Livro direito hermeneutica_decisao

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Organizadores

João Paulo Allain TeixeiraLouise Dantas de Andrade

Direito, Hermenêutica e Decisão

Recife, 2014

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D598 Direito, hermenêutica e decisão / João Paulo Allain

Teixeira, Louise Dantas de Andrade, organizadores.

-- Recife: APPODI, 2014.

141 p.

ISBN: 978- 85- 64680- 02- 9

1. Direito. 2. Hermenêutica (Direito). I. Teixeira, João

Paulo Fernandes Allain. II. Andrade, Louise Dantas de. III.

Título.

CDU 340.1

Créditos

Editora: APPODI

Organização e revisão: João Paulo Allain Teixeira e Louise Dantas de Andrade

Design da capa: Ana Catarina Lemos

Composição do miolo: Ana Catarina Lemos

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SOBRE OS AUTORES

João Paulo Allain Teixeira

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005), Mestre em Di-reito pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), Mestre em Teorías Críticas del De-recho pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha (2000), Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1995). Professor dos programas de pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Católica de Pernam-buco. Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco, professor da Universidade Católica de Pernambuco e Professor titular nas Faculdades Integradas Barros Melo. Avaliador ad hoc do MEC/INEP.

Louise Dantas de Andrade

Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Graduada em Di-reito pela Universidade Católica de Pernambuco (2010).

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APRESENTAÇÃO

Uma das características mais destacadas do direito dogmaticamente organizado na Mo-dernidade, consiste na institucionalização de padrões decisórios, com o objetivo de viabilizar a tutela das demandas sociais emergentes. Os textos aqui reunidos sugerem uma multiplici-dade de olhares sobre as possibilidades decisórias no direito, compreendido como fenômeno normativo sempre suscetível à crítica. A multifacetada compreensão do fenômeno jurídico permite o estabelecimento de uma pluralidade de perspectivas teóricas, com os peculiares recortes oferecidos por cada olhar, daí o amplo espectro oferecido pelo pensamento jurídico contemporâneo.

Os trabalhos aqui reunidos são frutos eloqüentes das inquietações contemporâneas, re-velando um mosaico de perspectivas hermenêuticas para a compreensão do papel do direito e das instituições nos nossos dias no que se refere à afirmação da cidadania e dos Direitos Fundamentais.

O conjunto de textos que ora é trazido à público, é resultado de um esforço coletivo desen-volvido no âmbito da disciplina “Lógica do Procedimento Jurídico”, ministrada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco no primeiro semestre de 2013.

Rafaella Amaral de Oliveira traz a análise dos efeitos da adoção do modelo pós-positivista entre nós discutindo os limites e as possibilidades de emancipação através do neoconstitucio-nalismo, modelo europeu do pós-guerra que ganha posição de destaque na doutrina nacional a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988; Eloy Moury Fernandes apresenta um profícuo debate sobre a construção do raciocínio jurídico a partir de Chaim Perelman na esfera penal da jurisdição brasileira; Renata Santa Cruz Coelho enfrenta a discussão sobre a justiça e bem no debate envolvendo comunitaristas e liberais; Partindo da contribuição de Chantal Mouffe, Pedro Luciano da Silva Neto empreende uma discussão sobre o papel da mulher em um modelo de “democracia agonística”; A contribuição de Dimitri de Lima Vasconcelos e João Paulo Allain Teixeira caminha no sentido de apresentar Niklas Luhmann e sua Teoria dos Sistemas, estabelecendo as bases gerais do pensamento de Luhmann e seus contornos principais; Sob o ponto de vista da apresentação de um modelo hermenêutico de controle da decisão penal, Renan Gonçalves Pinto Marques analisa a proposta do direito como integridade em Ronald Dworkin; Preocupada com o fenômeno do “ativismo judicial”, Priscila Braz do Monte dedica-se ao tema da efetividade constitucional; Oferecendo novos contornos ao tema da judicialização da política, Fábio Rodrigo de Paiva Henriques discute a ampliação do papel do Supremo Tribunal Federal a partir das influências do direito comparado; Discutindo a tu-tela jurisdicional dos Direitos Humanos Ivna Cavalcanti Feliciano e Marcelo Labanca Correa de Araújo discutem os efeitos do novo modelo constitucional de incorporação dos tratados ao direito brasileiro com o advento da EC/45 e a Convenção de Nova. York; Em um esforço de captura das conexões entre a oficialidade e a realidade, Avner Pinheiro Cavalcanti oferece uma leitura da “Constituição Paraestatal”; Discutindo a construção moderna do direito, Elder Paes Barreto Bringel, enfrenta as relações entre positivismo e cientificidade; finalmente Roberto Wanderley Nogueira apresenta duas leituras distintas da temática inclusivista, enfatizando os temas da aposentadoria especial para pessoas com deficiência e a questão do atendimento das necessidades de pessoas com deficiência em procedimentos político-eleitorais.

Como se percebe, trata-se de uma relevante contribuição da pós-graduação em direito para a compreensão de questões que mobilizam a sociedade brasileira. Por fim, é sempre

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oportuno destacar que O PPGD-UNICAP tem se consolidado como espaço privilegiado para a compreensão das potencialidades do Direito na sedimentação de uma cultura democrática no Brasil. A tematização do Direito a partir de bases hemenêuticas e em articulação com a afirma-ção dos Direitos Fundamentais reforça e confirma o conjunto de preocupações do grupo de pesquisa “Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização de Direitos”, que integra a estrutura do PPGD-UNICAP.

João Paulo Allain TeixeiraLouise Dantas de Andrade

Recife, junho de 2014

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Sumário

APRESENTAÇÃO 5

O ATIVISMO JUDICIAL E A MUDANÇA DE PARADIGMA NA LÓGICA JURÍDICA: POSITIVISMO, PÓS-POSITIVISMO E NEOCONSTITUCIONALISMO Rafaella Amaral de Oliveira 9

TEORIAS RELATIVAS AO RACIOCÍNIO JURÍDICO: A LÓGiCA DA DECISÃO JUDICIAL PENAL BRASILEIRA A PARTIR DE UMA ABORDAGEM EXEGÉTICA DA CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA DAS DEMOCRACIAS POPULARES DE CHAΪM PERELMANEloy Moury Fernandes 27

O JUSTO, O BEM E A POLÍTICA NAS PERSPECTIVAS LIBERAIS E COMUNITARISTASRenata Santa Cruz Coelho 37

O DEBATE SOBRE O PAPEL DA MULHER NO CENÁRIO DA POLITICA CONTEMPORÂNEA SOB A PERSPECTIVA DE CHANTAL MOUFFEPedro Luciano da Silva Neto 45

A TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN: UMA APRESENTAÇÃODimitri de Lima Vasconcelos João Paulo Allain Teixeira 54

UMA PROPOSTA HERMENÊUTICA DE CONTROLE DA DECISÃO PENALRenan Gonçalves Pinto Marques 64

O “CONSTITUCIONALISMO DA EFETIVIDADE” E O ATIVISMOJUDICIALPriscila Braz do Monte Vasconcelos dos Santos 74

TRAJETÓRIA DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL: AMPLIAÇÃO DO PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A PARTIR DAS INFLUÊNCIAS DO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADOFábio Rodrigo de Paiva Henriques 87

O NOVO MODELO CONSTITUCIONAL A PARTIR DOS TRATADOS SOBRE DIREITOS HUMANOS: IMPLICAÇÕES NA TUTELA JURISDICIONAL DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIAIvna Cavalcanti Feliciano Marcelo Labanca Corrêa de Araújo 96

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SumárioCONSTITUIÇÃO PARAESTATAL – LIGAÇÃO DO OFICIAL COM O REALAvner Pinheiro Cavalcanti 107

POSITIVISMO E CIENTIFICIDADE DO DIREITOElder Paes Barreto Bringel 119

APOSENTADORIA ESPECIAL: PREDICADO DE AFIRMAÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIARoberto Wanderley Nogueira 130

PESSOA COM DEFICIÊNCIA: ELEIÇÕES INCLUSIVASRoberto Wanderley Nogueira 135

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O ATIVISMO JUDICIAL E A MUDANÇA DE PARADIGMA NA LÓGICA JURÍDICA: POSITIVISMO, PÓS-POSITIVISMO E NEOCONSTITUCIONALISMO1

Capítulo 1

Rafaella Amaral de Oliveira2

1. INTRODUÇÃO

A ideologia liberal, fruto dos interesses da classe burguesa, sempre esteve presente na essência do direito moderno. Inicialmente, a burguesia, ansiosa por chegar ao poder político e com isso erigir suas próprias regras, apropriou-se das teorias jusnaturalistas que justificaram, durante um longo período da história da humanidade, os arbítrios cometidos pelo monarca e pela igreja (o poder divino dos reis), para inflamar o povo contra o sistema absolutista alegando existir um direito natural fundamentado em uma ética superior humana.

Atingido o objetivo, historicamente marcado pela Revolução Francesa de 1789, esta mesma burguesia sentiu a necessidade de garantir estabilidade político-jurídica aos seus negó-cios que não podia ser proporcionada pelo jusnaturalismo. Adotou, portanto, um novo paradig-ma lógico para o direito, o positivismo jurídico, centrado na racionalidade objetiva cartesiana, na supremacia da lei escrita e na silogística atividade de aplicar esse direito posto pelo Estado.

A racionalidade que dominava as ciências exatas e da natureza, nos séculos XVIII e XIX, imiscui-se ao direito em uma tentativa de purificá-lo de influências externas, de capri-chos, de vontades, de arbítrios. Como o Poder que representava os interesses burgueses era o Legislativo, somente este estava apto a dizer o que era o direito, a normatizar condutas, res-tando ao intérprete apenas repetir a vontade do legislador.

No entanto, a busca exacerbada por segurança jurídica, indispensável à efetividade dos negócios e, por conseguinte, aos interesses da classe dominante, não satisfez a ânsia por justiça, fim último do direito, possibilitando arbítrios e barbáries como as perpetradas pelos estados totalitários do Século XX.

A Segunda Guerra Mundial, pois, marcou o fim da hegemonia positivista do direito, inaugurando uma nova fase na dogmática, caracterizada pela reaproximação entre a moral e o direito e pela maior autonomia do intérprete jurídico. Essa nova fase, ainda inacabada e que reúne diversos autores com linhas de pensamento as mais variadas possíveis, denomina-da provisoriamente de pós-positivismo, ou seja, uma reação contrária ao positivismo jurídico, funda-se na valorização da dignidade do ser humano, na força normativa das constituições, deixando estas de serem apenas programas políticos orientadores para serem o centro de todo ordenamento normativo irradiado por princípios.

Portanto, o presente estudo visa a analisar a mudança de paradigma na lógica jurídica, desde o jusnaturalismo, passando pelo positivismo e fincando no pós-positivismo jurídico, des-

1 Trabalho apresentado à Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) como requisito parcial para aprova-ção na disciplina, do mestrado em Direito, Lógica do Procedimento Jurídico ministrada pelo professor Dr.º João Paulo Allain Teixeira.

2 Bacharela em Direito pela Faculdade ASCES e em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-graduada em Direito Público pela Faculdade ASCES e mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Oficial de Justiça no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE).

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Capítulo 1

tacando, para tanto, a relação entre justiça e segurança jurídica; conceitos como neoconstitu-cionalismo, ativismo judicial e judicialização das relações sociais, suas causas, consequências e críticas.

2. MUDANÇA DE PARADIGMA NA LÓGICA JURÍDICA: POSITIVISMO, PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO E NEOCONSTITUCIONALISMO

O Estado moderno surge no Século XVI, ao fim da Idade Média, fundado no direito divino dos reis, predominando, na prática jurídica, o direito romano, ainda não sistematizado em códigos. Na passagem do Estado absolutista para o Estado liberal, o direito incorpora o jusnaturalismo racionalista dos Séculos XVII e XVIII, fonte de inspiração para as revoluções francesa e americana bastante influenciadas pelo pensamento de John Locke (BARROSO, 2010, p. 229).

O jusnaturalismo tem sua origem associada à cultura grega, na qual Platão já se referia a uma justiça inata, universal e necessária. Consiste, basicamente, no reconhecimento de que há um conjunto de valores e pretensões humanas legítimas que não advém de uma norma jurídica posta pelo Estado, direito este, portanto, fundado em uma ética superior, apresentan-do-se, suscintamente, em duas variantes: a de uma lei ditada por Deus ou ditada pela razão (BARROSO, 2010, p. 229).

Desde que o envolver político da Idade Moderna tomou, segundo Jellinek, o caráter irremediavelmente antinômico já referido, o direito natural foi a fortaleza de ideias onde procuraram asilo tanto os doutrinários da liberda-de como os do absolutismo.Seria, pois, errôneo reconhecer na teoria jusnaturalista, da Idade Média à Revolução Francesa, ordem de ideias votada exclusivamente à postulação dos direitos do Homem.A burguesia revolucionária utilizou-a para estreitar os poderes da Coroa e destruir o mundo de privilégios da feudalidade decadente.[...] foi o direito natural a mais necessária e conservadora das doutrinas... (BONAVIDES, 2013, p. 41-42)

O direito natural moderno, assim, desenvolve-se a partir do século XVI, buscando su-perar o ambiente teológico e o dogmatismo medieval de outrora. A ênfase na natureza e na razão humanas, e não mais na origem divina, é um dos marcos da Idade Moderna, na qual o direito foi reduzido à lei, vista como expressão superior da razão. O juiz, usando a consagrada expressão de Montesquieu, era um “boca da lei”, e a interpretação gramatical e histórica cer-ceava-lhe a criatividade em nome de uma atuação supostamente objetiva e neutra.

Com o Estado liberal, consolida-se os ideais constitucionais em textos escritos e o êxito do movimento de codificação simboliza o apogeu do direito natural, mas, paradoxalmente, também sua superação histórica. Os direitos naturais cultivados ao longo de mais de dois milê-nios já não traziam a revolução, mas a conservação e sendo considerados anticientíficos, foram relegados à margem da história pela onipotência do positivismo do século XIX (BARROSO, 2010, p. 238).

Destarte, com o desenvolvimento do Estado na sua fase moderna, o jusnaturalismo já não satisfazia mais aos anseios de controle do poder estatal e de convivência pacífica entre os membros da sociedade. A burguesia e o terceiro estado em França, em fins do século XVIII, in-flamaram-se contra o monarca, representante, único intérprete e revelador da vontade divina, deflagrando a revolução que poria fim às arbitrariedades despóticas.

Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., o positivismo jurídico surgiu em razão da neces-

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Capítulo 1

sidade de a sociedade burguesa estabelecer garantias para a sua categoria frente ao Estado, posto que, antes da Revolução Francesa, o sistema monárquico representava uma afronta diante de tamanha discricionariedade, não desejável aos negócios, bem como a velocidade das transformações tecnológicas desencadeadas pela Revolução Industrial reclamavam respostas mais rápidas do direito (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 68).

O positivismo jurídico intentou criar uma ciência jurídica próxima às ciências exatas e da natureza, fundada no método científico (observação e empirismo) e que idealizava o conhecimento científico como objetivo, ou seja, partindo do método descritivo e da distinção entre sujeito e objeto, desprovido, assim, de preferências ou preconceitos, considerado a única forma de se chegar à verdade.

Essa foi a intenção de Hans Kelsen ao desenvolver a Teoria Pura do Direito, no sentido de purificá-lo de qualquer influência externa, para ser estudado como princípio metodológico fundamental. Kelsen concebe o sistema jurídico, cujo conteúdo é formado exclusivamente por regras jurídicas, isento de qualquer influência da moral quando da aplicação da norma, uma vez que admitia a relação direito-moral apenas quando da elaboração da norma pelo legislador. Somente as normas, identificadas como as regras jurídicas, são enunciados normativos com um pressuposto e consequência.

Segundo Kelsen, o direito se reduziria à norma, emanada pelo Estado, cuja validade decorreria do procedimento seguido para sua criação, independente do conteúdo. O ordena-mento jurídico seria uno e completo, inexistindo lacunas que não pudessem ser supridas a partir de elementos do próprio sistema.

As teorias positivistas defendiam que a validade do direito deveria ser determinada ex-clusivamente por considerações formais (processo legislativo adequado). Portanto, ao contrá-rio do que ocorria no período pré-moderno, a validade do direito passaria a não mais depender de sua conformação a uma determinada ordem de valores, havendo, assim, uma separação rígida entre direito e moral (PIRES, 2013, p. 31).

Destarte, o direito poderia ser objetivamente descrito, sem valoração crítica de seus preceitos, cabendo ao intérprete um ato de conhecimento, realizado na revelação do sentido contido na norma, que incidiria silogisticamente sobre os fatos do caso concreto (subsunção). Caso o texto se prestasse a mais de uma interpretação, a decisão se convertia em ato de von-tade puro e simples, e o juiz teria discricionariedade para decidir como lhe conviesse ou lhe parecesse melhor (PIRES, 2013, p. 31).

Segundo Kelsen (2003, p. 390), a interpretação resultaria na determinação de uma moldura, dentro da qual todas as soluções seriam conformes ao direito. Assim, a produção do ato jurídico dentro da moldura seria livre e se traduziria em ato de vontade do aplicador.

Desta forma, até a Segunda Guerra Mundial, o paradigma positivista do Direito preva-leceu na Europa, consistindo em uma cultura jurídica essencialmente legicêntrica, que trata-va a lei editada pelo parlamento como a fonte principal ou exclusiva do Direito, e não atribuía força normativa às constituições. Estas eram vistas basicamente como programas políticos que deveriam inspirar a atuação do legislador, não podendo ser invocados perante o Judiciário, na defesa de direitos (SARMENTO, 2013, p. 76-77).

O fato é que, após a Segunda Guerra Mundial, o positivismo jurídico entrou em des-crédito em razão das consequências advindas com o surgimento de Estados totalitaristas (na-zista e fascista). O culto exacerbado à supremacia da lei foi capaz de gerar consequências semelhantes àquelas que fundamentaram a sua criação. A lei criada para proteger e garantir a liberdade dos cidadãos também autorizou a usurpação dessa mesma liberdade pelo Estado, possibilitando um governo tão descontrolado e ilimitado quanto aquele despótico repudiado pelos iluministas da Revolução Francesa.

A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo possibilita-ram a ascensão de um amplo e ainda inacabado conjunto de reflexões acerca do Direito, sua

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Capítulo 1

função social e interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso que inclui algumas ideias de justiça além da lei e de igualdade material mínima, advindas da teoria dos direitos fundamentais, da teoria crítica e da redefinição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, que reaproximou o direito e a ética (BARROSO, 2010, p. 242).

Certo é que o termo pós-positivismo abarca uma série de teorias elaboradas por juristas e filósofos contrários ao ideal positivista que reduzia o direito à lei e a função do intérprete a de mero técnico jurídico que buscava na lei a solução para todos os casos a que estivesse sub-metido por meio de uma atividade mecânica de subsunção silogística.

Assim, após meados do século XX, os elementos básicos que fundamentavam o positi-vismo jurídico começaram a ser relativizados, uma vez que as Constituições contemporâneas começaram a contemplar princípios e valores, contrariando o paradigma jurídico proposto por Kelsen quando da sustentação do positivismo jurídico para a purificação do Direito.

A partir de Herbert L. A. Hart, as ideias positivistas trazidas por Kelsen passam a ser questionadas. Quando Hart permite a incorporação de princípios e valores morais, o positi-vismo sofre um abrandamento nas suas concepções, surgindo duas formas de positivismo: o positivismo exclusivo (quantitativo) e o positivismo moderado (qualitativo).

O positivismo exclusivo, também conhecido como duro (hard) e inflexível, é o positi-vismo conforme as ideias de Hans Kelsen, compreendido pela separação total entre o direito e a moral quando da aplicação da norma jurídica. Já o positivismo moderado, defendido por Hart, é o soft positivism, uma forma mais leve de se conceber a teoria positivista do Direito (BRANCO, 2011, p. 50).

O positivismo inclusivo (Hart) admite a influência da moral no direito quando da in-terpretação e aplicação da norma, mas de forma subsidiária. O intérprete estaria livre para se utilizar de princípios e valores morais apenas quando existissem lacunas normativas (omissão legislativa). Em contrapartida, o positivismo exclusivo kelsiniano não admitia a possibilidade de o intérprete se utilizar de princípios quando da aplicação da norma, visto que o ordena-mento jurídico era completo em si, não existindo lacunas que não pudessem ser supridas pelo próprio ordenamento (BRANCO, 2011, p. 51).

Para Eduardo Ribeiro Moreira, o termo pós-positivismo é, na verdade, uma nomencla-tura de transição, porque não prevê todos os avanços que vêm sendo elaborados. O momento de transição que representa é aquele existente entre o positivismo inclusivo e o neoconstitu-cionalismo, já que a passagem entre essas teorias não ocorreu de forma imediata (MOREIRA In DIMOULIS; DUARTE, 2008).

Ainda não há uma conformidade conceitual em torno do pós-positivismo: diversas li-nhas de pensamento podem ser agrupadas sob essa ampla rubrica. Todas têm em comum, no entanto, o reconhecimento de que o positivismo jurídico e o arcabouço teórico que ele cons-truiu são insuficientes para lidar com o direito tal como se apresenta hoje (PIRES In FELLET et al, 2013, p. 31).

Desta sorte, é recorrente ouvirmos falar em pós-positivismo, “não-positivismo prin-cipiológico”, constitucionalismo da efetividade, neoconstitucionalismo e novo constituciona-lismo, enquanto diferentes denominações para um novo paradigma teórico do Direito que pretende questionar alguns postulados fundamentais do positivismo jurídico (SILVA, 2006, p. 3339-3340).

A palavra neoconstitucionalismo não é empregada no debate constitucional norte-a-mericano, tampouco no que é travado na Alemanha. Trata-se de um conceito formulado, so-bretudo, na Espanha e na Itália, mas que tem repercutido bastante na doutrina brasileira nos últimos anos, principalmente após a publicação, em 2003 na Espanha, da coletânea intitulada Neoconstitucionalismo (s) organizada pelo jurista mexicano Miguel Carbonell (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 75).

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Capítulo 1

Por sua vez, neoconstitucionalismo e pós-positivismo não são conceitos idênticos, pois possuem diferentes graus de amplitude teórica, visto que algumas teses filosóficas e metodo-lógicas do pós-positivismo extrapolam o âmbito dos questionamentos ordinariamente apre-ciados pelo neoconstitucionalismo. Indagações relacionadas à filosofia do direito, tais como racionalidade prática kantiana e as teorias sobre justiça, eminentemente pós-positivistas (não positivistas), estão além das discussões travadas pelos neoconstitucionalistas (SILVA, 2006, p. 3340-3341)

Ante a imprecisão terminológica para os dois termos, parece mais congruente que o pós-positivismo está relacionado à reação filosófico-jurídica aos ideais positivistas, fazendo renascer alguns preceitos jusnaturalistas para o direito, sem, no entanto, buscar sua fonte de legitimação na vontade divina ou em leis da natureza emanadas de uma ética superior.

O pós-positivismo, por meio das teorias de Robert Alexy, Ronald Dworkin, Konrad Hes-se, Habermas, entre outros, foi imprescindível para o desenvolvimento das novas teorias de hermenêutica constitucional (o neoconstitucionalismo), se é que podemos reduzir, no âmbito de influência desse novo paradigma lógico do direito, o termo neoconstitucionalismo às teorias de argumentação jurídica.

Em linhas gerais, o neoconstitucionalismo identifica o constitucionalismo democrático do pós-guerra, desenvolvido em uma cultura filosófica pós-positivista caracterizada pela força normativa da constituição, pela expansão da jurisdição constitucional e por uma nova herme-nêutica. Dentre os neoconstitucionalistas, existem múltiplas vertentes (BARROSO, 2010, p. 266):

Os adeptos do neoconstitucionalismo buscam embasamento no pen-samento de juristas que se filiam a linhas bastante heterogêneas, como Ronald Dworkin, Robert Alexy, Peter Häberle, Gustavo Zagrebelsky, Luigi Ferrajoli e Carlos Santigo Nino, e nenhum deles se define hoje, ou já de definiu, no passado, como neoconstitucionalista. Tanto dentre os referidos autores, como entre aqueles que se apresentam como neoconstituciona-listas, contata-se uma ampla diversidade de posições jusfilosóficas e de filosofia política: há positivistas e não-positivista, defensores da necessi-dade do uso do método na aplicação do Direito e ferrenhos opositores do emprego de qualquer metodologia na hermenêutica jurídica, adeptos do liberalismo político, comunitaristas e procedimentalistas (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 75).

Neste sentido, alguns autores identificam o neoconstitucionalismo como uma espé-cie de “constitucionalismo ético” ou “moral”, uma vez que a Constituição, ao incorporar os direitos fundamentais e a deliberação democrática, teria definitivamente aberto o direito à avaliação moral com apoio na argumentação e nos princípios jurídicos (SILVA, 2006, p. 3350).

[...] o neoconstitucionalismo se dedica à discussão de métodos ou de teo-rias da argumentação que permitam a procura racional e intersubjetiva-mente controlável da melhor resposta para os “casos difíceis” do Direito. Há, portanto, uma valorização da razão prática no âmbito jurídico. Para o neoconstitucionalismo, não é racional apenas aquilo que possa ser com-provado de forma experimental, ou deduzido more geometrico de premis-sas gerais, como postulavam algumas correntes do positivismo. Também pode ser racional a argumentação empregada na resolução das questões práticas que o Direito tem de equacionar. A ideia de racionalidade jurídica aproxima-se da ideia do razoável, e deixa de se identificar à lógica formal

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Capítulo 1

das ciências exatas(SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 80).

Com as teorias pós-positivistas e as neoconstitucionalistas, houve a passagem de um paradigma jurídico centrado no conceito legalista de Estado de Direito para um novo paradig-ma articulado em torno da ideia de um Estado constitucional de Direito, cuja ordem jurídica está “impregnada” pela supremacia e pela eficácia “expansiva” das normas constitucionais.

Buscando identificar as mudanças de paradigma na racionalidade jurídica, Eduardo Ribeiro Moreira elaborou um quadro explicativo, estabelecendo um paralelo entre as teorias tradicionais do Direito e o neoconstitucionalismo (BRANCO, 2011, p. 57-58):

Tema Como é tratado pelas Teo-rias Tradicionais do Direito

Como é tratado pelo Neoconsti-tucionalismo

Sociedade Homogênea Plural e Global

Moral Monista (sem correlação com o direito no positivismo jurídi-co) ou dos Valores (absoluta no jusnaturalismo)

Construtivista, com Parâmetros de Racionalidade Prática e Pretensão de Correção, que vai guiar todo o dis-curso jurídico e romper com a ordem daquilo que é.

Política

Estado de Direito (com espe-cial atenção à coerção exerci-da pelo Poder Judiciário e aos atos do poder público)

Estado Constitucional (acrescenta uma especial atenção para as ema-nações do poder constituinte e cons-tituído – reformas constitucionais – e para o papel desempenhado pelo Tri-bunal Constitucional. Em primeiro plano, aparece a constante vigilância em torno dos Direitos Fundamentais, que permitem o direito como um todo alcançar novo status)

Desenho Institucional das Fontes do Direito

Lei em primeiro plano e de-mais fontes tidas como secun-dárias

Primazia da Constituição e da Juris-prudência emanada pelo Tribunal Constitucional

Teoria da Norma Conjunto de Normas com configurações de regras

Primazia dos princípios preenchidos pela argumentação jurídica. Existên-cia das normas políticas e dos crité-rios jurídico-procedimentais, além de regras e princípios com morfolo-gia peculiar.

Teoria da interpretação

Regras para interpretação e, quando estas não existirem, o intérprete é livre para julgar.

Metodologia constitucional apurada, considerando valores e criando con-ceitos como a derrotabilidade. Toda interpretação jurídica é interpreta-ção constitucional.

Teoria do Direito Positivismo (exclusivo ou inclusivo)

Neoconstitucionalismo

No Brasil, só é possível falar em neoconstitucionalismo, efetivamente, após a promul-gação da Constituição de 1988. Já existia controle de constitucionalidade desde 1891 (con-trole difuso), porém, para a cultura jurídica de até então, as constituições eram vistas como meras promessas políticas, desprovidas de qualquer força normativa.

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Capítulo 1

[...] cultura jurídica brasileira de até então, as constituições não eram vistas como autênticas normas jurídicas, não passando muitas vezes de meras fachadas. Exemplos disso não faltam: a Constituição de 1824 fa-lava em igualdade, e a principal instituição do país era a escravidão ne-gra; a de 1891 instituíra o sufrágio universal, mas todas as eleições eram fraudadas; a de 1937 disciplinava o processo legislativo, mas enquanto ela vigorou o Congresso esteve fechado e o Presidente legislava por de-cretos; a de 1969 garantia os direitos à liberdade, à integridade física e à vida, mas as prisões ilegais, o desaparecimento forçado de pessoas e a tortura campeavam nos porões do regime militar. Nesta última quadra histórica, conviveu-se ainda com o constrangedor paradoxo da existência de duas ordens jurídicas paralelas: a das constituições e a dos atos insti-tucionais, que não buscavam nas primeiras o seu fundamento de valida-de, mas num suposto poder revolucionário em que estariam investidas as Forças Armadas.[...] Até 1988, a lei valia muito mais do que a Constituição no tráfico jurídico, e, no Direito Público, o decreto e a portaria ainda va-liam mais do que a lei (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 85-86).

A Constituição de 1988 inaugura uma nova fase no constitucionalismo brasileiro, con-templando um amplo e generoso elenco de direitos fundamentais (individuais, difusos, cole-tivos, políticos, sociais...), protegidos do poder de reforma ao serem elevados ao patamar de cláusulas pétreas (artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV) e cuja aplicabilidade é imediata (artigo 5º, parágrafo 1º).

Ademais, a Constituição Cidadã reforçou o papel do Poder Judiciário e do Ministério Público de várias formas, dentre elas: consagrando a inafastabilidade de jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV); criando novos remédios constitucionais (o habeas data e o mandado de injun-ção); ampliando os mecanismos de controle de constitucionalidade ao instituir o controle da inconstitucionalidade por omissão, bem como democratizando o acesso ao controle abstrato de constitucionalidade, ao ampliar o rol de legitimados ativos para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade (art. 103).

Outro momento importante é o da chegada ao Brasil das teorias jurídicas pós-positi-vistas, sendo marcos relevantes a publicação da 5ª edição do Curso de Direito Constitucional, de Paulo Bonavides, e o livro A Ordem Econômica na Constituição de 1988, de Eros Rober-to Grau, que divulgaram a teoria dos princípios de autores como Ronald Dworkin e Robert Alexy, fomentando discussões importantes como a ponderação de interesses, o princípio da proporcionalidade, eficácia dos direitos fundamentais e as teorias do “mínimo existencial”, da “reserva do possível” e da “proibição do retrocesso. Não se deve olvidar também a influência no meio acadêmico, após os anos 90 do século XX, do pensamento de filósofos que se voltaram para o estudo da relação entre Direito, Moral e Política, a partir de uma perspectiva pós-me-tafísica, como John Rawls e Jürgen Habermas, bem como o aprofundamento dos estudos de hermenêutica jurídica, proporcionado por uma nova matriz teórica inspirada pelo giro linguís-tico na Filosofia, que denunciou os equívocos do modelo positivista de interpretação até então dominante, assentado na separação cartesiana entre sujeito (o intérprete) e objeto (o texto da norma) (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 89).

Apesar destas mudanças importantes associadas ao neoconstitucionalismo, o uso da expressão no Brasil é mais recente, seguindo à ampla divulgação que recebeu na doutrina a já citada obra Neoconstitucionalismo(s), organizada por Miguel Carbonell.

Outrossim, no Brasil, o neoconstitucionalismo foi também impulsionado pela descren-ça geral da população em relação à política majoritária, e, em especial, o descrédito no Poder Legislativo, devido aos corriqueiros escândalos de corrupção, fatos estes que fortaleceram as expectativas de que a solução para os problemas nacionais pudesse estar na atuação mais

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proativa do Poder Judiciário. E este sentimento é fortalecido quando a Justiça adota decisões populistas, como ocorreu na definição de perda do mandato por infidelidade partidária e na proibição do nepotismo na Administração Pública (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 95).

Destarte, a percepção de que as maiorias políticas podem perpetrar ou acumpliciar-se com a barbárie, como ocorrera no nazismo alemão e no fascismo italiano, desencadeou a criação ou fortalecimento da jurisdição constitucional, instituindo as novas constituições mecanismos potentes de proteção dos direitos fundamentais mesmo em face do legislador (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 77).

Neste contexto, cresceu muito a importância política do Poder Judiciário, como se este fosse o “guardião das promessas civilizatórias dos textos constitucionais” e, cada vez mais, questões polêmicas e relevantes para a sociedade saíram da arena política para a jurídica, principalmente para as cortes constitucionais, muitas vezes em razão de ações propostas pelo grupo político ou social que fora perdedor no âmbito legislativo (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 79).

Externaliza-se, então, discussões relacionadas aos limites da atividade jurisdicional em um Estado Democrático Constitucional de Direito, principalmente, no que diz respeito à legitimação do Poder Judiciário como último guardião dos preceitos constitucionais, sendo o argumento da violação ao princípio da separação de poderes o mais utilizado para justificar a inanição do Judiciário frente a alguns dilemas de concretização de direitos fundamentais.

Historicamente, atribui-se a Montesquieu, em sua célebre obra O Espírito das Leis (1748), a elaboração das modernas bases do princípio da separação (tripartição) de poderes, cunhado com o objetivo de limitar a atuação dos detentores do poder estatal. São conhecidas as passagens dessa obra em que afirma que “a experiência eterna nos mostra que todo homem que tem poder é sempre tentado a abusar dele; e assim irá seguindo, até que encontre limites. (...) Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas o poder contenha o poder” (MONTESQUIEU, 2002, p. 164-165).

Montesquieu não foi original ao elaborar a teoria da separação de poderes. Bebeu na fonte de Aristóteles (A política) e de John Locke (modelo de constitucionalismo inglês do qual foi admirador), divulgando e refinando as ideias iniciadas por Locke, com um acréscimo prin-cipal, de que os poderes são equilibrados. Para ele, haveria um equilíbrio entre o poder legis-lativo, o poder executivo do Estado e o poder de julgar, para que “o poder contenha o poder”. É a origem do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) para o qual cada poder deveria, com a parcela de poder que lhe foi atribuída, limitar ou frear os demais com objetivo de perpetrar o equilíbrio de forças (FERNANDES, 2010, p. 40).

Insta observar que Montesquieu nunca defendeu uma separação absoluta entre pode-res: por um lado, reconhecia-se ao Executivo o direito de veto; por outro, o Legislativo exercia vigilância sobre o Executivo, votando leis e podendo exigir explicações dos Ministros; final-mente, o Legislativo interferia na ação julgadora quando se tratava de “julgar os nobres pela Câmara dos Pares, na concessão de anistias e nos processos políticos que deviam ser aprecia-dos pela Câmara Alta” (FERNANDES, 2010, p. 40).

Cabe, outrossim, rememorar que o citado princípio deve ser compreendido desde as suas origens e com o propósito de quais interesses de classe buscou atender em cada momento histórico. É certo que nunca houve uma separação estrita de funções entre os Poderes insti-tucionais, posto que todos eles possuem funções típicas e atípicas. O Poder Executivo possui como função típica a gestão da “coisa” pública, mas o Presidente da República, por exemplo, legisla toda vez que faz publicar uma medida provisória. O Poder Judiciário, por essência, detém jurisdição em todo o território nacional, mas legisla ao editar suas resoluções ou instru-ções normativas. O Poder Legislativo, por sua vez, representante indireto da soberania popular, deve criar leis que possibilitem a convivência em sociedade, mas julga seus próprios membros

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quando vão de encontro ao decoro parlamentar, podendo cassar-lhes o mandato. Ademais, em cada momento histórico, houve a preponderância de um Poder sobre

o outro. Quando da elaboração do conceito da tripartição de poderes por Montesquieu, o Legislativo prevaleceu sobre qualquer outro Poder, uma vez que, na França revolucionária, buscou-se elidir as arbitrariedades despóticas do monarca, representante do Executivo, e os juízes eram vistos com grande desconfiança, pois, durante o absolutismo, representaram os interesses minoritários da nobreza e da Coroa.

Já em épocas de grande instabilidade institucional (guerras e estados totalitaristas, entre outros), o Poder prevalecente é o Executivo, posto que detém o comando das Forças Ar-madas, podendo suplantar os demais, ordenando o fechamento do parlamento, por exemplo, e cassando o mandato político de parlamentares sem as observâncias do devido processo legal, dentre outras arbitrariedades. No entanto, em épocas de estabilidade institucional (demo-cracia...), o Poder em destaque é o Judiciário, guardião dos valores constitucionais e direitos fundamentais.

Quando cuidamos dever abandoná-lo no museu da Teoria do Estado que-remos, com isso, evitar apenas que seja ele, em nossos dias, a contradição dos direitos sociais, a cuja concretização se opõe, de certo modo, como técnica dificultosa e obstrucionista, autêntico tropeço, de que inteligente-mente se poderiam socorrer os conservadores mais perspicazes e reniten-tes da burguesia, aqueles que ainda supõem possível tolher e retardar o progresso das instituições no rumo da social-democracia.[...] Um desses esquemas foi o da divisão de poderes, que tinha como obje-to precípuo servir de escudo aos direitos da liberdade, sem embargo de sua compreensão rigorosamente doutrinária conduzir ao enfraquecimento do Estado, à dissolução de seu conceito, dada a evidente mutilação a que se expunha o princípio básico da soberania [...]. [...] Chegamos, de nossa parte, a essa conclusão: a teoria da divisão de poderes foi, em outros tempos, arma necessária da liberdade e afirma-ção da personalidade humana (séculos XVIII e XIX). Em nossos dias é um princípio decadente na técnica do constitucionalismo. Decadente em virtude das contradições e da incompatibilidade em que se acha perante a dilatação dos fins reconhecidos ao Estado e da posição em que se deve colocar o Estado para proteger eficazmente a liberdade do indivíduo e sua personalidade. (BONAVIDES, 2013, p. 64-86)

No Brasil, por exemplo, quase todas as Constituições, desde o Império à República, consagraram o princípio da tripartição de poderes, no entanto, meramente em bases nomi-nais. Basta lembrar o Poder Moderador, instituído na Constituição de 1824, que concedia ao Imperador Dom Pedro I poderes acimas dos demais.

Ocorre que, o princípio da separação de poderes, que nas origens de sua formulação talvez tenha sido o mais sedutor, magnetizando os construtores da liberdade contemporânea e servindo de inspiração e paradigma a todos os textos de Lei Fundamental, como garantia suprema contra as invasões do arbítrio nas esferas da liberdade política, hodiernamente, já não oferece o fascínio das primeiras idades do constitucionalismo ocidental.

No neoconstitucionalismo, a leitura clássica do princípio da separação de poderes, que impunha limites rígidos à atuação do Poder Judiciário, cede espaço a outras visões mais favoráveis ao ativismo judicial em defesa dos valores constitucionais, dando lugar a teorias de democracia substantiva em detrimento de concepções estritamente majoritárias do princípio democrático, que legitimam amplas restrições aos poderes do legislador em nome dos direitos fundamentais e da proteção das minorias, possibilitando a sua fiscalização por juízes não elei-

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tos. E ao invés de uma teoria das fontes do Direito focada no código e na lei formal, enfatiza-se a centralidade da Constituição no ordenamento, a ubiquidade da sua influência na ordem jurídica, e o papel criativo da jurisprudência (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 80-81).

Portanto, de fundamental importância foram as experiências traumáticas oriundas dos regimes totalitários vivenciadas pela humanidade para que o direito se aproximasse cada vez mais da ética, havendo uma quebra do paradigma positivista em prol de uma maior efetivação dos direitos humanos liderada pelo Poder Judiciário, último intérprete e guardião dos preceitos constitucionais.

3. ATIVISMO JUDICIAL

A locução “ativismo judicial” foi utilizada, pela primeira vez, pelo historiador Arthur M. Schlesinger Jr. quando publicou, na revista Fortune, um artigo intitulado The Supreme Court: 1947, buscando descrever a divisão existente à época. O grupo de Black e de Douglas acredi-tava que a Suprema Corte podia desempenhar um papel afirmativo na promoção do bem-estar social; já o grupo de Frankfurter e Jackson defendia uma postura de autocontenção judicial. Assim, o grupo Black-Douglas estava mais preocupado com a utilização do poder judicial em favor de suas próprias concepções do bem social; enquanto que o grupo de Frankfurter-Jack-son, com a preservação do Judiciário na sua posição relevante, como um instrumento para permitir que os outros Poderes realizassem a vontade popular, seja ela melhor ou pior (BAR-ROSO, 2013, p. 7-8).

Desse modo, o termo ganhou expressão e foi utilizado como rótulo para qualificar a atuação da Suprema Corte durante os anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e 1969, período este marcado por uma profunda e silenciosa mudança de práticas políticas nos Estados Unidos da América, sem que, contudo, tenham o Congresso ou o Presidente da República emanados quaisquer atos. Mudança, pois, conduzida por uma jurisprudência pro-gressista em matéria de direitos fundamentais (BARROSO, 2013, p. 8).

A partir de então, por força de uma intensa reação conservadora, a expressão ativismo judicial assumiu, nos Estados Unidos, uma conotação negativa, depreciativa, equiparada ao exercício impróprio do poder judicial, dos quais são exemplos: a declaração de inconstitucio-nalidade de atos de outros Poderes que não sejam claramente inconstitucionais; a rejeição à aplicação de precedentes; o legislar pelo Judiciário; o distanciamento das metodologias de interpretação normalmente aplicadas e aceitas; e os julgamentos em função dos resultados (BARROSO, 2013, p. 8).

É bem verdade que o ativismo judicial precedeu a criação do termo, e, nas suas ori-gens, era essencialmente conservador. De fato, foi na atuação proativa da Suprema Corte que os setores mais reacionários encontraram amparo para a segregação racial (Dred Scott v. Sanford, 1857) e para a invalidação das leis sociais em geral (Era Lochner, 1905-1937), cul-minando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com a mudança da orientação jurisprudencial contrária ao intervencionismo estatal (West Coast v. Parrish, 1937). A situação se inverteu no período que foi de meados da década de 50 a meados da década de 70 do século passado. Todavia, depois da guinada conservadora da Suprema Corte, notadamente no período da presidência de William Rehnquist (1986-2005), coube aos progressistas a crítica severa ao ativismo judicial que passou a desempenhar (BARROSO, 2013, p. 8).

Portanto, o termo ativismo judicial, frequentemente, associado a uma postura proativa e progressista em matéria de efetivação de direitos humanos por parte do Judiciário, também pode se referir a uma postura mais conservadora, mitigadora dos avanços sociais temidos pelas classes dominantes.

Desta feita, William P. Marshall (2002, p. 104 apud PAULA, 2009, p. 122) identifica sete tipos-ideais de ativismo, a saber:

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a) ativismo contra-majoritário: marcado pela relutância em relação às decisões dos po-deres diretamente eleitos. Ocorre, por exemplo, quando a Suprema Corte declara a inconstitu-cionalidade de leis que ampliam direitos sociais aos trabalhadores por supostamente colidirem com a liberdade de exercício da atividade econômica.

b) ativismo não-originalista: caracterizado pelo não reconhecimento de qualquer origi-nalismo na interpretação judicial, sendo as concepções mais estritas do texto legal e as consi-derações sobre intenção do legislador completamente abandonadas. No Brasil, são exemplos, as decisões do Supremo Tribunal Federal em casos como o da imposição de fidelidade partidá-ria e o da vedação do nepotismo.

c) ativismo de precedentes: o qual consiste na rejeição aos precedentes anteriormente estabelecidos.

d) ativismo formal (ou jurisdicional): marcado pela resistência das cortes em aceitar os limites legalmente estabelecidos para sua atuação.

e) ativismo material (ou criativo): resultante da criação de novos direitos e teorias na doutrina constitucional.

f) ativismo remediador: marcado pelo uso do poder judicial para impor atuações posi-tivas aos outros poderes governamentais ou controlá-los como etapa de um corretivo judicial-mente imposto. Mais uma vez, o exemplo brasileiro é a atuação do Supremo Tribunal Federal nos casos sobre greve no serviço público ou sobre criação de município, bem como no de polí-ticas públicas insuficientes, de que têm sido exemplo as decisões sobre direito à saúde.

g) ativismo partisan: o qual consiste no uso do poder judicial para atingir objetivos es-pecíficos de um determinado partido ou segmento social.

Para Luís Roberto (BARROSO, 2013, p. 8), a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins cons-titucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes, sendo que, em muitas situações, sequer há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios.

A judicialização, para o autor, é um fato, uma circunstância do desenho institucional brasileiro, ao passo que o ativismo é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente, instala-se em situações de retração do Poder Legislativo, em que há crise de representatividade entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam aten-didas de maneira efetiva (BARROSO, 2013, p. 9).

O oposto do ativismo é a autocontenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procu-ra reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes, seja evitando aplicar diretamente a Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinário, seja utilizando critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos ou, ainda, abstendo-se de in-terferir na definição das políticas públicas (BARROSO, 2013, p. 9).

A judicialização, por sua vez, significa que questões relevantes do ponto de vista polí-tico, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário, havendo, pois, transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias po-líticas tradicionais (Legislativo e o Executivo). Esse fenômeno não é tipicamente brasileiro, mas mundial, alcançando até mesmo países que tradicionalmente seguiram o modelo inglês (democracia de Westminster), com soberania parlamentar e ausência de controle de constitu-cionalidade (BARROSO, 2013, p. 5).

Cabe, no entanto, fazer um adendo, haja vista, em 2005, ter sido aprovada a Consti-tutional Reform Act, por pressões da comunidade europeia, que recomendou formalmente mudanças no Poder Judiciário Inglês. Foi criada uma corte constitucional independente do Parlamento, que outrora exercia, por meio dos Lordes Judiciais (Law Lords), a função jurisdi-cional máxima. Assim, não é de todo correto falar que inexiste controle de constitucionalidade

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no modelo inglês, mas sua abrangência é reduzida se comparado aos outros modelos de juris-dição constitucional.

Para o Judiciário esse problema é agravado pelas crescentes pressões que sofre com o aumento da demanda de seus serviços, dado o caráter cada vez mais contratual de todas as relações sociais, com a erosão dos sistemas convencionais e tradicionais de poder e solução de conflitos, a complexi-dade cada vez maior do campo de atuação do sistema judiciário, o surgi-mento de novos sujeitos sociais que reivindicam direitos e uma tendência crescente à morosidade dos processos judiciais cujas razões não são sem-pre óbvias. [...] espera-se que o Judiciário seja o ponto de partida da regeneração do sistema social, de luta contra a desigualdade social e o patrimonialismo. [...] Reproduz-se, assim, dentro do Judiciário, a tentação que ocorria ante-riormente em nível político-ideológico de violação de princípios de repre-sentação em nome das exigências de transformação social. (SORJ, 2001, p. 110-115)

Bernardo Sorj, por seu turno, informa que a judicialização é a transferência do conflito social para o Judiciário, ao contrapor este conceito ao de juridificação da sociedade, elaborado por Habermas, como processo pelo qual as relações sociais seriam colonizadas pela crescente atividade reguladora do Estado (colonização da vida social por normas burocráticas). Para o autor, a sociedade brasileira seria pouco juridificada, havendo, assim, um âmbito de liberdades fundamentais respeitadas pelo Estado, mas bastante judicializada, com crescimento das de-mandas sociais levadas à análise do Judiciário (SORJ, 2001, p. 118).

Sorj (2001) acrescenta que a judicialização reflete um problema de fundo da socieda-de democrática de fim de século e do novo milênio, que é a dificuldade do sistema de repre-sentação, em particular dos partidos políticos, de transformar-se em articuladores dos novos sujeitos sociais.

Destarte, as causas da judicialização são diversas, dentre elas, o reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as demo-cracias modernas; certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representa-tividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral; o intuito de se evitar desgaste político na deliberação de temas divisivos, nos quais existe desacordo moral razoável, como uniões homoafetivas e legalização do aborto, evitando-se com isso que certos atores políticos do Le-gislativo e do Executivo se exponham frente aos grupos sociais, uma vez que os membros do Poder Judiciário não precisam passar pelo crivo do voto popular (BARROSO, 2013, p. 6).

Ademais, a transformação do papel do Judiciário reflete uma série de problemas so-ciais, tais como: uma crise de valores associada aos processos de perda de confiança no futuro da humanidade e aos desafios das novas tecnologias que exigem a intervenção de especialistas e que mobilizam problemas éticos que o sistema político tem dificuldades de elaborar; crise de comunicação intra-societária devido às múltiplas identidades culturais da pós-modernidade; a globalização e as ideologias privatizantes que igualaram o Estado a uma empresa e a desmo-ralização dos poderes Executivo e Legislativo que transferiu a um órgão não eletivo, o Judiciá-rio, as expectativas de proteção e exemplaridade, fato perigoso em um regime democrático; a construção de um direito global, fruto de atos e acordos internacionais, que pode fazer com que o Judiciário considere que em certa medida seu poder emana de fora do campo do sistema político nacional; aumento da morosidade e dos custos das demandas judiciais, dificultando, assim, o acesso à Justiça aos mais desfavorecidos; entre outros (SORJ, 2001, p. 111-114).

No Brasil, conforme Barroso (2013, p. 7), a judicialização decorre, sobretudo, de dois

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fatores: o modelo de constitucionalização abrangente e analítica adotado; e o sistema de con-trole de constitucionalidade vigente entre nós, que combina a matriz americana (em que todo juiz e tribunal podem pronunciar a invalidade de uma norma no caso concreto) e a matriz europeia, que admite ações diretas ajuizáveis perante a corte constitucional. Nesse contexto, a judicialização é um fato inelutável decorrente do desenho institucional vigente, e não uma opção política do Judiciário que, uma vez provocado pela via processual adequada, deve se pronunciar sobre a questão nos termos emanados do princípio do non liquet. Todavia, o modo como venha a exercer essa competência é que vai determinar a existência ou não de ativismo judicial.

São exemplos de judicialização no cenário brasileiro: a instituição de contribuição dos inativos na Reforma da Previdência (ADI 3105/DF); pesquisas com células-tronco embrioná-rias (ADI 3510/DF); interrupção da gestação de fetos anencefálicos (ADPF 54/DF); restrição ao uso de algemas (HC 91952/SP e Súmula Vinculante nº 11); legitimidade de ações afirma-tivas e quotas sociais e raciais (ADI 3330); vedação ao nepotismo (ADC 12/DF e Súmula nº 13); a questão da importação de pneus usados (ADPF 101/DF); a proibição do uso do amianto (ADI 3937/SP), dentre vários outros.

Entretanto, Sorj ao analisar a judicialização das relações sociais sob uma perspectiva mais ampla, enumera, além dos já citados, outros fatores responsáveis pelo fenômeno como a pressão de instituições internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional...) representantes dos interesses do capital estrangeiro; as privatizações que delegaram ao setor privado uma série de serviços públicos transformando o cidadão em consumidor e pressiona-ram o Estado a desregulamentar e a flexibilizar normas trabalhistas e previdenciárias; a crise da federação brasileira, com amplas disparidades socioeconômicas entre os diversos Estados; entre outros fatores que tornam o Judiciário um escoadouro para todos os grupos afetados pelas reformas estatais que o procuram para proteger-se invocando princípios constitucionais (SORJ, 2001, p. 117-119).

Portanto, a judicialização das relações sociais decorre de uma ampla gama de fatores jurígenos e não jurígenos, de forma mais precisa, de vários fatores sociais que independem de qualquer ato volitivo de membros do Poder Judiciário, ao passo que o ativismo judicial decorre de um ato de vontade do magistrado quer seja ele mais comprometido com as mudanças per-quiridas pela sociedade, seja ele mais conservador.

