Livro Pedagogia Histórico-crítica - 30 Anos

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Pedagogia

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Pedagogia histórico-crítica

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assistente EditorialRodrigo Nascimento

Preparação e revisãoAline Marques

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Ana Carolina Galvão Marsiglia (Org.)

Coleção Memória da Educação

Pedagogia histórico-crítica

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Impresso no Brasil – maio de 2011Copyright © 2011 by Editora Autores Associados LTDA.

Pedagogia histórico-crítica : 30 anos / Ana Carolina Galvão Marsiglia (org.). -- Campinas, SP : Autores Associados, 2011. -- (Coleção memória da educação)Vários autores.

BibliografiaISBN 978-5-7496-265-8

1. Construtivismo 2. Educação - Brasil - História 3. Ensino 4. Filosofia marxista 5. Pedagogia histórico-crítica 6. Prática social 7. Professores 8. Sociologia educacional I. Marsiglia, Ana Carolina Galvão. II. Série.

00041 CDD-370.115

Índice para catálogo sistemático:

1. Pedagogia histórico-crítica : Educação 370.115

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Lei n. 10.994, de 14 de dezembro de 2004, que revogou o decreto-lei n. 1.825, de 20 de dezembro de 1907.

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Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1

1. Fundamentos da pedagogia histórico-crítica: a formação do ser humano na sociedade comunista como referência para a educação contemporânea. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7

Newton Duarte

Introdução .........................................................................................................71. A individualidade livre e universal na sociedade comunista ................................................................................. 112. A autoatividade como atividade plena de sentido ................... 163. As relações humanas plenas de conteúdo na sociedade comunista ........................................................................... 18

2. Fundamentos teóricos da pedagogia histórico-crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Sandra Soares Della Fonte

Quando os tempos não são propícios para as pedagogias críticas ou quando a saída do positivismo é criptopositivista ................. 24Acentos teóricos necessários à luta socialista ................................ 281. A realidade existe e é cognoscível ................................................... 282. Objetividade não significa neutralidade e totalidade não é tudo ................................................................................. 303. Ser contra o relativismo cultural não é ser contra a multiplicidade da cultura ..................................................................... 33Alguns nortes pedagógicos necessários à luta socialista ........... 35Comemoração de 30 anos da pedagogia histórico-crítica ......... 37

3. Pedagogia histórico-crítica e psicologia histórico-cultural. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

Lígia Márcia Martins

1. Desenvolvimento do psiquismo ....................................................... 452. Educação escolar, desenvolvimento do psiquismo e inteligibilidade do real .......................................................................... 52

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4. A educação escolar da criança pequena na perspectiva histórico-cultural e histórico-crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

Juliana Campregher Pasqualini

1. O desenvolvimento infantil na perspectiva de Vigotski, Leontiev e Elkonin ................................................................... 642. A educação escolar na primeira infância e na idade pré-escolar ............................................................................... 762.1 A educação escolar infantil e o desenvolvimento do pensamento da criança ...................................................................... 82Considerações finais .................................................................................. 86

5. Ética marxista e formação moral na escola. . . . . . . . . . . . . 91Juliane Zacharias Bueno

1. O que é ética? ........................................................................................... 912. Concepção de homem e de sociedade ........................................... 933. A ética marxista ...................................................................................... 964. Elementos para a formação moral escolar a favor da emancipação humana ........................................................................ 97

6. A prática pedagógica na perspectiva da pedagogia histórico-crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

Ana Carolina Galvão Marsiglia

1. Retomando alguns fundamentos .................................................. 1022. A linguagem no desenvolvimento infantil ................................ 1083. A prática pedagógica na perspectiva da pedagogia histórico-crítica .................................................................. 114

7. A crítica às pedagogias do “aprender a aprender”: a naturalizaçao do desenvolvimento humano e a influência do construtivismo na educação . . . . . . . . . . . 121

Marilda Gonçalves Dias Facci

1. A naturalização e a universalização das etapas de desenvolvimento humano .................................................................... 1232. O professor e a prática pedagógica no construtivismo ....... 128Considerações finais ............................................................................... 135

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8. A política educacional e a formação de professores: reflexões sobre os fundamentos teóricos e epistemológicos da reforma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

Lidiane Teixeira Brasil Mazzeu

Considerações inicias ............................................................................. 147

1. Os parâmetros de referência da reforma educacional brasileira ............................................................................ 148

2. A formação do professor profissional ........................................ 154

3. Referencias e diretrizes para a formação de professores ....................................................................... 157

Considerações finais ............................................................................... 161

9. Pedagogia histórico-crítica, psicologia histórico-cultural e educação especial: em defesa do desenvolvimento da pessoa com e sem deficiência . . . . . . 169

Sonia Mari Shima Barroco

1. Uma causa pela qual lutar ............................................................... 170

2. A necessidade de superação do escolanovismo na educação especial .................................................................................... 175

3. Educação social para a pessoa com deficiência: uma defesa vygotskiana ............................................... 180

Considerações finais ............................................................................... 190

10. Antecedentes, origem e desenvolvimento da pedagogia histórico-crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197

Dermeval Saviani

1. Antecedentes ......................................................................................... 197

2. Origem ..................................................................................................... 218

3. Desenvolvimento atual ..................................................................... 221

Os autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227

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Da esquerda para a direita: Lidiane Teixeira Brasil Mazzeu, Juliana Campregher Pasqualini, Sonia Mari Shima Barroco, Lígia Márcia Martins, Ana Carolina Galvão Marsiglia,

Juliane Zacharias Bueno, Dermeval Saviani, Maria Aparecida Motta, Sandra Soares Della Fonte, Marilda Gonçalves Dias Facci e Newton Duarte.

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Apresentação

Este livro reúne os textos das apresentações feitas por ocasião do Seminário “Pedagogia histórico-crítica: 30 anos”, que se reali-zou na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, de 15 a 17 de dezembro de 2009 por iniciativa do Grupo de Pesquisa “Estudos Marxistas em Educação”. Esse grupo foi criado no início do ano de 2002 pelo professor Newton Duarte e pela falecida professora Maria Célia Marcondes de Moraes. Contando com as contribuições de pesqui-sadores de várias universidades brasileiras, esse grupo tem como objetivo desenvolver pesquisas no campo da educação escolar ten-do o marxismo como referência teórica e político-ideológica.

O Seminário “Pedagogia histórico-crítica: 30 anos” não foi organizado com a pretensão de esgotar as contribuições que essa corrente pedagógica vem trazendo para a educação brasileira. O ob-jetivo desse evento foi mais modesto, limitando-se a contribuições que o Grupo de Pesquisa “Estudos Marxistas em Educação” tem dado à construção coletiva dessa pedagogia. O evento contou tam-bém com a honrosa participação do professor Dermeval Saviani, referência nacional da pedagogia histórico-crítica e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (Histedbr).

A abertura do evento foi realizada por Newton Duarte e Sandra Soares Della Fonte, em mesa intitulada “Fundamentos da pedagogia histórico-crítica”. Desta forma, no primeiro capítulo deste livro, Newton Duarte defende a tese de que a formação do ser humano na sociedade comunista deve ser a referência para a pedagogia histórico-crítica nos dias atuais e, nessa direção, ana-lisa três pontos: a individualidade livre e universal na sociedade comunista; a autoatividade como atividade plena de sentido e fun-damento da vida na sociedade comunista e, por fim, as relações humanas plenas de conteúdo na sociedade comunista.

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Sandra Soares Della Fonte, autora do segundo capítulo, nos traz contribuições que destacam o contexto histórico de formula-ção da pedagogia histórico-crítica, o quadro pós-moderno das ten-dências pedagógicas na atualidade e a importância de se manter a crítica às pedagogias burguesas, ao mesmo tempo em que se faz imperativo estruturar os fundamentos de uma proposição mar-xista. Dentro dessa perspectiva, dedica-se a enfatizar três aspectos necessários a uma pedagogia de inspiração marxista, que se arti-culam com a crítica imprescindível à escola burguesa: a realidade é cognoscível e pode ser transmitida; objetividade, neutralidade e totalidade são conceitos que precisam ser compreendidos em suas especificidades para que mantenham sua legitimidade; relativis-mo e diversidade cultural são coisas diferentes, sendo que o pri-meiro pertence ao referencial pós-moderno enquanto o segundo tem suas repercussões na teoria marxista.

O terceiro capítulo foi escrito por Lígia Márcia Martins e re-cebe o mesmo título que sua apresentação no evento: “Pedagogia histórico-crítica e psicologia histórico-cultural”. Seu texto volta-se a uma reflexão sobre a relação da pedagogia histórico-crítica com a psicologia histórico-cultural. Desenvolvendo os conceitos de na-tureza humana e natureza social do psiquismo, a autora propõe como unidade de análise dessas teorias a apropriação da cultura por meio do ensino sistematizado. Para a explicitação dessa pro-posição analisa, dentre outras questões, o desenvolvimento das funções psicológicas superiores em suas relações com a educação escolar.

Os três capítulos seguintes são das participantes da mesa “Contribuições específicas à pedagogia histórico-crítica: educação infantil, formação moral e prática pedagógica”. Assim, o quarto capítulo, de autoria de Juliana Campregher Pasqualini, apresenta a análise da educação infantil em uma abordagem contra-hegemônica, de valorização do professor e do ato de ensinar. Utilizando-se do re-ferencial de Vigotski, Leontiev e Elkonin, seu texto trata da ques-tão do desenvolvimento infantil por um viés histórico-social, bem como discute as possibilidades do trabalho pedagógico realizado

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com as crianças pequenas, afirmando a necessidade de apropriação da cultura como condição para o pleno desenvolvimento humano.

Juliane Zacharias Bueno, autora de “Ética marxista e forma-ção moral na escola”, discute no quinto capítulo as definições de ética e moral, as contradições do desenvolvimento dos indivíduos, as concepções de homem e sociedade para o marxismo e sua rela-ção com a ética desenvolvida por essa corrente filosófica. A partir dessa análise, apresenta elementos que viabilizam a superação do ser humano de suas condições empobrecidas de existência, sendo a escola socializadora de conhecimentos uma instituição funda-mental à formação moral humanizadora.

O capítulo seis, intitulado “A prática pedagógica na perspec-tiva da pedagogia histórico-crítica”, de autoria de Ana Carolina Galvão Marsiglia, recupera alguns fundamentos teóricos, como o conceito de trabalho, a natureza e especificidade da educação e apresenta a proposta metodológica da pedagogia histórico-crítica. O texto é finalizado com a ilustração de um trabalho de leitura e escrita realizado em um 1° ano do ensino fundamental de uma escola pública do interior paulista, no intento de demonstrar que práticas pedagógicas alinhadas ao marxismo apresentam resulta-dos positivos e contribuem na formação humanizadora da classe trabalhadora.

Os capítulos sete e oito referem-se à mesa “A crítica às peda-gogias do ‘aprender a aprender’ como contribuição à pedagogia histórico-crítica”. Marilda Gonçalves Dias Facci, no sétimo capítu-lo, elabora uma análise crítico-comparativa colocando de um lado o construtivismo e de outro, a pedagogia histórico-crítica e a psico-logia histórico-cultural. Com essa apreciação, a autora desvela as armadilhas do discurso construtivista e em contrapartida oferece apoio à pedagogia histórico-crítica e sua materialização no tocante à valorização da escola e do trabalho do professor.

O oitavo capítulo é de autoria de Lidiane Teixeira Brasil Mazzeu. Nele, são trazidas reflexões sobre políticas de formação docente no Brasil na década de 1990. Para desenvolver suas ponderações, to-mando como referencial de análise a pedagogia histórico-crítica, a

Apresentação…

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autora apoia-se nos documentos oficiais nacionais e internacionais que guiaram a reforma educacional brasileira naquela década, ob-servando os funestos efeitos das concepções adotadas para a for-mação de professores, que se mantêm na atualidade.

Sonia Mari Shima Barroco, autora do capítulo nove, foi res-ponsável pela exposição “Pedagogia histórico-crítica e educação especial”. Seu artigo não se propõe a discutir a educação especial nos aspectos legais, históricos ou de intervenção metodológica, mas aponta para a urgência em se ter um norte teórico coerente nessa modalidade de ensino, para fazer frente às contradições, próprias ao capitalismo, que nela se revelam. Para tanto, apresenta proposições de L. S. Vygotski para a educação especial soviética, a chamada defectologia, e considerações sobre a pedagogia histórico--crítica, em prol da formação do enriquecimento do homem, seja ele deficiente ou não.

