Livro direito memoria_verdade_sem_a_marca

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  • 1. Direito Memriae VerdadeComisso Especial sobreMortos e Desaparecidos Polticos
  • 2. 2007 (Ano da 1 edio) Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da RepblicaTodos os direitos reservados. permitida a reproduo parcial ou total desta obra,desde que citada a fonte e no seja para venda ou qualquer fim comercial.Srie BibliogrficaTiragem: 5.000 exemplaresPresidente da RepblicaLuiz Incio Lula da SilvaMinistro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da RepblicaPaulo de Tarso VannuchiElaborao, distribuio e informaes:COMISSO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOSEsplanada dos Ministrios - Bloco T - Sala 42070064-900 - Braslia - DFFone: (61) 3429 3142 / 3454 Fax (61) 3223 2260E-mail: [email protected] no Brasil/Printed in BrazilCatalogao na publicaoBrasil. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comisso Especialsobre Mortos e Desaparecidos Polticos.Direito verdade e memria: Comisso Especial sobre Mortos eDesaparecidos Polticos / Comisso Especial sobre Mortos e DesaparecidosPolticos - - Braslia : Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007400p. : il. (algumas color.) ; 23 x 30 cmISBN 978-85-60877-00-31. Brasil Histria I. Ttulo. II. Comisso Especial sobre Mortos eDesaparecidos Polticos - Relatrio.
  • 3. Antgona julgava que no haveria suplcio maior do que aquele: ver os doisirmos matarem um ao outro. Mas enganava-se. Um garrote de dor estrangulouseu peito j ferido ao ouvir do novo soberano, Creonte, que apenas um deles,Etocles, seria enterrado com honras, enquanto Polinice deveria ficar onde caiu,para servir de banquete aos abutres. Desafiando a ordem real, quebrou as unhas erasgou a pele dos dedos cavando a terra com as prprias mos. Depois de sepultaro corpo, suspirou. A alma daquele que amara no seria mais obrigada a vagarimpenitente durante um sculo s margens do Rio dos Mortos.Antgona, personagem de Sfocles, mestre da tragdia grega
  • 4. ApresentaoEste livro-relatrio tem como objetivo contribuir para que o Brasil avance na consolidao do respeito aos Direitos Humanos, sem medo deconhecer a sua histria recente. A violncia, que ainda hoje assusta o Pas como ameaa ao impulso de crescimento e de incluso social emcurso deita razes em nosso passado escravista e paga tributo s duas ditaduras do sculo 20.Jogar luz no perodo de sombras e abrir todas as informaes sobre violaes de Direitos Humanos ocorridas no ltimo ciclo ditatorial so impera-tivos urgentes de uma nao que reivindica, com legitimidade, novo status no cenrio internacional e nos mecanismos dirigentes da ONU.Ao registrar para os anais da histria e divulgar o trabalho realizado pela Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos ao longode 11 anos, esta publicao representa novo passo numa caminhada de quatro dcadas. Nessa jornada, uniram-se para um esforo conjuntobrasileiros que se opunham na arena poltica imediata.Sob a gesto de Nelson Jobim no Ministrio da Justia, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o Estado brasileiro reconheceu suaresponsabilidade frente questo dos opositores que foram mortos pelo aparelho repressivo do regime militar. Papel decisivo nessa con-quista tiveram os familiares dos mortos e desaparecidos, com sua perseverana e tenacidade, e o futuro ministro Jos Gregori, ento chefede Gabinete do Ministrio da Justia.O Executivo Federal preparou um projeto que o parlamento brasileiro transformou em lei em dezembro de 1995, criando uma Comisso Es-pecial com trs tarefas: reconhecer formalmente caso por caso, aprovar a reparao indenizatria e buscar a localizao dos restos mortaisque nunca foram entregues para sepultamento. A Comisso Especial manteve uma coerente linha de continuidade atravessando, at o mo-mento, quatro mandatos presidenciais. Durante o governo Luiz Incio Lula da Silva, a Lei foi ampliada em sua abrangncia e praticamentese concluiu o exame de todos os casos apresentados.Uma dupla face deste Brasil que rompe o sculo 21 com sonhos e desafios novos saltar vista dos leitores deste livro, sejam elesvtimas do perodo ditatorial, sejam eles apoiadores daquele regime, sejam juzes, procuradores, parlamentares, autoridades do Executivo,jornalistas, estudantes, trabalhadores, cidados e cidads de todas as reas.Uma face a do pas que vem fortalecendo suas instituies democrticas h mais de 20 anos. a face boa, estimulante e promissora deuma nao que parece ter optado definitivamente pela democracia, entendendo que ela representa um poderoso escudo contra os impulsosdo dio e da guerra, que sempre se alimentam da opresso.A leitura tambm mostrar uma outra face. aquela percebida nos obstculos que foram encontrados por quem exige conhecer a verdade,com destaque para quem reclama o direito milenar e sagrado de sepultar seus entes queridos. Na histria da humanidade, os povos maissanguinrios interrompiam suas batalhas em curtas trguas para troca de cadveres, possibilitando a cada exrcito, tribo ou nao prantearseus mortos, fazendo do funeral o encerramento simblico do ciclo da vida.Nenhum esprito de revanchismo ou nostalgia do passado ser capaz de seduzir o esprito nacional, assim como o silncio e a omissofuncionaro, na prtica, como barreira para a superao de um passado que ningum quer de volta.O lanamento deste livro na data que marca 28 anos da publicao da Lei de Anistia, em 1979, sinaliza a busca de concrdia, o sentimentode reconciliao e os objetivos humanitrios que moveram os 11 anos de trabalho da Comisso Especial.Paulo VannuchiMinistro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da RepblicaMarco Antnio Rodrigues BarbosaPresidente da Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos
  • 5. Integrantes da Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos (CEMDP)1995/2000Miguel Reale Jnior PresidenteNilmrio Miranda Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos DeputadosEunice Paiva Representante da sociedade civil at 03/04/1996, quando foi substituda por Lus Francisco Carvalho FilhoSuzana Keniger Lisba Representante dos familiaresgeneral Oswaldo Pereira Gomes Representante das Foras ArmadasPaulo Gustavo Gonet Branco Representante do Ministrio Pblico FederalJoo Grandino Rodas Ministrio das Relaes Exteriores2001Miguel Reale Jnior Presidente at 27/12/2001Lus Francisco Carvalho Filho Presidente a partir de 27/12/2001Nilmrio Miranda Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos DeputadosBelisrio dos Santos Junior Representante da sociedade civil a partir de 27/12/2001Suzana Keniger Lisba Representante dos familiaresgeneral Oswaldo Pereira Gomes Representante das Foras ArmadasPaulo Gustavo Gonet Branco Representante do Ministrio Pblico FederalJoo Grandino Rodas Ministrio das Relaes Exteriores2002Lus Francisco Carvalho Filho PresidenteNilmrio Miranda Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos DeputadosBelisrio dos Santos Junior Representante da sociedade civilSuzana Keniger Lisba Representante dos familiaresgeneral Oswaldo Pereira Gomes Representante das Foras ArmadasPaulo Gustavo Gonet Branco Representante do Ministrio Pblico FederalJoo Grandino Rodas Ministrio das Relaes Exteriores2003Lus Francisco Carvalho Filho PresidenteMaria do Rosrio Nunes Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados, a partir de 14/08/2003Belisrio dos Santos Junior Representante da sociedade civilSuzana Keniger Lisba Representante dos familiaresCoronel Joo Batista Fagundes Representante das Foras Amadas, a partir de 14/08/2003Maria Eliane Menezes de Farias Representante do Ministrio Pblico Federal, a partir de 14/08/2003Andr Sabia Martins Ministrio das Relaes Exteriores, a partir de 14/08/20032004Lus Francisco Carvalho Filho PresidenteJoo Luiz Duboc Pinaud Presidente a partir de 29/06/2004Augustino Veit Presidente a partir de 17/11/2004Maria do Rosrio Nunes Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos DeputadosBelisrio dos Santos Junior Representante da sociedade civilSuzana Keniger Lisba Representante dos familiaresCoronel Joo Batista Fagundes Representante das Foras ArmadasMaria Eliane Menezes de Farias Representante do Ministrio Pblico FederalAndr Sabia Martins Ministrio das Relaes Exteriores
  • 6. 2005Augustino Veit PresidenteMaria do Rosrio Nunes Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos DeputadosBelisrio dos Santos Junior Representante da sociedade civilSuzana Keniger Lisba Representante dos familiares at 02/08/2005Diva Soares Santana Representante dos familiares a partir de 06/12/2005Coronel Joo Batista Fagundes Representante das Foras ArmadasMaria Eliane Menezes de Farias Representante do Ministrio Pblico FederalAndr Sabia Martins Ministrio das Relaes Exteriores, at 18/10/2005, quando substitudo porMrcia Adorno Ministrio das Relaes Exteriores2006Augustino Veit Presidente at 25/04/2006Marco Antnio Rodrigues Barbosa Presidente a partir de 25/04/2006Maria do Rosrio Nunes Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados at 03/08/2006Lus Eduardo Greenhalgh Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados, a partir de 03/08/2006Belisrio dos Santos Junior Representante da sociedade civilDiva Soares Santana Representante dos familiaresCoronel Joo Batista Fagundes Representante das Foras ArmadasMaria Eliane Menezes de Farias Representante do Ministrio Pblico FederalMrcia Adorno Ministrio das Relaes Exteriores, substituda por Augustino Veit em 25/04/20062007Marco Antnio Rodrigues Barbosa PresidentePedro Wilson Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados, a partir de 06/03/2007Belisrio dos Santos Junior Representante da sociedade civilDiva Soares Santana Representante dos familiaresMaria Eliane Menezes de Farias Representante do Ministrio Pblico FederalCoronel Joo Batista Fagundes Representante das Foras ArmadasAugustino VeitTitulares dos Direitos Humanos entre 1995 e 2007Jos GregoriSecretrio Nacional dos Direitos Humanos do Ministrio da Justia 07/04/1994 a 14/04/2000Gilberto SabiaSecretrio Nacional dos Direitos Humanos do Ministrio da Justia 20/06/2000 a 14/11/2001Paulo Srgio PinheiroSecretrio de Estado dos Direitos Humanos (Ministrio da Justia) 16/11/2001 a 31/12/2002Nilmrio MirandaMinistro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da Repblica 02/01/2003 a 21/07/2005Mrio Mamede FilhoSubsecretrio de Direitos Humanos da Secretaria Geral da Presidncia da Repblica 29/07/2005 a 05/12/2005 e Ministro da Secretaria Especial dosDireitos Humanos da Presidncia da Repblica 06/12/2005 a 20/12/2005Paulo VannuchiMinistro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da Repblica desde 21/12/2005