4. CRÍTICAS AO NEOCONSTITUCIONALISMO, AO ATIVISMO JUDICIAL E À JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS

Criticar o neoconstitucionalismo e o ativismo judicial, necessariamente, é refletir, pro-fundamente, sobre a jurisdição constitucional. Afinal, a sua expansão a que se assistiu no pós-segunda guerra, como forma de limitar as arbitrariedades dos Poderes Executivo e Legislativo, desencadeou todo esse processo do novo constitucionalismo.

É bem verdade que já se ouvira falar em ativismo judicial desde os primeiros anos do Século XIX, quando a Suprema Corte norte-americana avocou-se a controlar os atos do Poder Legislativo no histórico caso Marbury versus Madison, mesmo o termo tendo sido cunhado já no Século XX.

Nesse ínterim, as críticas que se fazem ao neoconstitucionalismo e ao ativismo judi-cial, em essência, são críticas à jurisdição constitucional. Luís Roberto Barroso (2013), por exemplo, opõe-se à expansão da intervenção judicial na vida brasileira sob três perspectivas: crítica político-ideológica; crítica quanto à limitação do debate e crítica quanto à capacidade institucional.

A crítica política cinge-se a questionar a legitimidade democrática da jurisdição cons-titucional e a suposta maior eficiência na proteção dos direitos fundamentais por parte do Ju-

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diciário, tendo por fundamento os escritos de Jeremy Waldron, um dos maiores críticos dessa perspectiva, cuja tese central é a de que nas sociedades democráticas nas quais o Legislativo não seja “disfuncional”, as divergências acerca dos direitos devem ser resolvidas no âmbito do processo legislativo e não do processo judicial(BARROSO, 2013, p. 10).

Outrossim, por não serem agentes públicos eleitos, os juízes e membros dos tribunais quando sobrepõem suas vontades (decisões) às dos representantes do Poder Legislativo, ex-põem o que Alexander Bickel denominou de dificuldade contra majoritária, pois, supostamen-te, contraditam a vontade da maior parcela da população que elegeu os membros do parlamen-to, ao declarar, por exemplo, a inconstitucionalidade de uma lei.

Alexander Bickel cunhou o termo: Quando a Suprema Corte declara in-constitucional um ato legislativo ou um ato de um membro eleito do Exe-cutivo, ela se opõe à vontade de representantes do povo, o povo que está aqui e agora; ela exerce um controle, não em nome da maioria dominante, mas contra ela (BARROSO, 2013, p. 10).

No entanto, a crítica política perde um pouco de consistência se considerarmos que a vontade majoritária pode sufocar as minorias. Alexis de Tocqueville, desde o Século XIX, já alertava, em sua obra “A democracia na América”, para o perigo da tirania da maioria. Assim, o Judiciário teria sido escolhido pelo Poder Constituinte originário, ao instituir a jurisdição constitucional, como defensor dos interesses das minorias sociais, que em uma democracia, poderiam nunca ter sua vontade concretizada, como, por exemplo, na questão do casamento homoafetivo.

A crítica ideológica, por sua vez, refere-se ao fato de que a judicialização seria uma reação das elites tradicionais contra a democratização, a participação popular e a política ma-joritária, visto que o Poder Judiciário sempre foi representado por integrantes de uma minoria privilegiada socioeconômica e intelectual da população, sendo, pois, uma instância conserva-dora da distribuição de poder e riqueza na sociedade.

No que tange à crítica quanto à capacidade institucional, reconhecem-se as limitações do magistrado que, muitas vezes, não é o árbitro mais qualificado a dirimir questões técnicas e científicas de grande complexidade por falta de conhecimento específico, como por exemplo, definir o início e o fim da vida, nas questões sobre pesquisa com células-tronco e aborto de fetos anencefálicos, ou o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público.

A terceira crítica engendrada por Barroso diz respeito à limitação do debate. A lin-guagem jurídica é de difícil compreensão para a população em geral e a judicialização estaria proporcionando uma elitização do debate político, excluindo aqueles que não dominam essa linguagem e não têm acesso aos locais de discussão jurídica (tribunais, universidades...), fato que pode gerar apatia nas forças sociais, que depositariam suas expectativas em juízes provi-denciais. Institutos como audiências públicas, amicus curiae e direito de propositura de ações diretas por entidades da sociedade civil, apenas atenuariam o problema. Por conseguinte, a transferência do debate público para o Judiciário politizaria os tribunais, emergindo paixões em um ambiente que deveria ser presidido pela razão (BARROSO, 2013, p. 11).

Por seu turno, Daniel Sarmento (In FELLET et al, 2013, p. 96) esboça três críticas ao neoconstuticionalismo (judiciocracia; oba-oba constitucional e panconstitucionalização) que não deixam de ser críticas à expansão da judicialização, do ativismo judicial e da jurisdição constitucional.

A judiciocracia seria a ditadura do Poder Judiciário, a ditadura de toga em contraposi-ção à ditadura de farda (a imposta pelo Poder Executivo). Neste ponto, a crítica de Sarmento

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se aproxima da crítica político-ideológica de Barroso, uma vez que contesta o caráter antide-mocrático de as decisões políticas serem transferidas para a arena judicial, cujos integrantes não passam pelo crivo do voto popular.

Destarte, o neoconstitucionalismo estaria proporcionando aos juízes um poder cons-tituinte permanente, pois lhes permitiria moldar a Constituição de acordo com as suas prefe-rências políticas e valorativas, em detrimento daquelas do legislador eleito, diante da vagueza e abertura de boa parte das normas constitucionais mais importantes. Este fato, inclusive, influenciou inúmeras correntes de pensamento ao longo da história a rejeitarem a jurisdição constitucional, ou pelo menos o ativismo judicial no seu exercício, dos revolucionários fran-ceses do século XVIII, passando por Carl Schmitt, na República de Weimar, até os adeptos do constitucionalismo popular nos Estados Unidos de hoje (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 98).

[...] Sob o ângulo normativo, favorece-se um governo à moda platô-nica, de sábios de toga, que são convidados a assumir uma posição paternalista diante de uma sociedade infantilizada. Justifica-se o ativismo judicial a partir de uma visão muito crítica do processo po-lítico majoritário, mas que ignora as inúmeras mazelas que também afligem o Poder Judiciário, construindo-se teorias a partir de visões românticas e idealizadas do juiz. Só que, se é verdade que o processo político majoritário tem seus vícios - e eles são muito graves no ce-nário brasileiro -, também é certo que os juízes não são semi-deuses, e que a esfera em que atuam tampouco é imune à política com “p” menor. [...]Esta idealização da figura do juiz não se compadece com algumas notórias deficiências que o Judiciário brasileiro enfrenta. Dentre elas, pode-se destacar a sobrecarga de trabalho, que compromete a capacidade dos magistrados de dedicarem a cada processo o tempo e a energia necessários para que façam tudo que o que demandam as principais teorias da argumentação defendidas pelo neoconstitu-cionalismo. E cabe referir também às lacunas na formação do ma-gistrado brasileiro, decorrentes sobretudo das falhas de um ensino jurídico formalista e nada interdisciplinar que ainda viceja no país, que não são corrigidas nos procedimentos de seleção e treinamento dos juízes (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 100-101).

O oba-oba constitucional faz referência ao fato de que a assunção de princípios, tais como o da dignidade da pessoa humana e o da razoabilidade, para fundamentar as decisões ju-diciais em detrimento da aplicação de regras jurídicas, ante a amplitude terminológica, estaria mascarando decisionismos. Tanto as regras quanto os princípios são importantes para o bom funcionamento do sistema jurídico porque, dentre outras razões, proporcionam maior previ-sibilidade e segurança jurídica; não demandam tanto esforço de argumentação do intérprete, vez que se aplicam de forma mecânica e não importariam em transferir poder do Legislativo para o Judiciário. Sob esse aspecto, o autor indaga a quem beneficiaria uma hermenêutica jurídica mais flexível e conclui advertindo que o neoconstitucionalismo, com sua fluidez me-todológica, pode acabar tornando-se um belo rótulo para justificar mais do mesmo: patrimo-nialismo, desigualdade, “jeitinho” (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 108).

Finalmente, em sua derradeira crítica ao neoconstitucionalismo, intitulada de pan-constitucionalização, ou seja, todo direito passa a ser direito constitucional, desde o direito

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Capítulo 1

penal até a lei mais banal do ordenamento pátrio, Sarmento aborda que o excesso de consti-tucionalização do Direito é antidemocrático, posto que se tudo ou quase tudo já está decidido pela Constituição, e o legislador é um mero executor das medidas já impostas pelo constituin-te, nega-se, por conseqüência, a autonomia política ao povo para, em cada momento da sua história, realizar as suas próprias escolhas (SARMENTO In FELLET et al, 2013, p. 109).

Portanto, se o Poder Constituinte originário previu todas as hipóteses que deveriam ser elevadas ao status constitucional, engessou as gerações futuras e tomou todas as decisões políticas em nome delas, possibilitando, em realidade, o excesso de constitucionalização um governo dos mortos sobre os vivos.

5. CONCLUSÕES

Ao longo do trabalho foram discutidas questões como a mudança de paradigma na lógi-ca jurídica com a superação do positivismo jurídico; as novas práticas constitucionais advindas do pós-guerra e o ativismo judicial.

Discutiu-se que o princípio da separação de poderes não pode ser um entrave à con-cretização de direitos sociais. Deve ser interpretado não como limite ao Poder Judiciário, mas tendo por base sua origem histórica e a que se propôs, sendo que, na atualidade, sua interpre-tação stricto sensu perdeu fundamento.

Outrossim, o neoconstitucionalismo e o pós-positivismo não deram uma carta branca ao intérprete da norma para sobrepor sua vontade a do legislador ou a do administrador público em todas e quaisquer ocasiões. Sempre que estejam em discussão os direitos fundamentais ou os procedimentos democráticos, o Judiciário deve acatar as escolhas legítimas realizadas pela sociedade quando elegeu seus representantes. Isso deve ser feito não só por razões ligadas à legitimidade democrática, como também em atenção às capacidades institucionais dos órgãos judiciários e sua impossibilidade de prever e administrar os efeitos sistêmicos das decisões.

O fato de a última palavra acerca da interpretação da Constituição ser do Judiciá-rio não o transforma no único, tampouco no principal, foro de debate e de reconhecimento da vontade constitucional a cada tempo. A jurisdição constitucional não deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, o movimento social, os canais de expressão da sociedade, visto que a soberania é popular (BARROSO, 2013, p. 35).

O Poder Judiciário tem um papel importante na concretização da Constituição brasi-leira, tendo em vista a violação de direitos de certos segmentos da população, do arranjo ins-titucional desenhado pela Carta de 88, e da séria crise de representatividade do Poder Legis-lativo. Destarte, justifica-se o ativismo judicial, pelo menos em certas searas, como a tutela de direitos fundamentais, a proteção das minorias e a garantia do funcionamento da democracia. Mas, em outras situações, seria mais prudente uma postura de autocontenção judicial, reco-nhecendo-se que outros órgãos do Estado, que não o Judiciário, estão mais capacitados para assumir uma posição de protagonismo na implementação da vontade constitucional.

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TEORIAS RELATIVAS AO RACIOCÍNIO JURÍDICO: A LÓGiCA DA DECISÃO JUDICIAL PENAL BRASILEIRA A PARTIR DE UMA

ABORDAGEM EXEGÉTICA DA CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA DAS DEMOCRACIAS POPULARES DE CHAΪM PERELMAN

Capítulo 2

Eloy Moury Fernandes1

1. INTRODUÇÃO

A existência de uma lógica jurídica pode parecer uma utopia. Pois tudo o que é do ho-mem, por ele criado, não permite a utilização de fórmulas lógicas formais, como nas ciências da natureza. Um conjunto de premissas podem se repetir em situações distintas, mas no novo caso em que se apresentem, podem ser associadas a um elemento humano distinto daquele que ocorria na primeira situação. Ademais, no direito não se conclui, como se faz ao se colocar ao lado dois números, nem mesmo resulta no mesmo alcança o mesmo resultado toda vez que se repetirem as mesmas circunstâncias. Em direito não se conclui. Se decide. O juiz não pode ser apenas a boca da lei, como pretendeu Montesquieu. Assim, embora realize a chamada qua-lificação jurídica de um fato a pré-existência de absolutamente das regras do jogo, toda decisão implica num elemento humano de escolha. Caso contrário a decisão jurídica estaria longe do ser humano e de outros elementos variantes ao longo do tempo, do espaço e das circunstân-cias humanas particulares. Como a moral. A leitura de Perelman nos permitiu tratar, ainda que superficialmente do tema de decisão judicial e as linhas que se seguem têm por finalidade realizar uma análise pouco profunda dos elementos dessa ideia inicial de lógica jurídica, con-cebida pelo autor, aplicados à decisão judicial. Em especial à decisão penal condenatória, sob a ótica da legislação vigente por ocasião da aplicação da pena de privação de liberdade e de sua substituição pelas denominadas penas alternativas – à privativa de liberdade. O objetivo é ini-ciar um enquadramento racional da lógica que rege a tomada da decisão judicial no momento de aplicação da conseqüência mais relevante do processo penal condenatório, a partir de parte das observações de Chaim Perelman, em seu LOGICA JURÍDICA.

Ao final, será objetivada a demonstração, a partir dos critérios atualmente vigentes no ordenamento jurídico brasileiro de aplicação da consequência penal condenatória no Brasil. Estabelecendo alguma relação com as teorias levantadas pelo Autor estudado e suas teorias so-bre a lógica jurídica. Em que tipo de métodos de tomada de decisões, de raciocínio ou mesmo de argumentação, enquadra-se a tomada de decisão penal condenatória no Brasil.

2. DA IDEIA DE RACIOCÍNIO COMUM AO RACIOCÍNIO JURÍDICO. PODE EXISTIR UMA LÓGICA JURÍDICA?

A obra a partir da qual serão tecidas grande parte das observações que se seguem fo-ram as observações que se seguem, trata-se do livro Lógica Jurídica.

Antes de tratar do raciocínio, tomando-o como tanto substantivo – resultado, como

1 Mestrando da Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciências Criminais pela UFPE (2003). Graduado pela Universidade Católica de Pernambuco (2000).

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Capítulo 2

ponto de chegada da racionalidade, ou mesmo como meio a este resultado mental, vejamos algumas conclusões depreendidas sobre a lógica e sua aplicação no campo jurídico.

Citando outros autores, como Ulrich Klug e o Professor Kalinowski, Chaïm Perelman, nos deixa claro que o termo lógica somente pode ser associado à lógica formal. Aquela das ciências do ser. Inaplicável, pois, às ciências do homem.

Se para Kalinowski, a lógica deve ser vista como “instrumento de toda atividade do sa-ber, de aplicação tanto no domínio da vida cotidiana, como em qualquer ciência”, em artigo de 1959, “Y-a-t-il une logique juridique?” (existe uma lógica jurídica?) publicado na Revista “Lo-gique et Analyse” (Lógica e Análise) (Logique et Analyse, nº. 5, pp. 48/53, apud PERELMAN, 2000), o mesmo autor nega ser possível a existência de uma lógica jurídica. Pois será sempre exclusivamente formal. Como concebida.

Mais adiante, o mesmo Kalinowski, citado por Perelman, arremata dizendo somente existir uma lógica:

(…) a lógica pura e simples, tout court, utilizada no sentido teórico ou nor-mativo. Por outro lado, entre as diversas aplicações de leis ou regras lógicas universais não se pode deixar de verificar aquelas feitas para a aplicação em qualquer campo jurídico. É extremamente interessante e útil a análise das diferentes aplicações das leis e regras logicas universais nos diversos campos do direito, assim como o exame das razões pelas quais elas são aplicadas. Todavia, não tem qualquer sentido o estudo de uma lógica jurí-dica no sentido próprio da palavra. Uma tal lógica simplesmente não existe (KALINOWSKI, p.53. apud PERELMAN, 2000).

Mas essa postura deve-se somente caso considerarmos como lógica jurídica uma mera aplicação da lógica formal ao direito. Sem qualquer consideração concreta à atividade intelec-tual do jurista.

Deste modo, Perelman preferiu apontar como objeto de sua obra Lógica Jurídica, to-mando-a como a forma de denominação dos estudos destinados à análise da forma de pensa-mento dos juristas em especial e, mesmo os autores citados, que negam a existência de uma Lógica Jurídica autonomamente considerada em relação à lógica formal, ao se referirem a ela o fazem valendo-se da mesma expressão, deixando clara não apenas a sua existência, como também dedicando obras sobre o tema sob esta mesma denominação.

Superada a crise de identidade de uma lógica jurídica e partindo para o trato da lógica jurídica propriamente dito, o autor inicia a sua obra cuidando do raciocínio.

Sendo o raciocínio uma atividade da mente e o, ao mesmo tempo, o produto desta atividade, Perelman (2000), classifica o raciocínio em analítico e dialético. Sendo o primeiro aquele que parte de premissas necessárias (verdadeiras) e, graças a inferências válidas resul-tam em conclusões igualmente válidas. Transferindo às conclusões a necessidade e a verdade das premissas. O que retira qualquer poder de interferência da matéria sobre a validade da inferência. Afinal, mesmo retirada dos mais diversos domínios do pensamento, a forma de raciocínio analítico lhe garantirá a validade.

E a lógica formal é a lógica que estuda exatamente as inferências válidas, graças ex-clusivamente à sua forma. Exigindo-se apenas a substituição das premissas, pelos mesmos termos.

Já o raciocínio dialético, já analisado por Aristóteles nos Tópicos, na Retórica e nas refutações sofísticas, segundo Perelman, refere às deliberações e às controvérsias. E não a de-monstração científicas, como o raciocínio analítico.

Se Aristóteles conceituou o silogismo como a argumentação lógica perfeita, lastreada em premissas verdadeiras, denominou como silogismo dialético ou entinema o raciocínio se-gundo o qual, se repetidas as causas, igualmente se repetirão as consequências. Prescindindo

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Capítulo 2

da repetição de todas as premissas.

3. DOS ARGUMENTOS DA DECISÃO JUDICIAL

Para Perelman, a estrutura argumentativa que leva à decisão parece bem diferente de um mero silogismo pelo qual bastam aspremissas para a imediata e necessariamente con-sequente conclusão. Ou seja, dos argumentos da decisão não se passa automaticamente das premissas à decisão. Retirando-se assim a obrigatoriedade da conclusão a partir das premissas.

A estrutura argumentativa que leva à decisão, para Perelman (03), é bem diferente do mero silogismo. Pois a decisão implica em opção. Poder decidir de um modo e escolher por um outro diverso daquele.

Enquanto no silogismo as premissas levam à mesma conclusão, no momento de de-cisão as premissas levam a algumas opções. E o decidir exatamente escolher dentre essas opções.

Tentar um argumento a somente um esquema formalmente válido, apenas põe em evidência a sua insuficiência. Embora não seja isso que lhe retire o valor. E é exatamente nesse reducionismo que a lógica jurídica não deve cair. A decisão jurídica deve vir obrigatoriamente acompanhada de argumentos, interferência. (PERELMAN, 2000, p. 04/05).

Nas palavras de Kalinowski, “é inútil tentar estudar uma lógica jurídica no sentido pró-prio do termo, pois ela não existe” (KALINOWSKI apud PERELMAN, 2000).

Deste modo, a lógica jurídica seguiria uma estrutura particular, para dar sentido à am-biguidade e a constantemente verificar se a sociedade chegou a discernir novas diferenças e similitudes (LÉVI apud PERELMAN, 2000).

Perelman ainda critica a lógica jurídica de K. Engisch, segundo a qual a lógica jurídica nos diz o que deveríamos fazer, apontando que devem ser substituídas as expressões verdadei-ros e correto por equitativos e razoáveis.

4. DAQUILO QUE É PERMITIDO AO JULGADOR NA HORA DA DECISÃO

Em seu Lógica Jurídica, ainda reflete o autor no sentido de que, se o raciocínio jurídico sempre será contaminado por controvérsias, esses desacordos sobre a solução dever ser sanado com a autoridade da maioria ou dos tribunais superiores. Cujas decisões normalmente coinci-dem. Sendo nisso que o raciocínio jurídico se distingue do raciocínio das ciências dedutivas, nas quais é bem mais fácil chegar-se a um acordo sobre as técnicas de cálculo e de medição. E é justamente a presença necessária da controvérsia no raciocínio jurídico que inviabiliza a sua conceituação como correto ou incorreto, de modo impessoal (PERELMAN, 2000, p. 08).

Assim, por melhores que sejam as razões de uma tese jurídica, o autor dela (legislador, juiz administrador) deve arcar com as responsabilidades decorrentes de seu cometimento pes-soal com a sua decisão. Assim, todas as decisões tomadas sob a lógica jurídica de raciocínio, deverão levar em conta os argumentos da tese divergente e assumir as consequências da to-mada da decisão diversa da outra. Pois sempre há algo de pessoal na decisão tomada sob uma lógica jurídica (PERELMAN, 2000, p. 08-09).

Mesmo que originado no divino ou quase divino, o direito sempre suscitou controvér-sias entre seus intérpretes.

De modo que a justiça da solução está menos ligada ao processo, mas a confrontação de opiniões opostas e de uma decisão subsequente, baseada por uma autoridade. Se essas au-toridades se opõem, impõe-se a decisão da autoridade superior, ou a decisão tomada por um maior número de pareceres abalizados. Mas, ainda assim, essa maioria ou autoridade, jamais irá conferir à decisão tomada a qualidade de ser a única possível, ou mesmo justa, ao caso, como nas demais formas de raciocínio dedutivo formal tradicional (PERELMAN, 2000, p. 09).

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Capítulo 2

Assim, para Perelman, mesmo entre os romanos, talmudistas ou glosadores da Escola de Borgonha, o “direito se elabora através das controvérsias e das oposições dialéticas, das argumentações em sentido diverso”. Sendo muito raro que, a exemplo das demonstrações ma-temáticas, o direito redundasse numa conclusão impositiva (PERELMAN, 2000, p. 10).

Para se chegar a uma solução era necessário colocar a controvérsia diante de uma tradição, atestada por uma autoridade, civil ou religiosa, coloca-lo em evidência a semelhança (similitude) a um caso a ser julgado com uma decisão anterior aceita, ou subsumi-lo em um texto legal que tratava de caso da mesma espécie. Nestes casos (a simili ou subsunção), admi-tia-se como justa a solução conforme a regra da justiça, que exige tratamento igual aos casos semelhantes (PERELMAN, 2000, p. 10).

O Juiz ciente de suas responsabilidades, decide tranquilo quando faz decisão ser uma continuação e complemento de um conjunto de decisões que se insere em uma ordem jurídica constituída pelos precedentes e, se foro caso, pelo legislador (PERELMAN, 2000, p. 11).

Na ideia de lógica jurídica lastreadas nos precedentes é que se funda a tradição inglesa do commom law (PERELMAN, 2000, p. 11).

Ao argumentum a simili prendem-se dois outros argumentos. O argumentum a fortio-ri e o argumentum a contrario.

O argumentum a fortiori funda-se não na decisão anterior propriamente dita, mas sobre a razão alegada na decisão anterior. Defendendo-se que as razões que levaram à decisão anterior impõe-se com força ainda maior no caso atual. Ex: se é punido alguém que com gol-pes, feriu outro homem, deve-se com mais força punir aquele que com golpes causou a morte de outrem.

Quando Jesus diz que Deus não deixa os pássaros morrerem de fome e, tampouco deixará os homens, usa o argumentum a fortiori. Não sendo um raciocínio puramente formal, mas que pressupõe que os homens mereçam maior interesse que os pássaros (PERELMAN, 2000, p. 11).

O argumento a fortiori permite ao Juiz justificar a decisão.O argumento a contrario aplica um precedente. Enquanto que no a simili se aplica

uma regra.Argumentos a contrario afirmam a aplicação ou não de uma regra a outra espécie do

mesmo gênero, do que foi aplicado para uma espécie particular.A arte de distinguir é indissociável do raciocínio jurídico. Se os argumentos a simili e

a fortiori permitem a extensão do alcance de uma decisão já tomada a casos posteriores. Já no argumento a contrario este alcance é delimitado, de modo a impedir a exclusão da aplicação da regra de justiça aos casos assim diferentes.

Foi para o que serviram os denominados Equity Courts (organizados na Inglaterra, no século XIV e tinham a finalidade de remediar as situações em que não se via como adequada a jurisprudência ou a rígida regra do precedente), ou tribunais de equidade. Que, evoluindo da regra do stare decisis (que determinava aplicação da jurisprudência anterior se não houvesse razão de distinguir).

Assim, conclui-se que:

1. O direito busca eminentemente conciliar as regras do raciocínio jurídico com a justiça ou, ao menos, com a aceitabilidade social das decisões e essa aceitabilidade denota um compromisso, não com um ideal perfeito e imutável de justiça ou de correção. Mas com um compromisso de satisfazer destinatários determinados. Especialmente aqueles que detém o poder. Contemporaneamente representado pelo capital econômico;

2. Um raciocínio puramente formal, no direito, é evidentemente insuficiente, pois se contentaria em controlar a correção das inferências, sem qualquer juízo sobre o valor da conclusão (decisão). Retornando à ideia já tratada de que uma decisão não pode se resumir a

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Capítulo 2

mera subsunção do fato à norma, escrita ou mesmo não escrita.

Uma breve incursão na tradição escolástica:A tradição escolástica, presente nos escritos de São Tomás, opunha, na aristotélica, os

raciocínios dialéticos e os raciocínios analíticos. Para Aristóteles, a prudência sem uma essên-cia à qual se definir, pode apenas nos remeter ao prudente como fundamento de todo valor.

“Não é o homem de bem que tem os olhos voltados às Idéias, somos nós que temos os olhos voltados para o homem de bem” (PERELMAN, 2000, p. 14).

Sendo o homem de bem um ser divino, o critério de Aristóteles poderia servir se não fosse possível a opinião de outro homem de bem opor-se à opinião do homem também de bem.

Desta condição (da impossibilidade da utilização da lógica aristotélica às decisões ju-rídicas) que, Pedro Abelardo, preferiu ver a prudência como ciência. A ciência do bem e do mal, que fundamenta o Juízo moral na intenção que dá origem à ação. Abelardo dizia que, “uma vez encontrada uma definição das virtudes, especialmente da justiça, bastaria aplicar a definição a cada caso particular para tirar, por simples dedução, a conclusão que se impunha” (PERELMAN, 2000, p. 14).

Durante muito tempo o justo confundiu-se com o piedoso e o sagrado, no direito.A separação entre direito, moral e religião, embora gradativamente tenha ocorrido,

notadamente com a nomeação de juízes laicos de fazer justiça aplicando ao menos ações e formulas que permitiriam o processo judicial, ainda encontra-se inacabada em uma série de Estados. Em Roma, na época de Cícero, existiam os “jurisprudentes”, classe de homens res-peitados, cujos pareceres fundamentavam as decisões dos pretores em suas funções judiciá-rias. O que acabara por ensejar a ideia de um direito natural, aplicável a todos e em todos os casos (PERELMAN, 2000).

Assim, a ideia de direito natural, sistema de justiça válido e aplicável em toda parte, era formulada bem antes da página de Cícero. A qual diz que existe uma lei verdadeira, razão reta conforme a natureza, presente em todos, imutável, eterna, por seus mandamentos, que chama o homem ao bem e por suas interdições evita o homem do mal. Nada podendo liberar quem quer que seja dela. O que nos remete a um direito ideal. Traduzido num sistema de moral universal (PERELMAN, 2000, p. 16 e 17).

Os racionalistas dos séculos XVII e XVIII desejaram elaborar um sistema de direito justo, uma jurisprudência universal, inteiramente fundada em princípios racionais. Por isso que, nas faculdades de direito do antigo regime europeu davam menos importância ao direito positivo. Que não passava de uma imitação imperfeita do modelo ideal que lhes era ensinado.

As tradições racionalista e empirista desenvolveram a ideia de que o direito justo era apenas uma expressão de uma razão universal, reflexo direto ou indireto da razão divina.

A este ideal de jurisprudência universal, fosse ele inspirado no direito romano, canô-nico, nas construções dos filósofos racionalistas ou na commom law, elaborada por uma várias gerações de juristas, apuseram-se três teses. Às quais estão ligados os nomes de Hobbes, Mon-tesquieu e Rosseau.

Para Hobbes o direito não é uma expressão da razão, mas uma manifestação do sobe-rano. Diz Hobbes que o direito natural não é mais do que aquele que reina na selva, onde se luta apenas pela vida. Sob o qual os grandes sempre comerão os pequenos. Mas, esse estado de guerra permanente torna-se com o passar do tempo, incompatível com a vida adequada ao ser humano. Que decide estabelecer um pacto, no qual se um Estado e põe suas forças reuni-das em volta de um soberano, encarregado de manter a paz e de protegê-los contra os ataques de fora. Renuncia-se consequentemente à solução de seus problemas pelas armas e aceita-se conformar-se às ideias que o soberano estabelecerá e fará respeitar com todos os meios em seu poder. Afinal, esse poder lhe foi outorgado. O que o legitima.

O soberano encarrega padres e educadores de ensinar o respeito às leis. Se, não for

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Capítulo 2

suficiente essa educação, tribunais serão encarregados da qualificação jurídica dos fatos ocor-ridos, de punir a violação eventual das leis, auxiliado, em caso de necessidade, das forças armadas postas a sua disposição. O soberano, detentor de um poder absoluto sobre os súditos, poderá elaborar suas leis como melhor lhe parecer, desde que não atente sem razão válida contra a vida dos súditos. Afinal, se o medo da morte é a razão de ser do pacto social constitu-tivo do Estado, seria um retorno ao status quo do contrato. Segundo Hobbes, como o interesse do soberano coincide com o do súdito, as leis deverão zelar pela proteção da vida e dos bens de todos os habitantes do Estado, podendo estes tratarem tranquilamente de suas ocupações privadas (PERELMAN, 2000, p. 19).

O Estado educa conforme uma propaganda ideológica de que o justo é tudo aquilo conforme as leis que ele promulga. Somente o direito positivado pelo Estado é capaz de fazer a ideia de justiça adquirir um sentido preciso. Antes do estado de sociedade a ideia de justiça não tinha conteúdo, pois no estado de natureza todos se impunham pela força, tudo parecia justo a quem se impunha pela força. “Somente com a criação do Estado é que nasce o direito, e a justiça pode ser definida como conformidade à vontade do soberano, tal como se manifes-tou nas leis e regulamentos” (PERELMAN, 2000, p. 19 e 20).

Já a filosofia política de Hobbes, consistente na glorificação do poder absoluto do so-berano, impôs-se na França mais de um século mais tarde, embora sob forma emendada, por causa das derrotas monarquistas nas revoluções de 1648 e de 1688. Registrou Perelman.

Montesquieu, de seu modo, também atacou a ideia de uma jurisprudência universal com sua obra “O espírito das leis”.

Para Montesquieu é impossível negar relações de equidade anteriores às leis positivas. Pois aquelas estabelecem estas (PERELMAN, 2000, p. 20).

Ao legislador, segundo Montesquieu, cabe positivar positivas as relações de justiça obri-gatórias a todos, não fossem os interesses particulares suscetíveis de confundir essa percepção. Por isso o perigo de o poder permanecer nas mãos de um só soberano. Que poderia promulgar leis que atendessem a esse interesse particular e, pior, ao reforço de seu próprio poder. Por isso Montesquieu preconiza a separação de poderes.

Mas, nem por isso a independência do poder legislativo evita que as leis por ele pro-mulgadas sejam universalmente justas ou de aplicação universal. Indicando que as leis devem ter uma “relação com a constituição de cada governo, com os costumes, o clima, a religião, o comércio etc...” (PERELMAN, 2000, p. 21).

Essa conexão entre as leis e o meio, seu tempo, sua dependência das condições polí-ticas, sociais e culturais em que foram elaboradas, exclui a realização de uma jurisprudência universal. Afinal, as leis devem adaptar-se às sociedades que devem reger.

Para Montesquieu as leis devem refletir mais a razão do que a vontade arbitrária de um soberano e, embora reconhecidos os fatores que condicionam a adaptação das leis às diversas sociedades, estas leis, para serem justas, deverão respeitar as relações de equidade que pree-xistem objetivamente à elaboração das leis positivas. E, quanto aos juízes, estes serão apenas “a boca que profere as palavras da lei; seres inanimados que não podem moderar-lhe nem a força nem o vigor” (PERELMAN, 2000, p. 21). O que muitos autores referem-se como juiz “boca da lei”.

Para Montesquieu “se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto que sejam apenas um texto preciso da lei. Se fossem uma opinião particular do Juiz, viveríamos em sociedade sem saber precisamente quais compromissos contraímos” (PEREL-MAN, 2000, p. 22).

Para Rousseau, em sua obra “O contrato social”(1762), embora inspirado em Hobbes, para quem o direito é apenas a expressão da vontade do soberano, não identifica o soberano como o monarca, mas como a nação, como a sociedade política organizada, cuja vontade geral, oposta à vontade particular, decide o justo e o injusto, promulga leis e designa os que executa-

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Capítulo 2

rão estas leis (vontades da nação), administração o estado e distribuirão a justiça.A voz do povo é a voz de Deus. Mas, para isso ser verdade, é necessário que, primeiro,

cada um fale por si só, sem interferência (sociedade parcial); e, segundo, que essa vontade seja movida pelo interesse geral, e não por particular.

Somente nestas condições, nas quais o interesse pelo geral se oponha ao particular e que o Juiz identificará a sua regra com a da parte, é que ele poderá afirmar que a vontade geral é sempre reta e que a Lei será a expressão da justiça.

Combinando essas diversas ideologias, a revolução francesa chega a “identificar o di-reito com o conjunto de leis, expressão da soberania nacional, sendo reduzido ao mínimo o pa-pel dos juízes, em virtude do princípio da separação dos poderes”. A tarefa de julgar é somente a de aplicar a lei ao caso particular, por deduções corretas, sem o risco de interpretações que deformem a vontade do legislador (PERELMAN, 2000, p. 23).

Dos tribunais, em 1790, diante de alguma dificuldade de interpretação de uma lei, recorreriam (recurso de caráter geral) ao legislativo para que este esclarecesse o real alcance da lei ou mesmo legislasse onde faltasse lei.

As sentenças deveriam ser motivadas e instituía-se um tribunal de cassação, para con-trole das decisões dos juízes que violassem a lei. Funcionava como um policial do poder legis-lativo que vigiava o judiciário, ao qual prestava contas regularmente.

Mas, ao longo do tempo, diante de alguma situação de difícil solução, viu-se o uso de-senfreado pelos Juízes do recurso de caráter geral. Demonstrando ser ineficiente o instituto. Pois tornou os julgamentos cada vez mais demorados e permitiu ao legislativo interpretar a lei para o caso, de acordo com a vontade de determinada parte do processo em curso. Traduzin-do-se em atividade judiciária do legislativo pouco recomendada.

Foi quando o código de Napoleão, em seu artigo 4, substituiu o recurso ao legislativo. Pois punia o Juiz que se recusasse a julgar sob pretexto de obscuridade, silêncio ou insuficiên-cia da Lei. Obrigava-o a Julgar, mesmo com essas eventuais dificuldades que a Lei apresen-tasse.

No Discurso preliminar do código napoleônico, Portalis, argumenta que, mesmo impli-cando em possível ofensa ao princípio de separação dos poderes, razões militam em favor do instituto do artigo 4.

Portalis, admitia, por exemplo, que na falta de uma lei que justifique a condenação, o Juiz deve absolver o réu (nulla poena sine lege). Mas jamais poderia ser assim em matéria civil. Para isso deveria valer os costumes, a reiteração de entendimentos num mesmo sentido sobre determinado assunto controverso. Tudo isso deveria ter força de lei.

O único recurso mantido no código de Napoleão foi o denominado recurso de caráter especial, instituído pela lei que criou o tribunal de cassação. Que em seu artigo 21 dizia: se uma decisão tiver sido cassada duas vezes, e um tribunal tiver julgado em última instância também cassando a mesma decisão, a questão somente poderá ser apresentada no tribunal de cassação se tiver sido submetida ao corpo legislativo. Que proferirá um decreto declaratório da lei. O qual, se sancionado pelo Rei, o tribunal de cassação terá decidir conforme essa declara-ção (PERELMAN, 2000, p. 25).

Abolido tanto na França quanto na Bélgica, em 1837 e 1932, o recurso especial, o ter-ceiro tribunal, suscitado após duas cassações, passou a obrigar-se a submeter a decisão à Corte de Cassação, tomada em sessão plenária. Solução que consagra a independência do judiciário em relação ao legislativo, quanto à aplicação da lei ao caso concreto.

O Tratado de Roma, em seu artigo 177, prevê a figura do recurso à interpretação au-têntica, quando atribuiu à Corte de Justiça das Comunidades Europeias as interpretações do Tratado. Não como uma desconfiança do Legislativo ao que podem decidir o Judiciário, mas no sentido de permitir uma uniformização interpretativa ao Tratado de Roma na Europa.

Assim, o estudo da lógica jurídica implica no estudo anterior da evolução histórica re-

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Capítulo 2

cente do pensamento jurídico desde o início do século XIX.

5. DO SISTEMA DE ESCOLHA DAS PENAS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

O sistema jurídico atualmente vigente no Brasil para a escolha das consequências da decisão jurídica penal condenatória estão previstas no Código Penal Brasileiro.

Diz o artigo 59, do Código Penal que:

juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à per-sonalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: as pe-nas aplicáveis dentre as cominadas; A quantidade de pena aplicável, den-tro dos limites previstos; O regime inicial de cumprimento da pena privati-va de liberdade; A substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

Como visto, seja para escolher a pena, ou para determinar o quantum de tempo de privação de liberdade ao qual será submetido o réu condenado, os critérios são excessivamente subjetivos, permitindo ao Magistrado um espectro de argumentação e de controvérsia muito grande quando da tomada da decisão.

Assim sendo, partindo das reflexões de tratadas, as decisões penais no Brasil podem ser tidas como decisões judiciais tomadas sob uma lógica absolutamente subjetivas. Permitindo ao Juiz, de modo pessoal, atribuir a um determinado condenado uma pena e a outro condenado por crime de mesma espécie ou de mesmas consequências para a sociedade, penas absolu-tamente distintas. Sem que ninguém possa contestar, sob as mesmas regras, o porquê de sua decisão haver ocorrido de modo distinto se o caso foi exatamente o mesmo.

Estabelecida a pena privativa de liberdade como a única aplicável ao caso eventual-mente sob análise, a escolha do regime inicial de cumprimento dessa pena, no Brasil, ainda repousa em mais um excessivamente amplo espectro de discricionariedade. Que a nosso ver coloca em cheque a promessa de segurança forjada com o sangue dos revolucionários do sé-culo XVIII.

É que embora pareça objetivo, impessoal dizer que as penas privativas de liberdade seja cumprida inicialmente nos regimes fechado quando a condenação não for menor ou igual a oito anos de reclusão; inicialmente no regime semi-aberto, quando não supere oito anos, quando for maior que quatro anos de reclusão ou detenção; e no regime aberto quando não ultrapassar os quatro anos de reclusão ou detenção. Bastando que seja o condenado primário. Poderá ainda o juiz valer-se, para fixação do regime inicial de cumprimento, das mesmas re-gras subjetivas do mesmo artigo 59, já descrito. Cuja medida de subjetividade deixa nas mãos do magistrado uma excessiva liberdade.

Mais adiante, ao tratar dos critérios de substituição das penas privativas de liberdade pelas restritivas de direito, já denominadas de penas alternativas, o mesmo diploma legal nor-mativo brasileiro diz que deve o tempo de privação de liberdade não ser maior que quatro anos de detenção ou reclusão, ainda ser o réu condenado não reincidente em crime doloso. Até aqui apenas critérios objetivos e impessoais. Ocorre que em inciso do mesmo artigo 44, do Código Penal o Legislador novamente liberta o julgador para decidir conforme seu entendimento pes-soal sobre o caso. Afinal diz a Lei que deverá o Juiz considerar ainda, para a substituição “a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente”.

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Capítulo 2

Não bastasse esse exemplo de excessiva discricionariedade Judicial, porém em sentido contrário, mesmo a reincidência em crime doloso, inicialmente vedando a substituição, em parágrafo posterior, mas do mesmo artigo 44, diz o legislador que o magistrado ainda poderá substituir a pena privativa de liberdade, se entender ser o mais recomendável ao reincidente em crime doloso, exceto se esta reincidência tenha se dado no mesmo crime.

São as aparentes excessivas hipóteses de exceção à impessoalidade e objetividade das decisões judiciais que, entendemos relativizar a segurança jurídica prometida pelo princípio da legalidade penal.

6. CONCLUSÕES

O princípio da legalidade penal promete ao jurisdicionado criminal, dentre outros des-dobramentos, que a norma que determina uma conduta humana como criminosa seja assim cunhada em momento anterior ao cometimento do crime. Sob pena de a conduta ser consi-derada jurídica.

Além dessa promessa, está contida na segurança jurídica movida pelo mesmo princípio da legalidade, que a pessoa processada e, especialmente a condenada, tenha a exata certeza de como se dará seu julgamento (processo – embora a aplicação da lei processual penal se distinga da penal material quanto tempo de aplicação) e, notadamente, como se dará a sua condenação. Quais os critérios que serão utilizados para a repreensão à sua conduta. Não sendo, pois, seguro ter um sistema no qual, embora se paute na legalidade, na promessa de vedação dos tribunais de exceção, seja permitido, no instante de aplicação da pena, da escolha do regime inicial de cumprimento, ou mesmo no momento da sua substituição por uma pena alternativa à falida pena privativa de liberdade, aos juízes determinar o regime prisional de início de cumprimento ou mesmo a substituição ou não da pena. leia-se, aplicação ou não da privação da liberdade.

Embora o Direito Penal tenha evoluído para o Direito Penal da dignidade humana, abolindo-se as práticas medievais das ordálias e congêneres, permanece nas mãos de uma pessoa, por ocasião de uma decisão pautada nos elementos de convicção íntimos e pessoais muitas, muitas vezes pouco democráticos ou republicanos, os verdadeiros motivos que levam o Estado juiz a decidir por esta ou aquela consequência penal.

É o que Alessandro Nepomuceno refere-se em sua obra como criminalização secundá-ria do judiciário (NEPOMUCENO, 2004).

As críticas ao sistema penal que seleciona de modo pessoal e racista quais os que vão cumprir as penas privativas de liberdade são bastante presentes na criminologia crítica, tanto dos europeus, como Zygmunt Balman, Ferrajoli, quanto dos latino americanos, nas letras de autores como Raúl Zaffaroni e sua escola criminológica argentina.

Embora essa liberdade sirva também para os que servem ao abolicionismo penal, há também crítica a esta liberdade. Assim, a crítica não é somente a decisão que, embora funda-menta na norma penal vigente, aplique penas diferentes conforme a ocasião ou, pior, confor-me seja o réu.

O que fazer então para manter a decisão penal, especialmente a condenatória, adstrita à uma legalidade que impeça ao julgador qualquer espaço de discricionariedade ou personali-zação da decisão judicial, é a pergunta que não encontrou resposta.

Se na própria teoria do Direito como integridade, o próprio Ronald Dworkin, que de-senvolve as teorias de Perelman sobre a lógica de decisão jurídica (PINHO, 2013), aponta a impossibilidade da separação entre direito e moral. O que torna praticamente impossível determinar uma lógica jurídica penal suficientemente formal a ponto de permitir a garantia ao réu do processo penal a certeza da exata consequência do processo penal que lhe aflige o Estado Penal.

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Capítulo 2

Vale o registro que o objeto do questionamento aqui proposto não é a liberdade de convencimento do magistrado no instante de formar seu convencimento apenas quanto à autoria ou não do crime. Mas tratamos apenas dos critérios excessivamente subjetivos – nosso ver – de, primeiro, aplicação do quantidade de pena privativa de liberdade; segundo, da esco-lha do regime prisional de início de cumprimento da pena; e, por fim, da substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. Este último implicando relevantemente na escolha pela aplicação ou não da privação de liberdade de alguém. E de como essa escolha é livre, subjetiva.

Este é um tema de difícil enfrentamento, haja vista as causas sócio econômicas dessa lógica do sistema punitivo ocidental. Ao qual, inclusive, alguns países do oriente, europeu ou não, têm aderido, como no caso da Rússia e da China capitalista. Que na mão de obra carce-rária depositam relevante percentual de sua economia (NILS CHRISTIE, 1998).

REFERÊNCIAS

BRASIL.Código Penal Brasileiro, Decreto-Lei número 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm

CHRISTIE, Nils.A indústria do Controle do Crime a caminho dos gulags em estilo ocidental. São Paulo: Forense, 1998.

NEPOMUCENO,Alessandro.Além da lei – a face obscura da sentença penal. Rio de Janeiro: REVAN, 2004.

PERELMAN,Chaïm.Lógica Jurídica, nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

PINHO, Ana Cláudia Bastos de.Para além do garantismo penal: uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal. Porto Alegre: Livraria do advogado Editora, 2013.

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O JUSTO, O BEM E A POLÍTICA NAS PERSPECTIVAS LIBERAIS E COMUNITARISTAS

Capítulo 3

Renata Santa Cruz Coelho1

1. INTRODUÇÃO

O conflito filosófico existente entre as perspectivas liberais e comunitaristas não pode ser compreendido de forma acabada na realidade política e, portanto, não devemos acreditar que exista uma única postura liberal e um único modo de pensar comunitarista. É importante fazermos essa ressalva, para não incorrermos no erro de acreditar que há em cada uma dessas perspectivas teóricas, um único conjunto de princípios a serem aplicados no campo político.

No que se refere à perspectiva liberal existem princípios e ideias que se unem e se desenvolvem no pensamento de Locke, Kant e Rawls, mas há também diferenças conceituais, que nos levam a poder falar de um liberalismo radical, que desenvolve e teoriza mais sobre a questão da individualidade frente ao Estado, ou de um liberalismo moderado, que seria mais aberto aos fatores sociais e culturais da cena política.

No debate liberal moderno podemos identificar dois legados existentes no ideário libe-ral, herdeiro da filosofia hobbesiana, que defende a ideia de que a função do Estado encontra-se apenas na ação de assegurar a dinâmica de coexistência do indivíduo com o outro dentro de uma sociedade contratualista. A outra escola liberal é herdeira da filosofia de Kant e en-xerga uma função moral para o Estado, defendendo a ideia de garantir para cada indivíduo a liberdade de escolha, cada indivíduo elegerá sua concepção do que seja vida boa e o Estado é o instrumento que garante essa liberdade de escolha.

Em oposição ao pensamento liberal, encontramos os ensinamentos de Aristóteles, São Tomás de Aquino, MacIntyre e Walzer, em que a característica central que pode ser compreen-dida na perspectiva comunitarista é a ideia de que o todo viria antes das partes, o indivíduo é considerado parte integrante de uma comunidade política.

Na visão comunitarista a vida política da comunidade está intimamente ligada à coope-ração social, ligada ao indivíduo, este possui deveres éticos para com a comunidade, esta por sua vez está organizada com base na ideia de bem comum. Esse é, precisamente, o princípio geral de distinção entre comunitaristas e liberais: a ideia de bem comum como fator organiza-cional da comunidade.

Este artigo pretende debater as perspectivas liberais e comunitaristas que ocupa há décadas o espaço privilegiado nas discussões da filosofia política contemporânea.

2. O JUSTO E O BEM NAS PERSPECTIVAS LIBERAIS E COMUNITARISTAS

O valor dado aos conceitos de bem e de justo, na oposição existente entre as perspec-tivas liberais e comunitaristas, é o tema definidor das duas visões filosóficas. O local que a ideia de bem e de justo ocupa nas duas teorias é o princípio gerador e construtivo de qualquer

1 Mestranda em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito do Trabalho pela UFPE (2001) e graduada em Direito pela UFRJ (1995).

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Capítulo 3

pensamento filosófico vinculado a elas, seja o pensamento de Rawls ou de Walzer (GALUPPO, 2004).

Assim, um dos temas consensuais no debate entre liberalismo e comunitarismo incide no reconhecimento da importância sustentada pela articulação entre os conceitos de justo e de bem. A afirmação do justo sobre o bem traça a fronteira entre os pensamentos morais anti-gos e modernos.

Os antigos colocavam a questão segundo a qual o bem, que, sendo objeto do nosso de-sejo, nos levaria à melhor forma de vida. Em Aristóteles este bem é entendido como sendo a felicidade, a eudaimonia. Na alma do povo grego estava enraizada profundamente a aspiração a ver coincidir o valor íntimo do homem e a sua situação exterior, e nesta coincidência consis-tiria a felicidade que seria a realização plena do ser do homem, ou seja, de seu bem.2

Como define bem Chantal Mouffe:

Os comunitaristas afirmam que não se pode definir o justo antes do bem, pois só através de nossa participação em uma comunidade, que define o bem, é que podemos ter sentido do justo e uma concepção de justiça. (MOUFFE, 1996).

Enquanto as éticas pré-iluministas tinham como pressuposto o raciocínio que con-siste em deduzir o telos a partir da natureza humana, em contrapartida, as éticas iluministas rejeitaram qualquer perspectiva teleológica da natureza humana ao não aceitarem a ideia do homem como possuidor de uma essência que definisse o seu verdadeiro fim.

Enquanto Aristóteles parte do homem e deduz as virtudes necessárias para atingir um ideal de vida, Kant parte de uma regra racional que estaria dimensionada no indivíduo, com uma ética que está restrita ao conhecimento e possível aplicação de leis a priori do pensa-mento, que teriam a função de fundamentar o comportamento moral do sujeito, ou seja, Kant construiu sua filosofia política a partir da ideia de uma regra racional.

Em síntese, historicamente, a gênese do pensamento político liberal, se deu através das rupturas com o pensamento pré-iluminista, passando a defender uma visão política deon-tológica, ou seja, de prioridade do justo sobre o bem. O liberalismo se constitui por críticas e oposição ao comunitarismo. Se por um lado a perspectiva comunitarista se desenvolve a partir do pensamento de Aristóteles, o liberalismo é herdeiro do pensamento de Locke, Kant e Dwor-kin, e no plano econômico, de Adam Smith.

O comunitarismo tem sua origem no final do século XX, em meados da década de 80, incluso em um cenário pós Guerra Fria. Surge da necessidade de confrontar o liberalismo, tendo como principal vertente a crença nas comunidades como base de sustentação para um mundo melhor, em detrimento do individualismo proposto pela ideologia liberal. Desse modo, a perspectiva comunitarista centra seus interesses nas comunidades, criticando a tese liberal que prioriza os direitos individuais (GALUPPO, 2004).

Uma das principais divergências dos comunitaristas para com os liberais seria a tese de que os seres humanos não seriam indivíduos isolados, independentes de relações e influências sociais. Ao contrário, os indivíduos seriam membros de comunidades nas quais aprendem e partilham valores éticos e identidade.

Neste sentido, observa o comunitarista Alasdair MacIntyre que as particularidades constituem os pontos de partida para qualquer valoração pessoal acerca do bem. Nas palavras

2 JAPIASSÚ, H; MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia, 2006. Eudaimonia: doutrina moral segundo a qual o fim das ações humanas (individuais ou coletivas) consiste na busca da felicidade através do exercício da virtude, a única a nos conduzir ao soberano bem, por conseguinte, à felicidade. É essa identificação do sobe-rano bem com a felicidade que faz da moral de Aristóteles um eudemonismo.