No último capítulo, Dermeval Saviani brinda-nos com relatos de sua experiência docente que apresentam os antecedentes da pe-dagogia histórico-crítica e sua origem, mostrando a coerência do autor com as formulações teóricas conduzidas por ele ao longo de sua carreira.

Aproveitamos para agradecer todos aqueles que auxiliaram na realização do referido Seminário. Aos palestrantes, às mediadoras das mesas realizadas: Gestine C. Trindade (Universidade Federal de São Carlos – Ufscar), Fatima Aparecida de Souza Francioli (Faculdade Estadual de Educação Ciências e Letras de Paranavaí /Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar – Unesp, Araraquara), Lucia Terezinha Zanato Tureck (Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste) e à comissão organizadora, da qual fizeram parte a professora Lígia Márcia Martins e as alunas Nathalia Botura de Paula Ferreira (Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar – Unesp, Araraquara), Maria Claudia da Silva Saccomani e Mariana de Cássia Assumpção (Curso de Pedagogia – Unesp, Araraquara).

Espera-se que a realização desse evento e a publicação dos textos aqui reunidos sejam um incentivo para a ampliação e o

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aprofundamento dos debates sobre a educação brasileira na pers-pectiva da pedagogia histórico-crítica, fortalecendo, dessa manei-ra, a luta por uma educação escolar pública que efetivamente faça da socialização do conhecimento parte de um processo maior de transformação social radical na direção da superação da sociedade capitalista.

Ana Carolina Galvão MarsigliaPresidente da Comissão Organizadora do Seminário

Newton DuarteLíder do Grupo de Pesquisa

“Estudos Marxistas em Educação”

Apresentação…

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1. Fundamentos da pedagogia histórico-crítica

A formação do ser humano na sociedade comunista como referência para a educação

contemporânea

Newton Duarte

Introdução

O tema da mesa de abertura deste seminário são os funda-mentos teóricos da pedagogia histórico-crítica. Nos dias atuais esse tema é desafiador ao menos por duas razões. A primeira é a de que os fundamentos teóricos são abertamente desvalorizados no campo dos estudos pedagógicos e em seu lugar louvam-se o ecletismo e o espírito pragmático. A segunda é a de que não são poucos aqueles que consideram totalmente sem sentido se defen-der uma pedagogia marxista.

Já que o tema da mesa é polêmico, apresentarei aqui uma re-flexão que vai na direção totalmente oposta a quase tudo o que tem sido falado e escrito em educação neste início de século XXI. Defenderei que nossa referência para a educação contemporânea deve ser a formação dos seres humanos na sociedade comunista.

Essa afirmação decorre de uma premissa, a de que a peda-gogia histórico-crítica exige por parte de quem a ela se alinha um posicionamento explícito perante a luta de classes e, portanto, pe-rante a luta entre o capitalismo e o comunismo. Quem prefira não se posicionar em relação à luta de classes não poderá adotar de maneira coerente essa perspectiva pedagógica.

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Mas defender que a educação na sociedade contemporânea deveria ter como referência a formação dos seres humanos na sociedade capitalista não seria um tanto idealista, ou até mesmo utópico, considerando-se que o socialismo não foi vitorioso no sé-culo XX? Se entendermos que entre o capitalismo e o comunismo existe a sociedade socialista como uma transição, pode-se afirmar que nem sequer a transição socialista conseguiu chegar ao final do século XX, tendo o capitalismo vencido a luta contra os países que tentaram implantar o socialismo. Se a perspectiva de passarmos a uma nova tentativa de transição socialista não se apresenta como uma previsão realista a curto prazo, o que justificaria, portanto, to-mar como referência algo ainda mais longínquo da realidade atual, ou seja, o comunismo?

Embora o comunismo não se apresente como uma realidade da qual minha geração poderá fazer parte, as premissas para a hu-manidade chegar a esse estágio de desenvolvimento estão dadas na própria realidade capitalista. Em “A Ideologia Alemã”, Marx e Engels (2007, p. 38) já apresentavam o comunismo como uma possibilidade a partir das condições existentes: “O comunismo não é para nós um estado de coisas que deve ser instaurado, um ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comu-nismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento […] resultam dos pressupostos atual-mente existentes”.

Mas, para compreendermos como o comunismo pode desen-volver-se a partir da realidade capitalista, é necessário entender-mos a dialética imanente a essa realidade, ou seja, precisamos en-tender o movimento das contradições. Esse movimento histórico dialético tem como um dos polos da contradição a propriedade privada e a divisão social do trabalho, ou seja, a alienação:

Esse fixar-se da atividade social, essa consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo situado acima de nós, que foge ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e aniquila nossas conjetu-ras, é um dos principais momentos no desenvolvimento histórico até aqui realizado. O poder social, isto é, a força de produção multiplicada

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que nasce da cooperação dos diversos indivíduos condicionada pela divisão do trabalho, aparece a esses indivíduos, porque a própria co-operação não é voluntária mas natural, não como seu próprio poder unificado, mas sim como uma potência estranha, situada fora deles, sobre a qual não sabem de onde veio nem para onde vai, uma potência, portanto, que não podem mais controlar e que, pelo contrário, percorre agora uma sequência particular de fases e etapas de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que até mesmo dirige esse querer e esse agir [idem, ibidem].

O outro polo dessa contradição dialética é o de que essa ati-vidade humana alienada produz as condições de sua própria su-peração:

Essa “alienação” para usarmos um termo compreensível aos filó-sofos, só pode ser superada, evidentemente, sob dois pressupostos práticos. Para que ela se torne um poder “insuportável”, quer dizer, um poder contra o qual se faz uma revolução, é preciso que ela tenha produzido a massa da humanidade como absolutamente “sem proprie-dade” e, ao mesmo tempo, em contradição com um mundo de riqueza e de cultura existente, condições que pressupõem um grande aumento da força produtiva, um alto grau de seu desenvolvimento – e, por ou-tro lado, esse desenvolvimento das forças produtivas (no qual já está contida, ao mesmo tempo, a existência empírica humana, dada não no plano local, mas no plano histórico-mundial) é um pressuposto prático, absolutamente necessário, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as lutas pelos gêneros necessários recomeça-riam e toda a velha imundície acabaria por se restabelecer; além disso, apenas com esse desenvolvimento universal das forças produtivas é posto um intercâmbio universal dos homens e, com isso, é produzi-do simultaneamente em todos os povos o fenômeno da massa “sem propriedade” (concorrência universal), tornando cada um deles depen-dente das revoluções do outro; e, finalmente, indivíduos empiricamen-te universais, histórico-mundiais, são postos em lugar dos indivíduos locais [idem, pp. 38-39].

Na análise desenvolvida por Marx e Engels sobre essa dia-lética entre a alienação e o desenvolvimento dos seres humanos, mostra-se de fundamental importância a produção histórica das

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condições objetivas e subjetivas para que os indivíduos superem os limites da existência presa ao ambiente local imediato:

Na história que se deu até aqui é sem dúvida um fato empírico que os indivíduos singulares, com a expansão da atividade numa atividade histórico-mundial, tornaram-se cada vez mais submetidos a um poder que lhes é estranho (cuja opressão eles também representavam como um ardil do assim chamado espírito universal etc.), um poder que se torna cada vez maior e que se revela, em última instância, como mer-cado mundial. Mas é do mesmo modo empiricamente fundamentado que, com o desmoronamento do estado de coisas existente da socie-dade por obra da revolução comunista […] e com a superação da pro-priedade privada, superação esta que é idêntica àquela revolução, esse poder […] é dissolvido e então a libertação de cada indivíduo singular é atingida na mesma medida em que a história transforma-se plena-mente em história mundial. De acordo com o já exposto, é claro que a efetiva riqueza espiritual do indivíduo depende inteiramente da ri-queza de suas relações reais. Somente assim os indivíduos singulares são libertados das diversas limitações nacionais e locais, são postos em contato prático com a produção (incluindo a produção espiritual) do mundo inteiro e em condições de adquirir a capacidade de fruição dessa multifacetada produção de toda a terra (criações dos homens). A dependência multifacetada, essa forma natural da cooperação histó-ri co-mundial dos indivíduos, é transformada, por obra dessa revolu-ção comunista, no controle e domínio consciente desses poderes, que, criados pela atuação recíproca dos homens, a eles se impuseram como poderes completamente estranhos e os dominaram [idem, pp. 40-41].

Esta deve ser a linha mestra a conduzir as ações dos educado-res alinhados à pedagogia histórico-crítica: lutar para que se torne cada vez mais intensa em todos os indivíduos a necessidade de criação da capacidade de fruição dessa produção material e espi-ritual universal. A revolução comunista nasce dessa contradição entre a existência da massa dos absolutamente sem propriedade e o caráter universal e multifacetado da riqueza material e espiritual produzida pelo trabalho dos próprios seres humanos. Uma peda-gogia que valorize a liberdade dos indivíduos não será aquela que tenha por objetivo formar nos alunos a capacidade de adaptação à realidade local da qual eles fazem parte, mas sim aquela que forme

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nos alunos a consciência da necessidade de apropriação da riqueza espiritual universal e multifacetada. A título de exemplo trago a questão do ensino de literatura, que vem sendo objeto da pesquisa de doutorado de Nathalia Botura de Paula Ferreira, integrante do Grupo de Pesquisa “Estudos Marxistas em Educação”. A literatu-ra é um dos conteúdos escolares nos quais se mostra com maior riqueza a dialética entre as condições históricas específicas de pro-dução de um bem cultural e o valor universal que esse bem pode adquirir no decorrer da história humana. Aliás, isso também já fora constatado por Marx e Engels no “Manifesto do Partido Comunis-ta”, ao analisarem o processo de formação do mercado mundial por obra da produção capitalista:

Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção mate-rial como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literatu-ras nacionais e locais, nasce uma literatura universal [Marx & engels, 1989, p. 368].

É nessa direção que explorarei neste texto a questão dos fun-damentos da pedagogia histórico-crítica, a partir de três pontos: a individualidade livre e universal na sociedade comunista; a auto-atividade como atividade plena de sentido e fundamento da vida na sociedade comunista e, por fim, as relações humanas plenas de conteúdo na sociedade comunista.

1. A individualidade livre e universal na sociedade comunista

Ao contrário do que afirma a maioria dos antimarxistas e até mesmo uma parte dos marxistas, a teoria de Marx tem a questão da individualidade no centro de suas análises da história humana.

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Vejamos inicialmente como a questão da individualidade está no centro da concepção marxista da sociedade comunista:

O comunismo distingue-se de todos os movimentos anteriores por-que revoluciona os fundamentos de todas as relações de produção e de intercâmbio precedentes e porque pela primeira vez aborda cons-cientemente todos os pressupostos naturais como criação dos homens que existiram anteriormente, despojando-os de seu caráter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos associados. O existente que o comunismo cria é precisamente a base real para tornar impossível tudo o que existe independentemente dos indivíduos, na medida em que o existente nada mais é do que um produto do intercâmbio anterior dos próprios indivíduos [Marx & engels, 2007, p. 67].

Entretanto, não falta quem argumente que para o marxismo o indivíduo é dissolvido na coletividade comunista, o que é catego-ricamente negado por Marx e Engels:

De toda a exposição anterior resulta que a relação coletiva em que entraram os indivíduos de uma classe e que era condicionada por seus interesses comuns diante de um terceiro foi sempre uma coletivida-de à qual os indivíduos pertenciam como indivíduos médios, somente enquanto viviam nas condições de existência de sua classe; uma rela-ção na qual participavam não como indivíduos, mas como membros de uma classe. Ao contrário, com a coletividade dos proletários revo-lucionários, que tomam sob seu controle suas condições de existência e as de todos os membros da sociedade, dá-se exatamente o inverso: nela os indivíduos participam como indivíduos. É precisamente essa associação de indivíduos (atendendo, naturalmente, ao pressuposto de que existam as atuais forças produtivas desenvolvidas) que coloca sob seu controle as condições do livre desenvolvimento e do movimento dos indivíduos – condições que estavam até agora entregues ao acaso e haviam se autonomizado em relação aos indivíduos singulares jus-tamente por meio de sua separação como indivíduos, por sua união necessária dada com a divisão do trabalho e por meio de sua separação transformada num vínculo que lhes é alheio. A união anterior […] só era uma união […] sob essas condições, no interior das quais os in-divíduos podiam desfrutar do acaso. Esse direito de poder desfrutar tranquilamente do acaso, sob certas condições, foi até então chamado de liberdade pessoal [idem, pp. 66-67].