  • 7. sumriosumrio17 Captulo 1 Direito memria e verdade19 Captulo 2 Contexto histrico30 Captulo 3 A histria da Comisso Especial48 Captulo 4 Casos da Comisso51 Casos anteriores a abril de 196489 Casos aps o AI589 1969112 1970141 1971195 Guerrilha do Araguaia271 1972325 1973369 1974395 1975410 1976427 1977428 1978430 1979434 1980435 1982436 1985438 Argentinos desaparecidos no Brasil443 Outros indeferidos461 Casos enviados para aComisso de Anistia463 As Organizaes da Esquerda486 Glossrio488 ndice remissivo
  • 8. Captulo 1Direito memria e verdadeAComisso Especial sobre Mortos e Desa-parecidos Polticos (CEMDP) institu-da pela Lei n 9.140/95, de dezembro de1995 vem cumprindo importante papelna busca de soluo para os casos de de-saparecimentos e mortes de opositores polticos porautoridades do Estado durante o perodo 1961-1988.Desempenha esse trabalho com rigor e equilbrio hmais de 11 anos, contribuindo para a consolidao davida democrtica brasileira. Enfrentou as dificuldadesque so inerentes a to delicada tarefa, mas conseguiuconcluir o exame de quase todos os casos apresentados,garantindo reparao indenizatria aos familiares dasvtimas e, sobretudo, oficializando o resgate de um pe-rodo fundamental que j pertence histria do Brasil.A Comisso encerrou, no final de 2006, uma longa pri-meira etapa de suas atividades. Concluda a fase deanlise, investigao e julgamento dos processos rela-tivos aos 339 casos de mortos e desaparecidos apre-sentados para sua soberana deciso, que se somam aoutros 136 nomes j reconhecidos no prprio Anexo daLei n 9.140/95, vem se concentrando, agora, em doisoutros procedimentos.O primeiro deles, iniciado em setembro de 2006, a co-leta de amostras de sangue dos parentes consangneosdos desaparecidos ou dos mortos cujos corpos no fo-ram entregues aos familiares, para constituir um bancode dados de perfis genticos Banco de DNA visando comparao e identificao com certeza cientficados restos mortais que ainda venham a ser localizados,bem como de ossadas j separadas para exame.O segundo sistematizar informaes sobre a possvellocalizao de covas clandestinas nas grandes cidadese em reas provveis de sepultamento de militantes narea rural, em especial na regio do rio Araguaia, nosul do Par. Ao faz-lo, a CEMDP estar cumprindo odisposto no Inciso II do Artigo 4 da Lei n 9.140/95,que a criou: envidar esforos para a localizao doscorpos de pessoas desaparecidas no caso de existnciade indcios quanto ao local em que possam estar depo-sitados.A Lei n 9.140/95 marcou o reconhecimento, pelo Esta-do brasileiro, de sua responsabilidade no assassinato deopositores polticos no perodo abrangido. Reconheceuautomaticamente 136 casos de desaparecidos cons-tantes num Dossi organizado por familiares e mi-litantes dos Direitos Humanos ao longo de 25 anos debuscas. Mais tarde, foi excluda dessa lista uma pessoaque se comprovou ter morrido de causas naturais. Pelostermos da Lei, no cabia CEMDP diligenciar sobre os135 casos j definidos, e sim apreciar as denncias deoutros registros de mortes, legalizando procedimentospara indenizao das famlias.As informaes foram levantadas por familiares e ad-vogados, tomando por base depoimentos de ex-presospolticos, de agentes do Estado e pessoas envolvidas no||| 171717 |||
  • 9. processo de represso, bem como analisando reporta-gens da imprensa e documentos encontrados em ar-quivos pblicos abertos para consulta. Este ltimo fatorrefora a necessidade de se permitir amplo acesso a es-ses e outros arquivos pblicos, ou mesmo privados, paraconsulta e esclarecimento da realidade das mortes.A elucidao das informaes referentes s cir-cunstncias de priso, tortura e morte de oposito-res permitiram que o Estado brasileiro assumisse suaresponsabilidade histrica e administrativa sobre aintegridade dos presos e o destino dado a eles. A in-denizao pecuniria foi conseqncia natural e le-gal para sua efetivao.Redemocratizado, o Estado brasileiro cumpriu tambmum certo papel de juiz histrico ao fazer o resgate damemria e da verdade. No poderiam seguir coexistin-do verses colidentes como a de inmeros comunica-dos farsantes sobre fugas, atropelamentos e suicdios,emitidos naqueles tempos sombrios pelos rgos de se-gurana, e a dos autores das denncias sobre violaode Direitos Humanos, que infelizmente terminaram secomprovando verdadeiras.O referido Dossi, preparado pela Comisso de Fami-liares de Mortos e Desaparecidos Polticos, valeu comobase e ponto de partida consistente para o rigoroso exa-me da Comisso Especial. Foram exigidos depoimentosque corroborassem as denncias, apresentados docu-mentos e realizadas percias cientficas para chegar verso definitiva dos fatos.Este livro-relatrio registra para a histria o resgate des-sa memria. S conhecendo profundamente os porese as atrocidades daquele lamentvel perodo de nossavida republicana, o Pas saber construir instrumentoseficazes para garantir que semelhantes violaes dosDireitos Humanos no se repitam nunca mais.COMISSO DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS
  • 10. Captulo 2Contexto histricoAditaduramilitarbrasileiranofoiumfatoiso-lado na histria da Amrica Latina. Na mes-ma poca, regimes semelhantes nasceram derupturas na ordem constitucional de outrospases no subcontinente, tendo as Foras Ar-madas assumido o poder em consonncia com a lgicada Guerra Fria. O mundo estava dividido em dois grandesblocos. Um plo era comandado pelos Estados Unidos e ooutro pela Unio Sovitica. Essa diviso de poder mundialteve como cenrio de fundo o resultado da Segunda Guer-ra, com as potncias vencedoras dividindo o planeta emduas grandes reas de influncia.Num tabuleiro de apenas duas cores, o Brasil perma-neceu na rbita da diplomacia norte-americana, assimcomo o restante dos pases latino-americanos. A partirde 1959, a Revoluo Cubana marcou profundamentea poltica exterior dos Estados Unidos, que anunciaramno mais tolerar insurgncias desafiando sua hegemo-nia na regio, logo aps ter ficado clara a aproxima-o entre Cuba e Unio Sovitica. Para garantir que osgovernos da regio permanecessem como aliados, osEstados Unidos apoiaram ou patrocinaram golpes mili-tares de exacerbado contedo anticomunista.Os pases da regio que haviam participado com tro-pas na Segunda Guerra Mundial, como o Brasil, lutaramcomo aliados dos Estados Unidos e sob seu comandomilitar, iniciando a uma cooperao operacional queavanaria nas dcadas seguintes, gerando unidade dedoutrinas, treinamento conjunto na formao de qua-dros e estreita identidade ideolgica.No ps-guerra, essa diviso entre influncia norte-ame-ricana ou sovitica se estendeu pelos cinco continen-tes. Ocorreram algumas iniciativas de independnciaem poltica e diplomacia, como, por exemplo, a criaodo bloco dos pases no-alinhados, a partir de 1955, ocisma sino-sovitico dos anos 1960 e a resistncia deCharles De Gaulle a uma liderana absoluta dos EstadosUnidos ao longo do perodo. Na Amrica Latina, entre-tanto, essas iniciativas de autodeterminao avanarampouco. Prevaleceu at o final do sculo 20 a atitude dealinhamento automtico com as posies norte-ameri-canas, com raras excees.Assim que, no subcontinente, os anos 1960 e 1970vo contabilizar um ntido fortalecimento, no mbitodo poder poltico, das foras que haviam resistido aosgovernos de orientao nacionalista dos anos 1950,como o de Vargas, no Brasil, Pern, na Argentina, PazEstensoro, na Bolvia, Jacobo Arbenz, na Guatemala, evrios outros. Como regra geral, os governantes buscamestreitar, no plano econmico, a associao com seusantigos aliados do capital externo, sob tutela militarnacional, e incorporam plenamente a estratgia norte-americana de conteno do comunismo, resumida pelaDoutrina de Segurana Nacional.Com base nessa doutrina, foram decretadas no Brasilsucessivas Leis de Segurana Nacional sob a forma deDecretos-Leis (DL), uma em 1967 (DL 314) e duas em1969 (DL 510 e DL 898), de contedo draconiano, quefuncionaram como pretenso marco legal para dar co-bertura jurdica escalada repressiva.O esprito geral dessas trs verses da Lei de SeguranaNacional indicava que o pas no podia tolerar anta-gonismos internos e identificava a vontade da Naoe do Estado com a vontade do regime. Se o alvo inicialeram apenas os opositores no plano partidrio e na lutapoltica clandestina, de fato a lei terminaria fulminando| 19 |
  • 11. DIREITO MEMRIA E VERDADEtambm a liberdade de imprensa. Ao estabelecer que osjornais e emissoras de rdio e televiso deviam contri-buir para o fortalecimento dos objetivos nacionais perma-nentes, abria caminho para proibi-los de divulgar crticascontra autoridades governamentais porque no poderiamindispor a opinio pblica contra elas, gerando animosida-de ou a chamada guerra psicolgica adversa.Ditaduras no Cone SulEsse contexto histrico regional trouxe, ento, a generali-zao de regimes polticos repressivos em todos os pasesdo Cone Sul: Brasil (1964), Argentina (1966 e 1976), Uru-guai (1973), Chile (1973), ao passo que a ditadura de Stro-essner, no Paraguai, j remontava dcada anterior, 1954.O controle da classe trabalhadora pautou-se por forte co-ero sobre os sindicatos, quando no por intervenesdiretas e priso ou assassinato das lideranas. Em quasetodos os casos, os partidos polticos preexistentes foramextintos e o parlamento submetido a severas limitaes,extintos e o parlamento submetido a severas limitaes,quando no simplesmente fechado.A Argentina passou por um primeiro governo ditatorialentre 1966 e 1973, mas foi no segundo perodo de re-gime militar, iniciado em 24 de maro de 1976, que ascifras da violncia repressiva atingiram patamares semprecedentes. A recuperao da democracia, a partir de1983, aps o desastre nacional causado pela aventurados ditadores nas Malvinas, teve de considerar um es-pantoso saldo de seqestros, torturas e assassinatos porparte de agentes estatais, quando os Direitos Humanosforam violados em larga escala. Estima-se em cerca de30 mil o total de mortos e desaparecidos entre os queresistiram ao regime.No Uruguai, que antes se orgulhava de ser um pas delonga convivncia poltica democrtica, os militares fo-ram assumindo crescente controle sobre as autoridadescivis j no final dos anos 1960. Mantiveram Juan Ma-ria Bordaberry desde 1971 como presidente fantochee passaram a exercer plenamente o poder ditatorial apartir de junho de 1973. A democracia comeou a serpartir de junho de 1973. A democracia comeou a serrestaurada apenas em 1985, mesmo ano em que o Bra-sil voltava a ter um presidente civil. Estima-se em cercade 400 o nmero de mortos e desaparecidos daquelepas vizinho por lutarem contra a ditadura, muitos delessendo assassinados durante exlio na Argentina.No Chile, a ditadura comandada por Augusto Pinochetinstituiu a violncia de Estado como norma de condutadesde o primeiro momento do golpe contra o governoconstitucional, comeando pela execuo do presidenteSalvador Allende no prprio palcio presidencial de LaMoneda, em 11 de setembro de 1973. O perodo em quea Unidade Popular governou o Chile, entre fins de 1970e setembro de 1973 tinha sido marcado por crescente| 20 |Braslia, 1 de abril de 1964