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Capítulo 3

do autor:

Nasci com um passado; e tentar me isolar desse passado, à maneira indi-vidualista, é deformar meus relacionamentos presentes. A posse de uma identidade histórica e a posse de uma identidade social coincidem. Vale notar que a rebelião contra minha identidade é sempre um modo possível de expressá-la. Repare-se também que o fato ter de procurar sua identida-de moral de comunidades como a da família, do bairro, da cidade e datribo não implica que o eu tenha de aceitar as limitações morais da particula-ridade dessas formas de comunidade. Sem essas particularidades morais como ponto de partida, não haveria nunca um ponto de partida; mas é a partir de tal particularidade que consiste a procura do bem, do universal. Não obstante, a particularidade não pode nunca ser simplesmente aban-donada ou esquecida [...] Logo, o que sou é, fundamentalmente, o que herdei, um passado específico que está presente até certo ponto no meu presente. Descubro que faço parte de umahistória e isso é o mesmo que dizer, em geral, quer eu goste ou não, quer eu reconheça ou não, que sou dos portadores de uma tradição (MACINTYRE, 2001).

Para os comunitaristas, em sua concepção de justiça, o que importa é o fim, o bem, e não os meios para atingir esse fim. Se existe determinada lei em uma comunidade, essa lei seria tida como meio para atingir um fim. Essa lei só seria realmente justa se a finalidade que ela protege, for justa, ou seja, a justiça seria o fim, pois ela é o próprio bem, e todos os meios destinados a atingir a justiça seriam válidos. Portanto, a justiça comunitarista seria aquela voltada para o bem comum da comunidade política.

Com o advento das ideias liberais em Locke e Kant, mas também em Descartes, há uma inversão deontológica, ocorre a visão de primazia do justo sobre o bem, começa a se com-preender que o justo não pode derivar-sede qualquer concepção particular do que seja o bem, como diz Chantal Mouffe:

Para os liberais de influência kantiana como Rawls, a propriedade do justo sobre o bem significa não só que não se pode sacrificar os direitos indivi-duais em nome do bem-estar geral, mas também que os princípios da justiça não podem ser derivados de uma concepção particular do que seja uma vida boa. Este é o princípio do liberalismo, segundo o qual não pode existir uma só concepção da eudaimonia, do bem-estar, que possa impor-se sobre as demais, mas que cada um deve ter a possibilidade de buscar a sua própria felicidade como queira, colocar para si mesmo seus próprios objetivos e tratar de realizá-los de seu jeito (MOUFFE, 1998).

O liberalismo com sua forte noção e defesa do indivíduo não abre espaço para uma só concepção de felicidade e, conseqüentemente, de bem social. A ideia liberal deontológica é a de que os princípios de justiça não podem ser escolhidos em uma sociedade tendo-se como base uma concepção específica do bem, a ideia é justamente o contrário dessa noção, pois ao se escolher princípios de justiça específicos há uma consequente escolha entre diferentes concepções de bem.

Segundo os liberais, as normas e os princípios asseguradores dos direitos fundamentais devem ser interpretados como ordens a serem cumpridas e não como preferências comparti-lhadas. A interpretação da constituição estaria apoiada na concepção deontológica das normas e princípios jurídicos.

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Capítulo 3Tendo presente essa contextualização, importa realçar que, na articulação entre os

conceitos de justo e de bem, se tornou comum afirmar que os liberais defendem a prioridade do justo sobre o bem, posição deontológica, e que os comunitaristas defendem a prioridade do bem sobre o justo, posição teleológica.

3. A POLÍTICA NAS PERSPECTIVAS LIBERAL, COMUNITARISTA E PROCEDIMENTALISTA

Rawls, principal expoente da perspectiva liberal, publicou em 1993 uma obra intitulada “O Liberalismo Político”, cujo objetivo fundamental foi buscar um consenso do que é o justo, independente da moral, ética, diante da variedade de doutrinas imersas na sociedade. Como as pessoas divergem em suas opiniões e pensamentos, Rawls buscou formular uma teoria que pudesse equacionar de alguma forma esses anseios. Ele propôs que uma concepção política de justiça deve ser compartilhada por todos os cidadãos livres e iguais, independentemente de suas convicções religiosas e morais. A política é uma importante instituição social, através da qual os indivíduos irão proteger os interesses que tem em comum, em uma visão que invoca o contratualismo. Rawls propõe que depois de escolhida uma concepção de justiça, necessita-se escolher a constituição, um sistema de produção de leis que seja consenso ou apoiado pela maioria da população. A política para Rawls possui um caráter mais funcionalista do que moral e ético (RAWLS, 2000).

Os comunitaristas, por outro lado, buscam uma remoralização da política. Não aceitam que a política seja tão somente uma perseguição racional de interesses próprios, passível de ser avaliada em critérios de eficácia. Valorizam o aspecto moral da política, a busca de um bem comum, interesses da comunidade como um corpo unificado. Criticam a forma contratualista que Rawls compreende a política, chamando-a de idealizada.

O pensamento de Rawls, expresso em sua “Teoria de Justiça”, enquadra a justiça numa teoria deontológica e evoca a primazia do justo sobre o bem com o propósito de viabilizar a igualdade e a liberdade em termos factuais e em termos jurídicos. Ele propõe uma fundamen-tação construtivista dos princípios de justiça, retomando a tradição do contrato social e do direito racional moderno ((RAWLS, 1997).

A crítica do comunitarista Sandel consiste em apresentar razões que mostrem que o indivíduo está sempre situado no interior de uma eticidade concreta, da qual forma sua identidade e seus planos de vida. Portanto, o que a justiça deveria proteger não é um conceito abstrato de pessoa, mas a pessoa concreta. O sujeito deve ser apreendido como um sujeito socializado comunicativamente, que forma sua identidade nas estruturas intersubjetivas de conhecimento mútuo. Ele não escolhe solitariamente seus objetivos de vida, mas os busca e descobre-os na interação social com os demais sujeitos. Se assim o compreendermos, então a relação liberal entre os direitos individuais fundamentais e a ideia do bem comum da comu-nidade deve ser invertida, pois para obter uma compreensão apropriada de si mesmo, livre de constrangimentos, a realização da liberdade do indivíduo exige o pressuposto de pertencer a uma comunidade de valores intactos na qual pode certificar-se da solidariedade e do reconhe-cimento dos outros (SANDEL, 1998).

Charles Taylor, um dos principais nomes do comunitarismo, trouxe uma enorme con-tribuição para este tema, através da sua política da diferença. Para ele, as teorias liberais estão fundamentadas em uma política universalista de igual dignidade, que determina que uma sociedade democrática deve tratar seus cidadãos de forma equânime, o que ocorre através do respeito absoluto aos direitos fundamentais dos indivíduos. A dignidade estaria justamente no respeito absoluto aos direitos individuais. 3

3 Charles Taylor defende a idéia de que toda teoria que estabelece a prioridade do justo em relação ao bem, encontra-se fundamentada em uma concepção de bem, pois o que estabelece a obrigatoriedade de estabelecer certos procedimentos é uma certa compreensão da vida humana em uma doutrina an-

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Capítulo 3

Taylor não discorda da relevância de tal política, afirmando que a política da igual dignidade é uma grande conquista da humanidade. Entretanto, ele ressalta que a dignidade de um indivíduo também deve ser respeitada através do reconhecimento de sua identidade única, que lhe dá singularidade e o diferencia dos demais indivíduos. É o que ele chama de política de reconhecimento da diferença. Nesse caso, a aplicação de alguns direitos fundamen-tais poderia ser restringida, em função de objetivos coletivos ou políticas governamentais que garantissem a sobrevivência cultural, singular, de algum grupo ou indivíduo.4

Pretendendo ser uma terceira via alternativa aos liberais e comunitaristas, Jürgen Ha-bermas, principal nome da perspectiva procedimentalista, também chamada de crítico-deli-berativa, apresenta uma teoria que pretende ser uma via alternativa tanto às teorias liberais quanto às comunitaristas. Esta terceira via estaria ancorada no fato de que a sociedade mo-derna não pode dispor nem das concepções individuais sobre a vida digna, nem das diversas formas culturais existentes e, por este motivo, uma teoria de justiça social deve conciliar estas duas formas distintas de pluralismo. Essa conciliação se torna possível a partir do momento em que a escolha dos princípios não se vincula exclusivamente ao egocentrismo da teoria libe-ral ou ao etnocentrismo da teoria comunitarista (HABERMAS, 1998).

Com efeito, para Habermas, o problema dessas duas correntes é que elas estão fun-damentadas em um conceito de ética que privilegia apenas os próprios interesses, seja o in-teresse individual das teorias liberais, subjetividade, seja o interesse comunitário das teorias comunitaristas, intra-subjetividade.

Habermas entende que a escolha de princípios morais, que atendam aos interesses dos indivíduos, e que ao mesmo tempo respeite também os valores e tradições de um mundo pluralista, será possível através do diálogo, do discurso e do entendimento, ou seja, através de um processo de inter-relação entre o indivíduo e a comunidade, intersubjetividade. Assim, o conceito de ética que fundamenta esta teoria não visa aos próprios interesses, mas sim a uma forma de entendimento, alcançado especificamente através do diálogo e da comunicação. Não é à toa, portanto, que a teoria habermasiana é também chamada de Teoria da Ação Comuni-cativa, fundamentada em uma ética do discurso.

Diante de um cenário de grandes mudanças mundiais, a discussão política tem sido uma das grandes vedetes do momento, ao contrário do que alguns intelectuais imaginaram, o político e a história não encontraram seu fim. As questões políticas passaram a fazer eco den-tro de todos os grupos sociais, e não somente elas, mas também as reflexões éticas invadiram o nosso cotidiano.

Neste sentido, a política, a ética e o Direito ressuscitaram questões tão fundamentais para a humanidade como estas: É possível a vida em comunidade? Como pensar a participa-ção social dos indivíduos? Com a construção de uma comunidade política? Como garantir o aprofundamento da igualdade sem ameaças às liberdades individuais? Como combater o individualismo crescente? Como aprofundar os valores democráticos?

Assim como a relação entre indivíduos e coletividade, o político também pode ser defi-nido por diferentes abordagens. As duas das mais importantes concepções sobre o político são as perspectivas liberais e comunitaristas. Uma buscando defender a liberdade individual sobre a noção de legitimidade coletiva do bem comum e a outra, respectivamente, apontando os perigos do acirramento individual em um individualismo excêntrico e a importância de uma

tropológica e, sendo assim, em uma concepção específica de bem (Taylor, 1994).

4 Há que se distinguir, por um lado, as liberdades fundamentais, aquelas que nunca devem ser violadas e que, por isso, devem ser consolidadas de modo inexpugnável, dos privilégios e imunidades, por outro lado, que são importantes, mas que podem ser anulados ou limitados por razões de política pública - embora fosse necessário haver uma razão forte para o fazer. (TAYLOR, Charles. (1994). “The Politics of Recognition” in: Multiculturalism. Princeton: Princeton University Press).

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Capítulo 3

definição de bem comum coletivo como parâmetro único para as posições individuais e para a vida institucional democrática.

Este tem sido um dos principais debates junto a filosofia política moderna e ele está centrado, sobretudo, em comparar os dois sistemas políticos e filosóficos para uma melhor compreensão dos problemas mundiais atuais no ocidente.

Chantal Mouffe, filósofa comunitarista, tem desenvolvido uma concepção do político que está, criticamente, baseada na abordagem amigo/inimigo de Carl Schmitt. A autora tem se preocupado com uma concepção que não mantenha nenhuma essencialidade e que repre-sente a pluralidade e a diversidade das relações antagônicas nas sociedades modernas e, para tal, considera que devemos pensar uma concepção com e contra Schmitt, no sentido de que, através de uma visão crítica à abordagem amigo/inimigo de Schmitt, poderíamos construir uma concepção que, ao menos, não elimine os conflitos relativos às relações de opressão e a pluralidade característica do projeto moderno de democracia. Desta forma, a autora busca retomar as críticas de Schmitt ao pensamento liberal, porém refuta o que em Schmitt parece ser, de fato, a principal hostilidade entre os grupos sociais, a qual não tem limites para sua expressão. Assim, Mouffe expõe que, pensar com Schmitt também é pensar contra ele, já que, para a filósofa, a relação amigo/inimigo, em sua denominação amigo/adversário, estaria sem-pre limitada pelos valores da liberdade e da igualdade (MOUFFE, 1996).

Assim com Mouffe, em sua releitura de Schmitt, através da concepção amigo/adversá-rio, a qual coloca a relação antagônica como fundante da natureza do político, que podemos aprofundar estas questões, pois a autora não abraça de maneira incondicional a postura de Schmitt, pelo contrário, propõe pensar com e contra ele. De maneira que o político, para a autora, pode ser pensado como um espaço onde conflitos e antagonismos buscam realizar-se, tendo como conseqüência a impossibilidade do consenso e, neste sentido, Mouffe se alinha à Schmitt, considerando que o político é uma contraditória combinação de princípios irreconci-liáveis. Porém, ao se alinhar, ela o redimensiona enfatizando dois aspectos que são fundamen-tais para a compreensão desta expansão das fronteiras do político, onde sempre há a exclusão: a lógica da identidade e a lógica da diferença, que buscam construir suturas uma à outra.

Para Mouffe, a expansão do político sobre esferas da vida social é a possibilidade de radicalização da democracia, dada tanto pelo reconhecimento do princípio de equivalência, portanto do reconhecimento da igualdade entre os grupos sociais, como do princípio da dife-rença, ou seja, o reconhecimento de que particularidades podem revelar formas múltiplas de opressões.

Esta concepção de político recoloca uma especificidade desta esfera fundamental: a fronteira política, a qual permite que uma relação de subordinação seja reconhecida como historicamente determinada, portanto, que seja vivida como opressão e não mais como natu-ralização da vida social, já que agora, no político, pode ser reivindicado o direito à equivalência, portanto, ao fim das relações de opressão. Neste sentido, o campo do político configura-se pela relação entre um coletivo que se constitui como um nós, identidade coletiva, versus eles, ex-teriorização da identidade coletiva. Importante ressaltar que, é a radicalidade dos princípios de liberdade e igualdade, típicos do discurso da democracia, que pode nos ajudar a pensar na relação nós versus eles como relações baseadas na lógica da equivalência e da diferença (MOUFFE, 1996).

Assim, estas relações antagônicas para colocarem-se como antagonismos políticos, de-vem ser entendidas a partir não somente da reivindicação pela equivalência, mas sobretudo pela reivindicação da diferença, já que, desta forma, a tentativa de se instalar um discurso sobre a identidade, nós, é dada pela possibilidade do reconhecimento do discurso da identi-dade, eles, como um constitutivo externo ao próprio nós. A possibilidade deste coletivo nós está sustentada na diferenciação de um eles, ou seja, na esfera do político, o consenso é tão precário quanto a relação de exclusão, em outras palavras, o consenso está sempre sendo dado

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Capítulo 3

sob algum nível de exclusão, formando-se assim enquanto um consentimento possível, o que implica em um processo articulatório.

4. CONCLUSÃO

O debate atual a propósito do justo e do bem e a política consiste em questionar se este deslocamento do interesse filosófico do bem para o justo foi um progresso ou não. Os liberais optam unanimemente em favor do progresso; já a maior parte dos comunitaristas tem uma atitude muito crítica em relação a essa deslocação em direção ao justo.

Para os comunitaristas, a teoria política do liberalismo criaria um indivíduo livre de preocupações sociais, um cidadão privatista que deixaria a questão do bem comum a encargo somente do Estado. Assim, o comunitarismo propõe uma cidadania que deve ser entendida como aquela constituída pela ética das virtudes, voltada para a construção de uma comunidade política, determinada pelos mesmos valores éticos culturais, onde todos terão suas identidades vinculadas. A comunidade política seria aquela em que os cidadãos devem estar integrados eticamente e culturalmente e, por possuírem os mesmos valores e as mesmas virtudes, agiriam orientados para o bem comum, constituindo mais verdadeiramente a devida democracia, e por conseguinte, a efetiva justiça.

Não obstante divergências conceituais e práticas acentuem os debates entre as três perspectivas político-filosóficas, liberal, comunitarista e procedimentalista, todas concordam na adoção de uma sociedade politicamente organizada e comprometida com os valores demo-cráticos, tais como a liberdade, a igualdade e a participação popular.

Tais valores democráticos são trazidos por Chantal Mouffe como exemplo da introdu-ção ao conceito de pluralismo combativo, elemento este que para ela é indissociável à concre-tização democrática e que altera a base de racionalidade da democracia liberal classicamente estabelecida.

Postula-se, assim, uma avaliação da política que não se detém na mera análise racio-nalista proveniente de uma lógica de indivíduos. Pelo contrário, na esteira da Democracia Radical, os componentes políticos são situados como um jogo de interesses e de paixões, cujas identidades políticas também se constituem a partir de inter-relações coletivas.

Sob esta perspectiva, se o intuito político é a salvaguarda do ambiente democrático, como melhor forma de prezar pelo binômio da liberdade e da igualdade, faz-se preciso conce-ber o jogo político-democrático como algo a ser construído, como um contínuo porvir, como um espaço de indeterminação na sua própria essência.

Para a democracia radical cumpre estabelecer um consenso quanto às regras do jogo capazes de conferir às diferentes identidades coletivas, pactuadas em torno de posições clara-mente diferenciadas, de modo que possam escolher no âmbito político entre alternativas reais e possíveis. Neste sentido Chantal Mouffe ressalta que a democracia deve conceber o opositor não como um inimigo a destruir, mas um adversário cuja existência é legítima e tem de ser tolerada.

Assim, o debate entre liberais e comunitaristas pode ser visto como o principal capital simbólico da democracia. A discussão política é a melhor forma de perceber fenômenos reais, de propor novas soluções e alternativas para uma democracia contemporânea, capaz de pro-porcionar um equilíbrio entre os comunitaristas e liberais. Sempre respeitando a contextuali-zação histórico-social do indivíduo e adotando princípios de universalização que permitam a convivência entre pessoas diferentes.

REFERÊNCIAS

GALUPPO, Marcelo Campos (2004). “Comunitarismo e Liberalismo na Fundamentação do

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Capítulo 3

Estado e o Problema da Tolerância” in: Crise e Desafios da Constituição – Perspectivas Críticas da Teoria e das Práticas Constitucionais Brasileiras. SAMPAIO, José Adércio Leite (org.). Belo Horizonte: Del Rey.

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WOLFF, Robert P. (1989) A Miséria do Liberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

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O DEBATE SOBRE O PAPEL DA MULHER NO CENÁRIO DA POLITICA CON-TEMPORÂNEA SOB A PERSPECTIVA DE CHANTAL MOUFFE

Capítulo 4

Pedro Luciano da Silva Neto1

1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo debater os aspectos de cidadania e democracia, bem como a participação das mulheres na política contemporânea.

Neste ensaio pretende-se trabalhar a noção de cidadania nesse ambiente político con-temporâneo, seguindo a linha de debate empreendida pela autora, declaradamente feminista, e secundariamente, outras militantes da causa, as quais contribuíram muito com seus estudos e suas definições acerca do tema proposto.

Será utilizado, para isso, principalmente, o trabalho realizado pela autora Chantal Mouffe, na busca de uma resposta para a participação efetiva da mulher nesse cenário da po-lítica contemporânea amplamente machista.

Chantal Mouffe, filósofa política contemporânea, apresenta-se diante deste vivo debate analisando os vários posicionamentos defendidos por outras importantes feministas, apresen-tando ideias e contrapontos que por vezes convergem com suas debatedoras, mas em outros momentos, apresenta pontos frágeis e incoerentes de suas opositoras com sua ousadia e fir-meza que lhe são peculiares.

Mouffe define cidadania e o cidadão de acordo com sua formulação de uma democra-cia radical, que seria uma democracia com todas as conquistas liberais para o indivíduo, o que dentro de sua perspectiva ela chama de identidade.

Assim, Mouffe define democracia radical:

Mas a democracia radical precisa também de uma ideia de liberdade que transcenda o falso dilema entre a liberdade dos antigos e dos modernos e nos permita pensar em conjunto a liberdade individual e a liberdade política. Nessa questão, a democracia radical partilha as preocupações de vários autores que pretendem redimir a tradição do republicanismo cívico (MOUFFE, 1996).

2. DEMOCRACIA RADICAL, CIDADANIA E FEMINISMO

A comunidade feminista anglo-americana tem se debruçado sobre dois importantes temas, quais sejam, o essencialismo e o pós-modernismo, uma vez que, tais correntes influen-ciaram de forma bastante incisiva a participação da mulher na política durante todo o século

1 Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Pós-graduado em Direito Pre-videnciário pela Universidade Anhenguera – UNIDERP (2012). Graduado em Direito pelo Centro de Ensino Superior de Maceió – CESMAC (2010).

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Capítulo 4

XX e nortearam a discussão por se tratarem de correntes filosóficas opostas e de relevante ex-pressão nos estudos sobre política, humanismo, racionalismo, religião entre outros.

É importante ressaltar que apesar dos pós-modernistas serem os maiores opositores dos essencialistas, algumas feministas simpatizantes da corrente pós-modernista têm se tor-nado defensoras do essencialismo, o que não significa que elas tenham mudado de opinião ou mesmo de corrente, mas que passaram a enxergar os fundamentos de tal corrente sob uma outra perspectiva, sem abandonar, contudo, as características do pensamento iluminista.

Sobre tais considerações afirma Chantal Mouffe:

Penso que, a fim de esclarecer as questões em jogo nesta discussão, é ne-cessário reconhecer que não existe nenhum pós-modernismo entendido como uma abordagem teórica coerente e que a freqüente mistura entre o pós-estruturalismo e o pós-modernismo só pode criar confusão (MOUF-FE, 1993, p.101).

Vale dizer que esse julgamento feito pelo racionalismo, pelo humanismo e pelo uni-versalismo veio de variados segmentos, não se limitando aos autores do pós-modernismo ou mesmo do pós-estruturalismo.

Vários foram os autores que destinaram a criticar por meio de seus estudos e pesquisas as ideias de uma natureza humana universal, entre eles, Heidegger e Lacan.

Portanto, podemos afirmar que o pós-estruturalismo não pode ser um alvo isolado, uma vez que, o pós-modernismo se dedicou a analisar e julgar não só o universalismo e o ra-cionalismo, mas sim todas as correntes filosóficas do século XX.

Não se pode incluir nesse rol de criticas autores como Lacan, Derrida e Foucault, uma vez que, por pós-modernismo entende-se como uma critica bastante especifica aos autores como Lyotard e Baudrillard.

Tais críticas feitas à Lyotard levam a conclusões devastadoras não só ao pós-estrutura-lismo, mas sim a todos os outros autores adeptos da corrente em questão. Desta forma, além de não se chegar a conclusão alguma, por vezes tais afirmações podem ser consideradas falsas e equivocadas.

Após os esclarecimentos feitos ao pós-modernismo e ao pós-estruturalismo, os estudos de Mouffe direcionam-se à questão de essencialismo, mas não com o olhar antigo e já sacra-mentado, mas sim sob uma nova perspectiva, o que se evidencia com a crítica feita por essa corrente aos diversos pensamentos, proporcionando congruência entre os estudos de diversos autores, considerados tão diferentes, e que, agora, possuem pontos de convergência, são eles: Freud, Foucault, Lacan, Gadamer, Dewey, Heidegger, Wittgenstein, Derrida, entre outros.

O que se pode concluir é que as criticas podem assumir diversas formas diferentes, e portanto, não se pode esquivar à analise de cada uma delas sob pena não realizar um estudo completo ou mesmo conclusivo acerca do tema proposto, qual seja, a política feminista.

Diante do exposto, afirma Mouffe:

O meu objetivo neste artigo será mostrar as ideias fundamentais que uma abordagem antiessencialista pode trazer à elaboração de uma política fe-minista, que é igualmente moldada por um projeto democrático radical.O que pretendo defender é que o essencialismo é inelutavelmente deficiente quando se trata da construção de uma alternativa democrática, cujo obje-tivo é a articulação das lutas ligadas a diferentes formas de opressão. Penso que conduz a uma concepção de identidade que se opõe a uma concepção de democracia radical e plural e que não nos permite construir a nova visão de cidadania exigida por tal política (MOUFFE, 1993, p. 102-103).

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Capítulo 4 3. A IDENTIDADE E O FEMINISMO

Os críticos do essencialismo têm praticado com bastante regularidade o abandono à ideia de que o ser é dotado de capacidade racional transparente, tendo, portanto, autonomia para conduzir sua própria conduta.

Sobre isso, tem a psicanálise demonstrado que a personalidade não se organiza em torno de seu próprio ego, mas sim, na capacidade que tem o indivíduo de raciocinar, conforme os diferentes graus de consciência dos seus respectivos agentes. Caindo por terra a ideia de sujeito único e unificado.

Segundo a Teoria Freudiana, a mente do ser humano está necessariamente dividida entra duas formas de se comportar, mas que uma delas jamais poderá ser consciente. Dando segmento aos estudos de Freud, Lacan comprovou o que se chama de pluralidade de registros, são eles: o símbolo, e real e o imaginário, e essa três unidades são responsáveis, segundo La-can, por constituírem a identidade dos seres humanos.

O sujeito nada mais é que o resultado de suas experiências, formando, assim, um du-plo movimento, o de descentralização, no qual há o impedimento de concepção de certos po-sicionamentos não experimentados, e num outro, o resultado de dessa não fixação essencial, com forma antagônica, constituindo o que se chama de pontos nodais, limitando o fluxo do significado sob o significante. Toda essa teoria só faz possível porque não há uma predetermi-nação da fixação, revelando que não há qualquer sujetividade que anteceda as experiências do sujeito agente.

Ainda sobre a mesma crítica Mouffe assim revela:

Na filosofia da linguagem do último Wittgentein também encontramos uma crítica da concepção racionalista do sujeito segundo a qual este últi-mo não pode ser fonte de significados lingüísticos, uma vez que é através da participação em deferentes jogos de linguagem que o mundo nos é reve-lado. Encontramos a mesma ideia na hermenêutica filosófica de Gadamer, na tese de que existe uma unidade fundamental entre o pensamento, a linguagem e o mundo e de que é na linguagem que se constitui o horizonte do nosso presente (MOUFFE, 1993, p. 104).

Há também nos autores anteriormente já mencionados, uma crítica à essencialida-de, isso é claro, em se tratando da metafísica moderna, mas sob esse ponto especificamente, Mouffe revela que não se deteve a aprofundar seus estudos, mas, contudo, ao fazer uma análi-se, ainda que de forma superficial, não pode deixar de perceber que encontro vários pontos de convergência, o que também à leva a afirmar que não tenta afirmar que não há divergências gritantes entre estes estudiosos. Mas se faz imprescindível que, levando em consideração o que quer defender, é necessário que compreenda as conseqüências dessas críticas para o mo-vimento feminista.

É possível observar que, com muita freqüência, a política feminista é resultado da con-tingência e ambigüidade das entidades analisadas. Assim, afirmam as feministas que não se faz possível analisar o movimento político feminista sem que encarem as mulheres, de forma geral, como uma unidade completamente coerente, e que, possam compor segmentos como natureza feminina.

Para tanto, afirma Mouffe:

Ao contrário dessa ideia, defenderei que, para as feministas empenhadas numa política democrática radical, a desconstrução das entidades essen-ciais deve ser vista como condição necessária para uma compreensão ade-quada da diversidade de relações sociais a que os princípios da liberdade e

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Capítulo 4

da igualdade devem aplicar-se (MOUFE, 1993, p. 104).

Para tanto, tem-se que se desligar da ideia de que o sujeito é ao mesmo tempo racional e transparente, e ainda ao mesmo tempo com capacidade de homogeneidade, só assim haverá possibilidade de aprofundar a multiplicidade das relações de subordinação. Sendo assim, será possível constatar que um mesmo indivíduo pode perfeitamente ser subordinado em uma dada relação e dominante em outra. Só então neste momento poderá se conceber o sujeito como indivíduo de posições, jamais fixo, estático, no tempo e no espaço.

Não se pode conceber o ser humano como algo plenamente estático, ou plenamente dinâmico, ao invés disso, precisa-se defender e buscar meios para concluir o ser humano como algo dotado de pluralidade, a depender das várias formas discursivas, em que de fato dentro do campo de concentração dos estudos as fronteiras destas tais relações estejam abertas e fatalmente indeterminadas.

Para se entender a luta feminista é extremamente importante esse tipo de abordagem, a compreensão do impacto dessa discussão dentro de determinado grupo social, reflete o con-flito entre os sexos, o que foi e ainda é refletido com muita clareza nos campo político filosófico.

Chantal Mouffe e Ernesto Laclau na obra Hegemony and Socialist Strategy realizaram um estudo com intuito de abordar o que foi intitulado por eles de democracia radical e plural. Nesse ensaio os autores tentaram defender os objetivos das diferentes classes oprimidas pela democracia machista do século XX, tais como as mulheres, os trabalhadores, os negros, os ho-moafetivos, entre outros. E que nesse ponto específico suas ideias são bastante diferentes das dos não essencialistas, pois consistia numa ideia de política descentralizadora e destotalizado-ra, provocando assim, uma separação na posição da dispersão, assemelhando-se aos autores Lyotard e Foulcault (LACLAU; MOUFFE, 1985).

Vejamos o que afirma Mouffe:

Para nós, o aspecto da articulação é fundamental. Negar a existência de uma ligação prévia e necessária entre as posições de sujeito não significa que não existam constantes esforços no sentido de estabelecer entre elas ligações históricas, contingentes e variáveis. Este tipo de ligação, que es-tabelece entre as várias posições uma relação contingente e não predeter-minada, é aquilo a que chamamos articulação (MOUFFE, 1993, p. 106).

Na política, apesar de não existir ligação entre as diferentes posições de sujeitos, sem-pre há quem discurse de forma a facultar uma articulação a partir de diferentes pontos de vista. É exatamente por isso que tais discursos são tão inconstantes, para que possam ser manipulados conforme o interesse do momento. E é nesse contexto que se pode afirmar que nenhum discurso está definitivamente assegurado, nem identidade social alguma permanen-temente adquirida.

É essa a abordagem aceita pelas feministas, o que revela muito de suas lutas e reivindi-cações políticas. Portanto, há que se indagar como se revela a categoria feminina num discurso diferente? Por que o sexo é motivo de distinção social? Como são construídas tais distinções? E a partir de então o dilema todo o sistema de diferenciação vai por água a baixo, pois já não há mais uma entidade homogênea mulher, muito menos uma entidade homogenia homem, mas sim, uma série infinita de relações sociais em que a classificação homem X mulher deve ser apreciada de forma muito peculiar.

Diante da exposição acima, revela Mouffe:

Perguntar se as mulheres devem tornar-se iguais aos homens a fim de

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Capítulo 4

serem reconhecidas como iguais ou se devem afirmar a sua diferença sa-crificando a igualdade parece uma questão sem sentido, uma vez postas em causa as identidades sociais (MOUFFE, 1993, p.107).

4. A POLÍTICA FEMINISTA E UM NOVO CONCEITO DE CIDADANIA

Diante de tudo que já foi transcrito sobre política, cidadania e democracia, a ideia de uma política feminista precisa ser repensada, revista e reanalisada. Pois, desde o início do movimento feminista, várias estudiosas do tema tem se dedicado à discussão com o intuito de esclarecer qual a contribuição que o feminismo podia ceder a política democrática praticada desde seu nascimento até a tentativa das mulheres na participação de políticas públicas como um todo.

Segundo Chantal Mouffe, muitas vitórias vêm sendo logradas desde então, mas alguns equívocos cometidos precisam ser corrigidos o quanto antes. Passamos agora a analisá-los e buscar alternativas filosóficas e sociais para aparar as várias arestas ainda existentes.

Mouffe sobre o tema descreve que “as feministas liberais têm lutado por uma vasta gama de direitos para as mulheres a fim de as transformarem em cidadãs iguais, mas sem questionarem o modelo liberal dominante de cidadania e de política” (MOUFFE, 1993, p. 107).

Esse conceito foi criado por feministas que acreditavam que as diretrizes do mo-vimento político praticado até então é puramente masculino e que os anseios femininos não possuem pontos de ligação com esse modelo já preestabelecido.

Mouffe, seguindo a autora Carol Gilligan, apresenta duas importantes definições, quais sejam: a ética do cuidado feminista à ética da justiça masculina e liberal, no qual tenta contra-por os valores da mulher e suas experiências com à maternidade, inclusive, é claro, o cuidado com o valores morais no domínio privado da família, em detrimento dos valores individuais liberais.

Sobre este aspecto houve uma tentativa de denunciar o liberalismo por ter empreen-dido à cidadania valores como domínio do público, os quais possuem relação apenas com os valores masculinos, excluindo, por conseguinte, as mulheres, transportando-as ao limbo do domínio privado. Essa ideia tinha a pretensão de fazer surgir nas feministas o sentimento de luta, para que buscassem uma política pública baseada no amor, no cuidado maternal, na amizade e na fraternidade.

Segundo Mouffe:

Uma das tentativas mais esclarecidas de proporcionar uma alternativa à política liberal com base em valores feministas encontra-se em Maternal Thinking e Social Feminism, representados principalmente por Sara Ru-ddick e Jean Bethke Elshtain (RUDDICK, 1989). A política feminista, se-gundo argumentam, deveria privilegiar a identidade das mulheres como mães e o reino privado da família (MOUFFE, 1993, p.108).

Essa ideia tem o condão de dar ao domínio público da política a superioridade da mo-ral familiar empreendida e estabelecida pela mulher. Pois é no seio da família que surgem os laços humanos mais profundos, como a noção companheirismo, fraternidade, amor ao próxi-mo, respeito mútuo, entre outros. Considera que é nos valores da família que se deve buscar a moralidade política para substituir os valores do individualismo liberal praticados até então.

É esse valor de cidadania que deve prevalecer, valores praticados pela mulher, não só como esposa, mas também como mãe.

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Capítulo 4 Pretendem as maternalistas um abandono à política liberal masculina do público em

favor da política feminina do privado, moldadas no amor fraternal, na intimidade e no interes-se concreto pelo outro.

Mouffe ressalta a autora Mary Dietz que critica Elshtain, sob o argumento de que não há qualquer ligação entre o pensamento maternal e a experiência social da maternidade com as políticas democráticas praticadas até então. Deitz afirma ainda que esses valores femininos são apenas uma característica íntima, exclusiva e particular. Já as políticas públicas devem ser dotadas de sentimentos coletivos, inclusivos e com valores generalizados. Por se tratar a de-mocracia de um sentimento de igualdade, e que a relação de amor existente entre mãe e filho não é suficiente para modelar a noção de cidadania (DIETZ, 1985).

Uma outra critica importante, mas também com arestas a serem aparadas, segundo Chantal Mouffe, foi feita por Carole Pateman, que ainda segundo Mouffe, lhe parece ser mais sofisticada, porém ainda muito semelhante à ideia Maternal Thinking, não só por possuir tons de feminismo radical, mas principalmente por expor seus pensamentos fundados no an-tagonismo homem/mulher (PATEMAN, 1989).

Assim leciona Pateman:

A cidadania é uma categoria patriarcal: aquilo que um cidadão é, aquilo que faz e a arena onde atua, tudo foi construído à imagem masculina. Embora, atualmente, nas democracias liberais, as mulheres sejam cida-dãs, a cidadania formal foi conquistada dentro de uma estrutura de poder patriarcal, em que as qualidades e as tarefas das mulheres ainda são des-valorizadas (PATEMAN apud MOUFFE, 1993,p. 109).

E ainda, a exigência para que a mulher enquadre-se no mundo público da cidadania depara-se no que se chama de: dilema de wollstonecraft:

Exigir a igualdade é aceitar a concepção patriarcal de cidadania que impli-ca que as mulheres têm que tornar-se semelhantes aos homens, ao passo que insistir em que seja dada expressão e valorização aos atributos, capa-cidades e atividades distintivos das mulheres como contributo para a cida-dania é exigir o impossível, pois tal diferença é precisamente aquilo que a cidadania patriarcal exclui (MOUFFE, 1993, p.109).

Pateman acredita que para solucionar o problema é necessária uma política de cons-cientização de uma cidadania sexualmente diferenciada, para que valorize a mulher com to-das as suas características femininas, reafirmando que há que se levar em consideração que o homem não é capaz de gerar a vida, ou seja, parir e amamentar. E ainda, que essa conscien-tização deveria constar do conceito de cidadania assim como consta, por exemplo, a ideia de que o homem é capaz de ir à guerra e lutar na defesa de sua nação. Vai mais além quando diz que os extremos de: ou se iguala ou se diferencia homem e mulher, precisa ser superada o quanto antes (PATEMAN, 1989).

Todas as teoria já apresentadas de alguma forma exigem a rejeição de uma concepção unitária, qual seja, a masculina do indivíduo, que abstrai a ideia de privado e público.

O que se deve, na verdade, é almejar uma conscientização para que as mulheres sejam respeitadas civilmente enquanto mulheres, com suas formas e responsabilidades para que tenha uma cidadania ativa.

Mouffe afirma ainda que a visão panorâmica do estudo de Pateman revela uma forma bastante interessante sobre com foi concebido o indivíduo liberal à imagem do homem.

Porém, Mouffe considera insatisfatória a conclusão de Pateman:

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Capítulo 4 Apesar de todas as suas reservas relacionadas com os aspectos historica-mente construídos da diferença sexual, a sua concepção continua a pos-tular a existência de uma espécie de essência correspondente às mulheres enquanto mulheres. Na realidade, a sua proposta de uma cidadania dife-renciada que reconheça a especificidade das mulheres baseia-se na identi-ficação das mulheres enquanto mulheres com a maternidade (MOUFFE, 1993, p. 110).

Mouffe diz concordar com Pateman quando ela afirma que a categoria de indivíduo foi criada para um domínio público universalista e homogêneo, demonstrando uma particularida-de em relação ao privado, reverberando de forma negativa para a classe feminina. Porém, não discorda com a ideia de que deve-se construir um novo conceito de cidadania postulado nos pólos dos gêneros masculino versus feminino, trazendo para o mesmo a ideia das atribuições tipicamente femininas.

A análise sobre os estudos de Patemam continua, ao observar que a autora em questão afirma que a separação entre os modelos público e privado é exatamente quando se dá a ideia de patriarcalismo moderno, pois ao separar privado e público, evidencia o mundo das sujei-ções/feminino ao mundo convencional e individual/masculino. É diante dessas afirmações que a maternidade e o parto, que fazem parte do universo feminino, ficou de fora do público, tendo que se enquadrar numa lógica à parte.

Diante de todas as análises feitas por Chantal Mouffe às conclusões de Carole Pate-man, revela:

A minha própria conclusão é bastante diferente. Pretendo defender que as limitações da concepção moderna de cidadania devem ser soluciona-das, não tornando a diferença sexual politicamente relevante para a sua definição, mas construindo um novo conceito de cidadania, em que dife-rença sexual se torne efetivamente irrelevante. Isso exige, evidentemente, uma concepção de agente social de tipo que defendi anteriormente: como a articulação de um conjunto de posições de sujeito, correspondendo à multiplicidade de relações sociais em que se inscreve (MOUFFE, 1993, p. 111-112).

Mouffe considera ainda que a distinção entre homem e mulher não deve ser constan-te em todas as relações sociais, e que dentro desse contexto homens e mulheres constroem discursos completamente disseminados em suas respectivas classes, e que por muitas vezes, essa distinção não infundada, mas sim bastante pertinente. O não necessariamente precisa perdurar.

Esse sim parece ser, segundo Chantal Mouffe, o real e verdadeiro objetivo da grande maioria das feministas.

O que se busca não é o desaparecimento por completo da distinção sexual feita entre homens e mulheres, tampouco, uma posição de neutralidade das feministas diante do modelo hoje vivido, além do mais, por diversas vezes tratar homens e mulheres de forma igualitária, evidentemente, implicará em uma forma desigual de tratamento.

Portanto, Mouffe, conclui que nos campos da política, da democracia e da cidadania homens e mulheres devem ser sujeitos de direitos e deveres sem distinção alguma. Que o modelo proposto por Pateman apresenta-se incoerente e equivocado no que diz respeito à cidadania sexualmente diferenciada, pois os deveres e obrigações inerentes aos homens e mu-lheres devem ser valorados de forma justa, igualitária para que se possa atribuir o real sentido de cidadãos diferentemente do que há nos dias atuas e assim chegarmos a uma comunidade verdadeiramente democrática.

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Capítulo 4 5. A POLÍTICA FEMINISTA E A DEMOCRACIA RADICAL

Após a reivindicação pela inserção das mulheres enquanto mulheres para uma maior participação nos campos da política e da democracia surgiu a política feminista. Mas, enqua-drar a mulher no sistema democrático sem uma identidade específica é um verdadeiro balde de água fria no movimento feminista como um todo.

O movimento feminista sempre foi pautado como um movimento conciso, coeso de ideias e ideais, e mesmo que não seja unificado com um todo homogêneo há que se levar em consideração todas as reivindicações vindas das mais variadas estudiosas do seguimento femi-nista, ou então, tudo que já foi verbalizado terá sido em vão.

Diante dessas afirmações Mouffe contrapõe a ideia de Kate Soper (p. 13), afirmando:

Penso que Soper constrói uma oposição ilegítima entre duas alternativas extremas: ou já existe uma unidade das mulheres baseadas em qualquer sentimento prévio de pertença ou, se tal for negado, não pode existir ne-nhuma forma de unidade e de política feminista (MOUFFE, 1996).

Porém, afirma Mouffe, que o fato de não haver uma identidade essencialmente femi-nista, não implica dizer que não há uma legitimidade do movimento. E que, para ela, o femi-nismo é uma luta pela igualdade das mulheres.

Mas não se trata de uma luta travada um grupo isolado de mulheres que busca objeti-vos comuns ao grupo, antes de tudo, é luta contra as mais variadas formas de opressão impri-midas durante séculos, subordinando indistintamente a mulher é sua plenitude.

6. CONCLUSÕES

Nesse contexto de políticas democráticas radicais, as feministas têm se superado para contribuir com a evolução da participação da mulher no cenário da política mundial. Seus es-tudos e avanços sociais tem acontecido graças ao empenho de estudiosas do tema que muito tem oferecido para um avanço significativo na mulher no cenário sociocultural mundial.

O liberalismo contribuiu para a formação da noção de cidadania universal, defendendo que todos nascem livres, sejam homens ou mulheres.

Chantal Mouffe buscou com esse estudo revelar seu projeto de democracia plural radi-cal, diferente da que foi defendida pelos liberais, pelos essencialistas, pelos iluministas, enfim, sua proposta se mostra inovadora ao apresentar a ideia de que homens e mulheres devem ser compreendidos em sua plenitude e respeitos em suas limitações.

Por derradeiro, enfatiza que a critica do essencialismo ao humanismo, racionalismo e universalismo, ao contrário do que muitos pensam, não se portam como óbices às pretensões de uma política democrática feminina, mas sim, uma evidencia de futura sua concretização.

REFERÊNCIAS

DIETZ, Mary G. Citzenship with a feminist face.The problem with maternal thinking, in Poli-tical Theory, vol. 13, n. 1, 1985.

MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Coimbra: Ed.Gradiva, 1996.

LACLAU, Ernesto Laclau, MOUFFE, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy: towards a Radical Democratic Politics, Londres, 1985.

PATEMAN, Carole. The sexual Contract, Stanford, 1988, e The Disorder of Women, Cam-bridge, 1989.

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Capítulo 4

RUDDICK, Sara. Maternal Thinking.Nova Iorque, 1989.SOPER, Kate. Feminism, humanism and postmodernism, in Radical Philosophy, 55, p.13.

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A TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN: UMA APRESENTAÇÃO

Capítulo 5

Dimitri de Lima Vasconcelos1

João Paulo Allain Teixeira2

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o desafio de dissertar sobre a Teoria dos Sistemas sob a ótica de Niklas Luhmann, onde serão abordados conceitos, conforme a percepção e o conhecimento do referido Cientista, e, também, indicar pontos identificados pelo ilustre professor Dr. Marce-lo Neves, e descritos em seus livros Transconstitucionalismo e Entre Têmis e Leviatã, que de forma magistral soube aclarar e reproduzir numa linguagem real e dinâmica a teoria de Niklas Luhmann.

O artigo também se pautou nas obras: Sociologia do Direito I, e II, e Legitimação pelo Procedimento do professor e cientista Dr. Niklas Luhmann.A importância dessas obras para o direito, e principalmente na conceituação sistemática da relação norma e sociedade, é incon-testável, tendo em vista a construção de uma teoria no plano multicêntrico e policontextual, e tentar explicar os fenômenos observados na estrutura de uma sociedade tida como pós mo-derna e cosmopolita não é fácil. Porém, como deverão ser observados ao longo deste artigo, até os comportamentos imprevistos são esperados no contexto.

No primeiro capítulo teremos a teoria da imprevisão, que contextualiza a realização da norma através das circunstâncias naturais e alterações esperadas com a evolução da sociedade e as mudanças de paradigmas.

No segundo capítulo, teremos a teoria do dissenso, ponto principal que difere da teoria habermasiana, contudo, apenas descrevendo as idéias extraídas de Luhmann.

O terceiro capítulo trata da visão sociológica de Luhmann, e o quarto da visão jurídica. Já no quinto, concluí com a relação direito, tempo e planejamento.

2. TEORIA DA IMPREVISÃO

A imprevisão é considerada, porque, trata-se de relações humanas, não dependendo

1 Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Tributário pela Universidade Potiguar - UNP (2007). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Olinda (2004).

2 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), Mestre em Teorías Críticas Del Derecho pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha (2000), Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1995). Professor Adjunto na Universidade Federal de Per-nambuco, Professor Assistente na Universidade Católica de Pernambuco e Professor Titular nas Faculdades Integradas Barros Melo. Avaliador “ad hoc” do Ministério da Educação. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito e do Estado, atuando principalmente nos temas Jurisdição Constitucional, Hermenêutica, Pluralismo e Teoria da Democracia.

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Capítulo 5

exclusivamente do sistema normativo para existirem, apesar de as normas exerceram grande influência sob as condutas humanas. O simples ato de se relacionar em grupos, como as rela-ções familiares, as relações profissionais, acadêmicas e etc., conduz ao sistema um conjunto de normas que disciplinarão comportamentos complexos e variados e as consequentes mudanças ocorridas no tempo e no espaço.

Tais assertivas atuam de forma isolada, dentro de um contexto, que da mesma forma, existem ramificações, a cada grupo existem infinitas possibilidades que são isoladas dentro de suas expectativas. São previsíveis no limite de suas imprevisibilidades, tratando-se de relações humanas, sociais, cada grupo é passível de não atender as suas expectativas, mas o não aten-dimento das expectativas sinaliza mudanças, uma nova contextualização.

Bem, cada grupo ou conjunto para ser considerado um sistema tem que ter ordem, unicidade e comunicação. Dentro de cada grupo há um entrelaçamento de idéias que conver-gem para um mesmo ordenamento e se comunicam entre si.

Para entender melhor, o professor Marcelo Neves, menciona o código binário como parâmetro identificador de um sistema auto-referencialmente fechado.

Somente quando um sistema social dispõe de um específico código-dife-rença binário é que ele pode ser caracterizado como auto-referencialmen-te fechado (e, portanto, aberto ao ambiente). Por meio do código sistêmi-co próprio, estruturado binariamente entre um valor negativo e um valor positivo específico, as unidades elementares do sistema são reproduzidas internamente e distinguidas claramente das comunicações exteriores (NEVES, 2008, p. 67).

Essa junção é representada pela complexidade de uma sociedade multicêntrica ou policontextual onde há uma pluralidade de códigos-diferença orientadores da comunicação nos diversos campos sociais (NEVES, 2009, p. 24). Esses códigos-diferença podem ser lícito/ilícito quando forem de natureza jurídica; ter ou não ter, econômico; poder e não poder em termos políticos.

Isso leva a uma pluralidade de códigos-diferença orientadores da comunicação nos diversos campos sociais. A diferença “ter/não ter” prevalece no sistema econômico, o código “poder/não poder” tem o primado no político e a distinção “lícito/ilícito” predomina no jurídico (NEVES, 2009, p. 24).

Toda essa variação, conduz os anseios de uma sociedade pós moderna, reproduzindo os diversos ambientes e seus aspectos e possibilidades. As interdependências são geradas por fa-tores internos que ao alcançarem um grau de abstração elevado conseguem uma comunicação interna ordenada, as expectativas são produzidas por normas criadas dentro dessa unicidade.

O processo de inovação é tido dentro do sistema, quando há uma ruptura da expec-tativa, essa conduta que difere do ordenamento interno do sistema, pode ser recepcionado de forma geral e uniforme ou não, quando há essa recepção, então temos uma inovação no sistema e essa ruptura passa a ser previsível e inserido no contexto do ordenamento interno.

Na esfera jurídica, a variação evolutiva, que diz respeito aos elementos, apresenta-se como “comunicação de expectativas normativas inespera-das”. Isso significa que o respectivo comportamento não é previsto nas estruturas normativas preexistentes, desaponta expectativas contrafáticas dominantes. O desvio pode ser seletivamente rejeitado ou tratado com in-diferença. É possível, porém, que a repetição ou difusão do desvio conduza à produção de novas estruturas normativas que venham a condicionar a continuidade da inovação. A seleção significa, portanto, que conduta ini-

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Capítulo 5

cialmente desviante passa a ser prevista no plano das expectativas norma-tivas (NEVES, 2008, p. 18/19).

Essa influência pode ser externa ou interna, mas é preciso que haja a recepção interna do sistema, pois, com a rejeição não ocorrerá efeitos internos não havendo comunicação do ato como os demais componentes do sistema ou grupo.

Nesse sentido, observa Luhmann que “a Constituição é a forma com a qual o sistema jurídico reage à própria autonomia. A Constituição deve, com outras palavras, substituir apoios externos, tais como os que foram postulados pelo direito natural” (NEVES, 2008, p. 99).

Ela impede que critérios externos de natureza valorativa, moral e política tenham validade imediata no interior do sistema jurídico, delimitando-lhe, dessa maneira, as fronteiras (NEVES, 2008, p. 99).

Luhmann vai definir a Constituição como “acoplamento estrutural” (stru-kturelleKopplung) entre política e direito (NEVES, 2008, p. 97).

Esse acoplamento, descrito na citação acima, entre política e direito, possibilita a es-truturação do poder e a manutenção do ordenamento, pelo qual foi constituído. A política se legitima por meio do judiciário que garante a sua manutenção, e, o judiciário garante o seu poder através das normas produzidas pelo poder político.

Esse entrelaçamento de poderes, ao mesmo tempo conduz a harmonia do sistema e congrega com a antinomia do sistema, gerando duas possibilidades, um altismo normativo, ou imperialismo, pois está fechada sob interesses de uma minoria que detém o poder de determi-nar a forma de pensar o direito e a forma de pensar da sociedade, balizando expectativas por meio de normas que não conseguem prever a vontade dos subjugados.

Por isso, que a Constituição traça direitos que dentro de sua essência são fundamen-tais para os cidadãos, e que protegem os mesmos das investidas de uma minoria detentora dos mecanismos normativos.

A institucionalização dos direitos fundamentais imuniza a sociedade con-tra uma simplificação totalitária incompatível com o caráter hipercomple-xo da modernidade (NEVES, 2008, p. 103).

Da limitação do poder é, ao mesmo tempo, a fortificação de sua capaci-dade de enfrentar politicamente problemas os mais diversos, advindos – como “perturbações – de todas as esferas diferenciadas de comunicação constituídas no ambiente social do sistema (NEVES, 2008, p. 103).

Luhmann tenta explicar, que o dissenso baliza a sociedade moderna, pois, pos-sibilita a inclusão de toda e qualquer pessoa independente de seus valores, interesses e expec-tativas.