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A liberdade do indivíduo na coletividade comunista é mui-to maior do que a liberdade restrita que é a de poder mover-se em meio ao acaso das condições alienadas de existência próprias à naturalidade da divisão social do trabalho no capitalismo. Isso porque na coletividade comunista os indivíduos controlam as con-dições da existência, o que possibilita o livre desenvolvimento dos seres humanos, o que é bem diferente do desenvolvimento espon-tâneo que ocorre nas condições autonomizadas que na sociedade capitalista comandam a vida dos indivíduos à revelia de sua von-tade e de sua consciência. Alcançar essa liberdade só é possível por meio da luta revolucionária pela superação da realidade comanda-da pelo capital:

Portanto, de um lado há uma totalidade de forças produtivas que assumiram como que uma forma objetiva e que, para os próprios in-divíduos, não são mais as forças do indivíduo, mas da propriedade privada e, por isso, são as forças dos indivíduos apenas na medida em que eles são proprietários privados. Em nenhum período anterior as forças produtivas assumiram essa forma indiferente para o intercâm-bio dos indivíduos na qualidade de indivíduos, porque seu próprio intercâmbio era ainda limitado. De outro lado, confronta-se com essas forças produtivas a maioria dos indivíduos, dos quais essas forças se separaram e que, por isso, privados de todo conteúdo real de vida, se tornaram indivíduos abstratos, mas que somente assim são colocados em condições de estabelecer relações uns com os outros na qualidade de indivíduos [idem, p. 72].

Poder-se-ia perguntar por que os indivíduos tiveram de ser reduzidos à condição de indivíduos abstratos para que pudessem estabelecer relações entre si na qualidade de indivíduos. A respos-ta é justamente a de que antes da sociedade capitalista o intercâm-bio era limitado e os indivíduos ainda estavam presos às condições de reprodução de sua existência que se apresentavam a eles como condições naturais. Isso impossibilitava que eles pudessem atuar realmente como indivíduos. Com a mundialização das relações de mercado, com a autonomização das forças produtivas levada a cabo pela sociedade capitalista, os indivíduos passam a se relacio-

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nar mediados pelo valor de troca, suas relações são desprovidas de todo conteúdo, eles tornam-se indivíduos unilaterais, indivíduos abstratos. Mas a superação desse estado de coisas não consiste em um retorno às relações sociais do passado pré-capitalista. Essa superação só é possível com a apropriação total, pela huma-nidade despossuída, da riqueza material e espiritual:

Essa apropriação está primeiramente condicionada pelo objeto a ser apropriado – as forças produtivas desenvolvidas até formar uma tota-lidade e que existem apenas no interior de um intercâmbio universal. Sob essa perspectiva, portanto, tal apropriação tem que ter um caráter correspondente às forças produtivas e ao intercâmbio. A apropriação dessas forças não é em si mesma mais do que o desenvolvimento das capacidades individuais correspondentes aos instrumentos materiais de produção. A apropriação de uma totalidade de instrumentos de produção é, precisamente por isso, o desenvolvimento de uma totali-dade de capacidades nos próprios indivíduos [idem, p. 73].

Esse é o primeiro ponto que Marx e Engels destacam nesse processo de apropriação. Se o objeto a ser apropriado é uma to-talidade de forças produtivas que só existem no intercâmbio uni-versal, então a apropriação não pode ser parcial, deve ocorrer na totalidade dessas forças. Se transpusermos esse raciocínio para a questão do conhecimento, na medida em que ele também integra as forças produtivas, então fica claro que a pedagogia histórico--crítica não poderia preconizar outra coisa que não fosse a apro-priação, pela classe trabalhadora, da totalidade do conhecimento socialmente existente. Claro que não se trata de afirmar que cada indivíduo poderá apropriar-se dessa totalidade, mas que a clas-se trabalhadora, no processo revolucionário, deverá apropriar-se desse conhecimento. Essa é uma exigência que se põe tanto pelo lado do objeto a ser apropriado como pelo lado do sujeito desse processo de apropriação:

Essa apropriação é, além disso, condicionada pelos indivíduos que apropriam. Somente os proletários atuais, inteiramente excluídos de toda autoatividade, estão em condições de impor sua autoatividade plena, não mais limitada, que consiste na apropriação de uma totali-

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dade de forças produtivas e no decorrente desenvolvimento de uma totalidade de capacidades. Todas as apropriações revolucionárias anteriores foram limitadas; os indivíduos, cuja autoatividade está limitada por um instrumento de produção e por um intercâmbio li-mitados, apropriavam-se desse instrumento de produção limitado e chegavam, com isso, apenas a uma nova limitação. Seu instrumento de produção tornava-se sua propriedade, mas eles mesmos permane-ciam subsumidos à divisão do trabalho e ao seu próprio instrumento de produção. Em todas as apropriações anteriores, uma massa de in-divíduos permanecia subsumida a um único instrumento de produ-ção; na apropriação pelos proletários, uma massa de instrumentos de produção tem de ser subsumida a cada indivíduo, e a propriedade subsumida a todos. O moderno intercâmbio universal não pode ser subsumido aos indivíduos senão na condição de ser subsumido a to-dos [idem, ibidem].

A classe trabalhadora, na sociedade capitalista, foi destituí-da de toda a propriedade, foi reduzida à condição de proprietária unicamente da força de trabalho, que deve ser vendida ao capital em troca do salário. Assim como as forças produtivas não podem ser apropriadas parcialmente pela classe trabalhadora, esta não pode ser sujeito dessa apropriação apenas parcialmente, é neces-sário que essa apropriação seja para todos. E para que isso ocorra é preciso que a forma dessa apropriação também seja universal:

A apropriação é, ainda, condicionada pelo modo como tem de ser realizada. Ela só pode ser realizada por meio de uma união que, devi-do ao caráter do proletariado, pode apenas ser uma união universal, e por meio de uma revolução na qual, por um lado, sejam derrubados o poder do modo de produção e de intercâmbio anterior e o poder da estrutura social e que, por outro, desenvolva o caráter universal e a energia do proletariado necessária para a realização da apropria-ção; uma revolução na qual, além disso, o proletariado se despoje de tudo o que ainda restava de sua precedente posição social [idem, pp. 73- 74].

É necessário agora explorar dois aspectos desse pensamento até aqui exposto. O primeiro é a questão da atividade humana e o

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segundo é o do conteúdo das relações humanas e, por consequên-cia, o conteúdo da individualidade humana.

2. A autoatividade como atividade plena de sentido

Um aspecto não secundário nas análises de Marx e Engels so-bre a sociedade comunista é a questão da autoatividade. Na socieda-de comunista, deixa de existir a separação entre atividade material e espiritual, deixa de existir a alienação do trabalho e este torna-se autoatividade, ou seja, atividade na qual o indivíduo desenvolve sua personalidade e por meio da qual ele deixa a marca de sua indi-vidualidade na riqueza humana:

Somente nessa fase a autoatividade coincide com a vida material, o que corresponde ao desenvolvimento dos indivíduos até se tornarem indivíduos totais e à perda de todo seu caráter natural; e, assim, a trans-formação do trabalho em autoatividade corresponde à transformação do restrito intercâmbio anterior em intercâmbio entre os indivíduos como tais [idem, p. 74].

Mas para alcançar-se a autoatividade é necessária a superação do caráter alienado do trabalho na sociedade capitalista. Nessa so-ciedade, o trabalho, ao invés de ser uma atividade de autorrealização dos indivíduos, é apenas um meio para a sobrevivência:

O trabalho, único vínculo que os indivíduos ainda mantêm com as forças produtivas e com sua própria existência, perdeu para eles toda aparência de autoatividade e só conserva sua vida definhando-a. En-quanto em períodos precedentes, a autoatividade e a produção da vida material estavam separadas pelo único fato de que elas incumbiam a pessoas diferentes e que a produção da vida material, devida à limitação dos próprios indivíduos, era concebida ainda como uma forma inferior de autoatividade, agora a autoatividade e a produção da vida material se encontram tão separadas que a vida material aparece como a finalida-de, e a criação da vida material, o trabalho (que é, agora, a única forma possível mas, como veremos, negativa, da autoatividade), aparece como meio [idem, pp. 72-73].

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Essa transformação da autoatividade em mero meio para a existência material já havia sido analisada por Marx nos “Manus-critos econômico-filosóficos” de 1844, no item sobre o trabalho alie-nado:

O trabalho é exterior ao trabalhador, ou seja, não pertence à sua es-sência, que portanto ele não se afirma, mas se nega em seu trabalho, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve energia mental e física livre, mas mortifica sua physis e arruína a sua mente. Daí que o trabalha-dor só se sinta junto a si fora do trabalho e fora de si no trabalho. Sente-se em casa quando não trabalha e quando trabalha não se sente em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas compulsório, trabalho força-do. Por conseguinte, não é a satisfação de uma necessidade, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. […]

Pois em primeiro lugar o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva mesma aparece ao homem só como um meio para satisfazer uma ne-cessidade, a necessidade de manutenção da existência física. Mas a vida produtiva é a vida do gênero. É a vida engendradora de vida. No tipo de atividade vital jaz o caráter inteiro de uma espécie, o seu caráter genéri-co, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem. A vida mesma aparece só como meio de vida. […] O trabalho alienado inverte a relação de maneira tal que precisamente porque é um ser consciente o homem faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um meio para a sua existência [Marx, 1989, pp. 153 e 156].

Dessa análise realizada por Marx podemos concluir que os in-divíduos não podem ter uma vida plena de sentido se sua atividade vital, o trabalho, está reduzida a um simples meio de sobrevivência. Vejam o que os seres humanos são obrigados a fazer na sociedade capitalista: para continuarem a viver precisam desfazer-se de uma parte de sua vida, precisam vendê-la a outro e não vendem qualquer parte de sua vida, vendem a mais importante, que é precisamen-te sua atividade vital, aquela que permitiria seu desenvolvimento como ser genérico, como indivíduo conscientemente integrante do gênero humano. Como poderíamos esperar que nossa personalida-de fosse plenamente desenvolvida vivendo numa sociedade na qual nos alienamos da principal parte de nossa vida? Claro que não estou desconsiderando que existem diferentes graus de alienação do tra-

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balho na sociedade contemporânea, ou seja, não ignoro que há ativi-dades de trabalho que são mais profundamente alienantes e degra-dantes do que outras. Mas o simples fato de que as pessoas precisem trabalhar em troca de dinheiro já caracteriza a alienação do trabalho. O fato de que alguns tipos de trabalho recebam em nossa sociedade o pagamento de um salário maior do que outros tipos de trabalho não faz dos primeiros uma atividade não alienada. Na sociedade comunista, o trabalho deixa de ser um meio para a existência e passa a ser a condição para o indivíduo desenvolver sua personalidade à altura do desenvolvimento das forças produtivas humanas. Na so-ciedade capitalista, o ser humano trabalha para viver, na sociedade comunista o ser humano viverá para poder trabalhar porque traba-lhar significará realizar uma atividade plena de sentido, na qual o indivíduo se desenvolva de maneira universal e livre.

Assim como a superação da propriedade privada pela socieda-de comunista levará à autoatividade como uma atividade que con-cretamente dará sentido à vida humana, nesse mesmo processo as relações entre os indivíduos se tornarão plenas de conteúdo.

3. As relações humanas plenas de conteúdo na sociedade comunista

Para concluir minha exposição, estabelecerei uma relação que à primeira vista pode parecer um tanto estranha: entre o fato de a pedagogia histórico-crítica defender uma educação escolar na qual ocupa lugar central a transmissão e a apropriação dos conteúdos clássicos integrantes da cultura universal e o princípio segundo o qual na sociedade comunista as relações entre os indivíduos huma-nos são plenas de conteúdo.

Tenho afirmado em aulas e palestras que uma das formas de entendermos a concepção marxista de comunismo é a de que se tra-ta de uma sociedade na qual as relações humanas e a vida humana são plenas de conteúdo, em oposição ao caráter unilateral, abstrato e vazio das relações humanas na sociedade capitalista. Se a riqueza da

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individualidade depende das relações sociais das quais participa o indivíduo, então é claro que nossa individualidade é extremamente pobre na sociedade contemporânea, na qual as relações sociais são reduzidas a um único denominador comum: o dinheiro.

