de Assis, por exemplo, foram escritos em folhetim. Os leitores da época, assim como os telespectadores de no-velas e seriados, aguar-davam ansiosamente a publicação do próximo capítulo.

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Literatura e Ensino II

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os diferenciam dos diários escritos no isolamento à meia luz, como é o caso de alguns blogs, usados apenas para publicar informações, textos variados, imagens, vídeos na internet. Embora seja possível restringir o acesso de determinados conteúdos, por intermédio de senhas, acesso restrito, texto cifrado, a exemplo dos pequenos cadeados dos diários, os blogs são uma espécie de diário aberto, de registro, de manutenção da própria memória para o mundo. São os acessos e os comentários dos leitores que lhe dão vida e os diferenciam dos diários íntimos. O blo-gueiro estabelece contato, diálogo, com seus interlocutores, interessados em consumir seus escritos, os quais podem comentá-los livremente. E as diferenças não param por aí. Segundo Corso e Ozelame (2011, p. 7),

O próprio blog já é uma contradição de escrita íntima, completamente

exposta ao público leitor, então, trata-se de um gênero transtextual,

um gênero não propriamente dito que pode se servir de outros gêne-

ros. O que se percebe, em entrevistas feitas com blogueiros, é que a

maioria abomina que seu blog seja classificado como uma espécie de

diário virtual, pois ele foge do formato diário de adolescente no qual

predominava a caligrafia que muitas vezes deixava perceptível o esta-

do de espírito do redator; perdem-se os sentidos como o tato, a visão

e o cheiro; o chiclete não pode mais ser colado na folha de papel; a

flor recebida por um admirador secreto não pode ser inserida no meio

das folhas para que seque com o tempo e impregne nas páginas seu

aroma velho e sua textura áspera; as cores do papel ou, até mesmo,

as diferentes cores de caneta esferográfica, giz pastel, giz de cera e

lápis de cor não se veem mais. Aspectos que foram escritos no pé da

página, palavras rasuradas, riscadas e algumas até cortadas pela força

aplicada à caneta no momento em que o diarista gostaria de apagar

de sua lembrança (diário) o que aconteceu. Perdem-se, também, as

folhas perfumadas, o cartão-postal recebido com atraso, fotos inteiras

e recortadas. A própria capa do diário não existe mais. Às vezes, uma

capa glamorosa, com o nome do diarista escrito em alto relevo por

letras feitas em forminhas de gesso. O diário grosso, de várias páginas,

aquele que precisava na metade do seu percurso anual ser amarrado,

ou por um elástico, ou quem sabe uma fitinha mimosa, agora não pos-

sui mais esses adereços, nem esse formato.

CORSO, Gizelle

Kaminski; OZELAME,

Josiele Kaminski

Corso. Diários inti-

mamente públicos:

os blogs. In: Revista

Contexto. Revista do

Curso de Pós-Gra-

duação em Letras.

UFES, n. 20, 2011.

Page 27: Literatura e Ensino II Miolo

Capítulo 01Para além do livro

27

Esses detalhes e adereços, ainda nos levam a mais uma reflexão: atualmente, muitos homens (e aí a faixa etária pode variar) possuem blogs, mas, certamente, não os teriam se o canal não fosse a internet. O diário manuscrito carregou historicamente essa “carga feminina”, que está bem marcada no discurso acima pelas “flores”, “fita”, “nome em for-minhas de gesso”, tantos outros aspectos que apelam para a visualidade, e passou a ser um “companheiro-confidente” importante na fase/passa-gem de menina para mulher.

O conceito de “diário”, cujas declarações e confissões eram geral-mente precedidas pelo “querido diário”, modificou-se ou, pensando na sua prática atualmente, ousaríamos dizer: desapareceu. Adolescentes, jovens e adultos, por exemplo, que possuem blogs e neles escrevem, inscrevem e registram, de uma maneira ou de outra, sua marca, não reconhecem e não veem os blogs como “diários virtuais”. Os blogs são, sim, um espaço para suas falas, opiniões, inquietações, preferências e, até mesmo, alteridades. E, pensando no âmbito literário, podem ser um espaço de/para leitura, escritura, divulgação, mas, também, de avalia-ção, questionamento, crítica; basta clicar no botão publish e lá estará o comentário, o artigo, a história, a impressão, a figura, o texto, emancipa-dos para o mundo. Os blogs se transformaram em uma “ferramenta” de

Caderno Goiabada

A mamãe, a minha mãe mesmo, tinha um livro, um diário, onde ela

escrevia os seus pensamentos e um dia ela disse: “Sabe filha, você

sabe que não é bonito uma mulher casada...”, olha minha mãe hein!,

parece que eu estou falando exatamente. “Não é bonito uma mulher

casada começar escrever coisas, pensamentos, devaneios, porque

eu me lembro que o papai dizia que mulher casada quando começa

a escrever essas coisas só pode ser bandalheira”, essa palavra ban-

dalheira é uma expressão bastante antiga, mas muito boa na época.

Fala da escritora Lygia Fagundes Telles em entrevista ao programa Roda Viva, 1996. Dispo-nível em: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/101/entrevistados/lygia_fagundes_tel-

les_1996.htm

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Literatura e Ensino II

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transtextualidades; de textualidades contemporâneas. Um espaço para textos e pretextos. Os blogs tornaram-se uma oportunidade para discu-tir literatura, para escrever literatura, para se lançar escritor sem impe-dimentos; indo e vindo de acordo com o gosto do público, geralmente confirmado pelo número de acessos, pela quantidade de comentários.

Assim, com este capítulo, pretendemos demonstrar as relações que a literatura estabelece com a(s) tecnologia(s), chamando a atenção do leitor para a existência de uma literatura sem papel, de uma literatura que, segundo Hayles (2009), é constituída primeiramente por arquivos digitais antes de se tornar livro, e que, portanto, já vem se fazendo ele-trônica, digital, há bastante tempo sem o saber.

Batendo papo

1) O que literatura digital, literatura eletrônica, significa para você? E qual é, ou tem sido, a sua relação com ela? Responda a pergunta dialogando com a afirmação de Katherine Hayles (2009, p. 20): “Tentar ver a literatura eletrônica apenas através da lente da obra impressa é, de forma significativa, não vê-la”.

2) Comente criticamente a seguinte afirmação de Antonio Rodrí-guez de las Heras (1999):

O homem veio sonhando com o livro-mundo, com este livro no qual se

poderia conter tudo, neste livro único que poderia guardar todo o saber.

É um sonho cultural que se manifestou em inúmeros autores. Flaubert,

por exemplo, intentou, nos seus últimos dez anos, um romance enciclo-

pédico – Bouvard et Pécuchet – que recorria a todos os saberes. Goethe

projetou um romance sobre o universo e Novalis um “livro absoluto”. El li-

bro de arena é, na descrição de Borges, um livro com infinitas páginas no

qual nenhuma é a primeira e nenhuma é a última. […]. Uma aspiração

que sobre o suporte material do papel não se pode alcançar. Em todo o

caso, aproximamo-nos de sua expressão plástica como o faz o escultor

Nesta oportunidade, exemplificamos com

dois endereços de blogs de duas bibliotecas: o

da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes,

disponível em: < http://blog.cervantesvirtual.com/ >, e o da Biblio-teca Barca dos Livros,

disponível em: <http://noticiasdabarca.word-

press.com/>.

Page 29: Literatura e Ensino II Miolo

Capítulo 01Para além do livro

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argentino Vanarsky em sua escultura móvel, o Libro-mundo. Porém, re-

almente, isto não é possível com os materiais que temos neste lado do

espelho, neste lado da tela.

3) Leia atentamente a seguinte afirmação:

Quando a literatura salta de um meio para outro – da oralidade para

a escrita, do códex manuscrito ao livro impresso mecanicamente, e à

textualidade eletrônica – ela não deixa para trás o conhecimento acu-

mulado e inscrito em gêneros, convenções poéticas, estruturas narrati-

vas, tropos figurativos, e assim sucessivamente. Em vez disso, esse co-

nhecimento é levado adiante para o novo meio tipicamente por uma

tentativa de reproduzir os efeitos do meio anterior de acordo com as

especificidades do novo meio (HAYLES, 2009, p. 74).

No decorrer deste tópico e, relembrando a poesia visual, você pôde observar algumas relações que a literatura estabelece com a(s) tecnologia(s). Entre os exemplos mencionados, que outros poderiam ser acrescentados? Cite um exemplo de como a literatura foi levada para um novo meio por uma tentativa de reprodução dos efeitos do meio anterior. Para responder a essa questão, tenha em mente o exemplo dos blogs, pretensos diários virtuais e de outras escritas na web.

Page 30: Literatura e Ensino II Miolo

Literatura e Ensino II

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Leia mais!

Fornecemos aqui algumas indicações de leitura para que você possa se

aprofundar no assunto.

HERAS, Antonio Rodríguez de las. El libro digital. Conferéncia. Dis-ponível em: <http://www.uoc.edu/humfil/digithum/digithum2/catala/Art_Heras/index.htm>. Acesso em: 15 fev. 2011.

JOBIM, José Luís. O texto no meio digital. In: Remate de Males. Campi-nas, SP: UNICAMP, 2009, p. 59-69. Disponível em <http://www.iel.uni-camp.br/revista/index.php/remate/article/viewFile/1065/850 > Acesso em: 12 jan. 2011.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. 2. ed São Paulo, SP: Ed. 34, 2000.

______. O que é o virtual? São Paulo, SP: Editora 34, 1996.

NEITZEL, Adair de Aguiar; SANTOS, Alckmar Luiz dos (Orgs.). Ca-minhos cruzados: literatura e informática. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2005.

SANTOS, Alckmar Luiz dos. Leituras de nós: ciberespaço e literatura. São Paulo: Itaú Cultural, 2003. (Rumos Itaú Cultural Transmídia).

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Capítulo 02As imagens e a literatura

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As imagens e a literatura ou Estudos literários/visualidade

O barroco prolixo com todos os seus tiques

e o reto, tão correto, direto ao que insiste,

são linguagens que raramente coexistem:

só os vi na Capela

Dourada do Recife.

João Cabral de Melo Neto.

In: Museu de tudo.

Muito poderíamos discorrer sobre as interligações entre Literatura e Artes Visuais. Faremos aqui, no entanto, um recorte, procurando ver questões relativas ao entrelaçamento palavra e imagem, mais especifica-mente, palavra e ilustração, palavra e pintura, como um roteiro de leitu-ra que você poderá aprofundar e ampliar. À primeira vista, poderá pare-cer complexo o que aqui vamos apresentar, mas você vai ver como, aos poucos, vai entender e assimilar noções importantes para compreender de que maneira literatura e visualidades começaram a se relacionar.

Comecemos com as considerações sobre as primeiras palavras e imagens.

Na formação da linguagem por meio de sig-nos, escrita e desenho têm uma origem em comum, à medida que eram expressos para representar uma mensagem. No estudo das civilizações mais anti-gas, vemos logogramas representando palavras em desenhos esquemáticos. Um logograma é um sím-bolo ou um grafema único que representa um con-ceito abstrato da realidade ou um conceito concre-to; como seu desdobramento, temos o ideograma, um conceito representado por um símbolo gráfico, e um pictograma, um conceito diretamente repre-sentado por uma ilustração.

2

Figura 13 - Escrita Maia.

Este capítulo contou com a colaboração da professora e pesquisadora Ana Maria Alves de Souza.

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Literatura e Ensino II

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Os logogramas formam a base dos sistemas de escritas mais antigos da humanidade de que temos notícia, como: a escrita cuneiforme, os hieróglifos e os glifos maias. A escrita cuneiforme tem este nome por ser feita com objetos em forma de cunha sobre tabuletas de argila, e foi desenvolvida pelos sumérios; junto com os hieróglifos egípcios foram utilizadas cerca de 3.500 anos a.C. Através de pictogramas, representa-vam formas do mundo, tornando-se cada vez mais estilizadas; inicial-mente feitas em sequências verticais, passaram depois a ser desenvolvi-das em sequências horizontais. Durante aproximadamente 3 mil anos, a escrita cuneiforme foi amplamente utilizada na Mesopotâmia.

Os glifos maias são o único sistema de escrita mesoamericano até hoje decifrado – as formas mais antigas datam do século III a. C. –, e foi utiliza-da [a escrita] até pouco tempo depois da chegada dos espanhóis no século XVI. Era gravada de diversas maneiras, seja em estuque, em peças de cerâ-mica, em códices de papel, em madeira ou em pedra, consistindo em glifos laboriosamente cunhados e às vezes pintados. Seu papel era feito de folhas de figo misturadas com algodão e outros elementos, mas a maioria dos có-dices que resistiram até o nosso tempo são de cerâmica, uma vez que, na violência da queima das cidades, a argila endureceu com o fogo, tornando--se mais resistente. A escrita maia era feita em dois blocos desenhados, de cima para baixo, da esquerda para a direita, como se vê nestas imagens.

Por serem fundamentalmente logográficos, os glifos maias repre-sentavam palavras ou sílabas. Havia também um tipo de título real que era o glifo-emblema, apresentando-se como um símbolo desenhado de forma elaborada representando a ilustração da realeza; as cidades mais importantes tinham seu próprio glifo-emblema.

A escrita dos sumérios e dos egípcios foi chamada de figurativa justamente por se utilizar amplamente de pictogramas. Diz-se que a palavra é formada por um rébus, quando um desenho é usado para re-presentar um som, uma sílaba ou um fonograma, sendo lidos ao mes-mo tempo imagem e texto. O primeiro passo para a formação do siste-ma de escrita chamado de ideograma foi a associação de pictogramas, amplamente utilizado tanto no Egito, quanto na China.

EstuqueArgamassa feita

geralmente com pó de mármore, cal fina,

gesso e areia.

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Capítulo 02As imagens e a literatura

33

Qual a razão de estabelecermos essas informações culturais apa-rentemente tão técnicas e tão históricas? Para que chegássemos exata-mente à ideia do pictórico, que começou com os logogramas repre-sentando palavras em desenhos esquemáticos, e da relação que hoje podemos estabelecer entre literatura e artes plásticas.

Veja este quadro.

Figura 14 - Primeira Missa. Victor Meirelles. 1861.

O que você percebe é que as artes plásticas ocupam fisicamente um lugar no espaço e são captadas pelo olhar. A literatura, por sua vez, precisa muito mais das imagens retidas pela memória. Para ilustrar ainda melhor essa rela-ção nas experiências do olhar, escolhemos, no contexto das literaturas de ex-pressão portuguesa, um poema de Olavo Bilac, chamado Profissão de Fé, um exercício de metalinguagem em que compara o ofício do poeta com o ofício do escultor e uma passagem de O Guarani, em que José de Alencar descreve o cenário pela minúcia dos detalhes e pelo descritivismo pictórico.

Não quero o Zeus Capitolino

Hercúleo e belo,

Talhar no mármore divino

Com o camartelo.

Que outro - não eu! - a pedra corte

Para, brutal,

Erguer de Atene o altivo porte

Descomunal.

Mais que esse vulto extraordinário,

Que assombra a vista,

Seduz-me um leve relicário

De fino artista.

Invejo o ourives quando escrevo:

Imito o amor

Com que ele, em ouro, o alto relevo

Faz de uma flor.

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Literatura e Ensino II

34

Imito-o. E, pois, nem de Carrara

A pedra firo:

O alvo cristal, a pedra rara,

O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,

Sobre o papel

A pena, como em prata firme

Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem,

A ideia veste:

Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem

Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima

A frase; e, enfim,

No verso de ouro engasta a rima,

Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina,

Dobrada ao jeito

Do ourives, saia da oficina

Sem um defeito:

E que o lavor do verso, acaso,

Por tão subtil,

Possa o lavor lembrar de um vaso

De Becerril.

E horas sem conto passo, mudo,

O olhar atento,

A trabalhar, longe de tudo

O pensamento.

Porque o escrever - tanta perícia,

Tanta requer,

Que oficio tal... nem há notícia

De outro qualquer.

Assim procedo. Minha pena

Segue esta norma,

Por te servir, Deusa serena,

Serena Forma!

Deusa! A onda vil, que se avoluma

De um torvo mar,

Deixa-a crescer; e o lodo e a espuma

Deixa-a rolar!

Blasfemo em grita surda e horrendo

Ímpeto, o bando

Venha dos bárbaros crescendo,

Vociferando...

Deixa-o: que venha e uivando passe

- Bando feroz!

Não se te mude a cor da face

E o tom da voz!

Olha-os somente, armada e pronta,

Radiante e bela:

E, ao braço o escudo a raiva afronta

Dessa procela!

Este que à frente vem, e o todo

Possui minaz

De um vândalo ou de um visigodo,

Cruel e audaz;

Page 35: Literatura e Ensino II Miolo

Capítulo 02As imagens e a literatura

35

Este, que, de entre os mais, o vulto

Ferrenho alteia,

E, em jato, expele o amargo insulto

Que te enlameia:

É em vão que as forças cansa, e â luta

Se atira; é em vão

Que brande no ar a maça bruta

A bruta mão.

Não morrerás, Deusa sublime!

Do trono egrégio

Assistirás intacta ao crime

Do sacrilégio.

E, se morreres por ventura,

Possa eu morrer

Contigo, e a mesma noite escura

Nos envolver!

Ah! ver por terra, profanada,

A ara partida

E a Arte imortal aos pés calcada,

Prostituída!...

Ver derribar do eterno sólio

O Belo, e o som

Ouvir da queda do Acropólio,

Do Partenon!...

Sem sacerdote, a Crença morta

Sentir, e o susto

Ver, e o extermínio, entrando a porta

Do templo augusto!...

Ver esta língua, que cultivo,

Sem ouropéis,

Mirrada ao hálito nocivo

Dos infiéis!...

Não! Morra tudo que me é caro,

Fique eu sozinho!

Que não encontre um só amparo

Em meu caminho!

Que a minha dor nem a um amigo

Inspire dó...

Mas, ah! que eu fique só contigo,

Contigo só!

Vive! que eu viverei servindo

Teu culto, e, obscuro,

Tuas custódias esculpindo

No ouro mais puro.

Celebrarei o teu oficio

No altar: porém,

Se inda é pequeno o sacrifício,

Morra eu também!

Caia eu também, sem esperança,

Porém tranquilo,

Inda, ao cair, vibrando a lança,

Em prol do Estilo!

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Leia, agora, o trecho de O Guarani, de José de Alencar, e obser-ve como o romancista elabora por intermédio das descrições, minúcias e detalhes, uma verdadeira obra-de-arte; uma tela somente arquivada pela memória da leitura.

I CENÁRIO

De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se

dirige para o norte, e engrossado com os mananciais que recebe no seu

curso de dez léguas, torna-se rio caudal.

É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como

uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraí-

ba, que rola majestosamente em seu vasto leito.

Dir-se-ia que, vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, alti-

vo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés do

suserano. Perde então a beleza selvática; suas ondas são calmas e serenas

como as de um lago, e não se revoltam contra os barcos e as canoas que

resvalam sobre elas: escravo submisso, sofre o látego do senhor.

Não é neste lugar que ele deve ser visto; sim três ou quatro léguas

acima de sua foz, onde é livre ainda, como o filho indômito desta

pátria da liberdade.

Aí, o Paquequer lança-se rápido sobre o seu leito, e atravessa as flores-

tas como o tapir, espumando, deixando o pêlo esparso pelas pontas

do rochedo, e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira.

De repente, falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua um

momento para concentrar as suas forças, e precipita-se de um só arre-

messo, como o tigre sobre a presa.

Depois, fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra, e ador-

mece numa linda bacia que a natureza formou, e onde o recebe como

em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes.

Disponível em: www.literaturabrasileira.

ufsc.br. Acesso em: 01 abr. 2011

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Capítulo 02As imagens e a literatura

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A vegetação nessas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vi-

gor; florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio, que

corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos

leques das palmeiras.

Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza, sublime artista,

tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos, em que o

homem e apenas um simples comparsa.

No ano da graça de 1604, o lagar que acabamos de descrever estava de-

serto e inculto; a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia menos

de meio século, e a civilização não tivera tempo de penetrar o interior.

Entretanto, via-se à margem direita do rio uma casa larga e espaçosa,

construída sobre uma eminência, e protegida de todos os lados por

uma muralha de rocha cortada a pique.

A esplanada, sobre que estava assentado o edifício, formava um semi-

-círculo irregular que teria quando muito cinquenta braças quadradas;

do lado do norte havia uma espécie de escada de lajedo feita metade

pela natureza e metade pela arte.

Descendo dois ou três dos largos degraus de pedra da escada, encontra-

va-se uma ponte de madeira solidamente construída sobre uma fenda

larga e profunda que se abria na rocha. Continuando a descer, chegava-

-se à beira do rio, que se curvava em seio gracioso, sombreado pelas

grandes gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens.

Aí, ainda a indústria do homem tinha aproveitado habilmente a nature-

za para criar meios de segurança e defesa.

De um e outro lado da escada seguiam dois renques de árvores, que,

alargando gradualmente, iam fechar como dois braços o seio do rio;

entre o tronco dessas árvores, uma alta cerca de espinheiros tornava

aquele pequeno vale impenetrável.

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A casa era edificada com a arquitetura simples e grosseira, que ainda

apresentam as nossas primitivas habitações; tinha cinco janelas de fren-

te, baixas, largas, quase quadradas.

Do lado direito estava a porta principal do edifício, que dava sobre um

pátio cercado por uma estacada, coberta de melões agrestes. Do lado

esquerdo estendia-se até à borda da esplanada uma asa do edifício, que

abria duas janelas sobre o desfiladeiro da rocha.

No ângulo que esta asa fazia com o resto da casa, havia uma coisa que

chamaremos jardim, e de fato era uma imitação graciosa de toda a natu-

reza rica, vigorosa e esplêndida, que a vista abraçava do alto do rochedo.

Flores agrestes das nossas matas, pequenas árvores copadas, um esten-

dal de relvas, um fio de água, fingindo um rio e formando uma pequena

cascata, tudo isto a mão do homem tinha criado no pequeno espaço

com uma arte e graça admirável.

À primeira vista, olhando esse rochedo da altura de duas braças, donde se

precipitava um arroio da largura de um copo de água, e o monte de gra-

ma, que tinha quando muito o tamanho de um divã, parecia que a natu-

reza se havia feito menina e se esmerara criar por capricho uma miniatura.

O fundo da casa, inteiramente separado do resto da habitação por uma

cerca, era tomado por dois grandes armazéns ou senzalas, que serviam

de morada a aventureiros e acostados.

Finalmente, na extrema do pequeno jardim, à beira do precipício, via-

-se uma cabana de sapé, cujos esteios eram duas palmeiras que ha-

viam nascido entre as fendas das pedras. As abas do teto desciam até

o chão; um ligeiro sulco privava as águas da chuva de entrar nesta

habitação selvagem.

Agora que temos descrito o aspecto da localidade, onde se deve passar a

maior parte dos acontecimentos desta história, podemos abrir a pesada

porta de jacarandá, que serve de entrada, e penetrar no interior do edifício.

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Capítulo 02As imagens e a literatura

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A sala principal, o que chamamos ordinariamente sala da frente, respi-

rava um certo luxo que parecia impossível existir nessa época em um

deserto, como era então aquele sitio.

As paredes e o teto eram calados, mas cingidos por um largo florão de

pintura a fresco; nos espaços das janelas pendiam dois retratos que re-

presentavam um fidalgo velho e uma dama também idosa.

Sobre a porta do centro desenhava-se um brasão de armas em campo

de cinco vieiras de ouro, riscadas em cruz entre quatro rosas de prata so-

bre palas e faixas. No escudo, formado por uma brica de prata orlada de

vermelho, via-se um elmo também de prata, paquife de ouro e de azul, e

por timbre um meio leão de azul com uma vieira de ouro sobre a cabeça.

Um largo reposteiro de damasco vermelho, onde se reproduzia o mes-

mo brasão, ocultava esta porta, que raras vezes se abria, e dava para um

oratório. Defronte, entre as duas janelas do meio, havia um pequeno

dossel fechado por cortinas brancas com apanhados azuis.

Cadeiras de couro de alto espaldar, uma mesa de jacarandá de pés tor-

neados, uma lâmpada de prata suspensa ao teto, constituíam a mobília

da sala, que respirava um ar severo e triste.

Os aposentos interiores eram do mesmo gosto, menos as decorações

heráldicas; na asa do edifício, porém, esse aspecto mudava de repente,

e era substituído por um quer que seja de caprichoso e delicado que

revelava a presença de uma mulher.

Com efeito, nada mais loução do que essa alcova, em que os brocatéis

de seda se confundiam com as lindas penas de nossas aves, enlaçadas

em grinaldas e festões pela orla do teto e pela cúpula do cortinado de

um leito colocado sobre um tapete de peles de animais selvagens.

A um canto, pendia da parede um crucifixo em alabastro, aos pés do

qual havia um escabelo de madeira dourada.

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Pouco distante, sobre uma cômoda, via-se uma dessas guitarras es-

panholas que os ciganos introduziram no Brasil quando expulsos de

Portugal, e uma coleção de curiosidades minerais de cores mimosas e

formas esquisitas.

Junto à janela, havia um traste que à primeira vista não se podia definir;

era uma espécie de leito ou sofá de palha matizada de várias cores e

entremeada de penas negras e escarlates.

Assim, aos leitores do século XIX, as imagens de um cenário, fundamentais para a locação dos episódios, bem como as caracte-

rísticas dos personagens de O Guarani – romance que tomamos como exemplo –, ficavam reservadas à descrição pictórica do autor. E as ima-gens eram desenhadas e elaboradas na mente do leitor através das pa-lavras, dos artifícios e das artimanhas descritivas dos escritores. Outros exemplos, ainda, poderiam ser dados, e a lista certamente seria imensa. Voltamos, porém, a buscar entender essa outra linguagem que dialoga com o texto literário, com a sua expressão gráfica.

Vamos continuar nosso entendimento desta linguagem tão pró-xima da literatura. Os elementos mínimos constitutivos da linguagem gráfica são o ponto, a linha e a cor no plano, formando uma escrita que é também imagética, ou seja, o aspecto visual da linguagem verbal. A ca-ligrafia, escrita a mão, é formada pelos desdobramentos da linha no es-paço e é o primeiro passo para a formação do livro. No Ocidente, a letra tipográfica, ou seja, marcada pela impressão de caracteres na invenção da imprensa, terá maior importância que seu aspecto lúdico e visual, di-ferentemente da caligrafia chinesa e japonesa, em que os caracteres são apreciados também pela sua qualidade de desenho. Pode-se dizer que a caligrafia é uma arte da linha.

Nos manuscritos medievais, letras iniciais de algumas partes impor-tantes do texto eram desenhadas e apresentavam tamanho bem maior que as outras, procurando chamar a atenção do leitor. São então chama-das de letras capitulares e podiam ter forma ornamental ou figurativa, conhecidas também, em seu aspecto visual, como iluminuras na medida

Figura 15 - Foto de uma ourivesaria.

Figura 16 - Letra capitular e iluminuras.

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Capítulo 02As imagens e a literatura

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em que passavam a haver no texto também ilustrações que facilitavam a leitura. Devemos fazer uma ressalva aí, pois nem tudo transcorria com igual paralelismo entre as artes visuais e o texto. Muitas vezes, quando as imagens das iluminuras eram figurativas, elas continham figuras que nada tinham a ver com o texto, numa verdadeira antítese. Eram utiliza-das imagens de diferentes animais e também a figura humana.

O historiador da arte, Arnold Hauser, ao comentar a História Social da Arte e da Literatura, menciona os diferentes estilos e influências das iluminuras. Diz ele que as iluminuras eram uma arte refinada praticada por monges instruídos e adotadas para um público igualmente instruído. Receberam, no entanto, em diversos lugares, a influência do estilo cam-ponês. Assim, por exemplo, os monges irlandeses absorveram o estilo dos camponeses germânicos, nas migrações, com suas formas geométricas. É possível então observar, ainda segundo este historiador, que formas de plantas, animais e formas humanas fossem convertidas em pura caligrafia (HAUSER, 1998, p. 146), perdendo seus traços de substância corporal e orgânica. A arte da iluminura mais conhecida, no entanto, era veiculada pelos manuscritos iluminados romanos ou bizantinos. A aproximação nas iluminuras de formas da natureza pode ser vista também na poesia da época, em sua descrição da natureza, estabelecendo um jogo às vezes discrepante com a geometrização das formas tidas como naturais.

Ainda, após a impressão tipográfica dos livros, deixava-se um espa-ço em branco para que as letras capitulares fossem posteriormente de-senhadas e pintadas, tamanha sua importância, chegando, essas letras, a adquirir tramas complexas de arabescos com curvas em todas as dire-ções, como na caligrafia barroca na Alemanha, nos séculos XVII e XVIII.

Podemos ainda dizer que as palavras, de uma forma ou de outra, sempre apareceram na pintura ocidental, seja nas pinturas religiosas, res-saltando alguma passagem de algum santo, seja informando o nome do artista ou até mesmo do modelo, e isso se tornou comum depois do Re-nascimento. Na cultura popular, por exemplo, vemos muitas palavras es-critas nas pinturas dos ex votos, que eram pinturas feitas em agradecimen-to por alguma graça alcançada, geralmente a cura de algum mal físico.

Ex votosDo latim, significa: “por força de uma promes-sa, de um voto” ou “o voto realizado”.

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Deixando, no entanto, seu caráter informativo e passando a com-por imagens plásticas, as palavras se proliferaram e ganharam desta-que na expressão pictórica a partir do início do século XX. Na revolu-ção cubista, por exemplo, Pablo Picasso e Georges Braque fundaram uma nova pintura, que incluía também recortes de jornal colados, em meados de 1907 a 1914. As pinturas cubistas podiam ter também pala-vras e pedaços de palavras pintados. O historiador da arte Giulio Car-lo Argan (1992, p. 430), ao comentar a Arte Moderna, ressalta que as letras do alfabeto que aparecem nas pinturas cubistas, aparentemente não guardam nenhuma relação com os objetos ali representados e são apenas tipos formais que indicam que letras e objetos da realidade são signos que só significam algo na medida em que são combinados entre si. Diz Argan que Picasso aproveitava as linhas retas e curvas das letras apontando que o princípio da significação verbal e visual é o mesmo.

Inserindo letras alfabéticas de conhecimento amplo, ele abria chaves de leitura do quadro. Já Braque, ao decompor os planos, contrastava objetos como uva e maçã, com a imagem plana das letras, indicando um plano-limite e reduzindo os objetos a símbolos gráficos. A leitura então se dava não por volumes, mas por planos cromáticos. John Golding (apud STANGOS, 2000, p. 54-55) ressalta que Braque, em 1911, pela primeira vez, fez aparecer, no quadro, letras pintadas a estêncil, caracte-rística esta que logo foi adotada por muitos e distinguiu a pin-tura cubista. Mais tarde, além das letras pintadas e dos jornais colados, toda sorte de papéis tipográficos foram utilizados, como exemplo, um maço de cigarros. A proposta cubista era a de fazer um “tableau-object” (quadro-objeto), onde a pintura não refletia ou imitava o mundo externo, mas recriava-o de ou-tra maneira, competindo com a realidade da natureza. Observe como isso acontece neste quadro, de Pablo Picasso.