3. TEORIA DO DISSENSO

Na teoria do Dissenso, Luhmann, digamos, assim, torna provável o improvável, ou seja, dentro de um Estado democrático de direito, o dissenso seria inclusivo, só os princípios de

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Capítulo 5

uma moral do dissenso podem ter caráter universalista.

Destinam-se precisamente a promover o dissenso provável e a tornar pro-vável o dissenso improvável nas relações interpessoais. Nas condições pre-sentes da sociedade mundial, só os princípios de uma moral do dissenso podem ter o caráter universalista e includente no sentido do acesso de toda e qualquer pessoa, independentemente de seus interesses, expecta-tivas e valores, a procedimentos discursivamente abertos (NEVES, 2008, p. 130).

O consenso não produz evolução para o direito. Para Luhmann, não existe num siste-ma normativo a aceitação de todas as normas, sempre haverá o dissenso, que gerará ou não a reestruturação social, ou apenas passará despercebida como uma mera insatisfação de poucos.

Pode-se afirmar que Luhmann procura enfatizar sociologicamente o dis-senso em torno de conteúdos morais na sociedade moderna (NEVES, 2008, p. 124).

Também não se pode aqui confundir o dissenso de conteúdo moral do de conteúdo jurídico, para não atribuir parâmetros aleatórios na criação das normas e fragilizar todo o or-denamento, desconstruindo dessa forma a unicidade do sistema.

...a relação paradoxal entre consenso procedimental e dissenso conteudís-tico no Estado Democrático de Direito (NEVES, 2008, p. 138).

Observa-se na teoria Luhmanniana que por mais que se tente buscar um consenso seria impossível traduzir, numa sociedade multicêntrica ou policontextual, todas as necessi-dades e interesses intra-sistêmicos.

A teoria luhmanniana dos sistemas nega radicalmente que o consenso pos-sa ser condição de validade jurídica. Isso impossibilitaria a própria evolu-ção do direito. Tal negação refere-se ao consenso como aceitação de todas as normas, por todos, em qualquer tempo, o qual não se encontra em ne-nhuma sociedade, ou simplesmente ao consenso fáctico como legitimador dos procedimentos em uma sociedade supercomplexa. Mas se afirma que o procedimento desempenha uma função legitimadora enquanto conduz ao consenso suposto. A legitimidade pelo procedimento envolve um pro-cesso de restruturação das expectativas, “que pode tornar-se amplamente indiferente ao fato de se aquele que tem de mudar suas expectativas con-corda ou não” (NEVES, 2008, p. 147-148).

A linguagem na teoria Luhmanniana, destaca o ponto de contato do externo como interno, seria a teoria do acoplamento e a ideia do transconstitucionalismo elaborada pelo Dr. Marcelo Neves, que parte dessa comunicação do externo como o interno permitindo a fluên-cia recíproca.

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Na relação externa entre sociedade e consciência, Luhmann define a lin-guagem como acoplamento estrutural. Ela permitiria a instigação e in-fluência recíproca entre comunicação e representações mentais, excluindo mútua e seletivamente alguns fluxos de sentido e admitindo a incorpora-ção de outros em cada um dos sistemas acoplados (NEVES, 2009, p. 35).

Tal entendimento, busca por meio do conhecimento transversal, por subsistemas, a possibilidade de acoplamento de outros subsistemas em cada sistema acoplado.

A linguagem torna possível que os conteúdos das comunicações, como unidades elementares formadas pela síntese de mensagem, informação e compreensão, sejam percebidos no interior da consciência, dando-se, po-rém, uma comutação interna de sentido. Nas relações dos subsistemas da sociedade, Luhmann vai eleger diversas formas de acoplamentos estrutu-rais, que vinculam estavelmente processos sociais de sistemas autônomos (NEVES, 2009, p. 36).

Os subsistemas e as formas de acoplamentos estruturais, fornecem a ampla possibi-lidade de perspectivas encontradas na sociedade atual, pós moderna, multicêntrica ou po-licontextual e tendente à junção de sistemas comunitários internacionais unificados, onde dependem cada vez mais do entendimento dessas inter-relações do que a mera preocupação da soberania de seus governos.

4. VISÃO SOCIOLÓGICA DE LUHMANN Inicialmente, Luhmann aborda sobre as capacidades limitadas do ser humano, dimen-

siona o mundo em sua volta onde descreve a respeito das infinitas possibilidades sensoriais apresentando a multiplicidade de opções e ações que poderão ser exploradas.

O homem vive em um mundo constituído sensorialmente, cuja relevância não é inequivocadamente definida através do seu organismo. Desta forma o mundo apresenta ao homem uma multiplicidade de possíveis experiên-cias e ações, em contraposição ao seu limitado potencial em termos de percepção, assimilação de informação, e ação atual e consciente. Cada experiência concreta apresenta um conteúdo evidente que remete a ou-tras possibilidades que são ao mesmo tempo complexas e contingentes (LUHMANN, 1983, p.45).

A ideia produzida por Luhmann é a de que a experiência concreta produz um conteú-do perceptível que remete a outras possibilidades, ou seja, dentro do contexto social as ações praticadas e perceptíveis geram outras mais possibilidades. Aqui se quer dizer sobre a multipli-cidade, complexidade e contingenciamento dessas ações.

Não há nesse caso uma só resposta ou uma só solução para cada problema apre-sentado no âmbito da sociedade. Não seria prudente eleger uma solução sem analisar as outras possibilidades.

Porém, também exemplifica que experiências anteriores sejam elas positivas ou negati-vas geram estruturas correspondentes que servem como parâmetro para reconhecer momen-taneamente exemplos de experiências que se transformará em inúmeras possibilidades e que estas possibilidades gerarão expectativas que ao longo do tempo serão modificadas resultando

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Capítulo 5

na sua perpetuação. Para isso Luhmann inicia seu discurso conceituando complexidade, contingência e

complexidade das complexidades.

Com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilida-des do que se pode realizar. Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser di-ferentes das esperadas; (...) Em termos práticos, complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de desapontamento e ne-cessidade de assumir-se riscos (LUHMANN, 1983, p.45-46). ...através da expectativa de expectativas, pois ele não é apenas a satisfação de expectativas alheias, mas significa um comportamento através do qual A se representa como aquele que B necessita como parceiro, para que ele (B) possa ser aquele que ele gostaria representar frente a A (LUHMANN, 1983, p.48-49).

Tanto a complexidade como a contingência apresentam possibilidades que inspiram expectativas, no caso da complexidade as expectativas são diversas e podem ser absolvidas por expectativas alheias. Na visão expectante não é preciso que os fatos gerem expectativas dire-tamente para àqueles envolvidos, e sim tanto podem ser os envolvidos como um terceiro, mas que para isso é preciso que o terceiro saiba da expectativa que está sendo gerada em relação a ele.

No caso da Contingência as expectativas apontadas são passíveis de erro. Assim, contin-gência significa “perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se riscos” (LUHMANN, 1983, p. 46). Mas,as possibilidades por meio da experiência cria certa autonomia na aplicação das possibilidades já que as expectativas podem ser previstas, porém são capazes de gerar uma certa insegurança porque as expectativas não guardam certeza e poderão ser diferentes daquelas previstas.

A sistemática das possibilidades apresentada por Luhmann, gera infindáveis expectati-vas que ora podem ser correspondidas e ora podem gerar frustrações e riscos.

Exemplificando: quando se faz um contrato em que uma parte espera da outra um resultado que não depende da outra parte. Nos casos de plantação quando está previsto uma tonelada de grãos e por condições do tempo muitas mudas não proliferaram. Nesse caso foi gerada expectativa que o efeito no final não corresponde com a ideia inicial.

Quando a contingência é simples há uma redução de desapontamentos, porém quan-do há uma maior complexidade o risco é bem maior, mas tem o benefício da interação de inúmeras possibilidades que poderão oferecer automaticamente a sua aplicação sem a neces-sidade de intervenções.

Em contraposição, faltam instrumentos para aquele que talvez seja o mais importante campo da pesquisa: os macrosistemas altamente complexos e estruturados – se bem que esse problema pelo menos tornou-se explícito no funcionalismo e na cibernética, onde também podemos encontrar algu-mas abordagens apropriadas nesse contexto A (LUHMANN, 1983, p.14).

A sociedade na sua estruturação exemplificativa apresentada por Luhmann produz in-finitas possibilidades,onde serão geradas várias possibilidades e que gerará outras possibilida-des, enfim imaginem toda essa perspectiva sendo criada de diversas formas e se multiplicando para todos os lados.

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Na visão de Luhmann poderíamos procurar entender os macrosistemas?Na identificação das inúmeras possibilidades aliando a isso o momento e as condições

atuais será que é possível identificar como funciona o macrosistema? Na cibernética onde há infinitas conexões onde diversos sistemas se comunicam, exis-

tem uma infinidade de correlações e sistemas que reproduzem variadas formas e possibilida-des.

Tanto é verdade que o próprio direito se utiliza da cibernética. Aqui faço menção à cibernética como “ciência do controle e da comunicação” (PIMENTEL, p.81) na concepção de Wiener.

Embora a sociedade brasileira está lentamente caminhando para a construção de uma nova sistemática processual, ainda está longe da perspectiva do mundo atualmente globaliza-do e sob a ótica pós moderna, implicações na ordem dos princípios e procedimentais ainda comungam na poeira das velhas diretrizes burocráticas, que nos remetem à época dos Estados Unidos do Brasil, importando em atrasos e questionamentos desnecessários.

5. A VISÃO JURÍDICA DE LUHMANN

Começaremos pela subdivisão apresentada por Luhmann, pelo qual descreve inicial-mente pelo Direito Arcaico e segue para o Direito das Culturas antigas e por fim fala sobre a positivação do direito.

É importante esclarecer que os pontos apresentados acima em relação aos tipos de direito, foram apresentados por Niklas Luhmann, na obra Sociologia do Direito I, como tipolo-gias que classificam as características de cada fase e ao mesmo tempo identifica nos dias atuais todos os modelos de Direito apresentados.

Serve também como sinalizador de aspectos estruturantes das condutas sociais de cada civilização.

5.1. Direito Arcaico

Luhmann afirma que para compreender o Direito Arcaico é preciso partir da estrutura da sociedade, e entre as estruturas relacionadas compreendem-se as primitivas.

As sociedades primitivas eram fundamentadas no parentesco, e a definição do papel de cada cidadão era preestabelecido e firmado pelo grau de parentesco. Porém o grau de paren-tesco não determina o seu conteúdo.

Nas sociedades de baixa complexidade os seus “mecanismos de elementares da forma-ção do direito atuam de forma não mediatizada” (LUHMANN, 1983, p. 186).

“O direito surge inicialmente na frustração e na reação do frustrado”(LUHMANN, 1983, p. 186), ou seja, a criação do direito está intimamente ligado ao comportamento e rea-ções produzidas pelos membros dessas sociedades primitivas. A sua base está intimamente ligada ao grau de parentesco, quando há uma transgressão à norma e a sociedade é composta em sua maioria por parentes, a simples transgressão não ensejará a expulsão do indivíduo dessa sociedade.

Uma característica marcante dessas sociedades - descrita por Luhmann – seria o fato de existirem rituais sagrados em razão de viverem limitados ao momento e as circunstâncias presentes. A vida nessas sociedades gira em torno do agora, não há uma previsão futura, as normas são pautadas na própria vivência, e as mudanças dependem de aspectos gerais e in-definidos.

A crise se instaura no Direito Arcaico “quando se forma uma maior complexidade em esferas funcionais isoladas”(LUHMANN, 1983, p. 200), como exemplo; o crescimento econô-mico, a descrença, o medo individual, a violência.

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Capítulo 5

Contudo, as mudanças ocorrem de forma paulatina, algumas situações proporcionarão um maior grau de complexidade exigindo decisões mais elaboradas, que não implicarão, ne-cessariamente, alteração das normas, apenas a criação de regramentos para pautar as decisões que serão condutoras de uma sistemática jurídica.

5.2. Direito das Culturas Antigas

Enquanto o direito arcaico detinha uma variedade de normas simples, o Direito das Culturas Antigas possui uma variedade menor e intrinsecamente mais complexa.

O novo ordenamento deixa para traz a cultura do parentesco, a condição parental não mais determina a posição social. O Direito das Culturas Antigas abandona os grupos parentais e forma um Estado onde precisarão de normas que regulamentem as relações dentro dessa nova estrutura.

A divisão social agora é determinada pelo status, as pessoas se posicionam na socie-dade de acordo com as suas condições, a estrutura comporta categorias diferenciadas. Os pertencentes de graus superiores consomem e participam de forma diversa de seus inferiores, inclusive - em determinadas civilizações a língua com que o inferior se reporta ao superior é distinta da falada entre os inferiores.

As posições sociais são ocupadas de acordo com o grau de poder possuído por cada pessoa, a política ganha corpo e se traduz nas cidades, o sistema jurídico em determinadas civilizações procurava tratar das relações comerciais e de propriedade.

Surgem conceitos jurídicos sobre a legitimidade, lei e ordenamento. Mas as defi-nições dependem do contexto social, pois o conceito de legitimidade, por exemplo, foi utiliza-do para defesa de usurpação e tirania.

Usado na Idade Média como conceito jurídico para a defesa de usurpação e tirania e com este sentido consolidado e propagado principalmente pela restauração napoleônica, o conceito de legitimidade perde o seu funda-mento moral com a positivação do direito, que se impôs completamente no século XIX. (...)Hoje ele significa a convicção, realmente divulgada, da legitimidade do di-reito, da obrigatoriedade de determinadas normas ou decisões, ou do valor dos princípios que as justificam (LUHMANN, 1980, p. 29).

Como as mudanças estão sempre atreladas a alterações estruturais da própria socieda-de. Com a positivação do direito não poderia ser diferente. “Apesar de toda autonomia e do de-senvolvimento continuado das diferentes nações jurídicas, as mudanças fundamentais do esti-lo do direito permanecem condicionadas pela mudança estrutural da sociedade”(LUHMANN, 1983, p. 225).

5.3. “A positivação do Direito”

O direito agora é regido por normas, o ordenamento jurídico é criado para acompanhar as mudanças estruturais da sociedade. Novas possibilidades são geradas e um sistema com-plexo multifacetado obriga a transformação do direito para um sistema mais elaborado e com estruturação própria.

O Estado afasta as normas ideologicamente religiosas, e encerra a ideia da divindade das normas. Cria um sistema dentro do próprio sistema para justificar a criação das normas.

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Capítulo 5

A construção de um novo direito transforma as relações políticas, o Estado é subdi-vidido por órgão que constituem dentro de sua esfera de competência autonomia. O poder Judiciário é um poder autônomo, assim como o poder executivo e o poder legislativo.

Os avanços conquistados na economia, educação e nas relações sociais, possibilita um maior aprofundamento das normas, que agora regula situações dantes imprevistas. O aumento da população, os meios de produção, força a criação de novos direitos. Mas a positivação do direito não reduz os problemas enfrentados em adequar a norma com o contexto social.

Em todas as fases a sociedade é quem dita regras, o direito acompanha, mas o grau de complexidade impossibilita uma maior aproximação do direito com as situações vividas por toda a sociedade.

O ordenamento jurídico, tal como nós o conhecemos atualmente, é uma construção de alta complexidade estruturada. Complexidade deve ser en-tendida aqui e no restante desse texto como a totalidade das possibilidades de experiências ou ações, cuja ativação permita o estabelecimento de uma relação de sentido – no caso do direito isso significa considerar não apenas o legalmente permitido, mas também as ações legalmente proibidas, sem-pre que relacionadas ao direito de forma sensível, como, por exemplo, ao se ocultarem (LUHMANN, 1983, p. 12-13).

Os atos do poder judiciário são condicionados a formalidades legais, o poder de decisão do juiz não apenas reproduz o contexto legal, numa sociedade mais complexa onde existem inúmeras possibilidades, a decisão do juiz também será contaminada por questões pessoais, experiência de vida, que produzirá efeitos nocivos ao processo decisório.

Pois, quando se observam questões de ordem social, contamina o exame do caso, desvirtua a razão do processo decisório.

(...) até que ponto diferenças na estratificação social e preconceitos ideo-lógicos influenciam ou são neutralizados no processo de decisões judiciá-rias.6 No lugar da questão justiça X injustiça, que interessa aos partici-pantes, procura-se verificar qual opinião, sustentada por quais fatores, se impõe na decisão. Com isso perde-se de vista não apenas o próprio direito, mas o processo decisório em si, a interação judiciária, o diálogo jurídico (LUHMANN, 1983, p. 11).

Essa análise não busca a verdade ou a justiça, assim como as instituições de ensino não informam sobre o direito aos cidadãos e as formas que podem pleiteá-los. Nessa perspectiva, Luhmann constrói uma identificação dos vários sistemas com as deficiências da sociedade que não colabora com a adequação do direito com os problemas enfrentados diante dos inúmeros sistemas complexos existentes.

6. DIREITO, TEMPO E PLANEJAMENTO

Nesse contexto, o direito quanto ao tempo, na visão de Niklas Luhmann, enquanto estrutura de expectativas - apenas se insinua, permanecendo incólume. Apesar da previsão temporal o direito atual pode prever o futuro.

O horizonte temporal da experiência e da ação humana não é apenas um correlato da cautela individual, mas em sua forma genérica representa um

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aspecto da estrutura social que com ela se altera (LUHMANN, 1985, p. 166).

Como foi afirmado anteriormente, o direito acompanha as mudanças da estrutura social, no entanto quanto ao tempo os efeitos gerados pela norma, podem ser para previsões futuras ou para efeitos futuros. No caso de cometer um crime, a legislação e anterior, mas o efeito é futuro.

Na criação da norma há uma previsibilidade, porém o controle sobre essa previsibilida-de é questionável, não existe certeza, há uma probabilidade para os efeitos gerados, apesar de quando da sua criação foi proposital e visa estabelecer certo controle em determinados atos.

O planejamento fica comprometido a partir das expectativas, pelas quais não dá cer-teza na atuação de seus efeitos, depende da forma que foi implantada e de como a sociedade irá reagir.

Quanto ao tempo e ao planejamento, pode-se dizer que as normas dependem da con-juntura atual da sociedade e se a mesma foi criada ou está sendo aplicada conforme o seu tempo.

Outro problema apresentado seria a construção de um direito dentro de uma civiliza-ção que não respeita ou não reproduz a sua própria cultura, é difícil prevê ou um ordenamento se manter por longo tempo, as coisas, os valores sociais não são identificados e são facilmente substituídos.

Porém, o ordenamento jurídico não é para sempre, ele tem que seguir as mudanças apresentadas no âmbito social. As demandas sociais são mutáveis e por isso geram novas pos-sibilidades que precisam ser regulamentadas. Não depende somente das mudanças sociais, precisa partir da vontade de equalizar o direito com as novas perspectivas.

Os conflitos gerados no âmbito social elegem prioridades. Nessa sistemática é possível idealizar como parâmetro o direito arcaico, que através da insatisfação do outro e a sua própria reação, modifica o direito.

A idealização de Luhmann está intimamente ligada a sobreposição sistemática da es-truturação da sociedade, e, as múltiplas possibilidades que ora proporcionam expectativas contingentes, ora expectativas complexas, mas ambas quando advindas da experiência guarda uma certa autonomia, mas não a certeza. Portanto, na visão de Luhmann, o direito e a forma que se apresenta nunca será eterno, pois pelas experiências observadas, o direito sofre muta-ção em decorrência das alterações sistêmicas da sociedade.

REFERÊNCIAS

LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo Procedimento. Brasília: Universidade de Brasília, 1980.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985.

NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 2008.

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.

PIMENTEL, Alexandre Freire. O Direito Cibernético Um Enfoque Lógico Aplicativo.

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UMA PROPOSTA HERMENÊUTICA DE CONTROLE DA DECISÃO PENALCapítulo 6

Renan Gonçalves Pinto Marques1

1. INTRODUÇÃO

O controle da decisão penal é um tema que vem sendo explorado por alguns doutrina-dores brasileiros, mas é um tema que está longe de ser pacífico quanto a quais critérios devem ser utilizados para limitar o poder que os juízes possuem ao decidir casos concretos, já que algumas decisões são eminentemente positivistas, outras são pragmatistas e outras convencio-nalistas, por exemplo, mas em todas elas existe o perigo do decisionismo.

O presente artigo inspirou-se na tese de doutorado da autora Ana Cláudia Bastos de Pinho, que propôs um controle da decisão penal através da hermenêutica filosófica de Gade-mar e da teoria do direito como integridade de Dworkin, vindo a autora, inicialmente, em sua obra intitulada “Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal”, a estabelecer um diálogo crítico com o garantismo de Luigi Ferrajoli, constatando as insuficiências das repostas fornecidas por essa teoria ao controle da decisão penal.

Em virtude da grande abrangência da tese acima, procurou-se limitar a sua análise, razão pela qual será abordada a proposta hermenêutica de controle da decisão penal através da teoria de Direito como integridade e moralidade política de Ronald Dworkin, bem como da tese de uma resposta certa em direito (the right answer thesis) deste mesmo autor, teses estas em que se acredita trazer limites para o controle da decisão penal.

Ao final, será feita uma análise de uma decisão positivista à luz da teoria da integridade e moralidade política, bem como da tese de uma resposta certa em direito de Ronald Dworkin para exemplificar a aplicação na prática desta proposta hermenêutica de controle da decisão penal.

2. UMA PROPOSTA HERMENÊUTICA DE CONTROLE DA DECISÃO PENAL DE ANA CLÁUDIA BASTOS DE PINHO

2.1 A integridade e a moralidade política de Ronald Dworkin

A teoria de Ronald Dworkin de Direito como integridade é uma teoria que traz um grande auxílio para o controle das decisões judiciais penais, sendo de suma importância a sua análise para trazer parâmetros de controle para referidas decisões. Neste sentido, as conside-rações trazidas pela autora Ana Cláudia Bastos de Pinho, e sua obra intitulada “Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal” que serão analisadas

1 Graduado em Direito pela Faculdade Estácio do Recife-PE, é advogado, possui Pós-Graduação Lato Sensu/Especialização em Direito Público pela Faculdade Estácio do Recife e é mestrando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. É professor de Direito Penal e de Teoria e Prática da Argumentação Jurídica da Facul-dade Estácio do Recife-PE, bem como coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da mesma instituição. É ainda professor de cursos preparatórios para concursos de Recife-PE, lecionando a matéria de Direito Penal no curso Jusdecisum.

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Capítulo 6

logo abaixo. Esclarece referida autora que, para Dworkin, o Direito é um conceito interpretativo,

ou seja, o Direito é uma prática argumentativa que se deve voltar para a solução de problemas da prática humana. Para ele a interpretação do Direito é sempre criativa e construtiva, jamais conversacional.

Dworkin defende que interpretar é atribuir sentido (propósito) a um objeto ou a uma prática. Não se trata de saber a intenção do autor, muito menos a intenção da lei, mas a in-tenção do intérprete. Porém, há um limite na atribuição de sentido que está na história, na tradição. A interpretação construtiva consiste em interpretar as instituições e suas práticas da melhor forma possível, à sua melhor luz.

A atitude interpretativa é a reflexão crítica, é a pergunta, o questionamento em relação a determinada prática social. É a pergunta sobre o valor, o propósito, o objetivo de determinada prática que tem sido repassada, geração após geração, em determinada comunidade. É uma espécie de estranhamento com algo que, tradicionalmente, é transmitido.

A consequência da prática interpretativa é, portanto, a possibilidade de mudança. O estranhamento com a prática tradicional pode gerar a alteração daquela determinada prática (PINHO, 2013, p. 80-82).

No Brasil pode-se perceber que alguns juízes não possuem referida interpretação construtiva, já que muitas vezes se limitam a citar artigos da lei em suas sentenças, sem trazer maiores reflexões sobre a tese defendida pelo réu, o que denota uma formação eminentemente legalista e positivista.

Seguindo na sua formulação teórica, Dworkin põe-se a confrontar dois modelos con-trapostos, o convencionalismo e o pragmatismo.Identificando, criteriosamente as falhas de cada qual, o jusfilósofo aponta a terceira via (que é a sua tese – integridade), pugnando pela necessidade de superar equívocos e improbidades dos padrões criticados.

Segundo, este autor, o convencionalismoidentifica-se com o aprisionamento ao passa-do. O Direito seria simples questão de fato, de descobrir o que pretenderam os antepassados; seria “nada mais que aquilo que as instituições jurídicas, como as legislaturas, as câmaras municipais e os tribunais, decidiram no passado” (DWORKIN, 2007, p. 82). Segundo os con-vencionalistas, a prática jurídica, bem compreendida, é uma questão de respeito e de aplicação das convenções, considerando as suas conclusões – e nada mais – como direito.

O pragmatismo, por seu turno, sustenta uma postura utilitarista e cética. Os juízes tomam e devem tomar quaisquer decisões que lhes pareçam melhores para o futuro da comu-nidade, ignorando qualquer forma de coerência com o passado. Os pragmáticos negam que as decisões políticas do passado, por si sós, ofereçam qualquer justificativa para a legitimidade do poder coercitivo do Estado.

O argumento para essa legitimidade pode estar na justiça, na eficiência ou em alguma outra virtude contemporânea. O pragmatismo estimula os juízes a decidir e a agir segundo seus próprios pontos de vista e refuta a coerência com o passado, pela coerência. O Direito, assim, não existe, ou como diz Dworkin, referindo-se aos pragmáticos, “é apenas uma questão daquilo que os juízes tomaram café da manhã”(DWORKIN, 2007, p. 187, apud PINHO, 2013, p.83).

Como se vê, o convencionalismo cai no embuste da crença (metafísica) na possibi-lidade de se descortinar a vontade do legislador (ou tribunal). É um apego ao passado, para manter uma determinada prática. O positivismo jurídico pode ser apontado como uma teoria convencionalista, por exemplo, que pensa o Direito como simples questão de fato (empirismo lógico). Aqui se corre o risco de cair na discricionariedade, porque a precisão semântica (des-cobrir o que as instituições do passado quiseram dizer) não acontece. Assim, é esperado que a decisão flua de escolhas arbitrárias do juiz.

De outra banda, o pragmatismo também resvala no perigosíssimo decisionismo, mas

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Capítulo 6

por outra razão. Se o passado e a tradição não limitam em nada, se apenas há um foco no futuro, se as pessoas não têm quaisquer direitos e tudo depende do que o juiz tomou no café da manhã, então, a comunidade estaria inteiramente nas mãos dos juízes, que decidiriam de acordo com as suas próprias convicções, sobre o que vem a ser melhor ou mais benéfico para o outro.

Portanto, nem uma corrente, nem outra consegue afastar o decisionismo (PINHO, 2013, p. 82-83).

Após as críticas bem fundadas ao convencionalismo e ao pragmatismo, Dworkin apre-senta sua teoria, entendendo o Direito como a combinação de quatro virtudes (ideias) políti-cas: equidade, justiça, devido processo legal adjetivo e integridade.

A equidade residiria encontrar os procedimentos políticos – métodos para eleger os dirigentes e tomar as decisões sensíveis ao eleitorado – que distribuem o poder político de maneira adequada. Diz respeito, portanto, à prática da tomada de decisões, de forma demo-crática, pelos cidadãos.

A justiça, por seu turno, tem um sentido muito mais substancial, já que diz respeito às decisões em si, que as instituições políticas consagradas devem tomar, tenham ou não sido escolhidas com equidade, e objetiva garantir um resultado moralmente justificável.

O devido processo legal adjetivo diz respeito a procedimentos corretos para julgar se algum cidadão infringiu as leis estabelecidas pelos procedimentos políticos.

A integridade é uma exigência específica de moralidade política e funciona como uma espécie de fiel da balança que transita entre as demais virtudes, com o fim de ajustá-las e ga-rantir a coerência entre elas.

Dworkin ressalta que a integridade é um conceito mais grandioso, sutil, elegante e bem elaborado do que aquilo, por clichê, atribui-se à analogia (necessidade de se tratar casos seme-lhantes da mesma maneira). A integridade, segundo o autor, está para além disso.

A fim de refutar as bases de ambas as correntes contrapostas (convencionalismo e pragmatismo), Dworkin sugere os testes de integridade, propondo que qualquer decisão ju-rídica deve passar pelo teste da adequação e da justificação, para saber se é uma decisão que respeitou a integridade, que foi tomada com base em princípios.

Adequada será a decisão que mantiver uma ligação com o pensamento jurídico daquele povo, que respeitar o que produzido pelo Direito sobre a matéria em discussão, que possibilitar, enfim, uma evolução natural, sem quebras e rompimentos drásticos com toda uma vivência jurídica importante. O pragmatismo falha nesse teste, pois rompe totalmente com o passado e somente tem em vista o resultado da decisão para o bem-estar geral por vir.

A justificação, de sua banda, exige que a decisão se fundamente em razões coerentes de moralidade política, visando à melhor interpretação em determinado caso concreto. Aqui deverão ser levados em conta os princípios que norteiam aquele determinado sistema jurídico. Justificada, será, destarte, a decisão que obedecer a esses princípios, que demonstrar coerên-cia no trato da moralidade política, obediência ao ideal de justiça em vigor na comunidade, ainda que, para isso, seja necessário romper amarras do passado. O convencionalismo não passa por este teste, já que não se importa com princípios da comunidade atual, mas apenas com o que foi estabelecido no passado.

Eis a encruzilhada: nem descobrir o Direito, nem inventar o Direito. Dworkin quer argumentar. Chaga-se assim, ao direito como integridade, única concepção capaz de gerar decisões justas, argumentativamente construídas, coerentes, equilibradas, que atendam às exigências da adequação, a fim de manter a coerência do que já foi produzido pelas institui-ções jurídicas, sem entretanto, ficar atrelado ao passado, podendo justificar o rompimento de paradigmas, precedentes, com base em razões fundadas em princípios de moralidade política (PINHO, 2013, p. 84-86).

Cumpre esclarecer, ainda, que Dworkin sustenta que é impossível ao juiz decidir

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Capítulo 6

apoliticamente. Toda decisão judicial é política, entendendo-se política, aqui, como moralida-de política, ou seja, fundado em princípios, em ideais de justiça (do que é melhor para uma determinada comunidade, levando em conta toda a sua história, sua tradição) e não na mora-lidade comum, própria, individual. Não é decidir de acordo com concepções morais subjetivas, mas de acordo com a ideia, mais ampla e complexa, de princípios de moralidade política que vigoram num determinado tempo e espaço.

Para o autor, Direito e Moral estão implicadas (embora não se confundam), no que se distingue dos autores positivistas (e do garantismo, em especial), que pressupõem uma sepa-ração necessária entre ambos os conceitos. Decidir politicamente é, igualmente, decidir com base em princípios (de moralidade política).

Os princípios carregam, em si, conteúdo extremo de moralidade, e isso precisa, em Dworkin, ser assumido, exatamente para controlar e legitimar as decisões e obrigações em um determinada comunidade.

Em outras palavras, os princípios de moralidade política devem orientar as decisões jurídicas de tal modo que essas cumpram a integridade, isto é, sejam coerentes e respeitem a justiça e a equidade (PINHO, 2013, p. 89-90).

Ora, é notório que muitas decisões penais não atendem ao direito como integridade, não passando pelos testes de integridade acima mencionados, da adequação (a decisão deve manter uma ligação com o pensamento jurídico daquele povo, deve respeitar o que foi pro-duzido pelo Direito sobre a matéria em discussão) e justificação (exige-se que a decisão se fundamente em razões coerentes de moralidade política, visando à melhor interpretação em determinado caso concreto. Aqui deverão ser levados em conta os princípios que norteiam aquele determinado sistema jurídico), não sendo, também, argumentativamente construídas e não mencionando os princípios (de moralidade política) que norteiam o nosso ordenamento jurídico, naquele caso concreto.

Além do mais, uma decisão penal que não possui uma sólida fundamentação poderá, inclusive, dificultar a compreensão pelos seus destinatários, dificultando, por consequência, a recorribilidade da decisão em outro grau de jurisdição. Neste sentido, inclusive, é o posiciona-mento da autora Virgínia Colares:

No caso das sentenças judiciais, pode-se dizer que a ausência de uma sólida fundamentação ocasiona tanto a dificuldade de entendimento por parte dos destinatários, quando o consequente prejuízo no exercício do direito de recurso. Para recorrer a outro grau de jurisdição, a parte vencida precisa verificar se seus argumentos foram considerados e em que pon-tos a fundamentação da sentença pode ser combatida. Equivocadamen-te, muitos preconizam que as decisões judiciais devem ser pautadas pela estrita objetividade, como se fosse possível uma manifestação linguística, em linguagem ordinária, abster-se do caráter argumentativo (COLARES, 2011, p. 124).

2.2 A reposta correta em Dworkin: uma fórmula contra o decisionismo

A autora Ana Cláudia Bastos de Pinho ainda traz uma grande contribuição para se evitar que as decisões penais sejam arbitrárias e discricionárias, mais uma vez fazendo uso dos ensinamentos de Dworkin através de sua teoria: uma resposta certa em direito (the right answer thesis).

Segundo a referida autora, Dworkin afasta a discricionariedade, porque acredita que existe uma resposta certa em direito (the right answer thesis). Essa é sua fórmula teórica contra o decisionismo e o relativismo. O Direito não pode ser inventado. Não pode o juiz estar

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legitimado (por nenhuma teoria) para fazer escolhas discricionárias. Essa postura, definitiva-mente, não tem lugar numa democracia, em que todos os poderes precisam ser controlados. O judiciário, por evidente, não é exceção.

O Direito, para Dworkin, não é mera questão de fato; também não pode ser mera questão de sorte. O cidadão faz jus a uma resposta constitucionalmente adequada; não pode depender de escolhas aleatórias de quem tem o poder de decidir. Há que se obedecer a crité-rios, há que se respeitar a integridade (PINHO, 2013, p. 125).

Vale ressaltar que, no Brasil, o autor Lenio Streck fala-nos em um direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada. No prefácio ao livro de Francisco José Borges Motta, sustenta o seguinte:

Venho defendendo, a partir de uma imbricação da hermenêutica filosófica (Gademer) com a teoria da Law as integrity (Dworkin), que existe um direito fundamental à obtenção de respostas corretas (adequadas à Cons-tituição). O que venho tentando dizer ( e que parece que está difícil de entender !) é algo (que deveria ser) assustadoramente simples: que há um direito fundamental a que a Constituição (compreendida como a explica-ção do contrato social, como o estatuto jurídico do político) seja cumprida. Afinal, o direito, no paradigma do Estado Democrático de Direito, passa – em razão das contingências históricas – a se preocupar com a democracia e, portanto, com a legitimidade do direito (o problema da validade, pois) (STRECK In MOTTA, 2010, p. 13 apud PINHO, 2013, p. 125).

Retomando a tese acerca de uma resposta certa em direito, a autora elucida, ainda, que é sempre bom destacar que propostas como a de Dworkin são indispensáveis em países como o Brasil, em que o projeto de uma democracia constitucional ainda não se solidificou e a real proteção dos direitos fundamentais é, por enquanto, um desejo. A reposta certa (ou, pelo menos, o esforço constante em sua direção) é, acima de tudo, uma questão de democracia.

Não são raras situações em que se assiste ao Poder Judiciário (tomado aqui por repre-sentar o ápice do processo de decisão jurídica) chegar a resultados impensáveis, contrastantes, nitidamente inadequados, por falta de uma fundamentação coerente, de uma análise criterio-sa das razões de decidir.

A propósito, é lugar comum a simples alusão a acórdãos ou súmulas (agora, vinculan-tes!) e, não raro, apenas a (lacônicas) ementas, para “justificar” decisões, como se isso deso-brigasse o juiz da necessidade de fundamentar.

São várias, portanto, as generalizações (embora só a lei, a princípio, possa fazê-las) a partir de decisões pretéritas (muitas vezes, mencionado-se tão somente as ementas, repita-se), ignorando-se, totalmente, as especificidades do caso concreto (a facticidade), a ponto de ser possível que um mesmo acórdão sirva a dois senhores ! Afinal, se não há preocupação em tra-zer a decisão passada para o diálogo com o caso em análise (como se faz em uma séria teoria de precedentes), se não existe um esforço argumentativo para justificar o uso daquele (e não de outro) precedente, qualquer interpretação (forçosa) cabe, pois não ?

Existe, aqui, uma clara possibilidade de manipulação de sentidos. O julgado passa a ocupar o lugar da lei que, assim, funciona como pauta geral, esquecendo-se que ele (o julgado) diz respeito a um caso concreto (não se pode cindir fato e direito, como pretende o positivismo e, também, o garantismo); em assim o sendo, existem situações, detalhes, argumentos que necessitam ser enfrentados e confrontados com o caso ao qual se pretende seja aplicado o precedente (PINHO, 2013, p. 125-127).

Elucida, ainda, a autora Ana Cláudia Bastos de Pinho que, se a simples alusão a emen-tas causa problemas na decisão jurídica, por deixar de lado a concretude do caso (da vida),

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não menos problemáticas são as decisões que, invocando a literalidade de um dispositivo de lei, abandonam discussões doutrinárias e julgados em sentido diverso, não raro oriundos do mesmo órgão julgador.

Um bom exemplo dessa postura pode é a seguinte decisão citada pela própria autora:

HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. NARCOTRÁFICO. PRISÃO EM FLA-GRANTE EM 07.08.09. LIBERDADE PROVISÓRIA. VEDAÇÃO LEGAL. NORMA ESPECIAL. LEI 11.343/06. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. QUANTIDADE E QUALIDADE DA DROGA (18 INVÓLUCROS DE COCAÍNA). PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DO WRIT. ORDEM DENEGADA.1. A vedação de concessão de liberdade provisória, na hipótese de acusa-dos da prática de tráfico ilícito de entorpecentes, encontra amparo no art. 44 da Lei11.343/06 (nova Lei de Tóxicos), que é norma especial em rela-ção ao parágrafo único do art. 310 do CPP e à Lei de Crimes Hediondos, com a nova redação dada pela Lei 11.464/07.2. Referida vedação legal é, portanto, razão idônea e suficiente para o in-deferimento da benesse, de sorte que prescinde de maiores digressões a decisão que indefere o pedido de liberdade provisória, nestes casos.3. Ademais, no caso concreto, presentes indícios veementes de autoria e provada a materialidade do delito, a manutenção da prisão cautelar en-contra-se plenamente justificada na garantia da ordem pública, tendo em vista a qualidade e quantidade do entorpecente apreendido (13,2 g de cocaína, acondicionadas em 18 invólucros).4. Ordem denegada, em consonância com o parecer ministerial.2

O juiz, imaginando estar diante de um easy case, simplesmente nega a concessão de liberdade provisória em crime de tráfico, porque a lei assim o determina, deixando de lado a séria discussão doutrinária que há muito se trava em torno da polêmica questão, bem como precedentes, da mesma Corte, em sentido totalmente contrário.

Vê-se, assim, que a opção (equivocada) pela aplicação da subsunção (à velha e boa moda positivista-legalista) derivou de uma (igualmente equivocada) percepção de que se tra-tava de um caso simples. A causa disso? Sem dúvida, a falta de uma consistência (e consciên-cia) hermenêutico-constitucional.

Isso porque, tivesse o juiz se deixado interpelar pelo texto da lei ordinária, teria tido a experiência do estranhamento, em relação à tradição democrática inaugurada com a CRFB. A negação de liberdade provisória, em tese, sem nenhum fundamento para além da autoridade, deveria, no mínimo, provocar o intérprete, lançar-lhe perguntas, deixá-lo no aberto.

Uma vez no aberto, o intérprete teria diante de si as possibilidades descortinadas. Teria a visão ampliada para o tema em questão – vedação da liberdade provisória em crime de trá-fico – e consideraria, assim, tudo o que já foi produzido, historicamente, sobre isso, desde as emblemáticas discussões doutrinárias, até as decisões jurisprudenciais provindas do gabinete da porta ao lado.

De repente, um caso aparentemente fácil (se a lei proíbe, por que discutir? – aplica-se a lei, pronto) torna-se complexo, pois demanda(ria), na realidade, uma aguda tarefa herme-nêutica (PINHO, 2013, p. 126-128).

Além desta análise feita pela autora em relação ao tema da liberdade provisória e sua

2 STJ. Quinta Turma. HC 155596/SP. Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Julgado em 12 de agosto de 2010.

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vedação expressa pela lei de tráfico, pode-se constar, também, que não houve uma análise argumentativamente construída em torno do conceito de ordem pública, fundamento para decretação da prisão preventiva no caso em análise, havendo a simples alegação de que a ma-nutenção da prisão cautelar encontra-se plenamente justificada na garantia da ordem públi-ca, tendo em vista a qualidade e quantidade do entorpecente apreendido (13,2 g de cocaína, acondicionadas em 18 invólucros).

Ora, referida alegação simplesmente não esclarece o conceito de ordem pública, mas sim apenas afirma que existia, no caso, uma quantidade de droga apreendida que, por si, já seria suficiente para denotar um perigo a ordem pública, sob a ótica do julgador.

Os autores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar esclarecem que a decretação da preventiva com base neste fundamento, objetiva evitar que o agente continue delinquindo no transcorrer da persecução criminal.

Ou seja, a ordem pública é expressão de tranquilidade e paz no meio social. Em haven-do risco demonstrado de que o infrator, se solto permanecer, continuará delinquindo, é sinal de que a prisão cautelar se faz necessária. Entretanto, é necessário que se comprove este risco (TAVORA; ALENCAR, 2011, p. 544-545).

Ora, a afirmação feita na decisão do Superior Tribunal de Justiça simplesmente não enfrenta o conceito de ordem pública, não levando em consideração todas as discussões dou-trinárias feitas em relação ao tema.

Continuando a abordagem acerca da tese da resposta certa, esclarece, ainda, a autora Ana Cláudia Bastos de Pinho, que não se pretende, ao adotar-se a tese da resposta certa, que todos os juízes decidam da mesma forma (a resposta correta não é consensual). O que se bus-ca, por necessário, são mecanismos para controlar decisões arbitrárias, não fundamentadas. Até mesmo porque, a resposta correta é correta para o caso concreto. É, portanto, única, pro-visória, finita, despretensiosa.

O Poder Judiciário, possui um papel fundamental (constituinte) no modelo de Estado Democrático de Direito. A realização dos direitos fundamentais não se dará de forma plena sem a intervenção firme dos juízes. Porém, de outra banda, e exatamente por essa inegável responsabilidade política, seus atos precisam ser controlados. Os ativismos somente conduzi-rão à perda de garantias e ao enfraquecimento da democracia.

Ou seja, a defesa da imposição de constrangimentos deriva de uma necessidade demo-crática. O juiz há de dar satisfação à tradição inaugurada com a nova ordem constitucional. O cidadão tem direito a uma resposta constitucionalmente adequada, tem o direito de que sua vida não seja decidida num jogo de dados (PINHO, 2013, p. 129).

Ainda dissertando sobre a tese dworkiniana da one right answer, Ana Cláudia Bastos de Pinho afirma que esta tese, pode, à primeira vista, parecer inatingível (mitológica) e, até mesmo, arrogante. Como imaginar que num sistema constitucional, pautado por princípios de moralidade, o juiz tenha que encontrar uma única resposta para um determinado caso concre-to ? Os princípios não dariam abertura para a atribuição de sentido, a partir do momento em que possuem intenso conteúdo moral ? Diante de valores como dignidade, liberdade, igualda-de, é possível ter-se uma única possibilidade de decisão justa e correta ? Quem diz que essa ou aquela resposta é a correta, é melhor que outra? (PINHO, 2013, p. 131).

De forma maestral a autora responde a estas indagações da seguinte forma:

Dworkin mostra, entretanto, a partir de incomparável tenacidade argu-mentativa, que a resposta correta é, não apenas possível, como, na ver-dade, necessária. Princípios não abrem sentido, pelo contrário, fecham (aliás, com isso Ferrajoli concorda, conforme já se demonstrou). O ideal de justiça, de vida boa, de equidade, de integridade, enfim, sempre vem à tona quando o exercício da atitude interpretativa é bem fundado, e, mes-

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mo nos chamados casos difíceis (que, na verdade, não se contrapõem aos casos fáceis, como o próprio Dworkin adverte, já se viu), a resposta certa acontece. Inicialmente, é preciso deixar claro que a tese da resposta certa – que tanto incômodo e mal-estar causa aos críticos – é muito menos au-daciosa do que se pode parecer. A resposta certa não é definitiva. É finita, é limitada ao caso concreto. A resposta certa é pensada naquele caso em análise, naquele momento específico. Não tem pretensões de universali-dade, tampouco de eternidade. Ela é, simplesmente, a resposta do caso. Nada além disso (PINHO, 2013, p. 132).

Desta forma, a resposta certa seria um meio bastante eficaz para controlar as decisões penais ao impor limites ao poder de decidir, devendo estas possuírem uma interpretação que respeite os princípios de moralidade vigentes no nosso ordenamento, respeitando, também, a nossa constituição federal e a tradição democrática instituída pela Carta Magna de 1988.

Neste sentido, inclusive, a autora supramencionada afirma que:

Definitivamente, não há como pactuar com qualquer espaço de discri-cionariedade numa democracia. Por mais difíceis que sejam as escolhas (e jamais se pretendeu que fáceis fossem), o importante é saber que, por detrás delas, existe um critério democrático de eleição. O critério da in-tegridade, que toma a atitude interpretativa a sério, com decisões exaus-tivamente fundamentadas e baseadas em princípios. Uma decisão assim jamais poderá ser adjetivada de discricionária ou arbitrária. A consistência dos argumentos – analisando-se todas as possibilidades que se descorti-nam, avaliando-se os princípios de moralidade política, justificando-se por que uma e não outra resposta é a correta no caso concreto (sempre no caso concreto, não há resposta certa em tese, repita-se) – demonstrará a coerência interpretativa do discurso. Uma decisão que não for construída nessas bases, fatalmente, não terá consistência (nem coerência) e levará a uma reposta equivocada. A reposta certa é, portanto, uma necessidade insuprimível de um sistema democrático no qual se exige do juiz que de-cida com base em princípios de moralidade política, procurando chegar à melhor solução para a comunidade, interpelando a tradição que recebe e voltando-se para a atitude interpretativa dessa tradição. Essa tarefa é um exercício do mundo prático. O suporte teórico está dado (PINHO, 2013, p. 131).

2.3 Uma análise de uma decisão positivista à luz da teoria da integridade e moralidade política, bem como da tese de uma resposta certa em direito de Ronald Dworkin

A autora Ana Cláudia Bastos de Pinho possui um grande diferencial em sua obra “Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal”, pois não se limita apenas a dar um suporte teórico para traçar um limite para a decisão penal, mas tam-bém analisa algumas decisões e demonstra como ela poderia ficar condizente com as teses de Ronald Dworkin defendidas pela mesma.

Desta forma, o que se pretende agora é trazer uma decisão e aplicar os conhecimentos teóricos já mencionados.

Pois bem, retomando a decisão positivista do STJ, já mencionada anteriormente no item 2.2, referente a uma denegação de habeas corpus liberatório para réu em que apura delito de tráfico ilícito de entorpecentes, sob o único fundamento de que a lei assim o determina, a

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supramencionada autora elucida que se a decisão tivesse sido hermeneuticamente construída o destino da pessoa seria outra.

O problema desta decisão foi, exatamente, acreditar na força inabalável da lei, como se a convenção não devesse rendição à tradição.

Embora a lei que veda liberdade provisória em crime de tráfico seja recente (2006), há uma antiga polêmica doutrinária e jurisprudencial que paira sobre a questão. Ou seja, existe um choque entre a convenção legal e os princípios de moralidade política incorporados pela tradição democrática, especificamente pela CRFB/88. A discussão é extensa e ocupa, inclusi-ve, o Supremo Tribunal Federal.

Elucida a autora que a lei veda a liberdade provisória em tese. Mas princípios caros à democracia, como o direito a um processo justo (antes de uma condenação), o direito à li-berdade de ir e vir, não deveriam provocar a experiência do estranhamento, para submeter à prova os preconceitos inautênticos?

O apego à convenção não estaria desafiando o teste da justificação moral, próprio da integridade? Por conseguinte, manter intacto o texto da lei não comprometeria o ideal de vida boa, que deve ser buscado numa democracia?

Uma decisão hermenêutica deveria trazer à tona essa experiência. Reexaminar her-meneuticamente essa decisão seria, inicialmente, dotá-la de algo que, por certo, ficou esque-cido: argumentos.

A liberdade provisória deveria ter sido concedida, e os argumentos são, sem dúvida, de moralidade política. São hermenêuticos. Há princípios por detrás desta regra proibitiva (à qual se agarrou o julgador) que impedem sua validade. A regra, enfim, não se sustenta, pois por detrás dela não existe nenhum princípio instituidor que lhe dê suporte.

Afinal, que princípio poderia apoiar a proibição – totalmente em tese – de liberdade provisória em crime de tráfico? A segurança da sociedade? A eficiência punitiva do Estado? Mas essas razões realmente são dadas pela tradição democrática inaugurada no Brasil pós-64? Pode-se extrair da comunidade de princípios essa justificativa? Ou o ideal de fraternidade não nos levaria a concluir que os princípios que instituem a relação cidadão-Estado, no que toca à intervenção penal, são os da liberdade e do processo justo?

O que causa maior espanto, nessa hipótese, é que a lei atacada é posterior à Constitui-ção de 1988 e, mesmo assim, segue sustentando o peso inquisitório dos diplomas repressivos dos anos 40. Isso é explicado somente pelo viés da manipulação de uma política criminal autoritária, que busca respostas punitivistas para o grave problema da criminalidade violenta. Porém, essa opção seguramente não se harmoniza com a proposta de um Estado Democrático de Direito, desenhado a partir de pilares como a dignidade humana, a liberdade e a defesa intransigente dos direitos fundamentais.

Disso se conclui que os princípios de moralidade política que forjaram a sociedade bra-sileira pós-64 e que foram traduzidos na CRFB/88 indicam um caminho totalmente distinto daquele trilhado na decisão ora criticada: não há, realmente, razão justificadora para se negar a liberdade de uma pessoa, em tese. Esse valor é muito caro à democracia, de modo que so-mente uma fundamentação completa, com o elenco de argumentos realmente contundentes, seria capaz de sustentar uma decisão violadora da liberdade individual.

Conclui então a autora ao afirmar que a resposta correta seria, portanto, admitir a liberdade provisória em tese e, a depender das especificidades (e da gravidade) do caso con-creto, construir argumentos exaustivos para negá-la. E não, simplesmente, vedá-la em abstrato (PINHO, 2013, p. 168-170).

Corroborando com a tese da resposta certa de Ronald Dworkin, vale trazer, por fim, os ensinamentos do autor Lenio Streck que também critica o positivismo e defende a possibilida-de de se alcançar uma resposta hermeneuticamente adequada à Constituição:

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Capítulo 6

Numa palavra, a superação do positivismo implica a incompatibilidade da hermenêutica com a tese das múltiplas ou variadas respostas. Afinal, a possibilidade da existência de mais de uma resposta coloca essa “escolha” no âmbito da discricionariedade judicial, o que é antitético ao Estado De-mocrático de Direito. Ou seja, a partir da hermenêutica filosófica e de uma crítica hermenêutica do direito, é perfeitamente possível alcançar uma res-posta hermeneuticamente adequada à Constituição ou, se se quiser, uma resposta constitucionalmente adequada – espécie de resposta hermeneu-ticamente correta – a partir do exame de cada caso (STRECK, 2013, p. 8).