A dependência mútua e generalizada dos indivíduos reciprocamente indiferentes constitui seu nexo social. Este nexo social se expressa no va-lor de troca, e somente neste a atividade do indivíduo e o produto dessa atividade se transformam em atividade ou em produto para o próprio indivíduo. O indivíduo deve produzir um produto universal: o valor de troca ou, considerado este em si mesmo isolado e individualizado, o di-nheiro. O indivíduo leva consigo mesmo, em seu bolso, o poder social, bem como seu nexo com a sociedade [Marx,1993, pp. 156-157].

Se na sociedade capitalista os indivíduos estão reduzidos a essa absoluta unilateralidade, a essa falta de conteúdo da atividade humana e das relações humanas, na sociedade comunista os conteú-dos objetivamente existentes da riqueza humana transformam-se em conteúdos da subjetividade rica dos indivíduos:

A realidade efetiva objetiva se torna em toda parte de um lado realida-de efetiva das potências essenciais do homem, realidade efetiva humana e por isso realidade efetiva de suas próprias potências essenciais, todos os objetos se lhe tornam a objetivação de si mesmo, se lhe tornam os objetos que realizam efetivamente e confirmam a sua individualidade, objetos seus, ou seja, ele mesmo se torna objeto. […] A peculiaridade de cada potência essencial é exatamente a sua essência peculiar, portanto também o modo peculiar da sua objetivação, do seu ser vivo, objetiva-mente efetivo. Não só no pensar, por conseguinte, mas com todos os sen-tidos o homem é afirmado no mundo objetivo [idem, p. 175].

Quando a pedagogia histórico-crítica coloca em primeiro pla-no a socialização pela escola das formas mais desenvolvidas do co-nhecimento até aqui produzido pela humanidade, seu fundamento é justamente o de que a vida humana na sociedade comunista é uma vida plena de conteúdo da mesma forma que as relações entre os indivíduos na sociedade comunista se tornam plenas de conteúdo. Mostra-se, dessa maneira, o quanto é desprovida de sentido a tão

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repetida oposição entre uma educação escolar voltada para a trans-missão de conteúdos e uma educação escolar voltada para a vida.

Ao afirmar que na sociedade comunista a vida humana é plena de sentido e de conteúdo (duas maneiras de dizer a mesma coisa), estou afirmando que nessa sociedade as relações entre os indivíduos se mostram realmente humanizadas. E isso foi analisado de forma particularmente ilustrativa por Marx ao se referir às rela-ções entre o homem e a mulher:

A relação imediata, natural, necessária do ser humano com o ser hu-mano é a relação do homem com a mulher. […] A partir desta relação se pode portanto julgar o nível inteiro de cultura do ser humano. A partir do caráter desta relação se segue até que ponto o ser humano se veio a ser e se apreendeu como ser genérico, como ser humano; a relação do homem com a mulher é a relação mais natural do ser humano com o ser humano. Nela se mostra portanto até que ponto o comportamento natu-ral do ser humano se tornou humano ou até que ponto a essência huma-na se lhe tornou essência natural, até que ponto a sua natureza humana se lhe tornou natureza. Nesta relação também se mostra até que ponto a necessidade do ser humano se lhe tornou necessidade humana, portanto até que ponto o outro ser humano como ser humano se lhe tornou uma necessidade, até que ponto ele em sua existência mais individual é ao mesmo tempo ser comunitário [idem, pp. 167-168].

A plena humanização das relações entre os indivíduos alcança-da por meio da revolução comunista que transforme a riqueza mate-rial e espiritual universal do gênero humano em conteúdo universal da vida de cada indivíduo é, a meu ver, ao mesmo tempo o horizon-te e o fundamento da pedagogia histórico-crítica.

Referências

Marx, K. (1989). “Trabalho alienado e superação positiva da autoa-lienação humana (Manuscritos econômico-filosóficos de 1844)”. In: fernandes, F. (org.). Marx e Engels: História. 3. ed. São Paulo, Áti ca, pp. 146-181.

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. (1993). Grundrisse. Londres, Penguin Books.

Marx, K. & engels, F. (1989). “Burgueses e proletários (Manifesto do Partido Comunista)”. In: fernandes, F. (org.). Marx e Engels: His-tória. 3. ed. São Paulo, Ática, pp. 365-375.

. (2007). A Ideologia Alemã. São Paulo, Boitempo.

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2. Fundamentos teóricos da pedagogia histórico-crítica*

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Sandra Soares Della Fonte

O tesouro da cultura, dos conhecimentos e das verdades, no qual trabalham as épocas passadas, foi confiado ao professorado, para con-servá-lo e transmiti-lo à posteridade. O professor tem de se considerar

como o guarda e o sacerdote dessa luz sagrada, para que ela não se apague e a humanidade não recaia na noite da antiga barbárie. Essa transmissão tem de suceder por um lado, por meio de um esforço fiel, mas, simultaneamente, a letra só será verdadeiramente frutuosa pela

interpretação e espírito do próprio professor.

Hegel, 1994, p. 23

O educador é frágil e os alunos, de modo mais ou menos confuso, dão conta disso: em relação aos grandes poetas, aos grandes sábios que

evoca, e invoca, ele não passa de um humilde servidor, nunca à altura deles, jamais seguro de ter conseguido, por um instante que seja,

atingir seu valor – e ainda menos de ter logrado comunicá-lo.

SnyderS, 1996, p. 83

* Dedico este texto a Robson Loureiro porque, ao me permitir acompanhar seus estudos entre 1994 e 1996, me presenteou com a chance de conhecer melhor a pedagogia histórico-crítica.

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Quando os tempos não são propícios para as pedagogias críticas ou quando a saída do positivismo é criptopositivista

As primeiras formulações da pedagogia histórico-crítica, pe-dagogia socialista de inspiração marxista, datam de 1979, isto é, ocorrem no período político brasileiro chamado de “abertura e transição democrática”. Esse esforço envolveu inicialmente alguns participantes do grupo da Pós-Graduação em Educação da Ponti-fícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), coordenado pelo professor Dermeval Saviani.

As circunstâncias que lhe serviram de base remetem a duas grandes polêmicas que se instalaram no cenário educacional brasi-leiro e foram identificadas por Duarte (1993): uma com a tecnolo-gia educacional e seus pressupostos positivistas (início dos anos de 1970) e outra com as teorias crítico-reprodutivistas (final dos anos de 1970 e início da década de 1980). Contra essas duas perspecti-vas, afirma o autor, era importante proclamar o caráter político da educação e a inserção da educação na luta contra-hegemônica. A apropriação do marxismo (que já havia sido importante no contex-to das teorias crítico-reprodutivistas) mostrou-se novamente pro-fícua para os estudos e pesquisas que polemizavam com o tecni-cismo pedagógico e com o anúncio de que a educação nada podia fazer além de ser reprodutora das relações sociais capitalistas.

Curiosamente, o momento de formulação inicial da pedago-gia histórico-crítica coincide com um cenário mundial adverso a proposições socialistas. A crise do capitalismo nos anos de 1970 poderia ser vista como o momento propício para que o ideário engendrado após a Segunda Guerra Mundial de aperfeiçoamento do capitalismo falecesse. Contudo, as recessões foram entendidas como produto de intervenções indevidas do Estado. Diante da crise, proclamou-se que o capitalismo precisava de mais merca-do. Assim, longe de promover a falência do ideário de frações da esquerda intelectual pós-guerra, a crise da década de 1970 preser-

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vou-a como elemento importante para a recomposição hegemôni-ca do capitalismo.

Um exemplo disso aparece, no campo acadêmico, em 1979, com a publicação de A condição pós-moderna, por Jean-François Lyotard. O livro segue a trilha de um “pós-marxismo” francês, ca-racterizado por “[…] uma enorme reação, em todos os níveis, con-tra várias tradições marxistas e comunistas na França, tendo como principal alvo, em termos filosóficos, o conceito de totalidade de Hegel/Lukács (identificado, no âmbito político, muitas vezes de modo apressado, ao stalinismo ou mesmo ao partido leninista)” (JaMeson, 2004, p. X).

Como um dos marcos da discussão filosófica contemporânea, tem-se aí um exemplo de resposta histórica engendrada no seio da própria tradição intelectual de esquerda no Ocidente diante não só dos acontecimentos dramáticos que acometeram a humanidade no século XX, mas, especialmente, em função dos fracassos políticos vividos por essa tradição em sua luta contra o capitalismo. Porém, há, aqui, uma novidade em relação aos contrailuminismos anterio-res, como sugere Wolin (2004, p. 3): “[…] uma das peculiaridades do nosso tempo é que os argumentos contrailuministas, outrora prerrogativas exclusivas da direita política, começaram uma nova vida entre representantes da esquerda cultural”, que migram para a direita.

A queda do socialismo real no final dos anos de 1980 e início da década de 1990 entrecruzou o anúncio de “fim da história” e triunfo global do capitalismo com o prognóstico de fim de uma época moderna e a emergência de uma nova era, a pós-moderna. Foi nesse contexto, mais precisamente no início da década de 1990, que presenciamos, na pesquisa educacional brasileira, um fenô-meno de dupla face: de um lado, o arrefecimento das pedagogias críticas; de outro, a entrada do discurso pós-moderno na produção acadêmica em educação. Assim, por um lado, o discurso pós se voltou contra o tecnicismo pedagógico e as teorias educacionais reprodutivistas, mas, por outro, dirigiu-se também contra as pró-prias teorias críticas da educação. Isso não pôde ser percebido de

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forma clara nesse primeiro momento, tendo em vista que a inser-ção inicial do pós-moderno na educação brasileira ocorreu embu-tida nas chamadas propostas pedagógicas construtivistas e intera-cionistas (cf. dUarte, 2000) e em tentativas de amalgamar as teorias críticas e as pós-modernas (cf. silva, 1993).

Contudo, a partir do final da década de 1990, o discurso pós--moderno na educação explicitou sua contraposição às teorias críticas e, em alguns casos, passou-se a falar de teorizações “pós--críticas” em educação (cf. paraíso, 2004). Foi dentro desse espírito que o pós-moderno se disseminou, de maneira capilar, em diver-sos campos investigativos da pesquisa educacional brasileira.

Baseadas no ceticismo epistemológico e relativismo ontoló-gico, as teorizações educacionais “pós-críticas” delineiam sua dis-cordância da neutralidade advogada pelos positivistas: o conheci-mento não é neutro, mas produto dos interesses, valores, crenças de uma comunidade. Com essa posição, a agenda pós delineia sua discordância da neutralidade advogada pelos positivistas: o conhecimento não é neutro, mas produto dos interesses, valores, crenças de uma comunidade.

Não obstante, a despeito de sua luta contra o positivismo, a agenda pós-moderna é portadora de um caráter criptopositivista. O neopositivismo suspende o ontológico e exclui da ciência ques-tões relativas à concepção de mundo. Qualquer referência a uma realidade efetiva soa metafísica para essa perspectiva e, como tal, insignificante em termos científicos. A agenda pós-moderna tem um ponto de partida oposto ao neopositivismo; ela argumenta que é impossível se desviar da ontologia e que o estatuto ontológico da realidade é dado pelos diversos modos de se abordar linguisti-camente essa realidade. Ao efetivar esse relativismo ontológico, a agenda pós-moderna sucumbe, por outra via, à mesma interdição de referência ao real que o neopositivismo.

Além disso, a aparente contestação social do pós-moderno consiste em uma “[…] repulsa de quem está completamente per-suadido, intimamente, da inutilidade do esforço para liberar-se da alienação, e por isto procura e encontra uma autoconfirmação in-

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terior, precisamente na inutilidade da própria rejeição” (lUkács, 2005, p. 20). Ainda que afirme sua filiação à tradição política de es-querda, a agenda pós fortalece, muitas vezes a contragosto de seus anúncios, posições políticas conservadoras. Assim, a associação mais substantiva entre o neopositivismo e a agenda pós-moderna é o compromisso comum com a democracia capitalista. Por todas essas razões, estamos diante de uma relação entre “antípodas so-lidários”, semelhante àquela que Lukács (1979) identificou entre o neopositivismo e o existencialismo.

Dessa maneira, o refluxo das teorizações educacionais críti-cas (em especial, a pedagogia histórico-crítica) nas últimas décadas possui como contrapartida o desenvolvimento, no campo acadê-mico, de um pensamento de direita renovado e refinado em suas formulações, surpreendentemente abraçado por intelectuais que se pretendem de esquerda.