Para o dadaísmo as palavras foram muito importantes, não ape-nas porque pintores e poetas conviviam juntos e editavam revistas propagando suas ideias, mas porque, nas telas, essas palavras adqui-riam uma revolução de sentido. Começando em 1916, quando Hugo Ball, poeta e filósofo alemão, fundou o Cabaré Voltaire, em Zurique,

Figura 17 - Mulher com livros. Pablo Picasso. 1932.

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Capítulo 02As imagens e a literatura

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esse movimento artístico foi marcado pela contestação de qualquer espécie de tradição que o mundo em guerra colocava em questiona-mento. Os poemas dadaístas podiam ser elaborados recortando-se frases de um jornal que, metidas num saco e agitadas, seriam retira-das ao acaso, formando a expressão artística – este procedimento será utilizado também depois pelos surrealistas. Agressivos, os dadaístas eram mestres em produzir obras transitórias e encenadas em demonstrações públicas, aproximando-se do teatro e do que depois seria chamado de performance. Estes artistas questio-navam até mesmo a existência da arte e da figura do artista, indo contra qualquer ideia burguesa de mercadoria e aprego-ando que poesia e pintura podiam ser produzidas por qualquer um. Suas atitudes às vezes mobilizavam até mesmo a polícia, sob a acusação de fraude.

Em sua forma plástica, produziam objetos destituídos de qualquer função, uma inovação para a época e que repercute até os nossos dias. É o caso do urinol que Marcel Duchamp chamou de Fonte, inscrevendo-a na Exposição dos Indepen-dentes, em Nova York, sob o pseudônimo de R. Mutt.

Hoje essa imagem é extremamente difundida nos livros de arte, mas, na época, causou escândalo ao júri, que a recusou. Dawn Ades (apud STANGOS, 2000, p. 97-187) menciona alguns exemplos pictóricos dada-ístas, como o caso do quadro apresentado por Francis Picabia na primei-ra matinée dadá, realizada em janeiro de 1921, em Paris. Nele vemos a importância das palavras, uma vez que consistia em uma tela com traços pretos e algumas inscrições onde se lia “haut” (topo), escrita na parte infe-rior da tela, e “bas” (base), escrita na parte superior da tela. Havia também a palavra “frágil” e, com letras vermelhas imensas, na base da tela, lia-se “L.H.O.O.Q. (Elle a chaud ao cul)”, inscrição esta que tem um jogo de so-noridade na língua francesa, significando “ela tem fogo no rabo”. Causan-do polêmica, outra obra de Picabia mostrava a atitude dadaísta perante a arte: trata-se de L’Oeil Cacodylate, que questiona o valor de uma pintura que se baseia na assinatura do artista.

Figura 18 - Fonte. Marcel Duchamp. 1917.

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Nessa tela, Picabia convidou várias pessoas, das letras e das artes, a assinarem seu nome, de forma que a tela toda fosse co-berta consistindo somente nisso, como se vê na imagem.

E a arte pop? A arte pop é assim caracterizada por veicular plasticamente o cotidiano marcado pela indústria de consumo de massa. Surgindo em meados dos anos 50, floresceu rapidamen-te nos EUA e Inglaterra, espalhando-se mundialmente. Edward Lucie-Smith escreveu um interessante artigo, intitulado Conceitos da Arte moderna: com 123 ilustrações (apud STANGOS, 2000) em 1966, ressaltando as características com que a arte pop se difundia, ao copiar procedimentos dadaístas, porém sem o acento contes-tatório. A Fonte, de Duchamp, passou então a ser apreciada por suas qualidades estéticas, assim como qualquer objeto produzido

pela indústria. Observando de perto, vemos que cada artista adquire um modo de expressão próprio, preferindo determinadas imagens ou pala-vras. Andy Warhol, por exemplo, queria eliminar totalmente a ideia de arte manual. Transferia imagens fotográficas para as telas, como as de Ma-rilyn Monroe ou a lata de sopas Campbell, com o letreiro de seu rótulo estampado plasticamente como composição. Roy Lichtenstein é outro ar-tista pop que se tornou precursor de uma expressão depois muito difun-dida, porém fazendo suas reproduções à mão, uma a uma, como salienta Argan, historiador da arte, anteriormente citado. Lichtenstein ampliava histórias em quadrinhos fazendo imensas telas com imagens e textos (veja sua tela ao lado). Para Smith, ele expressava todo um debate existente na época com análises profundas de velhos livros de histórias em quadri-nhos, de westerns e de revistas baratas de ficção científica.

No Brasil, Cláudio Tozzi recebeu influência direta de Li-chtenstein, ampliando também quadrinhos, como se vê na tela intitulada A guerra acabou, de 1968, quadro destacado por Ro-berto Pontual ao comentar a coleção Gilberto Chateaubriand de Arte Brasileira Contemporânea. Com suas diferentes preocupa-ções estilísticas, os artistas pop abordavam a tarefa de criar cons-ciência sobre os significados da existência contemporânea. As-sim, uma máquina de cortar grama, um chuveiro, uma bacia, um hambúrguer, uma vassoura, um edredom e um travesseiro etc.,

Figura 19 - L’Oeil Cacodylate. Francis Picabia. 1921.

Figura 20 - In the car. Roy Lichtenstein. 1963.

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Capítulo 02As imagens e a literatura

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contra um fundo de texturas pictóricas, podiam compor a cena do deleite estético. Conforme salientou o Prof. Dr. Décio Torres da Cruz, da UFBA, em palestra na UFSC, em abril de 2010, o movimento pop teve também vertentes de contestação política, principalmente se pensarmos o período em que se propagou, entre ditaduras na América Latina. O pop fazia manifestações antibélicas, propunha ideias contrárias à arte acadêmica e lan-çava uma espécie de “estética do lixo”, em oposição aos modelos apresentados por aqueles que controlam a sociedade de consumo. As colagens, tanto no sentido de técnica plástica quanto no sentido lite-rário, e até mesmo musical, são uma forma de expressão característica da arte pop. O pop floresceu ao mesmo tempo em que se difundiram as ideias de pós-modernismo, questão esta que pode ser aprofundada tanto na área da literatura quanto nas artes visuais.

Por último, vamos retomar noções do concretismo. Os poetas Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos buscaram, na superfí-cie gráfica e visual, a superação do verbalismo, do subjetivismo e da lingua-gem poética tradicional. Décio Pignatari dizia: “antes da poesia concreta: versos são versos. Com a poesia concreta: versos não são mais versos”. Ele dizia isso exatamente pelas ligações que a poesia passou a ter com a música contemporânea, as artes visuais e o design da linhagem construtivista. Acre-ditavam que só assim haveria uma efetiva comunicação da poesia com os seus leitores. Poemas-cartazes, coloridos, visualidades, sonoridades, mar-caram a poesia concreta e se fazem ainda presentes. Na mesma linha de pensamento, E. M. de Melo e Castro, poeta experimental da literatura portuguesa, destaca-se pela inventividade e por suas composições poéticas onde as intervenções tipográficas dialogam com as várias linguagens.

Para provocar ainda mais reflexões e questionamentos, trazemos, no final deste capítulo, um trecho do livro infanto--juvenil Bili com limão verde na mão (2009), de Décio Pig-natari, ilustrações de André Bueno, e um poema eletrônico, concebido e realizado por Alckmar Luiz dos Santos e Gilbertto Prado, intitulado Triângulo.

Figura 22 - Páginas do livro Bili com limão verde na mão.

Figura 21 - Mulher na janela. Cláudio Tozzi. 1967.

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Batendo Papo

1) Leia o ensaio “Parnasianismo e Simbolismo ao alcance de todos. Leitura de Poetas Brasileiros”, de Camilo Cavalcan-ti (UFF) <http://www.filologia.org.br/cluerj-sg/anais/iii/completos%5Cminicurso%5Ccamilo_cavalcanti.pdf>. Você leu, na íntegra, o poema Profissão de fé. Reúna suas ideias com a do autor e destaque o que mais lhe chama a atenção do as-pecto pictórico do poema, especialmente no que se refere à po-esia parnasiana. Conheça o texto de Elvira Vigna Os sons das palavras ; possibilidades e limites da novela gráfica, que está na webteca para entender ainda melhor a relação entre literatura, sonoridade e artes gráficas.

Figura 23 - Triângulo. Alckmar Luiz dos Santos. Poema digital disponível em <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/hiper01/hiper01.html>.

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Capítulo 02As imagens e a literatura

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Leia mais!

Propomos algumas referências importantes sobre leitura de imagens.

CADÔR, Amir Brito. Imagens escritas. Dissertação de Mestrado. Insti-tuto de Artes, Unicamp, 2007.

FREDRIC, Jameson. Espaço e imagem – teorias do pós-moderno e ou-tros ensaios. Tradução de Ana Lúcia Gazola. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994.

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Le-tras, 2003.

Revista Cerrados. Revista do Curso de Pós-Graduação em Literatura. UnB. N. 7, ano 7, 1998.

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Unidade BPoéticas do gesto

Figura 24 - Criação de Adão. Michelangelo Buonarroti.1511. E E.T., do filme de Steven Spielberg.

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Capítulo 03

Este capítulo foi elabora-do pela pesquisadora Jade Gandra Dutra Martins.

Teatro: uma potência milenar

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Teatro: uma potência milenar ou Estudos literários/teatro

Por que eu truão nas minhas tragédias

E Amadis de Gaula nas tragédias alheias?

(Vinicius de Moraes. In: Elegia quase uma ode)

Nesta viagem que estamos fazendo por outras linguagens tão pró-ximas dos estudos literários, por que não pensarmos sobre o teatro, so-bre a dramaturgia, que podem ser explorados na sala de aula?

O teatro é uma arte milenar e suas raízes ocidentais datam da Gré-cia Antiga, onde era encarado como mais uma instituição social, criada para debater as necessidades e crenças do povo. Sua constituição en-quanto forma artística deve ainda às manifestações populares de cul-to aos deuses, reverenciando sobretudo Dionísio, curiosamente a mais dual das personagens do Olimpo grego: bom e mau, senhor e escravo, símbolo do vinho, dos prazeres e dos excessos.

Historicamente, o teatro cultiva em seu cerne a subjetividade típica dos períodos pré-modernos. No âmbito estético, é calcado essencial-mente no aproveitamento da palavra, ao contrário do cinema, fundado na imagem. As relações entre ambos, inclusive, estão na gênese da mo-dernidade: a linguagem do cinema é fruto direto do drama, mais es-pecificamente do melodrama, justamente um gênero teatral. O teórico Denis Guénoun (2004, p. 110) acentua a profundidade desta relação ao vislumbrar, nas técnicas do teatro, o embrião do cinema: “A referência ao teatro é um dos elementos de constituição do que nós chamamos ‘o cinema’: não o único, mas um elemento certamente axial”:

Seguramente o cinema, na elaboração de sua ‘gramática’, tirou uma par-

te de seus recursos da estrutura do espetáculo teatral. Ele integrou a

maior parte dos procedimentos, englobando-os no agenciamento mais

amplo, de seu dispositivo: dramaticidade, uso dos atores, dos cenários,

apropriação de uma boa parte do repertório. (GUÉNOUN, 2004, p. 109).

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O teatro configura-se, antes de tudo, como uma arte do visível, as-sim como a pintura e o próprio cinema, aponta Jacques Aumont, em O olho interminável [cinema e pintura] (2004). Suas características de-finem-se de acordo com essa potência de exibição, pautada ao mesmo tempo na exploração das palavras. Acompanhe agora as especificidades do meio teatral que o diferenciam de todas as outras artes existentes.

Pensemos em primeiro lugar na força da trama

“Experiência viva” na qual a criação poética se estrutura diante do espectador, o teatro compartilha com a literatura certa concepção de narrativa, ou seja, ancora sua consistência artística nas relações entre fábula, trama e narrativa. A grande diferença é que o texto teatral lida essencialmente com contextos demonstrativos, diferentemente da lite-ratura, em que o contexto apresentado é fundamentalmente verbal.

A arte teatral estrutura-se, portanto, segundo uma categoria de ação, organizada num enredo. Compreendida aqui como o arranjo da disposição dos acontecimentos e das ações das personagens, a narrativa é uma das bases comuns entre literatura, drama e cinema, ainda que muitos filmes, peças e romances apresentem justamente a intenção de promover uma espécie de desmanche da representação. Na Arte poética segundo Aristóteles (1997), enquanto que a poesia épica é narrativa, a tragédia é a representação das ações.

Deste modo, o teatro fundamenta sua poética numa dicotômica relação entre fábula, história a ser contada, e trama, modo como esta his-tória é contada, elementos típicos da narrativa. Essa “homologia estru-tural” configura o teatro, assim como o cinema, como uma arte de ação e representação, diferentemente da literatura. O que ocorre aqui é uma espécie de ação vivificada: não se conta nada, representa-se o que, na fic-ção escrita, por exemplo, seria contado. A singularidade do universo te-atral está justamente na apresentação de textos que serão realizados em sua completude num momento posterior, no campo da mise-en-scène.

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Capítulo 03Teatro: uma potência milenar

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A imagem como fonte também deve ser um caminho de reflexão. No teatro, a imagetização já está presente na própria construção poética do autor, constituída de significação visual. Como uma categoria híbrida, situada em zona fronteiriça, serve-se tanto das palavras, orientadoras da ação, ainda no âmbito do texto teatral, quanto das imagens, responsáveis pela plasticidade cênica tão objetivada pelos dramaturgos, agora já no nível do espetáculo. A arte de Dionísio, nesse sentido, é a única forma artística a se apropriar, ao mesmo tempo, dos elementos que garantem as especificidades tanto do cinema, imagens, quanto da literatura, palavras.

A plasticidade do texto teatral pode ser encarada como o objetivo de espetacularização do texto, “teatralizando” as palavras, para atribuir signifi-cado imagético ao que poderia ser apenas um amontoado de diálogos reci-tados por pessoas/personagens. O coeficiente de plasticidade varia segundo cada autor e a importância concedida a tal categoria teatral vem mudando de acordo com as próprias alterações ocorridas dentro da história do teatro ocidental. Pensando rapidamente os estilos, é possível afirmar que, enquan-to o gênero trágico apresentava como objetivo central a discussão de valores éticos importantes para a sociedade ateniense, sendo esta a sua função pri-mordial, o melodrama buscava seu projeto estético justamente nos efeitos de palco, que configuram parte do projeto teatral de plasticidade.

Antonin Artaud foi um dos mais incisivos teóricos da dramaturgia na defesa de certo resgate do coeficiente plástico e imagético do teatro. Em seu ensaio O teatro e seu duplo (1999), critica a importância cada vez maior concedida pelo teatro ocidental às palavras, orientando os dramaturgos a procurar, no Oriente, aquilo que pode ser encarado como a essência do dra-ma: a plasticidade. Radical na observação do palco como uma experiência artística para-além dos diálogos, o pensamento teatral de Artaud chega a considerar, e sugerir, a liberdade de um teatro sem palavras.

Da mesma forma que parece não haver sentido numa arte cinema-tográfica que despreza o predomínio da imagem, também não deveria existir significado num teatro alheio ao imperativo de relacionar pala-vras e representações visuais. E é justamente por causa desta pluralidade sígnica típica do meio teatral, dotado de duas matérias-primas essen-

Sobre o caráter político e social que fundamenta toda a tragédia grega, Jean-Pierre Vernant explicita que: “A tragédia não é apenas uma forma de arte, é uma instituição social que, pela fundação dos concursos trágicos, a cidade coloca ao lado de seus órgãos políticos e judiciários” (VERNANT, 1999, p. 10).

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ciais, que muitos semiólogos definem a arte teatral como um “universo de signos”, “fenômeno multinivelar”, “terra prometida” da semiótica.

A riqueza do teatro, bem como sua especificidade maior, sua po-tência, está no espaço intermediário ocupado pelo gênero dentro das ar-tes, entre a literatura e o cinema, entre as palavras-conceito e a imagem.

Interessa-nos particularmente as palavras no palco. Ao mesmo tempo em que explora a imagem como potência, o teatro usufrui da palavra como importante substrato poético. Ainda que reivindique um caráter plástico também, caso contrário encerraria seu coeficiente ar-tístico já dentro do próprio texto teatral, antes mesmo da encenação, concede relevância significativa às palavras e aos diálogos na elaboração de sua identidade artística.

Romand Ingard (2003, p. 151) considera o teatro um “caso-limite da obra de arte literária”, pois, além da linguagem, o meio utilizaria como mecanismo de representação também “os quadros visuais forne-cidos e concretizados pelos atores e ‘decorações’, nos quais aparecem os objetos, as pessoas, bem como suas ações” (p. 152) – lógica que jus-tifica a inclusão do teatro num espaço intermediário entre a literatura e o cinema. Dessa forma, o universo teatral possui três universos que definem sua forma, além de explicarem sua multiplicidade de signos, sentidos e significações.

O primeiro deles diz respeito às “objetualidades (coisas, seres huma-nos, processos) que são mostradas aos espectadores exclusivamente por via perceptiva através do jogo dos atores ou da atuação dos cenários” (IN-GARD, 2003, p. 152). A segunda dessas partes que compõe o universo teatral estaria relacionada às “objetualidades que se adaptam à representa-ção por dois caminhos diferentes: por um lado, aparecem com via percep-tiva e por outro, são representadas por meio da linguagem, na medida que se fala delas no palco” (INGARD, 2003, p. 153, grifo nosso). Por últi-mo, todas aquelas “objetualidades que não se adaptam à representação, a não ser exclusivamente por meios linguísticos, as quais, portanto, não são mostradas ‘em cena’, embora estejam presentes no texto principal” (IN-

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GARD, 2003, p. 154) – espaço específico do off stage e do hour du temps, colocar uma nota com tradução, ou seja, aquilo que está nas entrelinhas do processo de ação/atuação que se desenrola no palco. A combinação desses fatores propiciaria o “universo teatral” citado pelo autor.

Dentro do contexto das objetualidades defendido por Ingard, a lin-guagem adquire fundamental importância como complemento da ação, com três funções bastante delimitadas. Em primeiro lugar, têm finalidade de complementação, atuando na constituição do universo representado no espetáculo teatral. Em segundo, são expressões de vivências, já que exterio-rizam processos psíquicos de quem fala. Em terceiro, agem como veículos de comunicação, já que é através do discurso vivo do diálogo que as perso-nagens trocam ideias. Nesse contexto, o diálogo não se resume à mera co-municação: visa também a incitar aquele a quem o discurso está se dirigin-do, conduzindo-o à ação – grande paradigma do teatro desde Aristóteles.

Embora considerada por inúmeros pesquisadores pouco abran-gente, até hoje a classificação dos gêneros teatrais ainda é subdividida em épica, lírica e dramática, conforme aponta Lucrécia Ferrara em Li-teratura em cena (2003). Essa rotulação da ficção teatral leva em conta fundamentalmente a posição do narrador: é o modo como ele “aparece” (ou não) que condiciona a classificação da peça.

Épicos são os textos construídos em terceira pessoa, com a presença obrigatória de um narrador “intruso” a contar/narrar a ação aos espec-tadores; lírica é toda a ficção teatral que chega até o público em primeira pessoa; e drama é todo o texto teatral estruturado, já no papel, a partir de “personagens mascaradas em um cenário” (FERRARA, 2003, p. 192).

Apesar da poesia intrínseca ao texto lírico e do caráter grandioso da ação épica, o que se solidificou como tradição principal foi o drama, ou seja, o teatro convencional, embasado na ilusão mimética de trans-posição de uma ação via atuação de atores que se travestem de persona-gens, sem “nenhuma” interferência. Dentro do gênero dramático, Aris-tóteles incluiu a tragédia e a comédia, mas a história revelou, sobretudo após o surgimento do melodrama, e sua permanência nos palcos, que

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as duas categorias aristotélicas seriam apenas um ponto de partida para os muitos estilos assimilados pela arte teatral dramática, até mesmo a “pós-dramática” de Peter Szondi (2004).

Salvo algumas exceções, como o teatro do distanciamento proposto por Bertolt Brecht, a história do teatro ocidental parece ter sido carac-terizada por textos que fecham as portas para a presença do narrador e seu ato de mostrar.

Literatura, teatro e cinema são artes de ação; dependem da narrativa para se completar. Teatro e cinema são também artes de representação; levam ao espectador atores travestidos de personagens para mostrar em cena aquilo que a literatura conta com palavras. Para elaborar de maneira efetiva as relações entre fábula e trama, o teatro apresenta sua própria cartela de instrumentos narrativos, capazes de auxiliar o processo poético e garantir um melhor aproveitamento do texto inicial na cena do palco.

Diante do imperativo da “espetacularização” das palavras, algumas ferramentas são de fundamental importância para que o texto alcance toda a sua plenitude no ato teatral, descartando o risco de se tornar apenas literatura escrita apresentada sob outra forma. Nesse sentido, os mecanismos de narração da elipse, do flashback e da acentuação de efei-tos evidenciam-se como instrumentos capitais para a teatralização.

O teatro é um meio limitado: conta quase sempre com a quarta--parede definidora do espaço (salvo as peças apresentadas em teatros de arena) e, por ser ao vivo, traz uma série de dificuldades exterminadas pelo cinema com apenas um corte de câmara na hora certa. Num terri-tório onde a personagem precisa efetiva e praticamente de um número X de passos para conseguir atravessar o palco, a elipse transparece como ferramenta essencial para condensar a realidade, suprimir cenas não muito importantes e desencadear a ação com mais eficácia.

A elipse ocorre geralmente através da iluminação e das passagens das personagens pelo palco. As cenas são “cortadas” através de personagens que saem e voltam mais velhas ou de iluminações que desaparecem quando se

Húngaro, foi professor universitário em Berlim,

onde fundou o Institu-to de Teoria Literária e Literatura Comparada.

De suas publicações, destacam-se ensaios

dedicados ao teatro e à poesia lírica.

Do modo como está sendo discutida nesse

capítulo, elipse nada mais é do que um corte

narrativo, aquilo que acontece entre o sim da protagonista ao pedido de casamento e sua su-bida ao altar, mostrada já no plano seguinte. A

elipse facilitaria o traba-lho tanto do dramatur-go quanto do roteirista

ao enxugar o texto e facilitar a focalização

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deseja preservar o mistério de uma pergunta para a qual não há resposta falada. É um procedimento comum já no texto teatral, porém sua efetiva-ção costuma ocorrer mais por meio de elementos do âmbito do espetáculo, como iluminação, cenário, músicas etc. Ainda assim, aparece com bastante frequência como elemento estruturador, já que serve como catalisadora dos acontecimentos e propulsora da ação, paradigmas da arte teatral.

O flashback, outro recurso narrativo, nada mais é do que um parên-tese aberto pelo dramaturgo para voltar no tempo. Originalmente um atributo da poética audiovisual, o flashback teria começado a fazer parte do imaginário cinematográfico já desde David Grifitth, cineasta que pra-ticamente inventou o recurso do fade in e fade out (através do qual se cla-reia e escurece a imagem gradativamente), “pista” do vai-e-vem do tempo, marcando a abertura de uma segunda camada narrativa dentro do filme.

Já o efeito de evidenciação, ferramenta narrativa das mais importantes em meios “plásticos”, repercute a pluralidade dos próprios signos do teatro:

tem por objeto ora a dicção enfática de certos verbos e palavras, a inter-

pretação exagerada (não-naturalista) do ator que insiste na teatralidade

de sua personagem, um princípio ou um detalhe da plástica cênica des-

tinado a atrair a atenção (cores, lugar, iluminação). (PAVIS, 2001, p. 120).

Ainda no âmbito do texto, o modo como o dramaturgo opera os acontecimentos que envolvem a trajetória das personagens, a aparição (física) mais evidente de uma ou de outra e a focalização da narrativa constituem-se como ferramentas teatrais típicas para a fabricação de acentuação de efeitos. Assim como possui, em estrutura, todas as fer-ramentas necessárias à formulação de elipses temporais e espaciais, o cinema parece dominar este universo de acentuação de efeitos como nenhuma outra arte. Por ser um meio eletrônico, sua facilidade de evi-denciação se destaca em comparação ao teatro.

A pluralidade de sentidos presente na poética teatral é absoluta-mente diversa da totalidade sígnica emanada da imagem cinematográ-fica. Ao contrário do cinema, onde a fábula se insinua principalmente

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numa via imagética de mão única, caracterizada por uma singularidade que se apoia no próprio estatuto da imagem, a representação do teatro é marcada por uma variedade de signos, significados e significantes cujas especificidades estão justamente na mobilidade estabelecida entre eles.

O embasamento duplo do teatro, palavra e imagem, acaba produ-zindo certa multiplicidade artística, instaurando o sentido em categorias diversas de signos. Sobre esse intercâmbio sígnico típico da experiência teatral, principalmente no momento em que texto transforma-se em cena, Jiri Veltruski aponta que “a construção semântica de uma peça de-pende da pluralidade de contextos que se desdobram simultaneamente, revezam, interpenetram e em vão lutam para subjugar e absorver uns aos outros” (2003, p. 164, grifo nosso).

A mesma especificidade que permite ao teatro fundar sua poética tan-to no texto quanto na imagem concederia ao meio o título exclusivo de “universo de signos” (DEMARCY, 2003, p. 25), já que seus sentidos são construídos por espaços ficcionais que alcançam desde o texto em si até ar-tefatos do cenário, representação, figurino, iluminação etc. Ou seja, o pro-cesso teatral abarca uma dezena de signos tão importantes quanto o texto.

Para Tadeusz Kowzan (2003, p. 100), a cena teatral comportaria pelo menos treze signos: “a palavra, o tom, a mímica facial, o movimen-to cênico do ator, a maquilagem, o penteado, o vestuário, o acessório, o cenário, a iluminação, a música e o ruído” – entre todos esses, importan-te salientar, apenas o primeiro diz respeito ao texto em si.

Já para Demarcy (2003, p. 28), a sustentação do discurso textual teatral realiza-se através de um encenador que traz como recurso “uma soma de linguagens em cujo seio ele inscreverá seus significantes: o(s) cenário(s), os acessórios, os trajes, as matérias, as cores, os sons, as iluminações, os atores, os deslocamentos, a gestualidade, o espaço [...]”, sendo que, “cada uma des-sas linguagens oferece recursos muito amplos e, de fato, pouco explorados, quanto às possibilidades de ‘expressão’”. É esta pluralidade que concede ao teatro, então, e somente a ele, o estatuto de universo dos signos, já que “a arte do espetáculo é, entre todas as artes, e talvez, entre todos os domínios

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da atividade humana, aquela em que o signo manifesta-se com maior rique-za, variedade e densidade” , como percebe Kowzan (2003, p. 97-98), para quem “tudo é signo na representação teatral”.

Por definição, o teatro é a arte da convenção. Aposta-se, instiga--se, sugere-se, participa-se de um jogo que só faz sentido se ambas as partes estiverem de comum acordo. O ator acredita estar vivendo uma espécie de mundo possível no palco; a plateia, por sua vez, já vai ao teatro disposta a abraçar o lúdico e adotar a convenção como verdade, embora enxergue claramente que tudo não passa de representação. A artificialidade do fenômeno teatral parece incontestável, porém ela fun-ciona porque plateia e palco estão sob o mesmo regimento. Essa ideia de convenção estabelecida no ato da encenação de um texto é um dos definidores do caráter do signo teatral, já que ele não é apenas artificial por excelência, como resulta, ainda, de um processo voluntário.

Criados com premeditação, os signos teatrais apresentam duas ca-racterísticas cruciais: comunicam no próprio instante e jamais se mani-festam em estado puro. Essa tensão dialética, cuja impureza decorre da impossibilidade de manifestação única, sugere uma mobilidade extre-ma entre os signos, além da multiplicidade de geradores de sentido, que desemboca em transformação constante e mutabilidade permanente. Se toda manifestação teatral parece ser um conjunto de signos, a grande especificidade do signo teatral é a sua mobilidade, capacidade única de “intercambiar os materiais e passar de um aspecto a outro, de animar uma coisa inanimada, de passar do domínio acústico para o domínio visual etc”. (HONZL, 2003, p. 139).

O teatro é o único meio, então, que não se comporta apenas como um verdadeiro universo de signos, indo muito mais além: ele oferece um espaço, exclusivo, onde esses signos podem (e devem) se cruzar, causando mútuas interferências, promovendo uma “contaminação atra-vés de outras interferências significantes” (FERRARA, 2003, p. 204).

Por se tratar de uma arte na qual a convenção impera, seja através do aspecto lúdico, seja pelo intercruzamento dos signos, o teatro preci-

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sa trabalhar sempre com altas doses de evocação imaginativa: antes de mostrar, revelar ou desvelar, o meio teatral sugere. Já o cinema, ao con-trário, teria se fundamentado historicamente sob a premissa de trans-formar em imagem aquilo que seria somente palavra no teatro.

Sujeito essencial na formação do jogo do palco, o espectador sabe que está diante de um “faz de conta”. O teatro só continua funcionando até hoje, quando todas as técnicas de mimetização e simulação da realidade já parecem totalmente dominadas, porque existe aquilo que Alberto Man-guel define como “suspensão voluntária da descrença” (2003, p. 93). As paredes das casas, as janelas, as plantas e todo o cenário precisam evocar a imaginação do público, participante ativo no processo de construção de sentido. Ele sabe que está sendo enganado, porém compactua com a “farsa” por vontade própria. Participa ativamente do espetáculo já a partir do momento em que sabe que aquilo não é a “realidade”, afinal está diante de um palco, espaço onde a palavra representação parece alcançar senti-do mais profundo. Sua ilusão de espectador repousa sob duas garantias, segundo Denis Guénoun (2004, p. 80): a alteridade, já que é sempre um outro que age e sofre em cena, e a ideia de que tudo não passa de um jogo.

Por se tratar de um espaço fechado, hermético e extremamente cal-cado em convenções previamente estabelecidas, sobretudo devido à pre-sença limitadora da quarta-parede, não parece existir ilusão de “realidade” para o espectador de uma peça de teatro. Muito pelo contrário, é próprio do meio incitar a imaginação do espectador, sujeito de elaborações e elo-cubrações que, num sentido mais radical, irão contribuir de maneira deci-siva para a apreensão do significado da peça. A própria arbitrariedade do sujeito espectador confere certo poder de atribuição de sentido durante o ato da encenação, e até mesmo na leitura do texto – através das rubricas, das didascálias e das indicações cênicas impressas pelo autor no texto, rompendo com a mimese típica da literatura convencional.

É possível afirmar que o cinema comete o crime perfeito, sendo o di-retor aquele assassino que não deixa pistas, por mais que se procure. O te-atro, por sua vez, parece ser a arte da malandragem: faz-se o possível com os recursos disponíveis. E o possível está sempre dentro de um jogo do

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qual ambas as partes, peça e público, participam por opção. O poder de convencimento do cinema foi teorizado por Carrière (2004, p. 76) como a diferença crucial entre o meio e a estética teatral, além de sua grande espe-cificidade: “tudo no cinema acontece de formas diametralmente opostas às do teatro, onde a realidade nunca é sentida como verdadeira.