Ora, diante de todos os argumentos que já foram expostos no decorrer da análise da decisão positivista do STJ referente a uma denegação de habeas corpus liberatório para réu em que apura delito de tráfico ilícito de entorpecentes, resta concluir, também, que esta deci-são não é hermeneuticamente adequada à Constituição, já que esta prevê no Art. 5º, caput, a inviolabilidade do direito a liberdade, não podendo a lei vedar genericamente o direito a liber-dade provisória, sob pena de ofensa a este direito fundamental.

3. CONCLUSÃO

O presente artigo procurou abordar uma proposta hermenêutica de controle da deci-são penal da autora Ana Cláudia Bastos de Pinho, especificamente em uma vertente de sua tese, que abrange a abordagem da teoria de Direito como integridade e moralidade política de Ronald Dworkin, bem como da tese de uma resposta certa em direito (the right answer thesis) deste mesmo autor.

Pode-se concluir que referidas teses dão uma grande contribuição para que os profis-sionais da área jurídica possam ter parâmetros para controlar a decisão penal em um Estado Democrático de Direito, sobretudo em razão da grande quantidade de decisões mal funda-mentadas, extremamente positivistas e não preocupadas em abordar os princípios constitucio-nais, até mesmo como uma decorrência das metas de produtividade que referidos magistrados devem atingir, bem como da grande quantidade de processos que estes devem julgar.

REFERÊNCIAS

COLARES, Virgínia. Análise Crítica do Discurso Jurídico: o caso da vasectomia. A Análise do Discurso e suas Interfaces. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2011.

DWORKIN, Ronald. O império do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o Direito a sério: uma crítica hermenêutica ao pro-tagonismo judicial. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: Editora Juspodivm, 2011.

PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.

STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista?

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O “CONSTITUCIONALISMO DA EFETIVIDADE” E O ATIVISMOJUDICIALCapítulo 11

Priscila Braz do Monte Vasconcelos dos Santos

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa realizar breves considerações acerca do chamado Constitu-cionalismo da Efetividade e o Ativismo Judicial, demonstrando em que consiste a doutrina da Efetividade e como esta abriu o caminho para o crescente e, de certo, irreversível fenômeno do Ativismo Judicial.

Para isso, se buscará realizar uma pesquisa doutrinária, legislativa e jurisprudencial para explanar o novo cenário das constituições contemporâneas com as mudanças de para-digmas advindos com o neoconstitucionalismo, que permitiu a inserção nas constituições dos direitos sociais como fundamentais e mudou a visão do papel do Judiciário, em especial, na garantia de proteção à supremacia e prevalência das normas constitucionais e efetiva norma-tização dos princípios da Constituição Federal.

Nessa mudança de visão das competências do Judiciário, conferindo a este, de certa forma, uma ampla margem de interpretação das normas infraconstitucionais em consonância com os princípios e normas constitucionais, se trará a conceituação doutrinária para o Ativis-mo Judicial, os argumentos favoráveis e desfavoráveis a sua expansão e legitimidade, aborda-dos com exemplos oriundos dos tribunais superiores. Outrossim, se trará a problemática das decisões contra legem em decorrência das posturas ativistas e a possibilidade de considera-las legítimas.

Por fim, comentar-se-á sobre a judicialização da política que não se confunde com o ativismo judicial, mas, como será explanado, constitui-se numa postura do Poder Legislativo que confere ao Poder Judiciário um alargamento de suas competências, delegando a este o poder de decidir sobre questões que deveriam ser discutidas e decididas pelo Legislativo, des-tarte, promove o crescimento do ativismo judicial.

2. O NEOCONSTITUCIONALISMO E A NOSSA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Inicialmente para a abordagem do tema, impende frisar o conceito de Constituição. Dessa forma, é trazido o entendimento de Ferdinand Lassale em sua obra “O que é uma Cons-tituição?” para quem a Constituição apenas como sendo a lei fundamental proclamada pelo país, na qual se baseia a organização do Direito Público não responde qual a essência de uma Constituição, limitando-se a apenas descrever como estas se formam e o que fazem.

Desta feita, ele explica que a essência de uma Constituição é a soma dos fatores reais de poder que regem esse país refletidos no papel. Assim, esses fatores reais de poder transfor-mam-se em verdadeiros direitos e quem atentar contra eles estará violando à lei.

O doutrinador supracitado esclarece ainda que o poder que se apoia a nação, a vontade do povo, é muito maior que os fatores reais de poder que regem o país, todavia, é um poder

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Capítulo 11

desorganizado.Assim, pode-se dizer que a Constituição deve corresponder aos valores de uma socie-

dade, devendo haver compatibilidade entre o texto escrito e o que se pratica.Nesse diapasão, destaca-se o que preleciona Canotilho, citado por Gustavo Ferreira

Santos:

Em Canotilho encontramos uma passagem que expressa de forma conden-sada três perspectivas a partir das quais o conceito de Constituição pode ser apreendidos: “Todos os países (quaisquer grupos sociais organizados) têm uma constituição; mas nem todos os países têm um documento escrito chamado constituição; e nem todos os que têm um documento constitucio-nal possuem uma constituição filtrada pela idéia de constitucionalismo” (SANTOS, 2011, p. 17).

Em relação à estrutura de poder definida pela Constituição, especificamente a separa-ção dos poderes e a questão do controle de constitucionalidade, é importante ressaltar o que preleciona Hans Kelsen na sua obra “Quem deve ser o guardião da Constituição?”. Nesta, Kelsen basicamente critica a teoria de Schmitt que defende que o controle da constituciona-lidade deve ser exercido pelo chefe de Estado e não pelo Judiciário, como sendo um requisito fundamental da república democrática.

Kelsen afirma que o pensamento de que somente o Poder Legislativo e não o Judiciário é verdadeiramente político, sob o argumento de que quem produz o direito é aquele e não o Judiciário, pois este apenas reproduz o direito, é falso.

Outro problema identificado no pensamento de Schimitt por Kelsen é a concepção de que ao Judiciário compete a aplicação do direito de acordo com o fato já previamente determi-nado pelo legislador, vinculando o magistrado à norma sem qualquer margem interpretativa, como se o legislador pudesse prever todas as hipóteses de casos concretos passíveis de serem discutidos judicialmente, como se inexistissem lacunas nem possibilidade de uma norma ter mais de uma interpretação.

Importante salientar, que o Art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão traz que um país que não divide seus poderes nem declara direitos não pode dizer que possui uma Constituição. A redação do aludido dispositivo legal espelha uma concepção segundo o constitucionalismo de matriz Liberal, uma vez que para este a Constituição serve como instru-mento de contenção de poder.

Essa concepção do papel do Judiciário como mero aplicador da literalidade do texto de lei veio sendo modificada, consolidando-se no Brasil com o advento da Constituição Federal de 1988. Nesse particular, o Constitucionalismo social marca o século XX, quando os Estados passaram a dar primazia não só aos direitos individuais, trazidos com o Liberalismo, mas tam-bém aos direitos sociais positivado nas constituições. Essa nova concepção do Direito tem sido chamada de neoconstitucionalismo.

Nesse novo contexto, o neoconstitucionalismo fez com que o Judiciário começasse a modificar a sua postura para assegurar efetivamente aos cidadãos os direitos trazidos pela Lei Maior do Estado, sendo importante destacar que quando os direitos sociais começaram a ser inseridos nas constituições dos Estados, no Séc. XIX, a começar pela constituição mexicana e pela constituição alemã, os tribunais tratavam tais direitos como normas meramente pro-gramáticas, políticas de Governo, não assegurando efetivamente o cumprimento às normas sociais previstas na constituição.

Assim, a visão dada pelo neoconstitucionalismo fez com que o controle de constitucio-nalidade exercido pelo Judiciário passasse a ter cada vez mais importância nas democracias.

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Capítulo 11

Quanto à conceituação e importância do neoconstitucionalismo entende Gustavo Fer-reira Santos:

Mas não é apenas no espaço que varia o discurso constitucionalista. Sua evolução no tempo é rica, sendo quase inconciliáveis os postulados do pri-meiro constitucionalismo, de matriz liberal, das formas posteriores, como o já citado constitucionalismo social, que marca o séc XX, e uma evolução deste segundo constitucionalismo, que tem sido chamada de neoconstitu-cionalismo (SANTOS, 2011, p. 22).

Em especial, os tribunais europeus, principalmente o da Alemanha, avançam no con-trole do poder pelo Judiciário e constroem técnicas de interpretação que também passam a ser utilizadas por outros países, inclusive, influencia nos julgados da Suprema Corte nacional, como, por exemplo, a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto e a interpretação conforme a Constituição.

Por esses dois métodos verifica-se que a intenção primordial da Suprema Corte ao analisar as leis infraconstitucionais e atos normativos não é a de declará-los nulos, devendo a declaração de nulidade da lei ser o último recurso.

Nesse sentido, o exercício do controle de constitucionalidade pelo Judiciário objetiva a concretude das normas previstas numa constituição federal, impedindo e reprimindo viola-ções aos direitos ali contidos e sendo esta o norte para a elaboração das leis pelo Legislativo, interpretação e aplicação das normas pelo Judiciário.

Corroborando com as explanações supra, esta o entendimento de Gustavo Ferreira Santos:

Hoje, novos discursos constitucionalistas se afirmam. O chamado neo-constitucionalismo toma a constituição como norma, garantida por uma jurisdição constitucional vigilante. O debate sobre a controlabilidade de políticas públicas pelo Judiciário denota uma necessidade de afirmação de direitos, independentemente das decisões majoritárias. A Constituição é, antes de tudo, garantida pelo Poder Judiciário, produzindo uma im-pregnação de todo o ordenamento jurídico pelas normas da constituição (SANTOS, 2011, p. 23).

O papel assumido pela Constituição denuncia uma crise do Estado legisla-tivo e do próprio conceito de lei. A coerência do ordenamento, criado sob os auspícios de interesses de um grupo, que caracterizou o Estado bur-guês, parece não comparecer no atual estado constitucional. A caótica in-clusão de temas em leis, nos diversos acordos momentâneos de interesses que se verifica na atividade parlamentar da atual sociedade pluralista vai encontrar nos princípios constitucionais um mínimo conteúdo referencial (SANTOS, 2011, p. 25).

3. O CONSTITUCIONALISMO DA EFETIVIDADE

Feitas essas considerações iniciais acerca da Constituição e do neoconstitucionalismo, importante aclarar o conceito e a influência do chamado Constitucionalismo da Efetividade nas constituições contemporâneas e nas mudanças de paradigma.

Luis Roberto Barroso entende que a essência da doutrina da Efetividade é tornar as normas constitucionais direta e imediatamente aplicáveis. Sempre que for violado um manda-

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Capítulo 11

mento constitucional, a ordem jurídica deve prover mecanismos adequados para a tutela dos direitos constitucionais, exigindo uma atuação efetiva dos juízes e dos tribunais. Essa doutrina iniciou-se na Alemanha no século XX.

O doutrinador em epígrafe em seu artigo “O Constitucionalismo Democrático no Bra-sil” fala ainda que a Efetividade foi o rito de passagem do velho constitucionalismo para o novo Direito Constitucional, fazendo com que a Constituição deixasse de ser uma miragem com uma falsa supremacia para tornar-se, de fato, a Lei Maior do Estado, traduzindo-se em proveito para a cidadania.

Nesse diapasão, destaca-se também os ensinamentos de Daniel Giotti Paula:

Na tentativa de encontrar um marco histórico para a mudança, Ingeborg Maus identifica a mudança da perspectiva tradicional de que o juiz seria a boca da lei à evolução do direito no século XIX, quando, paradoxalmente, assistiu-se a um aumento da densidade dos regulamentos e da cada vez mais crescente regulamentação detalhada e precisa nas leis, mas se abriu maior participação aos juízes na criação do direito, ao terem que lidar com conceitos indeterminados, cláusulas gerais ou formas objetivas nas leis.

No caso alemão, surgiram ao longo do século XX, Escolas de Direito que propugnavam por novas formas de encarar o direito, tendo mais espaço que as Escolas críticas que surgiram no Brasil, mas que não encontravam eco na jurisprudência, embora percursoras de movimento entendido como constitucionalismo da efetividade. Pode-se afirmar que a normatividade à Constituição é tema mais recente na cultura jurídica brasileira, consoli-dando-se com a promulgação do texto constitucional de 1988 e atingindo seu ápice nos últimos anos. (PAULA, 2011, p. 281/282)

Na prática, em todas as hipóteses em que a Constituição crie direitos subjetivos, sejam estes políticos, individuais, sociais ou difusos, estes são direta e imediatamente exigíveis do Poder Público ou do particular. Sendo assim, a doutrina da Efetividade preleciona que se está na Constituição é para ser cumprido.

Desse modo, a Efetividade reconhece que não há uma separação absoluta entre Direi-to, moral e política, pois estes influenciam conjuntamente na aplicação do direito.

Importantíssimo observar que essa doutrina reconheceu a normatividade dos princí-pios constitucionais, dando primazia a estes em relação às normas infraconstitucionais, desen-volvendo uma nova hermenêutica e uma nova teoria dos direitos fundamentais, edificada no princípio da dignidade da pessoa humana.

Com o Constitucionalismo da Efetividade a Constituição passou a ter além da supre-macia formal que sempre teve, também o reconhecimento e concretização de sua supremacia material, principalmente pela normatividade de seus princípios.

Como exemplo de normatividade e supremacia dos princípios constitucionais, em es-pecial o princípio da dignidade da pessoa humana que é basilar do Estado Democrático de Di-reito, para ilustrar as explanações feitas até aqui, pode-se citar o posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho em relação a uma norma expressa na CLT em seu Art. 482, f, qual seja, a possibilidade do empregador demitir o empregado em caso de embriaguez habitual.

Diante de tal previsão normativa, o TST numa hermenêutica em consonância com os princípios constitucionais entende que a aludida norma deve ser afastada, sob pena de viola-ção ao princípio da dignidade da pessoa humana, haja vista que o alcoolismo é uma patologia reconhecida pela OMS. Assim, em que pese à autorização legal, caso o empregador queira demitir o empregado terá que rescindir o contrato sem justa causa.

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Particularmente quanto a este exemplo, insta salientar que o entendimento do Judiciá-rio não só vai de encontro à norma infraconstitucional expressa em primazia de um princípio constitucional, mas vai de encontro ao próprio posicionamento do Legislativo, uma vez que já tramitou no Congresso o PL nº 7805/2010 objetivando a retirada da alínea f do artigo 483 da CLT quanto à embriaguez habitual e o mesmo não passou pela Comissão de Constituição e Justiça que o entendeu inconstitucional por tolher a liberdade do empregador. Contudo, pro-jeto semelhante com o mesmo objetivo ainda tramita no Congresso, a saber: PL nº 206/2003.

4. O ATIVISMO JUDICIAL

A doutrina da Efetividade abre caminho para o ativismo judicial que diferencia-se da judicialização da política, esta que significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral que deveriam estar sendo tratadas e regulamentadas pelo poder Legislativo es-tão sendo discutidas e decididas pelo Poder Judiciário num processo progressivo de ampliação dos poderes deste, ampliação esta proporcionada pelo próprio Legislativo, devido a uma crise que este vem sofrendo de funcionalidade e representatividade.

Em relação ao conceito de Ativismo Judicial, destaca-se, in verbis, a conceituação tra-zida por Inocêncio Mártires Coelho:

Ativismo judicial é o exercício expansivo, não necessariamente ilegítimo, de poderes político – normativos por parte de juízes e tribunais em face dos demais atores políticos e judiciais, identificável e avaliável conforme a disci-plina constitucional particular acerca da estrutura e do funcionamento da jurisdição constitucional e do arranjo institucional local, e que se manifesta sob diferentes comportamentos, todos transcendentes dos limites ordiná-rios do papel institucional do poder judiciário (COELHO, 2011, p. 484/485).

Desta feita, a doutrina entende que o ativismo é uma atitude, uma escolha de um modo específico e proativo do Judiciário para interpretar a Constituição, expandindo o sentido e o alcance desta.

O ativismo judicial enfrenta muitas críticas, principalmente de que as atitudes ativistas do Judiciário extrapolam os limites constitucionalmente estabelecidos para as suas funções, espelhando uma usurpação de competência do Legislativo, pois o Judiciário estaria utilizan-do-se do discurso de abertura semântica da norma e de interpretação conforme os princípios constitucionais para criar o direito, afastando-se do sentido literal da norma e, muitas vezes, a interpretação dada sob tais argumentos não corresponde, de fato, a real intenção da norma e a aplicação preponderante de determinado princípio utilizado como fundamento da mesma.

Entendendo contrariamente à legitimidade da expansão do ativismo judicial, alguns doutrinadores assim se manifestam:

No que tange especificamente ao tema do presente trabalho, a subsistên-cia da separação dos poderes, ante a invasão dos espaços políticos por decisões judiciais, quando se trata especificamente do ativismo, refere-se a ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, em de-trimento principalmente da função legislativa, mas também da função ad-ministrativa e, até mesmo, da função de governo (PAULA, 2011, p. 280).

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Mais expressiva, ainda, nessa rejeição à tese de que a criação judicial do di-reito ofenderia o princípio constitucional da separação dos poderes, é a po-sição de Inácio Otto, para que, em realidade, atribuição de valor vinculante à jurisprudência é o único modo de manter a própria separação dos pode-res, que estaria comprometida caso a interpretação das leis ficasse a cargo do próprio legislador, que as edita, e não do juiz, um terceiro imparcial, que fixa o sentido das normas à luz dos casos e controvérsias, complemen-tando, por essa forma, a tarefa legislativa (COELHO, 2011, p. 484/485).

Para os que defendem o Ativismo Judicial, argumentam que este não reflete uma usur-pação de poder pelo Judiciário, mas, ao contrário, considerando a dinamicidade da sociedade e que as normas podem possuir mais de uma interpretação, cabe ao Judiciário aplicar a que melhor se enquadra ao caso concreto, harmonizando a norma infraconstitucional com os princípios e normas da Constituição que devem sempre prevalecer. Assim, o ativismo judicial está em plena consonância com a democracia, sendo fundamental a esta, uma vez que se faz necessário que o Judiciário tenha uma postura mais ativa na interpretação e aplicação das normas, atendendo aos anseios da sociedade.

Quanto à ampliação das competências do Judiciário, dispõe Gustavo Ferreira Santos:

A prática da jurisdição constitucional tem construído cada vez mais técnicas decisórias que permitem a ampliação da interferência do juiz constitucio-nal no conteúdo da norma submetida à sua análise (SANTOS, 2011, p. 81).

Para Barry Friedman, o controle jurisdicional da constitucionalidade tem vantagem de facilitar o diálogo nacional sobre o significado da constituição. No entanto, isso não deve resultar em uma supremacia do Judiciário. Ao mesmo tempo, devemos buscar a garantia de qualidade do debate em tor-no da Constituição e a possibilidade de, quanto às decisões do Judiciário se distanciam das aspirações populares, o sistema realizar uma autocorreção. Não terá o Poder Judiciário a última palavra (SANTOS, 2011, p. 96).

Desse modo, não se deve entender o Ativismo judicial como uma atitude negativa e atentatória ao princípio da separação dos poderes, pondo em risco a estrutura do Estado, to-davia, consoante preleciona a doutrina, o mecanismo do controle de constitucionalidade deve espelhar uma efetividade e concretude das normas e princípios constitucionais e não uma supremacia do Poder Judiciário sobre o Poder Legislativo, correspondendo a uma autorização ao Judiciário para atuar como legislador positivo e criar o direito.

A postura do Judiciário e a sua liberdade interpretativa deve ser responsável e con-trolada, justamente porque este não pode ir de encontro ao conteúdo de normas legítimas e constitucionais, criando o direito a pretexto de lacunas ou margens interpretativas inexisten-tes para inserirem comandos incompatíveis com a real intenção da norma e, por conseguinte, do legislador que é o representante da vontade popular, abusando do poder que lhe é conferido pela Constituição Federal.

Diante disso, o Sistema deve promover mecanismos que possam ser utilizados para a correção de posturas do Judiciário que fujam das verdadeiras pretensões e necessidades da sociedade e violem a estrutura de Poder constitucionalmente definida.

No Brasil, sob aplausos de uns e críticas de outros, nos deparamos com o STF, a nossa corte constitucional, a criar direito novo, embora ainda com a cautela de anunciar que as normas emergentes dos seus julgados não sur-

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giram do nada, antes foram apenas extraídas do próprio texto da constitui-ção, onde estavam insinuadas, latentes ou implícitas, como que à espera do momento oportuno para se mostrarem às claras (COELHO, 2011, p. 480).

A liberdade do intérprete/aplicador do direito, por outro lado, há de ser uma liberdade responsável e autocontrolada, pois não lhe é dado introdu-zir na lei o que deseja extrair dela, nem tampouco aproveitar-se da aber-tura semântica dos textos para neles inserir, fraudulentamente, conteúdos que, de antemão, ele sabe serem incompatíveis com esses enunciados nor-mativos (COELHO, 2011, p. 483).

As ações de inconstitucionalidade não podem servir à afirmação do poder do Tribunal contra o poder do povo. Não podem transferir o poder para um corpo técnico não responsável diretamente pelo povo. Aliás, depositar esperanças excessivas no Poder Judiciário seria contraproducente para a vida da democracia, já que bloquearia a criação de uma cidadania ativa, que, no lugar de buscar organização e intervenção na política, dirigiria ao Judiciário todas as suas reivindicações (SANTOS, 2011, p. 99).

O oposto do ativismo é a autoconcentração judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir a sua interferência nas ações dos outros Poderes. A principal diferença meto-dológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair ao máximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive, construindo regras específicas de conduta a partir de princípios e conceitos jurídicos indeter-minados. Por sua vez, a autoconcentração se caracteriza justamente por abrir mais espaço à atuação dos poderes políticos.

Em face de todo o exposto, tem-se que o magistrado não pode se afastar ou reformular as normas ao solucionar os casos concretos com base em seus sentimentos pessoais, ultra-passando os limites de sua competência constitucional, devendo buscar o equilíbrio entre o pacifismo e o ativismo, realizando uma autolimitação.

Quanto à diferenciação entre o ativismo judicial e a autoconcentração, traz a doutrina que:

O ativismo, ao contrário, traduz-se mais em uma prática jurisdicional de como tratar o próprio exercício da judicatura. Contrapondo-se a autocon-tenção, é um mecanismo de afirmação do próprio poder jurisdicional além dos limites impostos pela ordem jurídica positiva ou pela prática judicial con-solidada. Parece que o novo constitucionalismo sedimentou um caminho mais fácil para posturas ativistas, mas fato é que, historicamente, esteve ele atrelado a um modelo constitucional mais contido (PAULA, 2011, p. 300).

Em um sistema jurídico de natureza dinâmica, as regras estabelecidas na legislação infraconstitucional não podem ser tidas como absolutas, ou seja, normas que prevejam uma hipótese de incidência fechada à qual seria impossível estabelecer exceções. As normas são passíveis de superabilidade quando contrapostas com os princípios, analisando não só o prin-cípio que fundamenta o seu conteúdo material, mas os demais princípios constitucionais.

São exemplos de condutas ativistas o julgamento pelo STF sobre a fidelidade partidá-ria, no MS nº 26.602. Neste, o Supremo Tribunal Federal, numa interpretação do princípio de-mocrático, criou um direito ao instituir uma nova hipótese de perda de mandado parlamentar.

No aludido julgamento, o STF entendeu que todos os mandados políticos sejam no Poder Legislativo ou no Poder Executivo pertencem aos partidos, razão pela qual os políticos

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que optassem por trocar de partido ou se desligar sem justa causa do mesmo perderiam seus mandados. Observa-se que tal interpretação ao princípio democrático visa também atender ao princípio da moralidade, pondo fim ao troca-troca de partidos motivado por interesses obscu-ros de parlamentares em detrimento dos interesses comuns do povo que os elege.

Outro exemplo de postura ativista praticada pelo STF foi à vedação de nepotismo nos três Poderes, vedação oriunda de uma interpretação dos princípios constitucionais da morali-dade e da impessoalidade e que deu origem à Súmula Vinculante nº 13.

Nessa mudança de postura do Supremo, faz-se imprescindível ressaltar a mudança quanto aos julgamentos dos mandados de injunção, em especial, ao que diz respeito ao di-reito de greve do servidor público que está assegurado constitucionalmente, mas depende de regulamentação por lei infraconstitucional. O mandado de injunção nº 670 foi julgado em 25/10/2007 pelo STF, juntamente com os Mis de nº 708 e 712.

No caso em comento, Gilmar Mendes e a maioria do STF reconheceu essa necessidade de uma mudança na visão institucional e estavam realmente dispostos a dar concretude direta à norma constitucional discutida. Para isso, aplicou para regulamentar a greve no serviço pú-blico, com eficácia erga omnes, a utilização por analogia das regras que disciplinam a greve no âmbito privado, enquanto o Legislativo não cumprir o seu papel e editar a lei a qual se refere à Constituição Federal de aplicabilidade aos servidores públicos.

Em que pesem as crescentes condutas ativistas do STF, inclusive com a edição de súmulas vinculantes, e de outros tribunais superiores, como já dito, faz-se necessário um equilíbrio por parte do Judiciário para que não crie o direito em detrimento da real intenção da norma.

Ilustrando esse freio realizado pelo próprio STF, sob o argumento de que estaria atuan-do como legislador positivo, ou seja, usurpando competências exclusivas do Legislativo, pode-se citar a não aplicabilidade da Súmula Vinculante nº 4.

Na referida Súmula o STF firmou o entendimento de que não era possível o cálculo do adicional de insalubridade com base no salário mínimo, tendo em vista que o Art. 7º, IV da Lex Mater proíbe que o salário mínimo seja utilizado como fator de indexação, destarte, não pode-ria mais ser aplicada a norma prevista no Art. 192 da CLT que determina que o adicional de insalubridade seja calculado sobre o salário mínimo. Ocorre que, a Constituição Federal prevê como direito fundamental do trabalhador em seu Art. 7º, XXIII o pagamento do adicional de insalubridade calculado e pago na forma da lei.

Ora, a Lei Maior do Estado trouxe que o referido adicional seria calculado e pago na forma que deveria estar prevista por uma legislação infraconstitucional, todavia, o legislador até o momento não cumpriu com o seu dever constitucional, elaborando uma lei para substi-tuir a norma já trazida pela CLT que é a de cálculo com base no salário mínimo e que, a prin-cípio, estaria incompatível com a Constituição Federal. Desta feita, para não tolher um direito fundamental do trabalhador e diante da impossibilidade de criação de outra base de cálculo pelo Judiciário, o STF decidiu em 2008, por decisão do Ministro Dias Toffoli – RE nº 565.714/SP, que não poderia atuar como legislador positivo ao mudar a base de cálculo do aludido adi-cional, afastando a incidência da Súmula Vinculante nº 4.

5. CONFLITOS NORMATIVOS E DECISÕES CONTRA LEGEM

Com a primazia das normas e princípios constitucionais sobre qualquer norma infra-constitucional, tem-se que é possível que a aplicação da lei a um caso concreto vá de encontro ao que está expressamente estabelecido em uma norma infraconstitucional quando haja um conflito desta com os princípios constitucionais. Diante dessa situação, poder-se-ia dizer que seria admissível uma decisão contra legem.

A doutrina traz que enquanto os princípios devem ser otimizados segundo uma propor-

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cionalidade para que sejam determinadas as possibilidades fáticas e jurídicas que eles devem ser aplicados, fazendo-se uma ponderação entre os princípios diante do caso concreto, as re-gras contêm comandos definitivos para a sua aplicação.

Assim, havendo uma colisão entre uma regra e um princípio constitucional, pode-se solucionar a problemática ponderando o princípio que justifica a existência da regra com os demais princípios previstos na Constituição, o que poderia culminar com o afastamento da norma em prevalência ao princípio.

Nesse diapasão, destaca-se o posicionamento da doutrina:

(...) Enquanto os princípios devem ser otimizados segundo a máxima da pro-porcionalidade para que sejam determinadas as possibilidades fáticas e jurí-dicas em que eles devem ser aplicados, de sorte que a operação básica de sua aplicação é a ponderação, as regras contêm mandados definitivos e a operação básica para a sua aplicação é a subsunção (BUSTAMANTE, 2011, p. 117).

No caso de uma colisão entre uma regra válida e um princípio constitucio-nal, pode-se ponderar o princípio que justifica a existência da regra com outros princípios diretamente estatuídos na Constituição, [...] (BUSTA-MANTE, 2011, p. 117).

Os casos de superabilidade de uma regra jurídica são sempre casos de de-cisões contra legem (BUSTAMANTE, 2011, p. 128).

Portanto, nem todos os conflitos existentes entre regras são resolvidos com o reconhe-cimento de invalidade de uma delas, uma vez que para uma determinada situação é possível estabelecer uma exceção a uma dessas normas expressas. Assim, o conflito surge quando não é possível admitir a validade simultânea das normas conflitantes no mesmo tempo e lugar.

Corroborando com os argumentos acima, na análise dos princípios que fundamentam eventuais normas colidentes e que norteiam todo o ordenamento jurídico para a aplicação da lei ao caso concreto, ressalta-se os ensinamentos de Alexy para quem só se pode conferir eficá-cia aos princípios se deles se puder extrair regras numa linguagem universal, só sendo válida a aplicação destas se atenderem aos princípios que as fundamentam:

Não obstante, embora as decisões contra legem não sejam completamente estranhas à rotina do aplicador do direito, reina uma espécie de silêncio acerca delas e os teóricos do direito normalmente encontram dificulda-des para elaborar diretivas capazes de justifica-las. [...] há casos em que é possível deixar de aceitar o resultado das interpretações jurídicas fun-damentadas em argumentos semânticos, de sorte que o intérprete realiza uma reformulação da regra original para introduzir uma exceção em sua hipótese de incidência (BUSTAMANTE, 2011, p. 116).

Segundo Alexy, nem todos os conflitos entre regras são resolvidos com o reconhecimento da invalidade de uma delas, haja vista que, em algumas situações, é possível estabelecer uma exceção a uma dessas regras. (BUS-TAMANTE, 2011, p. 123)

Alexy: de um lado, os princípios só adquirem eficácia se delas se puder adscrever regras formuladas em uma linguagem universal; de outro, as regras não podem ser aplicadas sem atenção aos princípios que lhes fun-damentam (BUSTAMANTE, 2011, p. 126).

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Capítulo 11

Como exemplo de decisão contra legem pode-se citar o posicionamento do TST em relação à impossibilidade de demissão por justa causa do empregado em decorrência de em-briaguez habitual, em consonância com as explanações no capítulo anterior. O tribunal em referência rejeita norma prevista expressamente na legislação infraconstitucional com base no princípio da dignidade da pessoa humana, princípio basilar que fundamenta o ordenamento constitucional e infraconstitucional pátrio, sendo o aludido princípio universal, posto que é internacionalmente reconhecido na garantia dos direitos fundamentais.

6. A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA

Cumpre fazer no presente capítulo breves considerações sobre a Judicialização da po-lítica. Esta consiste na transferência do Legislativo para o Judiciário de discussões que deve-riam estar sendo realizadas e decididas por aquele e não pelo STF.

Verifica-se que atualmente é o próprio Legislativo que vem expandindo o campo de ação e as competências do Poder Judiciário, promovendo o crescimento do Ativismo Judicial, haja vista que é clara a crise de representatividade do Legislativo e que este tem optado por deixar nas mãos do Supremo Tribunal Federal a decisão acerca de temas políticos e sociais que deveriam estar sendo tratados mediante lei.

Nessa conjuntura, observa-se o STF vem criando o direito ao se manifestar sobre ques-tões como processo eleitoral, aborto, casamento homoafetivo, etc., sob o argumento de que a postura do Judiciário está respaldada na Constituição, posto que suas decisões atendem a uma hermenêutica sistêmica das normas e princípios constitucionais.

Frise-se o posicionamento doutrinário acerca do tema:

Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judi-ciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo (BARROSO, 2011, p. 228/229).

A Judicialização da política mega ou pura é a que caracteriza os tempos hodiernos. É necessário, porém, precisar o que seria mega política (mega politics). Na acepção do autor, trata-se de controvérsias políticas essen-ciais, como processo eleitoral, problemas de justiça restaurativa, entre ou-tros, que elevam as cortes ao patamar de corte crucial no aparato nacional de formação de políticas. Esse processo de progressiva transferência de poderes decisórios das instituições representativas para o judiciário é iden-tificado pelo autor da juristocracia (PAULA, 2011, p. 299).

Essa postura conjunta dos Poderes Legislativo e Judiciário recebe críticas de cunho político-ideológico, uma vez que o STF não é composto de ministros eleitos pelo povo, mas é um corpo técnico de magistrados. Contudo, este corpo técnico possui como função primordial a guarda e cumprimento das normas e princípios constitucionais e, para tanto, quando anula uma lei ou ato do Legislativo ou do Executivo, ou ainda quando impõe a um destes Poderes um dever para a concretude do exercício de um direito constitucional pelos cidadãos está rea-lizando uma atividade política.

Ademais, hodiernamente tem-se visto que as decisões do STF, mesmo em sede de questões sócio-políticas que deveriam estar sendo disciplinadas pelo Legislativo, estão rece-bendo o apoio da sociedade, o que, por conseguinte, lhe confere uma certa legitimidade, já que as interpretações dadas às normas e princípios constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal

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Capítulo 11

estão atendendo aos anseios e necessidades da maioria da sociedade.Em consonância com as explanações acima, não se pode descuidar de que este clamor

social por moralidade, principalmente no Legislativo, e a crise de representatividade deste, não pode ser um caminho para que o Judiciário se sinta autorizado e legitimado a legislar, colocando na norma preceitos que dela não se pode extrair, sob pena de uma verdadeira usurpação de poder sem limites e um real abalo na estrutura de divisão de Poder trazida pelo legislador constituinte.

Importante trazer o posicionamento de Luís Roberto Barroso, atual ministro do STF, quanto à crítica político ideológica da judicialização da política:

Um dos traços mais marcantes do constitucionalismo contemporâneo é a ascensão institucional do Poder Judiciário. Tal fenômeno se manifesta na amplitude da jurisdição constitucional, na judicialização das questões sociais, morais e políticas, bem como em algum grau de ativismo judicial (BARROSO, 2011, p. 269).

Juízes e membros dos tribunais não são agentes públicos eleitos. Sua in-vestidura não tem o batismo da vontade popular. Nada obstante isso, quan-do invalida atos do Legislativo ou do Executivo ou impõe-lhes deveres de atuação, o Judiciário desempenha um papel que inequivocamente político (BARROSO, 2011, p. 235).

De fato, a legitimidade democrática do Judiciário, sobretudo quando inter-preta a Constituição, está associada a sua capacidade de corresponder ao sentimento social (BARROSO, 2011, p. 265/266).

7. CONCLUSÃO

Infere-se com todo o exposto que a doutrina da Efetividade, embasada no neoconstitu-cionalismo, trouxe o reconhecimento da normatização dos princípios, colocando-os como co-mandos que devem prevalecer às normas infraconstitucionais, abrindo uma nova hermenêuti-ca e uma nova teoria para os direitos fundamentais, esta que se alicerçou, principalmente, no princípio da dignidade da pessoa humana. Pelo que dispõe a doutrina da Efetividade, não se admite o entendimento de que há normas constitucionais meramente programáticas, apenas norteamentos para políticas públicas. Se a norma está na constituição tem que ser cumprida, devendo ser assegurada a sua concretude, conferindo-lhe um conteúdo não só formal, mas também material.

Desta feita, deve-se entender que o Ativismo Judicial é uma atitude proativa do Judi-ciário no modo de interpretar a lei, ampliando o sentido e o alcança das normas e princípios constitucionais. Esta postura vem enfrentando muitas críticas, havendo na doutrina posicio-namentos favoráveis e desfavoráveis. Dentre os que argumentam contrariamente destaca-se que o argumento é de extrapolação pelo Judiciário de suas competências constitucionalmente fixadas, acarretando uma usurpação das competências do Legislativo, sob um discurso de abertura semântica da norma e de interpretação conforme os princípios constitucionais para criar o direito, afastando-se do verdadeiro sentido da norma e da real intenção do legislador.

Todavia, consoante explanações, as condutas ativistas do Judiciário muitas vezes se fazem necessárias para atender aos anseios sociais e garantir a efetiva concretização dos direi-tos constitucionalmente previstos a todos os cidadãos, contudo, cabe ao Judiciário exercer tais condutas ativistas em sua liberdade interpretativa de forma consciente, responsável e contro-lada, haja vista que o Poder Judiciário não está autorizado a atuar como legislador positivo, in-

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Capítulo 11

serindo na norma conteúdos inexistentes ou incompatíveis com a mesma. O Ativismo Judicial não pode significar uma supremacia do Poder Judiciário sobre o Legislativo.

Diante disso, o Sistema deve promover mecanismos que possam ser utilizados para a correção de posturas do Judiciário que violem a estrutura de Poder constitucionalmente defi-nida.

Ademais, conforme exemplos trazidos do STF e do TST, pode-se dizer que em alguns casos o Judiciário vem criando o direito com base na interpretação de princípios constitucio-nais com plena normatividade, autorizando e legitimando decisões contra legem em respeito à supremacia da Constituição Federal.

Quanto à Judicialização da política, visualiza-se que a postura do Legislativo de deixar a cargo do Judiciário a última palavra acerca de questões sócio-políticas as quais deveria se manifestar e normatizar espelha uma crise de legitimidade e representatividade daquele Po-der, uma vez que ao se esquivar de legislar sobre determinada matéria, deixando que o STF a discuta e decida com fundamento numa interpretação conforme à Constituição Federal, per-mite o expansionismo do Ativismo Judicial, colocando nas mãos do STF decisões que podem ser vistas como uma exorbitância de suas competências.

Em face de todo o exposto, deve-se ter um Sistema que promova mecanismos que possam ser utilizados para a correção de posturas do Judiciário que atentem contra o real fundamento da norma e transgridam a estrutura de Poder prevista pela Constituição Federal.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: direito e política no Brasil Contemporâneo. In: FELLET, André Luiz Fernandes, PAULA, Daniel Giotti e NO-VELINO, Marcelo (orgs.). As Novas Faces do Ativismo Judicial. Salvador: Juspodivm, 2011.

BARROSO, Luís Roberto. O Constitucionalismo Democrático no Brasil: crônicas de um suces-so improvável.Disponível em: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI168919,51045-O+-constitucionalismo+democratico+no+Brasil+cronica+de+um+sucesso>. Acesso em: 10 de agosto de 2013.

BUSTAMANTE, Thomas. Conflitos Normativos e Decisões Contra Legem: uma nota sobre a superabilidade das regras jurídicas. In: FELLET, André Luiz Fernandes, PAULA, Daniel Giotti e NOVELINO, Marcelo (orgs.). As Novas Faces do Ativismo Judicial. Salvador: Juspodivm, 2011.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Moreira Alves V. Gilmar Mendes: a evolução das dimensões metodológica e processual do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal. In: FELLET, André Luiz Fernandes, PAULA, Daniel Giotti e NOVELINO, Marcelo (orgs.). As No-vas Faces do Ativismo Judicial. Salvador: Juspodivm, 2011.

COELHO, Inocêncio Mártires. Ativismo Judicial ou Criação Judicial do Direito? In: FELLET, André Luiz Fernandes, PAULA, Daniel Giotti e NOVELINO, Marcelo (orgs.). As Novas Faces do Ativismo Judicial. Salvador: Juspodivm, 2011.

LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/constituicaol.html.Acesso em; 10 de agosto de 2013.

LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. A Guarda da Constituição em Hans Kelsen. Disponível em: <http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/031007.pdf>. Acesso em: 10 de agosto de 2013.

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Capítulo 11

PAULA, Daniel Giotti. Ainda Existe Separação de Poderes? a invasão da política pelo direito no contexto do ativismo judicial e da judicialização da política. In: FELLET, André Luiz Fernan-des, PAULA, Daniel Giotti e NOVELINO, Marcelo (orgs.). As Novas Faces do Ativismo Judicial. Salvador: Juspodivm, 2011.

SANTOS, Gustavo Ferreira. Neoconstitucionalismo, Poder Judiciário e Direitos Fundamen-tais. Curitiba: Juruá, 2011

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TRAJETÓRIA DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL: AMPLIAÇÃO DO PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A PARTIR DAS INFLUÊNCIAS DO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO

Capítulo 12

Fábio Rodrigo de Paiva Henriques1

1. INTRODUÇÃO

O termo ativismo judicial tem despertado intensa discussão no meio acadêmico e na sociedade. Já controvertido desde a sua origem, o ativismo caracteriza-se pelas decisões ju-diciais que impõem obrigações ao administrador, sem, contudo, haver expressa previsão legal para tanto. Decorre da nova hermenêutica constitucional na interpretação dos princípios e das cláusulas abertas, o que tem despertado pesadas críticas ao Poder Judiciário, notadamente, ao Supremo Tribunal Federal.

É que, ante a omissão legislativa, o STF tem sido chamado a se pronunciar sobre de-terminadas matérias que caberiam ao Legislativo regulamentar. Por vezes, o STF não se limita a declarar a omissão legislativa, indo além do que a dogmática legalista tradicional convencio-nou ser o papel do Judiciário, qual seja, a subsunção do fato à norma, e ante a imposição de obrigações aos outros personagens do poder e aos administrados em geral, não é raro constatar doutrinadores afirmando uma genuína intromissão do Judiciário nos demais Poderes da Re-pública, ferindo os princípios da separação dos poderes, a democracia e o estado democrático de direito.

Já a judicialização da política ocorre quando há a transferência de decisão dos Pode-res Executivo e Legislativo para o Poder Judiciário, o qual passa, normalmente, dentre temas polêmicos e controversos, a estabelecer normas de condutas a serem seguidas pelos demais. A judicialização toma forma quando questões sociais de cunho político são levadas ao Judiciário, para que ele dirima conflitos e mantenha a paz, por meio do exercício da jurisdição (BARRO-SO, 2013).

Procurando sistematizar a diferença entre os dois institutos, Luis Roberto Barroso (2013)assim se pronuncia:

A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicializa-ção, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitu-cional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Cons-

1 Mestrando pela Universidade Católica de Pernambuco, onde obteve graduação no ano de 2000. Professor da Faculdade Metropolitana e da pós-graduação da Faculdade Joaquim Nabuco, em Recife. Procurador do Pleno do Tribunal de Justiça Desportiva de Pernambuco.

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Capítulo 12

tituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais.

Em suma, a judicialização ocorre quando questões de grande repercussão para a so-ciedade, questões de ordem política ou social, passam a ser decididas pelo Judiciário. Trata-se de um fenômeno derivado de situações e características externas, do próprio ordenamento jurídico, quando o legislador cria um espaço maior para atuação do Judiciário. O ativismo, por sua vez, tem uma origem jurisprudencial, pode ser entendido como uma escolha do Judiciário, ou seja, uma atitude, uma forma de interpretar a Constituição de maneira mais ativa do que deveria o ser, interferindo em um espaço de atuação que não lhe compete.

No exercício de seu papel de Corte Constitucional (controle concentrado da constitu-cionalidade) e de Suprema Corte (cúpula do Judiciário), o STF é invariavelmente chamado a se pronunciar sobre questões de alta relevância para a sociedade, seja analisando questões políticas judicializadas, seja inovando no ordenamento diante de lacunas legislativas, e seus julgamentos traçam cada vez mais importantes diretrizes para a condução da sociedade.

2. INFLUÊNCIAS DO DIREITO COMPARADO

O judicial review2 se desenvolveu na América Latina e na Europa a partir da juris-prudência norte-americana. Na Europa, houve muita resistência por parte dos parlamentos, especialmente na Franca, capitaneada por Rousseau, pois se entendia que a lei era a maior expressão de democracia e não poderia ser tolhida por juízes através de controle difuso, prin-cipalmente porque os julgadores não eram legitimados pelo povo.

A partir de Kelsen, na Áustria dos anos 20, foi consolidada a ideia do controle concen-trado.

A ideia de um governo de juízes, que se tornou um estigma do modelo constitucional norte-americano, refere-se àqueles períodos em que a Suprema Corte dos Estados Unidos de-senvolveu uma atuação ativa, interpretando e ampliando o sentido da Constituição, de forma a ocupar um espaço cada vez maior na arena de decisão politica (VIEIRA, 1994, p. 61).

Para Madison (HAMILTON; MADISON; JAY, 1984, p. 73):

A importante distinção, tão bem compreendida na América, entre uma Constituição estabelecida pelo povo e inalterável pelo governo, e uma lei baixada e alterável pelo governo parece ter sido menos compreendida e menos observada em qualquer outro país. Onde quer que se situe o poder supremo de legislar, supões que também se encontre o poder integral de alterar a forma de governo. Mesmo na Grã-Bretanha – onde os princípios de liberdade política e civil têm sido tão analisados e onde mais ouvimos falar dos direitos da Constituição – assegura-se que a autoridade do Parla-mento é transcendente e incontrolável, tanto em relação à Constituição, como às matérias comuns de provisão legislativa.

Naquele país, a partir de 1890, iniciou-se o maior contexto ativista do judiciário. Para

2 Doutrina jurídica que expressa a possibilidade de revisão (e até anulação) dos atos dos Poderes Executivo e Legislativo pelo Judiciário.

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Capítulo 12

frear um socialismo emergente e adotando uma nítida defesa dos interesses do grande empre-sariado americano, a Corte, através de sua construção jurisprudencial, passou a adotar e criar soluções jurídicas das mais variadas, mesmo que exigissem decisões fora do texto constitucio-nal.

Até 1937 houve um extremo ativismo da Suprema Corte na defesa de um liberalismo econômico sem limites.

Mas outras questões também passaram a ser debatidas na esfera do Judiciário norte-americano e, em 1954, uma importante questão foi julgada pela Suprema Corte, referente a políticas educacionais e raciais. No caso Brown v. Board of Education of Topeka, a NAA-CP (National Association for the Advancement of Colored People) procurou o Judiciário para combater a política racial até então vigente do separate but equal3, não só com argumentos jurídicos, mas também sociológicos e psicológicos. Naquela oportunidade, a Suprema Corte deixou de atuar conforme uma posição passiva, em que no máximo bloqueava uma decisão parlamentar ou governamental contrária à Constituição, e passou a decidir afirmativamente, dizendo o que deveria ser feito, para que a vontade constitucional fosse efetivamente realizada (RODRIGUES, 1991, p. 90-91).

Outras não menos importantes decisões foram futuramente tomadas pela Suprema Corte, entre elas o escândalo Watergate4, que implicou na renúncia do Presidente Nixon.

Já na Europa continental, o marco histórico de uma nova dimensão do direito consti-tucional foi o constitucionalismo do pós-guerra, especialmente na Alemanha e na Itália.

A reconstitucionalização daquele continente, imediatamente após a 2a Grande Guer-ra e ao longo da segunda metade do século XX, notadamente como reação ao nazismo e ao fascismo, redefiniu o lugar da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições contemporâneas. A aproximação das ideias de constitucionalismo e de democra-cia produziu uma nova forma de organização política, que atende por nomes diversos: Estado democrático de direito, Estado constitucional de direito, Estado constitucional democrático5.

Antes de 1945, vigorava na maior parte da Europa um modelo de supremacia do Poder Legislativo, na linha da doutrina inglesa de soberania do Parlamento e da concepção france-sa da lei como expressão da vontade geral. A partir do final da década de 40, todavia, a onda constitucional trouxe não apenas novas cartas fundamentais, mas também um novo modelo, inspirado pela experiência americana: o da supremacia da Constituição. A fórmula envol-via a constitucionalização dos direitos fundamentais, que ficavam imunizados em relação ao processo político majoritário: sua proteção passava a caber ao Judiciário. Inúmeros países europeus vieram a adotar um modelo próprio de controle de constitucionalidade, associado à criação de tribunais constitucionais.

Na Alemanha, a principal referência no desenvolvimento do novo direito constitucio-nal foi a Lei Fundamental de Bonn (Constituição alemã), de 1949, e, especialmente, a criação do Tribunal Constitucional Federal, instalado em 1951. A partir daí, teve início uma fecunda produção teórica e jurisprudencial, responsável pela ascensão científica do direito constitucio-

3 Doutrina constitucional norte-americana que justificava o sistema de segregação racial. A partir dela, permi-tia-se a separação de serviços, facilidades e acomodações públicas pela cor da pele, com a condição de que cada grupo tivesse a mesma qualidade de serviço recebido. A expressão foiderivada de uma lei do Estado da Lousiana de 1890, apesar de a referida norma se referir ao termo iguais, mas separados (equal but separate).

4 Escândalo político ocorrido na década de 1970 nos Estados Unidos que, ao vir à tona, acabou por culminar com a renúncia do presidente americano Richard Nixon eleito pelo partido republicano. “Watergate” de certo modo tornou-se um caso paradigmático de corrupção.

5 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/neoconstitucionalismo-e-cons-titucionalização-do-direito-o-triunfo-tardio-do-direito-constit. Acesso: 12/4/2013.

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Capítulo 12

nal no âmbito dos países de tradição romano-germânica. Ainda no sistema constitucional alemão, ao Tribunal Constitucional, assim como na

Suprema Corte norte-americana, como garantidor último dos direitos fundamentais, negati-vos e positivos, ficou reservado um espaço mais amplo de que a de mero “legislador negativo”, como pretendia Kelsen no início do século.

Essa vocação ativista tomou bastante força, apesar da formação política do tribunal ale-mão6 e tratou de questões de suma importância para a formação da sociedade alemã, como o armamento nuclear, partidos políticos, direitos fundamentais, liberdade de expressão, impren-sa, religião, entre outros e, em certo momento, assumiu o papel de compensar a atuação dos demais poderes, na esfera da efetivação da Constituição.

A segunda referência de destaque é a da Constituição da Itália, de 1947, e a subse-quente instalação da Corte Constitucional, em 1956.

A adoção de um sistema pós-liberal de constituição trouxe repercussões diretas às atri-buições do tribunal constitucional italiano. Referida Corte encontra-se, até hoje, fora da es-trutura tradicional na divisão de poderes, uma vez que não é considerada como órgão judicial strictu sensu.

Na verdade, trata-se de um órgão constitucional com competência para apreciar a constitucionalidade das normas e atos jurídicos, por via incidental ou por via direta na resolu-ção de conflitos de competência entre os demais órgãos do Estado, assim como para julgar o Presidente da República por alta traição ou atentado contra a Constituição e os ministros em crimes praticados no exercício de suas funções. Sua composição é mista: um terço de seus membros é indicado pelo Presidente da República, um terço pelo parlamento e o terço restan-te pelos magistrados dos tribunais superiores. Esta composição auxilia na caracterização do Tribunal como um órgão de caráter não burocrático e, portanto, distinto do restante do poder judiciário (VIEIRA, 1994, p. 58).

Encarregado de zelar pela eficiência da Constituição, o Tribunal italiano passou a de-cidir de forma inovadora, emitindo sentenças “normativas”, a partir da manipulação de textos legais, buscando assegurar efetividade àqueles direitos entendidos como meramente pragmá-ticos. Alterando o paradigma kelseniano, pelo qual aos tribunais constitucionais incumbiria a função de legisladores negativos, o Tribunal italiano passou a produzir decisões positivas, que inovaram a ordem jurídica, principalmente nos casos de omissão legislativa.

Ao longo da década de 70, a redemocratização e a reconstitucionalização de Portugal (1976) e da Espanha (1978) também agregaram valor e volume ao debate sobre o novo direito constitucional.

Em Portugal, o poder judicial na era do autoritarismo teve um papel muito tímido face à discricionariedade governamental e policial do regime ditatorial em vigor até 25 abril de 1974, onde a ordem jurídica procurava fornecer uma validação sistemática e coerente das vio-lações do rule of law na base de normas positivas, fossem elas regulamentos menores, decretos governamentais ou mesmo disposições constitucionais (COUTINHO, p. 53-61).