  • 12. COMISSO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS| 21 |No incio do sculo 21, superados os governos repressi-vos dos cinco pases do Cone Sul, esto em andamentoprocessos judiciais no Chile, na Argentina, no Uruguai emesmo no Paraguai, que buscam responsabilizar altasautoridades e torturadores do perodo ditatorial naque-les pases.Pinochet morreu em dezembro de 2006, quando se en-contrava em priso domiciliar e respondia a inmerasaes criminais desde que detido na Espanha. Alfre-do Stroessner morreu exilado no Brasil, em agosto domesmo ano, submetido a processos no Paraguai. In-tegrantes da Junta Militar Argentina na priso e, re-centemente, a imprensa noticiou o suicdio de um altooficial uruguaio, horas antes de comparecer em juzopara responder por seus crimes. Tambm o ex-presi-dente Bordaberry (1973-1976) est impedido de deixaro Uruguai, acusado de descumprir a Constituio e degraves violaes de Direitos Humanos, tendo sua prisodecretada por homicdios cometidos em Buenos Aires.O Brasil o nico pas do Cone Sul que no trilhouprocedimentos semelhantes para examinar as violaesde Direitos Humanos ocorridas em seu perodo ditato-rial, mesmo tendo oficializado, com a Lei n 9.140/95,o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelasmortes e pelos desaparecimentos denunciados.Fases do Regime Militar no BrasilO regime militar brasileiro de 1964 - 1985 atravessoupelo menos trs fases distintas. A primeira foi a doGolpe de Estado, em abril de 1964, e consolidaodo novo regime. A segunda comea em dezembro de1968, com a decretao do Ato Institucional n 5 (AI-5), desdobrando-se nos chamados anos de chumbo,em que a represso atingiu seu mais alto grau. A ter-ceira se abre com a posse do general Ernesto Geisel,em 1974 ano em que, paradoxalmente, o desapare-cimento de opositores se torna rotina , iniciando-seento uma lenta abertura poltica que iria at o fimdo perodo de exceo.Na fase inicial, o setor das Foras Armadas que prevaleceuna disputa interna para comandar o aparato estatal foi oproveniente da Escola Superior de Guerra (ESG), que haviafortalecimento dos partidos de esquerda, mobilizaesde contedo socialista, aproximao diplomtica comCuba e Unio Sovitica, bem como pelo crescimento dosetor nacional-estatal da economia, com destaque paraas minas de cobre, maior fonte de divisas do pas.O Chile viveu sob a ditadura do general Pinochet at quea oposio vencesse um plebiscito nacional em 1988 eas eleies presidenciais do ano seguinte. Iniciou-se,ento, uma delicada engenharia de transio polticaque seria completada ao longo dos anos seguintes. Hmuita controvrsia e at livros publicados em torno daestimativa de quantos foram os mortos e desaparecidosdurante o regime Pinochet, predominando cifras queoscilam entre 3.000 e 10.000 opositores assassinados.Quanto ao Paraguai, importa registrar que o regimedo general Stroessner, iniciado em 1954 e igualmentepautado pela rotineira ocorrncia de prises, torturase execues de adversrios polticos, teve caracters-ticas de um complexo sistema ditatorial militar-civil,que conferiu ao ditador oito mandatos sucessivos, at1989. O Partido Colorado, ao qual pertencia Stroessner,governa ainda hoje aquele pas, aps passar por recicla-gem superficial, sendo que, no presente momento, asinstituies polticas paraguaias ainda ostentam umainstabilidade poltica que destoa do observado no res-tante do Cone Sul.Em meados da dcada de 1970, os regimes militaresdesses cinco pases articularam uma integrao ope-racional de seus rgos de represso poltica para in-tercmbio de inteligncia e para efetuar prises, se-qestros, atentados com explosivos ou mesmo executarmilitantes das organizaes polticas que atuavam naresistncia ditadura em seus respectivos pases.Idealizada pelo coronel Manuel Contreras, chefe daDINA, a polcia poltica de Pinochet, a chamada Ope-rao Condor terminaria abrangendo tambm a Bolviaaps a derrubada do governo nacionalista de Juan JosTorres, e at o Equador. Como parte dessa operao, fo-ram assassinados no exlio importantes lderes polticoscomo o senador uruguaio Zelmar Michelini; os minis-tros de Allende, general Carlos Prats e Orlando Letelier;e vrios outros.
  • 13. DIREITO MEMRIA E VERDADE| 22 |A Doutrina de Segurana Nacional, idealizada em gran-de parte por Golbery, foi uma tentativa de fundamentarconceitualmente a suspenso das garantias constitucio-nais, a limitao das liberdades individuais, a introdu-o da censura aos meios de comunicao e a repressototal aos que se opunham por meio de atividades clan-destinas. A defesa do cristianismo ocidental foi usadacomo pretensa inspirao dessa doutrina, o que semprefoi contestado pela Conferncia Nacional dos Bispos doBrasil (CNBB), por expoentes como Dom Cndido Padime padre Joseph Comblin, ambos igualmente vtimas deinvestigaes e processos por parte do regime.A Doutrina de Segurana Nacional se assentava natese de que o inimigo da Ptria no era mais externo,e sim interno. No se tratava mais de preparar o Brasilpara uma guerra tradicional, de um Estado contra ou-tro. O inimigo poderia estar em qualquer parte, dentrodo prprio pas, ser um nacional. Para enfrentar essenovo desafio, era urgente estruturar um novo aparatorepressivo. Diferentes conceituaes de guerra guerrapsicolgica adversa, guerra interna, guerra subversiva foram utilizadas para a submisso dos presos polti-cos a julgamentos pela Justia Militar.Assim, j no final de 1969, estava caracterizada a ins-talao de um aparelho de represso que assumiu ca-ractersticas de verdadeiro poder paralelo ao Estado nopas. Seus agentes podiam utilizar os mtodos mais sr-didos, mas contavam com o manto protetor representa-do pelo AI-5 e pela autoridade absoluta dos mandat-rios militares, incluindo-se a a suspenso do direito dehabeas-corpus, a formalizao de decretos secretos e aedio de uma terceira Lei de Segurana Nacional (DL898), introduzindo priso perptua e at mesmo a penade morte para opositores envolvidos em aes armadasque tivessem causado morte.Remanescentes do Grupo Permanente de MobilizaoIndustrial, responsvel pela articulao do setor em-presarial nos preparativos do Golpe de Estado de 1964,colaboraram financeiramente para a reestruturao doaparato repressivo, inicialmente de forma semiclandes-tina. As Foras Armadas passaram a se adaptar paraenfrentamento da guerra de guerrilhas. A estrutura deinformao montada fortaleceu sua capacidade paraconstrudo um verdadeiro projeto nacional de poder, entre1954 e 1964, tendo como principal lder o marechal Cas-telloBranco, primeiro presidente do ciclo militar.O primeiro Ato Institucional, de 09/04/1964, desenca-deou a primeira avalanche repressiva, materializada nacassao de mandatos, suspenso dos direitos polti-cos, demisso do servio pblico, expurgo de militares,aposentadoria compulsria, interveno em sindicatose priso de milhares de brasileiros.Inspirada no similar National War College norte-ameri-cano, a ESG nasceu em 1949 sob a jurisdio do Estado-Maior das Foras Armadas. Sua orientao era marcadapor forte ideologia anticomunista, que se traduziu namencionada Doutrina de Segurana Nacional, com basena qual se construiu o aparato capaz de controlar todaa vida poltica no pas e formar quadros para ocuparcargos de direo no novo governo.O grupo de oficiais da ESG tambm montou o ServioNacional de Informaes (SNI), um dos pilares da dita-dura, concebido pelo principal terico do regime, o ge-neral Golbery do Couto e Silva. A ESG e o SNI desenvol-veram um papel poltico fundamental na implantao edefesa do governo de exceo.Propaganda utilizada pela ditadura militar
  • 14. COMISSO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS| 23 |travar a guerra surda que se deu por meio dos inter-rogatrios com torturas, das investigaes sigilosas, daescuta telefnica, do armazenamento e processamentode informaes sobre atividades consideradas subver-sivas. Eram enquadradas nesse campo, desde simplesreivindicaes salariais e pregaes religiosas, at asformas de oposio por mtodos militares.Pelo menos entre 1969 e 1976, a estrutura do siste-ma repressivo adquiriu o formato de uma ampla pir-mide, tendo como base as cmaras de interrogatrioe, no vrtice, o Conselho de Segurana Nacional. OSNI tinha sido criado em 13 de junho de 1964 pararecolher e processar todas as informaes de inte-resse da segurana nacional. Seu comandante, comstatus de ministro, mantinha encontros dirios com opresidente da Repblica e tinha uma grande influn-cia sobre as decises polticas do governo. Tanto que,desse rgo, saram dois presidentes do ciclo militar,o general Emlio Garrastazu Mdici e o general JooBaptista Figueiredo.Apesar do grande aparato montado, o servio de intelignciano conseguiu responder com eficincia s expectativas dogoverno num primeiro momento. Para melhorar a eficciarepressiva, surgiu a necessidade de uma integrao completaentre os organismos da represso, ligados aos ministrios doExrcito, da Marinha e da Aeronutica, Polcia Federal e spolcias estaduais. Em So Paulo, foi montada, em 1969, umaoperao piloto que visava a coordenar esses servios, cha-mada Operao Bandeirante (OBAN). No era formalmentevinculada ao II Exrcito, mas estava, de fato, sob a chefia deseu comandante, o general Canavarro Pereira. A OBAN foicomposta de efetivos do Exrcito, da Marinha, da Aeronu-tica, da Polcia Poltica Estadual, do Departamento de PolciaFederal,daPolciaCivil,daForaPblica,daGuardaCivileatde civis paramilitares.A experincia da OBAN como centralizadora das aesrepressivas em So Paulo foi aprovada pelo regimemilitar, que resolveu estender seu formato a todo oPas. Nasceu ento o Destacamento de Operaes deInformaes/Centro de Operaes de Defesa Interna,lembrado ainda hoje pela temvel sigla DOI-CODI, queformalizou no mbito do Exrcito um comando englo-bando as trs Armas.Com dotaes oramentrias prprias e chefiado porum alto oficial do Exrcito, o DOI-CODI assumiu o pri-meiro posto na represso poltica no pas. No entanto,os Departamentos de Ordem Poltica e Social (DOPS) eas delegacias regionais da Polcia Federal, bem comoo Centro de Informaes de Segurana da Aeronuti-ca (CISA) e o Centro de Informaes da Marinha (CE-NIMAR) mantiveram aes repressivas independentes,prendendo, torturando e eliminando opositores.Esse gigantesco aparelho repressivo chegou a atuar tam-bm fora do pas. Em 1972, deixou sua marca na Bolvia,aps o golpe que derrubou Juan Jos Torres; em 1973, noChile e no Uruguai; e em 1976, na Argentina. Essa expan-so tentacular foi relatada por vrios exilados submetidosa interrogatrios por agentes brasileiros quando presosnaqueles pases. Os agentes brasileiros explicavam suapresena no exterior como parte de uma misso para trei-nar em tcnicas de interrogatrio e tortura seus colegasbolivianos, chilenos, argentinos e uruguaios.A resistnciaAo longo dos 21 anos de regime de exceo, em nenhum mo-Ao longo dos 21 anos de regime de exceo, em nenhum mo-Amento a sociedade brasileira deixou de manifestar seu senti-mento de oposio, pelos mais diversos canais e com diferentesnveis de fora. J nas eleies de 1965, adversrios do regimevenceram a disputa para os governos estaduais de Minas Geraise da Guanabara, levando os militares a decretar em outubro oAto Institucional n 2 (AI-2), que eliminou o sistema partidrioexistenteeforouaintroduodobipartidarismo.Entre 1966 e 1979, o Movimento Democrtico Brasilei-ro (MDB) atuou como frente legal de oposies, ampla-mente heterognea. Nesses 13 anos, sua conduta alter-nou fases pragmticas de conformismo e momentos deenfrentamento corajoso. Foi vtima de ciclos vingativos decassao de mandatos e sofreu a edio de pacotes comregras casusticas que buscavam perpetuar a supremaciado partido governista, a Aliana Renovadora Nacional(Arena), comprovando que o regime s aceitava o resulta-do das urnas quando elas lhe eram favorveis.Atingida com dureza j nos primeiros dias do novo go-verno, quando a sede da Unio Nacional dos Estudantes(UNE) foi incendiada na Praia do Flamengo, Rio de Ja-