Por causa do seu caráter exclusivo de representação, o teatro resiste às novas formas artísticas e às técnicas mais modernas de reprodutibi-lidade técnica e segue encantando o público com a construção de cenas sofisticadas e especiais.

Vamos a dois exemplos dentro da historiografia literária brasileira e portuguesa:

A farsa Quem tem farelos, da obra de Gil Vicente, e a comédia, de Machado de Assis, O bote de rapé.

Auto do Escudeiro - Quem tem farelos

Gil Vicente

Este nome da farsa seguinte, Quem tem farelos?, pôs-lho o vulgo. É o seu

argumento que um escudeiro mancebo por nome Aires Rosado tangia

viola e a esta causa, ainda que sua moradia era muito fraca, continuada-

mente era namorado.

Trata-se aqui de uns amores seus por cinco figuras: Ordoño, Apariço, Aires

Rosado, Isabel e uma Velha sua mãe.

Foi representada na mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa ao muito

excelente e nobre rei Dom Manuel primeiro deste nome, nos Paços da

Ribeira.

Era do Senhor de 1505 anos.

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Vem Apariço e Ordoño, moços de esporas a

buscar farelos, e diz logo Apariço:

Apariço: Quem tem farelos?

Ordoño: Quién tiene farelos?

Apariço: Ordoño Ordoño espera-m’i!

Oh fi de puta roim,

sapatos tens amarelos?

Já nam falas a ninguém!

Ordoño: Cómo te va compañero?

Apariço: S’eu moro c’um escudeiro,

como me pode a mi ir bem?

Ordoño: Quién es tu amo? Di, hermano.

Apariço: É o demo que me tome...,

morremos ambos de fome

e de lazeira todo ano.

Ordoño: Con quién vive?Apariço: Que sei eu!...

Vive assi, per i, pelado

coma podengo escaldado.

Ordoño: De qué sirve?

Apariço: De sandeu!

Pentear e jejuar

todo dia sem comer,

cantar, e sempre tanger,

sospirar, e bocijar...

Sempre anda falando só...,

faz uas trovas tam frias,

tam sem graça, tam vazias,

que é cousa pera haver dó.

E presume d’embicado

que, com isto raivo eu,

três anos há que sam seu

e nunca lhe vi cruzado.

Mas, segundo nós gastamos,

um tostão nos dura um mês!

Ordoño: Cuerpo de san! Qué coméis?

Apariço: Nem de pão, nam nos fartamos.

Ordoño: Y el caballo?

Apariço: Está na pele...,

que lhe fura já a ossada,

nam comemos quasi nada,

eu e o cavalo, nem ele.

E se o visses brasonar

e fingir mais d’esforçado...,

e todo o dia aturado

se lhe vai em se gabar.

Estoutro dia, ali num beco,

deram-lhe tantas pancadas,

tantas, tantas, que aosadas!

Ordoño: Y con qué?

Apariço: C’um arrocho seco.

Ordoño: Hi hi hi hi hi hi hi.

Apariço: Folguei tanto.

Ordoño: Y él, callar?

Apariço: E ele calar, e levar,

assi, assi màora, assi...

Vem alta noite de andar...,

de dia sempre encerrado,

porque anda mal roupado

nam ousa de se mostrar!

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Capítulo 03Teatro: uma potência milenar

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Vem tam ledo: sus cear

como se tivesse quê

e eu nam tenho que lhe dar

nem ele tem que lhe eu dê.

Toma um pedaço de pão

e um rabão engelhado

e chanta nele bocado

coma cão.

Nam sei como se mantém

que nam está debelitado.

Ordoño: Bástale ser namorado

en demás si le va bien.

Apariço: Comendo ò demo a molher

nem casada nem solteira

nenhua negra tripeira

nam no quer.

Ordoño: Será escudero peco

o desdichado.

Apariço: Mas a poder de pelado

dá em seco.

Todas querem que lhe dem

e nam curam de cantar

sabe que quem tem que dar

lhe vai bem.

Querem mais um bô presente

que tanger

nem trovar nem escrever

discretamente

Ordoño: Y pues por qué estás con él?

Apariço: Diz que m’há de dar a el rei

e tanto farei farei.

Ordoño: Déxalo reñiega dél

y tal amo has de tener?

Apariço: Bofá nam sei qual me tome

sou já tam farto de fome

coma outros de comer.

Ordoño: Poca gente desta es flanca.

Pues el mío es repeor

suéñase muy gran señor

y no tiene media blanca.

Júrote a Dios que es un cesto

un badajo contrahecho

galán mucho mal dispuesto

sin descanso y sin provecho.

Habla en roncas, picas, dalles

en guerras y desbaratos

y si pelean allí dos gatos

ahuirá montes y valles.

Nunca viste tal buharro

cuenta de los Anibales

Cepiones Roçasvalles

y no matará un jarro.

Apuéstote que un judío

con una beca lo mate.

Cuando allende fue el rebate

nunca él entró en navío.

Y cuando está en la posada

quiere destruir la tierra

siempre sospira por guerra

y todo su hecho es nada.

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Y presume allá en palacio

de andar con damas el triste.

Cuando se viste

toma dos horas despacio

y cuanto el cuitado lleva

todo lo lleva alquilado

y como si fuese comprado

ansí se enleva.

Y también apaña palos

como cualquier pecador

y sobre ser él peor

burla de buenos y malos.

Apariço: Pardeos roins amos temos.

Tem o teu mula ou cavalo?

Ordoño: Mula seca como un palo

alquílala y dahí comemos.

Mas mi amo tiene un bien

que aunque le quieran hurtar

no ha hí de qué sisar

ni el triste no lo tien.

Apariço: É músico?

Ordoño: Muy de gana

cuando hace alguna mueca

canta como pata chueca

otras veces como rana.

Apariço: Meu amo tange viola

ua voz tam requebrada.

Ordoño: Quiérome ir a la posada.

Apariço: E os farelos?

Ordoño: Paja sola.

Apariço: Mas vem comigo e verás

meu amo como é pelado

tam doce, tam namorado

tam doudo que pasmarás.

Ordoño: Cómo ha nombre tu señor?

Apariço: Chama-se Aires Rosado

eu chamo-lhe asno pelado

quando me faz mais lavor.

Ordoño: Aires Rosado se llama?

Apariço: Neste seu livro o lerás

escuta tu e verás

as trovas que fez à dama.

Anda Aires Rosado só passeando pola casa,

lendo no seu cancioneiro desta maneira:

Escudeiro Cantiga d’Aires Rosado

a sua dama

e nam diz como se chama

de discreto namorado.

Senhora pois me lembrais

nam sejais desconhecida

e dai ò demo esta vida

que me dais.

Ou me irei ali enforcar

e vereis mau pesar de quem

por vos querer grande bem

se foi matar.

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Capítulo 03Teatro: uma potência milenar

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Entam lá no outro mundo

veremos que conta dais

da triste de minha vida

que matais.

Outra sua:

Pois amor me quer matar

com dor, tristura e cuidado

eu me conto por finado

e quero-me soterrar.

Fui tomar uma pendença

com uma cruel senhora

e agora

acho que foi pestelença.

Chore quem quiser chorar

saibam já que sam finado

sem finar

e quero ser soterrado.

Outra sua estando mal com sua dama:

Senhora mana Isabel

minha paixão e fadiga

mando lá esse papel

que vo-la diga.

Volta: Se quiser dizer verdade

dir-vos-á tantas paixões

que em sete corações

nam couberam a metade.

Estou co a candea na mão

senhora minha Isabel

mando lá esse papel

que vos diga esta paixão.

Fala Aires Rosado com o seu moço:

Escudeiro Como tardaste Apariço.

Apariço E tanto tardei or’eu?

Escudeiro Apariço bem sei eu

que te faz mal tanto viço.

Apariço passo:

Apariço E desd’ontem nam comemos.

Escudeiro Vilão farto pé dormente.

Apariço Oh Ordoño como mente.

Ordoño Otro mi amo tenemos.

Canta o Escudeiro:

Escudeiro Ré mi fá sol lá sol lá.

Apariço Vês ali o que t’eu digo.

Escudeiro Que diabo falas tu?

Canta: fá lá mi ré ut.

Fala: nam rosmêes tu comigo

Canta: un día era un día.

Apariço Oh Jesu que agastamento.

Escudeiro Dá-me cá esse estromento.

Apariço Oh que cousa tam vazia.

Escudeiro Agora que estou desposto

irei tanger a minha dama.

Apariço Já ela estará na cama.

Escudeiro Pois entonces é o gosto.

Tange e canta na rua à porta de sua dama Isa-

bel e, em começando a cantar

Escudeiro Si dormís doncella,

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Ladram os cães:

Hão hão hão hão.

Escudeiro Apariço mat’esses cães

ou vai dá-lhe senhos pães.

Apariço E ele nam tem meo pão.

Canta o Escudeiro:

Escudeiro Si dormís doncella

despertad y abrid.

Apariço Ò diabo que t’eu dou

que tam má cabeça tens

nam tem mais de dous vinténs

que lhe hoje o cura emprestou.

Prossegue o Escudeiro a cantiga:

Escudeiro Que venida es la hora

si queréis partir.

Apariço Má partida venha por ti

e o cavalo suar.

Ordoño Y no tienes qué le dar.

Apariço Nam tem um maravedi.

Prossegue o Escudeiro a cantiga:

Escudeiro Que muchas aguas

tenéis de pasar.

Apariço Nanj’eu quant’a em teu poder.

Escudeiro Ora andar.

Apariço

Antes de muito

pois nam espero outro fruito

caminhar.

Prossegue a cantiga:

Escudeiro Aguas d’Alquebir

que venida es la hora

si queréis partir.

Aqui lhe fala a moça da janela tam passo que

ninguém a ouve e polas palavras que ele res-

ponde se pode conjecturar o que lhe ela diz:

Escudeiro Senhora não vos ouço bem.

Oh que vos faço eu aqui?

Quê senhora? Eles a mi?

Nam hei medo de ninguém.

Olhai senhora Isabel

inda que tragam charrua

eu só lhes terei a rua

com uma espada de papel.

Que são quê? Rebolarias?

E mais rides-vos de mi.

Eu por que m’hei d’ir daqui?

Faço-vos descortesias?

Mana Isabel ouvis

eu que defamo de vós?

Oh pesar nunca de Deos

vós tendes-me em dous ceitis.

Nam sabeis que me digais?

Sabeis que bem vos entendo

inda me nam arrependo

com quanto mal me queirais.

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Capítulo 03Teatro: uma potência milenar

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Há i mais que me perder

pera que são tais prefias

bem dizeis, porém meus dias

nisto hão de fenecer.

Apariço passo:

Apariço Dou-t’ò demo essa cabeça

nam tem siso por um nabo.

Escudeiro Senhora isso do cabo

me dizei ante que esqueça.

Mais resguardado está’qui

o meu grande amor fervente.

Que tendes? Um pé dormente?

Oh que gram bem pera mi.

Hi hi hi. De que me rio?

Rio-me de mil cousinhas

nam já vossas se nam minhas.

Apariço Olhai aquele desvario.

Cães Hão hão hão hão.

Escudeiro Nam ouço com a cainçada

rapaz dá-lhe uma pedrada

ou fart’-os eramá de pão.

Apariço Co as pedras os ajude Deos.

Cães Hão hão hão hão.

Escudeiro Pesar nam de Deos c’os cães

rapazes nam lhes dais vós?

Senhora nam ouço nada

dou-me ò demo que me leve.

Apariço Toda esta pedra é tam leve

tomai lá esta seixada.

Cães Hãi hãi hãi hãi.

Apariço Perdoai-me vós senhor.

Escudeiro Ora o fizeste pior

ah pesar de minha mãe!

Nam vos vades Isabel

está vossa mercê i?

Nunca tal mofina vi

de cães, que sam cruel.

Nam há cousa que mais m’agaste

que cães e gatos também.

Gato Miau miau.

Escudeiro Oh que bem

quant’agora m’aviaste.

Falai senhora a esses gatos

e nam sejais tam sofrida

que antes queria a vida

toda comesta de ratos.

Já tornais ao defamar.

Quem é o que fala nisso?

Senhora sabei que é um riso

quanto podeis sospeitar

Que tenham olhos e molhos

vós andais pera me ferir

eu ando pera vos servir

mana meus olhos.

Vós andais pera me matar.

Mana Isabel olhai

que o saiba vosso pai

e vossa mãe hão de folgar!

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Porque, um escudeiro privado…,

Apariço Mas pelado!

Escudeiro …como eu sou!...

E de parte meu avô

sou fidalgo afidalgado.

Já privança com el rei

a quem outrem vê nem fala.

Apariço Deitam-no fora da sala.

Escudeiro Senhora

com vosso pai falarei…

Lá, depois d’acrecentado,

nam quero que me dem nada!

Apariço Oh como será aviada

e seu pai encaminhado.

Escudeiro Que tenhais que nam tenhais

tenho mais tapeçaria

cavalos na estrebaria

que nam há na corte tais.

Vossa camilha dobrada

nam tendes em que vos acupar

senam somente enfiar

aljofre já d’enfadada.

Apariço Oh Jesu que mau ladrão

quer enganar a coitada.

Escudeiro Ide ver se está acordada

que estas velhas pragas são.

Galos Cacaracá, cacaracá.

Escudeiro Mea noite deve ser.

Apariço Já fora rezão comer

pois os galos cantam já.

Escudeiro cantando:

Escudeiro Cantan los gallos

yo no me duermo

ni tengo sueño.

Fala: Como? Vossa mãe vem cá?

Cá à rua? Pera quê?

Nam me dá por minha fé

venha que aqui m’achará.

Velha Rogo à virgem Maria

que quem me faz erguer da cama

que má cama e má dama

e má lama negra e fria.

Má mazela e má courela

mau regato e mau ribeiro

mau silvado e mau outeiro

má carreira e má portela.

Mau cortiço e mau somiço

maus lobos e maus lagartos

nunca de pão sejam fartos

mau criado, mau serviço.

Má montanha, má companha

má jornada, má pousada

má achada, má entrada

má aranha, má façanha.

Má escrença, má doença

má doairo, má fadairo

Page 69: Literatura e Ensino II Miolo

Capítulo 03Teatro: uma potência milenar

69

mau vigairo, mau trintairo

má demanda, má sentença.

Mau amigo e mau abrigo

mau vinho e mau vezinho

mau meirinho e mau caminho

mau trigo e mau castigo.

Irá de monte e de fonte

irá de serpe e de drago

perigo de dia aziago

em rio de monte a monte.

Má morte, má corte, má sorte

má dado, má fado, má prado

mau criado, mau mandado

mau conforto te conforte.

Rogo às dores de Deos

que má caída lhe caia

e má saída lhe saia

trama lhe venha dos céus.

Jesu que escuro que faz.

Oh mártere sam Sadorninho

que má rua e que mau caminho

cego seja quem m’isto faz.

Ui amara percudida

Jesu a que m’eu encandeo

esta praga donde veo

Deos lhe apare negra vida.

Canta o Escudeiro:

Escudeiro Por mayo, era por mayo.

Velha Ui ui ui e que mau lavor

quem é este rousinol

picanço ou papagaio?

Que màora começaram

os que má saída lhe saia.

I eramá cantar à praia

más fadas que vos fadaram.

A maldição de Madorra

de Bitão e d’Abirão

e de minha maldição

oh santa Maria m’acorra.

Escudeiro cantando:

Escudeiro Apartar-me-ão de vós

garrido amor.

Velha Má partida, má apartada

mau caminho, má estrada

[ ?]

má lavor te faça Deos.

Escudeiro cantando:

Escudeiro Eu amei uma senhora

de todo meu coração

quis Deos e minha ventura

que nam ma querem dar não

garrido amor.

Velha Má cainça que te coma

mau quebranto te quebrante

e mau lobo que t’espante

toma duas figas toma.

Page 70: Literatura e Ensino II Miolo

Literatura e Ensino II

70

Nunca a tu hás de levar

pára bargante rascão

que nam te fartas de pão

e queres musiquiar.

Prossegue o Escudeiro a cantiga:

Escudeiro Nam me vos querem dare

ir-m’-ei a tierras ajenas

a chorar meu pesare

garrido amor.

Velha Vai-t’ò demo com sa mãe

e dormirá a vezinhança

ò demo dou eu de ti a criança

[ ?]

e esse te cá aportou.

Apariço Dizei-lhe que vá comer

que nam comeu hoje bocado.

Velha Vai comer homem coitado

e dá ò demo o tanger.

E de mais se nam tens pão

que màora começaste

aprenderas a alfaiate

ou siquer a tecelão.

Prossegue a cantiga:

Escudeiro Já vedes minha partida

os meus olhos já se vão

se se parte minha vida

cá me fica o coração.

Vai-se o Escudeiro e fica a Velha dizendo à filha:

Velha Isabel tu fazes isto

tudo isto sai de ti

Isabel guar-te de mi

que tu tens a culpa disto.

Isabel Pois si. Eu o fui chamar.

Velha Ai Maria Maria rabeja.

Isabel Trama a quem o deseja

nem espera desejar.

Velha Que dirá a vezinhança?

Dize má molher sem siso.

Isabel Que tenho eu de ver co isso?

Velha Como tens tam má criança.

Isabel Algum demo valho eu

e algum demo mereço

e algum demo pareço

pois que cantam polo meu.

Vós quereis que me despeje

vós quereis que tenha modos

que pareça bem a todos

e ninguém nam me deseje?

Vós quereis que mate a gente

de fermosa e avisada

quereis que nam fale nada

nem ninguém em mi atente?

Page 71: Literatura e Ensino II Miolo

Capítulo 03Teatro: uma potência milenar

71

Quereis que creça e que viva

e nam deseje marido

quereis que reine Copido

e eu seja sempre esquiva?

Quereis que seja discreta

e que nam saiba d’amores

quereis que sinta primores

mui guardada e mui secreta?

Velha Tomade-a lá. Ui Isabel

quem te deu tamanho bico

rostinho de cerolico

és tu moça ou bacharel?

Nam deprendeste tu assi

o verbo d’Anima Christe

que tantas vezes ouviste.

Isabel Isso nam é pera mi.

Velha E pois quê?

Isabel Eu vo-lo direi:

ir ameúde ao espelho

e poer do branco e vermelho

e outras cousas que eu sei.

Pentear curar de mi

e poer a ceja em dereito

e morder por meu proveito

estes beicinhos assi.

Ensinar-me a passear

pera quando for casada

nam digam que fui criada

em cima d’algum tear.

Saber sentir um recado

e responder emproviso

e saber fingir um riso

falso e bem dissimulado.

Velha E o lavrar Isabel?

Isabel Faz a moça mui mal feita

corcovada contrafeita

de feição de meo anel.

E faz muito mau carão

e mau costume d’olhar.

Velha Ui pois jeita-te ao fiar

estopa ou linho ou algodão.

Ou tecer se vem à mão.

Isabel Isso é pior que lavrar.

Velha Enjeitas tu o fiar?

Isabel Que nam hei de fiar nam!

Eu sou filha de moleira...,

em roca me falais vós?

Ora assi me salve Deos

que tendes forte cenreira.

Velha Aprende logo a tecer

entam bolir c’o fiado.

Isabel Achais outro mais honrado

ofício pera eu saber?

Tecedeira viu alguém

que nam fosse boliçosa

cantadeira presuntuosa

e nam tem nunca vintém.

Page 72: Literatura e Ensino II Miolo

Literatura e Ensino II

72

E quando lhe quebra o fio

renega coma beleguim.

Mãe deixai-me vós a mim

vereis como me atavio.

Isto vai sendo de dia

eu quero mãe almoçar.

Velha Eu te farei amassar!

Isabel Essa é outra fantesia...

E com isto se recolhem e fenece esta primeira

farsa.

Finis.

O boté de rapé

Machado de Assis

Personagens:

Tomé; Elisa, sua mulher; Um relógio na parede; O nariz de Tomé; Um

Caixeiro.

Cena Primeira: Tomé, Elisa (entra vestida)

Tomé Vou mandar à cidade o Chico ou o José.

Elisa Para ...?

Tomé Para comprar um bote de rapé.

Elisa Vou eu.

Tomé Tu?

O Bote de Rapé

Disponível em www.li-

teraturabrasileira.ufsc.

br. Acesso em: 7 mar.

2011. Texto de refe-

rência: ASSIS, Macha-

do. Obra Completa.

Rio de Janeiro: Nova

Aguilar, 1994. v. II.

Page 73: Literatura e Ensino II Miolo

Capítulo 03Teatro: uma potência milenar

73

Elisa Sim. Preciso escolher a cambraia,

A renda, o gorgorão e os galões para a saia,

Cinco rosas da China em casa da Malte,

Um par de luvas, um peignoir e um plissé,

Ver o vestido azul, e um véu ... Que mais?

Mais nada.

Tomé (rindo)

Dize logo que vás buscar se uma assentada

Tudo quanto possui a Rua do Ouvidor.

Pois aceito, meu anjo, esse imenso favor.

Elisa Nada mais? Um chapéu? Uma bengala? Um fraque?

Que te leve um recado ao Dr. Burlamaque?

Charutos? Algum livro? Aproveita, Tomé!

Tomé Nada mais; só preciso o bote de rapé

Elisa Um bote de rapé! Tu bem sabes que a tua Elisa...

Tomé Estou doente e não posso ir à rua.

Esta asma infernal que me persegue... Vês?

Melhor fora matá-la e morrer de uma vez,

Do que viver assim com tanta cataplasma.

E inda há pior do que isso! inda pior que a asma:

Tenho a caixa vazia.

Elisa (rindo) Oh! se pudesse estar

Vazia para sempre, e acabar, acabar

Esse vício tão feio! Antes fumasse, antes.

Há vícios jarretões e vícios elegantes.

O charuto é bom tom, aromatiza, influi

Na digestão, e até dizem que restitui

A paz ao coração e dá risonho aspecto.

Tomé O vício do rapé é vício circunspecto.

Indica desde logo um homem de razão;

Tem entrada no paço, e reina no salão

Governa a sacristia e penetra na igreja.

Uma boa pitada, as idéias areja;

Dissipa o mau humor. Quantas vezes estou

Capaz de pôr abaixo a casa toda! Vou

Ao meu santo rapé; abro a boceta, e tiro

Page 74: Literatura e Ensino II Miolo

Literatura e Ensino II

74

Elisa Não duvido.

Tomé Inda mais: até o amor aumenta

Com a porção de pó que recebe uma venta.

Elisa Talvez tenhas razão; acho-te mais amor

Agora; mais ternura; acho-te. . .

Tomé Minha flor,

Se queres ver-me terno e amoroso contigo,

Se queres reviver aquele amor antigo.

Vai depressa.

Elisa Onde é?

Tomé Em casa do Real;

Dize-lhe que me mande a marca habitual.

Elisa Paulo Cordeiro, não?

Tomé Paulo Cordeiro.

Queres,

Elisa Para acalmar a tosse uma ou duas colheres

Tomé Do xarope? Verei.

Elisa Até logo, Tomé.

Tomé Não te esqueças.

Elisa Já sei: um bote de rapé.

(sai)

Cena II: Tomé, depois o seu nariz

Tomé Que zelo! Que lidar! Que correr! Que ir e vir!

Quase, quase lhe falta tempo de dormir.

Verdade é que o sarau com o Dr. Coutinho

Quer festejar domingo os anos do padrinho,

É de primo-cartello, é um grande sarau de truz.

Vai o Guedes, o Paca, o Rubirão, o Cruz

A viúva do Silva, a família do Mata,

Um banqueiro, um barão, creio que um diplomata.

Tomé

Uma grossa pitada e sem demora a aspiro;

Com o lenço sacudo algum resto de pó

E ganho só com isso a mansidão de Jacó.

Page 75: Literatura e Ensino II Miolo

Capítulo 03Teatro: uma potência milenar

75

Dizem que há de gastar quatro contos de réis.

Não duvido; uma ceia, os bolos, os pastéis,

Gelados, chá... A coisa há de custar caro.

O mal é que eu desde já me preparo

A despender com isto algum cobrinho...O quê?

Quem fala?

O nariz Sou eu; peço a vossa mercê

Me console, inserindo um pouco de tabaco.

Há três horas jejuo, e já me sinto fraco,

Nervoso, impertinente, estúpido, -- nariz,

Em suma.

Tomé Um infeliz consola outro infeliz;

Também eu tenho a bola um pouco transtornada,

E gemo, como tu, à espera da pitada.

O nariz O nariz sem rapé é alma sem amor.

Tomé Olha podes cheirar esta pequena flor.

O nariz Flores; nunca! jamais! Dizem que há pelo mundo

Quem goste de cheirar esse produto imundo.

Um nariz que se preza odeia aromas tais.

Outros os gozos são das cavernas nasais.

Quem primeiro aspirou aquele pó divino,

Deixas as rosas e o mais as ventas do menino.

Tomé (consigo)

Acho neste nariz bastante elevação,

Dignidade, critério, empenho e reflexão.

Respeita-se; não desce a farejar essências,

Águas de toucador e outras minudências.

O nariz Vamos, uma pitada!

Um instante, infeliz!

(à parte)

Vou dormir para ver se aquieto o nariz.

(Dorme algum tempo e acorda)

Safa! Que sonho; ah! Que horas são!

O relógio (batendo) Uma, duas.

Page 76: Literatura e Ensino II Miolo

Literatura e Ensino II

76

Tomé Duas! E a minha Elisa a andar por essas ruas.

Coitada! E este calor que talvez nos dará

Uma amostra do que é o pobre Ceará.

Esqueceu-me dizer tomasse uma caleça.

Que diacho! Também saiu com tanta pressa!

Pareceu-me, não sei; é ela, é ela, sim...

Este passo apressado ... És tu, Elisa?

Cena III: Tomé, Elisa, Um caixeiro (com uma caixa)

Elisa Enfim!

Entre cá; ponha aqui toda essa trapalhada.

Pode ir.

(Sai o caixeiro)

Como passaste?

Tomé Assim; a asma danada

Um pouco sossegou depois que dormitei.

Elisa Vamos agora ver tudo quanto comprei.

Tomé Mas primeiro descansa. Olha o vento nas costas.

Vamos para acolá.

Cuidei voltar em postas.

Elisa Ou torrada.

Tomé Hoje o sol parece estar cruel.

Vejamos o que vem aqui neste papel.

Elisa Cuidado! é o chapéu. Achas bom?

Tomé Excelente.

Põe lá.

Elisa (põe o chapéu)

Deve cair um pouco para a frente.

Fica bem?

Tomé Nunca vi um chapéu mais taful.

Elisa

Acho muito engraçada esta florzinha azul.

Vê agora a cambraia, é de linho; fazenda

Superior. Comprei oito metros de renda,

Da melhor que se pode, em qualquer parte, achar.

Em casa da Creten comprei um peignoir.

Page 77: Literatura e Ensino II Miolo

Capítulo 03Teatro: uma potência milenar

77

Tomé (impaciente)

Em casa da Natté

Elisa Cinco rosas da China.

Uma, três, cinco. São bonitas?

Tomé Papa-fina.

Elisa Comprei luvas couleur tilleul, creme, marron;

Dez botões para cima; é o número do tom

Olhe este gorgorão; que fio! que tecido!

Não sei se me dará a saia do vestido.

Tomé Dá.

Elisa Comprei os galões, um fichu, e este véu.

Comprei mais o plissé e mais este chapéu.

Tomé Já mostraste o chapéu.

Elisa Fui também ao Godinho,

Ver as meias de seda e um vestido de linho.

Um não, dois, foram dois.

Tomé Mais dois vestidos?

Elisa Dois...

Comprei lá este leque e estes grampos. Depois,

Para não demorar. corri do mesmo lance,

A provar o vestido em casa da Clemence.

Ah! Se pudesse ver como me fica bem!

O corpo é uma luva. Imagina que tem...

Tomé Imagino, imagino. Olha, tu pões-me tonto

Só com a descrição; prefiro vê-lo pronto.

Esbelta, como és, hei de achá-lo melhor

No teu corpo.

Elisa Verás, verás que é um primor.

Oh! a Clemence! aquilo é a primeira artista!

Tomé Não passaste também por casa do dentista?

Elisa Passei; vi lá a Amália, a Clotilde, o Rangel,

A Marocas, que vai casar com o bacharel

Albernaz...

Tomé Albernaz?

Elisa Aquele que trabalha

Com o Gomes. Trazia um vestido de palha...

Page 78: Literatura e Ensino II Miolo

Literatura e Ensino II

78

Tomé De palha?

Elisa Cor de palha, e um fichu de filó,

Luvas cor de pinhão, e a cauda atada a um nó

De cordão; o chapéu tinha uma flor cinzenta,

E tudo não custou mais de cento e cinqüenta,

Conversamos do baile; a Amália diz que o pai

Brigou com o Dr. Coutinho e lá não vai.

A Clotilde já tem a toilette acabada.

Oitocentos mil-réis.

O nariz (baixo a Tomé)

Senhor, uma pitada!

Tomé (com intenção, olhando para a caixa)

Mas ainda tens aí uns pacotes...

Elisa Sabão;

Estes dois são de alface e estes de alcatrão.

Agora vou mostrar-te um lindo chapelinho

De sol; era o melhor da casa do Godinho.

Tomé (depois de examinar)

Bem.

Elisa Senti, já no bonde, um incômodo atroz.

Tomé (aterrado)

Que foi?

Elisa Tinha esquecido as botas no Queirós.

Desci; fui logo à pressa e trouxe estes dois pares;

São iguais aos que usa a Chica Valadares.

Tomé (recapitulando)

Flores, um peignoir, botinas, renda e véu.

Luvas e gorgorão, fichu, plissé, chapéu,

Dois vestidos de linho, os galões para a saia,

Chapelinho de sol, dois metros de cambraia

(Levando os dedos ao nariz)

Vamos agora ver a compra do Tomé.

Elisa (com um grito)

Ai Jesus! esqueceu-me o bote de rapé!

Figura 25 - Rua do Ouvidor, Rio de Janeiro, 1941.

Page 79: Literatura e Ensino II Miolo

Capítulo 03Teatro: uma potência milenar

79

Numa perspectiva do teatro mais contemporâneo, é mui-

to importante que você conheça a obra de Nelson Rodri-

gues. Recomendamos o seguinte link: <http://www.itau-

cultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.

cfm?fuseaction=personalidades_biografia&cd_verbete=814>.

Acesso em: 11 abr. 2011.

Batendo papo

1) “Sujeito essencial na formação do jogo do palco, o espectador sabe que está diante de um ‘faz de conta’”. Qual é o seu entendi-mento a respeito dessa afirmação? A que tipo de reflexões essa assertiva conduz você?

2) Qual é a sua experiência com a linguagem teatral? Você já assis-tiu a alguma peça baseada em algum texto literário de expressão portuguesa? Já leu um texto teatral das nossas literaturas verná-culas? Pesquise sobre dramaturgos brasileiros e portugueses.

3) Como você poderia pensar em Édipo Rei, Hamlet, por exem-plo, a partir das ideias expostas nesse tópico? E da própria adaptação para a linguagem cinematográfica?

Leia mais!