Essa é a atmosfera ideológica que vigora no segundo milênio no campo educacional. Nesse horizonte, a afirmação de uma pe-dagogia crítica de inspiração socialista padece de grandes desafios práticos e teóricos. Por um lado, quando o capitalismo revela a sua face mais perversa e sua impossibilidade de garantir uma vida dig-na a todos, qualquer teoria que assuma a tarefa de desvendar face-tas do mundo objetivo, assim como sistematizar uma intervenção pedagógica compromissada com a emancipação mostra-se como uma necessidade. Wood (1999, p. 21) é incisiva: “[…] se o capi-talismo de fato triunfou, poder-se-ia pensar que agora, mais do que nunca, precisamos de uma crítica a esse sistema”. Por outro, o arcabouço político e ideológico capitalista combate e desacredita esforços dessa natureza, ou seja, questiona a própria necessidade de uma teoria que busque desvendar os meandros e a dinâmica da realidade social.

O contexto histórico impõe aos intelectuais vinculados a pro-posições pedagógicas socialistas um duplo esforço em termos teó-ricos: criticar as correntes burguesas no campo educacional (tarefa mais complexa que outrora, tendo em vista a credencial de esquerda que muitos intelectuais hoje vinculados ao pós possuem); e estru-

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turar fundamentos para sua própria proposição (desafio já detecta-do no início dos anos de 1980 por Dermeval Saviani e que ainda se apresenta atual). Ao ser desafiada a refletir sobre os fundamentos teóricos da pedagogia histórico-crítica, tomo como referência esse diagnóstico.

Acentos teóricos necessários à luta socialista

Considero que a minha tarefa já está contemplada, de modo bastante qualificado, em dois importantes textos apresentados no “Simpósio Dermeval Saviani e a Educação Brasileira”, realizado na cidade de Marília (SP) em 1994: um de Betty A. de Oliveira, in-titulado “Fundamentação marxista do pensamento de Dermeval Saviani”; o outro de Newton Duarte com o título “Elementos para uma ontologia da educação na obra de Dermeval Saviani”.

Confesso que minhas limitações não me permitem acrescen-tar nada de novo ao que Oliveira (1994) e Duarte (1994) já sina-lizaram. Portanto, assumo minha tarefa tautológica. Em outros termos, reconheço a redundância na qual inevitavelmente cairei diante do que já foi elaborado. Porém, tomo a liberdade de indi-car, para este momento, as acentuações teóricas que julgo rele-vantes para o momento no qual vivemos. Desse modo, oriento--me pelo que valeria a pena insistir na luta ideológica contempo-rânea.

1. A realidade existe e é cognoscível

Por um longo tempo, a natureza gozou de existência sem a presença humana. A aparição do mundo humanizado só foi pos-sível a partir do mundo natural (mais precisamente, da natureza orgânica). Isso significa que a natureza é a base para o apareci-mento da vida social. Entretanto, mesmo decorrendo do mundo natural, a vida social inaugura uma nova esfera ontológica, a do ser social. Essa breve consideração sobre a anterioridade da natu-

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reza nos faz discordar das afirmações correntes de que somente ganha ser o que se encontra na esfera da relação humana. Essas tentativas de subjetivação da realidade partem da negação do es-tatuto ontológico do mundo objetivo ou da impossibilidade de a ele ter acesso. Em ambos os casos, a constituição ontológica é de-pendente do ser humano. Há, assim, a transmutação de questões ontológicas em gnosiológicas: a coisa em-si é descartada (porque considerada inexistente ou inacessível) em detrimento da coisa para-nós.

Estar a contrapelo desse processo implica, no âmbito da pro-dução do conhecimento, corroborar o apelo de LUkács (s/d. a, p. 15): “[…] a efetiva exigência que hoje se põe é retornar à efe-tividade existente em si”. A realidade possui uma estrutura he-terogênea que abarca desde o acaso às conexões causais (lUkács, 1979, p. 105). Há, portanto, um jogo que articula as determinações e tendências decisivas da história (isto é, suas leis) e a forma ema-ranhada na qual elas se efetivam. Por essa razão, o real carreia uma intensidade infinita em relação a sua representação. Para Lukács (1972), ela é, por princípio, mais rica e mais multiforme do que os melhores conceitos que se podem elaborar. Assim, por mais atento que seja o pensamento, a realidade é mais comple-xa que o seu reflexo, desafia previsões e, por isso mesmo, alarga e enriquece a consciência. O filósofo húngaro complementa: “É também isto que dá um encantamento imperecível às obras que, conseguindo captar – mesmo que seja aproximadamente – o ines-gotável dinamismo do mundo, sabem evocá-lo em termos ade-quados” (lUkács, 1972, p. 185).

Segundo Lenin (1982, p. 245), o conhecimento é um reflexo da realidade: “O reflexo pode ser a cópia aproximadamente fiel do reflectido, mas é absurdo falar aqui de identidade”. Contra Ba-zárov, Lenin (idem, p. 86) explica que a representação sensorial não é precisamente a realidade que existe fora de nós, mas a sua imagem: “Quer agarrar-se à ambiguidade da palavra russa coin-cidir? Quer fazer crer ao leitor mal informado que ‘coincidir’ sig-nifica aqui ‘ser idêntico’ e não ‘corresponder’?”. Portanto, mesmo

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representações adequadas não passam de aproximações. As leis que daí resultam são tendenciais (Marx, 1985, p. 5), apreendidas por uma análise post-festum. Ademais,

A dialéctica materialista de Marx e de Engels contém certamente o relati-vismo, mas não se reduz a ele, isto é, reconhece a relatividade de todos os nossos conhecimentos, não no sentido da negação da verdade objectiva, mas no sentido da condicionalidade histórica dos limites da aproxima-ção dos nossos conhecimentos em relação a esta verdade [lenin, 1982, p. 103].

O caráter aproximativo não conduz a uma postura cética e re-lativista, mas ratifica a historicidade constitutiva de todo ser exis-tente: o mundo natural, o ser social e suas objetivações.

2. Objetividade não significa neutralidade e totalidade não é tudo

Por derivação, a palavra objetividade vincula-se a objeto, ter-mo proveniente do latim objectus, que significa ação de pôr dian-te, interposição, obstáculo, barreira; objeto que se apresenta aos olhos. Esse significado etimológico é um ponto de partida suges-tivo, pois, afinal, o que se mostra anteposto só pode estar assim se estabelece uma relação de não identidade com aquilo está posto.

Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx evidencia ele-mentos importantes para a sua definição de objetividade. Ele afir-ma que ser objetivo é padecer por ter seu ser fora de si. Esse é um traço de qualquer ser objetivo, inclusive do próprio ser humano. Neste caso, Marx explica: “[…] ele é um ser que sofre, dependen-te e limitado, assim como o animal e a planta, isto é, os objetos de suas pulsões existem fora dele, como objetos independentes dele. Mas esses objetos são objetos de seu carecimento (Bedürfnis), objetos essenciais, indispensáveis para a atuação e confirmação de suas forças essenciais” (Marx, 2004, p. 127).

O desdobramento essencial dessa proposição é que ser ob-jetivo é também ser objeto para um outro ser. Em outros termos,

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sofrer a carência de um objeto implica ser um objeto de neces-sidade para um outro. Portanto, com essa afirmação, Marx não apenas identifica ser e objetividade, mas também demarca o as-pecto relacional da permanente interação objetiva entre seres efe-tivos como tais. Todo existente é objetivo e, portanto, faz parte de um complexo concreto e está em relações diversas e sempre determinadas e, portanto, históricas com outros entes. Nesse sen-tido, segundo Marx (2004), um ser não objetivo é um não ser: ele não tem necessidade de, nem é necessário para um outro; ele não carece de nenhum objeto e não é, para nenhum outro ser, objeto de necessidade; é atemporal. Logo, “Um tal ser seria, em primeiro lugar, o único ser, não existiria nenhum ser fora dele, ele existiria isolado e solitariamente” (idem, pp. 127-128).

Segundo Marx, por sua atividade vital, a essência humana desdobra-se para fora de si e constitui novas objetividades. Por sua vez, são essas mesmas objetivações que ele precisa suprassu-mir. Assim, o ser humano também é padecedor de carências. A ele falta a determinação de seu ser materializada em objetivações historicamente produzidas pelo trabalho – o mundo das produ-ções culturais genéricas; no entanto, essa falta o impulsiona em direção a essa externalidade que, ao ser apropriada, cria condi-ções para novas objetivações. Somente com a apropriação des-se universo de objetivações produzidas histórica e socialmente o sujeito pode formar-se. Portanto, a subjetividade humana só se constitui a partir dessa base objetiva sobre a qual ela, ao ser constituída, também age.

Como se percebe, a noção de objetividade implica a totalida-de e a história. Dessa maneira, se pensarmos tanto em termos natu-rais, como também sociais, a objetividade remete para a existência de objetos antepostos e na condição de inter-relacionamento. Por isso, afirma Lessa (1999), todo objeto é, por sua essência, proces-sualidade. Ser é totalidade, ser é historicidade. Cada elemento ganha existência a partir da totalidade de relações nas quais está mergulhado e que lhe constituem. Como observa Lessa, a exigên-cia metodológica da prioridade da totalidade vem do alicerce on-

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tológico do método. Por ser o real uma totalidade complexa, uma síntese de múltiplas determinações, é que a consciência precisa apreender essa totalidade real (lessa, 1999).

As formas de conhecimento humano são variadas; cada qual possui caminhos diferentes de apreender a realidade, graus distin-tos de complexidade e sistematização, assim como assume objeti-vações específicas. Às vezes, o conhecimento encontra-se restrito a sua direta utilidade para uma prática imediata; outras vezes, afas ta-se do objetivo imediato de uma prática específica e generali-za-se para outras finalidades. A variedade de conhecimento reme-te a uma complexa teia na qual cada conhecimento tem sua pecu-liaridade, mas, ao mesmo tempo, tangencia e dialoga com outros modos de conhecer, em um processo de aproximação infinita com a realidade; processo infinito, nem por isso impossível de ocorrer. Desse modo, o conhecimento objetivo orienta-se pela perspectiva da totalidade, apreende e expressa, em um esforço aproximativo, as processualidades históricas que tecem o real.

Há uma imbricação entre conhecimento e interesses e com-preensões prévias. Lukács constata que “[…] a práxis social sem-pre se desenrola dentro de um ambiente espiritual feito de repre-sentações ontológicas, tanto na vida cotidiana como no horizonte das teorias científicas” (lUkács, s/d. b, p. 28), ou seja, “[…] o agir interessado representa um componente ontológico essencial, ineli-minável, do ser social” (lUkács, 1979, p. 25). Ele acrescenta que, em certas circunstâncias históricas e sociais, os interesses de grupos e classes sociais podem deformar ou favorecer a compreensão de fatos. Logo, o agir interessado também pode possuir um conteúdo de verdade, referente ao mundo objetivo. Agir interessado e objetivi-dade não são termos necessariamente incompatíveis. Como expli-ca Saviani (1991, p. 62), “Com efeito, se existem interesses que se opõem à objetividade do conhecimento, há interesses que não só não se opõem como exigem essa objetividade”.

A partir dessas considerações, percebe-se que a guerra con-temporânea ao “[…] terrorismo da noção de totalidade” (lyo-tard, 1993, p. 46) é um sintoma que, no campo da produção do

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conhecimento, necessita ser problematizado. Como faz Eagleton (1998, p. 125), “Precisamos perguntar-nos por que então, justo no momento histórico em que esse sistema estava se tornando mais ‘total’ que nunca, alguns intelectuais radicais começaram a denun-ciar toda a noção de totalidade como um sonho ruim”. Responder a tal indagação é uma tarefa complexa e possivelmente não po-deríamos fur tar-nos de compreender percalços construídos pela vulgarização do marxismo e por segmentos políticos sectários da tradição socialista ao longo do século XX. Porém, se essa autocríti-ca é necessária, também não podemos desviar-nos dos desdobra-mentos políticos que a apologia do micro e do local provocou e ainda provoca. Por isso, Eagleton (idem, p. 20) alerta: “Não buscar a totalidade representa apenas um código para não se considerar o capitalismo”.

3. Ser contra o relativismo cultural não é ser contra a multiplicidade da cultura

Aqueles que se aventuram a anunciar suas discordâncias com os chamados Estudos Culturais, Multiculturalismo e/ou Intercul-turalismo correm o risco de serem rotulados, de modo imediato, de monoculturais ou colonialistas. Afinal, alguém que não fosse pluralista ou multicultural seria o quê? A armadilha de tal argu-mentação reside em considerar que essas formulações teóricas são as únicas que defendem a diversidade da cultura humana.