  • 15. DIREITO MEMRIA E VERDADE| 24 |neiro, o Movimento Estudantil comeou a se manifestarcom energia a partir de 1965, em todo o Pas. A UNEdesafiou abertamente a proibio das entidades estu-dantis autnticas, imposta pelo primeiro ministro daEducao do regime militar, Flvio Suplicy de Lacerda.Essas manifestaes cresceriam at atingir seu auge nasgrandes passeatas de 1968, entrando em refluxo aps adecretao do AI-5, em dezembro daquele ano, para vol-tar a crescer novamente a partir de 1977. Em fevereiro de1969, o governo Costa e Silva chegou a baixar um dis-positivo especfico para reprimir a oposio poltica e aatividade crtica nas universidades, o Decreto n 477, queprevia o desligamento de estudantes, professores e funcio-nrios envolvidos em atividades subversivas.Os sindicatos de trabalhadores, fortemente golpeadospelo regime j nos primeiros dias de abril de 1964, con-seguiram se reerguer gradualmente e realizar importan-tes greves em 1968, em Osasco (SP) e Contagem (MG),retornando a um patamar de fermentao discreta atatingir novo salto em 1978, quando no ABC paulista,voltam as mobilizaes de massa que dariam incio construo de um novo sindicalismo no Brasil.A rea intelectual e artstica representou outro plo deresistncia. A msica, o cinema, o teatro, a literatura,distintos segmentos da vida cultural brasileira torna-ram-se arena de contestao ao regime autoritrio,agindo muitas vezes como ousada trincheira que exigiao resgate da liberdade de criao. O setor enfrentou,como represlia, perodos de vigorosa censura e mesmoa priso de grandes expoentes artsticos, em especialnas semanas que se seguiram decretao do AI-5.No contexto de endurecimento do regime, algumas or-ganizaes partidrias de esquerda optaram pela lutaarmada como estratgia de enfrentamento do poderdos militares. Nasceram diferentes grupos guerrilhei-ros, compostos por estudantes em sua grande maioria,mas incluindo tambm antigos militantes comunistas,militares nacionalistas, sindicalistas, intelectuais e reli-giosos. Essas organizaes poltico-militares adotaramtticas de assalto a bancos, seqestro de diplomatasestrangeiros para resgatar presos polticos, atentados aquartis e outras modalidades de enfrentamento, o que,por sua vez, tambm produziu inmeras vtimas entreagentes dos rgos de segurana e do Estado.Consolidou-se, com o AI-5, uma dinmica de radica-lizao que j tinha nascido no bojo da disputa queenvolveu a escolha do sucessor de Castello Brancono comando do regime. O general Costa e Silva as-sumiu a presidncia, em 1967, como representanteda chamada Linha Dura, vale dizer, setores das trsArmas que rejeitavam qualquer moderao ou tole-rncia quanto s oposies. Na chefia do SNI, Costae Silva colocou Garrastazu Mdici, que seria o pre-sidente seguinte, representando o perodo de maiortruculncia repressiva.Nessa dinmica, o governo tinha alijado at mesmo li-deranas polticas que foram grandes expoentes da mo-bilizao pela deposio de Joo Goulart, como CarlosLacerda e vrios outros. O endurecimento levou ao sur-gimento, em 1966, de uma Frente Ampla que reunifica-va figuras diametralmente opostas no leque partidriobrasileiro, como o prprio Lacerda, Juscelino Kubitschek,
  • 16. COMISSO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS| 25 |Joo Goulart e outros. Em 5 de abril de 1968, a FrenteAmpla seria terminantemente proibida pelo regime.A escalada repressiva sobre os estudantes deu novo saltoa partir de 28 de maro de 1968, quando policiais dispara-ram contra manifestao que protestava pelo fechamentodo restaurante Calabouo, no Rio de Janeiro, matando osecundarista Edson Lus Lima Souto. Ao funeral compare-ceram 50 mil pessoas, ocorrendo dezenas ou centenas deprises. Dias depois, a cavalaria da Polcia Militar invadiua igreja da Candelria, onde se realizava a missa de stimodia, com a presena de milhares de estudantes.Em 21 de junho, a violncia cresceu ainda mais no Riode Janeiro. Foras policiais reprimiram passeata estudantilque reivindicava mais verbas para o ensino, restando umsaldo de quatro mortos, num episdio que foi registradona imprensa como sexta-feira sangrenta. A opinio p-blica reagiu expressando um nvel de indignao contra abrutalidade repressiva, que ainda no tinha precedentesdesde 1964. No dia 26 de junho, artistas, intelectuais, re-ligiosos, trabalhadores, estudantes, centenas de mes e apopulao de um modo geral se uniram na Passeata dosCem Mil. O que, por sua vez, acabou acirrando ainda maisa tenso no seio dos segmentos extremistas do regime.Passeatas estudantis se repetiram em quase todos osestados do Brasil naquele perodo. Em So Paulo, em3 de outubro, estudantes da USP, na rua Maria An-tonia, enfrentaram a polcia e alunos da UniversidadeMackenzie, sede do Comando de Caa aos Comunistas(CCC), resultando na morte de outro secundarista, JosGuimares. Dias depois, ocorreu ocupao policial quedeixou o antigo prdio universitrio praticamente des-trudo. No dia 12 de outubro, a polcia invadiu um stioem Ibina, no interior do estado, onde se realizava, deforma clandestina, o 30 Congresso da UNE, prendendoos participantes (entre 700 e 1.000 pessoas), incluindo-se a a quase totalidade de suas lideranas nacionais.Essa primeira fase do ciclo autoritrio terminaria nofinal daquele ano. O governo pediu licena ao Legisla-Em seu governo, o marechal Arthur da Costa Silva (1967 1969) editou o AI-5, que lhe dava poderes para fechar o Parlamento,cassar polticos e institucionalizar a represso
  • 17. DIREITO MEMRIA E VERDADE| 26 |tivo para processar o deputado federal Mrcio MoreiraAlves, do MDB, que havia discursado da tribuna da C-mara denunciando a violncia policial e militar exercidacontra as passeatas estudantis. Com Mrio Covas naliderana da oposio, o parlamento brasileiro no securvou exigncia e essa negativa foi utilizada peloregime como pretexto final para a decretao do AI-5,em 13 de dezembro.O AI-5 foi considerado um verdadeiro golpe dentro dogolpe. O Congresso Nacional foi fechado, as cassaesde mandatos foram retomadas, a imprensa passou a sercompletamente censurada, foram suspensos os direitosindividuais, inclusive o de habeas-corpus. O Conselhode Segurana Nacional teve seus poderes ampliados ea chamada Linha Dura assumiu o controle completo nointerior do regime. Aes de guerrilha urbana, j ini-ciadas antes do AI-5, se avolumaram nitidamente atsetembro de 1969, quando o espetacular seqestro doembaixador norte-americano no Brasil, Charles BurkeElbrick significou uma desmoralizao do poderio re-pressivo do regime e, ao mesmo tempo uma convoca-o para que ele fosse redobrado.Com o afastamento de Costa e Silva, em agosto de1969, por motivos mdicos, uma Junta Militar ocupoude forma provisria o poder, impedindo a posse do vice-presidente civil, Pedro Aleixo. De imediato, a junta edi-tou, em setembro de 1969, uma nova Lei de SeguranaNacional, com elevao drstica do contedo repressivoe introduzindo a pena de morte. Na disputa sucessriaento deflagrada, o general Mdici foi o vencedor emuma votao direta entre generais do Alto-Comando.Mdici pertencia ao grupo palaciano que havia aposta-do no fechamento poltico do Estado e sua posse abriua fase de represso mais extremada em todo o ciclo de21 anos do regime militar.A Constituio de 1967, que Castello Branco havia intro-duzido em substituio Carta de 1946, e que tentavalegalizar um sistema carente de legitimidade constitu-cional, trocada, por decreto, pela Constituio de 1969.Este ltimo arremedo de Constituio, completamente in-constitucional luz de qualquer abordagem apoiada nosprincpios universais do Direito, nada mais fazia do quedesdobrar as imposies contidas no draconiano AI-5. Eeste tinha abolido os direitos individuais, que representamReunio da Campanha pela Anistia, em 1978, na Cmara de Vereadores de So Paulo
  • 18. COMISSO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS| 27 |o eixo central de todos os preceitos do constitucionalismo,bem como da prpria democracia.A partir de ento, num clima de verdadeiro terror deEstado, o regime lanou ofensiva fulminante sobre osgrupos armados de oposio, que tinham imposto umaderrota desmoralizante aos militares que cederam noseqestro do embaixador norte-americano, trocando-o pela libertao de 15 prisioneiros polticos. Da emdiante concentrou seu fogo, em primeiro lugar, contraas organizaes que agiam nas grandes capitais: ALN,MR-8, PCBR, Ala Vermelha, VPR, VAR-Palmares e mui-tas outras. Entre 1972 e 1974, combateu e exterminouuma base guerrilheira que o PCdoB mantinha em trei-namento na regio do Araguaia desde 1966. Entre 1975e 1976 aniquilou 11 integrantes do Comit Central doPCB e, em 16/12/1976, cercou uma casa onde se reuniaa direo do PCdoB, matando trs dirigentes e prenden-do quase toda a direo daquele partido.Num computo final, a violncia repressiva no poupouas organizaes clandestinas que no tinham aderido luta armada, e nem mesmo religiosos que se opunse-ram ao regime sem filiao a qualquer organizao. Ospresdios ficaram superlotados e as listas denunciandomortes sob torturas pularam de algumas dezenas deopositores, em 1962, para vrias centenas, em 1979,ano da Anistia.A temtica dos Direitos Humanos, que antes da ditaduraera um elemento quase ausente na agenda poltica nacio-nal, passa a representar um ponto de vulnerabilidade doregime. Acumulam-se e se tornam cada vez mais confi-veis as denncias sobre torturas relatadas pelos presos quesobreviveram. Cresce o desgaste da imagem do Brasil noexterior e, principalmente, a presso que a hierarquia daIgreja