Caso queira se aprofundar em algumas das questões discutidas nesse capí-

tulo, fornecemos o seguinte referencial teórico.

AGUIAR, Flavio. Antologia do teatro brasileiro: aventura realista e o teatro musicado. São Paulo: Senac, 1997.

Page 80: Literatura e Ensino II Miolo

Literatura e Ensino II

80

HONZL, Jindrich. A mobilidade do signo teatral. In: GUINSBURG, J. (Org.) et al. Semiologia do teatro. Tradução de Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2003.

INGARD, Romand. As funções da linguagem no teatro. In: GUINS-BURG, J. (Org.) et al. Semiologia do teatro. Tradução de Teixeira Coe-lho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2003.

KOWZAN, Tadeusz. Os signos no teatro – Introdução à semiologia da arte do espetáculo. In: GUINSBURG, J. (Org.) et al. Semiologia do te-atro. Tradução de Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2003.

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. Tradução de Luiz Sérgio Rêpa. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

VELTRUSKI, Jiri. O texto dramático como componente do teatro. In: GUINSBURG, J. (Org.) et al. Semiologia do teatro. Tradução de Teixei-ra Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2003.

VICENTE, Gil. Antologia do teatro de Gil Vicente. Rio de Janeiro: Grifo INL, 1971.

Page 81: Literatura e Ensino II Miolo

Capítulo 04A literatura incorporada

81

A literatura incorporada ou Estudos literários/performance

Somos o que fazemos. Nos dias em que fazemos,

Existimos. Nos outros, apenas duramos

O que nós não fazemos, não existe. Padre Antônio Vieira.

Em Performance, recepção, leitura, Paul Zumthor efetua algumas re-flexões a respeito das confluências existentes entre “literatura e perfor-mance”. Afinal, o que é “performance”? Embora a palavra possa estar am-plamente relacionada a “desempenho” e “atuação”, nesse contexto, ela deve ser compreendida como uma manifestação artística que pode combinar teatro, música, poesia, vídeo, por exemplo. A performance é um aconteci-mento oral e gestual, e nisso inclui o corpo e a voz no estudo/apresentação de um elemento literário. Ela dá vida ao texto literário, daí o porquê de o seu significado estar (de)marcado pela “prática”. Paul Zumthor (2007, p. 34) compreende ser “o único modo vivo de comunicação poética”.

A performance está relacionada à noção de competência, de savoir--faire ou, como diz Paul Zumthor (2007), de “saber-ser”. Implica pre-sença e conduta, ordens e valores representados em um corpo que se movimenta, gesticula, vivencia, experiencia. Assim, a performance rea-liza, materializa virtualidades. Sofre influências culturais e situacionais. Na performance, o sujeito responsabiliza-se por sua conduta, ali, no ato, desprovida de normas socioculturais e, portanto, é livre.

Ela não é apenas uma forma, um meio de transmissão de “comuni-cação”, mas uma marca, provida de unicidade. É uma forma de leitura representada, teatralizada, vivificada, onde corpo e voz se conjugam, da mesma forma que realidades e valores, constantemente envolvidos na prática da leitura literária.

As regras da performance - com efeito, regendo simultaneamente o

tempo, o lugar, a finalidade da transmissão, a ação do locutor e, em am-

4

Page 82: Literatura e Ensino II Miolo

Literatura e Ensino II

82

pla medida, a resposta do público - importam para a comunicação tanto

ou ainda mais do que as regras textuais postas na obra na seqüência das

frases: destas, elas engendram o contexto real e determinam finalmente

o alcance. Habituados como somos, nos estudos literários, a só tratar do

escrito, somos levados a retirar, da forma global da obra performatizada,

o texto e nos concentrar sobre ele. A noção de performance e o exem-

plo dos folcloristas nos obrigam a reintegrar o texto no conjunto dos

elementos formais, para cuja finalidade ela contribui, sem ser enquanto

tal e em princípio privilegiada. (ZUMTHOR, 2007, p. 30).

Se mencionamos acima que a performance é provida de “unici-dade”, compreendemos que ela sempre será única. Não há como vi-venciar, prestigiar, ver, contemplar a mesma performance duas vezes porque ela já será outra. Seja pelo tom da voz, pela acústica, pelo espa-ço cênico, pela receptividade do espectador-ouvinte. A performance, embora aparentemente mesma, será diferente, porque podem ser ou-tros os meios de recepção e intenção do autor da performance. Pode ser que esse autor seja o mesmo que realiza, que atua, que encena na performance, como pode ser apenas aquele que seleciona fragmentos do texto literário, adéqua-os à ideia de performance e orienta o tom de voz, a expressão do rosto, a cadência das falas, as pausas e a aceleração das frases, que deve ter aquele que vai tornar corporificado o texto. Daí o ato performático (a performance) estar relacionado à noção de leitura. Uma leitura que será representada pelo corpo e pela voz. Afir-ma Zumthor (2007, p. 41):

O espaço em que se inserem uma e outra [performance e a leitura] é ao

mesmo tempo lugar cênico e manifestação de uma intenção de autor.

A condição necessária à emergência de uma teatralidade performancial

é a identificação, pelo espectador-ouvinte, de um outro espaço; a per-

cepção de uma alteridade espacial marcando o texto.

A performance confere ao ato performático a qualidade de rito, de ritual, de cerimonial, porém diferencia-se do ritual/cerimonial religioso devido à ausência do sagrado, necessitando do presente para se concre-tizar; aliás, ela tem sua vida “concretizada”, sua existência confirmada,

Page 83: Literatura e Ensino II Miolo

Capítulo 04A literatura incorporada

83

no aqui e agora. Não há como reviver a performance, não é possível repeti-la. Embora se intente filmar um ato performático com o objetivo de “arquivá-lo”, de “guardá-lo”, ou mesmo, “eternizá-lo”, não será possí-vel vivenciar a mesma experiência, pois a tecnologia apenas reproduzirá aquilo que conseguiu captar.

O corpo também é um elemento crucial na realização da per-formance; faz vibrar experiências, sensações, emoções. Ele gesticula palavras e é responsável por dar uma feição, materialização, do texto que apresenta:

é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele

que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o

peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materia-

lização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina mi-

nha relação com o mundo. Dotado de uma significação incomparável,

ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para o

melhor e para o pior. Conjunto de tecidos e de órgãos, suporte da vida

psíquica, sofrendo também as pressões do social, do institucional, do

jurídico, os quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro. Eu

me esforço, menos para apreendê-lo do que para escutá-lo, no nível do

texto, da percepção cotidiana, ao som dos seus apetites, de suas penas

e alegrias: contração e descontração dos músculos; tensões e relaxa-

mentos internos, sensações de vazio, de pleno, de turgescência, mas

também um ardor ou sua queda, o sentimento de uma ameaça ou, ao

contrário, de segurança íntima, abertura ou dobra afetiva, opacidade ou

transparência, alegria ou pena provindas de uma difusa representação

de si próprio. (ZUMTHOR, 2007, p. 23-24).

Através do corpo, vivemos a experiência da performance, pois a palavra é “monumentalizada”, uma instância de simbolização, de com-petência, de um saber-ser no tempo e no espaço, cujo referente é da ordem do corpo, da voz, do gesto (este produzindo metaforicamente as mensagens do corpo). Além disso, o corpo e o cenário, exibidos na per-formance, não estão apenas à serviço da visualidade, mas se oferecem a um contato, que liga corpo humano e poesia, corpo humano e especta-

Page 84: Literatura e Ensino II Miolo

Literatura e Ensino II

84

dores. Por ele é possível fazer-se tempo e lugar pela voz, que proclama a emanação do ser, e Zumthor (1997, p. 157) afirma que

A escrita também comporta, é verdade, medidas de tempo e espaço:

mas seu objetivo último é delas se liberar. A voz aceita beatificamen-

te sua servidão. A partir desse sim primordial, tudo se colore na língua,

nada mais nela é neutro, as palavras escorrem, carregadas de intenções,

de odores, elas cheiram ao homem e à terra (ou aquilo com que o ho-

mem os representa).

Mas, “a voz não descreve; ela age, deixando para o gesto a respon-sabilidade de designar as circunstâncias” (ZUMTHOR, 1997, p. 57). Quando da performance, é preciso estar atento à circunstância, ao pú-blico, à pessoa que a transmite, ao seu objetivo no curto prazo. Em al-guns casos, os poemas-performance tornam-se incompreensíveis fora da situação, do seu contexto. Paul Zumthor (1997, p. 155) fornece um exemplo bastante interessante para pensar nesta questão.

Instância de realização plena, a performance determina todos os outros

elementos formais que, com relação a ela, são pouco mais que virtua-

lidades. Cantoras africanas de lamentação são incapazes de reproduzir

seus poemas fora de funerais autênticos.

Como é possível verificar no fragmento acima, a performance, muitas vezes, precisa de uma ambientação própria, de um contexto, de elementos formais, que vão além do desempenho, do “ato performático”. E, para que a performance de fato ocorra, a presença de uma plateia constitui-se em elemento fundamental. A performance lança mão da teatralidade, do en-gajamento do corpo, da voz, do gesto, do movimento, por exemplo, para se concretizar. Por seu caráter intervalar, múltiplo, de conjugar tantos ele-mentos, torna-se praticamente impossível delimitá-la.

No nordeste do Brasil, ainda temos a figura da

carpideira. Essa é uma performance muito inte-

ressante.

Figura 26 - Carpideiras.

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Capítulo 04A literatura incorporada

85

Batendo papo

1) Algumas obras representam a literatura não como uma pági-na impressa, mas como uma experiência corporal. Faça uma leitura de apresentações performáticas na internet. Sugerimos, por exemplo, as performances dos grupos “Pilobolus”, “Cia de Dança Deborah Colker”, “Grupo Corpo”. Associe as imagens performáticas que encontrou com as ideias que expusemos nes-se tópico.

Leia mais!

Sugerimos aqui dois bons livros, leituras importantes para pensar sobre a

performance e as suas relações com a literatura e a leitura – modos de ver.

CARLSON, Martin. Performance – Uma introdução crítica. Minas Ge-rais: UFMG, 2010.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. 2. ed. rev. e ampl. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

Page 86: Literatura e Ensino II Miolo
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Capítulo 05O cinema e as adaptações

87

O cinema e as adaptações ou Estudos literários/adaptações cinematográficas

Repetir, repetir até ficar diferente

Repetir é um dom de estilo

Manoel de Barros. In: Uma didática da invenção.

Pensar (n)as relações que a Literatura estabelece com o cine-ma vai muito além dos aspectos relacionados à noção de prazer au-diovisual e/ou à (falsa) ideia de que se pode facilmente dispensar a leitura de um livro ao assistir a um filme que lhe tem por base. Mi-tos que permeiam o universo escolar e que fazem com que os es-tudantes acreditem friamente que uma adaptação em filme, basea-da em uma obra literária, é o mesmo que ler o livro. Embora uma adaptação de um texto literário para o cinema possa ser quase a mesma coisa que o livro, é imprescindível ter em mente de que é uma transpo-sição de recursos, meios e espaços, por exemplo. Trata-se de ver nessas adaptações – filmes – leituras possíveis; leituras que tiveram por base um texto literário, tangenciadas por escolhas, seleções, inclusões e ex-clusões, ou, como afirma o semiólogo italiano Umberto Eco (2007, p. 20-21), compreender em que sentido o texto poético foi transposto e interpretado em imagens:

suponhamos que demos a um tradutor um impresso em francês, forma-

to A4, caracteres Times e corpo 12, que conta com 200 páginas e que o

tradutor traga como resultado de seu trabalho um impresso no mesmo

formato, caractere e corpo, mas de 400 páginas. O senso comum nos

adverte que essa tradução deve ter alguma coisa que não funciona. Creio

que se poderia despedir o tradutor sem sequer abrir o seu trabalho. Se,

ao contrário, tendo dado a um diretor de cinema A Silvia de Leopardi, ele

nos devolvesse uma fita com duas horas de duração, não teríamos ele-

mentos para decidir se se trata de um produto aceitável ou não. Teríamos

primeiro que ver o filme para compreender em que sentido o diretor

interpretou e transpôs para imagens o texto poético.

Algumas das reflexões presentes neste capítulo foram retiradas de COR-SO, Gizelle Kaminski. A Divina Commedia em jogo – Tese de Doutorado.Orientadora: Profa. Dra. Maria Teresa Arrigoni. Flo-rianópolis, UFSC, 2012.

Das diversas categorias de Premiação do Oscar, existe a de “Melhor roteiro adaptado”, por meio da qual são premiados os melhores roteiros de adaptações cinematográ-ficas, baseados geralmen-te em romance, peça de teatro ou conto.

5

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Literatura e Ensino II

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Segundo a pesquisadora Thaïs Diniz, o primeiro trabalho teórico sério em adaptação cinematográfica foi efetuado em 1957 por George Bluestone, que defendeu a possibilidade de metamorfosear textos lite-rários em outros meios e recursos. Nesse percurso, seguiram seus pas-sos Geoffrey Wagner (1975) and Dudley Andrew (1984), mas adotan-do como critério de avaliação a “fidelidade” [faithfulness]. Análises que pautavam as “perdas e ganhos” quando da passagem do texto ao filme. No geral, esse processo tem sido visto como um tipo de tradução, mais precisamente, de tradução intersemiótica, por efetuar a “passagem” de um texto literário a outros signos, a outros semas, a outras linguagens. O processo de adaptação, ainda, segundo Diniz, tem sido visto como “uni-direcional” [unidirectional], indo sempre do texto literário para o filme e tendendo a se concentrar na comparação entre dois tipos de “texto”, cujo sucesso ou fracasso do segundo [filme] é sempre medido de acordo com a aproximação que tem com o primeiro [livro – o original].

Adalberto Müller, em Além da literatura, aquém do cinema? Con-siderações sobre a intermedialidade, percebe, na literatura e no cinema, mídias que se interrelacionam de modos diversos em um universo mi-diático amplo que inclui a tradição oral, o rádio, a imprensa, a televisão, as artes visuais, a internet, entre outros. Nesse sentido, distingue duas acepções para o termo “mídia”: pode ser tanto entendido como sinôni-mo de meios de comunicação de massa, geralmente no singular - mídia -, quanto aparecer no sentido de suporte físico para registro, gravação e transmissão - mídia(s). Assim, ao abordar as relações entre a literatura e o cinema, faz a seguinte afirmação a respeito das adaptações:

A questão da adaptação não é, em si, uma questão irrelevante. Ela se

torna irrelevante quando é tratada de modo superficial. Em geral, os

trabalhos sobre adaptação no âmbito dos estudos literários partem

de um pressuposto errado e chegam a uma conclusão pouco produ-

tiva: o pressuposto errado – na verdade um preconceito – é o de que é

preciso conhecer antes de tudo a obra literária, e que a adaptação, por

melhor que seja, sempre vai ser inferior ao texto literário. A conclusão

pouco produtiva vem da falta de preparo dos literatos para com a coisa

cinematográfica. Em geral, faltam aos literatos, mesmo quando cinéfi-

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Capítulo 05O cinema e as adaptações

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los, conhecimentos mais aprofundados da técnica cinematográfica e da

realidade dos meios de comunicação de massa. (MÜLLER, 2008, p. 50).

Müller toca em um ponto interessante quando afirma que falta aos literatos conhecimentos mais aprofundados da técnica cinematográfica e até mesmo dos meios da comunicação de massa. Se muitos literatos procurassem se aprofundar em assuntos dessa natureza, muitas discus-sões e análises de filmes sairiam da velha dicotomia devedora “original--cópia”. No discurso sobre as adaptações cinematográficas, as lamenta-ções sobre o que foi “perdido”, o que ficou de fora, o que foi alterado, são tão intensas que ignoram cegamente o que foi “ganhado”, o que foi recriado, o que foi relativizado. Assim, instaura-se (ou permanece) a superioridade maciça da literatura sobre o cinema. Como se este, em matéria de adaptação, não pudesse ter autonomia e autoridade. Como se o cinema apenas intentasse corromper e vulgarizar o “conteúdo” do livro; comprometer a sua literariedade. Nesse sentido, Stam (2006, p. 21) elenca uma série de preconceitos primordiais, a citar:

1) antiguidade (o pressuposto de que as artes antigas são necessa-riamente artes melhores);

2) pensamento dicotômico (o pressuposto de que o ganho do ci-nema constitui perdas para a literatura);

3) iconofobia (o preconceito culturalmente enraizado contra as artes visuais, cujas origens remontam não só às proibições ju-daico islâmico-protestantes dos ícones, mas também à depre-ciação platônica e neoplatônica do mundo da aparência dos fenômenos);

4) logofilia, (a valorização oposta, típica de culturas enraizadas na “religião do livro”, a qual Bakhtin chama de “palavra sagrada” dos textos escritos);

5) anticorporalidade, um desgosto pela “incorporação” impró-pria do texto fílmico, com seus personagens de carne e osso,

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interpretados e encarnados, e seus lugares reais e objetos de cenografia palpáveis; sua carnalidade e choques viscerais ao sistema nervoso;

6) a carga de parasitismo (adaptações vistas como duplamente “menos”: menos do que o romance porque uma cópia, e menos do que um filme por não ser um filme “puro”).

Embora a noção binária (e hierárquica) “original” versus “cópia” tenha prevalecido nos estudos literários por muito tempo e sido a res-ponsável por instaurar alguns dos preconceitos enumerados acima por Robert Stam, algumas teorias, como a da intertextualidade de Julia Kristeva, baseada na questão do dialogismo de Bakhtin, enfocando a permutação de textualidades, e a da desconstrução, de Derrida, prova-ram justamente o contrário e desmantelaram-na [a noção binária]. Na esteira dessas teorias, passou-se a pôr em questionamento a noção de autoria, da paternidade do texto, explicitadas no ensaio de Roland Bar-thes, A morte do autor (1968). Nesse texto, Barthes discute o conceito da figura do autor, consolidada fortemente pela crítica (e não apenas pela biográfica), que procurava explicar a obra por aquele que a havia escrito. Com a morte do autor, teria vida a escritura do texto, e consolidar-se-ia o nascimento do leitor. Aqui é importante compreendermos esse con-ceito de “morte” metaforicamente, e não em seu sentido literal, de cessar a vida, falecer, mas sim como uma forma de desprendimento biográfi-co, de perceber que, no discurso literário, “é a linguagem que fala, não o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia [...], atingir esse ponto onde só a linguagem age, “performa”, e não “eu” (BARTHES, 1988, p. 66). Questionamos, então, como comunicar (um)a presença autoral, de uma linguagem que age, que “performa” na adaptação cine-matográfica se esta envolve uma noção fragmentária, multifacetada de autoria por ter nela interferências do diretor, produtor, roteirista, por exemplo? Assim, a adaptação pode ser vista como uma “orquestração de discursos”, uma construção híbrida, que mescla inúmeros discursos, mídias e recursos com a finalidade de produzir um só texto, o texto--fílmico. E, nessa perspectiva, Robert Stam (2006, p. 24) assevera que

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Capítulo 05O cinema e as adaptações

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a adaptação faz parte de um espectro de produções culturais niveladas

e, de forma inédita, igualitárias. Dentro de um mundo extenso e inclu-

sivo de imagens e simulações, a adaptação se torna apenas um outro

texto, fazendo parte de um amplo contínuo discursivo.

De acordo com as palavras do professor americano, a adaptação pas-sa a ser vista como uma forma de leitura ou interpretação. Na adapta-ção cinematográfica, são criadas novas situações, novas roupagens, novas (ou diferentes) concepções para determinados aspectos do romance por exemplo. Não pretende imitar fielmente o estado de coisas presentes no texto-fonte, mas criar uma nova situação que envolva fala, som e ima-gem. Não ambiciona apenas retratar, mas criar novos “mundos”. Como exemplo, podemos citar a adaptação cinematográfica, O primo Basílio (2008), baseada no livro de Eça de Queirós. Dirigido por Daniel Filho, com roteiro de Euclydes Marinho, e tendo no elenco artistas consagrados da televisão brasileira, como Débora Falabella, Fábio Assunção, Reynaldo Gianecchini e Glória Pires, o filme de antemão apresenta uma questão bastante “peculiar” com relação ao “original”: é ambientado no final de década de 50, em uma São Paulo em expansão tecnológica e industrial.

Uma das diferenças instauradas nessa adaptação que apontamos é a “ambientação”, o espaço, que pode tanto surpreender os leitores do escritor português quanto irritar os mais tradicionalistas, que passam a ver tal texto-fílmico como infiel ao “original”. Não significa dizer que, por instaurar diferenças, a adaptação perde (ou ganha) em rigor e qua-lidade. O que interessa é tentar perceber de que forma um texto do es-critor português foi trazido para o século XXI quando transformado em filme. Interessa, aqui, compreender que a literatura continua sendo fonte para escritores, roteiristas e diretores, continua sendo matéria de recriação, de textualidade, ou melhor, de transtextualidade(s).

Ao se compreender a adaptação cinematográfica como um discurso autônomo, a literatura passou a perder um pouco de sua “aura” e enfraque-ceu, assim, o valor de culto do original. Nesse sentido, a adaptação passou a ser outro texto que pode ter (muito ou pouco) a ver com aquele que lhe serviu de base. Segundo Stam (2006, p. 27), a teoria da adaptação

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tem à sua disposição, até aqui, um amplo arquivo de termos e concei-

tos para dar conta da mutação de formas entre mídias – adaptação en-

quanto leitura, re-escrita, crítica, tradução, transmutação, metamorfose,

recriação, transvocalização, ressuscitação, transfiguração, efetivação,

transmodalização, significação, performance, dialogização, canibaliza-

ção, reimaginação, encarnação ou ressurreição.

Entre os inúmeros termos e conceitos evidenciados acima, que en-focam a prática da adaptação, compreendida de forma ampla, Robert Stam não se detém em nenhum deles, mas analisa de perto os conceitos da transtextualidade de Genette: intertextualidade (que pode se dar por meio de um objeto, falas, imagens), paratextualidade (títulos, prefácios, posfácios, epígrafes, ilustrações, dedicatórias e, no filme, pode englobar resenhas, trailers, entrevistas com diretor, pôsteres... – os DVDs atual-mente trazem inúmeros elementos de paratextualidade e contribuem para remodelar a compreensão do filme); metatextualidade (relação crí-tica de um texto com outro, ou seja, evoca toda a tradição de versões), arquitextualidade (taxonomias genéricas sugeridas ou refutadas pelos títulos e subtítulos de um texto/filme), hipertextualidade (talvez a mais relevante para a “adaptação”).

No seu texto, Por um cinema impuro – Defesa da adaptação (1991), André Bazin (1991, p. 82, 93-94) vai acrescentar, dizendo que “o drama da adaptação é o da vulgarização”, mas defende a prática das adaptações ci-nematográficas por compreender aquilo que é tido por “traição” é relativo, e “a literatura nada perde com isso”. No entanto, reconhece que romances excelentes sejam apenas tratados como “sinopses bem desenvolvidas”.

Bazin reconhece a “jovialidade” do cinema, considerando-o como a única arte popular que toca grande parte da população, questiona-se se ele [o cinema] seria capaz de sobreviver sem as muletas da literatura e do teatro, mas percebe que, com o passar do tempo, trocas entre uma arte e outra passaram a ser mútuas:

Se a crítica deplora freqüentemente os empréstimos que o cinema faz à

literatura, a existência da influência inversa é geralmente tida tanto por

O cinema, desde sua cria-ção, o ano de 1985, tem

pouco mais de 100 anos.

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Capítulo 05O cinema e as adaptações

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legítima quanto por evidente. É quase um lugar-comum afirmar que

o romance contemporâneo, e particularmente o romance americano,

sofreu a influência do cinema. (BAZIN, 1991, p. 88).

Ainda, com relação às adaptações cinematográficas, é interessante levar em conta a contraposição da sequência linear à não linear (ana-cronias). Além disso, entra em questão a duração, ou seja, o tempo do discurso (quanto se leva para ler o romance e para assistir ao filme). Segundo o professor Robert Stam (2006, p. 41), “o problema que im-porta para os estudos da adaptação é que princípio guia o processo de seleção ou “triagem” quando um romance está sendo adaptado? Qual é o “sentido” dessas alterações?”. Ou seja, refletir no processo de como as adaptações adicionam, eliminam ou condensam personagens, fatos e episódios. Tomemos como exemplo A hora da estrela, novela de Clari-ce Lispector, comparando-a livremente ao filme de Suzana Amaral. Por meio dessa retomada, você tem a oportunidade de pensar os diálogos que a literatura estabelece com o cinema, ou de pensá-las, como já afir-ma o professor Adalberto Müller, como mídias que se interrelacionam de modos diversos, mas sem segregação.

Muitas vezes, a publicação do romance e produção do filme acon-tecem em um curto espaço de tempo. Em casos como best-sellers, os produtores apressam-se em fazer o filme em plena febre da leitura do livro, na tentativa de lucrar na esteira do sucesso de vendas daquele [do livro]. Nesse exemplo, entrariam os livros de Dan Brown e os da escrito-ra Stephenie Meyer, autora da saga Crepúsculo.

O ato de adaptação, que inclui uma série complexa de operações como, segundo Stam, seleção, amplificação, concretização, atualiza-ção, crítica, extrapolação, popularização, reacentuação, transcultura-lização, o filme sobre o romance, a novela ou conto – texto literário tido como “original”, “texto-fonte” –, pode ser visto como uma ex-pressão situada, produzida em determinado momento e meio. Mas o cinema, em matéria de adaptações, não se nutre apenas de textos lite-rários. Como afirma Stam (2006, p. 49),

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Embora o estudo das adaptações freqüentemente assuma que os tex-

tos-fonte são literários, as adaptações também podem ter fontes sub-

-literárias ou para-literárias. Filmes históricos como Reds adaptam textos

históricos. Filmes biográficos adaptam textos biográficos sobre figuras

históricas famosas. Alguns filmes, como O Homem Errado, de Hitchco-

ck, adaptam reportagens de jornal. Um filme como O Homem Aranha

adapta uma história em quadrinhos. Veja Esta Canção, de Carlos Die-

gues, adapta músicas populares brasileiras.

E a lista certamente seria imensa diante das inúmeras inter-relações entre as diversas mídias (literatura, histórias em quadrinhos, música...) e o cinema. A comparação entre diferentes mídias, a transposição de um canal para outro, como da literatura para o cinema, deve servir para enriquecer o filme, e não o contrário. O foco da análise precisa enfatizar elementos fílmicos no filme, e não querer procurar elementos literários na adaptação cinematográfica. Há outros recursos, e um deles é o fato de a câmera poder atuar como narrador por exemplo. E a respeito do olhar da câmera, o roteirista e dramaturgo francês Jean-Claude Carrière (2010, p. 46) constatou uma questão interessante:

Se penso no nosso uso do livro, nosso olho vai da esquerda para a direita

e de cima para baixo. No caso da escrita árabe e persa, do hebraico, é o

contrário. O olho vai da direita para a esquerda. Perguntei-me se esses

movimentos não tinham influenciado os movimentos de câmera no ci-

nema. A maioria dos travellings, no cinema ocidental, vai da esquerda

para a direita, ao passo que verifiquei muitas vezes o contrário no cine-

ma iraniano, para citar apenas este. Por que não imaginar que hábitos

de leitura possam condicionar nossos modos de visão? Os movimentos

são instintivos de nossos olhos?

A pergunta que encerra o excerto acima toca na questão cultural do modo de ver, de ler, de olhar. A câmera parece ser uma extensão dos olhos e age de acordo com o olhar daquele que, por intermédio dela, olha, fragmenta, sedimenta em imagens um modo de enxergar o mun-do. Além do olhar da câmera, do enfoque, da evidência narrativa muitas vezes suplantada pela sucessão de cenas, outro elemento muito evidente

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Capítulo 05O cinema e as adaptações

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na prática cinematográfica é a trilha sonora, que pode ter uma função espacial – de preencher algumas “lacunas” –, bem como de sinalizar a passagem do tempo aliada à troca simultânea de imagens.

José Carlos Avellar (1994, p. 208), em O chão da palavra, partindo de algumas reflexões acerca de trecho do livro de Mário de Andrade, Amar, verbo intransitivo, apresenta a seguinte questão: “a imagem deve ser criada segundo a fantasia do leitor/diretor do filme ou segundo a fantasia daquele um especial que passa pelo texto com maior compreen-são e entusiasmo, o leitor/autor dele?”. Se, ao lermos um romance, deco-ramos, anotamos, marcamos, sublinhamos, riscamos e disseminamos, de uma forma ou de outra, as partes que mais nos chamaram a atenção, o que nos fica do filme? A história? Se fosse apenas a “história”, tratando--se de uma adaptação literária, não ficaria então aquilo que seria digno do livro, do suposto domínio do “autor”? Um filme pode nos chamar a atenção não somente por sua história, mas, na maioria das vezes, pelas imagens que estampa em nossa memória, compostas por músicas, que compõem combinações inesquecíveis. Nas fronteiras da literatura e do cinema, se é que elas realmente existem, José Carlos Avellar (1994, p. 208) lança as seguintes provocações:

Enquanto lemos um romance: com a máquina cinematográfica do in-

consciente fazemos cinema? E se assim é: enquanto vemos um filme, na

imaginação escrevemos um romance? O texto literário sugere que sua

leitura seja uma espécie de adaptação para o cinema? O texto literário

em sua essência seria um roteiro de um filme que se passa só no imagi-

nário do leitor?

Se criamos “imagens”, e até mesmo “cenas”, daquilo que lemos, além de fazermos “cinema”, não atuamos também como uma espécie de ilustrador em estágio mental? Estaria, então, o ilustrador como uma espécie de fotógrafo do livro, e o cineasta como aquele que movimenta as “fotografias” de um “ilustrador”?

Podemos dizer tranquilamente ao terminar de assistir a um filme: “ah, mas eu imaginava o médico do Ensaio sobre a cegueira bem diferen-

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te…”. Mas cada leitor o imaginava. E todo o leitor criou para si um mé-dico diferente, o que resultaria na seguinte fórmula: imagens de médicos = quantidade de leitores. Fernando Meirelles, diretor do filme baseado nesse livro de José Saramago também criou para si uma imagem do mé-dico, mas precisou conjugá-la com a existência de um ator, de um corpo, de um rosto. Daí caírem acusações sobre o diretor, o roteirista e, inclu-sive, o próprio ator do filme. Contradições que nosso cérebro, nossa fa-culdade de ilustradores mentais do livro, insistem em não aceitar. E para trazermos um exemplo de um livro que virou best-seller, e depois filme, questionamos: muitos leitores-espectadores concordaram com a atuação de Tom Hanks no papel de Robert Langdon, personagem do livro O có-digo da Vinci, de Dan Brown, mas muitos discordaram da jovialidade da francesinha Audrey Tautou para desempenhar o papel de Sophie Neveu.