A meu ver, torna-se cada vez mais imprescindível lutar con-tra o preconceito étnico, contra a discriminação de indígenas, qui-lombolas, homossexuais, estrangeiros, mulheres, deficientes etc. Além disso, também não me parece prudente menosprezar as peculiaridades de alguns grupos sociais em suas lutas legítimas. Entretanto, aqui gostaria de registrar três aspectos que mereceriam um tratamento mais zeloso do que o que serei capaz de dar.

Em A questão judaica, Marx (2002, p. 13) considera egoísmo dos judeus pedir uma emancipação política especial, quando,

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como alemães, “[…] deveriam trabalhar pela emancipação política da Alemanha e, como homens, lutar pela libertação da humanida-de”. Nesse egoísmo reside a incoerência dos judeus de considerar penosa a opressão particular, mas compactuar com a opressão ge-ral. A partir dessa consideração, vemos que as lutas contra situa-ções de opressão e exploração não podem fechar-se em um localis-mo abstrato, porque, na verdade, elas só se fortalecem a partir do horizonte da universalidade.

O segundo ponto que destaco é a importância de se compreen-derem as peculiaridades de algumas lutas e o solo histórico de possí-veis soluções. Aqui recorro a uma reflexão do indiano Aijaz Ahmad. Ele observa que, no campo político, não há nada de estrutural que impeça, por exemplo, o Estado norte-americano de absorver as pressões dos movimentos gays, situação que não ocorre no caso de mulheres e negros. Se considerada a condição dos negros como subclasse distinta na economia estadunidense desde o tempo da escravidão e os processos de feminização do trabalho manual e má remuneração do trabalho feminino, “A questão da justiça para com a vasta maioria das mulheres e negros penetra no próprio âmago da vida americana em sua totalidade e não pode ser inteiramente re-solvida sem transformações revolucionárias” (aHMad, 1999, p. 71). Não se trata aqui de abrandar a importância de alguns movimen-tos sociais. O crucial é que a nossa intervenção política perceba os desafios e os graus de complexidade das lutas sociais de modo que dimensione nossas ações, energias e a natureza dos obstáculos que enfrentaremos.

Por fim, cabe observar que o que se encontra no centro de formulações como Multi/Interculturalismo e os Estudos Culturais não é a defesa da diversidade cultural, mas o relativismo ontoló-gico e o ceticismo epistemológico. Essa constatação permite-nos delinear uma diferença substancial, pois

Uma coisa é aceitar um “relativismo cultural” que respeita a varie-dade da cultura humana; outra, inteiramente diferente, é adotar um relativismo que transforma esses valores culturais variados no único

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ou principal padrão de verdade, de modo que a verdade passa a ser simplesmente o que se ajusta a um dado sistema de crenças, ao invés de aquilo que descreve fielmente o mundo que existe independentemente de nossas crenças [nanda, 1999, p. 100].

Apesar do ímpeto democrático, anti-imperialista, anticolonial de algumas posturas relativistas, aqueles que mais se beneficiam de formulações que defendem a multiplicidade de verdades são grupos conservadores cujos interesses podem, por um lado, ser criticados, quanto à sua pretensão de verdade universal; porém, por outro, são preservados à medida que, mesmo assim, possuem legitimidade e verdade contextual, podem conviver e mesclar-se com outras narrativas culturais. Por essa razão, a francesa Simone de Beauvoir insistia na década de 1950: “A verdade é una; o erro, múltiplo. Não é por acaso que a direita professa o pluralismo” (beaUvoir, 1972, s/p.).

Alguns nortes pedagógicos necessários à luta socialista

Às acentuações teóricas apresentadas no item anterior outras, de igual importância, poderiam ser acrescentadas. O tratamento de apenas três talvez tenha se dado em razão do pouco tempo para a elaboração deste texto e das minhas próprias limitações. Assim, temas como a necessidade de preservar a tensão dialética entre teoria e prática contra esforços de diluir essas dimensões do fazer humano em uma identificação, a distinção da prática como critério de verdade e a prática imediata do pragmatismo, assim como a di-ferença entre a compreensão de linguagem no horizonte da socia-bilidade humana e a linguagem vista como artefato autorreferente, entre outros, também se mostram relevantes no debate teórico do momento.

De modo semelhante, vários são os caminhos que podem evi-denciar as mediações entre essas bases teóricas gerais e o âmbito da teoria pedagógica propriamente dita. Novamente aqui ouso apontar alguns.

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Tendo em vista a luta pela socialização da riqueza material e simbólica que o ser humano produziu e acumulou historicamente, cabe-nos, como intelectuais, por um lado, realizar uma crítica ácida à escola e aos seus mecanismos de privatização do conhecimento e de reprodução da lógica social vigente; por outro, potencializar as fissuras e contradições que permeiam essa instituição e a tornam também um espaço de conflito.

A luta política pela valorização da escola e pelo acirramento das tensões que ela vive passa pela afirmação de um projeto de formação humana omnilateral, entendido como a apropriação ativa do patrimônio cultural pelo indivíduo no processo de autofazer-se membro do gênero humano. Isso demanda alguns compromissos. A valorização do ensino, como tem insistido Duarte (1998), é um deles. Uma proposta afirmativa de ensino não significa o retorno à pedagogia tradicional. A questão posta é outra; trata-se de defen-der a função mediadora que a escola exerce entre o conhecimento espontâneo e as formas culturais elaboradas (saviani, 1991), entre a particularidade do indivíduo e a universalidade do gênero, entre a existência em-si e a para-si.

Essa função efetiva-se pela dialética de continuidade e des-continuidade, como explica Snyders: “A continuidade é a valo-rização da vida, da pessoa, da cultura dos alunos. A ruptura é a confiança nas obras-primas, na ação das obras-primas e no papel da escola de modo que o aluno não fique alheio a elas. Pretendo valorizar o cotidiano e a obra-prima; não pretendo renunciar nem ao cotidiano nem à obra-prima” (1996, p. 161).

No entanto, essa não é a única tensão dialética presente na realização do trabalho educativo escolar. O processo educativo envolve fadiga, obrigações e disciplina. Nesse sentido, o estudo mos tra-se um trabalho fatigante, “[…] um hábito adquirido com esforço, aborrecimento e mesmo sofrimento” (graMsci, 1995, p. 139). A assimilação do saber sistematizado envolve a incorpora-ção de automatismo e elementos exteriores a nós, ou seja, é preciso, segundo Saviani (1991, p. 27), “[…] torná-los parte de nosso corpo, de nosso organismo, integrá-los em nosso próprio ser”. No entan-

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to, a persistência e a repetição inerentes a esse processo são con-dições incontornáveis para a criação e a liberdade: “O estudante precisa saber que seu primeiro poema, seu primeiro desenho pode ser tão pouco original quanto algumas peças de Mozart, mas que quanto mais ele trabalhar, quanto mais apreciar os grandes mes-tres, mais desenvolverá sua originalidade” (snyders, 1991, p. 163).

Nessa perspectiva, longe de assumir um lugar de centralida-de, o professor transforma-se em guarda (nas palavras de Hegel) ou em humilde servidor (como afirma Snyders) do patrimônio huma no--genérico, das riquezas culturais essenciais.

Diz-se, portanto, que a autonomia não está dada a prio-ri; ela constrói-se pelo diálogo com a tradição, logo, a partir da sociabilidade e da heteronomia. Ora, isso implica admitir, com Snyders, que o confronto do aluno com as conquistas humanas essenciais pode também contribuir para a conquista de alegrias essenciais. Portanto, aos momentos de não alegria do processo de transmissão-assimilação de conhecimentos eruditos podem, con-traditoriamente, vincular-se a construção de alegrias e prazeres. Nesse caso, mais do que momentos de contentamento empíricos imediatos, a alegria escolar reside em “[…] abrir a cultura do es-tudante para a vida, não somente em nível corrente, cotidiano […] mas também na altura do mais elaborado, do que há de mais importante nas realizações e esperanças dos homens” (snyders, 1996, p. 88). Nesse mesmo sentido, efetiva-se a dimensão amoro-sa da educação escolar quando se estimula uma atitude apaixo-nada, ao mesmo tempo, passiva e ativa, de padecimento e vigor, do estudante diante das ricas objetivações humanas (della fonte, 2007).

Comemoração de 30 anos da pedagogia histórico-crítica

Simone de Beauvoir observou, ao analisar o pensamento de direita da década de 1950, que “[…] é impossível à burguesia assu-mir pelo pensamento sua atitude prática. Tal é a maldição que pesa

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sobre a sua ideologia” (beaUvoir, 1972, pp. 110-111). Se isso é cor-reto, torna-se premente o exercício de negatividade, tendo como base a própria materialidade histórica.

A teorização crítica ocupa um lugar fundamental no processo histórico. Assim, toda tentativa de desprezar ou esvaziar o lugar da teoria deve ser vista com bastante cautela. Aqui recupero o rela-to de Leandro Konder (1995, pp. 52-53): “Quando o alfaiate alemão Weitling, socialista cristão utópico, manifestou preconceitos contra a teoria e contra os intelectuais no movimento operário, durante uma discussão, Marx deu um murro na mesa e gritou para ele: ‘A ignorância nunca foi útil a ninguém’”.

Contudo, não se trata de transformar a luta socialista em uma conversação ou em combates fraseológicos que se esquecem do mundo existente efetivo (ao molde do projeto revolucionário dos jovens hegelianos). Marx (2004, p. 145) assevera: “[…] a solução dos enigmas teóricos é uma tarefa da práxis e está praticamente mediada, assim como a verdadeira práxis é a condição de uma teo-ria efetiva e positiva”.

Portanto, as lutas ideológicas no campo da produção do co-nhecimento configuram-se como um aspecto de lutas efetivas mais amplas pela superação do capitalismo, assim como também o é o fortalecimento e a valorização da escola.

Assim, nesses 30 anos de pedagogia histórico-crítica, somos chamados a comemorar, isto é, a transformar a recordação em uma tarefa coletiva e compartilhada. O que juntos recordaremos?

Lembraremos do que já passamos e festejaremos o que ainda há por vir. Robson Loureiro, a quem dediquei este texto, escreveu em uma mensagem, com seu tom frankfurtiano, que a comemo-ração de 30 anos da pedagogia histórico-crítica representava uma oportunidade de elaborar o passado dessa perspectiva político--pedagógica. Ele acrescentou: “Continuemos a escovar a história a contrapelo. Se há algo para retirar dos escombros desses 30 anos, esse algo talvez se refira às insistentes tentativas de apagar o con-teúdo de verdade da pedagogia histórico-crítica. E quanto mais fazem isso, mais nos fazem reanimá-la continuamente”.

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Em tese, chegamos à maturidade, mas sabemos que três dé-cadas, em termos de história, talvez ainda representem pouco. Por essa razão, no fundo, o que hoje comemoramos e desejamos tornar célebre e inesquecível é a capacidade de o ser humano fazer-se na história e fazer história; como agente histórico, ele pode efetivar projetos revolucionários, pode dar-se novos modos de vida mais justos e solidários. Hoje honraremos essa alternativa, essa opção histórica que pode ser assumida pela humanidade, mesmo que ela não se efetive no tempo de nossas vidas singulares, como dizia Maria Célia Marcondes de Moraes… Por isso, vida longa à peda-gogia histórico-crítica!

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3. Pedagogia histórico-crítica e psicologia

histórico-cultural

Lígia Márcia Martins

O tratamento que dispensaremos ao tema em questão, peda-gogia histórico-crítica e psicologia histórico-cultural, anuncia-se por assertivas que julgamos, como ponto de partida, fundamen-tais: “[…] a atividade complexa dos animais superiores, submetida a relações naturais entre coisas, transforma-se, no homem, numa atividade submetida a relações sociais desde a sua origem. Esta é a causa imediata que dá origem à forma especificamente humana do reflexo da realidade: a consciência humana” (leontiev, 1978, p. 79).

Nessa mesma direção: “[…] toda função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas vezes, em dois planos; primeiro no plano social e depois no psicológico, em princípio en-tre os homens como categoria interpsíquica e logo no interior da criança como categoria intrapsíquica” (vigotski, 1995, p. 150).

Assim,“Podemos, pois, dizer que a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida sobre a base da natureza humana biofísica. Consequentemente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singu-lar, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (saviani, 2003, p. 13).