Catlica exerce em torno do assunto.No final de 1973, ltimo ano de Mdici, j estava evi-dente o esgotamento do chamado Milagre Brasileiro,ciclo de cinco anos com forte crescimento do PIB, e osgrupos militares de origem castellista conseguiram re-cuperam fora, impondo Ernesto Geisel como prximopresidente. No momento de sua posse, em maro de1974, os rgos de represso j tinham logrado xitono combate aos grupos de guerrilha urbana e desen-volviam a ltima campanha militar de aniquilamentocontra os militantes do PCdoB no Araguaia.Quando, o PCB se tornou o alvo principal do aparelhorepressivo, em 1974 e 1975, os rgos de segurana eli-minaram fisicamente a quase totalidade de seu ComitCentral, sem fazer qualquer anncio pblico. O regimemanteve completo silncio sobre as notas de desapa-recimento que a imprensa, voltando a experimentarpequenas brechas na censura, comeou a publicar comcautela.A distensoErnesto Geisel assumiu a Presidncia da Repblica emmaro de 1974, anunciando um projeto de distenso lenta,gradual e segura. Cinco anos depois, ao transmitir o postoao general Joo Baptista Figueiredo, entregaria ao sucessorum regime ainda no democrtico, mas onde a repressopoltica era menos acentuada. Estaria abolido o AI-5, a li-berdade de imprensa vinha sendo devolvida aos poucos, aspropostas de anistia eram debatidas abertamente e Gol-bery do Couto e Silva, que voltou ento primeira cena navida poltica nacional, preparava uma proposta de reformapartidria extinguindo o bipartidarismo forado.No entanto, certo que nos trs primeiros anos de Geisel,os interrogatrios mediante tortura e a eliminao fsicados opositores polticos continuaram sendo rotina. O de-saparecimento de presos polticos, que antes era apenasuma parcela das mortes ocorridas, torna-se regra predo-minante para que no ficasse estampada a contradioentre discurso de abertura e a repetio sistemtica dasvelhas notas oficiais simulando atropelamentos, tentati-vas de fuga e falsos suicdios.Em 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzogfoi assassinado sob torturas no DOI-CODI de So Paulo,valendo o episdio como gota dgua para que aflorasseum forte repdio da opinio pblica, na imprensa e na so-ciedade civil como um todo, contra a repetio de encena-es aviltantes (suicdio) para tentar encobrir a verdadeirarotina dos pores do regime.Trs meses depois, no mesmo DOI-CODI de So Paulo, assassinado sob torturas o operrio metalrgico Manuel
  • 19. DIREITO MEMRIA E VERDADE| 28 |Fiel Filho, sendo expedida, mais uma vez, nota oficial coma inacreditvel verso de suicdio. Mas, pela primeira vezna histria do regime militar, o presidente decide agir con-tra os pores e demite do Comando do II Exrcito o generalEdnardo Dvila Mello. Abre-se, ento, um confronto claroentre Geisel e militares mais direita, que s terminariacom a queda de Sylvio Frota do comando do Exrcito, emoutubro do ano seguinte.Antes disso, em abril de 1977, o regime militar volta a de-cretar o fechamento do Congresso Nacional para editar oPacote de Abril, conjunto de medidas casusticas que sedestinavam, prioritariamente, a conter o fortalecimentodo MDB, que tinha colhido um surpreendente crescimentonas urnas em 1974. Repete-se, assim, o expediente anti-democrtico utilizado no ano anterior, quando foi edita-da a Lei Falco, destinada a prejudicar os candidatos daoposio nas eleies municipais daquele ano. O Pacotede Abril introduziu a esdrxula figura do senador binico,como recurso autoritrio para impedir o crescimento doMDB nas eleies do ano seguinte.Apesar de todos os expedientes arbitrrios, o governo mi-litar sofreu outro revs nas urnas de 1978, com novo saltono fortalecimento do MDB, partido que nessa altura desua trajetria contava com uma importante ala de au-tnticos, designao assumida por deputados e senado-res que denunciavam as violaes de Direitos Humanos eeram intransigentes no embate parlamentar contra a Are-na, sendo muitos deles ligados s lutas sindicais e popula-res que vinham crescendo no cenrio de abertura.Em julho de 1977, a cassao de mandato voltou a atingir afigura do lder do MDB na Cmara dos Deputados. A violn-cia do regime militar contra o deputado paranaense Alen-car Furtado era resposta ao pronunciamento feito por ele noprograma partidrio do MDB, em cadeia nacional, quandoabordou o tema dos desaparecidos de maneira contundente:Hoje, menos que ontem, ainda se denunciam prises arbi-trrias, punies injustas e desaparecimento de cidados. Oprograma do MDB defende a inviolabilidade dos direitos dapessoa humana para que no haja lares em prantos; filhosrfos de pais vivos quem sabe? Mortos talvez. Os r-fos do talvez e do quem sabe. Para que no haja esposasque envivem com maridos vivos, talvez, ou mortos, quemsabe? Vivas do quem sabe e do talvez.Anistia e m do regime militarNo mbito poltico, 1979 o ano da Anistia, que foiaprovada em 28 de agosto, envolvendo questes po-lmicas a ser abordadas logo adiante neste livro-rela-trio. Mesmo incorporando o conceito de crimes co-nexos para beneficiar, em tese, os agentes do Estadoenvolvidos na prtica de torturas e assassinatos, a Leide Anistia possibilitou o retorno de lideranas polticasque estavam exiladas, o que trouxe novo impulso aoprocesso de redemocratizao. Nesse mesmo ano, foiaprovada a reformulao poltica que deu origem aosistema partidrio em vigncia at os dias de hoje.Desde 1978, no entanto, vinham se repetindo atentadosa bomba, invases ou depredaes de entidades de ca-rter oposicionista, jornais e mesmo bancas de revista,cuja autoria sempre foi interpretada como s podendocaber aos integrantes do aparelho de represso. Naqueleano, registraram-se 24 atentados desse tipo somente emMinas Gerais. Praticamente coincidindo com o primeiroaniversrio da Lei de Anistia, em 27 de agosto de 1980uma bomba explodiu na sede da OAB do Rio de Janeiro,causando a morte da secretria Lyda Monteiro da Silva.Na medida em que, at hoje, nunca o Brasil foi informa-do oficialmente sobre a verdadeira radiografia do apa-rato de represso, incluindo dados sobre sua histria,estruturao interna, oramento e, sobretudo, sobre asdatas e cronograma de seu desmantelamento ou rees-truturao, ainda prevalecem incertezas e interpreta-es discordantes a respeito de quem foram os respon-sveis por mais esse assassinato.Em 30 de abril de 1981, parece ter se confirmado deforma inequvoca a existncia de algum tipo de braoclandestino da represso ainda operando plenamente.Ao que tudo indica, dois membros do DOI-CODI do Riode Janeiro sofreram um acidente, quando preparavamatentado terrorista no Riocentro, durante um showde msica popular em comemorao ao 1 de Maio.A bomba explodiu no carro em que estava um capito eum sargento, ambos do Exrcito, morrendo este e ficandogravemente ferido o oficial. O inqurito instaurado peloregime foi encerrado com concluses absolutamente inve-rossmeis. Joo Baptista Figueiredo no tinha fora ou no
  • 20. quis repetir, no caso, a atitude firme adotada por Geisel,cinco anos antes, no episdio Manuel Fiel Filho.Nas eleies de 1982, que marcaram a estria das no-vas siglas partidrias PMDB, PDS, PTB, PDT e PT ,as oposies conquistam o governo estadual em vriasunidades da Federao, destacando-se So Paulo, Riode Janeiro e Minas Gerais.A sociedade brasileira queria mais. Entre novembro de1983 e o abril de 1984, uma grande presso popularexigiu eleies diretas, mobilizando milhes de pesso-as em passeatas e comcios. Essa campanha, conheci-da como Diretas J, no logrou vitria na votao daEmenda Dante de Oliveira, em 25 de abril de 1984, masapressou o fim do regime militar.No Colgio Eleitoral reunido em janeiro de 1985, o go-vernador de Minas Gerais, Tancredo Neves, foi eleitopresidente, mas uma grave enfermidade impediu suaposse em 15 de maro, vindo a falecer em 21 de abril.Foi empossado o vice, Jos Sarney, senador do Mara-nho que havia pertencido Arena, mas j em maio ospartidos comunistas foram legalizados, os analfabetosforam admitidos na cidadania plena com o direito aovoto, algumas restries da Anistia de 1979 foram re-visadas e abriu-se amplo debate sobre o caminho maisadequado para que o Brasil pudesse finalmente escre-ver uma verdadeira Constituio democrtica.Promulgada em 5 de outubro de 1988, a Carta queUlisses Guimares batizou como Constituio Cidaddefiniu o pas como uma democracia representativa eparticipativa, fixando, no artigo 1, que o Estado Demo-crtico de Direito tem como um de seus fundamentos adignidade da pessoa humana. O Brasil voltou s urnasem 1989 para eleger livremente o presidente da Rep-blica, pela primeira vez em quase 30 anos.Durante toda a dcada de 90, as instituies polticas jfuncionaram em absoluta normalidade, verificando-seconvivncia regular entre os trs poderes da Repblica.O Pas mostrou-se capaz de superar gravssimas crisespolticas, como a que levou ao impeachment do presi-dente Collor, em 1992. Segue em perfeita rotina a dis-puta e alternncia de partidos polticos nos municpios,nos estados e no nvel federal.Ao ingressar no sculo 21, o Brasil se revela portador de todosos ingredientes de uma verdadeira democracia poltica. Re-ne, portanto, condies plenas para superar os desafios aindarestantes efetivao de um robusto sistema de proteoaos Direitos Humanos. No pode temer o conhecimento maisprofundo a respeito do prprio passado.COMISSO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS
  • 21. Captulo 3A histria da Comisso EspecialAbusca da verdade pelos familiares das pes-soas que morreram na luta contra o regimemilitar uma histria longa e repleta deobstculos. De incio, as famlias e seus ad-vogados tinham em mos apenas uma ver-so falsa ou simplesmente um vazio de informaes. Hmais de 35 anos, seguem batendo em todas as portas,insistindo na localizao e identificao dos corpos. Tive-ram sucesso em poucos casos. Mas alcanaram xito numprimeiro objetivo importante: o Estado brasileiro reconhe-ceu sua responsabilidade pelas mortes denunciadas.A legtima presso exercida por militantes dos DireitosHumanos, ex-presos polticos, exilados, cassados e fa-miliares de mortos e desaparecidos a favor da Anistia edo direito verdade adquiriu vigor em meados da d-cada de 1970, at resultar na conquista da Lei n 6.683,de 28 de agosto de 1979, conhecida como Lei da Anis-tia. Tiveram papel marcante nessa jornada o MovimentoFeminino pela Anistia e o Comit Brasileiro pela Anistia,com vrias unidades estaduais, impulsionados por lideran-as como Therezinha Zerbini, Mila Cauduro, Luiz EduardoGreenhalgh, Eny Raymundo Moreira, Madre Cristina SodrDria, Iramaya Benjamin, Helena Greco, Lcia Peres, Teot-nio Vilela, Paulo Fonteles e muitos outros.O saldo da represso poltica exercida pelo regime atin-gia cifras muito elevadas. Calcula-se que cerca de 50mil pessoas teriam sido detidas somente nos primeirosmeses da ditadura, ao passo que em torno de 10 milcidados teriam vivido no exlio em algum momento dolongo ciclo. Ao pesquisar os dados constantes de 707processos polticos formados pela Justia Militar entre1964 e 1979, o projeto Brasil Nunca Mais contou 7.367Brasil Nunca Mais contou 7.367Brasil Nunca Maisacusados judicialmente e 10.034 atingidos na fase deinqurito. Houve quatro condenaes pena de morte,no consumadas; 130 pessoas foram banidas do Pas;4.862 tiveram cassados os seus mandatos e direitos po-lticos; 6.592 militares foram punidos e pelo menos 245estudantes foram expulsos da universidade.Apesar de limitada e de excluir arbitrariamente de seusbenefcios uma grande parcela dos presos polticosexistentes na poca, a Lei de Anistia teve papel positivona criao do clima de abertura que se consolidaria noPas no transcurso da dcada de 1980. As eleies de1982 levaram ao governo dos principais estados bra-sileiros lideranas da oposio como Tancredo Neves,Franco Montoro e Leonel Brizola. Nos anos seguintes, omovimento Diretas J, a posse de um presidente civile a promulgao da Constituio de 1988 completarama reconstruo do Estado Democrtico de Direito.Nesse novo ambiente, o fortalecimento da luta dos fa-miliares das vtimas do regime militar abriria caminhopara a conquista mais tarde da Lei n 9.140. Ela fir-mou a responsabilidade do Estado pelas mortes, garan-tiu reparao indenizatria e, principalmente, oficializouo reconhecimento histrico de que esses brasileiros nopodiam ser considerados terroristas ou agentes de potn-cias estrangeiras, como sempre martelaram os rgos desegurana. Na verdade, morreram lutando como oposito-res polticos de um regime que havia nascido violando aconstitucionalidade democrtica erguida em 1946.Promulgada no governo do general Figueiredo, a Lei daAnistia considerada polmica, ainda hoje, por muitos ju-ristas, sobretudo quanto interpretao de que ela absolveautomaticamente todas as violaes de Direitos Humanosque tenham sido perpetradas por agentes da represso po-ltica, caracterizando-se assim o que seria uma verdadeiraauto-anistia concedida pelo regime a si mesmo.| 30 |
  • 22. | 31 |De qualquer forma, cabe destacar que, ao fixar a datainicial de abrangncia da Anistia em 2 de setembro de1961, os legisladores entenderam que, j na crise pol-tica da renncia do presidente Jnio Quadros, a norma-lidade democrtica havia sido rompida por uma inter-veno militar inconstitucional.Nos meses que antecederam a aprovao da lei, oComit Brasileiro pela Anistia encaminhou ao sena-dor alagoano Teotnio Vilela, presidente da ComissoMista formada para examinar a matria no CongressoNacional, um amplo dossi com a histria dos mortose desaparecidos. Mais tarde, esse documento foi sis-tematizado e ampliado pela Comisso de Familiares epela Comisso de Cidadania e Direitos Humanos da As-semblia Legislativa do Rio Grande do Sul, servindo debase para inmeros trabalhos posteriores.A orientao imposta por Figueiredo tramitao doprojeto de anistia era contrria defendida pelos paren-tes dos perseguidos polticos e pelos Comits de Anistia.Uma das poucas sobreviventes da chamada Guerrilhado Araguaia, Crimia Alice Schmidt de Almeida, apontaas inconsistncias daquele projeto: a isonomia previs-ta na Constituio era desrespeitada de modo flagrantequando pessoas j condenadas por crimes de opinio eramcontempladas, ao passo que se excluam aquelas comprocesso ainda em andamento. Alm de no anistiar osparticipantes nas organizaes e operaes de resistnciaarmada, a proposta deixava brechas para auto-absolviodos agentes do Estado envolvidos em crimes de tortura,seqestro, assassinato e ocultao de cadveres.O artigo 1 da lei, explica Crimia, fala em crimes po-lticos ou conexos com estes, frase que deu margem interpretao de que abrange todas aquelas modalida-des de ao repressiva. No entanto, o nome de cadaanistiado era publicado formalmente no Dirio Oficial daUnio, ao passo que nenhum agente da represso polticateve seu nome includo nesses anncios. Dezenas de pre-sos polticos permaneceram encarcerados aps a Anistia,sendo soltos apenas por fora de mudanas introduzidas,meses antes, na Lei de Segurana Nacional.Segundo Belisrio dos Santos Junior, advogado e mem-bro da Comisso Especial sobre Mortos e DesaparecidosPolticos desde 2001, para tentar esvaziar a campanhapela Anistia, o Governo Geisel obteve, como um de seusltimos atos, a aprovao de uma nova Lei de Seguran-a Nacional, a de nmero 6.620, em dezembro de 1978,mantendo como base a Doutrina de Segurana Nacio-nal, mas introduzindo a diminuio de todas as penas,em funo de que inmeros presos polticos foram sol-tos, pela adequao de suas condenaes nova lei.Mais de dez anos depois, persistindo na batalha perma-nente para obter informaes e denunciar os crimes co-metidos pelo Estado sob o regime militar, os brasileirosque buscavam o paradeiro de seus filhos, pais, irmose amigos desde os anos 70 reavivaram a esperana em4 de setembro de 1990, com a descoberta de uma valacomum no cemitrio Dom Bosco, em Perus, periferia dacidade de So Paulo. Escavaes revelaram 1.049 ossa-das onde, provavelmente, se misturavam restos mortaisde opositores polticos, indigentes e vtimas dos esqua-dres da morte. No por acaso, no mesmo cemitriohaviam sido encontrados, em 1979, os restos mortais deLuiz Eurico Tejera Lisba, o primeiro desaparecido pol-tico a ser localizado, depois de a viva, Suzana KenigerLisba, perseguir pistas durante sete anos.Suzana e outros familiares retomaram, em 1990, a inves-tigao das suspeitas envolvendo aquele cemitrio comolocal onde os agentes da represso poltica ocultavam ca-dveres. O jornalista Caco Barcellos produziu matria parao programa Globo Reprter, mas a emissora preferiu noexibir a reportagem naquele momento. O caso s foi adian-te, de fato, pela determinao da prefeita Luiza Erundina(1989-1992), que aps a abertura da vala de Perus assu-miu as investigaes e apoiou a criao de uma ComissoParlamentar de Inqurito (CPI) na Cmara Municipal deSo Paulo, para examinar a questo, contribuindo paraampliar a discusso na sociedade.Em 1992, presses exercidas sobre o presidente da Re-pblica, Fernando Collor de Mello (1990-1992), levaram-no a determinar a devoluo dos arquivos do DEOPSde So Paulo, que tinham sido transferidos para a Po-lcia Federal como precauo do governo militar quandoo PMDB venceu as eleies estaduais. Em seguida, elesforam abertos para consultas dos familiares, advogados ejornalistas, repetindo-se a transparncia j demonstrada
  • 23. DIREITO MEMRIA E VERDADE| 32 |antes pelo governo estadual, que havia franqueado docu-mentos e fotos do Instituto Mdico Legal, em 1990.Com as novas fontes de pesquisa, o dossi organizado pe-los familiares foi ampliado com muitos dados relevantes.Papis localizados no arquivo paulista permitiram, porexemplo, descobrir o local de sepultamento do desapareci-do Ruy Carlos Vieira Berbert, enterrado com nome falso emNatividade de Gois. Nesse perodo, tambm foram aber-tos os arquivos do DOPS de Pernambuco, em seguida os doParan e depois os do Rio de Janeiro, tendo os governosde Pernambuco e So Paulo imprimido para publicaoo Dossi dos Mortos e Desaparecidos a partir de 1964Dossi dos Mortos e Desaparecidos a partir de 1964Dossi dos Mortos e Desaparecidos . Ospapis do DOPS de Minas Gerais, declarados incineradospela Secretaria de Segurana Pblica do estado, seriamtambm abertos ao pblico em dezembro de 2004.Pesquisas realizadas em todos esses arquivos constata-ram evidncias de que teriam sido trabalhados antesda abertura, uma vez que pginas foram eliminadas eseqncias inteiras foram puladas, muitas vezes coinci-dindo exatamente com datas de ocorrncias relatadasno dossi original dos familiares. Mesmo assim, foramde grande utilidade para complementao das infor-maes preexistentes e obteno de novas. Os arquivosdas Foras Armadas permaneceram cobertos por sigilo,embora o ministro da Justia Maurcio Correa tenhaobtido, em 1993, algumas informaes importantes emrelatrios que solicitou ao Exrcito, Marinha e Ae-ronutica durante o governo Itamar Franco.Depois de quase sufocado, com a controvertida Anis-tia de 1979, o tema do direito memria e verdadevoltou a adquirir visibilidade crescente nos anos 90. NoCongresso Nacional, em 1991, o deputado Nilmrio Mi-randa, ex-preso poltico, teve xito na proposta de criaruma Comisso de Representao Externa da Cmara,para acompanhar as buscas do cemitrio de Perus eapoiar as famlias dos mortos e desaparecidos. Apesarde no ter o poder de uma CPI, a Comisso Externafuncionou durante trs anos, valendo como espao dedebate em torno da questo e contribuindo para que oassunto ganhasse ainda mais divulgao.Os parlamentares engajados na luta pelo reconheci-mento dos mortos e desaparecidos do regime militaradmitem que, sem o trabalho, sem a persistncia e sema lealdade das famlias nada disso teria acontecido. Ha-via entre os parlamentares muitos ex-presos polticos,adversrios da ditadura, militantes de oposio ao regi-me militar nas mais distintas trincheiras, que apoiavamessas aes. Em 1995, foi tambm de Nilmrio Mirandao projeto instituindo a Comisso Permanente de Direi-tos Humanos da Cmara Federal, que assumiria comoprimeira bandeira o reconhecimento pelo Estado Brasi-leiro de sua responsabilidade quanto s torturas e as-sassinatos de opositores ao regime de 1964.Nas eleies presidenciais de 1994, os dois principaiscandidatos, Fernando Henrique Cardoso e Luiz IncioLula da Silva, firmaram compromisso com as famlias.Se eleitos, reconheceriam os desaparecidos polticos ese esforariam para encontrar os restos mortais das v-timas. Afinal, era preciso assegurar a todos o sagradodireito ao funeral, bem como o amplo conhecimentopblico das verdadeiras circunstncias em que as mor-tes ocorreram.A posse do ex-exilado Fernando Henrique Cardoso(1995-2002) como presidente da Repblica animou osfamiliares. O novo presidente determinou ao Ministrioda Justia que a questo dos Direitos Humanos fossetratada como poltica especfica a partir de ento. Con-tribuiu para esses avanos a divulgao pela imprensade matrias como o artigo de Marcelo Rubens Paiva,filho do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido pol-tico, que publicou na revista Veja o textoVeja o textoVeja Ns no es-quecemos, bem como a interveno do secretrio-ge-ral da Anistia Internacional, Pierre Sane, na imprensagacha, declarando: O presidente talvez no entendaque o crime de desaparecimento imprescritvel, umcrime contra a humanidade.Em 1995, cumprindo orientao expressa do presidenteda Repblica, o ministro da Justia, Nelson Jobim, rece-beu pela primeira vez os representantes da Comisso deFamiliares de Presos Polticos, Mortos e Desaparecidose do grupo Tortura Nunca Mais. Na audincia, foramapresentadas as posies defendidas h cerca de 20anos por esses militantes, assim resumidas nos 10 pon-tos da Carta-Compromisso divulgada durante a campa-nha eleitoral de 1994:
  • 24. COMISSO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS| 33 |1. Reconhecimento pblico formal pelo Estadobrasileiro de sua responsabilidade plena na pri-so, na tortura, na morte e no desaparecimentode opositores polticos entre 1964 e 1985.2.ImediataformaodeumaComissoEspecialdeIn-vestigao e Reparao, no mbito do Poder ExecutivoFederal, integrada por Ministrio Pblico, Poder Legis-lativo, Ordem dos Advogados do Brasil, representantesde familiares e dos grupos Tortura Nunca Mais, compoderes amplos para investigar, convocar testemu-nhas, requisitar arquivos e documentos, exumar ca-dveres, com a finalidade de esclarecer cada um doscasos de mortos e desaparecidos polticos ocorridos,determinando-se as devidas reparaes.3. Compromisso de no indicar para cargos deconfiana pessoas implicadas nos crimes da dita-dura militar e de afast-las do servio pblico.4. Compromisso de abrir irrestritamente os arqui-vos da represso poltica sob sua jurisdio.5. Compromisso de anistiar plenamente cidadosvtimas da ditadura e reparar os danos causadosa eles e seus familiares.6. Edio de lei incriminadora assegurando ocumprimento do artigo 5, pargrafo III da Cons-tituio Federal, que probe a tortura e o trata-mento desumano e degradante.7. Desmilitarizao das Polcias Militares estadu-ais e sua desvinculao do Exrcito.8. Aprovao do projeto de Hlio Bicudo, que re-tirava da Justia Militar a competncia para jul-gar crimes praticados contra civis.9. Desmantelamento de todos os rgos de re-presso poltica.10. Revogao da chamada Doutrina de Seguran-a Nacional.Como nasceu a Lei n 9.140No encontro com o ministro Nelson Jobim, comea-ram a ser fixadas as bases da lei que seria aprovadaem dezembro daquele ano. Os membros da Comissode Familiares tambm entregaram ao ministro o Dossidos Mortos e Desaparecidos, nessa altura um volumo-so documento contendo abundantes informaes sobreMilitantes em passeata pela Anistia
  • 25. DIREITO MEMRIA E VERDADE| 34 |as circunstncias das mortes e dos desaparecimentos,incluindo-se agora vtimas brasileiras das ditaduras mi-litares do Chile e da Argentina.O chefe de gabinete do Ministrio da Justia, JosGregori, foi encarregado de preparar o projeto de lei,merecendo registro seu empenho e habilidade no cum-primento da difcil tarefa. Na busca de entendimentocomum entre familiares e representantes do governofederal, tambm cabe ressaltar a contribuio do advo-gado Belisrio dos Santos Junior, secretrio da Justiae da Defesa da Cidadania do Estado de So Paulo entre1995 e 2002, que intermediou esse dilogo. Ele lem-bra que ocorreram reunies difceis, refletindo a tensosempre existente entre sociedade civil e Estado na ro-tina da vida democrtica, mas ressalta que foi possvelestabelecer bom nvel de consenso.Os familiares conseguiram garantir, no escopo da lei,a possibilidade de ser includos, posteriormente, outrosmortos e desaparecidos que ainda no constavam doDossi. Foram atendidos tambm na reivindicao deque a proposta no assumisse a forma de Medida Provi-sria, para garantir amplo debate no Congresso Nacio-nal antes de sua aprovao. Seu objetivo, explicaram,era dar sociedade e aos parlamentares a oportunidadede conhecer melhor os fatos ocorridos no Pas duranteo perodo ditatorial.Jos Gregori, mais tarde secretrio nacional dos Direi-tos Humanos (1997-2000) e tambm ministro da Justi-a (2000-2001), assumiu o compromisso de realizar to-dos os esforos para estender a abrangncia da lei, paracriar a Comisso Especial incumbida de analisar novoscasos e para adotar como lista oficial o rol de desapa-recidos contido no Dossi compilado pela Comisso deFamiliares. Assegurou, tambm, que haveria um repre-sentante das famlias na composio da comisso.No processo de construo da nova lei, a Comissode Direitos Humanos da Cmara dos Deputados, queacompanhava de perto toda a discusso, percorreuvrios estados realizando audincias pblicas paraouvir familiares, colher detalhes dos casos j regis-trados, indagar sobre outros nomes e reunir sugestesa ser incorporadas na formulao da proposta gover-namental, ou para emendas em plenrio. O contedodo projeto foi divulgado no dia 28 de agosto de 1995,quando se completavam j 16 anos da conquista daanistia e quase sete anos aps a vigncia da Consti-tuio de 1988, que, ao ser promulgada, finalmenteassegurou uma anistia ampla, geral e irrestrita, cor-rigindo as limitaes de 1979.Jos Gregori partiu da Lei de Anistia para estabelecer osparmetros da proposta de reconhecimento da respon-sabilidade pelas mortes e desaparecimentos. O Estado permanente, independente dos governos. Prender ci-dados e, em vez de submet-los a julgamento, execu-t-los, agir contra a lei. O Estado no protegeu quemestava sob sua custdia, lembra ele, ao fundamentar anecessidade de o governo federal assumir todo o nusda necessria reparao.Na elaborao do projeto de lei foram estabelecidos trspontos bsicos: o Estado admitiria sua responsabilida-de pelas mortes; reconheceria oficialmente os mortos edesaparecidos; pagaria as indenizaes devidas, desdeque a famlia assim o desejasse. Foi organizada umalista individualizando as pessoas e as incorporando leisob a forma de anexo. Alm do Dossi apresentado pe-Dossi apresentado pe-Dossilos familiares das vtimas, valeram tambm como fontede informaes o reverendo Jaime Wright e Dom PauloEvaristo Arns, responsveis pelo projeto Brasil NuncaMais, e anotaes pessoais do prprio Jos Gregori, fei-tas na poca em que integrou a Comisso Justia e Pazda Arquidiocese de So Paulo.Nunca foi apresentada qualquer contestao lista demortos e desaparecidos que comps o anexo da Lei n9.140. Contudo, como o rol no era completo, houvenecessidade de deix-la em aberto, atribuindo co-misso especial instituda nessa lei a competncia paraexaminar e reconhecer novos casos.O contedo da LeiO Projeto de Lei 869, que resultaria na Lei n 9.140 e nacriao da Comisso Especial sobre Mortos e Desapa-recidos Polticos, foi considerado tmido por boa partedos familiares. Em seu Anexo I, constava uma relaode 136 nomes de pessoas desaparecidas durante o re-
  • 26. COMISSO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS| 35 |gime militar, que seriam reconhecidas como mortas porresponsabilidade do Estado brasileiro.O dossi das famlias listava 152 nomes, mas nesse pri-meiro momento foram excludos os que desapareceramno exterior (Argentina, Chile e Bolvia) e trs referidos ape-nas por apelidos. A Comisso Especial prevista na lei norecebeu instrumentos ou plenos poderes para apuraodas circunstncias dos bitos, embora adquirisse autori-dade para realizar diligncias em busca dos corpos, desdeque fossem apresentados indcios pelos parentes.A lei previa, ainda, indenizao aos familiares, exigin-do, porm, que cada parente beneficiado apresentas-se requerimento e atestado de bito, o que se revelouextremamente dificultoso. A maioria dos cartrios senegava a conceder o atestado e o Ministrio da Justiatinha de interferir diretamente para que fosse expedidoum documento que narrava apenas, nos termos da lei, amorte presumida da pessoa em questo.Para Nilmrio Miranda, ministro da Secretaria Especialdos Direitos Humanos entre 2003 e 2005, a lei propostapelo Governo Fernando Henrique Cardoso era apenasuma legislao de carter indenizatrio, que precisavaser aprimorada. Declarava formalmente a responsabili-dade objetiva do Estado, mas ningum, individualmen-te, seria investigado.Prevaleceu como interpretao oficial acerca da Lei deAnistia, naquele momento, a idia de que eram inimpu-tveis os crimes cometidos pelos agentes da repressopoltica. A Lei n 9.140 foi considerada restritiva pe-los familiares, argumenta ele, e poderia ter sido maisabrangente, possibilitando exame profundo das cir-cunstncias em que ocorreram as violaes dos DireitosHumanos causadoras daquelas mortes, a identificaodos responsveis e divulgao das informaes paratoda a sociedade.Na viso dos autores da lei, no entanto, houve um ga-nho extraordinrio para a democracia no Pas, mesmocom as divergncias mencionadas. Integrantes do Go-verno Fernando Henrique Cardoso consideram que hou-ve competncia em encontrar uma sada aceitvel, semmaiores obstculos para a aprovao e a aplicao danova lei. Um desses obstculos seria incluir na lei, jnum primeiro momento, a abertura dos arquivos do re-gime militar. Havia feridas profundas, de ambos os la-dos. Precisvamos encontrar uma sada favorvel paratodos, avalia Jos Gregori.Com relao aos mortos, a lei previu a possibilidade deincluso, aps exame da Comisso Especial, de pessoasque morreram de causas no naturais em dependnciaspoliciais ou assemelhadas. Para Suzana Lisba primei-ra representante dos familiares na Comisso -, esta foia principal conquista do movimento. Outra conquistaimportante, segundo ela, foi que as indenizaes deve-riam seguir critrios de eqidade. Como ponto negativo,ela argumenta que o nus da prova de que a pessoatinha sido vtima do Estado caberia aos familiares. Fica-va para eles a tarefa de convencer a Comisso Especial deque as verses de suicdios e tiroteios encobriram assas-sinatos por tortura. Cada morte tinha uma verso oficialfalsa, alegava-se sempre que a vtima tinha sido mortaem fuga ou tiroteio, ou, ainda, cometido suicdio. Contudo,as investigaes demonstraram que a maioria absoluta foipresa, torturada e executada. Aos familiares e advogadoscaberia provar isso, mesmo com alguns setores do Estadodificultando o acesso informao.Para Belisrio dos Santos Junior, no entanto, essa im-presso resultava de uma leitura muito literal da lei. AComisso, explica ele, desde o incio, trabalhou com oentendimento de ser seu dever a descoberta da verda-de real. A verdade formal, aquela que resulta da provados autos era apenas o incio das buscas, em muitos ca-sos. No obstante a escassa prova ou a falta de provado requerimento inicial, a Comisso sempre diligenciou,at os limites de suas possibilidades, para obteno deprovas que autorizassem o reconhecimento da morte oudesaparecimento. Houve vrios casos em que o resulta-do final deveu-se mais ao esforo, s pesquisas, s dili-gncias empreendidas pela Comisso que ao material aela apresentado pela famlia requerente.Cabe lembrar que no houve um esquema amplo de di-vulgao governamental para informar e mobilizar asfamlias dos mortos e desaparecidos polticos. Para con-seguir mobilizar o maior nmero de pessoas, os GruposTortura Nunca Mais, a Comisso de Direitos Humanos