E por que isso acontece? Porque nossa cultura ainda resiste às adap-tações (e aqui não precisaríamos nos ater a apenas as cinematográficas). A esse respeito, retomamos André Bazin (1991, p. 93) e apresentamos aqui mais um argumento em defesa das adaptações para o cinema:

É absurdo indignar-se com as degradações sofridas pelas obras-primas

literárias na tela, pelo menos em nome da literatura. Pois, por mais apro-

ximativas que sejam as adaptações, elas não podem causar danos ao

original junto à minoria que o conhece e aprecia; quanto aos ignorantes,

das duas uma: ou se contentarão com o filme, que certamente vale por

um outro, ou terão vontade de conhecer o modelo, o que é um ganho

para a literatura.

Por intermédio do excerto de Bazin e dos apontamentos de Robert Stam apresentados anteriormente, cujas análises para o termo “adapta-ção” centram-se no objeto “cinematográfico”, podemos perceber que as adaptações para este canal estão sempre em débito com o original, que é o texto literário usado como fonte. Observamos isso também no livro Uma teoria da adaptação (2011), da crítica canadense Linda Hutcheon, recentemente traduzido para a língua portuguesa. A pesquisadora pauta sua tentativa de uma teoria da adaptação prioritariamente nas adapta-ções efetuadas para o cinema, mas não perde de vista outros “formatos”

Correm boatos na internet de que Audrey Tautou e Jean Reno fo-

ram sugeridos pelo pre-sidente francês Jacques Chirac. Ron Howard foi

obrigado a deixá-los en-trarem no elenco, pois

somente assim seria possível conseguir uma autorização para filmar

no Museu do Louvre, onde a história começa.

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Capítulo 05O cinema e as adaptações

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(adaptações literárias para jovens leitores, para o teatro, para a ópera, para o video game por exemplo). Como ainda não existe uma teoria da adaptação, Linda Hutcheon, sem imposições, aventura-se em Uma Teoria, como o próprio título do livro evidencia. Seu livro é uma espé-cie de manifesto em prol das adaptações, especialmente as de cunho cinematográfico. Em suas tentativas de definição, a estudiosa canadense procura esboçar um paralelo entre adaptações e paródias dizendo:

Tal como as paródias, as adaptações têm uma relação declarada e definitiva

com textos anteriores, geralmente chamados de “fontes”; diferentemente

das paródias, todavia, elas costumam anunciar abertamente tal relação. A

valorização (pós-)romântica da criação original e do gênio criativo é clara-

mente uma das fontes da depreciação de adaptadores e adaptações. No

entanto, essa visão negativa é, na realidade, um acréscimo tardio ao velho

e jovial hábito da cultura ocidental de emprestar e roubar – ou, mais preci-

samente, de partilhar – diversas histórias. (HUTCHEON, 2011, p. 24).

Assim, no momento em que um trabalho é chamado “adaptação”, sua relação com o original, ou mesmo com outros textos a que faz re-ferência, já está patentemente anunciada. No entanto, as adaptações custam a ser vistas com “autonomia”, e têm sido estudadas por muito tempo pelo viés comparatista, permeado principalmente pelo critério da “fidelidade” ao texto fonte. Porém, se as adaptações estão deixando de passar apenas pelo crivo da “fidelidade”, quais são os critérios que deveriam norteá-las? Segundo Linda Hutcheon, o fenômeno da adap-tação poderia ser norteado por três aspectos: uma entidade formal ou produto, um processo de criação e um processo de recepção. Hutcheon também aponta para o fato de que o termo – adaptação – é tanto usado para o “produto” quanto para o “processo”.

Em matéria de adaptação, a história parece ser o denominador comum, o enredo transposto para diferentes mídias e/ou gêneros. No entanto, isso possibilita mudanças no tempo, focalização… E se as adap-tações são frequentemente comparadas a traduções, Linda Hutcheon procura esclarecer uma diferença: “Assim como não há tradução literal, não pode haver uma adaptação literal”. (HUTCHEON, 2011, p. 39).

A respeito da “paródia” vide: HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa: Ed. 70, 1989.

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Bazin (1991, p. 95-96) também lança uma reflexão interessante e provocativa ao dizer: “pelas mesmas razões que fazem com que a tradu-ção literal não valha nada, com que a tradução livre demais nos pareça condenável, a boa adaptação deve conseguir restituir o essencial do tex-to e do espírito”. Adaptação não é trair, mas respeitar.

Filmes adaptados de romances, em um quesito, ou em outro, sempre vão diferir do livro. Seja pela ambientação, pelas partes selecionadas, pelos atores escolhidos, pelo olhar flagrante da câmera, pela trilha sonora, pelo roteiro. Segundo o professor Avellar (1994, p. 211), “escrever um roteiro parece trabalho de escritor, mas não é a mesma coisa: o que se escreve não é bem uma escrita, mas imagem desenhada com letras” [grifos nossos]. O roteirista, ainda, precisa fornecer elementos que auxiliem na definição do ator, quem irá completar a vida do personagem, enquanto que o es-critor tem a liberdade de usar o número de páginas que lhe convier para fazer isso. Acrescenta Avellar (1994, p. 218), “o romance conta o que o narrador presenciou […]. O roteiro presentifica e exterioriza”.

Um roteiro não se reduz a uma anotação por escrito das ações, dos diá-

logos e do desenho das imagens de um filme a ser feito. É um estímulo

para que em outras leituras e em conversas artistas e técnicos se dei-

xem contagiar pela febre que tomou conta do diretor e o levou a ver/

delirar tudo aquilo. Um roteiro inspirado num texto literário (o romance

então lido como se fosse a descrição de um filme imaginário) tem algo

de trabalho de recuperação das imagens que estimularam a invenção

da palavra. Roteiros adaptados são uma ponte de mão dupla: a leitura

avança em direção às imagens do filme a ser feito e, simultaneamente,

recua para a imagem que o autor viu antes de escrever (como se es-

sas imagens fossem o roteiro para o livro ou o filme imaginário que ele

adapta no livro). (AVELLAR, 1994, p. 218-9).

Assim, narrar no cinema significa transformar em imagens as ações, “a palavra existe só como semente de imagem” (AVELLAR, 1994, p. 219). O romance adaptado para o cinema procura narrar a mesma história de modo diferente. O cinema reinventa, recria, reescreve a literatura, e vice-versa. Um contagia o outro, mas cada um o faz a sua maneira.

Como você já pôde ler e estudar no Capítulo 2, As

imagens e a literatura.

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Capítulo 05O cinema e as adaptações

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As adaptações cinematográficas de textos literários permitem-nos pôr em questão as categorias narrativas (narrador, personagem, enredo, espaço, tempo). Para que procurar cristalizações nas transposições da escrita para fala, som e imagem?

São questionamentos que nos permitem pensar a literatura como uma disciplina (ou ciência? Ou arte?) que está relacionada com várias formas de expressão: com as artes, a música, o cinema e as novas tecno-logias. Atendo-nos à última, que deu início às reflexões deste capítulo, chamaremos a atenção para uma forma pela qual a literatura também está se fazendo presente na contemporaneidade: em jogos de video game. E citamos, como exemplo, o jogo Dante’s Inferno, lançado em 2010, pelas empresas americanas Visceral Games e Eletronic Arts. O pano de fundo, inspiração ou base é a primeira parte da Divina Commedia, o Inferno, escrita pelo poeta italiano Dante Alighieri. Embora o jogo se baseie no texto do poeta italiano, é possível perceber, desde o início, uma adapta-ção-livre. O jogador tem como objetivo salvar Beatriz, que foi raptada por Lúcifer. Para que isso aconteça, o jogador (Dante) deve ultrapassar os obstáculos dos nove círculos do Inferno e enfrentar a criatura dia-bólica no centro gelado do Inferno – Lúcifer. O mais curioso de tudo isso é que o jogo resultou em uma animação longa que vai narrar toda a viagem de Dante até o momento de livrar Beatriz do mal.

A animação homônina, que carrega o epíteto de an animated epic, elaborada pelas mesmas produtoras do jogo, sob a direção de Mike Disa e Victor Cook, desde o princípio, pode surpreender os leitores da Divi-na Commedia, os leitores-espectadores ou, mais precisamente, leitores--espectadores-internautas, como define Néstor Canclini no seu livro Leitores, espectadores e internautas (2008).

Assim, o leitor do texto de Dante torna-se um espectador, que pode tanto se admirar quanto se espantar com a adaptação-livre da Divina Commedia. Aquele que espera encontrar a imagem conhecida de Dante, homem franzino, de rosto fino, com túnica longa, ramos de louro na ca-beça – imagens que encontramos nas ilustrações de Sandro Botticelli, no século XV, e, posteriormente, nas de Gustave Doré, no século XIX, ilus-

Néstor García Canclini (Ar-gentina, 1939) é Doutor em Filosofia pelas Univer-sidades de Paris e La Plata.

Figura 27 - Dante Alighieri. Gustave Doré.

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trações que se responsabilizaram por instaurar no imaginário coletivo a figura do poeta italiano – vai ser surpreendido com a de um guerreiro me-dieval, montado em um cavalo, de cabelos longos, corpulento, e armadura no peito. Virgílio, aquele que guia Dante na peregrinação infernal, é seu companheiro, mas muda de figura à medida que avançam nos círculos.

O Dante deste século é um cavaleiro templário das Cruzadas que comete inúmeras atrocidades em sua vida, entre elas a de trair Beatriz, cometendo o pecado da tentação, acreditando que suas falhas seriam absolvidas por terem sido cometidas em nome da Igreja. Quando o po-eta-personagem foi para as Cruzadas, prometeu amor eterno à amada, assim, Beatriz fez uma aposta com Lúcifer, acreditando que Dante nun-ca a trairia. Como ele a traiu, sua alma [a de Beatriz] foi levada como presa para o Inferno para se tornar a mais nova noiva de Lúcifer. De iluminada alma dos céus, Beatriz poderia vir a se tornar a companheira maléfica e diabólica de Lúcifer, procedendo a Helena de Tróia e Cleópa-tra, que também foram noivas do comandante infernal.

Não cabe, aqui, efetuar uma análise apurada do jogo em contrapo-sição aos versos de Dante e muito menos enumerar todas as diferenças (ou liberdades criativas?) entre a Divina Commedia e a adaptação-livre, baseada no game, que se inspirou no texto de Dante. E isso talvez nem venha ao caso. Não nos interessam as diferenças, o que sobra ou falta, o que está diferente no filme ou no jogo, o que o leitor-espectador-in-ternauta deixa de conhecer do seu “original”, mas sim constatar que tais adaptações (jogo para video game e filme – animação) não esvaziam a obra que lhes serve de inspiração, que é a Divina Commedia. Essas adap-tações transformam o texto de Dante em jogo, em ação, em evidência, e mostram que, apesar de já terem passados mais de 500 anos de sua publicação, a Divina Commedia está viva, sendo resgatada e adquirindo possíveis leitores-espectadores, que são também jogadores. Leitores que estão tendo um contato diferente com a literatura, que fazem a leitura de uma versão do texto do poeta italiano, interagindo e divertindo-se mutuamente. A cada obstáculo vencido, a cada círculo conquistado, po-dem ter a sensação de reconhecer em si mesmo um pouco de Dante, um pouco de poeta, um pouco absoluto.

Figura 28 - Dante, em Dante’s Inferno (animação).

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Capítulo 05O cinema e as adaptações

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E se partimos das adaptações para o cinema, finalizando nossas reflexões em uma animação que é baseada em um jogo para video game, pretendemos demonstrar algumas das inúmeras possibilidades de (re)criação com as quais a literatura vem dialogando. Nosso objeti-vo com este capítulo, como afirmamos no início, foi o de demonstrar a importância das adaptações para o cinema no sentido de serem lei-turas possíveis; leituras que têm por base textos literários, e são elabo-radas de acordo com escolhas, seleções, inclusões e exclusões. Nosso propósito com este texto, melhor dizendo, com este livro-texto, é lan-çar olhares diferentes por diferentes olhares para a literatura na sua relação com outras linguagens.

Batendo papo

1) Faça uma lista de todas as adaptações de romances, contos, peças teatrais para o cinema que você assistiu ou pesquise na internet através de resenhas críticas, blogs específicos e escolha uma delas para analisar criticamente. Com base na leitura deste tópico, elabore seus próprios critérios de “avaliação crítica”.

2) Baseando-se na leitura do texto de Contardo Calligaris, Cor-cunda cor-de-rosa, publicado na Folha de São Paulo, em 1996, explicite a seguinte afirmação: “Somos uma cultura da nostal-gia e do mau humor combinados”. A que se refere Calligaris quando faz essa afirmação? E como ele se posiciona diante das adaptações cinematográficas?

Leia mais!

Textos que analisam criticamente a questão das adaptações cinemato-gráficas. Diálogos entre literatura e cinema, entre livros e telas, entre câmeras e leitores.

Page 102: Literatura e Ensino II Miolo

Literatura e Ensino II

102

BAZIN, André. Por um cinema impuro - Defesa da adaptação. O cine-ma. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 82-104.

CALLIGARIS, Contardo. Corcunda cor-de-rosa. Disponível em < http://www.chasqueweb.ufrgs.br/~slomp/psicanalise/contardo-corcun-da.htm>. Acesso em: 8 jul.2010.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução de André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.

PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003.

SEDLMAYER, Sabrina; MACIEL, Maria Esther (Orgs.). Textos à flor da tela: relações entre literatura e cinema. Belo Horizonte: Núcleo de Estudos de Crítica Textual/Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextuali-dade. In: Ilha do Desterro, Florianópolis, n. 51, jul/dez. de 2006. p. 19-53.

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Unidade CPoéticas dos sentidos

Figura 29 - Não come o pardal. Eli Heil. 1983.

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Capítulo 06Literatura e oralidade

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Literatura e oralidade ou Estudos literários/oralidade

Quero contar-te uma história

Vamos passear naquelas ilhas desertas

Raul Bopp. In: Cobra Norato.

A arte de contar histórias, embora muito antiga, é comumente rela-cionada à literatura infantil e ao ensino para crianças, cujo intuito é tentar aguçar a leitura por meio da oralidade. Embora as crianças adorem ouvir historietas, diga-se de passagem, um excelente exercício para a imagina-ção, pois a liberdade e a criatividade do inventar são parceiras nessa tarefa, essa prática também desperta o interesse e a atenção do público adulto.

Destacamos nesta oportunidade o importante trabalho que a Biblio-

teca Comunitária Barca dos Livros, com sede na Lagoa da Conceição,

vem desenvolvendo em Florianópolis para promover a cultura e,

principalmente, a leitura, a literatura (também) via narração/conta-

ção de histórias. Esta biblioteca é mantida pela Sociedade Amantes

da Leitura – constituída por um grupo de pessoas que reconhece a

importância da leitura para o desenvolvimento comunitário e indivi-

dual –, e foi inaugurada em 2 de fevereiro de 2007. Entre as diversas

atividades culturais desenvolvidas, enfatizamos o envolvimento da

biblioteca com a “narração” e “contação de histórias”, que inclui for-

mação de contadores de histórias, passeios de barco com narração de

histórias, músicas e livros, e saraus de histórias.

Disponível em <http://www.amantesdaleitura.org/novo/index.php>. Acesso em: 10 nov. 2010

E é por isso que questionamos: qual é o adulto que não tem histó-rias para contar, causos dignos de aplausos e acontecimentos que cla-mam por esclarecimentos? Basta-lhe uma plateia atenta, formada por bons ouvintes, que o personagem Alexandre, do livro de Graciliano

6

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Ramos, já se põe a narrar suas aventuranças no sertão nordestino. É apoiado em sua esposa, Cesária, que o meio caçador, meio vaqueiro, conta seus causos ao grupo de ouvintes, formado por Libório (canta-dor de emboladas), Firmino (cego, quem questiona muito o incansável contador), Gaudêncio (curandeiro) e Das Dores (benzedeira e afilhada do casal). Por meio do personagem de Graciliano Ramos, ficcionalizado em Histórias de Alexandre, podemos ter um exemplo típico de que ouvir histórias não é apenas “atividade” exclusiva do público infantil. Outras contadoras que não podem ser esquecidas, figuras também alimentadas pela ficção, são Dona Benta, personagem de Monteiro Lobato, do Sítio do Pica-pau Amarelo, que narra histórias à plateia variada do sítio, e Sherazade, de As mil e uma noites que, por intermédio de suas narrati-vas, procura alimentar a curiosidade do sultão para viver por mais tem-po e evitar, a cada dia, sua sentença de morte.

“As mil e uma noites, incorporada no acervo da literatura universal,

chega ao ocidente no princípio do século XVIII com Antoine Galland.

O orientalista francês, considerado o descobridor do oriente literário,

introduziu nos salões parisienses essas narrativas (em 12 volumes de

1704 a 1717), adaptando-as ao gosto francês.” (NABHAN, 2003, p. 178).

Contar histórias é um tipo de arte muito antiga; tão antiga que tal-vez seja até difícil precisar o seu aparecimento. Desde a Antiguidade clássica, por exemplo, – e agora nos reportamos a Homero (século VIII a.C), um dos primeiros e maiores “contadores” de histórias da comuni-dade ocidental, rapsodo grego, considerado expoente máximo com as obras Ilíada e Odisseia – a prática da oralidade vem se desenvolvendo.

Nossa referência é feita ao rapsodo grego porque usamos como pers-

pectiva a literatura ocidental, e Homero é compreendido como marco

dessa literatura. Embora existam questionamentos a respeito da auto-

ria, e até mesmo de sua existência, não entraremos nessa natureza de

discussões nesta oportunidade.

RapsodoArtista popular ou

cantor que ia de cidade em cidade recitando

poemas.

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Capítulo 06Literatura e oralidade

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Todas as aventuras e peripécias de guerreiros em navegações e combates eram apenas contadas oralmente, só mais tarde é que foram reunidas e registradas em livro. Dessa forma, podemos perceber a importância da oralidade como uma forma de preservar esses textos, mesmo que algu-mas histórias, quando passadas “de bocas a ouvidos”, tenham sido alte-radas e sofrido algumas mudanças. Daí que se pode explicar constantes questionamentos acerca da originalidade desses textos.

Quem já leu a Odisseia pode se lembrar de que, em inúmeros ver-sos do texto, Homero (2001, p. 41, 59) (tal como nos chegou nestes séculos XX e XXI), repete trechos, apostos, que aqui exemplificamos por meio de: “logo que a Aurora, de dedos cor de rosa, surgiu matu-tina”, ou mesmo “a de olhos glaucos, Atena”. Você deve estar se per-guntando: Por que o poeta grego fazia isso? Porque estava justamente utilizando as famosas “fórmulas mnemônicas”, que ajudavam a manter na memória dos ouvintes esses textos, nem que fosse por fragmentos. Alguns apostos, ainda, além de ajudar a manter a métrica, remetiam às características dos personagens, tal como “Hermes, o dos pés ala-dos…”. Embora se utilizasse pergaminhos para registro de algumas coisas, a memória acabava sendo o meio mais eficaz para reter e trans-mitir os conhecimentos às futuras gerações – e aí reside a importância desse tipo de reiterações, “repetições”, “ecos” de elementos que ficam pululando na memória e auxiliam na memorização dos textos. Segun-do Zumthor (1993, p. 21),

o conjunto dos textos legados a nós pelos séculos X, XI, XII e, numa

medida talvez menor, XIII e XIV passou pela voz não de modo aleatório,

mas em virtude de uma situação histórica que fazia desse trânsito vocal

o único modo possível de realização (de socialização) desses textos.

Assim, a arte de contar histórias proporciona reflexões sobre rea-lidades esquecidas e é uma forma de evocar a imaginação. Além disso, propõe diálogos entre as dimensões do ser e auxilia na construção de identidades, na valorização de raízes, religiões e manifestações cultu-rais, como é o caso dos repentistas nordestinos e dos trovadores sulis-tas. Segundo Neuza Neif Nabhan (2003, p. 176),

Não podemos nos esque-cer dos monges copistas da Idade Média e das experimentações tipográ-ficas, cuja “paternidade final” foi atribuída ao alemão Johann Gutem-berg (1398-1468), quem possibilitou a divulgação e cópia de livros e jornais de maneira mais rápida.

É importante considerar a presença dos trova-dores líricos medievais, também portadores da palavra cantada. Vale lembrar que a música era apenas um acom-panhamento para os recitadores.

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Literatura e Ensino II

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A narrativa oral reproduz, de forma livre e elaborada, a essência do co-

nhecimento de uma sociedade. Contar histórias é um ato lúdico e de

reflexão. O universo imaginário do ser humano abstrai exemplos do co-

tidiano e os reproduz simbolicamente como forma de categorização de

seus valores sociais. A experiência do indivíduo, como produto de sua

vivência cultural, modela-o com valores representativos de sua socieda-

de que, por vezes, podem ser considerados universais.

Valeria destacar que “Em tempos imemoriais, as narrações orais das

fábulas certamente precederam a sua elaboração e disseminação

sob a forma escrita” (PFROMM NETTO, 2001, p. 3). “A vertente oci-

dental da literatura fabular, embora seja convencionalmente centra-

da em Esopo (em grego) e Fedro (em latim), conta, no entanto, com

contribuições anteriores”. Em Hesíodo (800 a.C.) já se encontra o re-

gistro de diversas fábulas. O dado interessante dessas narrações mi-

nimalistas, centradas em uma moral, é o apelo ao recurso mnemô-

nico que consegue fixar o registro de máximas moralistas que são

repetidas até hoje, mesmo que se perca o contexto de sua filiação.

Se não fosse o processo da oralidade, como justificar que guarda-mos até hoje, e de cor, cantigas de ninar, de roda, lendas e parlendas? Ninguém aprendeu o atirei o pau no gato-to-to, a ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar, batatinha quando nasce, e onde o cravo brigou co’á rosa, copiando e escrevendo várias vezes no caderno. Na época, nem interessava saber quem as compôs, por qual motivo foram escritas, para quem, e tampouco se isso era fruto do imaginário coletivo oral, do fol-clore. Interessava a diversão, a encenação escondida, corporificada, o “miau” gritado com força no final da cantiga. Aprendemos isso apenas ouvindo, cantando junto, dançando, uma aprendizagem natural (como a maternagem, exemplificada por Roland Barthes no ensaio Au Séminai-re). O pau no gato, a ciranda cirandinha e o marcha soldado, por exem-plo, ficaram na memória via transmissão oral, como também ficam as histórias e peraltices da infância e juventude que ouvimos contadas por pais, tios e avós. Segundo Paul Zumthor (1997, p. 267), “a maioria das

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Capítulo 06Literatura e oralidade

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canções infantis (pelo menos enquanto a escola não se apropria delas) se move num espaço poético também amplo: de uma geração a outra, texto e melodia variam, e não poderíamos falar de “evolução”.

E, se pensarmos em memória e experiência, em incorrer ao passa-do, é interessante mencionarmos o ensaio O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, de Walter Benjamin, escrito sob os efeitos da guerra, publicado em 1936. O ensaio começa com a análise da obra de Nikolai Leskov, mas abre prerrogativas para outros entendimentos. Em seu texto, Benjamin (1994, p. 197) afirma, reconhecendo em Leskov um exemplo de narrador a ser resgatado, que as ações da experiência estão em baixa e “a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”. E se isso ocorre é por causa do silêncio dos soldados que retornam da guerra e que, em consequência do que veem, vivenciam, experienciam, têm dificuldade de narrar suas experiências de destruição e ruínas. Todos os narrado-res, acrescenta o filósofo alemão, recorreram à experiência que passa de pessoa a pessoa e, entre as narrativas escritas, “as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narra-dores anônimos” (BENJAMIN, 1994, p. 198).

A figura do narrador é descrita pelo ensaísta alemão como a de um homem que sabe dar conselhos e identifica dois grupos de narradores: quem vem de longe e tem muito que contar (marinheiro comerciante), ou quem é da terra e ali viveu por muito tempo também tem muito a contar sobre as tradições e cultura locais (camponês sedentário). Se

“A memorização, meio natural de conservação da poesia oral, per-

maneceu a única forma em vigor, nas sociedades de escrita, durante

o longo tempo em que seu uso ainda não estava generalizado: na

Europa, até o fim do século XIX ou metade do nosso, dependendo

das regiões; até hoje, em grande parte do terceiro mundo. Para além

do limiar tecnológico, a partir do qual sua importância relativa de-

cresce rapidamente, a memorização continua a cumprir seu ofício, à

margem do arquivo”. (ZUMTHOR, 1997, p. 258).

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Literatura e Ensino II

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Benjamin afirma que a arte de narrar está definhando, é porque a sabe-doria está em extinção. Para ele, a tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem natureza distinta da do romance, que está vinculado à di-fusão do livro e, consequentemente, do indivíduo isolado. Porque, pe-las narrativas orais, é possível manter acesa a consciência daquilo que somos e com quem convivemos, de nossa comunidade, do coletivo. E essa é uma das razões que possivelmente justifica uma visão nostálgica benjaminiana do mundo. Sem a manutenção da memória, da experi-ência, contada pelo narrador, não se constrói/mantém uma realidade coletiva, uma tradição. Além disso, o narrador recorre às suas experiên-cias de vida, bem como as relatadas por outros. “Quem escuta uma his-tória está em companhia do narrador: mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário” (BENJAMIN, 1994, p. 213). A narração, em seu aspecto sensível, “não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém deci-sivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito” (BENJAMIN, 1994, p. 220-221). E a isso, podemos acrescentar: “quando a comunicação e a recepção (assim como de maneira excepcional, a produção) coincidem no tempo, temos uma situação de performance” (ZUMTHOR, 1993, p. 19). Eis, então, uma das razões para se compreender a narração de his-tórias como uma performance.

Pensar nas relações que a literatura estabelece com a oralidade diz respeito à expansão dos estudos para além da produção escrita. Não se pode negar que a literatura oral enfrentou [e enfrenta] uma série de preconceitos, conceitos e associações muitas vezes restritas ao folclore e à cultura popular; segundo Zumthor (1997, p. 24) o conceito mais frequentemente associado ao popular é o do anonimato: “uma canção é “popular” quando se perde a lembrança de sua origem”. Porque o “po-pular” está relacionado aos “usos”, e não a uma essência. Além disso, é importante separar os conceitos e não apenas generalizá-los: “Oral não significa popular, tanto quanto escrito não significa erudito” (ZU-MTHOR, 1993, p. 119). Aquele está associado à experiência cotidiana, a uma coletividade.

FolcloreFolklore (folk = povo, lore = antiga palavra

que designava um saber) – 1846, por W. J.

Thomas.

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Capítulo 06Literatura e oralidade

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Segundo Maurício Martins do Carmo (2003, p. 145),

não tem sido tranqüilo, na cultura oficial, o acolhimento das obras popu-

lares ou nascidas fora do seio da classe hegemônica. Romantismo e Mo-

dernismo foram dois movimentos que, sob formas diversas, viam a cultura

popular como algo a ser validado. No entanto, persistiram empecilhos

maiores, como a aceitação dos produtos advindos da cultura de massas,

cujas manifestações foram seriamente repudiadas pela intelectualidade,

com o arraigamento generalizado de seu conceito negativo, beirando a

imprestabilidade. Não é difícil localizar a oralidade como elemento fulcral

nessas questões, uma vez que a cultura popular iletrada ou de massas, na

maioria das vezes, prescinde da palavra escrita, atendo-se à audição.

Por isso a atenção dispensada ao narrador e a textos que até en-tão eram vistos/deixados à margem. Afirma Frederico Augusto Garcia Fernandes (2003, p. xii):

Compreender a importância do oral na área de Letras corresponde tam-

bém a dar um tratamento diferenciado ao que se entende por literário.

O trabalho com oralidade, não é demais enfatizar, é, essencialmente, o

trabalho com a voz. Dessa maneira, a literatura deixa de ser captada pelo

seu sentido etimológico de littera (letra), ou seja, tudo o que está escrito,

e passa a ser entendida lato sensu como cultura. Ela figura como uma

espécie de arte do cotidiano, isto é, requisitada para diferentes manifes-

tações e ocorrências no dia-a-dia, o que varia das contações de causos,

das cantigas entoadas, despretensiosamente, durante as lida domésti-

cas ou nas mais variadas profissões.

Como bem enfatiza Fernandes, trazer em evidência o trabalho com a oralidade significa repensar e, até mesmo, romper com o conceito de literatura, relacionado apenas à produção escrita. Para pensar na orali-dade como literatura é preciso descentralizar o cânone, desestabilizá-lo.

A resistência aos trabalhos orais muitas vezes se dá, também, pela falta de preparo para ouvir (a audição é uma espécie de antecipação do texto), para acompanhar uma narração sem aspectos formais da visuali-

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dade (letras, imagens). Isso também se deve ao fato de que foi por meio de textos escritos que muitas das produções orais inicialmente chegaram até nós. O texto oral, no trabalho com a voz, lança mão de recursos fôni-cos como: rima, métrica, ritmo, que contribuem para a memorização e garantem um mínimo de eficácia quando da transmissão oral. Segundo Paul Zumthor (1993, p. 9), “a ‘oralidade’ é uma abstração; somente a voz é concreta, apenas sua escuta nos faz tocar as coisas”. Porque a voz foi um fator de constituição da literatura, e é por isso que trataremos dela, em item à parte, a seguir.

Um dos elementos fundamentais na contação de histórias é a voz, e sua função poética se modifica historicamente ao longo dos perío-dos. Embora não menos importantes sejam as expressões do rosto, os movimentos do corpo, será a voz a responsável por fazer com que his-tórias invadam o espaço acústico alheio e conduzam aquele que ouve a lugares e tempos precisos somente com o apoio de sua imaginação. A voz é elemento concreto e particular; faz vibrar emoções, sensações, (pres)sentimentos. Tão íntima, tão única, tão pessoal, a voz pode equi-valer à caligrafia, pois ambas só têm existência no ato, no momento do acontecimento. Se tentarmos escrever várias vezes uma mesma palavra, ela nunca sairá igual, da mesma forma que arriscarmos pronunciar vá-rias vezes a mesma palavra. Pode se tentar eternizá-las [a voz e a grafia] por intermédio de gravações (voz) e scanner, conservação de manus-critos (grafia, escrita a próprio punho), mas o momento define e consa-gra cada uma de suas manifestações, não sua perpetuação. Embora os meios eletrônicos possam abolir a presença da voz, apagar as referências espaciais da voz interferindo nela artificialmente, podem transmiti-la de modo idêntico, não igual. Paul Zumthor (2007, p. 15), a respeito da voz, lança a seguinte afirmação:

em sua base ela [a voz] evidencia a diferença biológica entre o homem

e a máquina. Podemos citar, a propósito, a história exemplar do compu-

tador, substituto eletrônico da escritura, mas que, em um dia bem próxi-

mo, vai falar (as primeiras experiências já começaram): a abstração vocal

será tanto maior que já não se tratará de gravação, mas de voz fabricada.

Segundo Bruna Paiva de Lucena (2010, p.

52), “a voz, cantada ou declamada, que tem o corpo como único

suporte, não é conside-rada, na historiografia, um meio de produção

de obras literárias”.

A voz também protago-niza canções.’