Os excertos apresentados, representativos do pensamento de Alexis N. Leontiev, Liev S. Vigotski e Dermeval Saviani (ícones da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica, res-pectivamente), foram selecionados tendo em vista ancorar o prin-cípio geral norteador desta apresentação: a apropriação da cultura por meio do ensino sistematizado, a transmissão de conhecimentos

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clássicos, desponta como unidade básica de análise1 nas relações entre a pedagogia histórico-crítica e a psicologia histórico-cultural.

Pela abrangência e complexidade que a transmissão de co-nhecimentos encerra, somos cientes de que ela poderia ser enfo-cada por inúmeros pontos de vista. Todavia, visamos fazê-lo pela articulação de apenas dois, quais sejam: do ponto de vista gnosio-lógico e psicológico.

Do ponto de vista gnosiológico, a referida transmissão visa oportunizar aos indivíduos a inteligibilidade do real, condição pela qual possam localizar-se no mundo, dominá-lo e atender as suas necessidades. Mas o tratamento dispensado a essa categoria, por sua vez, desdobra-se no destaque de duas outras – a inteligibilida-de e realidade, sintetizadas no princípio segundo o qual é possível a construção do conhecimento objetivo acerca do mundo físico e social.

Foi levando em conta essa possibilidade que tanto L. S. Vigotski quanto A. N. Leontiev buscaram os primeiros elementos para afirmar a natureza social do psiquismo humano, distinguindo-o definitiva-mente do psiquismo animal. Postularam que o desenvolvimento de funções psicológicas superiores, em termos vigotskianos, ou neo-formações, nas palavras de Leontiev, é o atributo fundante da psique dos homens e condição central para os domínios que conquistam sobre o mundo, dentre os quais se destacam as capacidades para torná-lo inteligível.

O tratamento ora dispensado à inteligibilidade do real, objeti-vo central da transmissão de conhecimentos e, consequentemente, da educação escolar, organiza-se em torno de dois pontos: primei-ramente, colocaremos em foco o desenvolvimento do psiquismo como condição por ela condicionada e, na sequência, destacaremos

1 Não preterimos a importância da unidade filosófica existente entre a psi-cologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica, posto que ambas se assentam nos preceitos do materialismo histórico dialético, porém, em face dos objetivos e limites desta apresentação, ela não será, diretamente, objeto de nossas considerações.

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algumas relações entre esse desenvolvimento, a educação escolar e a construção do conhecimento objetivo acerca da realidade.

1. Desenvolvimento do psiquismo

É por meio da atividade vital humana, isto é, do trabalho so-cial, que os homens se relacionam com a natureza para satisfazer suas necessidades, no que se inclui aquelas criadas nesse mesmo processo. E é justamente para melhor captar e dominar a nature-za que os processos mentais se complexificam originando um psi-quismo altamente sofisticado. Assim, a inteligibilidade acerca dos fenômenos da realidade é conquista do desenvolvimento histórico da atividade humana e, portanto, condição para que os sujeitos se insiram nela.

Mas, afinal, o que devemos entender por psiquismo? Outra coisa senão unidade material e ideal expressa na subjetivação do ob-jetivo, isto é, na construção da imagem subjetiva do mundo objetivo. É material na medida em que é estrutura orgânica e é ideal posto ser o reflexo da realidade, a ideia que a representa subjetivamente.

Referindo-se a esta questão, Leontiev (1978) deixa claro que não se trata de prescindir da materialidade da imagem (ideia) muito menos contrapor uma à outra (matéria e ideia). Trata-se de situá-las no mundo material da atividade humana, pela qual o psi-quismo se desenvolve e se manifesta como imagem subjetiva, ou, nas palavras do autor, como reflexo psíquico da realidade.

Segundo Luria (1981), essa unidade estrutura-se como um sistema funcional complexo, composto por funções psicológicas. Tais funções, que compreendem sensação, percepção, atenção, me-mória, linguagem, pensamento, imaginação, emoção e sentimento, são categorizadas como funções afetivo-cognitivas. Não obstante essa categorização, é mister compreendê-las operando em contí-nua unidade, como uma totalidade dinâmica em permanente vin-culação e interdependência.

Tomemos, então, tais funções como objeto de uma breve aná-lise. A sensação é a mais elementar das funções, graças à qual os

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estímulos são captados tendo em vista a construção de uma imagem de seus componentes, a serem unificados por meio da percepção, a quem compete a formação da imagem unificada do objeto.

Da íntima relação existente entre essas duas funções resulta, muitas vezes, a indistinção entre suas especificidades, dado que demanda, portanto, o destaque ao grau distintivo de complexida-de que as caracteriza. No momento do nascimento, os órgãos dos sentidos já possuem significativo desenvolvimento, possibilitando à criança respostas motoras, visuais, táteis, gustativas, olfativas, interoceptivas e proprioceptivas. No entanto, tais respostas se as-sentam nos reflexos incondicionados e apenas gradativamente vão adquirindo nova natureza – qual seja, reflexo condicionado.

A percepção, por sua vez, desenvolve-se nesse trânsito, à me-dida que os reflexos incondicionados vão cedendo lugar aos re-flexos condicionados e, posteriormente, às aprendizagens sociais. São resultados de uma estimulação complexa, ou seja, de articu-lações e integrações entre diversas sensações. Nesse sentido, tal como anunciado por Smirnov et al. (1960), podemos dizer que a sensação está para as notas musicais tanto quanto a percepção está para a melodia.

Ocorre, ainda, que o indivíduo vive permanentemente ex-posto a uma miríade de percepções, de tal forma que a captação de todas elas seria impeditiva à organização do comportamento com vista a um fim específico, do que resulta o desenvolvimento da atenção. Graças à atenção pode ser construída a imagem de uma figura em relação a um fundo, ou seja, determinados influxos são selecionados e seus concorrentes são inibidos, possibilitando, as-sim, a concentração em um conteúdo específico.

Bem, mas a experiência humana seria impossível se as ima-gens sobre as quais ocorre a concentração desaparecessem sem deixar vestígios. Por consequência, urge a memória, a quem cum-pre a formação de imagem por evocação daquilo que no passado foi sentido, percebido e atentado. Isto é, a quem compete a fixação, o armazenamento e evocação das experiências.

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Até esse momento nos referimos à formação de imagens psí-quicas, condição tanto aos animais quanto aos homens para a orien-tação na realidade. Todavia, do processo ontogenético pelo qual o homem se diferencia essencialmente dos demais animais decorre uma conquista ímpar: a conversão das imagens em signos e a cons-trução do sistema de signos denominado linguagem.

Graças ao desenvolvimento da linguagem, requerido pela natureza da atividade humana, superamos os limites da represen-tação sensorial imediata da realidade, própria também aos ani-mais, passando a representá-la cognitivamente por meio de pala-vras. Dessa superação resulta a possibilidade para a construção de ideias, que são, a rigor, os conteúdos do pensamento.

Cabe observar que, embora a interconexão entre pensamento e linguagem seja evidente, em suas origens, eles não coincidem. A finalidade primária da linguagem é servir de meio de comuni-cação enquanto a finalidade do pensamento é o conhecimento e a regulação do comportamento. O nexo entre eles, sistematicamente explicado por Vigotski (2001), ocorre no transcurso do desenvol-vimento na medida em que a comunicação passa a demandar o pensamento e ele, a manifestar-se por meio da linguagem.

Destarte, verifica-se no desenvolvimento das funções psico-lógicas um trânsito de superação contínua que implica: captação do real - imagem - signo - palavra – ideia. As ideias manifestam-se como conceitos e/ou juízos. Pelos objetivos da temática em discus-são, interessa-nos conferir um destaque especial à função pensa-mento.

Não obstante a íntima relação existente entre conceitos e juí-zos, consideramos importante destacar que os primeiros refletem as características gerais, essenciais e distintivas dos objetos e fenô-menos da realidade, ou seja, sintetizam propriedades que conferem especificidade ao objeto ou fenômeno. Os segundos compreendem os conteúdos dos conceitos, ou seja, produzem-se pelo estabeleci-mento de conexões e relações entre eles. Nesse sentido, os juízos são sempre manifestações de algo sobre algo (kopnin, 1978).

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E como se formam os conceitos e juízos? Primeiramente, é im-portante observar que a origem das ideias, isto é, do pensamento, é a atividade prática do homem na realidade concreta, objetiva. As-sim, ele surge na base do reconhecimento sensorial, mas o excede amplamente, graças ao desenvolvimento da linguagem e das ope-rações racionais, isto é, da análise/síntese, comparação, generali-zação e abstração. Dediquemo-nos, brevemente, a estas operações.

A análise e a síntese são operações racionais fundamentais e fazem parte de todo pensamento. Graças à primeira ocorre a divi-são mental do todo em suas partes, pela qual as suas qualidades, propriedades e seus aspectos específicos são captados. Já pela sín-tese, tais partes são reunificadas, promovendo novas combinações mentais acerca das referidas qualidades, propriedades e especifi-cidades.

A análise torna possível a comparação, pela qual são estabele-cidas semelhanças e diferenças entre objetos e fenômenos. A com-paração sempre ocorre numa relação determinada, caracterizada pela unidade analítico/sintética. Para comparar-se é necessário separar aspectos específicos e, ao mesmo tempo, unificá-los em outra configuração e, assim sendo, a comparação é uma premissa indispensável para a generalização.

A generalização possibilita a identificação de propriedades gerais de objetos e fenômenos transpondo-os para outros que lhes sejam semelhantes. Nela, separa-se o que é geral, prescindindo de outras qualidades distintivas, destacando-se a identidade de tra-ços comuns, promotores de toda e qualquer classificação.

A generalização une-se necessariamente à abstração, pois o homem não poderia generalizar se não superasse as diferenças que existem objetivamente naquilo que generaliza. A abstração, portanto, pressupõe a representação mental de algo elaborado por superação de sua imagem sensorial e, nesse sentido, só pode ocor-rer a partir de conceitos. Apenas o pensamento, em sua qualidade de abstração, torna possível o alcance daquilo que é essencial nos objetos e fenômenos.

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Pelo exposto, verificamos que o pensamento se desenvolve a partir da atividade prática, colocando-se em curso por meio de operações racionais. Apenas gradativa e paulatinamente vai inde-pendendo das ações dessa natureza (prática) e afirmando-se como atividade teórica. Entretanto, urge afirmar que esta independência é sempre relativa, pois a prática do conjunto dos homens jamais deixará de ser a base e o critério de exatidão do pensamento, e, da mesma forma, o pensamento nunca deixará de ser a mediação central da prática social.

Segundo Davidov (1988), essa mediação é um processo com-plexo e contraditório. Nele, a atividade racional pode expressar o aspecto direto, externo e sensível da realidade e/ou sua existên-cia mediatizada, interna e refletida. Para esse autor, as diferenças de conteúdo do pensamento tornam possível a distinção entre o que denominou pensamento empírico e pensamento teórico (davidov, 1988).

Conforme já analisamos em outro texto (abrantes & Martins, 2008), as proposições de Davidov permitem-nos afirmar que o pen-samento empírico se constitui como representação derivada direta-mente da atividade objetal-sensorial expressa verbalmente por pa-lavras denominadoras, identificando-se com as formas primárias de se pensar. Abarca a identidade e as características distintivas do objeto tal como se revelam em sua existência presente e imediata, indicando aquilo que o fenômeno é em dadas condições. Esse tipo de pensamento, mesmo cumprindo uma importante função no processo de construção do conhecimento sobre a realidade, ainda se revela insuficiente para apreendê-la em suas múltiplas determi-nações, dado que demanda o pensamento teórico.

Diferentemente do pensamento empírico, o pensamento teó-rico expressa-se no estabelecimento de conexões entre os fenôme-nos da realidade e entre suas propriedades e características. Ope-rando por meio de ideias, extrai dimensões do fenômeno que não se revelam sensorial e imediatamente. Ao apreender aquilo que ele é, apreende também como chegou a sê-lo e como poderá tornar-se

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diferente. Assim, apenas pelo pensamento teórico o homem pode captar a realidade em seu movimento e transformação, isto é, em sua historicidade.

Considerando que o dado distintivo entre os homens e os ani-mais reside na capacidade dos primeiros para, muito além de se adaptar à realidade, projetá-la e construí-la por meio do trabalho social, é imprescindível a superação do conhecimento empírico, edificado à luz do pensamento da mesma natureza (empírico) e em direção ao conhecimento conceitual – produzido pelo pensa-mento teórico.