A aprovação da Constituição da República Portuguesa de 1976 veio dar ao Judiciário uma outro rosto com a inclusão na mesma da sua independência e dos direitos fundamentais que já mencionados anteriormente. A partir desse momento, o Judiciário português passou a ter uma maior área interventiva no panorama jurídico/social, desempenhando um papel cru-cial na defesa dos cidadãos e dos seus interesses basilares.

Igualmente, na Espanha, observa-se um papel ativo da jurisdição constitucional na vida política. O Tribunal Constitucional espanhol atua como um garantidor dos preceitos es-tabelecidos pelo legislador na Carta Magna. Porém, terá a liberdade de exercer uma postura

6 Apesar de exigir um certo numero de juízes federais, possui também caráter politico. A aprovação dos candida-tos é feita por 2/3 do parlamento, o que implica em certa legitimação popular.

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ativista sempre que houver uma inércia do Parlamento.O ativismo judicial espanhol, dessa forma, manifesta-se pelo:

[…] desenvolvimento jurisprudencial de técnicas e modalidades de pro-vimento que permitem a concretização de atividades distintas da simples chancela de validade ou nulidade dos temas submetidos a controle. É no espaço da eventual baixa de densidade de normas constitucionais, já advertia Gomez Puente, que a atividade interpretativa encontrará maior liberdade de atuação; e justamente esses espaços proporcionaram na Es-panha o desenvolvimento das sentenças interpretativas e aditivas, veículos da concretização do ativismo judicial (VALLE, 2009).

Assim, no ordenamento espanhol, também cabe ao Poder Judiciário agir sempre que houver inércia do Poder Legislativo, a fim de que não ocorra uma nova omissão, desta vez do Tribunal Constitucional.

3. ATIVISMO E JUDICIALIZAÇÃO NO BRASIL

No Brasil, é possível identificar as fortes influências estrangeiras na formação do mo-delo judicial vigente e da forte tendência de judicialização de matérias fundamentais para a sociedade.

O sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós combina a matriz norte-americana – em que juízes e tribunais podem pronunciar a invalidade de uma norma no caso concreto – e a matriz europeia, que admite ações diretas ajuizáveis perante a corte constitucional.

Aqui, o controle de constitucionalidade existe, em molde incidental, desde a primeira Constituição Republicana, de 1891, editada sob os auspícios do liberalismo e pela ação nacio-nal-unitária de Rui Barbosa, com a criação do Supremo Tribunal Federal.

Antes disso, no modelo consagrado pela Constituição de 1824, exercia o Imperador não apenas a função de Chefe do Poder Executivo, mas também o Poder Moderador, que de-veria ser a chave de toda a organização política, cumprindo-lhe assegurar a independência, o equilíbrio e a harmonia entre os Poderes (MENDES, 1999, p. 23).

O Supremo Tribunal de Justiça (e não Federal, note-se), instituído em 1829, tinha competência limitada, que se restringia, fundamentalmente, ao conhecimento dos recursos de revista e à competência para julgar os conflitos de jurisdição e as ações penais contra os ocupantes de determinados cargos públicos.

A partir da Constituição Federal de 1934, de curta vigência, foram definidas as ga-rantias da magistratura e atribuída à Corte Suprema (e não mais STF, como denominado em 1891) a competência para processar e julgar, na forma de Recurso Extraordinário, situações concretas que confrontassem o texto constitucional, em verdadeiro controle difuso. A Carta de 1937, por sua vez, restabeleceu as funções primordiais (e nomenclatura) do STF, mantendo o que foi agregado pela Constituição anterior.

A Carta Magna de 1946 igualmente não rompeu com as conquistas anteriores, mas diante do momento liberal democrático que atravessava o país, deixou transparecer que pre-valecia, em questões de avaliação da constitucionalidade ou não de leis e atos normativos, o poder político sobre o poder judicial, o que, historicamente, pode-se entender que o Senado, enquanto patrono da lei geral, era competente para interromper como efeito geral (erga om-nes) declarações de inconstitucionalidade que se desenvolveram a partir de casos concretos individuais (BASTOS, 2013).

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No período da ditadura que se instalou no Brasil, a Constituição Federal de 1946 ino-vou, dando ao Poder Executivo legitimidade, através do Procurador Geral da República, indi-cado pelo Presidente da República, para questionar junto ao Supremo a constitucionalidade de leis e atos. Nesse período, o Poder Executivo deteve a maior “força” entre os poderes insti-tuídos, inclusive porque também, como de praxe, indicava membros do STF.

Finalmente, a Constituição Federal de 1967, alterada substancialmente pela Emenda Constitucional número 1/69, em pleno atendimento aos interesses da junta militar, formatou um quadro jurídico que, dificilmente, pelos seus excessos intervencionistas e restritivos dos direitos individuais, poderia ser compreendido como uma Constituição. Este período, marcado pelo afastamento prematuro de alguns ministros do STF7, refletiu um contexto de radicaliza-ção autoritária que reduzia drasticamente o efeito ou as dimensões jurídicas, mesmo que de natureza processual, da decisões do Supremo (e, por extensão, de todo o Poder Judiciário).

Nada obstante, a jurisdição constitucional expandiu-se, verdadeiramente, com a vigên-cia da Constituição de 1988.

A partir dela, inclusive na fase de discussão prévia, convocação, elaboração e promul-gação, ocorreu o renascimento do direito constitucional pátrio.

Sem ignorar maior ou menor gravidade no seu texto, e as frequentes emen-das ao longo dos anos, a Constituição foi capaz de promover, de maneira bem sucedida, a travessia do Estado brasileiro de um regime autoritário, intolerante e, por vezes, violento, para um Estado democrático de direito (BARROSO, 2013).

Esta última e ainda vigente Constituição, contudo, atendendo aos anseios da sociedade e inspirada nas Cartas estrangeiras já citadas, positivou inúmeras questões que ultrapassam as regulamentações de praxe de uma carta política-fundamental.

Assim, como as constituições alemã (1949), portuguesa (1976) e italiana (1947), a Constituição Federal de 1988 está muito distante da ideia de decisão política-fundamental.

É que as constituições contemporâneas não se limitam às regras clássicas do constitu-cionalismo dos séculos XVIII e XIX, trazendo uma vasta estrutura de normas diretivas e pro-gramáticas, fixando balizas importantes no campo dos direitos sociais, econômicos, culturas, ambientais, entre outros.

Busca-se, nesta nova fase constitucional, a realização de uma justiça substancial, em busca de resultados justos. No mundo pós-liberal são diversas as obrigações de caráter positivo impostas ao Estado, pelas constituições, o que aumenta o problema do descumprimento pelo legislador e pelo governo das diretrizes constitucionais (VIEIRA, 1994, p.34).

Nesse contexto, de acordo com Oscar Vilhena Vieira (1994, p. 34), um dos mecanis-mos criados com o objetivo de minorar esse problema foi a atribuição ao Poder Judiciário de controle sobre as omissões inconstitucionais perpetradas pelos poderes constituídos. Dessa forma, os tribunais passam de uma posição meramente negativa ou de bloqueio, para uma situação em que lhes são atribuídas competências positivas, o que provoca dificuldades tanto técnicas, como de justificação de seu poder.

Recorre-se ao Judiciário como último guardião dos ideais democráticos, notadamente em razão da retratação do sistema representativo e de sua incapacidade de cumprir as promes-sas de justiça e igualdade.

Ainda de acordo com citado autor, isso “gera, evidentemente uma situação paradoxal, pois, ao buscar suprir as lacunas deixadas pelo sistema representativo, o judiciário apenas

7 Em 1969, foram compulsoriamente aposentados pelo regime militar os ministros Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal, por força do Ato Institucional número cinco (AI-5)

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Capítulo 12

contribui para a ampliação da própria crise de autoridade da democracia” (VIEIRA, 2008, p. 441-464).

Nesse cenário, o órgão de cúpula do Poder Judiciário ganhou grande relevância, pois cabe a ele, no sistema atual, dar a última palavra sobre a constitucionalidade das muitas nor-mas questionadas, pelos mais diversos legitimados para tanto.

Raros são os dias em que as decisões do STF não se tornam manchete dos principais jornais brasileiros, seja no caderno de política, economia, legislação, polícia e, não menos raro, nas páginas de ciência, educação e cultura.

Embora o Supremo tenha desempenhado posição relevante nos regimes constitucio-nais anteriores, com momentos de enorme fertilidade jurisprudencial e proeminência política, como na Primeira República, ou ainda de grande coragem moral, como no início do período militar, não há como comparar a atual proeminência do STF, para melhor ou para pior, com a sua atuação passada.

Passa o Supremo, então, agora no centro político da República, a exercer 3 importantes papéis que “agigantam” a sua autoridade, em claro desequilíbrio na balança dos Poderes. São eles: Suprema Corte, ou seja, órgão máximo, de cúpula do Judiciário; Corte Constitucional, dedicado a apreciar de forma concentrada as leis e atos emanados na vigência da Constituição; e, finalmente, foro especializado, destinado ao julgamento penal de ocupantes de cargos de alta relevância.

No exercício da função de Suprema Corte e de Corte Constitucional é que se materia-liza a função precípua do STF.

Objetivando ilustrar a judicialização de importantes temas da sociedade e a relevância do pronunciamento do Supremo após a Constituição de 1988, podem ser citados alguns casos de grande repercussão no cenário econômico-político-social-educacional-científico do país, julgados ou na pauta do Colegiado, entre eles os que envolveram a vigência do Plano Collor, o desbloqueio dos Cruzados, a possibilidade de reedição de medidas provisórias, o impeachment do ex-Presidente Collor, a discussão sobre direitos políticos, ficha-limpa, a barreira política, a fidelidade partidária, número de vereadores, a pesquisa embrionária de células-tronco, o sis-tema de cotas raciais, desarmamento, aborto, demarcação de terras indígenas, distribuição de medicamentos, direito de greve, lei de imprensa, poder de investigação do Ministério Público, guerra fiscal, CPMF, entre muitos outros.

4. CONCLUSÃO

A constitucionalização de direitos e o aumento da demanda por justiça por parte da sociedade provocaram, no Brasil, uma intensa judicialização das relações políticas e sociais, assim como naturalmente aconteceu na Europa e nos Estados Unidos da América, fontes ins-piradoras do atual sistema constitucional brasileiro.

Como decorrência, houve uma importante ascensão do Poder Judiciário e, especial-mente, do Supremo Tribunal Federal, que, frequentemente fazendo uso de um grande ativis-mo político, vem cada vez mais se firmando como último guardião dos ideais democráticos, notadamente em razão da retratação do sistema representativo e de sua incapacidade de cum-prir as promessas de justiça e igualdade.

O poder de controle de constitucionalidade, realizado sobre cláusulas constitucionais abertas, permitiu que a referida Corte proferisse decisões de natureza política em inúme-ras oportunidades, sendo difícil asseverar se elas se distanciaram da correta interpretação da Constituição, haja vista seus preceitos flexíveis e abstratos, bem como o momento histórico em que as decisões foram proferidas.

Diante dessa crescente imposição do entendimento final da Corte sobre os mais diver-sos temas, analisados cada vez menos sob os aspectos jurídicos e cada vez mais sob os critérios

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Capítulo 12

políticos-sociais-econômicos-culturais, muitas e contundentes são as críticas, assim como fre-quente é o clima de desconfiança em relação ao papel que deve ser exercido pela Corte Cons-titucional. Nada, contudo, que possa ser tido por estranho às várias mutações e adaptações ocorridas em relação ao STF ao longo de sua existência.

Dessa forma, o debate acerca do equilíbrio que deve haver entre supremacia consti-tucional, interpretação judicial da Constituição e processo político majoritário mostra-se de suma importância, pois a atual configuração do papel desenvolvido pelo STF, principalmente em razão da crise de legitimidade por que passam o Legislativo e o Executivo, é tema que me-rece muita reflexão no presente, sem perder de vista o que foi construído do passado, para que se alcance um futuro menos tumultuado.

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O NOVO MODELO CONSTITUCIONAL A PARTIR DOS TRATADOS SOBRE DIREITOS HUMANOS: IMPLICAÇÕES NA TUTELA JURISDICIONAL DOS DIREI-

TOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA1

Capítulo 13

Ivna Cavalcanti Feliciano2 Marcelo Labanca Corrêa de Araújo3

1. COLOCAÇÃO DO TEMA

O presente trabalho se insere na temática da proteção jurídica das pessoas com defi-ciência e tem por objetivo analisar especificamente a questão da incorporação pelo Brasil de um tratado de Direitos Humanos sobre o tema, identificando de que maneira a concepção de um novo modelo constitucional, com o aumento do bloco de constitucionalidade, pode inter-ferir para a ampliação da proteção dos direitos das pessoas com deficiência.

Busca-se mostrar que o modelo de constituição brasileiro foi alterado a partir da in-clusão do §3°ao artigo 5° da CF, por meio da criação de um bloco de constitucionalidade que motivou a existência de conteúdos constitucionais alheios ao corpo matriz da constituição. O que era antes compreendido em um único texto, agora pode ser fragmentado.

O trabalho parte da premissa teórica de que podemos ter uma Constituição fragmen-tada e o processo de alteração da constituição agora vigente pode trazer como consequência a indefinição sobre qual é a nossa verdadeira constituição, ou quais são as normas que estão em vigor. O que está em jogo é justamente a forma de alteração da Constituição Federal.

Com a categorização da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência ele-vada ao status constitucional, único Tratado de Direitos Humanos até o presente momento com essa hierarquia, as decisões judiciais envolvendo a proteção da pessoa com deficiência devem estar contextualizadas com esse novo cenário, decorrente da inauguração de um novo modelo de constituição.

Isso se aplica principalmente ao Supremo Tribunal Federal, que não deve ignorar a CDPD no ato de sua aplicação para proteção dos direitos das pessoas com deficiência.

Nessa linha, busca-se responder ao questionamento se o Supremo Tribunal Federal passou a decidir e fundamentar suas decisões com base na CDPD, após a sua internalização,

1 Este trabalho foi desenvolvido durante o curso da disciplina “Lógica do Procedimento Jurídico” no Programa de Pós-Graduação stricto sensu da Universidade Católica de Pernambuco e publicado nos anais do IV Congresso da ABraSD.

2 Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, vinculada à linha de Pesquisa “Jurisdição Constitucional e Direitos Humanos”. Oficiala de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. [email protected]

3 Professor da graduação e membro permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Procurador do Banco Central. Mestre e Doutor em Direito (UFPE). Pós-Doutorado (com bolsa CAPES) em Direito pela Universidade de Pisa - Italia. [email protected]

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Capítulo 13

ou se continua a aplicar a legislação pretérita à sua entrada em vigor. Vejamos.

2. DISTINÇÕES TERMINOLÓGICAS: DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITOS HUMA-NOS

Primeiramente, antes de objetivamente adentrar na temática dos Direitos e Garantias Fundamentais e Direitos Humanos, é imprescindível realizar uma distinção e entre esses dois objetos de estudo. Para isso, é necessário determinar a abrangência dos conceitos das palavras: Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, em virtude da amplitude de interpretações possí-veis a partir da leitura e do contexto de utilização desses dois termos.

Nesse sentido para o entendimento do alcance do termo “Direitos Fundamentais”, é imprescindível compreender o que são os direitos fundamentais e a distinção existente entre as concepções possíveis do termo.

Essa lição é ensinada pelo constitucionalista Português, Canotilho (2000, p.377), que entende que os Direitos Fundamentais são os direitos considerados “naturais” e “inalienáveis” do indivíduo, que quando positivados, e conferido-lhes a dimensão de Fundamental rights, ou seja, quando essencialmente positivados como fontes do direito, tornam-se normas cons-titucionais. Assim, quando não positivados, não passam de ideais ou aspirações, sem caráter normativo de regras e princípios de direito constitucional. Não são, portanto, considerados direitos.

A existência de direitos fundamentais está diretamente associada à existência de uma constituição e de consequências jurídicas oriundas desses direitos, ainda que a positivação não signifique plena efetividade dessas normas jurídicas.

Nesse sentido defende Alexy (2002, p. 47):

Siempre que alguien posee un derecho fundamental, existe una norma vá-lida dede derecho fundamental que le otorga este derecho. Es dudoso que valga lo inverso. No vale cuando existen normas de derecho fundamental que no outorgan ningún derecho subjetivo.

Ainda de acordo com os preceitos do constitucionalista Português, os Direitos Funda-mentais podem ser classificados de duas formas: formalmente constitucionais e materialmen-te fundamentais (CANOTILHO, 1996, p. 528).

Os Direitos Fundamentais formalmente constitucionais, são normas postas no topo da pirâmide da ordem jurídica, normas constitucionais com procedimento de revisão agravados, e podem, inclusive, constituir limites materiais ao próprio poder de revisão, sendo normas vin-culativas dos poderes públicos e que “constituem parâmetros materiais de escolhas, decisões, ações e controle dos órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais (CANOTILHO, 200, p.379)”.

Já a fundamentalidade material diz respeito à abertura da constituição a outros di-reitos, também fundamentais, mas não constitucionalizados, isto é, direitos materialmente, mas não formalmente fundamentais, por não obedecerem ao critério formal de positivação de Direitos Fundamentais. No entanto, esses direitos fundamentais não positivados são conside-rados normas abertas que auxiliam no desenvolvimento do sistema constitucional.

Naturalmente, a visão adotada de Direitos Fundamentais no Brasil, principalmente por parte do Supremo Tribunal Federal (órgão que possui a sua atividade examinada por este estudo), se atém ao quesito formal da positivação constitucional do direito. Ou seja, havendo a previsão constitucional, está-se diante de um direito fundamental. Nessa linha se posiciona

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Capítulo 13

Ingo Sarlet, para quem a terminologia “direito fundamental” deve ser utilizada sempre quando se está diante de um direito do ser humano reconhecido constitucionalmente na ordem jurí-dica de determinado Estado (SARLET, 2005: 35). A caracterização de um direito fundamental é importante porque traz consigo a aplicação do respectivo regime jurídico dos direitos funda-mentais. No mesmo sentido, Paolo Caretti, ao reafirmar “la costituzione come única fonte dei diritti fondamentali” (CARETTI: 2011, 176).

Diferentemente do conceito de Direitos Fundamentais (que nascem com as Consti-tuições), a expressão Direitos Humanos pode ser explicada como os direitos dos homens, por serem homens, no sentido lato da palavra, sendo assim humanos, mas possuindo um campo de proteção internacional. Não são os direitos dos homens na visão jusnaturalista, mas sim os direitos positivados em tratados e em um âmbito de proteção internacional de direitos. Assim também se posiciona Ingo Sarlet, para quem a expressão direitos humanos guardaria mantém uma estreita aproximação com os diplomas de direito internacional, protegendo o situações ju-rídicas do ser humano independentemente de sua vinculação com determinada ordem cons-titucional (2005; 36)

Dentre tantos conceitos disponíveis na doutrina, a definição formal de Jorge Miran-da (1993, p.9) sobre o tema merece ser destacada e criticada. Para ele os Direitos Humanos são “toda posição jurídica subjetiva das pessoas enquanto consagrada na Lei Fundamental”. Por assim dizer, os Direitos Humanos, são, portanto, pertencentes a todos os homens, não podendo eles recursar esses direitos fundados na Lei Fundamental. São os direitos Humanos indisponíveis e sui generis (RAMOS, 2013, p. 31). Apesar da consideração de Miranda, não se pode olvidar que as posições subjetivas protegidas por uma Constituição são referentes mais a direitos fundamentais do que a direitos humanos. Ou seja, quando Miranda diz que os direitos humanos se encontram consagrados na “lei fundamental”, quer ser referir, em verdade, aos direitos fundamentais.

A distinção terminológica entre direitos fundamentais e direitos humanos é baseada menos nas diferenciações entre os direitos em si, e mais na diferenciação entre os âmbitos de positivação e proteção desses direitos . Assim se pautou a nossa Constituição de 1988, utilizan-do a expressão “direitos fundamentais” para o rol de direitos descritos a partir do artigo 5º. Já a a expressão “direitos humanos” aparece diversas vezes no texto constitucional, sempre atre-lada a um campo de proteção internacional. É assim no art. 4º, ou mesmo no art. 7º do ADCT. Ao se encontrar a expressão “direitos humanos” na Constituição brasileira, sempre aparece em uma vinculação ao plano internacional. Todavia, como dito, Direitos Humanos e Direitos Fundamentais são expressões que não designam necessariamente direitos diferentes. O direito á vida, por exemplo, pode ser protegido no plano internacional enquanto um direito humano, e no plano constitucional enquanto um direito fundamental. Assim, vê-se que são expressões diferentes porque se propoem a dar uma perspectiva diferente ao âmbito de proteção de direi-tos que podem ser os mesmos. Direitos fundamentais é expressão utilizada para designar os direitos previstos no plano constitucional, nas constituições. Já a expressão direitos humanos é utilizada normalmente para designar um âmbito internacional de proteção de direitos.

Ultrapassada a barreira da distinção entre esses dois conceitos, buscar-se-á entender o processo institucionalização desses direitos no Brasil pela Constituição Federal de 1988, anali-sando em que medida a previsão do parágrafo terceiro do artigo quinto mitiga a diferenciação entre direitos humanos e fundamentais.

3. OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NO BRASIL A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE-CORRENTES

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Capítulo 13

Para entender o constitucionalismo dos Direitos Humanos Internacionais no Brasil é necessário rapidamente entender o processo histórico de constitucionalização desses direitos no mundo. Acontecimentos como o fim do regime feudal e a aprovação da Declaração dos Di-reitos do Homem em 1789, surgem como o princípio de uma nova era (BOBBIO, 2010, p.113).

No século XIX em virtude dos textos das Declarações de Direitos passarem a ser inseri-dos nas constituições dos Estados, ocorreu um processo de constitucionalização formal desses direitos conforme classificação oriunda dos ensinamentos de Canotilho vistos anteriormente. O pós-guerra vem alimentar ainda mais esse movimento de internacionalização dos direitos humanos e “acaba por criar uma sistemática internacional de proteção dos direitos humanos, mediante um sistema de monitoramento e fiscalização internacional” (PIOVENSAN, 2012, p. 72). Surge assim o Direito Internacional dos Direitos Humanos e sua inter-relação com o direito interno de cada país.

A Constituição Federal de 1988 foi o marco do regime jurídico democrático do Brasil e constituiu um documento de grande importância para o constitucionalismo em geral (SIL-VA,1990, p.80). É considerada um marco, em virtude do momento histórico de transição que o país estava vivenciando, de saída de um regime ditatorial militar, onde a nação urgia por mudanças efetivas do poder político estatal.

Foi também o diploma inaugural de Direitos Humanos no país, a partir da inserção desses direitos no texto constitucional, fazendo com que o país passasse a integrar o cenário internacional de proteção dos Direitos Humanos e contasse com o aparato internacional na constitucionalização desses direitos (PIOVENSAN, 2012, p.71).

A previsão de institucionalização desses direitos foi perpetrada de forma expressa na Constituição Federal de 1988 ao dispor no § 2º do art. 5º que: “Os direitos e garantias expres-sos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Vê-se então que podem existir direitos fundamentais dentro e fora do catálogo do tí-tulo II da Carta de 1988. E dentre os que estão de fora, existem os direitos decorrentes de princípios, decorrentes de regime e decorrentes de tratados. Nesse passo, houve expresso re-conhecimento de que, havendo tratado celebrado pelo Brasil, ali se pode identificar direitos fundamentais (pois a previsão constitucional de direitos dentro do catálogo não exclui outros que eventualmente possam ser decorrentes de tratados). Daí falar-se em “direitos fundamen-tais decorrentes”.

Assim é possível perceber que o legislador de 88 preocupou-se com a legitimação da legislação Internacional no Direito Brasileiro, garantindo que os direitos decorrentes dos tra-tados internacionais que o Brasil faz parte, não serão excluídos pelos direitos constitucionais. Estes, portanto, recepcionarão os direitos decorrentes dos tratados internacionais que o país subscreve.

4. O PROCESSO DE INTERNALIZAÇÃO DE TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS SOBRE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL, ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N°. 45/04

A Emenda Constitucional de número 45 de dezembro de 2004, alterou o §3º do artigo 5° da Constituição Federal, no que tange à forma de recepção constitucional dos Tratados e Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos.

Anteriormente à alteração do referido parágrafo, os Tratados e Convenções Interna-cionais sobre Direitos Humanos ingressavam no ordenamento jurídico brasileiro com hierar-quia de lei ordinária e, depois, com alteração do entendimento do Supremo Tribunal Federal, com hierarquia de supralegalidade (mas sempre infraconstitucoinal).Assim a aprovação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos seguia o mesmo trâmite legislativo dos demais

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tratados e tinham como base legislativa constitucional os arts. 84, inciso VIII e 49, inciso I4. Entretanto, com a redação dada à pela EC 45/04, ao §3º do Artigo 5°5, foi conferido a

esses tratados recepção constitucional com status equivalentes às Emendas Constitucionais. A alteração do parágrafo §3º do Artigo 5° tem gerado ampla discussão doutrinária

quanto a possibilidade de conferir mesmo status constitucional aos Tratados e Convenções Internacionais ratificados pelo Brasil, anteriormente à alteração legislativa do parágrafo supra-mencionado, e como se daria essa possibilidade de equiparação às Emendas Constitucionais6. No entanto, esse não é o objeto principal deste estudo, que preocupa-se em observar os Trata-dos e Convenções Internacionais após a mudança normativa de 2004.

Após a alteração conferida ao §3º do Artigo 5° da CF pela EC 45 em 2004, o primeiro diploma normativo, que versa sobre matéria de Direitos Humanos, ratificado pelo Brasil foi a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Em cumprimento ao disposto na referida emenda, a convenção foi devidamente aprovada em dois turnos de votação, em cada casa do Congresso Nacional, por 3/5 dos votos dos respectivos membros, sendo o único diploma normativo até a presente data a possuir status de Emenda Constitucional no Direito Brasileiro.

Não por menos foi dado tratamento especial à aprovação da Convenção sobre os Direi-tos das Pessoas com Deficiência nos termos do disposto no §3º do Artigo 5° da CF conferindo assim status constitucional à referida convenção. A temática tem adquirido força no cenário Internacional de proteção aos direitos de grupos minoritários, frequentemente afetados pela ausência de normas protetivas sobre o tema.

Com a recepção da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pelo or-denamento jurídico com status de Emenda Constitucional, passar a haver uma alteração no cenário Constitucional nacional com a possibilidade de existência de normas constitucionais localizadas fora do escopo normativo da Constituição, o que possibilitou a criação de blocos de constitucionalidade alheios ao corpo matriz da constituição.

Assim, pode-se perceber que, quando um direito previsto em um tratado internacional, que antes era considerado enquanto um direito “humano”, passa a ser internalizado pelo mes-mo processo legislativo das emendas, esse direito passa a ser considerado também um direito fundamental, pois o decreto legislativo que aprova o tratado internacional não poderia fazer isso por meio de lei.

5. O AUMENTO DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE: UM NOVO MODELO DE CONSTITUIÇÃO E AS IMPLICAÇÕES NA TUTELA JURISDICIONAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

A incorporação pelo Brasil de tratados internacionais de Direitos Humanos nos ter-mos do §3º do Artigo 5°, possibilitou a existência de um bloco de constitucionalidade, que é composto de normas de conteúdo normativo constitucional, mas que são oriundas de tratados internacionais de Direitos Humanos e assim não compõe o corpo matriz da constituição. Na

4 “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: VIII - celebrar tratados, convenções e atos in-ternacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional; Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (BRASIL, 2013);

5 “Artigo 5°. § 3º “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equiva-lentes às emendas constitucionais”. (BRASIL, 2013)

6 Para ler sobre o assunto, acessar: HTTP://www.conjur.com.br/2013-mai-30/toda-prova-tratados-direitos-huma-nos-anteriores-ec-4504. acesso em: 30/09/2013.

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definição de André de Carvalho Ramos, o bloco de constitucionalidade em sentido amplo con-siste “no reconhecimento, ao lado da Constituição, de outros diplomas normativos de estatura constitucional” (RAMOS, 2013, p. 277).

A ideia de bloco de constitucionalidade é utilizada também pelo Supremo Tribunal Federal, a fim de definir a relação de parametricidade entre norma violada constitucional e norma violadora infraconstitucional. Veja-se o caso da ADI 514/PA, de relatoria do min. Celso de Melo, verbis:

A definição do significado de bloco de constitucionalidade - independen-temente da abrangência material que se lhe reconheça (a Constituição escrita ou a ordem constitucional global) - reveste-se de fundamental im-portância no processo de fiscalização normativa abstrata, pois a exata qua-lificação conceitual dessa categoria jurídica projeta-se como fator determi-nante do caráter constitucional, ou não, dos atos estatais contestados em face da Carta Política.

A principal consequência da existência do bloco de constitucionalidade no ordena-mento jurídico brasileiro é que a partir deste fato, os princípios referentes à supremacia da constituição têm agora nova leitura, no sentido de serem considerados mecanismos de concre-tização da supremacia, não só da constituição, mas também do bloco de constitucionalidade (RAMOS, 2013, p. 279). Ou seja, das normas que o compõe, incluindo, como dito, os tratados internacionais de Direitos Humanos aprovados nos termos do §3º do Artigo 5° da CF.

Isso termina interferindo nos critérios clássicos terminológicos de diferenciação de direitos humanos para direitos fundamentais, pois passa-se a ter direitos reconhecidos em ordem internacional cuja fonte passa também a ter jaez constitucional. Afinal, uma coisa é ter um direito previsto em um normativo internacional e, ao mesmo tempo, coincidentemen-te, previsto de igual forma em algum artigo da Constituição. Outra coisa é quando o mesmo diploma normativo internacional é considerado, por ato parlamentar nacional, uma norma constitucional, nos termos do parágrafo 3º do art. 5º. Nesse segundo caso, o direito humano confunde-se com o direito fundamental, partindo da consideração de que os direitos funda-mentais são aqueles previstos no plano normativo constitucional.

Assim, o aumento do bloco de constitucionalidade a partir da internalização de trata-dos internacionais de direitos humanos, mediante a aprovação via processo de emenda cons-titucional, corresponde também ao aumento do rol dos direitos fundamentais brasileiros. A cada incorporação do tratado internacional, ocorre o aumento do catálogo dos direitos funda-mentais.

Com isso, o direito brasileiro passa a ser regido e constitucionalizado pelas normas essencialmente constitucionais e pelas normas oriundas dos tratados de Direitos humanos aprovados no quorum acima mencionado, sendo necessário, portanto, que a filtragem consti-tucional do ordenamento seja realizada à luz da constituição e dos mencionados tratados.

Desta forma, os sistemas de controle de constitucionalidade devem atuar em sentido análogo, ou seja, considerando o texto essencialmente constitucional e os textos relativos aos tratados em estudo. Em consequência, como o fulcro de concretizar o conteúdo normativo desses tratados, é cabível os mecanismos de ação próprios do controle de constitucionalidade na defesa dos direitos tutelados pelos tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil na forma qualificada.

Assim, a incidência do recurso extraordinário, por exemplo, quando a decisão impug-nada contrariar dispositivo da Constituição, passa a ser cabível também quando a decisão impugnada contrariar dispositivo dos tratados aprovados nesses termos.

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Ocorre que desde a EC 45/04, os únicos tratados internacionais de Direitos Humanos aprovados nos termos do §3º do Artigo 5° da CF foram: a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu Protocolo facultativo. Assim, ambos, hoje com-põe o bloco de constitucionalidade externo ao corpo matriz da constituição, mas com conteú-do constitucional idêntico às suas normas. Consequentemente subordinados aos mecanismos de controle e filtragem constitucionais.

Desta forma, o Supremo Tribunal Federal além de ter o papel de guardião da consti-tuição, agora, possui o papel de guardião dos tratados internacionais aprovados no quorum mencionado acima. Por consequência do único tratado aprovado nesses termos ser a conven-ção sobre os direitos das pessoas com deficiência, é, portanto, o STF guardião das dos Direitos das Pessoas com Deficiência, devendo acautelar esses direitos e promover a sua concretização normativa.

6. COMPORTAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA ENQUANTO NORMA INTEGRANTE DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE

Considerando que a CDPD integra, atualmente, o bloco de constitucionalidade brasi-leiro, é de se indagar se o Supremo Tribunal Federal vem dando o correto tratamento (cons-titucional) quando se depara com um caso de judicialização dos direitos das pessoas com deficiência. Afinal, o fato de ser a Convenção uma norma constitucional deve trazer à reboque toda a aplicação do regime jurídico-constitucional, tanto do ponto de vista do sistema de fontes quanto do ponto de vista da proteção jurisdicional por órgãos que tem o dever de guardar a Constituição, como, por exemplo, o STF.

Quer-se com isso afirmar que há um tratamento jurídico diferenciado a depender da fonte de onde emana o direito. A proteção de direitos infraconstitucionais é, processualmente, tratada de forma diferente à proteção de direitos fundamentais, inclusive quanto ao sistema recursal.

Considerando essa premissa, partiu-se para o exame do tratamento da proteção dos direitos das pessoas com deficiência, realizando pesquisa na base de dados de dois Tribunais, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal.

A ideia norte era examinar se a premissa adotada pelo STF para julgar esses casos se pautou, ou não, pela identificação do plano de proteção normativa (se infraconstitucional ou constitucional).

Ou seja, na medida em que o Superior Tribunal de Justiça examina casos envolvendo o direito das pessoas com deficiência, não estaria dando ele uma visão constitucional à Con-venção, mas sim uma visão infraconstitucional, pois, pelo sistema de fontes do artigo 59, a Convenção foi internalizada por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 2008.

A questão resume-se, então, em identificar se o Decreto Legislativo referido está sendo entendido como norma infraconstitucional ou como norma constitucional. E esse termômetro será medido a partir da constatação de uma maior (ou menor) atuação do Supremo Tribunal Federal (guardião da Constituição) no plano da proteção dos direitos das pessoas com deficiên-cia.

Vejamos. Um caso interessante, julgado após a edição do Decreto Legislativo 186, de 2008, refe-

re-se à análise do critério legal para definição de “necessidade” apta a ensejar recebimento de benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente.

No Recurso Extraordinário 567985 / MT, o Supremo Tribunal Federal declarou in-constitucional uma lei que ele mesmo no passado havia declarado constitucional em sede de controle concentrado (ADI 1.232.), sob a alegação de que mudanças fáticas na definição de

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Capítulo 13

miserabilidade ensejaram em um processo de inconstitucionalidade do art. Art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993.

Em verdade, na ADI 1.232, o STF tinha entendido como constitucional o critério legal para caracterização de necessidade (um quarto de um salário mínimo per capita na família) a ensejar a concessão do benefício social. Posteriormente, entendeu que tal critério não era mais constitucional, em virtude de mudança do quadro fático. Para tanto, o acórdão explicitamen-te enfoca a convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência (página 48 da decisão), mas não para potencializar um direito fundamental, e sim para entender que uma nova lei (12.470, de 2011), ao definir o valor de renda mensal per capita abaixo de 1/4 de salário mí-nimo como critério de incapacidade de manutenção da pessoa com deficiência, tinha levado em consideração a CDPD.

Já um outro caso julgado pelo Pretório Excelso, na ADI 2649 / DF, foi proposto pela Associação brasileira das empresas de transporte interestadual, intermunicipal e internacional de passageiros (ABRATI), para obter a declaração de inconstitucionalidade da lei 8.899/94 que concede passe livre às pessoas com deficiência. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal fez expressa menção à CDPD. Veja-se:

3. Em 30.3.2007, o Brasil assinou, na sede das Organizações das Nações Unidas, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como seu Protocolo Facultativo, comprometendo-se a implementar medi-das para dar efetividade ao que foi ajustado. 4. A Lei n. 8.899/94 é parte das políticas públicas para inserir os portadores de necessidades especiais na sociedade e objetiva a igualdade de oportunidades e a humanização das relações sociais, em cumprimento aos fundamentos da República de cida-dania e dignidade da pessoa humana, o que se concretiza pela definição de meios para que eles sejam alcançados. 5. Ação Direta de Inconstitucio-nalidade julgada improcedente.

Merece destaque o fato de que, muito embora haja menção à Convenção, a decisão é do mês de maio de 2008, enquanto que o decreto Legislativo 186 é de julho do mesmo ano. Ou seja, quando o STF prolatou a decisão acima, analisou a convenção mas não considerou a CDPD como sendo norma constitucional, pois ainda não havia sido aprovada internamente pelo procedimento do art. 5º, parágrafo 3º.

Além das duas decisões acima citadas, nenhuma outra foi capturada na pesquisa rea-lizada tomando como base a expressão “convenção sobre os direitos das pessoas com deficiên-cia”.

Assim, para que fique claro ao leitor, há apenas dois julgados que citam a CDPD no âmbito da jurisprudência da Corte Suprema brasileira.

A metodologia utilizada em sequência, para confirmar os parcos dados obtidos e inves-tigar se o Supremo Tribunal Federal continuou a examinar outros casos sobre pessoas com de-ficiência, negligenciando a CDPD, baseou-se na utilização de outro critério de busca: foi inse-rida a expressão “pessoas com deficiência”, excluindo-se, portanto, a expressão “convenção”. Com isso, a ideia era capturar outros julgados no âmbito do STF que discutissem a matéria dos direitos das pessoas com deficiência sem, todavia, decidir com base na CDPD.

Nessa segunda pesquisa apareceram 12 julgados, incluindo decisões anteriores e pos-teriores à entrada em vigor do Decreto Legislativo 186, de 2008.

Dos 12 julgados, apenas 5 foram julgados após a vigência da CDPD (RE 567985 / MT; AI 847845 AgR / RJ; ARE 658206 AgR / SC; AI 750605 AgR / RS e ADI 2649 / DF). E desses 5 julgados, dois deles já tinham sido capturados com a primeira busca booleana, utilizando a ex-pressão “Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência”. Restava, então, examinar

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os 3 casos que foram julgados após a entrada em vigor da CDPD e que em relação aos quais não constava a expressão “Convenção”. Ou seja, decidiam questões relativas aos direitos das pessoas com deficiência sem considerar a convenção, mesmo já estando em vigor a conven-ção. Repita-se, a ideia era verificar se os julgamentos de questões referentes aos direitos das pessoas com deficiência levaram, ou não, em consideração a aplicação da CDPD como norma constitucional que é.

O resultado foi negativo. Dos 5 julgados envolvendo o tema das pessoas com deficiência existentes na base de

dados do Supremo Tribunal Federal após 2008, apenas 2 citam a Convenção (os dois casos já vistos acima).

E o mais grave: em alguns casos houve expressa negligência à caracterização da con-venção com o seu correlato status de norma constitucional.

Nessa linha, veja-se a ementa do ARE 658206 AgR / SC, verbis:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DESTINADO A PESSO-AS COM DEFICIÊNCIA. MAJORAÇÃO DO VALOR PAGO. LEIS CA-TARINENSES 6.185/1982 E 7.702/1989, LEI FEDERAL 8.742/1993 E CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. 1. CONTROVÉRSIA CIRCUNSCRITA À LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. 2. AUSÊNCIA DE PRE-QUESTIONAMENTO. 1. Eventual ofensa ao Magno Texto apenas ocorre-ria de modo reflexo ou indireto, o que inviabiliza a abertura da via recursal extraordinária. 2. Incide a Súmula 282/STF. Agravo regimental desprovido

Do julgado acima, nota-se que o Supremo Tribunal Federal entendeu que a controvér-sia alcançava apenas o direito infraconstitucional (leis catarinenses em conflito com leis fede-rais e constituição estadual), nada falando sobre a força normativo-constitucional da CDPD.

Um caso parecido pode ser observado no AI 750605 AgR / RS, onde a agravada era a Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas Portadoras de Deficiência e de Altas Habilidades no Rio Grande do Sul. Veja-se:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRABALHISTA. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA. IMPOSSIBILIDADE DA ANÁLISE DE LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA CONSTITUCIONAL INDIRETA. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO

No caso acima relatado, a Suprema Corte não deu provimento ao Agravo sob a alegação de que o Tribunal a quo teria decidido a questão de acordo com a jurisprudência e com a legis-lação infraconstitucional pertinente, não encontrando razão no plano da constitucionalidade para rever a decisão.

Houve, também, o julgamento do AI 847845 AgR / RJ, entendendo ilegítima a preten-são de empresa de transporte em cobrar valores de passagens de pessoas com deficiência. Mas, mesmo nessa decisão, favorável às pessoas com deficiência, o caso foi julgado não com base na CDPD, mas sim com base na constitucionalidade da lei que protege os direitos das pessoas com deficiência em razão da legítima competência legislativa para decidir.

Assim, nota-se que, da coleta de dados realizada no Supremo Tribunal Federal, não foi possível identificar uma efetiva utilização da CDPD para decidir questões envolvendo os direi-tos das pessoas com deficiência, aparentando estar havendo uma negligência em relação ao

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novo bloco de constitucionalidade do direito brasileiro, que considera normas constitucionais não apenas aquelas oriundas do poder constituinte originário ou de emendas constitucionais, mas também inclui no plano da constitucionalidade as normas de decreto legislativo que apro-va texto de norma internacional sobre direitos humanos.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito embora o Brasil tenha incorporado à carta magna, a CDPD em sua integralidade desde 2008, é possível perceber que passados cinco anos, o conteúdo constitucional da referi-da convenção não tem sido considerado no fundamento das decisões da corte suprema do país na tutela dos direitos das pessoas com deficiência. Assim, as legislações infraconstitucionais, que muitas vezes, afrontam diretamente o conteúdo da convenção continuam sendo utilizadas no fundamento das referidas decisões.

Os problemas que surgem a partir dessa constatação dizem respeito à aplicação da CDPD na análise de casos concretos. Pois, conteúdos que podem ser considerados material-mente ultrapassados no tocante aos direitos das pessoas com deficiência, continuam sendo utilizados como fundamento das decisões. Conteúdos estes, frequentemente baseados no mo-delo clínico médico, reforçado pelas legislações infraconstitucionais anteriores à convenção e muitas vezes são menos protetivo que a CDPD.

Vale lembrar que os direitos assegurados pela CDPD, apesar de poderem ser consi-derados “direitos humanos”, terminam ganhando todo o regime jurídico aplicáveis aos direi-tos fundamentais (como a supremacia constitucional, por exemplo. FIORAVANTI: 2009,129) pois, ao passarem a ser positivados no plano constitucional interno, levam consigo a marca dos direitos fundamentais (enquanto direitos que nascem nas Constituições; nesse caso, no bloco de constitucionalidade).

Assim, como demonstrado pelos dados expostos, muito embora a CDPD tenha ingres-sado no ordenamento com o objetivo de ampliar o arcabouço protetivo desse grupo minori-tário, e mesmo diante da importância dada pelo legislador à CDPD, ao elevá-la ao status de emenda, a não observância das diretrizes presentes na CDPD pelo Supremo Tribunal Federal pode mitigar a eficácia da proteção dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil.

REFERÊNCIAS

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BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. São Paulo: Editora Campus, 1992.

CARETTI, Paolo. I Diritti Fondamentali. Torino: Giapichelli, 2011.

CANOTILHO, José Joaquim.Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1996, 6. ed.

_______. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, 7. ed.

FIORAVANTI, Maurizio. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Trotta, 2009.

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimba: Coimbra Editora, 1993, 2. ed.

PIOVENSAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Internacional. São Paulo: Saraiva, 2012, 13 ed.

RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. São

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Capítulo 13

Paulo: Saraiva, 2013, 3. ed.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 1990. 6 ed. Vev. e ampl. De acordo com a nova Constituição.

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CONSTITUIÇÃO PARAESTATAL – LIGAÇÃO DO OFICIAL COM O REALCapítulo 14

Avner Pinheiro Cavalcanti1

“Não há normas. Todos os homens são excepções a uma regra que não existe.”Fernando Pessoa

1. INTRODUÇÃO

Tomada por base a longa história do Direito, o conceito moderno de Constituição é algo relativamente recente. No último século, este conceito ganhou extraordinária força – algo incomum até então. Contemporaneamente, se observa razoável consenso em entender a Constituição de um país como a norma fundamental de imperatividade absoluta em seu ter-ritório, não se sujeitando a nenhuma outra, e sujeitando todas as demais no referente espaço. Inerente ao inflacionamento moderno da teoria constitucional, multiplicam-se as correntes que tentam explicá-la. Um pensamento peculiar, no que diz respeito ao entendimento do ob-jeto Constituição, que na presente oportunidade pretendemos discutir, é o que chamaremos de Constituição paraestatal. Com essa expressão, nos referimos ao corpus socialmente vigente do dever ser fundamental de uma coletividade integrada socialmente. Ou de um modo mais simples: o conjunto de sentimentos, mais fundamental e estável, de dever ser de um povo.

A percepção do movimento constitucional moderno, já há mais de um século, foi sen-tida e descrita por Ferdinand Lassalle:

De onde provém essa aspiração, própria dos tempos modernos, de possuir uma Constituição escrita? [...] Somente pode ter origem, evidentemente, no fato de que nos elementos reais do poder imperantes dentro do país se tenha operado uma transformação (LASSALE, 1933, p. 13).

Para compreender tal afirmação, precisamos antes atentar ao que Lassalle entende por “fatores reais do poder”:

Os fatores reais do poder que regulam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apreço, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são (LASSALE, 1933, p. 5).

1 Bacharel em direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (2012) e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco – PPGD/UNICAP (entrada 2013). E-mail: [email protected].

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Assim definido um critério geral para conceituar o que são os “fatores reais do poder”, Lassalle passa a se dedicar, na sua obra, por enumerar quais seriam os principais fatores (LAS-SALE, 1933, p. 6-8): a) “um rei a quem obedecem o Exército e os canhões”; b) “uma nobreza influente e bem vista pelo rei e sua corte”; c) “os grandes industriais”; d) “grandes banquei-ros” e e) “a consciência coletiva e a cultura geral da Nação”. Juntos, estes fatores criam as circunstâncias reais que orientam o sentimento de dever-ser fundamental de um povo, ou, nas palavras de Juan Cruet, as “forças em presença” (CRUET, 1908, p. 106). Tal sentimento manifesta-se em um ciclo dinâmico, no qual, reciprocamente, é influenciado e influencia os “fatores reais do poder” ou “forças em presença”. Embora esteja sempre em movimento, ainda assim, mantém certa perenidade que permite diferenciá-lo de meros circunstancialismos do meio social.

Partindo dos elementos que lista, Lassalle propõe uma concepção diferente de Cons-tituição; concepção que ele estabelece mediante a dicotomia Constituição real e Constituição escrita ou folha de papel. A primeira guarda correspondência semântica coma ideia de Consti-tuição referida por Juan Cruet e intitulada de Constituição oculta ou Constituição costumaria. Cruet, assim como Lassalle, trabalha a dicotomia de uma Constituição faticamente real com uma Constituição escrita ou oficial.

Em síntese, ambos os autores advogam em suas obras a ideia de que todo e qualquer Estado, independente do período ou cultura, podem possuir uma Constituição formal e uma informal. A primeira é facultativa e é característica dos tempos modernos, já a segunda é ine-xorável à própria existência de um povo enquanto nação.

A relação entre a primeira e a segunda concepção de Constituição, que precipita uma terceira concepção, é que chamamos Constituição paraestatal (o adjetivo paraestatal2 foi esco-lhido pelo seu significado clássico). Feita essa breve introdução ao tema, passemos a explorar mais detidamente os pontos até então levantados.

2. A IDEIA DE CONSTITUIÇÃO PARAESTATAL

Tão necessária é a presença do direito para que exista uma sociedade, quanto é ne-cessária a existência de uma sociedade para permitir o direito. O equívoco interpretativo – o qual hodiernamente tem-se incorrido menos que outrora – é identificar todo o direito com a lei, sendo que esta é um mero instrumento do Estado. Ademais, outro equívoco – ainda pouco contestado – é a frequente inclinação dos juristas em identificar todo o direito com o fenômeno jurídico do organismo de Estado. Ou seja, compartilhada pelos juristas é a permanência do olhar primordialmente sobre o Estado.

Iniciando por uma compreensão semântica dos termos, já podemos vislumbrar uma diferença fundamental: jurídico advêm de iu-dico3 (=julgar, processar, condenar) e direito de directum (=dis [muito] + rectum [reto] = aquilo que deve ser veementemente de determinada maneira) (PEREIRA, 2012, p. 23), este último termo era de uso frequente entre o povo na antiguidade e o primeiro de uso frequente entre os juristas do mesmo período.

De pronto, percebe-se que “jurídico” e “direito” são coisas diferentes – ao menos en-quanto conceito –, estando um diretamente ligado à concepção estadista, e o outro à concep-ção po- pular. Ou se preferir, jurídico preserva afinidade com a ideia de Constituição formal, e direito com a ideia de Constituição não-formal. Numa análise um pouco mais detalhada, é

2 “Paraestatal: diz-se de ou entidade que, sem integrar a administração do Estado, com ela colabora na realiza-ção de serviços tendentes à satisfação das necessidades coletivas”. (HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0. Ed. Objetiva LTDA, Dezembro de 2001.)

3 KOEHLER, Pe. H. S. J. Dicionário Escolar LATINO-PORTUGUÊS - Enciclopédias e Dicionários Globo. Ed. Globo, Porto Alegre/RS. Edição 1415 A. ano? p. 453.

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possível perceber que, se jurídico diz respeito a julgar, evidente que, para tanto, é preciso jul-gar com base em algo, sendo que este algo, ao longo da história, por diversos momentos, foi o direito. Pode-se, ainda, julgar/decidir com base na equidade, costume, lei, crença... todavia, o julgamento feito com base exclusivamente nestes critérios é apenas formalmente legítimo. Como exemplo, do que acabamos de afirmar, pensemos o mais notório deles: o Estado hitleris-ta. Após o Tribunal de Nuremberg, foi reconhecido que naquele Estado e período (Nazismo), mesmo se tendo julgado com base na “lei”, tais sentenças ainda assim foram posteriormente consideradas “criminosas”, pois estavam em desacordo com o direito.

Aparentemente, persiste o paradoxo em relação às ideias apresentadas e o fato de que os julgamentos do período nazista não estavam apenas de acordo com a Constituição formal alemã, mas estavam de acordo também com a Constituição não-formal daquele momento, pois havia um sentimento nacional comum que apoiava o Estado. Tal paradoxo é apenas apa-rente. Lembremos que uma parte muito pequena da nação tinha real consciência do que se passava efetivamente nos campos de concentração. Apesar da maioria compartilhar da repulsa pelos povos perseguidos, referido sentimento foi artificialmente produzido por uma propagan-da de Estado falaciosa, o que lhes induziu a acreditar que a postura sustentada pelo Estado era de fato direito, o que se provou não ser verdade. Ademais, não basta estar de acordo com o sentimento circunstancial do grupo dirigente do Estado, é preciso estar de acordo com o senti-mento humano de dever ser fundamental. Dita ausência, mostra a disparidade entres as duas Constituições, já que o ser humano globalmente (e mesmo o alemão da referida época) não compartilhava substancialmente do sentimento que apoiou a “solução final para o problema judeu”4, – o que é fácil de notar através das imagens históricas da repulsa exteriorizada pelos cidadãos alemães quando levados a conhecer o interior dos campos; realidade que até então ignoravam.