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Capítulo 06Literatura e oralidade

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Na contação, a voz proporciona alteridade ao texto, dá-lhe vida, expressividade, porque “todo objeto adquire uma dimensão simbólica quando é vocalizado” (ZUMTHOR, 2007, p. 83). A voz, ainda, repre-senta uma vontade de existência, lugar de uma ausência que, nela, trans-forma-se em presença, fazendo cantar toda a matéria. Suas qualidades materiais, o tom, o timbre, o alcance, a altura, o registro, o volume, a entonação, a ênfase, a intensidade, individualizam, significam, atestam oralidades, atribuem valores simbólicos. Ela [a voz] imprime no sujeito a marca de uma alteridade, instaura uma ordem própria, porque voz implica audição. Além disso, seus traços são descritíveis, interpretáveis; a linguagem humana se liga à voz pelo grito, pelo sussurro, pelo suspiro, pelo riso, pelo silêncio, e também no espaço intervalar de seu aconte-cimento. A palavra, pela voz, faz-se memória de algo, especialmente da infância na fase que antecede à escola, porque plena de oralidade; tudo se diz na voz, não na escrita. Ela também demarca e estabiliza um senti-mento de sociabilidade. Ouve-se e fala-se, dialoga-se, trocam-se ideias, debatem-se opiniões, assim, multiplicam-se as vozes e apaga-se o senti-mento de que não se está sozinho no mundo.

A voz repousa no silêncio do corpo. Ela emana dele, depois volta. Mas o

silêncio pode ser duplo; ele é ambíguo: absoluto, é um nada; integrado

ao jogo da voz, torna-se significante: não necessariamente tanto como

signo, mas entra no processo da significância. (ZUMTHOR, 2007, p. 85).

A voz mostra de que modo o homem se situa no mundo e em relação ao outro, e é o “outro da escritura” (ZUMTHOR, 1993, p. 121); não deve ser reprimida por esta, mas acolhida, para que suas colocações [as da voz] sejam passadas ao escrito. Portanto,

É inútil julgar a oralidade de modo negativo, realçando-lhe os traços que

contrastam com a escritura. Oralidade não significa analfabetismo, o

qual, despojado dos valores próprios da voz e de qualquer função social

positiva, é percebido como uma lacuna (ZUMTHOR, 1997, p. 27).

Não há oralidade em si mesma, mas múltiplas estruturas de ma-nifestações simultâneas. Não podemos ser reducionistas e pensar que a

Neste capítulo estamos fa-zendo referência à impor-tância da voz na contação de histórias, mas tais refle-xões podem ser estendidas para a música.

Para pensar na impor-tância da voz, sugerimos que assista ao filme O discurso do rei (See Saw Films, Bedlam Produc-tions, 2010), direção de Tom Hooper.

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Literatura e Ensino II

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oralidade se define pela ausência de certos caracteres da escrita e vice--versa. Por conta disso, Zumthor (1997) diferencia espécies ideais de oralidade:

Ӳuma oralidade primária e imediata, ou pura, sem contato com a “escrita” – aqui compreendida como todo sistema visual de simbolização exatamente codificada e traduzível em língua;

Ӳuma oralidade coexistente com a escrita e que pode funcionar de dois modos: como oralidade mista (influência da escrita continua externa, parcial ou retardada) ou oralidade segunda (recompõe-se a partir da escrita e no interior de um meio em que esta predomina sobre os valores da voz na prática e no ima-ginário. A primeira procede da existência de uma cultura escri-ta (possuindo uma escrita), a segunda, de uma cultura letrada (toda expressão é marcada pela presença da escrita);

Ӳuma oralidade mecanicamente mediatizada, diferenciada no tempo e no espaço.

Em vez de dispersar a coletividade, a mídia, numa certa perspec-tiva, a agrega (antes reuniam-se pessoas para ouvirem um letrado lhes contar uma história, agora, reúnem-se ao redor de grandes telas para vislumbrarem filmes, programas e outras coisas).

A oralidade não se reduz à ação da voz. “A oralidade implica tudo que, em nós, se endereça ao outro: seja um gesto mudo, um olhar” (ZU-MTHOR, 1997, p. 203), por isso apresentamos as relações entre a litera-tura e a performance no capítulo A literatura incorporada.

Batendo papo

1) Na sua opinião, por que a voz não tem sido considerada um meio de produção de obras literárias?

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Capítulo 06Literatura e oralidade

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2) Se você fosse “contar uma história”, que texto literário escolhe-ria? Justifique sua resposta.

3) Observe o seguinte excerto: “pelas narrativas orais é possível manter acesa a consciência daquilo que somos e com quem convivemos, de nossa comunidade, do coletivo”. Qual é a sua experiência de uma “manutenção oral” de histórias da sua fa-mília e da sua comunidade? Conte uma história.

Leia mais!

Para que você amplie o seu leque de conhecimentos sobre a relação “litera-

tura-oralidade”, sugerimos os seguintes textos.

BENJAMIN, Walter. O narrador – Considerações sobre a obra de Niko-lai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

OLIVEIRA, Ane Costa. Oralidade, poder e ação. Disponível em: < http://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/5806/3411>. Acesso em: 25 mar. 2011.

REVISTA Estudos de literatura brasileira contemporânea. Poéticas da oralidade. Brasília: UNB, jan/jul 2010. n. 35.

SOUTO, Andrea do Roccio; SANTOS, Jucinéia Narciso dos. Oralidade e cultura popular na sala de aula. Disponível em: < http://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/5841/3445>. Acesso em: 25 mar. 2011.

TORRES, Shirlei Milene; TETTAMANZY, Ana Lúcia Liberato. Contação de his-tórias: resgate da memória e estímulo à imaginação. Disponível em: < http://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/5844/3448>. Acesso em: 25 mar. 2011.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira; Maria Lúcia Diniz Pochat; Maria Inês de Almeida. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.

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Capítulo 07Em busca do som

117

Em busca do som ou Estudos literários/música

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

Cecília Meireles. In: Motivo.

Falar sobre a relação literatura e música pode levar a lugares com-plexos, a definições técnicas demais. Tratemos de pensar a literatura e a música como objetos prazerosos sem perder o rigor. Cremos que esse deve ser o ponto principal de uma abordagem mais reflexiva sobre mú-sica, sobre literatura e, aliás, sobre outras formas artísticas.

Se recorrermos ao universo semântico da palavra “gosto” ou à eti-mologia da palavra “sabor”, tão intimamente ligada ao espaço do prazer, poderemos entender melhor nossa relação com a literatura e a música, uma vez que, em latim, sapere significa “saber”, mas também “ter sabor”, duas noções tão ligadas à recepção da arte musical.

O que selecionaremos para pensar música e literatura? Temos um ma-terial vasto, com todas as tonalidades e modalidades que nosso gosto dese-jar. Da música clássica ao rap, do rock progressivo ao funk, blues, jazz, MPB (esse guarda-chuva de estilos e misturas), samba, ritmos obscuros e movi-mentos conhecidos e desconhecidos, novíssimos como o emocore ou clás-sicos como Bach, e, até mesmo, a música medieval, renascentista, barroca.

É normal, porém, que, quando relacionamos música e literatura, pensemos na questão da letra da canção ou da palavra cantada (pode-mos usar a expressão letra da música, pois no contexto brasileiro, música e canção são intercambiáveis). Tendemos a querer que a camada mate-rial da linguagem seja transparente e sempre nos diga alguma coisa. Sal-tamos para o sentido quase imediatamente quando lemos ou ouvimos a palavra cantada. E nos transportamos para o campo do sentimento. Lembremos, por exemplo, das cantigas de ninar, dos hinos aprendidos na escola, das músicas preferidas na adolescência...

Gênero de música deri-vado do Hardcore.

7 Este Capítulo contou com a colaboração do professor e pesquisador Daniel Soares Duarte.

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Então, junto com o salto para o campo social, que trata das relações com seu tempo e com sua recepção, e sem se esquecer do prazer, pode-mos também imergir no estudo da materialidade artística – do som, do ritmo, da melodia –, para buscar denominadores comuns e especificida-des não comuns da música e da literatura.

Quando nos debruçarmos sobre esse objeto visto como se fosse dois, a canção, esperamos poder fazer um caminho que mostre que, me-nos que dois caminhos diferentes, há apenas um, que até agora teve dois olhares. Vamos tentar pensá-la como se fosse uma coisa só. Na Antigui-dade clássica, “antes de surgir o poema (objeto estético que necessita apenas da palavra para vir a existir) nasce a canção – fusão de palavra e música numa unidade única” (CARDOSO, 1989, p. 53).

Nesta unidade, vamos incluir a música popular no campo literário. Não podemos nos esquecer de que o gênero lírico nos mostra uma ligação íntima com a música: o poema grego era cantado ao som da lira. A pró-pria poesia épica traz a música nos “cantos”: “Já pelo arauto trazido o cantor divinal se aproxima/ que tanto a Musa distingue, e a quem males e bens concederá” [...] “Isso narrava o famoso cantor” .Mitologicamente, a poesia vincula-se às musas, cantoras divinas que alegravam a vida dos deuses. His-toricamente, a poesia cantada acha-se presente em toda a Idade Média: os trovadores provençais, as cantigas de amor, de amigo ou de escárnio e mal-dizer, cujo vínculo com o canto é demonstrado pelo próprio nome. Assim, a poesia veio surgindo pela sua oralidade, pelo acompanhamento instrumen-tal e até coreográfico. Por isso a nossa opção de não excluir a letra da canção do campo da poesia e, consequentemente, da literatura.

Em se tratando da poesia brasileira, temos muitos poetas que fize-ram letras de música. Domingos Calda Barbosa, poeta brasileiro vincu-lado ao Arcadismo, cantava, em Lisboa, suas modinhas e lundus. Em Portugal, essas canções eram chamadas “modas”. No século XX, os le-tristas começaram a se destacar como poetas. Manuel Bandeira consi-derava “tu pisavas nos astros distraída”, de Chão de estrelas, de Orestes Barbosa, um dos mais bonitos versos da língua portuguesa. O próprio Manuel Bandeira é autor, com Jaime Ovalle, de Azulão. Há composito-

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Capítulo 07Em busca do som

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res que fazemos questão de registrar como poetas: Vinicius de Moraes, Noel Rosa, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Cazuza. Synval Beltrão Jr., em seu estudo sobre A Musa-Mulher na Canção Brasileira, chama a nossa atenção para que passemos a ver a importância de se es-tudar a música, letra e melodia, e sua relação com a história da poesia, alargando, assim, o próprio conceito de literatura. Saímos do Brasil e da nossa MPB e vamos a Portugal. Durante todo o Curso abrimos espa-ço para a Literatura Portuguesa. Por que não pensarmos no fado como uma das mais significativas manifestações da música portuguesa?

Alguns estudos dizem que o fado teria tido origem na música tra-zida das colônias de Portugal, pelos escravos. Outros dizem que ele teria nascido da ocupação moura (árabe) da Península Ibérica. A música do fado é normalmente triste e profundamente emocional, cantando a sau-dade, o amor e daí partindo para questões filosóficas. Bastante conhe-cidos, no Brasil, são os fados cantados por Amália Rodrigues e por um conjunto contemporâneo chamado Madredeus, que partilha o espírito do fado, não tanto na musicalidade, mas na temática das letras. Grandes poetas portugueses, como Luís Vaz de Camões, Fernando Pessoa e Ma-nuel Alegre, entre outros, foram musicados em fado.

Erros Meus

Luís Vaz de Camões cantado por Amália Rodrigues

Erros meus, má fortuna, amor ardente

em minha perdição se conjuraram;

os erros e a fortuna sobejaram,

que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente

a grande dor das cousas que passaram,

que as magoadas iras me ensinaram

a não querer já nunca ser contente.

Estilo musical português geralmente cantado por uma só pessoa e acompa-nhado por guitarra clássi-ca e guitarra portuguesa

Escute o fado Erros Meus, soneto de Camões, inter-pretado por Amália Rodri-gues neste link <http://letras.terra.com.br/amalia--rodrigues/564113/>

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Você é assim

Um sonho pra mim

E quando eu não te vejo

Eu penso em você

Desde o amanhecer

Até quando eu me deito...

Eu gosto de você

E gosto de ficar com você

Meu riso é tão feliz contigo

O meu melhor amigo

É o meu amor...

E a gente canta

E a gente dança

E a gente não se cansa

De ser criança

A gente brinca

Na nossa velha infância...

Seus olhos meu clarão

Me guiam dentro da escuridão

Seus pés me abrem o caminho

Eu sigo e nunca me sinto só...

Você é assim

Errei todo o discurso de meus anos;

dei causa que a Fortuna castigasse

as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.

Oh! quem tanto pudesse que fartasse

este meu duro gênio de vinganças!

(CAMÕES, 2002)

Procuramos agora nos levar pela questão do gosto para trazer um exemplo dessa relação tão próxima entre letra e música, entre os estu-dos literários e a palavra cantada. Velha Infância reúne três importantes músicos, letristas, poetas na sua composição. Velha Infância é ou não é literatura? As últimas conquistas teóricas, os estudos culturais, têm nos ajudado nesta tarefa e na possibilidade de a incluirmos em um livro que se propõe a pensar nas literaturas de língua portuguesa e sua relação com outras linguagens.

Velha Infância (Tribalistas)

Arnaldo Antunes/Carlinhos Brown/Marisa Monte

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Capítulo 07Em busca do som

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Um sonho pra mim

Quero te encher de beijos

Eu penso em você

Desde o amanhecer

Até quando eu me deito...

Eu gosto de você

E gosto de ficar com você

Meu riso é tão feliz contigo

O meu melhor amigo

É o meu amor...

E a gente canta

E a gente dança

E a gente não se cansa

De ser criança

A gente brinca

Na nossa velha infância...

Seus olhos meu clarão

Me guiam dentro da escuridão

Seus pés me abrem o caminho

Eu sigo e nunca me sinto só...

Você é assim

Um sonho pra mim

Você é assim...

Você é assim...

Você é assim...

Você é assim

Um sonho pra mim

E quando eu não te vejo

Penso em você

Desde o amanhecer

Até quando me deito

Eu gosto de você

Eu gosto de ficar com você

Meu riso é tão feliz contigo

O meu melhor amigo

É o meu amor

Velha Infância nos conta uma história e ilustra vários elementos da teoria do verso. Três vozes, ritmo, rima, alegria, sentimento “e a gente canta, e a gente dança e a gente não se cansa”.

Continuando a pensar no que está próximo da nossa realidade, o sam-ba é tão parte de nosso dia a dia que não percebemos o quanto ele é dife-rente, plástico, vivo e riquíssimo. Mesmo os brasileiros, que não gostam de samba, sabem sambar, ou pelo menos batucar. O cancioneiro chega a dizer: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é.../ Ou é ruim da cabeça/ ou doente do pé”. Para nós, tão anímico, o samba foi lentamente gestado, do ba-tuque dos escravos e de sua adaptabilidade, juntando-se à harmonia e me-lodia de base europeias, aos poucos crescendo e diferenciando-se, sempre

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Literatura e Ensino II

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Meu Beija-Flor chegou a hora

De botar pra fora a felicidade

Da alegria de falar do Rei

E mostrar pro mundo essa simplicidade

A saudade

Vem pra reviver o tempo que passou

Ah! Essa lembrança que ficou

Momentos que não esqueci

Eu cheio de fantasias na luz do Rei menino

Lá no seu Cachoeiro

E lá vou eu... De calhambeque a onda me levar

Na jovem guarda o rock a embalar... Vivendo a paixão

Amigos de fé guardei no coração

Quando o amor invade a alma... É magia

É inspiração pra nossa canção... Poesia

O beijo na flor é só pra dizer

Como é grande o meu amor por você!

caindo nas graças do povo e aos poucos entrando no imaginário intelectual, com a força que o tornou uma instituição brasileira.

O que o samba faz conosco? Alguns dizem que o andamento, a velo-cidade, de uma música, determina se ela será agitada, calma, repousante, onírica etc. Outros dizem que, tanto quanto o andamento, é o acento que ajuda a ritmizar. Todos os ritmos desenvolvidos no Brasil – as várias faces do samba, baião, xote, vanerão, frevo – são ritmos sincopados, isto é, têm a ba-tida final deslocada no compasso, fazendo o ouvinte antecipar a batida final do compasso, como se ele “quebrasse” antes da hora. Essa quebra imaginada ajuda a deslocar o corpo, a criar divisões no ritmo. Se o andamento não for tão rápido – e às vezes mesmo se o for, no caso do samba-enredo – a dança (ainda que desajeitada) segue-se quase intuitivamente. Como isso acontece? Acompanhe a letra e escute o samba-enredo da escola campeã do Carnaval do Rio de Janeiro – Grupo especial – 2011, a “Beija-flor de Nilópolis”:

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Capítulo 07Em busca do som

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Nas curvas dessa estrada a vida em canções

Chora viola! Nas veredas dos sertões

Lindo é ver a natureza

Por sua beleza clamou em seus versos

No mar navegam emoções

Sonhar faz bem aos corações

Na fé com o meu Rei seguindo

Outra vez estou aqui vivendo esse momento lindo

De todas as Marias vêm as bênçãos lá do céu

Do samba faço oração, poema, emoção!

Isso acontece porque desenvolvemos em nós uma noção chamada ritmo, muito mais básica e ampla do que os ritmos musicais. Ritmos são acoplamentos entre sistemas. Quaisquer sistemas. Um caixa de supermer-cado possui um ritmo para digitar os preços, e esse ritmo depende tan-to dele quanto das teclas da máquina, da altura em que se encontra por exemplo. Cada pessoa fala com um ritmo diferente, porque possui formas específicas de coordenar seus desejos e pensamentos com seu aparelho fonador, além de coordenar cada parte dele. Duas pessoas conversando também possuem um ritmo, uma troca que inclui cada som emitido, lin-guagem corporal, antecipações, desejos, meio ambiente, entre tantos ou-tros. Do mesmo modo que os ritmos mais sutis, o ritmo musical engendra em nosso corpo uma resposta, uma busca por sentido, aqui significando tanto o sentido racional quanto o emocional (sentir) quanto o corporal (direção). É por isso que a música nos captura totalmente: com o que a canção diz, com o que a batida ressoa, com o que a melodia ecoa no peito.

Por isso, também, muita letra de música “perde o efeito” se for ape-nas falada. Palavras podem ser percebidas, recebidas, “apenas” intelectual-mente, e sua parte emocional e física passarem despercebidas. Cantar essas mesmas palavras, no entanto, presentifica um eco total em nós, seja de simpatia, como ouvir o amado, a amada, cantando para nós, seja de antipa-tia, como ouvir um desafeto cantando a canção de que menos gostamos...

Vamos a um exemplo. A canção Construção é uma canção clássica da Música Popular Brasileira, especialmente do cancioneiro de Chico Buarque

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de Holanda. Foi elencada como uma das cem melhores canções na música brasileira. Foi primeiramente gravada no álbum homônimo de 1971. Des-de que foi lançada, foi objeto de admiração e crítica. Seus aspectos formais são sempre realçados, bem como seu conteúdo social. Eis a letra:

Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último

Beijou sua mulher como se fosse a única

E cada filho seu como se fosse o pródigo

E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas

Tijolo com tijolo num desenho lógico

Seus olhos embotados de cimento e tráfego.

Em uma edição especial da Revista Bravo (junho

de 2008).

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Capítulo 07Em busca do som

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Sentou pra descansar como se fosse um príncipe

Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo

Bebeu e soluçou como se fosse máquina

Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música

E flutuou no ar como se fosse sábado

E se acabou no chão feito um pacote tímido

Agonizou no meio do passeio náufrago

Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina

Beijou sua mulher como se fosse lógico

Ergueu no patamar quatro paredes flácidas

Sentou pra descansar como se fosse um pássaro

E flutuou no ar como se fosse um príncipe

E se acabou no chão feito um pacote bêbado

Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir

A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir

Por me deixar respirar, por me deixar existir,

Deus lhe pague.

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir

Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir

Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair

Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir

E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir

E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir

Deus lhe pague.

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Literatura e Ensino II

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O texto narra a história de um operário em seu último dia de vida e apresenta as várias versões para seu dia e sua morte. O texto é compos-to de versos dodecassílabos, alexandrinos perfeitos, isto é, cada verso de doze sílabas pode ser dividido em duas partes de seis sílabas. Aspecto sur-preendente, visível na escansão do verso, a primeira parte de cada verso é a que narra a história: ela contém os verbos, as ações. Assim, se fosse apenas uma narrativa, bastariam os hemistíquios (metades dos versos): “Amou daquela vez/ beijou sua mulher/ e cada filho seu/ e atravessou a rua/ subiu a construção/ ergueu no patamar/ tijolo com tijolo/ seus olhos embotados/ sentou pra descansar/ comeu feijão com arroz/ ...”. A segunda metade de cada verso apresenta, por sua vez, a alternância entre a varia-ção e a repetição que tornam os versos uma construção poética, com du-plo sentido. Na segunda metade de cada verso, a expressão comparativa “como se fosse” já é consagrada por tradição como elemento comparativo, um passo anterior à metáfora, que poderia ocorrer com a eliminação des-sa expressão. No entanto, o elo “como se fosse” se torna o centro material e comunicativo do ritmo na letra da canção. Por ser repetida em quase me-tade dos versos (22 de 41 versos) na mesma posição – sintática e gráfica, é claro, mas, em referência ao seu aspecto puramente material, sonoro, é uma posição temporal, um objeto temporal, segundo Gumbrecht basea-do em Husserl (GUMBRECHT, 1998, p. 174).

Essa breve análise da parte lírica da canção apenas passa de leve pela construção complexa que é a letra de Chico Buarque. Nas repetições seguin-tes, a letra ganha em complexidade e estranhamento, quando o elemento comparado no final de cada verso vai se distanciando do que seria esperado. Mas esse estranhamento, que poderia não ser tão percebido apenas lendo-se a letra, ganha força total porque a música que se acopla a ela vai ganhando em intensidade. Com uma melodia quase sem variação, é a orquestração, o arranjo que a cada repetição da estrofe torna-se mais alto, mais estridente, mais dissonante, que vai trazer a intensidade que uma leitura apenas da letra poderia deixar passar. Um leitor de música assim leria os versos de Chico:

Retome noções sobre a teoria do verso que apren-

deu durante o curso.

Técnica de decompor cada verso em seus com-

ponentes fundamentais

Figura 30 - Linha melódica inicial de Construção.

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Capítulo 07Em busca do som

127

Como não podemos dar conta de todos os ritmos, não podemos nos esquecer de mencionar uma questão geracional: o Rock ‘n’ Roll. Foi com o rock que a indústria cultural descobriu que podia vender música para o público jovem. Música não necessariamente sofisticada, mas extremamente contagiante, o rock, como o samba, foi crescendo ao longo do século passado, expandindo-se, tornando-se algo gran-de demais para caber em adjetivos: experimental, violento, politiza-do, alienado, alienante, relaxante, primal; porém sua força ainda pode ser sintetizada no sentido primeiro da palavra: sacudir, estremecer (to rock). Filho, também como o samba, da música feita pelos negros, nes-se caso o blues, o rock se tornou o meio musical mais disseminado no mundo atual, seja pela força das grandes gravadoras, seja pela figura de grandes poetas que usaram um ritmo popular, quadrado, básico, para espalhar sua poesia. Ou para brincar com ela. É o caso da canção Monte Castelo, do álbum As quatro estações da banda Legião urbana. Seu compositor principal, Renato Russo, combinou dois textos clás-sicos, o trecho acerca do amor (ou também da caridade) da Segunda Epístola de Paulo aos Coríntios e o soneto Amor é fogo que arde sem se ver, de Luís Vaz de Camões.

Mais uma vez, na canção como um todo. Se analisarmos cada texto em separado, vemos que eles têm objetivos e focos diferentes. O texto de Paulo aos Coríntios refere-se ao amor transcendente, divino, transpessoal, que pode ser exercido ao próximo em todas as ações, mas que paira além de toda ação, devendo estar no coração de cada pessoa. O amor cantado por Camões é o sentimento humano em sua ambiguidade, com cada qualifica-ção sendo desfeita pelo seu próprio itinerário. O poema é bem conhecido.

Amor é fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

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Literatura e Ensino II

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É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Notamos claramente a adaptação da última estrofe; a canção de Re-nato Russo retira a dúvida, a pergunta feita pelo eu-lírico camoniamo: como pode o amor causar amizade (indicando concordância) sendo tão contrário a si? Se o amor se faz nos opostos, se cada passo do amor engendra seu contrário – como a mão esquerda que oferta o “grão de angústia” no poema Campo de flores, de Drummond – como resolvê-lo? Esse questionamento está ausente na canção, em parte pela presença do texto apostólico, mas muito também pelo acoplamento que a letra tem com a canção, de modo mais premente a melodia e a entonação dados por Renato Russo. O que eram dois textos, um transcendental e outro paradoxal, combinam-se em uma canção elegíaca, exaltando o tema. Mais uma vez, trazemos a leitura dos versos pela leitura musical:

Como se vê na figura anterior, a linha melódica (sucessão horizon-tal de notas) ascendente (para cima, significando que as notas vão se tornando mais agudas) no meio da melodia (no terceiro e quinto com-passos), e descendo até a nota final (Dó¹), auxilia no tom elegíaco, ele-vando as notas e depois fazendo-o “descansar” na nota tônica², básica da canção. Além disso, a canção está em tom maior, e qualquer explicação acerca de tons demora muito mais e é menos precisa do que a indicação

¹ Nome de uma das sete notas musicais básicas. Nesse exemplo, a nota

dó é a mais grave – a que aparece mais abaixo nas

linhas.

² Na teoria musical, qual-quer nota que dá nome

ao tom; serve como “cen-tro”, “destino”, das outras

notas ou acordes

Figura 31 - Linha melódica inicial de Monte Castelo.

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Capítulo 07Em busca do som

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intuitiva: tons maiores têm uma sonoridade alegre, expansiva; tons me-nores, sonoridades mais fechadas, tristes até.

É importante, então, procurar não fechar a análise; não esperar que a leitura de uma parte de uma canção vá, como a análise de uma única cor em um quadro, trazer respostas definitivas para uma pergunta. O importante é a sensibilidade auditiva como forma de transformar letra e música em textualidades e, sendo texto, igualmente pronto para a escu-ta, para a voz, para a performance; diálogos possíveis com a literatura.

Batendo Papo

1) Leia o texto A cultura brasileira e a mulher: uma leitura atra-vés da música popular, seguido de A mulher ideal, de Synval Beltrão Júnior, e pense sobre as suas principais ideias, procure uma letra mais contemporânea, reconheça o ritmo e comente a representação da mulher neste texto.

A partitura musical é bastante técnica e só os iniciados musicalmen-

te podem lê-la e interpretá-la musicalmente. Mas a inserção tem o

objetivo de fazer com que ela funcione como uma poética visual em

que a linguagem procura decifrar e interpretar as notas musicais.

O compasso é a sequência de tempos de uma música. Na música

popular, é muito comum o compasso quaternário, ou 4/4, de quatro

batidas ou divisões, a uma velocidade não muito alta. Tons maiores

possuem uma sequência de tons e semitons diferente da de tons

menores. Na escala musical do ocidente, as notas podem ter inter-

valos de tons ou semitons (sendo que 2 semitons = 1 tom). A divisão

de escalas em tom maior é (usando a escala de Dó maior): Dó (tom)

Ré (tom) Mi (semitom) Fá (tom) Sol (tom) Lá (tom) Si (semitom) Dó,

e assim por diante. A escala menor do mesmo tom é: Dó (tom) Ré

(semitom) Mi bemol (tom) Fá (tom) Sol (semitom) Lá bemol (tom)

Si bemol (tom) Dó, e assim sucessivamente.

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Literatura e Ensino II

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2) Na relação letra e música, há sempre um poeta nem sempre visível. Muitas vezes ele é chamado “letrista”. Ele é o autor do que se chama de “palavra cantada”. Escolha um desses poetas, algumas de suas criações, justifique sua escolha.

3) Na década de 80, Cazuza destacou-se no cenário musical, bem como algumas bandas, seus vocalistas, seus compositores. Compare suas letras, seus ritmos, seus sons, com uma produ-ção feita nesse início de século XXI.

Leia mais!

Sugerimos alguns textos para você pensar sobre as relações que a música

estabelece com a literatura.

ALMEIDA, Tereza Virginia de. O corpo do som: notas sobre a canção. In: MATOS, Claudia Neiva de; TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS, Fernanda Teixeira de. (Orgs.). Palavra cantada – poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008, v. 01, p. 316-326.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: USP, s/d.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. O campo não-hermenêutico ou materiali-dade da comunicação. In: Corpo e forma. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998.

BELTRÃO JR, Synval. A musa-mulher na canção brasileira. São Paulo: Estação Liberdade, 1993.

MOTTA, Nelson. Noites tropicais. São Paulo: Objetiva, 2001.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O caos não é caótico. Rascunho, n. 96, abril 2008, Caderno especial de 8 anos, p. 8. Também disponível online, em <http://rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=3&lista=1&subsecao=57&ordem=1872&semlimite=todos>. Acesso em: 5 jul. 2010.

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Capítulo 08

Este Capítulo contou com a colaboração da pesquisa-dora Vanessa Gandra Dutra Martins.

Formas da memória

131

Formas da memória ou Estudos literários/memória

A Palavra

- memória do mundo –

trança, dentro das paixões míticas

jeitos singulares de confirmar-se.

Arriete Vilela. In A palavra sem âncora.

Depois de tantas reflexões sobre outras linguagens, queremos tra-zer para este espaço dos Estudos Literários formas de memória. Lingua-gens que se intercruzam com o cotidiano, com o coloquial, como uma arte da subjetividade. A correspondência com outra pessoa através de cartas e atualmente de e-mails é uma experiência que quase todos temos ou tivemos. Por que não considerar a correspondência como um exercí-cio literário? Ao escolher as palavras que vamos usar, selecionar o con-teúdo e escolher o momento em que iremos contar, construímos uma narrativa. Portanto, ela é um artefato literário que contém elementos que despertam a emoção e a nossa capacidade de pensar. A carta seria um enunciado, assim como o são uma palavra, oração ou texto.

Cada enunciado tomado em separado é sempre individual e ir-repetível, mas, na esfera (social) do uso da língua, elaboram-se tipos re-lativamente estáveis, ao que Bahktin denomina gêneros discursivos, tão ricos e diversos quanto às possibilidades da atividade humana são inesgotáveis e incluem indiferentemente: a curta réplica do diálogo co-tidiano (com a diversidade que este pode apresentar conforme os te-mas, as situações e a composição de seus protagonistas), o relato familiar, a carta (com suas variadas formas), a ordem militar padronizada, em sua forma lacônica e em sua forma circunstanciada, o repertório bastante di-versificado dos documentos oficiais (em sua maioria padronizados), o uni-verso das declarações públicas (num sentido amplo, as sociais, as políticas).

Leia, agora, uma das cartas que Clarice Lispector escreveu a uma de suas irmãs:

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Literatura e Ensino II

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Berna 15 junho 1946

Tania querida

Esta carta é sobre Marcia. Mas antes quero agradecer o retrato, querida.