  • 27. DIREITO MEMRIA E VERDADE| 36 |da Cmara dos Deputados e a Comisso de Familiares pas-saram a fazer um trabalho de orientao e apoio s fam-lias para que entrassem com os requerimentos, procuras-sem ex-presos polticos e ex-companheiros que pudessemprestar depoimentos, localizar testemunhas e realizar pes-quisas nos arquivos j abertos para consultas.Deputado federal pelo Mato Grosso, o ex-preso polticoGilney Amorim Viana, casado com Iara Xavier Pereira,viva de Arnaldo Cardoso Rocha e irm de Alex XavierPereira e Iuri Xavier Pereira, os trs mortos pelos rgosde represso, transformou seu gabinete e seu aparta-mento funcional numa espcie de comisso paralelade apoio, hospedando familiares, fornecendo suportelogstico e monitorando informaes sobre as buscaspor restos mortais. Iara mergulhou no contato com osfamiliares e na organizao dos processos, junto comCrimia, Suzana e outros colaboradores voluntrios.Os que no conseguissem provar a morte do parenteteriam negada a indenizao. O prazo para apresen-tar requerimento ficou estabelecido em 120 dias apartir da publicao da lei, podendo as provas seranexadas posteriormente. Para Jos Gregori, era ne-cessrio ter um senso de responsabilidade com essaquesto, porque poderia haver quem se aproveitassedo momento para conquistar uma indenizao in-devida, explica o ex-ministro da Justia. Mas pre-valeceu entre os familiares e membros da ComissoEspecial a opinio de que seria mais justo e eficazque o prprio Estado cuidasse de construir tais pro-vas. Nas circunstncias em que o agente do Estado responsvel, como poderamos ser obrigados a re-constituir a histria, sendo que nunca tivemos acessos informaes?, indaga Gilney Viana.s informaes?, indaga Gilney Viana.s informaes?Quando a proposta de lei j estava pronta, surgiram co-mentrios de que no haveria espao para negociaodentro do Congresso Nacional. Mais uma vez, os familiaresrecorreram a Jos Gregori, pedindo sua ajuda para garantirdeterminadas mudanas. As famlias reivindicavam altera-es para impedir que fossem divididas entre aquelas quetiveram seus casos reconhecidos e as que no tiveram.Sobrevivente das torturas, com papel destacado naluta dos familiares, Maria Amlia de Almeida Telesrepisa como teria sido importante introduzir na lei,naquelas negociaes, a exigncia de se abrir novasfontes de informao. Todos os indcios apresen-tados por ns estavam esgotados. Precisvamos denovas fontes de informaes, queramos saber emque lugar estavam os corpos, como foram parar l,afirma. De acordo com ela, quando os familiares dis-cutiam a proposta com o governo e o Legislativo, oltimo ponto tocado foi a indenizao. Sempre dis-semos que queramos saber a localizao dos corpos,as circunstncias das mortes, a responsabilidade. In-denizao era a questo ltima.Houve pouca discusso em torno do projeto no Legis-lativo. Os parlamentares que participaram das discus-ses na Comisso Especial que analisou o PL 869 serecordam das fortes resistncias apresentadas pelossegmentos que entendiam a exigncia de apurao epunio como revanchismo. Para estes, s seria possvelapontar culpados se fosse revogada, antes, a parte daLei de Anistia que oferecia cobertura aos que violaramDireitos Humanos no exerccio da represso poltica.Nunca houve consenso ou maioria no Congresso paraintroduzir mudanas desse teor.Para Jos Gregori, a justificativa do projeto de lei foimuito bem elaborada, tendo como mecnica os desdo-bramentos da Lei de Anistia. O ex-ministro considera,tambm, que a primeira lista divulgada era abrangenteo suficiente para chamar a ateno da sociedade. Ca-beria Comisso Especial providenciar o resgate dosdespojos para identificao, desde que solicitado porum familiar, a quem caberia indicar a localizao daossada. Matria publicada no jornal O Estado de So Pau-lo, com o esboo da lista que integraria a lei, levantoudiscusso pblica sobre o projeto. Com isso, Jos Gre-gori acredita que a batalha com os setores mais conser-vadores estava praticamente ganha.Mas o assunto ainda era considerado tabu entre al-guns crculos militares. Uma reunio do presidenteFernando Henrique e do ministro da Justia NelsonJobim com os representantes das Foras Armadas foiconvocada para anunciar a deciso de criar a lei emque o Estado assumiria a responsabilidade pelos atoscometidos durante o regime militar. A argumentao
  • 28. COMISSO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS| 37 |apoiou-se na tese de que no havia sentido revan-chista na deciso.Dois militares considerados importantes no processo, eque apoiaram a iniciativa, de acordo com Gregori, foramo ministro da Aeronutica, brigadeiro Mauro Gandra, e ogeneral-de-diviso Tamoyo Pereira das Neves, que haviasido chefe de gabinete do ministro da Segurana Institu-cional, general Alberto Cardoso. Antes de tudo, o signifi-cado da deciso era jurdico. Tratava-se de uma obrigaodo Estado Democrtico de Direito. No era um ataque aogoverno A ou B. Transcendia a essa questo. Na poca,no existia a possibilidade de reabrir a responsabilizao.Foi colocada uma pedra em cima do assunto, afirma JosGregori, que procurou ser cuidadoso na redao do projetode lei. Nenhum pargrafo ou inciso da lei poderia propi-ciar acusaes particulares.Enquanto os familiares discutiam o projeto, foi solicitadasua votao em carter de urgncia urgentssima. Os fa-miliares redigiram um documento onde declaravam que direito de toda a sociedade brasileira, e no exclusivamen-te das famlias, resgatar a verdade histrica. Essa no uma questo humanitria entre os familiares e o governo uma exigncia e um direito da sociedade.Tambm pleitearam:a) Esclarecimento detalhado (como, onde, porquee por quem) das mortes e dos desaparecimentosocorridos.b) Reconhecimento pblico e inequvoco peloEstado de sua responsabilidade em relao aoscrimes cometidos.c) Direito de as famlias enterrarem condigna-mente seus entes queridos, visto caber ao Estado,e no a elas, a responsabilidade pela localizaoe identificao dos corpos.d) Inverso do nus da prova: dever do Estado,e no dos familiares, diligenciar as investigaescabveis, buscando provar no ser ele o respons-vel direto pelos assassinatos.e) Abertura incondicional de todos os arquivos darepresso sob jurisdio da Unio.f) Compromisso de no nomear e de demitir de cargospblicos todos os envolvidos nos crimes da ditadura.g) Incluso de todos os militantes assassinados poragentes do Estado no perodo entre 1964 e 1985.h) Indenizao como direito e, principalmente,efeito de todo o processo de luta.A Comisso EspecialA Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Po-lticos (CEMDP), instituda pela lei, era composta desete integrantes: um deputado da Comisso de Direi-tos Humanos da Cmara, uma pessoa ligada s vtimasda ditadura, um representante das Foras Armadas, ummembro do Ministrio Pblico Federal e trs pessoaslivremente escolhidas pelo presidente da Repblica. Acomposio inicial, bem como as sucessivas alteraesocorridas ao longo desses 11 anos de sua existncia, jforam apresentadas no incio deste livro-relatrio.Os trabalhos comearam no dia 8 de janeiro de 1996,na sala 621 do prdio anexo ao Ministrio da Justia,sob a presidncia de Miguel Reale Junior. A partir desseA busca pelos parentes
  • 29. dia, comeou a contagem regressiva para revisar duasdcadas de histria deliberadamente escondidas. Houveembates e discusses acirradas na CEMDP. Os familiaresnunca aceitaram a indicao do general Oswaldo PereiraGomes, pelo fato de seu nome estar citado como partici-pante dos aparelhos de represso no Brasil Nunca Mais,livro que se tornou uma espcie de bblia sobre os cri-mes cometidos durante a ditadura militar.O general, que deixou a Comisso em 2003, orgulha-se de sua participao, embora defenda que as inde-nizaes tambm deveriam ser destinadas s famliasde militares e civis mortos na defesa do regime. Mi-nha presena representava o contraditrio, os embateseram travados com base jurdica, eu atuava como ad-vogado indicado pelas Foras Armadas, argumenta omilitar da reserva. Para ele, um dos julgamentos maissimblicos foi o de Zuzu Angel. De incio, foi negado oreconhecimento da responsabilidade do Estado por suamorte e a conseqente indenizao. Em seguida, houvereviso do processo e a famlia obteve os direitos, con-tra o seu voto. O general tambm no concordou como reconhecimento das mortes e com a indenizao sfamlias de Carlos Marighella e Carlos Lamarca.Pressionados pelo prazo exguo e pelo surgimento demuitos casos novos devido divulgao pela mdia, otrabalho teve de ser acelerado. Os requerimentos fo-ram distribudos entre os integrantes, que tinham amisso de montar os processos, anexando documen-tos e um relatrio com explicaes sobre as circuns-tncias da morte.Sempre foi muito difcil o acesso a documentos proba-trios. Aqueles obtidos para comprovar que o Estadoera responsvel pelas mortes foram procurados nos ar-quivos estaduais j abertos, livros dos cemitrios clan-destinos, registros municipais e tambm aproveitandotestemunhos de sobreviventes. Fragmentos foram re-colhidos e juntados minuciosamente para reconstruir ohistrico das mortes, mas o nmero de desaparecidoscujos corpos puderam ser localizados e identificadosainda considerado nfimo.Os pesquisadores procuraram tambm a documentaodo Superior Tribunal Militar (relativa aos processos for-mados na Justia Militar) e ali localizaram dados im-portantes. Um exemplo foi o de Luiz Jos da Cunha,que segundo os autos ingressou na priso apenas deDIREITO MEMRIA E VERDADE| 38 |Familiares se mobilizam por informaessobre filhos, maridos, esposas e irmos
  • 30. COMISSO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS| 39 |cuecas e meias e, portanto, no poderia ter morrido emtiroteio. Com lupas, respirando o ar viciado e o mofodos arquivos, os parentes dos mortos reviravam papisamarelados, garimpando detalhes perdidos em cauda-losos textos de linguagem tcnica ou dissimulada, emespecial nos arquivos do DOPS de Pernambuco, do Riode Janeiro e de So Paulo. Tambm as fotos dos corposcoletadas no Instituto Mdico Legal (IML) foram fun-damentais para que mdicos legistas emitissem laudoscomprovando as marcas de tortura.Crimia relembra quando entrevistou parentes de vtimase camponeses do Araguaia, encontrando ex-presos e tor-turados. Auxiliou, em uma visita regio da guerrilha, aEquipe Argentina de Antropologia Forense, ONG especia-lizada na busca dos desaparecidos daquele pas e respon-svel pela exumao de centenas de ossadas em vrioscontinentes. Os argentinos trabalharam sem cobrar ho-norrios, solicitando apenas o pagamento de despesas.Na opinio de Francisco Helder Macdo Pereira, queatuou como assessor administrativo da Comisso, entre1996 e 2004, o incio no foi to difcil, pois os primei-ros casos a ser indenizados j constavam no Anexo Ida Lei n 9.140, embora houvesse resistncia da PolciaFederal e das Foras Armadas em fornecer informaes.Mesmo com as informaes preliminares constando noanexo da lei, o excesso de trabalho, o tempo exguoe a dificuldade de obteno de documentos refletiam-se no clima das reunies da Comisso. Os integrantesdiscutiam com freqncia e os embates mais acirradosocorriam com o representante das Foras Armadas.Miguel Reale Junior, que presidiu a comisso durantecinco a