Pelo exposto, não é possível chegar à outra conclusão que não a de que, sendo jurídi-co e direito coisas distintas – o primeiro relativo à forma de se decidir/resolver assumida pelo Estado, e o segundo relativo ao conceito substancial que o primeiro almeja prestar através de seu processo (almeja ao menos em teoria) –, o direito não poderia residir em outro espaço que não o social vivo. Ou seja, o direito existe no meio social, para então existir na lei. O que ocorre é que, dispondo do “poder organizado” (segundo Lassalle), o Estado é capaz de impor sua vontade, mesmo contra o poder maior, porém “desorganizado” do povo. É fundada nesta força que a lei, como prática emanada do Estado, reivindica a presunção de direito, o que só é possível graças à força coercitiva e unilateral do Estado e não graças ao percurso no cami-nho da prática social de um povo. Como fruto da primeira prática, identificamos a ideia de Constituição estatal/escrita/formal e como fruto da segunda prática a ideia de Constituição costumeira/não-escrita/real.

Resultante do diálogo entre estas duas Constituições, um terceiro conceito de Consti-tuição é projetado: o de Constituição paraestatal. Esta última se faz presente enquanto realida-de fática de aplicação do dever ser, fruto do sentimento de justiça do povo, orientado pelo co-nhecimento empírico atualmente insuperável5. Com Constituição paraestatal não se rejeita a

4 Nome dado pelo Estado nazista ao programa de extermínio em massa dos povos perseguidos através do uso de gás.

5 “Esse o caminho seguido por Cláudio Souto, que inicialmente com base na introspecção e na observação infor-mal (1958:69 e 35-36), constatou a conjunção, na realidade normativa social, entre (1) dados científicos e (2) um sentido permanente humano do dever ser a se refletir no normativo. Como esse sentido do que deve ser é, em outros termos, o sentido do justo, ou do reto, e como os dados científicos de conhecimento são, por definição, adequados ou corretos, achou Cláudio Souto razoável e de acordo com o senso comum designar com a palavra direitoaquela conjunção ou composto. Daí sua definição: ‘Direito é a formulação científico-positiva atualmente insuperável do sentido básico permanente humano do dever ser’ (1958: 298; 1964: 61-75). Posteriormente, desde 1963, para efeito de formalização da observação através de técnicas de pesquisa empírica, aquele autor

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Capítulo 14influência exercida pela força impositiva do Estado, mas também não se ignora a realidade so-cial de onde emerge o direito mesmo. Tal conceito corresponde, assim, ao conjunto fundamen-tal do dever ser presente em uma realidade social, o qual não necessariamente corresponde ao dever ser positivado. Trata-se da realidade emergente projetada numa norma fundamental.

2.1 Ferdinand Lassalle e a ideia de Constituição real

Lassalle, ao intitular sua obra, já aponta para onde irão seus esforços na tentativa de responder a pergunta: “O que é uma Constituição?”. Mas não é qualquer resposta que satisfaz o autor, ele não está interessado no que podemos chamar de conceito formal de Constituição; o que lhe interessa é responder à pergunta: “Onde encontrar a verdadeira essência, o verda-deiro conceito de uma Constituição?” (LASSALE, 1933, p. 3). Ou seja, o que o referido autor busca é a essência, o conceito substancial de Constituição.

A primeira das dicotomias trabalhadas por ele, para responder a sua pergunta, é en-tender a diferença que há entre uma “lei comum” e a Constituição. Admitindo que mesmo havendo algo em comum entre a lei e a Constituição, a diferença surge quando se leva em conta o sentimento do povo em relação a elas. Segundo Lassalle, uma lei pode ser alterada ou criada sem que isso represente necessariamente uma manifestação da população a seu respei-to, mas, pelo contrário, se com a Constituição se mexer de modo significativo, tal ato esbarra necessariamente no espírito dos atores da sociedade; posicionamento defendido por Lassalle que deixa claro que, para ele, uma Constituição se diferencia da lei comum por estar ligada com maior intensidade ao “espírito unânime dos povos”, por guardar algo de sagrado consigo, algo de intocável.

Prossegue Lassalle em sua obra tratando do que chama de fatores reais do poder (su-pra elencados), defendendo que estes se compõem para formar a Constituição real de um povo. De modo simples, os elemento reais do poder, em uma nação, estabelecem entre si uma estrutura que por sua própria natureza determina o que há de mais fundamental num povo, o que o constitui sócio-politicamente. Para Lassalle, “é, em síntese, em essência, a Constitui-ção de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem um país.” (LASSALE, 1933, p. 9) Constituição real na perspectiva de Lassalle, genericamente, seria as tensões e fatores de poder que determinam na prática como a realidade é moldada. Estes fatores vão do bélico ao econômico, e ao social e cultural, passando ainda pelo ideológico do povo. Em contraponto a esse conceito de Constituição real Lassalle vai colocar a ideia de Constituição escrita ou folha de papel, sobre o qual trataremos mais adiante.

2.2 Juan Cruet e a ideia de Constituição costumaria

Quatro décadas afastada da obra de Ferdinand Lassalle é publicada “A vida do direito e a inutilidade das leis”6, de Juan Cruet; obra esta que guarda com a de Lassalle afinidade

julgou de significação mais concreta a palavra sentimento que a palavra sentido: sentimento do que deve ser ou sentimento de justiça ou de justeza (que não é senão o sentimento de agradabilidade do homem de mente não-patológica diante do que acha que deve ser). E em pesquisa exploratória realizada na Alemanha em 1965 sob sua coordenação, se comprovou, como veremos, a conjunção, na realidade psíquico-social, de (sentimento de) justiça (permanente, individualmente variável) e conhecimento científico. Para Cláudio Souto, pois, seria regra de direi-to aquela em consonância com o sentimento humano de justiça e com dados de conhecimento científico-empí-rico; e seria conduta jurídica aquela em consonância com a norma de direito.” (SOUTO, Cláudio. Sociologia da Direito, uma visão substantiva.3ª ed. rev. e aum. Sergio Antonio Fabris Editor; Porto Alegre, 2003. pp. 220-221.).

6 Cabe aqui uma crítica a tradução para o português de Portugal – de certo modo infeliz – do título da obra de Juan Cruet. Em francês o autor não fala em “inutilidade”, mas em “inadequação prática” – o que é bem diferente. Desta forma a tradução mais apropriada seria: “A vida do direito e a inadequação pratica das leis”. Ora, inútil no raciocínio do autor em muito se distancia de inadequado na prática; o que se pretendeu evidenciar é que a lei por si só, na prática, não é suficiente. No que diz respeito à primeira parte do título (A vida do direito) interessante notar que Eugen Ehrlich funda a Sociologia do Direito justamente advogando o conceito de direito vivo, conceito

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de pensamento bastante estreita. Cruet chama de costumaria o que Lassalle intitula de real, senão vejamos:

Os textos, com effeito, nunca formam uma rede bastante cerrada, nem bastante firme para impedir os costumes parlamentares e governamen-taes de fazerem prevalecer tacitamente contra a Constituição regular uma Constituição oc-culta que a excede e pode desnaturá-la: quer dizer que todos os países téem uma Constituição costumaria, mesmo aquellcs que parecem viver sob o regime d’uma Constituição escripta (CRUET, 1908, p. 88-89). (grafia segundo o original)

Obra monumental, em todo o seu pioneirismo, nela Cruet segue o raciocínio de Las-salle e trabalha a ideia de uma Constituição real que estaria presente em todo e qualquer Esta-do, fruto das relações da sociedade. Tal Constituição polarizaria com a “Constituição escripta” (esta que será trabalhada mais adiante) de um Estado, mas apesar das diferenças é evidente que ambas guardam traços em comum, em maior ou menor grau, a depender das circunstân-cias empíricas. Em termos fundamentais, a “Constituição real” de Lassalle e a “Constituição costumaria” de Cruet se equivalem.

É uma necessidade de ordem prática, para o equilíbrio das forças de um Estado, que suas Constituições (Escrita e Costumaria) guardem a maior afinidade possível de substâncias, representando um perigo para a segurança do país, um afastamento entre elas. Nesse aspecto, Cruet, Lassalle e mesmo Pontes de Miranda preservam afinidades em determinados pontos. Primeiro vejamos Lassalle:

Quando podemos dizer que uma Constituição escrita é boa e duradoura?A resposta é clara é parte logicamente de quanto temos exposto: Quando essa Constituição escrita corresponder à Constituição real e tiver suas raí-zes nos fatores do poder que regem o país.Onde a Constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavel-mente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a Constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, peran-te a Constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país (LASSALE, 1933, p. 16). (grifamos)

Antes de desdobrarmos nosso raciocínio, prossigamos elencando as opiniões dos nos-sos autores. Vejamos, então, Cruet:

A força obrigatoria das leis, que varia segundo a constituição mental dos povos, pode tambem variar segundo a materia. No campo religioso, inte-lectual ou moral, o imperativo da consciencia social vai de encontro ao imperativo da consciencia privada; o poder das leis dctem-se diante da soberania da pessoa sobre si mesma, porque se nalguma parte se encontra a soberania, não é no Estado, é no individuo.Assim se pode dizer que se as leia são obrigatórias, não o são em toda a parte e sempre da mesma maneira, nem com a mesma intensidade; ora, se a obrigação legal, por si propria, obriga menos, deve simultaneamente ser melhor justificada e ter melhor sancção: trata-se da própria efficacia das prescripções legislativas (CRUET, 1908, p. 218-219).

este já expressamente presente em Juan Cruet.

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Em harmonia com tais pensamentos, vejamos, por derradeiro, Pontes de Miranda:

CIÊNCIA DO DIREITO. – A Ciência do Direito é ciência dos direitos po-sitivos, da evolução dêles ; e não ciência de algum direito positivo. Por isso mesmo, podemos dizer que um artigo de lei é errado : sabemos que êle não corresponde a nenhuma necessidade prática do povo, a que se aplica ; que foi expediente já usado em épocas de melhor conhecimento dos fatos, e refugado pelo livre exame; ou que constituiu regra de nenhum povo e que também não serve a nenhum sentimento ou convicção de justiça. Existem textos assim.A ciência política e a arte política têm outra missão : mostra a primeira o Estado e as circunstâncias de determinado povo diante das leis socioló-gicas ; a segunda serve ao descobrimento, empírico, ou experimental-in-dutivo, dos meios técnicos mais próprios ao govêrno e às regras de ordem estatal no momento preciso ou no período que o Estado vive.Tôda Constituïção contemporânea precisa ser obra meditada, profunda, de ciência política e de arte política, de ciência jurídica e de técnica jurí-dica (MIRANDA, 1960, p. 160). (grifamos)

Não há exemplo melhor deste conflito inevitável que preconizou Lassalle que as ma-nifestações presenciadas no Brasil, inicialmente em junho de 2013, e por último às vésperas da Copa do Mundo da FIFA de 2014. Um descontentamento que, objetivamente, não pode-mos precisar com o que se dá, mas que revolta a população como um todo movido por um sentimento de “desagradabilidade” entre o real e o oficial. O afastamento ocorrido entre o sentimento nacional de dever ser fundamental, e a atividade política, não poderia culminar em outra coisa que não em uma revolta – revolta, saliente-se, que se mostra apenas no início, e que os acontecimentos futuros (especialmente a eleição presidencial de 2014 e a Copa do Mundo da FIFA prevista para o mesmo ano) hão de agravar. O sistema legal vigente, em claro desacordo com as necessidades práticas do povo, e mesmo com o sentimento de justo desse povo, só pode ter como único fim sua sucumbência perante o real.

É sob estes fundamentos que é possível afirmar que, existindo duas Constituições em uma nação, uma real e outra formal, a segunda pode ser errada ou ruim, desde que esta última esteja em desacordo com a primeira, e isso se dá quando a Constituição formal não mais atende satisfatoriamente nem as necessidades práticas, nem mesmo ao sentimento de justiça real do povo. Mesmo que nossa Constituição formal preserve princípios que agradam aos ouvidos do cidadão, na prática, estes são apenas dizeres sem efetividade concreta. Tal fato desestabiliza a Constituição paraestatal, a qual é síntese da real e da formal. Dito desequilíbrio, na relação entre as Constituições, se reflete em desequilíbrio na realidade mesma através das presenciadas revoltas. Fica bastante clara a turbulência vivida quando se toma por perspectiva as reivindicações presentes nas manifestações: melhoria dos serviços, da qualidade de vida e repúdio à desmedida corrupção instaurada no Governo.

Sejam “os fatores reais do poder” (Lassalle), “as forças em presença” (Cruet), “neces-sidade prática do povo” ou “sentimento ou convicção de justiça” (Pontes de Miranda), o que não se pode negar é que, para além do formalmente constitucional, há o substancialmente constitucional. Assim como há a Constituição formal e a Constituição real, para além destas precipita-se a Constituição paraestatal como o resultado do equilíbrio desta relação. Equilíbrio que, quando ausente, reflete desequilíbrio na própria ordem social.

Mas então, tendo em conta o que fora exposto, por que se impõe a Constituição escrita, em muitos momentos, mesmo em detrimento da Constituição real, desequilibrando a Consti-tuição paraestatal? Sobre este problema dedicamos o ponto seguinte.

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3. A IDEIA DE CONSTITUIÇÃO FORMAL OU FOLHA DE PAPEL

Sobre a indagação que acabamos de fazer no ponto anterior, encontraremos sua res-posta em Lassalle:

Mas, não devemos esquecer que entre o poder da nação e o poder do Exér-cito existe uma diferença muito grande e por isso se explica que o poder do Exército, embora em realidade inferior ao da nação, com o tempo seja mais eficaz que o poder do país, embora maior.É que o poder desta é um poder desorganizado e o daquele é uma força or-ganizada e disciplinada que se encontra a todo momento em condições de enfrentar qualquer ataque, vencendo sempre, a não ser nos casos isolados que o sentimento nacional se aglutina, e num esforço supremo vence ao poder organizado do exército. Mas isto somente acontece em momentos históricos de grande emoção (LASSALE, 1933, p. 16). (grifamos)

Esta diferença entre poder organizado e poder não organizado é fundamental para conciliar com a realidade concreta, a dicotomia entre Constituição escrita e Constituição real. Dotado o Estado das forças organizadas, e, de funcionários práticos, levando-se em conside-ração o curso do tempo, as imposições que proclama são superiores em estratégia as do povo, este último detentor do poder desorganizado e de servos retóricos que produzem poucas mu-danças efetivas (segundo Lassalle). Circunstâncias, porém, que não impedem o irrompimento de revoltas e, a depender da conjuntura prática, até mesmo a vitória dos anseios do povo ante o império do Estado. Mas, mesmo carecendo da vitória, a pressão provocada pelo povo já é suficiente para impor mudanças, ainda que mínimas.

Ao Estado está ligada a Constituição formal ou folha de papel e, à realidade social, a Constituição real. Desenvolveremos, a partir de agora, algumas observações sobre esta que Lassalle chama de folha de papel. Assim dispõe o autor:

Tenho demonstrado a relação que guardam entre si as duas Constituições de um país: essa Constituição real e efetiva, integralizada pelos fatores reais e efetivos que regem a sociedade, e essa outra Constituição escrita, à qual, para distingui-la da primeira, vamos denominar de folha de papel (LASSALE, 1933, p. 12).

O conceito da Constituição folha de papel é comum a todo jurista. Tal conceito é o mesmo que o de Constituição na concepção dos juristas ensinada tradicionalmente nos ma-nuais de direito, e que se repete na jurisprudência. Folha de papelé, de modo simples, a Cons-tituição proclamada pelo Estado através dos seus políticos. Sua necessidade de promulgação em todos os Estados é fato moderno segundo o próprio Lassalle:

De fato, na maioria dos Estados modernos vemos aparecer, num determi-nado momento da sua história, uma Constituição escrita, cuja missão é a de estabelecer documentalmente, numa folha de papel, todas as institui-ções e princípios do governo vigente (LASSALE, 1933, p. 13).

Notemos que o fim ideal da Constituição formal é sistematizar documentalmente as instituições e princípios de um Estado, e não criá-los do nada. A esse respeito, mais uma vez,

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é estreita a distância entre o pensamento de Lassalle e Cruet, vejamos este último:

Qual é então a utilidade d’uma Constituição escripta ?Expôr o jogo dos orgãos políticos, tal qual resulta do compromisso das for-ças em presença, e das necessidades da divisão do trabalho legislativo e governamental.Por outras palavras, uma Constituição tem antes o valor d’uma explicação, que o d’uma regulamentação imperativa: o seu merito essencial consiste em ser sincera. E’ de resto uma verdade geral que, pela lei, uma nação pode muito menos reformar-se do que comprehender-se.«A Constituição, escreveu Tarde, é apenas a politica accumulada, genera-lizada, sistematizada».Se pretende ser outra coisa, não é nada, por-que a politica não tarda a des-fazê-la. Isto equivale a dizer que, como os Codigos, as boas Constituições se fazem com o tempo: ninguem as faz (CRUET, 1908, p. 106-107). (grafia segundo o original).

De início, notemos que o pensamento supra transcrito, especialmente no que se refere a Tarde, se coaduna com o já exposto pensamento de Pontes de Miranda em relação a opinião deste sobre as missões da ciência política e da arte política, no que diz respeito às funções des-tas sobre a formação do conteúdo da Constituição. Além de apenas utilidade, a própria força de permanência temporal e a legitimidade de uma Constituição escrita reside na medida em que esta é “sincera” em emoldurar o que uma nação já o é na realidade. Felizes são as palavras de Cruet a esse respeito: “Se pretende ser outra coisa, não é nada...”. Tal relação, da força de permanência no tempo de uma Constituição escrita no plano jurídico, e sua dependência da sinceridade com que expõe o que a Constituição não-escrita já estabelece no plano real, expli-ca o fato histórico de países como o Brasil já terem mudado de Constituição escrita diversas vezes, e outros, como os Estados Unidos da América, manterem a mesma Constituição do período da sua criação até os dias de hoje: o grau de sinceridade de sua exposição. Como ex-plicação desta realidade, o trecho supra transcrito de Cruet é insuperável. Em harmonia com Cruet, neste aspecto, também é Lassalle:

Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder, a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituições es-critas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar (LASSALE, 1933, p. 19).

A Constituição folha de papel existe por uma necessidade e cumpre a uma função. A modificação e reestruturação dos mecanismos políticos e surgimento do chamado modelo fordista, no período moderno, com a revolução industrial e burguesa, impôs mais que uma característica formal a nossos tempos; trouxe consigo, também, uma estrutura particular, uma dinâmica organizacional. Mas, para que tal lógica funcione, é preciso uma descrição mínima de seus mecanismos, uma definição mínima das suas funções mais básicas e divisão dos tra-balhos, ou seja, uma linha de montagem. A folha de papel atende a essa necessidade, nela figuram não apenas referências a princípios e regras da Constituição real, mas se organizam funções do Estado, a estrutura de seu funcionamento, seus limites, agentes, atribuições, en-fim: além de servir de referência da Constituição real, a folha de papel serve de esquema do formato organizacional do Estado moderno, ao menos em seus critérios fundamentais.

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Uma peculiaridade da modernidade é a ênfase na especialização e estruturação fun-cional dos mecanismos em qualquer forma de produção, e o Estado não foge a essa regra; é assim que as semelhanças entre a folha de papel e o “estatuto” de uma empresa são incon-táveis. Características que começam pela teoria que lhe explica: se o poder emana do povo e a Constituição (folha de papel) é o contrato ou carta de princípios deste povo, endereçada especialmente aos políticos encarregados de cumpri a função de representantes, com o fim de proteger os interesses deste mesmo povo na gerência do Estado, pergunta-se: em que esta explicação se diferencia da teoria que explica a existência de uma empresa (=Estado) com presidente, mesa diretora (=congresso), estatuto (=Constituição), acionistas (=povo) e etc.? A teoria Constitucional moderna nada mais faz do que servir de explicação e fundamentação teórico-jurídica da revolução burguesa, que consigo instituiu sua forma particular de gerir os negócios, ou seja, o próprio Estado.

A função da folha de papel (de exprimir os fatores do poder que imperam na realidade social, segundo Lassalle) atualmente tem sido por tudo negligenciados em prol dos interesses de grupos quantitativamente minoritários, mas que possuem uma grande porcentagem de po-der econômico, que por sua vez se converte em poder político real. Nada mais evidente que o trabalho dos chamados lobistas no Congresso Nacional. O que, como já dissemos, não poderia resultar em outra coisa que não numa revolta popular. Para manter as condições atuais de suas aspirações de poder, os políticos, banqueiros, grandes empresários, etc. precisam alterar não as leis, mas a realidade que lhes impõe essa pressão; precisam mudar, assim, a Constituição real através de mudanças na realidade social. Tal mudança é artificialmente infligida através do controle da imprensa produzindo verdades, da ilusão do “circo” que embriaga em especial com o Carnaval e o futebol, etc.

3.1 Concepção de Constituição e a ideia de “jato”

Sintetizando a discussão que desenvolvemos até o momento, e trazendo um último elemento que gostaríamos de discutir mais detidamente, atentemos para o trecho seguinte extraído da obra de Juan Cruet:

De que provém a fragilidade das Constitui-, ções escriptas ?Uma Constituição é promulgada como se no Estado nada existisse antes d’ella : a ideia de soberania suppõe taboa rasa ante a autoridade so-berana. Mas os elementos tirados do nada por um (texto, estão expostos a morrer por um texto, e se é illegitimo resistir á autoridade soberana, tudo se torna licito a quem se apoderou primeiro da soberania. Acontece, é verdade, ás Constituições criarem órgãos animados de vida propria, ca-pazes de tomar raiz nos costumes, mas então ellas assignam a sua propria abdicação.Por outro lado, uma Constituição tem ã unidade d’uma obra d’arte, e o laço logico entre o todo e as partes é tão estreito que se torna impossível tocar nestas, sem abalar aquelle. Todos os autores de Constituições repeti-riam de bom grado, com Bonald, que ha «uma, uma Cínica» constituição de sociedade politica. Concebida de um só jacto, deve portanto ser levan-tada de uma só vez.Numa palavra, a Constituição escripta, se pretende prender o futuro po-litico e social d’u-ma nação num labyrinto de prescripções minuciosas e rigorosamente coordenadas, corre simplesmente o risco de levar ao seu ponto critico o conflicto das forças politicas e das fórmas constitucionaes, isto é, em certo modo, o conflicto do vapor e da caldeira (CRUET, 1908, p. 105-106). (grafia segundo o original) (grifamos)

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Não iremos voltar aos pontos já discutidos neste trabalho que abordam o trecho supra, e sim passaremos a tratar da imagem proposta de Constituição concebida de “um só jacto”. Aparentemente, tal imagem pode parecer uma figura de linguagem banal, servindo apenas de ilustração retórica no corpo do discurso, mas a curiosidade em relação a ela é atiçada quando lembramos que também Pontes de Miranda se utiliza desta imagem para desenvolver sua ex-plicação sobre o momento da concepção de uma Constituição. Vejamos Pontes:

CONSTITUÏÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL. – No sentido positivo Constituïção é ato do poder estatal, através do poder constituinte, ato que tem de ser obedecido, enquanto contínuo o jacto da ordem jurídica. Jacto, dissemos ; porque a cada Constituïção (não Reforma) , o é nôvo, muito em borá, por vezes, na mesma direção que o anterior. Quando uma Constituï-ção veda a revisão em determinado ponto, só juridicamente o veda; [...].Fora da imanência jurídica, quando se passa a terreno juridicamente trans-cendente (HANS MOKRE, Zum Begriff der Verfassung im materiellen und im formellen Sinn, Archiv des öffentlichen Rechts, 21, 234) , torna-se quebrável a regra jurídica constitucional. Exemplo : revolução, armada ou não ; sem que isso signifique considerar-se ato do Estado a revolução (outra opinião em R. H. HERRNRITT, Die Staatsform als Gegenstand der Verfassungsgesetzgebung und Verfassungsänderung, Wiwner Staatswis-senschaftliche Studien, III, 46). Enquanto não se parte o jacto da ordem jurídica, o texto há de incidir.Mas o jacto pode partir-se, quer pela mudança do poder estatal (consistia, por exemplo, na vontade de alguns, e passou a consistir na vontade do povo) ,quer pela mudança radical da opinião política do mesmo povo. En-quanto existe a vontade política daquele que fêz, a Constituïção prevalece, pensa CARL SCHMITT (Verfassungslehre, 21). Não é bem isso. A vontade política pode ser a mesma, pela identificação da vontade do poder estatal anterior com a do atual, sem ser a daquele que fêz a Constituïção. Resquí-cio de voluntarismo jurídico (nosso Subjektivismus und Voluntarismus im Recht, Archiv für Rechts- und Wirtschaftsphilosophie, 16, 522 s.) .O que é preciso é que continue o jacto da ordem jurídica, que de nenhum modo se identifica com a vontade inicial, que elaborou a lei(MIRANDA, 1960, p. 157-158). (grafia segundo o original) (grifamos)

De início Pontes já diferencia a existência da ideia de Constituição em um “sentido positivo”, que nada mais é que a Constituição promulgada pelo poder constituinte e que Las-salle chama de folha de papel e Cruet chama de escripta. Está presente em Pontes de Miranda a percepção de que Constituição não é objeto simples, mas que existe em um plano formal (positivo) e substancial (sociológico). Enfim, ele expressamente reconhece a existência de um “Direto Constitucional escrito” e um “Direito Constitucional não-escrito” (MIRANDA, 1960, p. 90). Ele vai inclusive além em suas considerações, quando afirma que “o direito é criação social, e não estatal”(MIRANDA, 1960, p. 140). Não poderia o autor pensar de outro modo, basta lembrar que ele foi o primeiro em nosso país a escrever trabalhos no campo da Sociologia do Direito, figurando, ainda, como o primeiro ponto tratado na obras de que extraímos o trecho supra, a conceituação do “Direito como fato social” (MIRANDA, 1960, p. 25) (grifamos).

Mas o que nos interessa, no momento, é a sustentação da imagem enigmática de um “jato”. O que poderia ser? Mera alegoria retórica sem grande importância, é a primeira res-posta que talvez venha a uma mente apressada. Confessamos desconhecer a existência de qualquer teoria que trabalhe com tal figura explicativa que não sejam os trechos já elencados acima. Mas, mesmo assim, é possível extrair algumas peculiaridades da ideia apresentada

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pelos dois autores: primeiro, “jato da ordem jurídica” claramente transmite a ideia de uma manifestação contínua e consistente, emanada pelo núcleo jurídico do Estado (“poder consti-tuinte”); manifestação esta que se refere à constituição de uma norma orgânica, no caso esta norma é a própria Constituição escrita do Estado.

Segundo, é passada com a imagem, também, a ideia de direção e localização no tem-po-espaço do “jato”, que pode ser novo ou continuação daquele já existente. Sejam quantos forem os jatos da ordem jurídica, estes podem apontar em uma mesma direção, ou em direção diversa, sendo que, ainda que mantenha uma mesma direção, o “jato” não perde sua qualida-de de novo.

Terceiro, a duração do “jato” é medida pela duração da ordem jurídica (Constituição) que este imprimiu. A ruptura do “jato” representa a quebra da incidência da própria ordem jurídica. O que pode acontecer, p. ex., por uma “revolução armada”.

Quarto, a ruptura do “jato”, a que se refere Pontes, em muito se assemelha ao conflito de irrompimento inevitável a que se refere Lassalle, quando a Constituição escrita se afasta significativamente da Constituição real. Tal rompimento é decidido mais por um afastamento qualitativo, que quantitativo, tendo em vista que tratam-se de elementos fundamentais, os quais, por sua própria característica, interferem mais por suas qualidades que quantidades. De modo que, em muitos pontos e por muito tempo, a Constituição escrita pode se afastar da Constituição real, sem que nada ocorra de grave na sociedade, mas se esse afastamento se der em pontos qualitativamente significativos para uma nação, mesmo que em apenas um, o conflito irá inevitavelmente irromper – ou seja –, ocorre a ruptura do “jato”.

E, quinto, o “jato” não é de nenhuma forma identificado com a vontade daqueles que elaboraram a norma, é antes qualquer coisa de diferente disso. Este, em seu papel de ligação entre a Constituição escrita e a real, precipita os fatores reais do poder e o sentimento perma-nente de justo, dando forma à terceira concepção de Constituição: a paraestatal.

O referido “jato” – estamos inclinados a acreditar – pode ser entendido como a afi-nidade mesma entre a Constituição escrita e a Constituição real; seria “jato” de ligação, um impulso que em um momento histórico eclodiu da realidade social para jogar tinta na folha de papel, nela imprimindo as palavras, as quais só possuem tom enquanto dura o “jato”. A quebra desse “jato” é a própria ruptura do real (direito) com o oficial (jurídico), e com isso a perda de legitimidade do Estado em impor o seu dever ser, que já não mais se identifica com o dever ser fundamental sentido pela nação.

Embora possa ter se aparentado enigmática a ideia de “jato”, presente em Juan Cruet e Pontes de Miranda, ela ganha pleno sentido quando é pensada ao lado da diferenciação entre Constituição formal e Constituição real, estabelecendo uma dinâmica que produz uma tercei-ra concepção a que chamamos Constituição paraestatal. Diante disto, estamos convencidos de que, apenas sob a soma destes três elementos, Constituição real, Constituição escrita e jato da ordem jurídica, no sentido que foi desenvolvido ao longo do presente trabalho, é que se pode entender a Constituição de um país.

4. CONCLUSÃO

Longe de esgotar o tema, ou mesmo de abordá-lo em todos os seus fundamentos, nosso principal intento foi o de apresentar a ideia título do trabalho à comunidade acadêmica. Uma argumentação mais adequada envolveria uma abordagem da concepção de direito vivo de Eu-gen Ehrlich (1986) , e do trabalho que sobre ele desenvolve Cláudio Souto. Todavia, como já dito, não se trata aqui de um trabalho exaustivo, mas de breves considerações.

Mesmo diante das limitações do presente trabalho, concluímos que uma Constituição é algo maior que uma Carta política formalmente reconhecida. Ela liga-se, mais do que tudo, com o sentimento fundamental de dever ser de um povo. Nesta relação, entre Constituição

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formal e Constituição real, a figura do “jato da ordem jurídica” proporciona a ligação neces-sária entre as duas. Rompida essa ligação, a insatisfação germinada nos membros da nação é inexorável, tendo como seu principal efeito a eclosão de revoltas.

Ferdinand Lassalle, Juan Cruet e Pontes de Miranda são harmônicos em suas con-cepções de Constituição, figurando como precursores da compreensão do fenômeno jurídico como fenômeno social, mais do que estatal, o que resultou no lançamento dos alicerces da Sociologia do Direito como uma ciência. Ciência que deve sua existência no mundo a Eugen Ehrlich, e no Brasil, substantivamente a Cláudio Souto.

REFERÊNCIAS

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SOUTO, Cláudio. Fundamentos da sociologia jurídica. Faculdade de Filosofia da U.C.P. (Uni-versidade Católica de Pernambuco), Recife, 1968.

____, Cláudio. O que é pensar sociologicamente. Editora Pedagogia e Universitária Ltda., São Paulo, 1987.

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POSITIVISMO E CIENTIFICIDADE DO DIREITOCapítulo 15

Elder Paes Barreto Bringel1

1. INTRODUÇÃO

Compelido a escrever um artigo para conclusão da disciplina de “Lógica do Pro-cedimento Jurídico” do Mestrado em Direito da UNICAP, sob a tutela do ilustre Prof. Dr. João Paulo de Allain Teixeira, imediatamente me veio à memória uma passagem do livro Processo e Ideologia: o paradigma racionalista, do Ilustre e sempre presente jurista sul-rio-grandense Ovídio Batista da Silva – que foi meu companheiro inseparável na preparação para ingresso no Mestrado – em que ele exemplifica a dificuldade de diálogo existente entre pessoas que tra-balham em paradigmas diferentes. Isso me fez refletir sobre esta possível/provável/necessária mudança paradigmática do Direito, inspirando-me a tecer os breves comentários que seguem.

Na referida passagem, Ovídio descreve um episódio real ocorrido quando do recebi-mento de um convite para participar de um simpósio de Processo Civil, cujo tema seria Tutelas de urgência e cautelaridade. Distinções. Pois bem, instado a participar do referido simpósio nos conta o bem humorado professor que respondeu em negativa sob o argumento de que já havia participado de inúmeros eventos naquela mesma cidade, defendendo a distinção entre tutelas antecipatórias, mas que sua posição sempre foi rechaçada pela escola dominante, que insistia em manter as tutelas antecipatórias sob o invólucro da urgência (tutela de direito) ou cautelaridade (tutela de processo). Para o então convidado haveria um “direito substancial de cautela” (SILVA, 2006) que credenciaria esta modalidade a integrar a mesma designação – tutelas antecipatórias – não havendo necessidade de distingui-las das então denominadas tutelas de direito. A organização do evento, por sua vez, insistia na necessidade de distinção entre uma tutela que asseguraria um provimento processual principal (tutela de direito) da tutela que asseguraria o processo (tutela cautelar).

Isso me chamou atenção para algumas questões. Porque posições tão discrepantes? Como juristas de uma mesma área de interesse e atuação podem ter leituras tão diferentes so-bre um mesmo tema? A essas indagações nosso homenageado era enfático: é impossível duas pessoas que trabalham em paradigmas diferentes mutuamente se entenderem, o que dificulta sobremaneira o desenvolvimento de um diálogo de aceitação para avançarem no raciocínio.

Ovídio fez referência ao diálogo que ele mesmo qualificou como kafkiano (SILVA, 2006, p. 103) justamente para ilustrar o poder e influência que o paradigma racionalista dog-mático, de pura aplicação técnica da lei, ainda tem sob as reflexões jurídicas atuais, mitigando, afastando a necessidade premente de enxergar o Direito através de um olhar diferente, mais compreensivo e historicamente contextualizado. Mas o que seria este paradigma racionalista?

1 Graduado e Pós-graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, onde, atualmente, cursa o Mestrado em Direitos Humanos como bolsista da CAPES. É Oficial de Justiça do TJPE e Professor das disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito, Sociologia Jurídica e Teoria e Prática da Argumentação Jurídica da Estácio Recife. Professor de Pós-graduação convidado da ESA-OAB/Joaquim Nabuco

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Capítulo 15

Há de prevalecer uma visão dogmática ou compreensiva do Direito? Quem tem razão? Este sucinto texto, obviamente, não tem o intuito e pretensão de responder perempto-

riamente a perguntas tão complexas, mas será a partir destes questionamentos que se tentará clarear parcialmente a doutrina de Ovídio Batista, numa interpretação despretensiosa de seu pensamento.

2. A CONSTRUÇÃO DO PARADIGMA RACIONALISTA MODERNO

Para bem prosseguir no “desvendar” Ovídio Batista e tecer observações fundamenta-das acerca do dogmatismo técnico e da historicidade compreensiva do Direito se faz necessá-rio, primeiramente, trabalhar a extensão e o significado dos vocábulos “paradigma” e “racio-nalismo”, para, a partir daí, seguir na construção do raciocínio. Todo entendimento posterior depende da elucidação satisfatória do imbricamento dos dois vocábulos que encabeçam esse capítulo.

Com relação ao primeiro, até mesmo uma leitura mais superficial dos textos é capaz de indicar que o referencial teórico utilizado pelo jurista sul-rio-grandense advém da obra A es-truturadas revoluções científicas (KUHN, 2011), de Thomas Kuhn, cujo significado o próprio Ovídio atrela a ideia de verdades indiscutíveis, dogmas ou premissas de verdade sobre as quais se edifica todo o conhecimento científico. Ovídio afirmava que “toda concepção científica es-taria, necessariamente, alicerçada em determinados pressupostos, aceitos pela comunidade científica como verdades indiscutíveis” (SILVA, 2006, p. 30).

O paradigma, então, seria um conjunto de verdades e “revelações” aceitas como in-discutíveis dentro de uma comunidade específica, que, no caso, é a comunidade científica, para, a partir delas, se construir todo o arcabouço que servirá de base e referencial para o desenvolvimento do conhecimento. E isso é fundamental para entender que é o paradigma que definirá o que é científico. O conceito de ciência, a definição de seu objeto, a seleção de seus problemas, a eleição das repostas “verdadeiras”, o método a ser utilizado na resolução dos problemas e construção das respostas, tudo é determinado pela escolha de qual paradigma seguir. O próprio Kuhn exemplificou a problemática afirmando “que uma comunidade cien-tífica, ao adquirir um paradigma, adquire igualmente um critério para escolha de problemas que, enquanto o paradigma for aceito, podem ser considerados como dotados de uma solução possível” (KUHN, 2011, p. 60).

Já o vocábulo “racionalismo” ou “racionalidade”, por sua vez, pretende indicar um método específico de produção de conhecimento atribuído a uma mudança radical de com-portamento intelectual sentida a partir de meados do século XV, mas desenvolvida nos séculos seguintes, e que ainda hoje influencia e determina inúmeros pensadores e juristas, como é exemplo o supramencionado interlocutor de Ovídio.

A “racionalidade” traz ínsito a ideia de razão, de subjetividade, de produção de conhe-cimento pelo homem e para o homem, despojado de suas relações com a transcendentalidade e o mundo cósmico. Através do método racional o homem foi capaz de erigir os pilares da ciência moderna, atribuindo ao conhecimento uma relação ôntica de causa e efeito, sempre condicionados a experimentabilidade prática e demonstração empírica.

Estas questões, todavia, só serão aprofundadas com afinco e detalhamento nos capí-tulos que seguem estes comentários. O que precisa ser ratificado por hora, para seguirmos na “construção do paradigma racionalista moderno”, como propõe o presente capítulo, é que é o paradigma que determina o caminho a ser seguido, e que este paradigma foi fruto da evolução do pensamento racionalista desenvolvido na modernidade.

Voltemos agora nossa atenção ao imbricamento dos dois conceitos para tentar elucidar o que se entende por “paradigma racionalista”, ou mesmo a considerar como se deu a forma-ção deste “paradigma racionalista”.

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O pensamento moderno e, por consequência, o paradigma racionalista, não surgiu como em passe de mágica, não emergiu do nada. Ele é fruto de um longo e gradativo processo de negação que culminou, nas palavras de Sérgio Paulo Rouanet, em um novo “projeto de civilização” (ROUANET, 2003, p. 44). Seguindo as bases hegelianas e sua filosofia da história, a humanidade passou por infindáveis processos dialéticos de constante afirmação, negação e ressurgimento, podendo, a modernidade, ser entendida, desta forma, como a síntese da nega-ção de uma afirmação. Mas que afirmação era esta e qual foi a negação capaz de desestabilizar o antigo regime, culminando na modernidade, no paradigma racionalista? Resumindo em poucas palavras, a afirmação pode ser entendida como a tradição medieval, e a negação como o Iluminismo. Deste choque, nos ensinamentos de Nicola Abbagnano, surge o “Renascimen-to” do espírito que já fora próprio do homem da época clássica, ou seja, “um espírito de liberda-de, pelo qual o homem reivindica sua autonomia de ser racional e se reconhece intimamente ligado à natureza e à história, apresentando-se a fazer de ambas o seu reino” (ABBAGNANO, 2000, p. 9). O embrião do pensamento racionalista moderno fora semeado.

O abalo sísmico renascentista capaz de ruir com os pilares medievais pode ser inicial-mente representado pelas ideias de Leonardo Da Vince, Galileu e a revolução copernicana, aperfeiçoada por Kepler, reestruturando – ou se levarmos em conta o conceito de ciência de hoje, inaugurando – as bases da ciência moderna. A verificação, observação, constatação e experimentação passaram a integrar a produção de verdades científicas e a natureza ganhou a possibilidade de representação matemática, atacando a antiga tradição baseada em verdades reveladas.

A política não ficou imune à renovação iluminista, e Maquiavel, considerado o primei-ro escritor político medieval, abriu as possibilidades para as novas práticas políticas, introdu-zindo as noções do seu objetivismo histórico e realismo político. Seus escritos escancararam os bastidores políticos da época e incutiram um sentimento de necessidade de atividade política, não devendo mais o homem se sujeitar, a partir de então, ao curso passivo dos acontecimentos.

A vida religiosa toma novos horizontes pela reforma protestante de Lutero, Zwingli e Calvino, que eliminam a intermediação da autoridade religiosa para o exercício da fé, li-bertando os fiéis das revelações eclesiásticas do divino, aproximando-os dos textos religiosos traduzidos para várias línguas. O divino, a fé, a religiosidade passa a ser defendida como um sentimento individualizante de um todo, como um sentimento de um, mas vivido por todos.

Giordano Bruno, Nicolau de Cusa e Bacon, dentre outros, abrem novas possibilidades filosóficas, garantindo o fundamento do novo direcionamento renascentista. Eles não garan-tem um novo fundamento para o afloramento da racionalidade moderna, para o desenvolvi-mento das ciências, mas incutam, semeiam uma filosofia mais aberta, menos dependente da metafísica medieval, mas não suficiente para criação de um novo paradigma.

Diante de todo este turbilhão de novas ideias e acontecimentos, o paradigma racio-nalista moderno, a transposição do paradigma medieval, pode ser considerado inaugurado com afloramento das ideias de Descartes. Considerado o pai da filosofia moderna, e, via de consequência, fundador da nova forma de pensar e ver o mundo, Descartes cria um sistema garantidor das novas descobertas. Ele parte do pressuposto de que os homens teriam algo de comum entre eles e que isto os diferenciaria dos outros animais, concluindo que esta igualda-de humana seria a razão, a capacidade de pensar e compreender-se pensante. A partir daí ele se percebe diante de uma realidade tão florescente e fértil, mesmo comparando-a com épocas passadas, que supôs poder tomar a liberdade de julgar por si próprio tudo o que lhe aprouvesse.

Esta foi a razão e o fundamento para tentar construir algo de novo, algo seu, sem in-fluências. Soltar-se das amarras dos estudos letrados, das verdades reveladas, ir diretamente à fonte: o mundo e o seu próprio espírito. Essa premissa primeira, como se vê na segunda e terceira parte de Discurso do Método, parte da ideia de “Penso, logo existo” (DESCARTES, 2008, p. 14), da ideia de cógito, de ser pensante, e assim semeia o ressurgimento da subjetivi-

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dade clássica.O filósofo francês passa então a fundamentar todos os seus pensamentos e ideias a

partir do uso da razão. Pelo questionamento racional e dialético (dialético, mas emoldurado nas características de um monólogo) ele consegue clarear e tomar para si uma verdade intei-ramente sua, destituída de qualquer influência pregressa (se absteve do eruditismo em que foi letrado para iniciar uma “doutrina” própria, sua), posto que só se utilizou da razão para concluir seus pensamentos. A partir dessa verdade primeira, inabalável, incólume; fincando este pilar, esta coluna, a base de sua filosofia; utilizando como mão-de-obra unicamente a sua premissa absoluta e observando como dogma unicamente o seu método, Descartes passa a declinar outras “verdades” que, derivadas tão somente do incontestável, do irrefutável, devem assumir a qualidade de seu gênero, sendo aceitas necessariamente como verdades. Através de suas ideias, Descartes abre ao homem a possibilidade de construir conhecimento através do próprio homem, da subjetividade humana, da racionalidade.

Libertando o homem das amarras religiosas que legitimavam todo o conhecimento da época, embutindo um sentimento de subjetividade através do uso metódico da razão, reconci-liando o homem com a natureza, não mais como mero expectador, mas como agente atuante e transformador desta natureza, Descartes cria a base de todo pensamento moderno, possibi-litando ao homem o desenvolvimento das ciências, em especial as ciências naturais.

A verdade com Descartes passa a ter fundamento na própria razão do homem, excluin-do a noção de verdade revelada, possibilitando, desta feita, o crescimento e a autonomia do conhecimento científico. Em passagem interessante do Discurso do Método, ele transfere a legitimidade do conhecimento da revelação divina à revelação racional, afirmando:

Com efeito a razão não nos dita em absoluto, que o que assim vemos ou imaginamos seja verdadeiro, mas, ao contrário, que todas as nossas idéias e noções devem ter um fundamento de verdade, pois de outra forma não seria possível que Deus, sendo absolutamente perfeito e verdadeiro, as tivesse posto em nós (DESCARTES, 2008, p. 46).

O desenvolvimento destas ideias cartesianas colimou na criação de um método que, configurará, tempos depois, o próprio método científico. É a partir destas premissas e pressu-postos que o paradigma racionalista cientificista moderno é erigido. Nas palavras de Arnaldo Godoy (2005, p. 34), este paradigma acredita na objetividade de um diálogo racional e não dis-torcido, guiado pelo próprio homem, sem intervenções, avançando para obtenção da verdade plausível que aguarda ser descoberta. A natureza, humana e não humana, seria, para a tradi-ção moderna, um conjunto de leis naturais e certas, um conjunto de fórmulas matemáticas capazes de estruturar tudo que é, mas sempre tendo como fundamento justificador de suas descobertas a própria racionalidade humana, o ser humano como sujeito ativo dessas cria-ções. A modernidade cogita a libertação do homem através da conquista dessas verdades pelo método da razão. Ciência e razão seriam os meios para essa libertação, buscando-se critérios objetivos e universais que pudessem de forma infalível descobrir, revelar, desvelar, demonstrar as verdades e os princípios morais universais.

Eis as premissas do paradigma racionalista desenvolvido na modernidade. Mas isso foi só o começo, a partida, o ponta pé inicial.

3. RACIONALIDADE, CIENTIFICIDADE E DIREITO

A atitude racional foi capaz de restabelecer a subjetividade há muito perdida, reapro-ximando o homem de si mesmo, mas trouxe consigo um método bastante definido, perfeito

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para encerrar as necessidades e anseios da época. Para bem entender este método, então, nada melhor que voltar ao arquiteto, ao primeiro delineador das ideias racionalistas, que de-finiu com precisão alguns preceitos metodológicos básicos capazes de dar azo à racionalidade cientificista da idade moderna.

René Descartes mais uma vez surpreende pela originalidade, apontando como precur-sor não só da nova forma de pensar e ver o mundo, mas também como idealizador do novo método, descrevendo pormenorizadamente cada passo a ser tomado para se obter a verdade, para se decodificar o mundo, para se decifrar a natureza. Descartes assegura a autonomia do sujeito que conhece com relação ao objeto a ser conhecido. Esse objeto passa ser identificado, isolado e decodificado. A verdade era, então, esta fórmula matemática decifradora do objeto estudado.

O filósofo francês chegou a esboçar e tentar aprofundar o método racionalista na inaca-bada obra Regras para a direção do espírito, mas foi muito mais eficiente e direto na Segunda parte do Discurso do método, quando elencou quatro preceitos metodológicos básicos para se tomar como firme e constante toda e qualquer verdade. O primeiro deles seria nunca aceitar como verdadeiro nada que não se apresentasse evidentemente como tal, só incluindo nos seus juízos o que conhecesse de modo tão claro e tão distinto dentro de seu próprio espírito que não houvesse razão alguma para dele duvidar.

Percebe-se, então, que a verdade para Descartes deveria ser o resultado de uma cons-trução minuciosa e indubitável, incapaz de provocar quaisquer questionamentos posteriores, servindo como base sólida para o desenvolvimento da razão. A verdade seria, desta forma, algo perfeito e acabado que espera ser revelado pela razão humana. Uma vez descoberta, a verdade asseguraria o desenvolvimento do conhecimento humano, atestando a razão como único meio revelador, como centro epistemológico do homem.

Apesar de ser o primeiro preceito metodológico cartesiano, poderia ser o último, já que capaz de resumir a noção de verdade cartesiana. Mas justificando sua precedência, os demais preceitos servem quase que como meios assecuratórios da não violação do primeiro preceito metodológico, orientando a forma de se atestar verdades.

Neste ínterim, Descartes enumera como segundo preceito metodológico da razão di-vidir cada uma das dificuldades que devesse examinar em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las. Preocupado com a complexidade das coisas a conhecer, Descartes se propõe a torná-las tão simples quanto fosse possível a fim de reduzir as complicações ao desvelamento da verdade. Reduzir a realidade às simplificações da mente foi a alternativa en-contrada pelo filósofo francês para direcionar a busca pela verdade. Mas não foi só. Tornar as coisas mais simples para poder conhecê-las era só o começo.

Depois de simplificar os objetos de conhecimento, Descarte descreve o terceiro precei-to metodológico como sendo o de conduzir por ordem os seus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para chegar, aos poucos, gradativamente, ao conhecimento dos mais compostos, e supondo também, naturalmente, uma ordem de prece-dência de uns em relação aos outros. Resta clara a intenção de sistematizar a simplificação dos objetos a serem conhecidos, evidenciado no segundo preceito, pondo o conhecimento em ordem cronológica: conhece-se primeiro o mais fácil e mais simples para então se conhecer o mais difícil e mais complexo.

Por fim, Descartes propõe como quarto preceito metodológico fazer, para cada caso, enumerações tão completas e revisões tão gerais, que tivesse a certeza de não ter omitido nada. Este quarto direcionamento deixa evidente a intenção de catalogar o conhecimento tan-to quanto possível, enumerando e descrevendo as verdades reveladas no afã de confrontá-las, de verificá-las, impedindo, por consectário lógico, a violação do primeiro preceito metodológi-co cartesiano.

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Apesar de ter servido como base de criação e sustentação do modelo racional cienti-ficista desenvolvido nos séculos seguintes, a metodologia cartesiana não encerrou e definiu o paradigma racionalista moderno. Com o passar dos anos este método foi sofrendo acréscimos e divagações que foram compondo sua atual identidade, como bem exemplificam o empirismo e o racionalismo crítico.

O método cunhado por Descartes ganha novo relevo com a advertência humeniana e uma nova descrição nas obras de Immanuel Kant. A razão passa a ser uma unidade que conhece, que unifica a multiplicidade das experiências reais em ideias. Em outras palavras, o homem conhece em três níveis diferentes definidos por Kant como a estética transcendental, a analítica transcendental e a dialética transcendental. O conhecimento parte do objeto dado pela experiência que é captado pela intuição sensível. Esta multiplicidade sensível é canali-zada em conceitos pelo entendimento. O entendimento, através de seus conceitos, reduz à unidade a multiplicidade sensível dada na intuição. Essa unidade pode então ser trabalhada na faculdade dos princípios, pode ser especulada através das ideias. Isso tudo é a razão, um complexo único, mas que se dá em níveis diferentes, diversos.

Através da arquitetônica da razão, Kant eleva o método racional aos tribunais da ciên-cia, compatibilizando razão e experiência. A partir de então o método racionalista cientificis-ta só ganha em relevo, passando a integrar os anais dos mais letrados. A ciência se devota a constatação ôntica-causal-analítica. Tudo passa a ser uma busca incessante pela revelação da verdade última garantidora do desenvolvimento do conhecimento humano.

As ideias de Hegel apenas ratificam o método criado pela razão cartesiana. Para Hegel o saber absoluto, além de possível, é o fim colimado. E esta travessia tem uma metodologia própria: a dialética. A eterna negação do que fora afirmado para negar-se então a negação, necessariamente reafirmando uma nova afirmação. O espírito é sempre, neste ínterim, reflexo de uma evolução constante, uma evolução historicamente representada.

É a partir desta noção histórica e evolutiva do conhecimento que Hegel assegura à ciência a capacidade de se regenerar, de ter uma tese negada por uma antítese, mas sempre criando uma nova síntese. Com essa capacidade de auto-regeneração a ciência passa a ser o fundamento último de todas as coisas. A verdade está garantida, mesmo que ela seja temporá-ria, fugaz, a síntese produzirá uma nova tese que assegurará a nova verdade.

O método racionalista cientificista descrito nestas breves linhas, então, pode ser en-tendido como uma busca pela verdade que espera ser revelada, como um desvelamento dos enigmas da natureza e do homem, sempre sendo assegurada por uma relação de causa e efeito. Simplifica-se a multiplicidade do real, divide-se esta realidade em partículas mínimas capazes de eliminar as contradições aparentes, conhecendo-se parte à parte. O todo, assim, seria a reunião destas inúmeras e microscópicas partes, não integrando a construção deste conhecimento.