Você está uma querida. Tania, não se canse muito, por favor. Tania você

está cuidando da boquinha de Marcia? Não se descuide. Agora eu queria

pedir um favor: pense bem na história de Marcia não estudar dança. Isso é

um crime, querida. Eu não queria que Marcia tivesse razão de queixas de

você. Pense bem, eu lhe peço. Ninguém tem o direito de torcer e moldar

demais destinos, mesmo que sejam os dos próprios filhos, suponho. Pen-

se bem, querida: moças das melhores famílias estudam. E se ela quisesse

ser dançarina, que é que tem, querida? Que coisa mais bonita existe que

dançar? A Bluma passou a vida toda querendo e a mãe não deixou e ela

não esquece. Mas era uma mãe antiga. Você disse que não queria que a

Marcia fosse artista de nenhum modo. Querida quem faz arte sofre como

os outros só que tem um meio de expressão. Se você vê por mim está

vendo errado. Eu sofro com o trabalho não é pelo trabalho só, é que além

do mais não sou muito normal, sou desadatada, tenho uma natureza difícil

e sombria. Mas eu mesma, com esse temperamento e essa anormalidade

de todos os instantes – se eu não trabalhasse estaria pior. Às vezes penso

que devia deixar de escrever; mas vejo também que trabalhar é a minha

moralidade. Quer dizer, se eu não trabalhasse, eu seria pior porque o que

me põe num caminho é a esperança de trabalhar. Mas quem faz arte não

é como eu, querida. Qualquer pessoa que escreve, por exemplo, riria dis-

so que eu sou porque não tem nada a ver com a arte. Querida, peço-lhe

muito mesmo: pense antes de tirar de Marcia essa possibilidade. Deixe ela

estudar dança sem empurrá-la. O mais provável é que passe o entusiasmo.

Mas se não passar é porque ela sentiria sempre falta disso. Minha querida,

eu vi um ballet em Paris. É tão lindo. É a coisa mais alta que se pode fazer.

Não deixe passar a idade de começar a aprender, querida. A Marcia está

justamente na idade. Querida, é do tempo antigo a história de que o palco

é horrível. No Rio as melhores famílias deixam as filhas estudar. Tem uma

menina judia Tamara Kapeller que, dizem, será uma grande bailarina, tem

15 anos, começou cedo. Pense bem, querida, não se deixe levar por pre-

conceitos tolos. Não marque desde logo Marcinha com um preconceito.

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Capítulo 08Formas da memória

133

Pense bem e faça como quiser. Eu detestaria que a Marcia culpasse você

de alguma coisa. Querida, não seja mandona demais… Quanto mais, ela

ficará com movimentos graciosos e delicados e ficará com o corpo bonito.

Pense nisso, por favor, sim? Você ainda há de ter muito gosto na Marcinha

como você tem agora. Desculpe esta carta intrometida e um pouco aflita.

Sua sempre

Clarice

Responda sobre o que você pensa.

Mandei carta também para a rua Silveira Martins.

Para Bakhtin, há uma diferença essencial entre o gênero do discur-so primário (simples) e o gênero do discurso secundário (complexo). O primeiro é constituído em circunstâncias de uma comunicação ver-bal espontânea, e o segundo, constituído pelo romance, teatro, discurso científico, discurso ideológico etc.

A carta demanda um distanciamento entre os interlocutores, que é espacial e temporal, e demanda ao mesmo tempo um distanciamento entre o autor e os acontecimentos a que remete. Como escrita, sempre é um “sucesso”, um acontecimento que remete a outros acontecimentos sobre os quais reflete. Na carta, realizam-se projetos de dizer. Mas as cartas podem ser pensadas como gênero primário ao se constituírem em matéria-prima para um romance. O ato de escrever cartas pessoais/íntimas consiste, segundo Maria Teresa Santos Cunha (2000, p. 166) em:

Confrontar-se com códigos estabelecidos e, a partir deles, inventar/

construir um lugar para si, através das palavras. Trocar cartas correspon-

der - se, escrever para alguém são formas de se expor, de compartilhar

experiências, construir elos invisíveis e, muitas vezes, duradouros. A carta

como uma prática de escrita, tanto fala de quem a escreve como revela

sempre algo sobre quem a recebe, anunciando a intensidade do rela-

cionamento entre os envolvidos, pois nunca se escreve senão para viver,

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Literatura e Ensino II

134

a fim de fazer frente a uma situação, para explicar, justificar-se, informar,

dirigir-se a, apelar, queixar-se, sofrer menos, fazer-se amar, dar-se prazer.

A carta é como uma exposição mútua através do ato de escrever, onde é possível fazer aparecer o seu próprio rosto perto do outro, como aponta Michel Foucault (2006), e de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é dito sobre si mesmo. É também uma narrativa de si e narrativa da relação consigo mesmo. Nela é possível destacar, segundo Foucault, alguns elementos estratégicos: as interferências da alma e do corpo (as impressões mais do que as ações), as atividades do lazer (mais do que os acontecimentos exteriores) e os dias.

As notícias da saúde fazem tradicionalmente parte da correspon-dência e aos poucos adquirem a dimensão de uma descrição detalhada das sensações corpóreas, das impressões de mal-estar, das diversas per-turbações que se experimentou. Outras vezes, se trata de relembrar os efeitos do corpo sobre a alma. A ação exercida pela alma em retorno, ou a cura do corpo pelos cuidados prestados à alma.

A carta é também uma maneira de se apresentar ao correspondente no decorrer da sua vida cotidiana. Relatar o seu dia e não por causa da importância dos acontecimentos, mas justamente na medida em que eles nada têm para deixar de ser igual a todos os outros, atestando assim a qualidade de um modo de ser. É como viver sob o olhar de outrem sem nada ter a esconder. Quando a carta faz a narrativa de um dia vulgar, nela evoca o muito útil hábito de “passar em revista o seu dia”, é o exame de consciência aos moldes dos pitagóricos, epicuristas e estóicos. Um exercício mental de memorização com o objetivo de se constituir como inspetor de si mesmo e avaliar as faltas comuns e reativar as regras de comportamento que é preciso ter sempre no espírito. Todo o conjunto de sutis informações sobre o corpo, a saúde, as sensações físicas, o re-gime e os sentimentos mostram a extrema acuidade de uma atenção vivamente concentrada em si próprio.

A carta, não raramente, pode ser enviada para auxiliar o seu cor-respondente para aconselhá-lo, exortá-lo, admoestá-lo, consolá-lo. O

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Capítulo 08Formas da memória

135

exercício de escrita desse tipo de texto constitui também uma maneira de se treinar: tal como os soldados se exercitam no manejo das armas em tempo de paz, também os conselhos que são dados aos outros na medida da urgência da sua situação constituiriam uma maneira de se preparar a si próprio para eventualidade semelhante.

8/01/1880

Condessa,

Agora estou muito cansado e encalorado. Adeus! Que saudade de tudo,

tudo! Boas noites!

9 – Nada de novo a não ser sua carta tão boa de 14 do passado. Como

saborearíamos o jantarinho bem perto um do outro para conversarmos à

nossa vontade! Saiba ao menos que seu amigo lhe quer sempre o mesmo

e que suas cartas o alegram neste deserto que nem d’ele tem o sossego.

Se confio que tudo se arranje é porque sei que faço o que devo para que

isso se consiga, e tenho grande fé na justiça. Vivo aflito, sobretudo, porque

faltam-me os amigos, entre os quais prima você, mas o estudo e a leitura

e outras ocupações de espírito não me dão tempo para desesperar-me

como outros. Esta é que é minha feliz natureza, e nada mais. Se me puses-

se a fantasias livremente o que não posso realizar decerto que não teria

resignação. Porém, basta de desabafo, e venha tudo o que você quiser

mandar-me. Como irá o seu calo? Quem me dera estar aí para consolá-la

da perninha estendida! Porque anda tudo tão disparatado neste mundo?

Que fornalha está agora aqui. Adeus! E ainda adeus com boas noites de

repetirem-se(...)”

Seu e sempre seu

P.

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Literatura e Ensino II

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Cartas Portuguesas. Terceira Carta (tradução portuguesa).

Escrita pela Sóror Mariana Alcoforado.

Que será de mim?....e que queres tu que eu faça?...

Vejo-me bem longe de tudo o que tinha imaginado!

Esperava que me escrevesses de todos os lugares por

onde passasses; que as tuas cartas seriam mui extensas;

que alimentarias a minha Paixão com as esperanças de

ainda ver-te; que uma inteira confiança na tua fidelida-

de me daria alguma espécie de repouso; e que ficaria

assim em um estado suportável, sem estrema dor.

Tinha até formado alguns leves projectos de fazer esforços

que me fossem possíveis para curar-me, no caso de saber

com certeza que me tinhas esquecido completamente.

A tua ausência, alguns toques de devoção, o receio natural de ar-

ruinar totalmente a pouca saúde que me resta por cansadas vigílias

e tantas inquietações, a escassa aparência dá tua volta, a frieza da

tua afeição e doa teus últimos adeuses, a tua partida fundada em

frívolos pretextos, mil outras razões mais que boas e demasiado inú-

teis, pareciam prometer-me um auxílio assaz certo, se me viesse a ser

necessário.

Não tendo enfim a combater senão comigo, mal podia desconfiar de

todas as minhas fraquezas, nem aprender tudo o que hoje sofro...

Oh! triste de mim! Quanta compaixão mereço, visto não sermos ambos

participantes das penas, mas eu só a desgraçada!...

Este pensamento mata-me, e morro de susto de que jamais tenhas sido

extremamente sensível a todos os nossos prazeres.

Figura 32 - Réplica da janela de onde Sóror Mariana Alcoforado falava com o oficial francês.

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Capítulo 08Formas da memória

137

Agora sim, conheço a má fé de todos os teus afectos...

Enganavas-me todas as vezes que me dizias ter sumo gosto de estar só

comigo...

Às minhas importunações devo somente os teus desvelos e transportes...

De sangue frio formaste a tenção de me abraçar, e consideraste a minha

paixão como um trofeu, sem que o teu coração jamais fosse comovido

entranhavelmente...

Não deves tu ser bem infeliz, e ter bem pouca delicadeza, para nunca

haver sabido colher outro fruto dos meus enlevamentos?...

E como é possível que com tanto Amor eu não tenha podido fazer-te

completamente venturoso?

Lamento, por Amor de ti somente, as deleitações infinitas que

perdeste...

Por que fatalidade não quiseste desfrutá-las?...

Ah! se as conhecesses, acharias sem dúvida que são mais sensíveis do

que a satisfação de me ter seduzido, e terias experimentado que somos

mais felizes, e sentimos qualquer coisa de mais fino mimo em amar ar-

dentemente, do que em ser amados.

Não sei nem o que sou, nem o que faço, nem o que desejo...

Mil tormentos contrários me despedaçam!...

Quem poderá imaginar um estado mais deplorável?...

Amo-te como uma perdida, e modero-me ainda assim contigo, até não

ousar talvez desejar-te as mesmas tribulações, os mesmos transportes

que me agitam...

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Literatura e Ensino II

138

Matar-me-ia, ou a não fazê-lo, morreria de dor, se estivesse certa que

nunca tinhas repouso, que a tua vida era uma contínua desordem e per-

turbação, que não cessavas de derramar lágrimas, e que tudo aborrecias...

Eu não me sinto com forças para os meus males, como poderia suportar

a dor que me causariam os teus, mil vezes mais penetrantes?...

Contudo não posso do mesmo modo resolver-me a desejar que não

me tragas no pensamento, e para falar-te sinceramente, sinto com furor

ciúmes de tudo quanto possa causar-te alegria; comover ä teu coração,

e dar-te gosto em França.

Ignoro por que motivo te escrevo...

Vejo que apenas terás dó de mim, e eu rejeito a tua compaixão, e nada

quero dela;

Enfado-me contra mim mesma, quando faço reflexão sobre tudo o que

te sacrifiquei...

Perdi a minha reputação; expus-me aos furores de meus pais e parentes,

às severas leis deste Reino contra as religiosas... e à tua ingratidão, que

me parece a maior de todas as desgraças...

Ainda assim eu sinto que os meus remorsos não são verdadeiros, e que

do íntimo do meu coração quisera ter corrido muito maiores perigos por

Amor de ti, e provo um funesto prazer de ter arriscado por ti vida e honra.

Tudo o que me é mais precioso não devia eu entregá-lo à tua disposição?...

E não devo eu ter muita satisfação de o ter empregado como fiz?...

Parece-me até não estar contente, nem dás minhas mágoas, nem do

excesso de meu Amor, ainda que, ai de mim! não possa, mal pecado,

lisonjear-me de estar contente de ti...

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Capítulo 08Formas da memória

139

Vivo, e como desleal, faço tanto por conservar a vida, quanto perdê-la!...

Morro de vergonha... acaso a minha desesperação existe somente nas

minhas ?...

Se eu te amasse com aquele extremo que milhares de vezes te disse,

não teria eu já de longo tempo cessado de viver?...

Enganei-te... tens toda a razão de queixar-te de mim... Ah ! por que não

te queixas?...

Vi-te partir; nenhumas esperanças posso ter de mais ver-te. e ainda res-

piro!... É uma traição...

Peço-te dela perdão.

Mas não mo concedas...

Trata-me rigorosamente.

Não julgues os meus sentimentos veementes...

Sê mais difícil de contentar...

Ordena-me nas tuas cartas que morra de Amor por ti...

Oh! conjuro-te de me dares esse auxílio para poder vencer a fraqueza do

meu sexo, e pôr termo às minhas irresoluções, por um golpe de verda-

deira desesperação.

Um fim trágico obrigar-te-ia, sem dúvida, a pensar muitas vezes em

mim...

A minha memória te seria cara, e quiçá esta morte extraordinária te cau-

saria uma sensível comoção.

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Literatura e Ensino II

140

E a morte não é porventura preferível ao estado a que me abaixaste?...

Adeus!

Muito quisera nunca haver posto os olhos em ti.

Ah! sinto vivamente a falsidade deste senti- mento, e conheço neste

mesmo instante em que te escrevo, quanto prefiro e prezo mais ser in-

feliz amando-te, do que não te haver jamais visto.

Cedo sem murmurar à minha malfadada sorte, já que tu não quiseste

torná-la melhor. Adeus.

Promete-me de conservar uma terna e maviosa saudade de mim, se

eu falecer de dor; e assim possa ao menos a violência da minha paixão,

inspirar-te desgosto e afastar-te de tudo!

Esta consolação me será suficiente, e, se é força que te abandone para

sempre, desejara muito não deixar-te a outra.

Dize, não seria nímia crueldade a tua, se te servisses da minha desespe-

ração para, pareceres mais amável, mostrando que acendeste a maior

paixão que houve no mundo?

Adeus outra vez...

Escrevo-te cartas excessivamente longas, o que é uma falta de conside-

ração para ti: peço-te mil perdões, e atrevo-me a esperar que terás algu-

ma indulgência para com uma pobre insensata, que o não era, como tu

bem sabes, antes de amar-te.

Adeus.

Parece-me que demasiadas vezes me dilato em falar do estado insupor-

tável em que estou.

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Capítulo 08Formas da memória

141

Contudo agradeço-te, do íntimo do meu coração, a desesperação que

me causas, e aborreço o sossego em que vivi antes de conhecer-te...

Adeus.

A minha paixão cresce a cada momento.

Ah! quantas cousas tinha ainda para dizer-te!...

Enfim, através da correspondência, o indivíduo acaba por criar também uma literatura de si, e essa literatura é tão transgressiva quanto aquela que objetiva transpor os limites da linguagem, pois se trata de reinventar a si mesmo e de transpor o limite do que somos.

Dessa forma, ao tentar construir um texto que esboce a si mesmo, relate os aspectos escolhidos de seu cotidiano, expresse impressões so-bre a alma, o corpo, o lazer, demonstre um “eu como tarefa a ser reali-zada” (pois não se trata de um personagem pronto, mas em permanente construção), o indivíduo cria, do ponto de vista estético, um eu “versátil que se constitui como ficção”.

Batendo Papo

1) Leia um capítulo de um romance-carta de Alencar. A que você atribui a escolha de José de Alencar por esse recurso nar-rativo?

2) Correspondência: uma construção ficcional, um documento? Reflita sobre a questão da subjetividade nessas narrativas de si.

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Literatura e Ensino II

142

Leia mais!

Algumas reflexões, algumas leituras, algumas correspondências:

CUNHA, Maria Teresa Santos. Por hoje é só... Cartas entre amigas. In: BASTOS, M. H. C.; CUNHA, M. T. S.; MIGNOT, M. C. V. (Orgs.) Des-tinos das letras – história, educação e escrita epistolar. Florianópolis: Editora Mulheres, 2000.

IONTA, Marilda Aparecida. As cores da amizade na escrita epistolar de Anita Malfatti, Oneida Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade. Campinas, São Paulo: 2004. (Doutorado em História). Uni-versidade Estadual de Campinas. Disponível em: http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000314338. <Inserir data de acesso.>

LISPECTOR, Clarice. Minhas queridas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. p. 120-121.

MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. D. Pedro II e a Condessa de Bar-ral através da correspondência íntima do imperador, anotada e co-mentada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956.

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Unidade DEncontro final - literatura e outras linguagens

Macanudo, por Liniers.

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Capítulo 09EnEm e a literatura

145

9 EnEm e a literatura

Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas dis-

ciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que

devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário.

(Barthes, 1978, p. 18)

Fizemos, até agora, toda uma trajetória de um olhar interdisciplinar da relação da literatura com outras linguagens. Queríamos chegar ao ponto em que pudéssemos pensar no ENEM como um outro modo de ler para uma avaliação nacional do ensino médio e até que ponto esse olhar sobre outros códigos permitiria um novo modo de ler e de interpretar. Sobra, porém, um lugar para a literatura, para os estudos literários na sua especificidade? Por essa razão a epígrafe acima, de Roland Barthes, inicia esse importante tópico.

Sem dúvida, um dos papéis da escola (e, que fique bem claro, não apenas das aulas de Língua Portuguesa) é o ensino da leitura. Não somente a leitura como decodificação de signos – fundamental, é claro –, mas também como processo cognitivo ativo de atribuição de senti-dos. Em outras palavras, o ato de ler consiste-se na atividade de atri-buir significados aos signos e, então, atribuir sentidos ao texto.

Para que o ensino da leitura seja efetivo, é preciso, antes de tudo, compreender que cada gênero exige um modo de leitura diferente, ou seja, os textos não são lidos da mesma maneira, porque possuem suas especificidades: cada gênero possui certa configuração; utiliza-se de re-cursos linguísticos, textuais e discursivos diferentes; apresenta-se em suportes específicos e cumpre objetivos distintos. Os tópicos anteriores nos mostraram efetivamente essa diversidade.

Quando falamos sobre texto, apoiamo-nos à teoria de Roland Bar-

thes, que não restringe texto às palavras escritas. Texto é tudo aqui-

lo passível de leitura: uma música, um filme, uma pintura, uma fo-

Este capítulo foi desenvol-vido por Ana Luiza Bazzo da Rosa, graduada em Letras, Licenciatura em Português, como resultado da pesquisa Literatura como disciplina, bolsista de Iniciação Científi-ca, sob a supervisão e orien-tação da Profa. Dra. Tânia Regina Oliveira Ramos.

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Literatura e Ensino II

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Contudo, é certo que alguns gêneros constituem-se em relações co-municativas mais cotidianas e imediatas, e são justamente desses gêneros que as alunas e os alunos são, mais facilmente, leitoras e leitores proficien-tes. O papel da escola, nesse sentido, é promover o senso crítico, para que estes sejam não apenas leitoras e leitores de gêneros/de mundo, mas leito-res e sujeitos críticos. A escola tem como objetivo, também, proporcionar aos alunos o contato com gêneros que, muitas vezes, não fazem parte da rotina de jovens estudantes. Um destes gêneros é o texto literário.

Gostaríamos de iniciar a discussão com o questionamento levantado por Roland Barthes, já em 1969, em conferência pronunciada no colóquio O Ensino da Literatura, intitulada Reflexões a respeito de um manual, pu-blicada no Brasil em O Rumor da Língua: “Será que a literatura pode ser para nós algo que não uma lembrança de infância?”. Ou seja, será que a literatura sobrevive após o ensino médio? Quantos alunos saem da escola gostando de ler? Será que a escola forma leitores? Desde a provocação fei-ta por Barthes, muito se discutiu sobre concepções de língua, sujeito e en-sino; a educação brasileira passou por diversas transformações, positivas e negativas; entretanto, no que se concerne ao ensino de literatura, ainda hoje faltam “subsídios teóricos e metodológicos para auxiliar a prática pe-dagógica dos professores” (MARTINS, 2006, p. 83).

Reflexões a respeito de um manual”, de Roland

Barthes, foi discutido em “Literatura e Ensino

I”. Consideramos impor-tante a leitura do texto.

tografia, uma carta, as possibilidades da tecnologia, os espaços da

web. Partindo deste pressuposto, é imprescindível que o professor

compreenda que o aluno, independente de seu nível de escolari-

zação formal, é um leitor proficiente de determinados gêneros, so-

bretudo no contexto de globalização no qual vivemos. O próprio

perfil de leitor não é o mesmo de décadas anteriores. Hoje, somos

sujeitos leitores, espectadores, internautas, consumidores de diver-

sas linguagens e formas de arte. Neste contexto, como professores,

precisamos ter consciência de que o desafio não é mais o de como

propiciar o acesso dos alunos às informações, mas sim o de como

ajudá-los a selecionar essas informações, organizá-las, sistematizá-

-las, compreendê-las e analisá-las criticamente.

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Capítulo 09EnEm e a literatura

147

Ainda hoje, quando a gramática não é privilegiada, a preferência re-cai sobre a história da literatura: os alunos são orientados a decorar as escolas literárias, seus períodos de “existência”, suas características, seus principais representantes e suas obras mais importantes. Nesses casos, a literatura não é apresentada como uma forma de arte acessível, como fonte de prazer, tampouco como uma possibilidade de resignificação de sentidos, de leitura de mundo, de transformação social. Essa problemática acentua-se nos últimos três anos da educação formal, uma vez que o ensi-no médio tem como principal característica a preparação dos alunos para o ingresso no ensino superior. Partindo desta premissa, o projeto Literatu-ra com(o) disciplina, orientado pela professora Dra. Tânia Regina Oliveira Ramos, entre o período de 2005 a 2013, teve como objetivo analisar a abordagem da literatura no vestibular da Universidade Federal de San-ta Catarina (UFSC) e, sintomaticamente, o espaço curricular reservado à literatura no ensino médio, sobretudo em escolas da capital catarinense, que tivessem uma demanda significativa para o Vestibular da UFSC.

Desde 2011, contudo, o projeto voltou seu olhar ao Exame Nacio-nal de Ensino Médio (ENEM), devido a sua expansão a nível nacional e a promessa de substituto efetivo dos vestibulares para ingresso nas uni-versidades, especialmente nas universidades públicas e gratuitas, embora gradativamente universidades particulares e comunitárias estejam ade-rindo à classificação do exame, não para processo classificatório, mas para o processo seletivo.

O resultado deste cenário é preocupante: da maneira como o estudo

da literatura foi e é, muitas vezes, conduzido em sala, direcionado

pelas apostilas ou livros didáticos e baseado na periodização das es-

colas literárias, a escola, além de não formar leitores, é, muitas vezes,

responsável pelo desinteresse de jovens que, na infância e/ou pré-

-adolescência, apreciavam a leitura como forma de chegar à fruição.

Literatura com(o) disciplina faz parte do projeto Memórias de Lei-

tura, do núcleo Literatura e Memória (nuLIME) da UFSC.

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Literatura e Ensino II

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EnEm: um breve histórico

Criado em 1998, o ENEM tinha como objetivo avaliar o desempe-nho dos estudantes egressos do ensino médio. Por se tratar de um exame não obrigatório, o número de participantes nos primeiros anos era rela-tivamente baixo. Faziam o ENEM aqueles alunos que – por curiosidade, interesse ou estímulo da escola – desejavam medir seu conhecimento antes de ingressar na universidade ou na vida profissional.

Aos poucos, contudo, o exame foi perdendo seu caráter facultativo. As escolas, por exemplo, perceberam que a média obtida por seus alunos poderia servir como propaganda para atrair novos estudantes. Além dis-so, algumas instituições privadas de ensino superior adotaram o ENEM como porta de entrada para seus cursos, uma vez que não possuíam um vestibular próprio, resultando no aumento de inscritos a cada ano.

Em 2005, o governo federal criou o Programa Universidade para Todos (ProUni), que concede bolsas de estudo, parciais ou integrais, em universidades particulares a estudantes de baixo poder aquisitivo. O cri-tério de seleção do ProUni é justamente o desempenho dos concorrentes no ENEM, fazendo com que o exame ganhasse ainda mais importância.

Essa importância consolidou-se, efetivamente, em 2009, quando o MEC decretou que o exame passaria a ser referência obrigatória para o in-gresso de estudantes nas universidades federais de todo o país. Desde então, sobretudo após a criação do Sistema de Seleção Unificado (Sisu), o exame tornou-se a porta de entrada para importantes universidades públicas.

O decreto do MEC, contudo, não agradou a todos. Muitas universi-dades posicionaram-se contra a proposta do governo federal e não ade-riram a ela. A fim de contornar a situação, o MEC publicou um docu-mento – A Matriz de Referências para o ENEM 2009 –, fazendo algumas

De acordo com CEREJA & CLETO (2011), o EnEm contou com aproxi-

madamente 157 mil inscritos em 1998.

CEREJA & CLETO (2011)Reflexões a respeito de um manual”, de Roland Barthes, foi discutido em “Literatura e Ensino I”. Consideramos im-portante a leitura do texto.

William Roberto Cereja é doutor em Linguística

Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifí-

cia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Mestre em Teoria Lite-

rária pela Universidade de São Paulo (USP),

professor graduado em Português e Linguística e licenciado em Português

pela Universidade de São Paulo (USP). Além de atuar como professor da

rede particular de ensino em São Paulo, é autor de

livros didáticas.

Ciley Cleto é professora graduada e licenciada

em Português pela Uni-versidade de São Paulo e

mestre em Linguística e Semiótica pela Universi-

dade de São Paulo

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Capítulo 09EnEm e a literatura

149

concessões com o intuito de fortalecer o exame (e agradar as universida-des contrárias à medida): aumentou o número de questões do exame e flexibilizou o modo como a nota obtida pelos estudantes seria utilizada pelas instituições de ensino superior.

Apesar de não agradar a todos, o ENEM vem conquistando um espaço cada vez maior, tomando, inclusive, o lugar antes pertencente ao vestibular. Em agosto de 2011, segundo o site UOL, esperava-se que pelo menos 30 universidades federais utilizassem a prova como única forma de seleção e que outras tantas a utilizassem para compor, junto ao vestibular, a nota final dos candidatos. De acordo com a revista Istoé do dia 19 de outubro de 2011, cerca de 5,4 milhões de estudantes se inscreveram no ENEM, aproximadamente um milhão a mais que no ano anterior. Em 2012, outro recorde: em junho do ano passado, o site da Veja apontava aproximadamente 6,4 milhões de inscritos. Em 2013, de acordo com o site G1 do dia 7 de junho, o ENEM teria mais de 7,1 milhões de participantes. No ano de 2014 o número é ainda mais im-pressionante! Como consta no site da Folha, foram registradas mais de 9 milhões de inscrições para o ENEM, que será realizado nos dias 8 e 9 de novembro. Segundo o MEC, o número de inscritos em 2014 representa um crescimento de 26,7% em relação ao ano passado.

Em relação ao número de universidades federais que aceitam o ENEM, o crescimento não ficou para trás. O site Terra, no dia 27 de maio de 2013, afirma que as “maiores universidades federais adotam ENEM”; o site Estadão, em 19 de maio de 2013, aponta que 80% das universidades federais já aderiram ao exame; e o site Brasil Escola ela-borou uma lista “mostrando quais e como as universidades federais e estaduais do Brasil irão usar Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) 2013”. Para este ano, o ENEM conta com a adesão de mais 12 universi-dades: dez federais e duas estaduais. Não é apenas no Brasil, entretanto, que o ENEM vem ganhando destaque: neste ano, duas universidades portuguesas aderiram ao exame para selecionar estudantes brasileiros interessados em seus cursos de graduação – a Universidade de Coimbra e a Universidade da Beira Interior.

Page 150: Literatura e Ensino II Miolo

Literatura e Ensino II

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Percalços constantes, porém, têm ameaçado a reputação do ENEM, como o vazamento de conteúdo e o defeito de impressão que obrigou o MEC a reaplicar a prova a parte dos alunos. Em 2011, outro escândalo pôs em xeque a qualidade do exame: a denúncia de que questões da prova teriam vazado para uma escola de Fortaleza, no Ceará. Em 2012, o pro-blema foi com a redação: como consta no site do Estadão, um candidato escreveu, no meio de seu texto, sobre como preparar um macarrão ins-tantâneo, e obteve 560 pontos de um total de 1000. Ainda de acordo com o site, o estudante escreveu em sua redação: “Para não ficar muito cansa-tivo, vou agora ensinar a fazer um belo miojo, ferva trezentos (sic) ml’s de água em uma panela, quando estiver fervendo, coloque o miojo, espere cozinhar por três minutos, retire o miojo do fogão, misture bem e sirva”.

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Capítulo 09EnEm e a literatura

151

O Jornal Estado de São Paulo afirma, também, que redações com nota máxima apresentavam erros de português: “os textos apresenta-vam erros de grafia, como “rasoável” (em vez de razoável), “enchergar” (em vez de enxergar) e “trousse” (no lugar de trouxe). Várias (sic) textos apresentavam ainda graves problemas de concordância verbal, acentua-ção e pontuação”. Em resposta às críticas, o MEC afirmou que “a análise de texto é feita como um todo e que eventuais erros de grafia não signi-ficam que o aluno não domine os padrões da língua”. A justificativa do MEC parece interessante ao levantar, de certa forma, que a relevância de um texto não depende apenas de sua forma, mas também (e princi-palmente, em muitos casos) de seu conteúdo. Contudo, precisa-se levar em conta o contexto. No caso do ENEM ou de qualquer outro exame de seleção, o estudante precisa demonstrar que domina a norma padrão da língua - “a modalidade escrita formal da língua portuguesa” – uma das cinco competências avaliadas na produção textual do candidato.

Apesar do histórico tumultuado, o ENEM passou de um exame facultativo e analítico, que contou com 157 mil candidatos em 1998, à porta de entrada para diversas universidades do Brasil (e de fora dele!). É, inclusive, a grande aposta do governo federal e de alguns professores como substituto efetivo dos vestibulares.

E os alunos, onde é que ficam?

O ambiente virtual foi de extrema valia para a consolidação do proje-to Literatura com(o) disciplina, desde o acesso a páginas virtuais (jornais, revistas, textos teóricos, provas dos vestibulares UFSC e ENEM, simu-lados, acervos literários, sites relacionados à educação etc) até o contato com estudantes por meio de redes sociais (Orkut, Facebook e Twitter).

No Facebook, encontramos páginas como “ENEm”, com 164.493 cur-

tidas; “ENEm”, novamente, com 97.946 curtidas; “ENEm 2014”, com

80.743 curtidas; além de diversos grupos, com número de membros

significativo, ultrapassando, normalmente, a marca de 20 mil.

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A internet nos possibilita a incrível oportunidade de alcançar estudan-tes de todas as regiões do Brasil, candidatos das mais diversas instituições de ensino superior do país. Através da rede social Facebook, por exemplo, mantivemos contato frequente com uma amostragem de candidatas e can-didatos ao ingresso no ensino superior. Conversamos, entre outras coisas, sobre suas expectativas em relação à prova e sobre suas opiniões acerca da expansão do ENEM. Aplicamos, também, um questionário a jovens que prestaram e que prestariam o exame, contabilizando 35 respostas, o que para a pesquisa já forneceria subsídios para algumas conclusões. Embora ainda não fosse possível traçar um perfil dos candidatos, as respostas possu-íam constantes que, sem dúvida, permitiriam algumas conclusões

Percebemos, por exemplo, que os alunos ainda estão presos a um tipo de ensino de literatura pautado na periodização literária, que privi-legia, exclusivamente, o cânone. Observe algumas respostas:

O que você está lendo para prestar o vestibular e/ou para o

EnEM?

Resposta do estudante (1):

Estou procurando ler os clássicos da literatura brasileira. No momento,

estou lendo O Cortiço e Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Resposta do estudante (2):

Alguns livros da literatura clássica na escola.

Resposta do estudante (3):

Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis

O Cortiço – Aluísio Azevedo

Se você pudesse sugerir um livro (ou mais de um) para incluir na

lista do vestibular, qual seria?

Resposta do estudante (1):

O Ateneu, A Moreninha.

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Capítulo 09EnEm e a literatura

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Resposta do estudante (2):

“O primo Basílio”. Apesar de não ser da literatura brasileira, é um livro

clássico da língua portuguesa e muito bem elaborado. Acho que seria

interessante se fosse incluso na lista.

Apesar da (super)valorização dos textos canônicos, em sua maio-ria, leituras obrigatórias na escola, muitos alunos parecem sentir falta de livros contemporâneos no vestibular e nas provas do ENEM:

Se você pudesse sugerir um livro (ou mais de um) para incluir na

lista do vestibular, qual seria?

Resposta do estudante (1):

Qualquer um modernista ou contemporâneo.

Fique à vontade para tecer mais algum comentário, se desejar.

Resposta do estudante (1):

As provas das diferentes instituições são muito voltadas para determina-

das escolas literárias, como: Romantismo, Realismo e Modernismo. Acre-

dito que as instituições poderiam cobrar mais obras contemporâneas

também.

Alguns foram ainda mais audaciosos, talvez utópicos, com alguns desejos resultantes, possivelmente, de uma outra vivência, fora da escola ou de uma assimilação de monemas apre(e)ndidos de um modo menos convencional

Se você pudesse sugerir um livro (ou mais de um) para incluir na

lista do vestibular, qual seria?

Resposta do estudante (1):

O Tempo e o Vento, A Paixão Segundo GH, Perto do Coração Valente,

Dona Flor e seus dois maridos, Incidente em Antares, Os Sertões. Assim

como literatura estrangeira, de Mark Twain, José Saramago, Marcel Proust,

Victor Hugo, Marques de Sade e até livros de Nietzsche e Jean-Paul Sartre.

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No início da pesquisa, com a quantidade de questionários que tí-nhamos, não fora possível observar um consenso em relação à falta de uma lista de livros obrigatórios, como acontece nos exames vestibulares, para a realização do ENEM. Alguns afirmavam sentir falta; outros, não. A justificativa para ambas as respostas eram múltiplas:

Em relação ao EnEM, você sente falta de uma lista de livros de

literatura que direcione suas leituras e seus estudos?

Resposta do estudante (1):

Não necessariamente, pois o ENEM, sendo uma prova de raciocínio, neces-

sita apenas que o aluno saiba interpretar aquilo que lhe é dado para analisar.

Resposta do estudante (2):

Não, até porque eu acho que a lista da Fuvest serve de base para o ENEM

e alguns outros vestibulares.

Resposta do estudante (3):

Sim. Pra mim ficaria mais fácil. Daria mais segurança, porque aí eu teria cer-

teza que ia cair uma questão sobre o livro e meio que me garantiria pontos.

Resposta do estudante (4):

Sinto. A literatura é uma vertente importante do conhecimento, em mi-

nha opinião, e eu acho que o ENEM deveria dar mais atenção a isso.

Quando aumentamos nosso banco de dados, foi possível afirmar, com mais propriedade, que a maior parte dos alunos entrevistados sente falta de uma lista. Por mais que nosso corpus não fosse numericamente representativo, essa característica provavelmente reflete a opinião (e a angústia) de muitos outros estudantes.

Em relação ao EnEM, você sentiu falta de uma lista de livros de li-

teratura que direcionasse suas leituras e seus estudos? Justifique.

Resposta do estudante (1):

Sim, devido a falta de informação acabamos por procurar obras que não

acrescentam tanto ao currículo para um vestibular.

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Capítulo 09EnEm e a literatura

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Resposta do estudante (2):

Sim, pois uma lista direcionaria o estudo e facilitaria muito o estudo de

quem vai prestar ENEM.

Resposta do estudante (3):

Sim. Com uma lista de livros direcionados não temos o perigo de dar

ênfase e nos direcionar em algo que possa tomar o tempo de nos focar

em algo que temos certeza que será questionado.

Resposta do estudante (4):

Sim, devido a (sic) falta de informação acabamos por procurar obras que

não acrescentam tanto ao currículo para um vestibular.

Ainda em relação à lista de livros obrigatórios, contudo, um estu-dante levantou uma questão bastante pertinente, já que ele tem consci-ência de que seria uma lista nacional:

Em relação ao EnEM, você sentiu falta de uma lista de livros de

literatura que direcionasse suas leituras e seus estudos?

Resposta do estudante (1):

Não. Como, para cada vestibular, as universidades pedem uma média

de 8 livros, acho que se tivessem outros ainda para o ENEM seria difícil

conseguir ler todos eles na íntegra durante o ano.

De fato, muitas instituições utilizam o ENEM para compor a nota de seus candidatos, mas não aboliram seus vestibulares. É o caso da UFSC, por exemplo, que, para o vestibular 2013, adotou o exame com peso de 30% na nota final do estudante. Também para o vestibular 2013, a UFSC apresentou uma lista de oito livros de leitura obrigatória (ou, pelo menos, recomendada). Dessa forma, se o ENEM também sugerisse uma lista de leitura, o aluno que decidisse prestar vestibular na UFSC, ou em outra instituição que adota o mesmo método de seleção, não da-ria conta de ler todos os livros recomendados para as duas provas.

Assim, a questão da falta de uma lista de livros no ENEM parece-nos um paradoxo. Temos a opinião, referendada pelo depoimento de muitos

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vestibulandos entrevistados, de que uma prova de seleção para um curso universitário deveria possuir uma lista de leitura recomendada, não apenas para direcionar os estudos dos alunos, mas para, se possível for, estimular a leitura de livros de literatura na rotina de jovens que, em muitos casos, passarão a vida lendo apenas aquilo que lhe for obrigado. Por outro lado, uma lista de livros no ENEM é, no atual contexto, impraticável. Aqueles que prestam outros vestibulares ainda têm como responsabilidade ler livros de literatura; aqueles que prestam apenas o ENEM, entretanto, não o têm.

Análise das questões

Proclama-se que o ENEM diferencia-se de grande parte dos vesti-bulares pela sua preocupação em apresentar questões transdisciplinares como apresentamos nesse livro, que não dependam, para sua resolução, de fórmulas prontas, mas que privilegiam o raciocínio lógico e a inter-pretação de texto. Além disso, a princípio, parece interessante a existên-cia de um vestibular unificado, não só em termos financeiros, mas no sentido de proporcionar a mobilidade estudantil.

O ENEM, contudo, possui problemas em suas questões de lite-ratura (nosso foco de interesse, portanto nosso objeto de estudo). Ao analisar as provas dos últimos anos, todas disponíveis no site do INEP (juntamente com os gabaritos), é possível afirmar que o exame passou de diagnóstico do ensino médio ao nível de vestibular sem a devida atenção às questões propostas.

Sabemos que os exames de seleção têm fundamental responsabili-dade sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e os Projetos Políticos Pedagógicos (PPPs) das escolas. Citamos a página eletrônica do jornal O Globo, do dia 13 de agosto de 2011:

Vamos pensar: a que alunos o EnEm proporciona essa mobilidade?

Ou seja, quantos alunos teriam condições de se sustentar em outra

cidade, em outro estado?

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Capítulo 09EnEm e a literatura

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Desde os anos 1960, quando a universidade no Brasil passou a ser pro-

curada massivamente, há sempre mais candidatos do que vagas, e os

vestibulares passaram a ser o paradigma maior do ensino médio. O que

cai no vestibular entra no programa de ensino da escola; o que não cai,

deixa de existir, com raríssimas exceções. Então cabe a indagação: o que

o ENEM está cobrando em literatura?

O ENEM apresenta perguntas sobre literatura, sim, mas a natureza dessas questões põe em xeque a qualidade da prova de “Linguagens, Có-digos e Suas Tecnologias”. Na maior parte das vezes, o ENEM não faz dis-tinção entre o texto literário e o texto não literário, como as reportagens e os artigos científicos. Parece que o exame avalia a leitura como processo operacional, impossibilitando desdobramentos ainda mais instigantes.

De acordo com o professor de literatura e pesquisador da Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luís Augusto Fischer para o site do Terra, o ENEM pode prejudicar o ensino de literatura nas escolas. Com base numa pesquisa realizada na mesma universidade,

Além da qualidade questionável das questões apresentadas, outro fa-

tor nos preocupa: a falta de uma lista de leituras obrigatórias, como já

citamos anteriormente. Recomenda-se ao aluno que leia tudo aquilo

que for possível e tudo que tenha valor dentre as mais diversas es-

colas literárias. Além de não direcionar os candidatos àquilo que eles

deveriam ler para a realização da prova, essa recomendação significa

retrocedermos, antes mesmo de o termos superado, ao modelo de

ensino pautado na periodização literária e nas obras canônicas, exclu-

sivamente. Voltamos, então, ao questionamento de Roland Barthes

e à pergunta que fizemos no início desta seção: será que a literatura

sobrevive após o ensino médio? E agora, refletindo sobre o momento

de transição no qual se encontra o ensino brasileiro: a literatura sobre-

viverá no ensino médio? Teria a literatura, ainda, um lugar disciplinar?

Estaria ela sendo trabalhada em sala? Se sim, quais textos são con-

templados nas aulas de língua portuguesa?

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o professor afirma que “o ENEM prestigia mais a literatura enquanto leitura do que a literatura enquanto aprendizagem cultural”. Para ele, trabalhar com a literatura enquanto leitura é muito mais simples, pois implica somente na leitura do texto, seja ele uma letra de música, uma poesia, um conto ou um trecho de um romance. Segundo Fisher, pen-sar a literatura como cultura é algo extremamente mais complexo, uma vez que depende de conhecimentos que transcendem o texto, tais como contexto histórico, político e cultural da época em que a obra foi escrita.

Devemos lembrar que o ENEM, como processo de seleção e não apenas como processo avaliativo, é um sistema recente, com aproxima-damente cinco anos. Sendo assim, por mais que critiquemos o exame, não podemos desqualificá-lo. Ressaltamos, portanto, a evolução (a nos-so ver, é claro) das questões da prova de “Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias”. A fim de ilustrar esta afirmação, escolhemos questões das provas de 2009 e 2012, respectivamente. Observe:

Por sua vez, o professor de literatura de um cursinho pré-vestibular

de Porto Alegre, Edir Alonso, defende o Enem, com a justificativa de

que o exame traz textos mais populares. Segundo ele, “o modelo de

avaliação tradicional, com base na leitura dos clássicos, acaba por

enfrentar uma dura realidade: está distante da vida do jovem lei-

tor médio”. Contudo, entre críticos e defensores do EnEm, existe um

consenso: a prova precisa evoluir.

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Capítulo 09EnEm e a literatura

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- ENEM 2009

– ENEM 2012

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Algumas conclusões

Consideramos importante apontar para a impossibilidade de tirar conclusões assertivas em relação a certas inquietações apresentadas nes-te capítulo. O ENEM, de fato, substituirá os vestibulares tradicionais. Quais consequências, de ordem mais geral, a expansão do ENEM trará para o ensino brasileiro? Como a literatura será trabalhada nas escolas se os PCNs e/ou os PCCs tiverem o ENEM como parâmetro? Essas e outras questões só poderão ser efetivamente respondidas com o tempo, a partir de pesquisas futuras.

Como resultados da pesquisa sobre a qual discorremos brevemente neste capítulo, consideramos fundamental destacar nossa análise às ques-tões de literatura propostas nas provas dos últimos anos, em relação às quais observamos um avanço significativo. Além disso, reiteramos a importância de nossa interação com estudantes que prestaram e que prestariam ENEM não somente como um processo que trouxe respostas as nossas inquieta-ções (o caso da falta de uma lista de livros de leitura, por exemplo), mas também que nos provocou novos questionamentos. Apontamos alguns de-les: a princípio, parece interessante a ideia de um vestibular unificado, uma vez que as instituições de ensino superior não teriam como encargo a ela-boração de vestibulares próprios. Por outro lado, todavia, um único exame para todo o país pode ser um problema se considerarmos o tamanho do Brasil e sua diversidade sociocultural. Outra preocupação que nos ocorreu ao longo da pesquisa foi no que se refere ao slogan do governo federal em defesa do ENEM: democratização do ensino.

É certo que os vestibulares tradicionais, apesar da lei das cotas, são sistemas de seleção excludentes e pouco democráticos, uma vez que di-ficultam (ou melhor, praticamente impossibilitam) a entrada ao ensino superior da parcela da população que não teve acesso a uma educação mais específica, voltada à preparação dos alunos para o próprio vesti-bular. Portanto, mudanças no sistema tradicional de seleção são funda-mentais e, a nosso ver, um exame estruturado como ou parecido com o ENEM, ao menos como ideia/teoria, é bastante interessante.

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Capítulo 09EnEm e a literatura

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Há uma questão conflitante, contudo, quando pensamos no ENEM como um passo à “democratização”. Atualmente, já existe uma enorme oferta de cursos preparatórios para o exame. Após uma breve pesqui-sa no Google, encontramos mais de 500.000 resultados para “cursinho ENEM”. Ao pesquisar, também, “revista para o ENEM”, não foi difí-cil encontrar resultados como “Guia do ENEM”, “Revista ENEM” e “+ ENEM”. Nesse sentido, não adianta mudar o sistema de seleção se isso significa a manutenção e a perpetuação da mesma estrutura excludente. Por fim, pensamos que seria muito mais enriquecedor para o Brasil em termos de democratização da educação se houvesse uma mudança no sistema escolar e não apenas no de seleção.

Propaganda Novo ENEM de 2009

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Capítulo 10

Figura 34 - Maria Valéria Rezende.

O texto literário e as pluralidades poéticas

163

O texto literário e as pluralidades poéticas

Literatura e outras linguagens. Este foi o encontro que a última dis-ciplina de Estudos Literários quis proporcionar. E vamos terminar a dis-ciplina com a leitura de um romance contemporâneo e como ele aponta na sua estrutura formal e no seu enredo linguagens em uma tradição cul-tural. Destacamos a capa e a lombada elaboradas pela Editora Objetiva: uma narrativa “fora dos eixos”. Um livro reconhecido institucionalmen-te por seu mérito. Um romance premiado inserido em uma coleção que pretende buscar a qualidade literária que floresce, em termos geográficos, fora do eixo Rio/São Paulo, ainda que a história seja ambientada em São Paulo. Um olhar excêntrico em um romance de geração que supera uma literatura descritiva do cotidiano, modelo ficcional que permite um olhar fabulatório sobre o que já se creditou como figurações “realistas” de certas representações do mundo contemporâneo.

Como vocês perceberam na leitura que fizeram de O vôo da guará vermelha, de Maria Valéria Rezende, o livro pela sua visualidade quis ser uma literatura desejante, quis estabelecer um diálogo com a tradição oral com a cultura popular, em um romance que traz na escrita uma fala reiterante nas narrativas do personagem masculino, Rosálio, contador de histórias e analfabeto:

corri pra cima da serra pra ninguém lembrar de mim, virei um bicho do

mato, bicho brabo, machucado, que se alguém chegasse perto periga-

va de eu morder, outras vezes mofino, aquebratantado, de tanto que

fiquei triste de não aprender a ler. (REZENDE, 2005, p. 62). Sugerimos

que você leia alto este trecho.

A repetição do gesto daquele que vem todas as noites ao en-contro de Irene, a personagem feminina, na tentativa insistente de contar a sua história dá o andamento da narrativa: “Era tão bom esperar; ter assim o pensamento voltado para o futuro, um futuro bem curtinho” (REZENDE, 2005, p. 77). Realiza-se aqui, também, mais uma aproxi-

A contra capa do livro de Maria Valéria Rezende diz: “Fora dos Eixos é uma cole-ção que pretende buscar a qualidade literária que flo-resce, em termos geográ-ficos, fora do eixo Rio/São Paulo – e sob o aspecto da construção da linguagem, o autor que luta contra o banal para encontrar a originalidade, o vigor, a transgressão narrativa.”

Esse romance fez parte dos livros indicados para o Vestibular UFSC 2009

Relembre nossas conside-rações sobre a Contação de histórias.

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mação com o sonho de Gustavo Flaubert de encontrar um romance que se sustentasse apenas nas palavras, sem acontecimento nenhum. Pode-ríamos dizer que O vôo da guará vermelha, de Maria Valéria Rezende, escritora, freira de profissão, dedicada às minorias, é uma narrativa que precisa ser visualizada como uma literatura que dá um tratamento esté-tico às histórias planas de um Brasil profundo.

Qual deve ser o gesto de nossa leitura diante de um romance que traz uma história com dois personagens em estado de deriva, buscando sobrevi-ver em uma cidade que não lhes pertence – São Paulo? Irene é uma prosti-tuta contaminada pelo vírus da aids (doença que é aludida, compreendida e não citada) e ele, o personagem masculino, um analfabeto, servente de pe-dreiro. Um romance neorrealista, uma narrativa engajada, uma dramatur-gia, um romance de denúncia social? Responder essas perguntas se torna desnecessário, quando a nossa atenção na leitura se volta muito mais para o apuro estético de uma narrativa intimista escrita em terceira pessoa, recur-so bastante raro na contemporaneidade. Um retrocesso estilístico poderia ser dito. Um homem e uma mulher são os centros da narrativa. A economia textual fica restrita a um quarto e uma cama, um colchão deformado, lápis e papel e, paradoxalmente, livros como a bagagem do homem analfabeto.

A memória não se dá nem pelo fragmento nem pelo tempo per-dido recalcado no inconsciente e a oralidade não se inscreve pelo lado épico da verdade, pelo conselho. O romance se constrói, como a nossa leitura percebeu, pelas duas narrativas que correm paralelamente, a da narradora e a do narrador-personagem, que no final se encontram “no azul sem fim”, nas duas partidas: a ouvinte que desaparece pela morte e a do contador de histórias que sobrevive, mas vai embora dizendo, para a personagem Anginha, a prostituta que fica repetindo o destino de Irene: “se a vida tem começo, eu penso que nunca finda”. Um romance sem muitos acontecimentos que leva o leitor a uma leitura calcada na errância da própria construção narrativa.

Você concorda que O vôo da guará vermelha é, na produção con-temporânea que foi lida no Curso, uma narrativa que se destaca porque busca apoio no lado pictórico e auditivo da memória e se torna o que

Uma das constantes das correspondências é o

conselho. Releia a carta de Clarice Lispector a

uma de suas irmãs.

Comece a perceber como as cores, a pintura,

o pictórico, estão presen-tes no texto.

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Capítulo 10O texto literário e as pluralidades poéticas

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se pode chamar de uma ficção construída através de cores e através do diálogo com outras linguagens? Nas imagens que cria para dar título aos capítulos, Maria Valéria Rezende leva a língua ao silêncio, mas consegue projetar uma outra cena, deslocando o eixo da narrativa, do sentido da escuta para o sentido da visão, o que se pode literalmente ser conferido através das diferenças gráficas nas letras do texto para a “coloração” dos capítulos, o que se procura agora exemplificar:

Cinzento e encarnado, Verde e negro, Roxo e branco, Ocre e rosa, Amarelo

e bonina, Verde e ouro, Vermelho e prata, Ouro e azul, Encarnado e ama-

relo, Verde e ocre, Alaranjado e verde, Azul e amarelo, Ocre e ouro, Azul e

encarnado, Cinzento e todas as cores, Vermelho e branco e Azul sem fim.

Para ilustrar esta presença da cor não só nos títulos, mas também como matéria narrativa, cito as passagens:

Tudo tão nada que Rosálio nem consegue evocar histórias que o façam

saltar para outras vidas, porque seus olhos não encontram cores com

que pintá-las. Fome de verdes, amarelos, encarnados”. (In: Cinzento e en-

carnado) (REZENDE, 2005, p. 11).

noutra sacola nova, dessas bacanas de loja, traz um vestido bonito, mui-

to alegre e colorido com flores vermelhas e azuis, que você, Irene, agora

vai ser a minha ajudante na arte de contar casos. (In: Azul e encadernado)

(REZENDE, 2005, p. 146).

A tensão entre escuta e visualidade, musicalidade e imagem, é as-sim colocada em uma relação dialética desde o título, que faz referência a algo para além da linguagem. Como falar ou escrever quando a lin-guagem se dirige a algo que, enquanto ato narrativo, parece se dirigir ao infinito? O voo da guará vermelha. O vôo é a metáfora de um encontro marginal, em uma espécie de epopeia como a de João e Maria, dois per-sonagens de um dos mais tradicionais contos de fadas: “Rosálio vai dei-xando um rastro de pedrinhas para marcar o caminho do regresso [...]”. Irene, o corpo problematizado sempre em estado de espera, vem depois com a folha amarela do resultado do exame e a morte anunciada. Mudar

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de vida ou mudar o rumo da narrativa? O menino, saudade deste filho que habita uma outra casa, a casa da velha, o dinheiro necessário, a espe-ra constante, o cotovelo na janela parece que é o que restará da sua vida.

O que resta do corpo de Irene, envelhecido e desgastado pelo uso, essa mulher imobilizada em um espaço de um quarto, se não escutar os causos de Rosálio? Quanto mais o escuta, mais se esquece de si mesma, porque precisa escrever a memória do outro. O que conteria este nome próprio, Irene, que parece ser ilustrador de alguns momentos estéticos de nossa cultura poética e musical: Quero ver Irene dar suas risadas1, Imagino Irene entrando no céu2 neste jogo intertextual que a nossa memória cul-tural torna possível?

Para além das cores que titulam os capítulos, os tipos gráficos nas páginas do livro criam a diferença e a tensão nos próprios dizeres do texto. Eles levam a se buscar uma outra coisa na história de Irene e Ro-sálio, que não é piedade e compaixão diante do que é contado. O próprio modo de escrever constrói e afeta o sentido da escrita de Maria Valéria Rezende. Impossível realizar a leitura e não perceber as alterações grá-ficas, os tipos menores, a letra e a voz, o som e o sentido, agindo sobre o corpo do leitor e a própria significação que constrói – estamos vendo, ouvindo e lendo ao mesmo tempo. Há um retorno à ficção no que ela traz de fabulação, de invenção, de descompromisso com a verdade fac-tual, com uma possível encenação do “real”.

Rosálio, o personagem masculino, fala, e cada história sua é a aber-tura para uma outra história que, por sua vez, desencadeia uma outra história e assim parece seguir um outro destino de Sherazade, não nar-rando para não morrer, mas narrando para a sua ouvinte não morrer, porque é ela (Irene? Maria Valéria Rezende?) que está transpondo para a escrita as suas histórias, os seus causos. Rosálio inventa para si um pas-sado e sonha tornar visível o seu dizer: ele deseja a espessura material da escrita, como os livros, que carrega consigo. O universo das palavras é a sua morada e, nas páginas que Irene escreve, Rosálio busca um novo acolhimento:

1. Verso de Caetano Ve-loso na letra de Irene.

2. Verso de Manuel Ban-deira no poema Irene

no Céu

Essa é a síntese da nossa disciplina.

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Capítulo 10O texto literário e as pluralidades poéticas

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Procura entre as páginas dos livros, um por um, mas nada encontra, só

palavras. Para que servem? Palavras (p. 18).

Senta na cama cambaia, recosta-se em almofadas, abre a folha imacu-

lada, molha a ponta do lápis na língua pálida e escreve: O vôo da guará

vermelha. Enche as páginas com a letra caprichada das aulas de caligra-

fia e as palavras que lhe presenteou o homem. Já pensa que não tem

nada, se ele nunca mais voltar, lerá cada noite a história para chorar e

adormecer (p. 23).

Vê-se aqui o caminho inverso de Sherazade. Ele fala e ela escuta. Ele conta e ela escreve. Ela ensina, ele aprende. “Agora, mulher, me ensine a escrever meu nome inteiro”. Não se pode esquecer que o próprio nome próprio do personagem é uma apropriação que ele faz do nome da pro-fessora que povoa as suas histórias, os seus causos. “Nem sei dizer, não lembro bem, o que foi que aconteceu nos três dias que esperamos pra professora Rosália acomodar-se na casa, ajeitar o quarto dela, terminar-mos de fazer tamboretes e bancadas pra escola funcionar (verde e ouro)” .

Irene a custo se ergue, dá um lápis a Rosálio, conduz-lhe a mão com cui-

dado e o faz traçar perfeito, redondo como um caneco, como a menina

do olho, como a lua quando é cheia, como a beirada de um poço, a letra

“o” junto ao “R”, atrás da fotografia, hoje só lhe ensino o “o”, que com o “r”

faz “ro”, “ro” de rosa e de Rosálio, que você tem de ir se embora (p. 66).

A narrativa e a frase se transformam em versos de sete pés, o verso mais comum e o mais espontâneo, a métrica do cordel, da cultura popu-lar. Como descobrimos este narrador performático e esta estranha métri-ca inserida na prosa de ficção? Ao lermos, nossos ouvidos ouvem a nar-rativa, as frases se tornam versos e se escuta uma voz declamando como se fosse cordel. Ora uma voz masculina, ora uma voz feminina. A leitura clama a voz alta. Lemos e contamos as sílabas das orações, das frases, es-caneamos a métrica... Ocre e rosa, por exemplo, começa assim (as barras foram colocadas por nós para separar no romance o que lemos como ver-sos de sete pés, métrica característica da literatura de cordel): “Irene chora sozinha, / quem disse que um homem bom, / quando aparece demora? /

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Com certeza ele tem dona / ou queria alguma coisa / que não encontrou aqui, / desistiu de procurar / e foi embora pra sempre”.

A visualidade vira sonoridade nesta narrativa de sentidos. Há uma poética narrativa e só sutilmente e quase desapercebidamente se fala em vida real: “a camisinha, os movimentos rápidos” (p. 16), “o dinheiro, cadê o dinheiro?” (p. 17), “comeu feijão, trabalhou” (p. 23), “chegar ao sin-dicato e garantir seu direito” (p. 176). Predominam a poesia, o diálogo possível, o contar, a inventação. Não há como não deixar de observar as aliterações nas falas de Rosálio: “Menino eu fui. Nem-Ninguém, criado por minha avó, que tinha vista velada por um véu branco de choro que verteu por minha causa e um dia cristalizou” (p. 36).

Em outras palavras: é possível imaginar, na narrativa de Maria Va-léria Rezende, não uma ausência de realidade, pois o real está sendo o tempo todo aludido, mas uma ausência daquilo que o real extrapola en-quanto linguagem. O texto feminino, porque O Vôo da Guará Vermelha é uma narrativa feminina, é antes de tudo uma metáfora da possibilidade do real se tornar matéria alegórica, figurações, fragmentos de um discurso amoroso, a possibilidade da literatura se mostrar em suas outras lingua-gens. Na medida em que as narrativas de Rosálio avançam em um espaço imaginário de mitos, invenções, a narrativa de Irene (ou sobre Irene que aqui particularmente nos interessa, embora as narrativas de Rosálio, fa-lando de João dos Ais, Beto do Fole, mereçam ser destacadas), cria-se um movimento de passagem entre duas cenas: passado e presente, passado e futuro, presente em direção a nada a não ser às palavras... A escrita dela, Irene, e a oralidade dele, Rosálio, tocam-se até o fim da narrativa, que encena a escrita. A literatura deste real que estamos tão acostumados a conviver em pleno século XXI (prostituição, dinheiro, assistência social, construção civil, analfabetismo, sindicalismo, abandonos, doença e mor-te) se torna uma poética sem risco, uma potência não mais do corpo mas-culino e do corpo feminino, mas uma potência da escrita. O livro termina assim: “a gente lembra inventando. Inventação não tem fim”.

A guará é elegante, com plumagem vermelho carmesim. Íbis. Ave--palavra. Sherazade. Mil e uma noites. A literatura é realmente um gesto

Uma linguagem tam-bém típica do cinema.

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Capítulo 10O texto literário e as pluralidades poéticas

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da própria língua. Ela não hesita e não fracassa mesmo diante de um real que quer falar de assalto, de ditadura, de gerações, do fim das uto-pias, de doença, de abandono, de filhos sofridos, de desencanto e de morte. O importante na leitura do romance de Maria Valéria Rezende é mostrar que ela não é apenas uma contadora de histórias, mas escriba que soube trabalhar a linguagem de forma original, que soube fazer pro-sa com raízes políticas e poéticas e conseguiu encontrar um tempo e um ritmo perfeitos para a simplicidade do narrar, simplicidade sob a qual se esconde uma complexa e apurada técnica de escrita literária.

Maria Valéria Rezende nos entregou uma narrativa em que a história é o próprio desejo de ser um livro. Ambas conseguiram eviden-ciar o caráter nômade da escrita e, por esta via, conseguem despertar no leitor e na leitora a sua consciência crítica.

É na potência da palavra escrita e falada que o erotismo se realiza e a sexualidade, por si, torna-se traço secundário. E quando as letras se desprendem do papel e o colorido das imagens se dilui em fragmentos da história que foi narrada, a musicalidade do cordel desaparece, fica uma escrita fora dela mesma, na nossa memória. O referencial da vida de Irene e Rosálio fica sendo um pano de fundo, papel de parede na tela imóvel. A leitura do romance se refaz a partir de seus próprios meca-nismos, porque a escrita feminina da autora consegue ser silenciosa e transbordante ao mesmo tempo. Ato da literatura em contato com ou-tras linguagens e não apenas representação e sentido. Lemos um livro? Vimos um filme? Ouvimos um cordel? Olhamos uma tela? Assistimos a uma peça? Performances da memória? Narrativas de fôlego. Com algu-mas respiramos, com outras transpiramos para dar conta de tudo o que a literatura e outras linguagens nos proporcionam enquanto poéticas do olhar, poéticas dos gestos e poéticas dos sentidos. Um número ímpar de possibilidades, de relações, de liames, de emaranhamentos, como dis-semos na introdução desse livro, e que agora somos capazes e sensíveis para a trama e o tecido do mundo como artefato.

O que usamos no com-putador para preencher um vazio.

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Page 184: Literatura e Ensino II Miolo

Literatura e Ensino II

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