Em se falando de direito, de ciência jurídica, o método racional cartesiano não se exi-me da influência exercida. Foi a exigência metodológica moderna que levou o jurista austríaco Hans Kelsen a desenvolver uma das mais importantes obras jurídicas de todos os tempos: a Teoria pura do direito. O jurista, seguindo os preceitos epistemológicos modernos, procurou elevar o direito à categoria de ciência, excluindo do conceito de seu objeto (o próprio direito) quaisquer referências estranhas, especialmente aquelas de cunho sociológico e axiológico. Kelsen isolou e simplificou o objeto a ser conhecido, integrando o direito às exigências da cien-tificidade da época. Por meio de uma linguagem precisa e rigidamente lógica, ele abstraiu do conceito do direito a ideia de justiça, termo que sempre e invariavelmente está imbricado com os valores (sempre variáveis) adotados por aquele que a invoca, não cabendo, portanto, pela imprecisão e fluidez de significado, num conceito de direito universalmente válido.

José Manoel de Sacadura Rocha, ao tecer algumas considerações acerca da teoria de Kelsen, assevera:

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Kelsen, na tentativa de fazer do Direito uma ciência, nos leva a ‘abrir’ outras discussões sobre um sistema normativo com base em uma lógica jurídica formal. Se essa norma é formal, podemos dizer que é direito posto (feito pelo homem para o homem). Kelsen tem o desejo de elaborar uma teoria pura para uma base científica jurídica, e é por esse motivo que o Direito de Kelsen deixa de ser uma ciência humana para ser uma ciência quase exata (Direito Positivo). E a ciência do Direito se transforma em puro normativismo, fundamentada em uma extrema lógica formal jurídica (ROCHA, 2007, p. 115).

Eis, pois, algumas características do método racional capazes de traçar as linhas gerais do paradigma metodológico racionalista moderno, isto para apontar incompletudes e imperfei-ções suficientes para sustentar uma proposta de mudança de paradigma.

4. A INQUIETAÇÃO INTELECTUAL PÓS-MODERNA E O PÓS-POSITIVISMO

Estabelecidos os pilares de sustentação do paradigma racionalista cientificista moder-no, incumbe-nos agora demonstrar, clarear, apontar alguns pontos de incongruência e insufi-ciência desta forma de pensar. Para tanto, tomaremos como base crítica a inquietação intelec-tual, o agito filosófico desenvolvido a partir de meados do século XX.

Nietzsche abre essa inquietação, centrada em verdades possíveis e idealizadas, anun-ciando a morte de Deus e rejeitando o direito natural e racional modernista, desconstruindo os modelos normativos. Seus escritos nos condenam à transmutação dos valores éticos funda-dos na cultura judaico-cristã, relativizando a moral, em “Além do bem e do mal”, “Humano, demasiadamente humano” e “Genealogia da moral”. A Gaia Ciência, quase um tratado crítico à epistemologia, provoca aversão aos métodos científicos, à sistematização do cientificismo positivista construído ao longo dos séculos anteriores. As noções de super-homem e de eterno retorno reforçam sua crítica. Em contrapartida, não declara novo direcionamento, não nos impõe “sua verdade”, não nos indica como pensar. Apenas nos suscita dúvida, estranhamento, inquietação. Provoca-nos um sentimento de incredulidade diante das “verdades” modernistas, negando a existência de neutralidade e objetividade destas verdades.

Martin Heidegger segue a mesma linha crítica ao suscitar a vida como uma inter-pretação espontânea da realidade de si mesma e de todas as coisas. Para ele, a linguagem, o discurso, é a maior preocupação, defendendo ser impossível universalizar verdades racionais e científicas, posto que estas são demonstradas através da linguagem, e a própria linguagem é mutante e de infinitas variáveis. Seria impossível, então. conceber uma ideia iluminista da Europa Ocidental como única e universal, desconsiderando as mais infinitas possibilidades ao redor do globo. A ciência, expressão de um diálogo racional e universal, estava, desta forma, condenada às possibilidades e limitações da comunicação. Em instigante passagem do texto “A caminho da linguagem”, Heidegger consegue exprimir bem a base de sua filosofia:

Há algum tempo, com muita timidez, chamei a linguagem de casa do ser. Se, pela linguagem, o homem mora na reivindicação do ser, então nós europeus, pelo visto, moramos numa casa totalmente diferente da oriental (...) Assim a conversa de uma casa para outra torna-se quase impossível (HEIDEGGER, 2003, p. 74).

Em contínuo exercício crítico da racionalidade, observando o leque de possibilidades criado por Heidegger, Saussure desenvolve a semiótica, a ciência dos signos. A visão descritiva

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da linguagem, uma linguagem segura e que possibilitasse o desenvolvimento do conhecimento científico, de descrição do mundo de forma causal-analítica, semeada pela lógica formal mo-derna, foi quebrada com o desenvolvimento da semiótica, que incluiu o pragmatismo à análise sintática e semântica dos textos.

Ludwig Wittgenstein, um dos maiores representantes desta filosofia analítica, em sua segunda fase, a fase das “Investigações Filosóficas”, nos apresenta uma noção de jogos de lin-guagem, possibilitando uma crítica aos conceitos fechados. Ele acreditava que o significado das coisas não podia ser isolado de sua relação com o sujeito da comunicação, mas sim anali-sado e refletido de acordo com o contexto situacional. A dimensão pragmática da linguagem estava assegurada. A descrição do mundo sob a perspectiva fria e desinteressada, objetiva, racional, descritiva, característica do cientificismo, começa a ruir.

Ao perceber esta instabilidade, Jacques Derrida cria uma doutrina de desconstrução, de desconfiança, fulminando com a ingenuidade do discurso, da leitura de mundo, vinculando-os sempre a um interesse determinado. Os discursos, para Derrida, então, se amoldariam aos interesses mais evidentes, não tendo uma significação única, correta, incumbindo ao leitor, sempre, uma atitude de determinar seu interesse, de manter-se guiado pelas suas intenções. A linguagem, o sistema simbólico de viabilização da comunicação, criado e desenvolvido por determinada organização social, passa a ser entendida, desta forma, como um sistema arbitrá-rio e instável, incapaz de sustentar verdades unas e universais.

A crítica ao racionalismo continua com as ideias de Karl Popper, para quem a ciência não abrangeria todas as hipóteses possíveis. Para ele, a linguagem, a nova forma de formu-lação de problemas, o surgimento de novas situações problemáticas, o confronto de teorias conflitantes, a crítica mútua por meio da argumentação, são elementos que, apesar de indis-pensáveis ao desenvolvimento da ciência, não são considerados como deveriam. As liberdades teriam sido ofuscadas, renegadas, esquecidas em nome da ciência e do desenvolvimento téc-nico apontados pelo iluminismo renascentista.

As ideias de Michel Foucalt seguem a mesma linha crítica. Ele nos apresenta a Mi-crofísica do poder, afirmando ser a verdade construída pelas relações de subordinação, de supremacia intelectiva e discursiva. A verdade passa a ser uma construção intelectiva, uma interpretação imposta pelos mecanismos de poder. Os fatos humanos passam a ser arbitrários e o conhecimento absoluto cada vez mais distante e impossível: “É evidente que não se pode descrever exaustivamente o arquivo de uma sociedade, de uma cultura ou de uma civilização; nem mesmo, sem dúvida, o arquivo de toda uma época”. Nas vielas da Filosofia do Direito, de-clara uma teoria circular que reputa ser o poder o produtor do direito, que por sua vez produz a verdade, que inexoravelmente produzirá poder, que novamente produzirá novo direito e assim por diante. Foucalt critica a criminologia iluminista e a justiça convencional, entendida como privilegiadora, arbitrária e arrogante. Característica também interessante do pensamento de Foucalt, e que, talvez, nos sirva de embasamento à crítica do cientificismo:

o método, a transgressão, o livre trânsito em todos os campos dos saberes, uma epistemologia que pretendo um certo agenciamento global das ciên-cias humanas no interior daquilo que ele chama de triedro dos saberes, e que lhe permite definir um espaço epistemológico da constituição das ciências humanas de caráter racional e científico (FOUCALT, 2000, p. 150).

Em suma, essas são algumas representações da insuficiência da razão como modelo único de estruturação e estabilização de toda uma civilização, que, apesar de fundante, de imprescindível ao “desenvolvimento” do conhecimento humano, tem se mostrado deficiente,

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insuficiente, falha, incompleta para dar conta do atual estágio civilizatório, incumbido a nós pesquisadores apontar para um novo paradigma, um novo horizonte representativo das aspi-rações humanas.

5. CONCLUSÃO

O Direito, até então construído e estruturado seguindo todos os ditames racionalistas, influenciado pelo método cientificista da demonstração causal-analítica, guiado pelo escopo de atingir verdades absolutas e universais, quando confrontada com o agito intelectual con-temporâneo, começa a revelar incongruências e dissonâncias.

O fenômeno jurídico se apresenta hoje como um fenômeno de múltiplas representa-ções, de infinitos significados, de muitos modos de aplicação, enfim, de variáveis tão amplas e tão complexas que simplesmente se torna incompatível com o sistema racionalista cartesiano, e mais que isso, incompatível com as várias formas de racionalidade desenvolvidas pelo pen-samento moderno ao longo dos anos.

Mas isso não implica imputar caráter niilista ou ausência de possibilidade de desen-volvimento de uma ciência capaz de satisfazer os novos anseios. Implica sim em apontar para um novo paradigma, para um novo olhar sobre as ciências em geral, e com mais propriedade para as ciências humanas, em particular, para o Direito, assegurando terreno fértil para desen-volvimento de novas ideias.

Essa nova preocupação epistemológica revela uma possível/provável/necessária trans-posição do paradigma da objetividade teórica do positivismo da época moderna – preocupada em revelar verdades únicas, universais, sem falhas, através de um discurso objetivo e assép-tico, preocupado mais em teorizar conceitos e possibilidades que resolver problemas práticos insurgentes – para dar novo alcance e sobrevida às preocupações contemporâneas.

O Direito visto como um fenômeno de pura aplicação técnica da lei, excluindo o seu caráter humanista e a importância de sua contextualização histórica, deve ser tido hoje como uma simplificação desnecessária e maléfica ao desenvolvimento do conhecimento jurídico. A dogmática deve ser integrada à zetética, complexificando o fenômeno jurídico, tornando-o compreensivo, interativo, interpretativo.

E esta é a problemática exposta no diálogo entre Ovídio Batista e seu interlocutor no início destas breves considerações. Percebe-se claramente que a dificuldade no entendimento e evolução do raciocínio advém desta escolha paradigmática.

O organizador do evento justifica suas posições utilizando-se de argumentos estrita-mente positivistas, em atitude que segue claramente o paradigma racionalista cientificista moderno, pautado nos preceitos metodológicos cartesianos de clarividência da verdade una e única, parcelada e reduzida em problemas menores e mais simples, revisando e enumerando suas certezas, que, como já vimos, merece muitas ressalvas.

Já Ovídio Batista se concentra em entender os institutos jurídicos buscando contextua-lizá-los, interpretá-los, compreendê-los, sempre dentro de sua evolução histórica, muito mais preocupado, desta forma, com os novos anseios neo-paradigmáticos.

Enfim, este escrito teve como principal escopo afirmar esta nova postura epistemológi-ca dita pós-positivista, que, na nossa visão, será capaz de compatibilizar melhor e mais eficien-temente os novos anseios das ciências humanas e, em especial, da ciência jurídica.

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APOSENTADORIA ESPECIAL: PREDICADO DE AFIRMAÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

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Roberto Wanderley Nogueira1

O presente paper propõe algumas observações acerca do adequado tratamento legal, de lege ferenda, por isso de como serão concedidas as aposentadorias especiais às Pessoas com Deficiência no serviço público brasileiro, ainda não regulamentadas pelo Congresso Nacional. Sobre se tratarem, noutro giro, de preocupações relevantes baseadas em registros normativos precedentes do gênero aposentação, sofrem, por isso mesmo, um vício presente na origem do argumento central restritivo e em nada condizente com o novél instituto da aposentadoria es-pecial, estatuído de acordo com o comando do Artigo 40, § 4º, inc. I, da Constituição Federal (Regime Próprio da Previdência Social [RPPS]). Foi o pecado da Lei Complementar n° 142, de 08/05//2013, que regulamentou o §1°, do art. 201, da Carta, comando que repete a mesma norma para o Regime Geral da Previdência Social [RGPS].

De fato, quer se trate do RGPS quer se trate do RPPS, a aposentadoria especial, é evi-dente, traduz instituto que atrai para si as singularidades que lhe conferem contornos próprios e são exaustivos da matéria. Parece, portanto, precipitado acreditar que às aposentadorias es-peciais venham a incidir, salvo regulamentação constitucional em contrário, outros requisitos diversos daqueles previstos normalmente para as aposentadorias em geral, antes ou depois do ingresso no serviço público em datas previstas também constitucionalmente, haja vista as sucessivas reformas da Previdência Social a que temos experimentado e que as tem tornado desvantajosas. A lembrança dessa particularidade só é importante, felizmente, para aquilatar que esses fatores desvantajosos não se aplicam às aposentadorias especiais, exatamente por-que são especiais.

A matéria em alusão está disciplinada no dispositivo constitucional acima mencionado, cuja redação foi determinada pelo advento da EC 47/2005, pela qual ficou estabelecida, ante a iniciativa do legislador constituinte derivado, a ressalva de que às pessoas com deficiência do serviço público ativo fossem favorecidas com o estabelecimento especial de critérios dife-renciados para fins de aposentadoria, e por atenção às cláusulas inclusivas de fundamento universal que os regem. Mais não disse o constituinte, motivo pelo qual os novos requisitos mais benéficos que vierem a ser editados pelo legislador infraconstitucional em obséquio da mencionada cláusula constitucional, mais não poderá dizer, em razão do caráter restritivo do comando constitucional de regência, de eficácia limitada. Isto significa que tais requisitos ge-ram, desde logo, efeitos jurídicos, haja vista que impedem a edição de leis em sentido contrário àquele constante das disposições constitucionais próprias, de acordo com o que se houve as-sentado na Petição Inicial do MI 1967, impetrado por este autor em outubro de 2009 (leading case). A lei infraconstitucional demanda o preceito posto na Constituição e é nesse sentido que não se pode antever plasticidade para a matéria em foco.

1 Doutor em Direito Público. Professor Adjunto da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco. Juiz Federal em Recife.

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Convém destacar que as hipóteses previstas nos três Incisos do § 4º, do art. 40, da Constituição, dizem respeito a um só e único benefício jurídico: contagem especial do tempo de serviço público para fins de aposentadoria no regime próprio das pessoas ali prefiguradas e, consequência disso, de abono de permanência calculado pela nova regra.

Nada obstante e conforme o legislador ordinário retardasse o tratamento da matéria em foco (louve-se o diligente trabalho do Senador Paulo Paim), eis que o Mandado de Injun-ção identificado no título foi interposto junto ao Supremo Tribunal Federal. O remédio jurídico diz com a competência da Suprema Corte para regular matéria de direito constitucional sobre direitos individuais e coletivos que não tenham sido adequadamente regulamentados, ainda, pelo legislador. O Supremo detém a competência constitucional de suprir a mora legislativa nos casos especificados pela Carta Política (art. 102, inc. I, al. “q”).

Atendendo uma orientação do Plenário do STF e tendo em vista uma cepa de casos se-melhantes, embora não diretamente relacionados com as pessoas com deficiência (atividades de risco [Inciso II] ou insalubres [Inciso III]), o Ministro Celso de Melo, Relator, observando o acerto da pretensão, a documentação acostada e a mora legislativa, julgou, a bom tempo, monocraticamente e em toda sua extensão, o pedido injuncional de que se menciona. Antes, ao indeferir a Medida Liminar requestada no mesmo Mandado de Injunção, haja vista sua natureza, o Relator teve o cuidado de sinalizar positivamente quanto ao fato, lembrando juris-prudência da própria Corte Suprema:

2. Observo, a título de registro, que o Plenário do Supremo Tribunal Fede-ral, ao apreciar pretensão injuncional idêntica à ora deduzida nesta causa, não só reconheceu a mora do Presidente da República (“mora agendi”) na apresentação de projeto de lei dispondo sobre a regulamentação do art. 40, § 4º, da Constituição, como, ainda, determinou a aplicação analógica do art. 57, § 1º, da Lei nº 8.213/91, com o objetivo de colmatar a lacuna normativa existente:“(…) APOSENTADORIA – TRABALHO EM CONDIÇÕES ESPECIAIS – PREJUÍZO À SAÚDE DO SERVIDOR – INEXISTÊNCIA DE LEI COM-PLEMENTAR – ARTIGO 40, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do servidor, impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos tra-balhadores em geral – artigo 57, § 1º, da Lei nº 8.213/91.”(MI 721/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Pleno – grifei)Assinalo, finalmente, que esta Suprema Corte, em julgamento plenário, realizado em 01/07/2008, reafirmou essa orientação (MI 758/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO), garantindo, a determinado servidor público, o direito à aposentadoria especial, pelo fato de executar trabalho em ambiente in-salubre, aplicando, por analogia, como estatuto de regência de tal situação jurídica, a Lei nº 8.213/91.

Ora, a sinalização, baseada em orientação do Plenário do STF, restou tecnicamente apropriada, satisfatória e de fato o julgamento se demonstrou compatível com a orientação da própria Suprema Corte. Recentemente, porém, o Ministro Luiz Fux, Relator do MI 5126, inovou esse veredicto. Em sede de Agravo Regimental não submetido ao Plenário, reconside-rou uma outra decisão de sua própria lavra que tinha o mesmo desenho de seus precedentes, determinando que a regulamentação em foco (RPPS) se fizesse pelas regras da LC 142/2013 (RGPS), tão logo essa Lei viesse a se tornar vigente em 08 de novembro próximo, passado o período de vacatio legis. Essa decisão no MI 5126 vale apenas para o caso concreto, enquanto não sofrer modificação, porque o viés deliberativo nela agregado, pela dicção do seu Relator,

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não encontra o mesmo respaldo jurídico do Plenário da Suprema Corte que justifica o MI 1967, leading case para as aposentadorias especiais no serviço público.

Outrossim, os problemas do autor quanto à execução do seu direito, em verdade, co-meçaram nesse ponto, pois a autoridade administrativa correspectiva, para quem o comando injuncional se dirigia e era supletivo da lei faltante, embora houvesse reconhecido o direito subjetivo à aposentadoria especial/abono de permanência, por razões que até mesmo a razão desconhece, impôs duas condições absolutamente idiopáticas e fora de propósito: (1) que o abono de permanência somente seria lançado em folha, após o trânsito em julgado da decisão em sede de Jurisdição Constitucional sob encargo do STF (última instância da Justiça brasilei-ra contra a qual não comporta mais recurso ordinário de espécie alguma) em sede do já men-cionado MI 1967; e (2) que os valores a aplicar não contemplassem efeitos retroativos, sequer à data da propositura do feito injuncional (que marca a litigiosidade da coisa, previne o Juízo, gera litispendência, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição, nos termos do art. 219, do Código de Processo Civil), sob o estranho argumento de que “o STF não se substitui ao legislador”, mesmo nos casos especificados, portanto, não saberia aquilatar se o legislador iria ou não contemplar a matéria do mesmo modo. Sobre isto, evoca-se Rudolf Von Ihering: Quando não se quer realizar o Direito com base no que está formalmente estabelecido em normas jurídicas, atira-se ao injustiçado a clava com a qual haverá de buscar a sua Justiça. No caso, a Suprema Corte respondeu com vigor nominal ao dislate da autoridade administrativa que não desejava cumprir fielmente o veredicto injuncional que lhe foi dirigido, acreditando que o veredicto injuncional não é lei de efeito regulamentar, enquanto perdurar a mora do legislador ordinário.

Curiosamente, foi logo após esse exercício de insubmissão contra o direito bom e re-conhecido do servidor que o Advogado Geral da União, à época, resolveu interpor um Agravo Regimental junto ao Plenário do STF. Perdeu, unanimemente! O STF manteve, por inteiro, a decisão do Relator do MI 1967, Ministro Celso de Melo. O AGU, então, aguardou até o último segundo e, novamente, embora sem possibilidade de recurso, propôs Embargos de Declaração, como se os Senhores Ministros não soubessem o que haviam feito, ou tivessem perdido o norte da situação, por contemplar “solução impossível”, ou seja, fixar um paradigma de execução alegadamente impossível, foi o argumento que, evidentemente, não tinha razão de ser e não atendia à ordem natural das coisas e mesmo à principiologia jurídica aplicável à espécie. Na dúvida quanto à melhor abordagem da norma de colmatação eleita pelo STF para regular a matéria (no caso, o art. 57, da Lei 8.213/91 – Planos de Benefícios da Previdência Social), aplica-se, entre termos diversos, o princípio in dúbio pro fiscum. O servidor público com defi-ciência, independentemente do tipo e do grau de sua deficiência, passou a legitimar-se à apo-sentadoria especial aos 25 de atividade/contribuição. O AGU, desse modo, perdeu, novamente, de modo unânime. Apesar disso, mais uma vez aguardou o último segundo e, com insistência, renovou os Embargos de Declaração sem uma argumentação nova a oferecer, simplesmente repetindo os termos de sua anterior fundamentação constante dos anteriores expedientes que, numa palavra, repetiam as objeções constantes da resposta ao MI 1967, todas repelidas pelo STF, e que apenas buscavam retardar o usufruto desse direito por parte do impetrante e, por extensão, por parte de todos os servidores públicos com deficiência no Brasil.

O resultado é que o Plenário do STF, mantendo o seu entendimento, dessa última vez sequer tomou conhecimento dos últimos Embargos de Declaração interpostos pelo AGU, cujo prazo para nova resistência, ainda que inventiva, se expirou nos dias seguintes, nos termos regimentais (RISTF). Sobre isto, conversando, em pessoa, com o Sr. Ministro Luís Inácio Lu-cena Adams, à saída da Sessão Plenária de Instalação do Seminário Nacional sobre Controle das Políticas Públicas de Acessibilidade, ocorrido no Tribunal de Contas da União em setembro do ano passado, e do qual este autor teve a oportunidade de participar, depois de um certo esforço de memória, o AGU afirmou se lembrar do assunto e, finalmente, antecipou que não

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mais recorreria no caso, haja vista as três últimas oportunidades vencidas cabalmente. O autor destas linhas, ato contínuo, agradeceu e o fez em nome de todas as pessoas com deficiência no Brasil, sobretudo os servidores públicos, que esperam um desfecho para esse quadro, à vista de que o Congresso Nacional ainda se encontra em vias de regulamentar a matéria e é por isso que estamos aqui reunidos nesta Audiência Pública do CAS/Senado Federal.

O fato é o seguinte: transitado em julgado o Acórdão do STF nos autos do MI 1967, por este autor impetrado, foi gerada no Sistema Jurídico Nacional a regra reguladora que faltava para a real efetivação do direito consagrado no art. 40, § 4º, inc. I, da Constituição Federal, inclusive para todos, porque a carga normativa e vinculante de um Mandado de Injunção tem projeção erga-omnes naquilo que comportar aos titulares do mesmo direito e que sejam tomados em igualdade de condições. O MI 1967 traduz um leading case e também poderá ser utilizado perante a autoridade administrativa, enquanto não houver norma regulamentadora, para fazer valer aos beneficiários o direito à aposentadoria especial.

Com efeito, o Mandado de Injunção é um remédio constitucional que operacionaliza uma espécie de controle fundamental da atividade legisferante do próprio Estado, omisso quanto aos seus deveres constitucionais específicos, indutores de direitos. O STF supre, por-tanto, a mora do legislador infraconstitucional e o faz com plena carga, como se legislador fosse, no rastro dessa omissão institucional. A decisão injuncional vale como lei a quem dela se beneficie legitimamente, e ainda que uma lei de regência venha a regular diferentemente o que se houve regulado pela coisa julgada injuncional, já não poderá retroagir para modificá-la in pejus (art. 5º, Inciso XXXVI, da Constituição Federal c/c o Artigo 6º, caput, da Lei de Intro-dução às Normas do Direito Brasileiro).

Por outro lado, é ilusória a ideia segundo a qual as aposentadorias especiais no serviço público se fiarão nos elementos de restrição remuneratória das regras previstas para o plano geral previdenciário, e também o próprio. Com efeito, o que é especial, especial é, já se houve referido o paradigma. E o que se cogita nesse novo preceito constitucional, o qual será agora implementado por força de norma injuncional, sempre oriunda do STF, é que se garanta à pessoa com deficiência que reúna o tempo de contribuição ou de serviço público de 25 anos ou mais o direito à aposentadoria especial, paritária e integral, desde que a previsão valha para as outras pessoas (igualdade de condições quanto ao mais), ou o equivalente na continuidade ativa: abono de permanência, que é, sem dúvida, bastante vantajoso aos que ainda reúnam condições de continuar servindo à Nação e à causa da Inclusão Social em nosso país. Afinal, NADA DE NÓS, SEM NÓS! (lema que traduz a raiz filosófica da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de toda a legislação correata).

A propósito, reivindica-se, com muita ênfase, que uma das vagas no STF seja preen-chida por uma pessoa com deficiência, exatamente para robustecer a construção de uma Ju-risprudência Constitucional aplicável à espécie, ainda carente de massa crítica suficiente para vicejá-la adiante e sobre muitos espaços ainda desassistidos de melhor orientação temática. O tema específico dos Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência ainda é bastante incomum aos padrões cognitivos da Magistratura Nacional, demonstra-o bem a solução encontrada mo-nocraticamente no MI 5126, razão pela qual, dentre outras consequências, o Poder Judiciário jamais reservou vagas para ingresso na carreira judicial de candidatos com esse perfil, ainda que a disciplina esteja constitucionalmente prescrita e legalmente regulamentada (Constitui-ção Federal, art. 37, inc. VIII, Decreto Federal n° 3298/1999, art. 37, §1°, Lei n° 8112/1990, art. 5°, §2°).

A ideia é possibilitar, com mais implicação participante, uma contribuição eficaz para a emancipação das pessoas com deficiência no Brasil, e mostrar o quanto somos capazes de construir a grandeza do país que se eleva no plano das igualdades e da Justiça Social.

Deve-se lembrar que nenhuma deficiência pode ser tomada como uma categoria clíni-ca, como um registro de saúde. O conceito de deficiência, a partir do advento da Convenção

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sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, entre nós norma constitucional (cf. Decreto-Legislativo nº 186/2008), é eminentemente social. Diz a Convenção no seu artigo 1, segunda parte:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

Por esse motivo, não pode haver gradação de deficiência para fins de aposentadoria especial, tomando-se em conta qualquer critério de avaliação sobre sua intensidade ou sobre o grau de comprometimento funcional específico. Essa exigência seria, a rigor, inconstitucional, por dissentir frontalmente da norma convencional de regência, a qual não pode, entre nós, ser objeto sequer de proposta de revisão. Mas, conforme antecipado no primeiro parágrafo desta fala, foi o pecado da LC n° 142/2013, por cuja razão obrigou a Administração Pública a lançar mão, extemporaneamente, da Classificação Internacional de Funcionalidades e Saúde/OMS para a fixação de parâmetros de concessão previdenciária específica (aposentadoria especial). Ocorre que a CIF tem como objetivo proporcionar uma linguagem unificada e padronizada assim como uma estrutura de trabalho que permita a descrição da saúde e de estados relacio-nados com a saúde, definindo até certos componentes ambientais como trabalho e educação na análise diagnóstica dos quadros, enquanto fatores de saúde.

Ora, não é disso que se cogita na espécie aposentadoria especial! Para a concessão des-se benefício é suficiente que a pessoa tenha algum tipo de deficiência, entendida nos termos da norma convencional específica. Tudo o que sobejar a isso, claramente, é inconstitucional, porque desse modo se buscam estabelecer pautas diferenciadoras da concessão não preconi-zadas para as demais pessoas, o que propicia debate jurídico próprio, inclusive em sede juris-dicional.

Ao fim, cumpre realçar, agora e sempre, que os Direitos Humanos não se relativizam, não sofrem recuos e não se restringem validamente, porque guarnecem a Humanidade acima de todas as Constituições. Ou eles são acrescidos em sua pauta já fixada ou não podem ser reduzidos. Calcular a aposentadoria especial das pessoas com deficiência em razão dos graus de limitação que venham a sofrer por causa disso é subverter o conceito jurídico universal claramente estatuído na Convenção de Nova Iorque e transferir aos beneficiários um custo social que não lhes é devido, porque a deficiência traduz uma relação entre o estado físico, intelectual, sensorial, psicossocial ou múltiplo das Pessoas com Deficiência e a sociedade na qual essas mesmas pessoas devem estar e permanecer incluídas.

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PESSOA COM DEFICIÊNCIA: ELEIÇÕES INCLUSIVASCapítulo 17

Roberto Wanderley Nogueira1

O presente paper tem o propósito de tecer alguns poucos comentários sobre a ideia de relativização do sufrágio universal, quanto ao exercício do direito de voto das pessoas com deficiência.

Pois bem. A Democracia representa a concretização histórica de um processo dialético quanto ao

ideal de convívio sociopolítico, no qual a dignidade da pessoa humana e o bem comum cons-tituem valores supremos a guiarem seu processo político decisório, constituído que é por um sistema de instrumentos e de procedimentos, pelo qual o povo, titular da soberania, participa, quer direta, quer indiretamente, por representantes eleitos, da deliberação e concretização daqueles valores guias (SOUZA JUNIOR, 2010, p. 594).

No Estado Democrático de Direito, consagrado no art. 1º, da Constituição brasileira, a ideia de democracia política repousa sobre um princípio primário, rectius, o da universalidade do direito ao sufrágio, expressão da soberania popular e do governo majoritário, identificado, este, por uma opinião majoritária de uma cidadania universal e plural.

Como observa Luiz Roberto Barroso (2010, p.89), é na concepção de que a soberania é do povo, historicamente vitoriosa, que se fixou a teoria democrática. Contudo, é no conceito de dignidade humana, que o Estado democrático encontra seu fundamento ontológico, e que tem se firmado como princípio primeiro e o fim último do convívio social. Dado isto, pode-se afirmar, com segurança, que a universalidade do sufrágio, com todos os seus predicados, é sempre consubstancial à dignidade humana do eleitor.

Embora comumente tida a expressão “sufrágio universal” como sinônima dos termos “voto” e “escrutínio”, a atual carta da República, v.g., em seu art. 14, lhe confere sentidos di-versos, ao dispor que a soberania popular deverá ser exercida “pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, e com valor igual para todos, e, nos termos da lei”.

Tem-se o sufrágio, do latim suffragifum = aprovação; favor (FARIA, 1975), como um direito político subjetivo democrático do cidadão de votar, ser votado e de participar direta-mente do poder político, mediante plebiscito e referendo2, iniciativa popular bem como ajui-zamento de ação popular. O voto, por sua vez, constitui o ato político, pelo qual se exercita, na prática, o direito ao sufrágio que corresponde ao direito de sufragar um representante que se submeteu validamente ao processo eleitoral correspectivo. Sem o voto, este constituiria mera

1 Doutor em Direito Público. Professor Adjunto da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco. Juiz Federal em Recife.

2 Prescreve o art. 3º, da Lei n. 9.709/98 que em questões de relevância nacional de competência do Poder Legis-lativo ou do Poder Executivo, e na hipótese do §3º do art. 18, da CRFB/88, esses institutos de participação popular são acionados por decreto legislativo, por proposta de 1/3, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das casas do Congresso Nacional, não esquecendo ser exclusiva deste a competência para autorizar referendo e con-vocar plebiscito, nos termos do art. 49, XV, do texto constitucional.

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abstração3. O modo de exercício desse direito, por sua vez, constitui escrutínio.Destarte, o sufrágio universal consagrado pela Carta de 1988 confirma o regime po-

lítico eleito pelo, ou seja, o democrático, marcado por uma maior abrangência do direito de sufrágio e ao seu exercício.

No Estado contemporâneo, revela-se incompatível com o sufrágio universal critérios discriminatórios, que não puramente técnicos, e, portanto, antidemocráticos, como aqueles outrora positivados, de épocas não muito distantes da atual, de ordem econômica, intelectual, concernentes a nome, família, sexo, cor etc. O voto censitário traduz, hoje, uma antinomia jurídico-constitucional, porque viola o princípio da igualdade e da participação democrática, além de extratificar a sociedade em classes que não se comunicam politicamente. Trata-se de uma abominação ético-política.

Assim, nos termos da Constituição, dispõem do direito ao sufrágio, todos os brasileiros (natos ou naturalizados, de qualquer sexo e capacidade intelectual e econômica), que contém, à data da eleição , com capacidade civil absoluta - maiores de 18 anos, o que torna seu alista-mento obrigatório -, ou relativa - maiores de 16 e menores de 18 anos -, sendo seu alistamento facultativo, situação essa equiparável aos analfabetos e maiores de setenta anos.

Questões polêmicas e interessantes travadas na Justiça Eleitoral dizem respeito à ga-rantia do exercício do direito de sufrágio bem como à obrigatoriedade do voto em relação às pessoas com deficiência física, psicossocial, sensorial, intelectual ou múltipla, quando severa, que os impossibilite, dificulte ou torne extremamente oneroso o exercício de suas obrigações eleitorais.

Essa lógica jurisprudencial, no entanto, peca por obsolescência e inadequação consti-tucional, quando confrontada com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiên-

3 “O sufrágio é apenas direito, de que o voto é tão-só uma manifestação no plano prático, um dos atos de seu exercício”. AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20ª ed. rev. et atualizada. até E.C. 35/01. Ed. Malheiros. Pág. 355. Merece registro a ADI 4.018-MC (rel. Min. Eros Grau) na qual o Plenário do STF reiterou que a “capacidade eleitoral ativa deve ser ponderada ao tempo do processo eleitoral”, de forma que na hipótese de nova eleição, em razão da anulação da primeira, estão legitimados a dela participarem todos os eleitores aptos na data agen-dada para o segundo pleito. Vejamos ementado desse julgado: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESOLUÇÃO 124/2008, DE 7 DE JANEIRO DE 2008. RESOLUÇÃO 127/2008, DE 17 DE JANEIRO DE 2008, AMBAS DO TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DE GOIÁS. CABIMENTO DA AÇÃO DIRETA. CRITÉRIOS ATINENTES ÀS ELEIÇÕES PARA PREFEITO E VICE-PREFEITO. ELEIÇÕES EXTEMPORÂNEAS NO MUNICÍPIO DE CALDAS NOVAS/GO. DEFINIÇÃO DOS ELEITORES, BEM COMO DOS POSSÍVEIS CANDIDATOS. LIMITAÇÃO DO UNIVERSO DE ELEITORES. A CAPACIDADE ELEITORAL DEVER SER ANALISADA AO TEMPO DO PROCESSO ELEITORAL. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 14 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. CARACTERIZAÇÃO DO PERICULUM IN MORA E DO FUMUS BONI IURIS. DEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR. 1. Cabimento da ação direta para a impugnação de resolu-ções do TRE/GO. Destinatários do ato normativo determináveis, mas não determinados. Precedentes. 2. O TRE/GO, por meio das resoluções impugnadas, estabeleceu as regras concernentes à realização de eleições diretas para a escolha de Prefeito e Vice-Prefeito no Município de Caldas Novas, conforme determinado pelo Tribunal Superior Eleitoral. 3. Resolução 124/2008, que define quais serão os possíveis candidatos aos cargos de Prefeito e Vice-Prefeito e quais serão os eleitores. 4. Potencial surgimento de circunstâncias inusitadas. Situações em que cidadãos reúnam condições suficientes para ser candidatos, ainda que não possam votar na eleição. 5. A capaci-dade eleitoral ativa deve ser ponderada ao tempo do processo eleitoral, de modo que a restrição imposta pela Re-solução 124/2008 não encontra fundamento constitucional. 6. Fumus boni iuris demonstrado pela circunstância de a Resolução 124/2008 excluir eleitores atualmente habilitados a participar do processo de escolha do Prefeito e Vice-Prefeito. 7. Periculum in mora evidente, vez que a data designada para as eleições é 17 de fevereiro de 2008. 8. Medida cautelar deferida para assegurar possam participar do processo eleitoral todos os eleitores do Município de Caldas Novas, Goiás, afastada a regra veiculada pelo artigo 13 da Resolução n. 124/2008. (ADI 4018 MC, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 13/02/2008, DJe-088 DIVULG 15-05-2008 PUBLIC 16-05-2008 EMENT VOL-02319-03 PP-00434 RTJ VOL-00205-01 PP-00134 LEXSTF v. 30, n. 354, 2008, p. 144-156)

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cia, assinada em Nova Iorque (da qual o Brasil é um Estado-Parte), tendo incorporado, como Emenda Constitucional (art. 5º, 3º, da Constituição), até mesmo o seu Protocolo Facultativo, o qual permite debater as questões relacionadas com os direitos dessas pessoas junto ao Comitê da ONU encarregado de julgá-las em definitivo. O Brasil internalizou a Convenção de Nova Iorque pelo Decreto legislativo nº 186/2008 e a promulgou entre pelo Decreto nº 6949/2009. Nada obstante isto, toda a legislação constitucional e infraconstitucional ainda se ressente de revisionamento atualizador para reformular a taxonomia dos institutos relacionados a esse campo de regulação jurídica, razão pela qual muitas incongruências e omissões vem sendo ressaltadas no sistema político, inclusive na Jurisprudência.

Em face dessas circunstâncias e no tocante à questão envolvendo à possibilidade de deslocamento das urnas eleitorais às pessoas com deficiência que não tenham condições as-sistivas para garantir-lhes o deslocamento até o local específico da votação a fim de que exer-citem o sufrágio sem maiores dificuldades, merece registro decisão dos Ministros do Tribunal Superior Eleitoral, os quais resolveram, por unanimidade, aprovar a recomendação, nos ter-mos do voto do Ministro Relator, Eduardo Alkmin, dirigida aos Tribunais Regionais Eleitorais “que, desde logo, orientem os juízes eleitorais para que, no momento de designação dos luga-res das votações considerem todas as facilidades possíveis objetivando assegurar aos eleitores com dificuldade de locomoção o acesso aos lugares de votação, nos termos do art. 138 e p. único do Código Eleitoral”.

Eis o ementado do referido julgado:

PETICAO - DEFICIENTES FISICOS - FACILIDADE DO ACESSO AOS LOCAIS DE VOTACAO - ORIENTACAO AOS JUIZES ELEITORAIS, POR INTERMEDIO DOS TRIBUNAIS REGIONAIS ELEITORAIS. Decisão: APROVADA A RECOMENDACAO PRECONIZADA NO VOTO DO RELATOR. UNANIME.(PETIÇÃO nº 307, Resolução nº 19849 de 29/04/1997, Relator(a) Min. JOSÉ EDUARDO RANGEL DE ALCKMIN, Publicação: DJ - Diário de Jus-tiça, Data 20/05/1997, Página 21013 RJTSE - Revista de Jurisprudência do TSE, Volume 9, Tomo 2, Página 342 )

A disciplina é vaga e não se presta a observar fielmente à norma convencional, até por-que editada anteriormente ao seu advento.

A pertinência de uma política garantista do direito ao sufrágio, por efeitos da necessi-dade de participação na vida política e pública das pessoas com deficiência, deve compreender momento muito anterior ao do pleito eleitoral propriamente dito, retroagindo ao acesso à in-formação para, finalmente, ter como um ponto inicial a realização do direito à educação, em especial, além de suporte assistivo e comunicacional para essa parcela significativa da popula-ção brasileira, multifacética, que, de acordo com dados do IBGE (Censo de 2010), se eleva a quase ¼ do contingente demográfico nacional.

Com efeito, a Convenção sobre as Pessoas com Deficiência ressalta em seu Artigo 29 dois pontos cardeais nessa matéria: (a) que se assegurem às pessoas com deficiência a partici-parem efetiva e plenamente da vida política e pública, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos, incluindo o direito e a oportunidade de votarem e serem votadas; (b) que se promovam ambientes ativos em que as pessoas com deficiência possam participar efetiva e plenamente na condução das questões públicas, sem discriminação e em igualdade de oportunidades com as demais pes-soas, encorajando sua participação nas diversas questões públicas.

Cumpre destacar que, quanto ao exercício do sufrágio propriamente dito, universal, secreto e direto, a pessoa com deficiência tem os seguintes direitos de natureza diretamente

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constitucional, a saber: (i) encontrar instalações, procedimentos e materiais e outros equi-pamentos adequados para o exercício do voto, rectius, apropriados, acessíveis e de fácil com-preensão e uso; (ii) ser protegida contra toda e qualquer forma de intimidação que a dificulte ao exercício do voto, à participação em eleições em geral e plebiscitos ou ao direito de candi-datar-se e de ocupar cargos eletivos e desempenhar quaisquer funções públicas em todos os níveis de governo, para tanto usando novas tecnologias assistivas, quando apropriadas; (iii) ter garantida à livre expressão de sua vontade como eleitor e, para tanto, sempre que necessário e a seu pedido, permissão para que seja auxiliada na votação por uma pessoa de sua própria escolha. É o que está preceituado no Artigo 29, alínea “a”, da Norma Convencional em exame.

O que se percebe, no caso, é que se torna explícita a relativização do sufrágio, sobre-tudo no que se refere ao segredo, pois é verdadeiro que, no contexto das especificidades das limitações enfrentadas pelas pessoas com deficiência, é possível que o exercício do direito de votar por parte delas pressuponha auxílio de terceiros, inclusive junto à cabina de votação para a qual, normalmente, só se admite dirigir-se a pessoa do eleitor que vai votar. Para as pessoas com deficiência, e a pedido delas, abre-se, portanto, uma exceção, igualmente constituciona-lizada, ao princípio ativo do sufrágio universal.

Quanto ao direito à informação, também merece registro a Resolução do TSE 14550/94, pela qual ficaram autorizados os Partidos Políticos a utilizar intérpretes de língua de sinais, visando a garantir plena comunicação às pessoas com deficiência auditiva no horário da pro-paganda eleitoral gratuita na televisão. Vejamos o seguinte ementado:

INSTRUCOES, DEFICIENTES AUDITIVOS. INTERPRETE DE SINAIS. PROPAGANDA ELEITORAL GRATUITA. Ementa: DEFICIENTES AUDITIVOS. PROTECAO CONSTITUCIONAL (ART. 5, CAPUT). AUTORIZACAO AOS PARTIDOS POLITICOS PARA UTILIZACAO DE INTERPRETES DA LINGUAGEM DE SINAIS NO HO-RARIO POLITICO GRATUITO DE TELEVISAO. DEFERIMENTO, COM A DETERMINACAO DE QUE A FUNCAO DE INTERPRETE DEVERA SER EXERCITADA COM DISCRICAO POR PESSOAL TECNICO-ESPE-CIALIZADO, SENDO VEDADO O SEU EXERCICIO POR OUTRO CAN-DIDATO OU PESSOA FAMOSA, QUE, POR SI SO, IMPLIQUE PROMO-CAO DO PARTIDO OU CANDIDATURAS. Decisão:ACOLHIDA NOS TERMOS DO VOTO DO MINISTRO RELA-TOR. UNANIME.(PROCESSO ADMINISTRATIVO nº 14550, Resolução nº 14550Ade 01/09/1994, Relator(a) Min. ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, Pu-blicação: DJ - Diário de Justiça, Data 11/10/1994, Página 27279)

Ademais, no tocante à controvérsia sobre a obrigatoriedade do voto das pessoas com deficiência severa, lembrava Gilmar Ferreira Mendes, antes do advento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ter o Tribunal Superior Eleitoral observado que a falta de tratamento constitucional sobre essa matéria sugeria a existência de lacuna, contudo, já se era capaz “de ser superada com base nos próprios princípios estruturantes do sistema consti-tucional, suficientes a legitimar uma cláusula implícita” que reconhecesse também o caráter facultativo do alistamento e do voto dessas pessoas em situação especialíssima, “de modo a não transformar o exercício do voto em transtorno ao seu bem-estar” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 781-782).

Parece evidente que a observação doutrinária, aqui examinada, está em completo dis-senso com os fundamentos atuais da Constituição Federal, completada pelas normas estrutu-radoras da Convenção de Nova Iorque àquela integrada à condição equivalente de Emenda

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Constitucional.Atualmente, não se pode enquadrar o transtorno ao exercício do voto das pessoas com

deficiências, qualquer que seja a causa desencadeadora de limitações, como motivo legal para afastá-las do sufrágio. Acima ficou discorrido, em registro à Norma Convencional em foco, que todas as condições e suporte lhes deverão ser proporcionados pelo Estado, a fim de que nenhum transtorno se lhes possa opor a esse exercício. De fato, não é excluindo a pessoa com deficiência do processo eleitoral que se lhe vai garantir conforto algum ou assegurar-lhe bem estar. O cidadão não pode sentir-se à vontade de ser segregado dos mesmos direitos e obriga-ções que valem às demais pessoas, em razão de suas limitações. A deficiência física, intelec-tual, psicossocial, sensorial ou múltipla, portanto, já não podem servir de pretexto para agasa-lhar comodidades, que segregam, seja para o Estado seja para os demais setores da sociedade.

Em todo o caso, a regra de preceito constitucional que previne essas soluções menos onerosas e mais excludentes, quanto ao exercício do sufrágio e à participação no processo elei-toral como um todo por parte das pessoas com deficiência, é o Artigo 29 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, passo importante na consolidação da democracia participativa em nível internacional, pelo que se instituiu a obrigação de que criem as condi-ções ideais para que as pessoas com deficiência possam exercer sua cidadania com dignidade e plenitude (VEREZA, 2009, p. 121).

Não menos relevante que as questões acima reproduzidas, relaciona-se o caso de pes-soas com deficiência visual que também seja analfabeto, inabilitado para a leitura do Braille4. Nessa situação como posta, a solução não é outra senão a adoção de políticas inclusivas, or-denadas constitucionalmente, que possibilitem efetivamente o acesso das pessoas com defi-ciência, quaisquer que sejam as deficiências, ao respectivo empoderamento para que, uma vez agregados recursos assistivos ou compensatórios das limitações que experimentem, possam, então, exercitar todos os direitos reservados à cidadania em geral, em igualdade de oportuni-dades.5

Essa é uma obrigação social a que as pessoas com deficiência tem o direito de recep-cionar, inclusive sem ônus, porque todos,a final, são iguais perante a lei. Igualdade que se reconstrói a partir de um paradigma realístico e não meramente jurídico que pode afastar da comunhão social as pessoas em razão de argumentos claramente preconceituosos ou discrimi-natórios que mais não se justificam, moral e legalmente, nos dias que correm.

Vê-se, assim, da referência a problemas pontuais, como os acima mencionados, exis-tentes em qualquer sociedade, ainda mais democrática, que a garantia efetiva do sufrágio uni-versal está a demandar, fundamentalmente, do Estado inúmeras medidas positivas de forma a consolidar o próprio processo democrático, não só no seu viés formal, mas também substan-cial.

Conclui-se, desse modo, que a relativização da universalidade, segredo e exercício di-reto do voto (sufrágio) por parte das pessoas com deficiência, antes de desnaturar o instituto, o corrobora em face da cidadania que não pode ser privada desse predicado, unicamente em

4 CEGO. EXERCICIO DO DIREITO DE VOTO PELO ELEITOR DEFICIENTE VISUAL ANALFABETO. - RE-MESSA A ASSOCIACAO DE DEFICIENTES FISICOS DO OESTE DE MINAS DO EXTRATO DA LEGISLACAO ELEITORAL, NA EXPECTATIVA DE SUGESTOES, A FIM DE QUE POSSAM SER REALIZADOS ESTUDOS PARA POSSIBILITAR O EXERCICIO DE VOTO AO DEFICIENTE VISUAL QUE NAO TENHA APRENDIDO O MÉTODO BRAILLE. (PRECEDENTE: RESOLUCAO NUM:0014653, DE 29.09.88). (PETIÇÃO nº 9516, Resolução nº 14660 de 30/09/1988, Relator(a) Min. ANTÔNIO VILAS BOAS TEIXEIRA DE CARVALHO, Publicação: DJ - Diário de Justiça, Data 12/04/1989, Página 5336)

5 Por “empoderamento” deve-se entender a interface operacional da igualdade daqueles que, em razão de algu-ma deficiência, destoa do lineamento concorrencial em que também deve existir paridade de armas, iguais con-dições e oportunidades para o exercício pleno dos direitos. A pessoa com deficiência apresenta alguma limitação de natureza física, intelectual, psicossocial, sensorial ou múltipla, mas não é, toda ela, inteiramente limitada.

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razão de deficiência, assim como a qualquer outro trato que pode ser associado a preconceito, a exemplo do voto censitário do passado.

Ao fim, consoante refere Cláudio Vereza:

O Estado que garante a plena participação na vida política e pública de todos os seus cidadãos contribui para o que entendemos por cidadania de fato, que é possibilitar a todos os indivíduos habitantes de um país o seu pleno desenvolvimento, através do alcance de uma igual dignidade social e econômica (2009, p. 121).

E os novos paradigmas, sem dúvida, que afastam os conceitos pré-inclusivistas basea-dos em aspectos meramente clínicos da deficiência e não em sua interação com as diversas barreiras encontradas na sociedade que impedem as pessoas com essa condição de exercita-rem plenamente os seus direitos (SASSAKI, 2010), de conformidade com o que prescreve so-lenemente o Artigo 1, da Convenção de Nova Iorque, resultaram de uma conquista civilizató-ria árdua devida, em grande parte, às pessoas com deficiência no mundo e também no Brasil, bem assim pela sua extraordinária capacidade de organização social.

Conclui-se que, além de plena acessibilidade aos espaços eleitorais próprios e às ca-binas de votação respectivas, a pessoa com deficiência tem direito, nos termos do Artigo 29, alínea “a”, item “iii”, da Norma Convencional em foco (vigente internamente em face do Decreto Legislativo nº 186/2008), a ingressar na Secção para exercer o sufrágio, mediante a companhia de alguém (cuidador) à sua escolha que a auxiliará nesse exercício mesmo no espaço íntimo da cabina de votação.

Assim sendo, ninguém e nem o Estado ou órgão algum, sobretudo da Justiça Eleitoral ou por seu rogo e comando, poderá, jamais, deixar de atender a esses direitos das pessoas com deficiência associados ao exercício do voto, porque a disposição, além de autoaplicável, é também de natureza constitucional e dispõe de eficácia plena no território nacional, conforme os termos da promulgação legal constante do Decreto nº 6949/2009. Isto significa o início do que se pode convencionar como a “era dos direitos” para as pessoas com deficiência no Brasil.

A pessoa com deficiência tem direito subjetivo de votar e de ser votada, parece óbvio. O que não parece óbvio é que tudo isso tem de acontecer, em face da Constituição Federal, em condições de igualdade de oportunidades com todos as demais pessoas do socius, observados, para isso, todos os recursos assistivos, comunicacionais e de acesso que se fizerem necessá-rios, antes, durante e após o processo eleitoral do qual deve participar tranquilamente e sem sobressaltos, e menos ainda vexames e constrangimentos.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luiz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fun-damentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo:Saraiva, 2010.

FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 5ª ed. Rio de Janeiro. FENAME, 1975

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva. 2009.

SASSAKI, Romeu. Inclusão – Construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA,2010

SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros.

SOUZA JUNIOR, Cesar Saldanha. Regimes PolíticosInMARTINS; Ives Gandra da S.; MEN-

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DES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO; Carlos Valder do. (coords.).Tratado de Direito Consti-tucional.São Paulo: Saraiva, 2010.

VEREZA, Claudio.A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – Versão co-mentada. CORDE/SDH/Presidência da República, Brasília. 2009.