Às propriedades do pensamento teórico competem os do-mínios da criação, o que o torna a forma mais desenvolvida de pensamento já consolidada pela humanidade e, do mesmo modo, expressão da universalidade teórico-prática dos homens. Ao pen-samento teórico, ou conceitual, une-se outra função psicológica: a imaginação.

A imaginação, que é uma função tão complexa quanto o pen-samento, expressa-se na construção antecipada da imagem do pro-duto a ser alcançado pela atividade. Graças a ela, o homem pode criar modelos psíquicos do produto final de uma atividade futura bem como selecionar os meios pelos quais possa realizá-la. Por essa via, otimiza sua capacidade para proposição e resolução de problemas e, consequentemente, para a transformação criativa da realidade.

Tanto quanto o pensamento, a imaginação possui caráter analítico-sintético. Na transformação de representações já constru-ídas, condição para a imaginação, a análise opera desagregando elementos da imagem existente visando a uma nova combinação, que, por sua vez, determina nova síntese. Portanto, a origem obje-tiva da imaginação é a representação da realidade concreta e seu curso pressupõe a ruptura de conexões habituais entre dado objeto e dada imagem, tendo em vista novas conexões, novo objeto, nova imagem, e assim sucessivamente.

Até o presente momento, procuramos apresentar as caracte-rísticas gerais das funções psicológicas sensação, percepção, aten-

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ção, memória, linguagem, pensamento e imaginação, a quem com-pete, fundamentalmente, a construção da imagem subjetiva da rea-lidade concreta, isto é, a construção do conhecimento objetivo. Tais funções são, via de regra, categorizadas como funções cognitivas.

Porém, a realidade concreta afeta o sujeito do conhecimento, isto é, suscita vivências ao mesmo tempo cognitivas e afetivas, ou seja, mobiliza emoções e sentimentos. As funções cognitivas possi-bilitam a construção do reflexo psíquico (imagem subjetiva) dos ob-jetos e fenômenos reais, e como tal devem ser representados. Nessa direção, o produto delas deve ser, sempre, supraindividual.

Diferentemente, as emoções e os sentimentos produzem-se nas relações particulares do indivíduo com o mundo circundan-te, na medida em que os objetos e fenômenos correspondem, ou não, às suas necessidades e exigências sociais que visam atender. Portanto, as respostas afetivas são idiossincráticas, não obstante as semelhanças que, aparentemente, possa haver entre as respostas de diferentes pessoas.

As emoções surgem da atividade cerebral segundo trans-formações registradas a partir do mundo exterior. Expressam-se como reflexo sensorial direto, como reação a qualidades isola-das dos objetos, cumprindo a função de sinalização interna para a orientação da atividade do indivíduo. Mobilizam mecanismos fisiológicos e possuem um caráter intenso, porém circunstancial. Enquanto as emoções animais permanecem subjugadas biologica-mente, as emoções humanas adquirem caráter social ao se imbri-carem aos sentimentos.

Os sentimentos, por sua vez, desenvolvem-se por influência da cultura, quando as reações emocionais, por decisiva influência da linguagem, conquistam significações. Dependem de objetos e fenômenos em conjunto e não de propriedades isoladas deles, mobilizando-se por relações entre realidade presente, experiências passadas e expectativas futuras. Sua expressão é mais prolongada e constante, obedecendo a uma dinâmica figura/fundo, ao contrá-rio das emoções, que são sempre figuras. Graças às expressões das emoções e sentimentos, as imagens construídas por meio das fun-

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ções cognitivas – como posto, supraindividuais – adquirem tam-bém um caráter pessoal particular.

Diante do exposto, esperamos demonstrar, ainda que em li-nhas bastante gerais, a artificialidade de qualquer cisão entre as funções cognitivas e afetivas posto que, umbilicalmente unidas, caracterizam o psiquismo humano e se colocam a serviço da in-teligibilidade do real. Tais considerações nos conduzem ao segundo momento desta exposição, no qual apresentaremos relações entre o desenvolvimento psíquico e a construção de conhecimentos.

2. Educação escolar, desenvolvimento do psiquismo e inteligibilidade do real

Apresentamos uma breve caracterização das funções psico-lógicas com vista à afirmação das relações existentes entre elas e a inteligibilidade do real. Essa assertiva determina, por sua vez, o entendimento da reciprocidade existente entre esses processos. Se, por um lado, o desenvolvimento de um psiquismo superior se revela condição para o entendimento e orientação da atividade humana, por outro é exatamente no exercício dessa atividade que o referido entendimento se institui.

Intencionalmente, o tratamento que dispensamos ao desen-volvimento do psiquismo colocou em relevo uma questão: todas as funções psicológicas corroboram para a formação de imagens mentais. Se buscarmos uma “palavra-chave” para a compreensão delas, imagem é, seguramente, essa palavra. Vejamos por quê.

Sempre que nos referimos a uma imagem, versamos sobre algo que reflete outro algo. No âmbito da presente análise, a formação de imagens aponta na direção da relação sujeito/objeto, edificada na atividade que os vincula. Nessa relação não estamos reconhecendo opostos confrontados exteriormente, mas tomando-os como inte-riores um ao outro.

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Do ponto de vista do polo sujeito, não basta afirmar a constru-ção da imagem do real, isto é, não basta dizer que o sujeito repre-senta subjetivamente o objeto. É preciso, outrossim, adjetivar esta construção, posto que toda imagem possui graus de fidedignidade àquilo que reflete. Ao máximo grau de fidedignidade da represen-tação subjetiva da realidade chamamos de conhecimento objetivo.

Do ponto de vista do polo objeto é preciso, primariamente, afirmar o que tomamos como tal, ou, como realidade. Conforme disposto pela filosofia marxiana, a realidade é uma miríade de fe-nômenos resultantes da matéria em movimento, de processos na-turais e sociais que se transformam continuamente. A realidade objetiva é, pois, a história de suas mudanças, de seu movimento constituinte. Tal movimento não se processa de modo casual, alea-tório, mas é produzido na e pela relação ativa homem-natureza. Portanto, a realidade existe independentemente da consciência dos homens, mas não independe de sua capacidade para nela in-tervirem. A representação subjetiva dela, em sua materialidade, historicidade e essencialidade, é o que compreendemos como co-nhecimento objetivo.

Em síntese, afirmamos a possibilidade de, na relação ativa su-jeito/objeto, construirmos o conhecimento objetivo sobre a realida-de, isto é, torná-la inteligível. Todavia, se por um lado a construção do conhecimento está diretamente ligada à atividade, ela, por si mesma, não engendra plenamente a sua formação. A atividade cognoscitiva demanda o registro e armazenamento das objetiva-ções históricas e ao mesmo tempo a comunicação entre os homens, pelas quais se realizem as apropriações de tais objetivações. Por-tanto, a atividade cognoscitiva edifica-se em condições histórico--sociais de transmissão, isto é, de ensino.

Todavia, a construção do conhecimento objetivo carrega con-sigo outras exigências, dentre as quais se destaca o desenvolvi-mento do pensamento por conceitos. Apenas por sua mediação a realidade será captada em sua gênese e em seu desenvolvimento, ou seja, como síntese de múltiplas determinações.

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Conforme destacamos anteriormente, o pensamento teórico é pré-requisito para a transformação criativa da realidade. Visa o futuro a partir das possibilidades concretas do presente. Ocorre, porém, que esse tipo de pensamento se revela uma conquista do desenvolvimento, uma vez que todo pensamento, em suas origens, é empírico.

Segundo Davidov (1988), as relações que se estabelecem entre pensamento empírico e pensamento teórico não se diferenciam da-quelas que se estabelecem entre a lógica formal e a lógica dialética. Da mesma forma que a lógica dialética não prescinde da formal, mas a toma como momento – como parte de um processo mais amplo e complexo –, o pensamento teórico não prescinde do empí-rico, incorporando-o por superação.

Contudo, essa superação não ocorre espontânea e natural-mente. Ela precisa ser provocada e, portanto, coloca-se na depen-dência de condições planejadas e organizadas em face desse obje-tivo. Logo, a efetivação da possibilidade de superação do pensa-mento empírico em direção ao teórico não se constitui à margem das condições culturais e materiais de desenvolvimento das fun-ções psicológicas e, da mesma forma, das condições educacionais disponibilizadas – dado que reitera a importância ímpar do ensino escolar sobre as dimensões qualitativas dessa formação.

Portanto, a posse, por parte de cada indivíduo particular, dos atributos humanos, no que se incluem as plenas possibilidades do pensamento, é processo socialmente dependente. Para isso ocor-rer, contudo, demanda que forças objetivas operem a esse favor. Tal como postulado pela pedagogia histórico-crítica, operar nessa direção é a função precípua da educação escolar, a quem compete a tarefa de ensinar, isto é, de promover a socialização dos conheci-mentos representativos das máximas conquistas científicas e cul-turais da humanidade, por meio da prática pedagógica, tornando a realidade inteligível.

Mas, mesmo diante do exposto, alguém poderia perguntar--se: o que justifica a ênfase na transmissão dos conhecimentos clássicos, não cotidianos, tão cara à pedagogia histórico-crítica? A

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resposta a essa questão pode ser dada de dois pontos de vista: do ponto de vista da pedagogia histórico-crítica e do ponto de vista da psicologia histórico-cultural.

O primeiro está sintetizado nos excertos apresentados a se-guir, que, não obstante longos, representam emblematicamente a teoria pedagógica em questão:

Os conteúdos são fundamentais e sem conteúdos relevantes, conteú-dos significativos, a aprendizagem deixa de existir, ela transforma-se num arremedo, ela transforma-se numa farsa […]. A prioridade de con-teúdos é a única forma de lutar contra a farsa do ensino.

Por que esses conteúdos são prioritários? Justamente porque o domí-nio da cultura constitui instrumento indispensável para a participação política das massas […]. O dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar o que os dominantes dominam é condição de libertação [saviani, 2001, p. 55].

E mais:

O trabalho educativo é, portanto, uma atividade intencionalmente promovida por fins. Daí o trabalho educativo diferenciar-se de formas espontâneas de educação, ocorridas em outras atividades, também di-rigidas por fins, mas que não são os de produzir a humanidade nos indivíduos. Quando isso ocorre nessas atividades, trata-se de um re-sultado indireto e inintencional. Portanto, a produção no ato educativo é direta em dois sentidos. O primeiro e mais óbvio é o de que se trata de uma relação direta entre educador e educando. O segundo, não tão óbvio, mas também presente, é o de que a educação, a humanização do indivíduo, é o resultado mais direto do trabalho educativo [dUarte, 1998, p. 88].

Destarte, cabe à educação escolar garantir as condições, na-quilo que lhe compete, para o desenvolvimento da consciência transformadora nos indivíduos, “ferramenta” indispensável para que não existam sob imediata ação do meio, mas como sujeitos da história. Esse objetivo não é alcançado nos limites de saberes reiterativos da cotidianidade em detrimento dos conhecimentos clássicos. Entendemos que compete à escola ensinar aquilo que gran-

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de parcela da população não aprenderá fora dela: o conhecimento historicamente sistematizado pela humanidade. Apenas por essa via poderá promover a justa socialização dos produtos do trabalho inte-lectual dos homens e a conquista, por cada indivíduo particular, das possibilidades cognitivo-afetivas neles objetivadas.

O segundo ponto de vista reporta-nos à “escola vigotskiana”, ao afirmar que as funções psíquicas superiores, próprias aos seres humanos, só se desenvolvem no exercício de seu funcionamento. Isso significa dizer que não existe função alheia ao ato de funcionar e à maneira pela qual funciona. Portanto, o grau de complexidade requerido nas ações dos indivíduos e a qualidade das mediações disponibilizadas para sua execução condicionam todo desenvolvi-mento psíquico (vigotski, 1995). Em suma, funções complexas não se desenvolvem na base de atividades que não as exijam e possibilitem, e essa tarefa deve ser assumida na prática pedagógica por meio da transmissão dos conhecimentos clássicos.

Consideramos direito inalienável de todos os indivíduos o seu máximo desenvolvimento, cabendo à educação escolar trabalhar a serviço deste, promovendo a conquista das capacidades intelectuais, das operações lógicas do pensamento, dos sentimentos éticos, enfim, de tudo que garanta, a cada indivíduo, a qualidade de ser humano. Porém, para a efetivação dessa conquista não podemos partir do prin-cípio ingênuo de que quaisquer aprendizagens corroboram para sua realização e, nessa direção, urge superar os ideários que naturalizam a formação humana e preterem a inteligibilidade do real como neces-sariedade e direito de todos.

Na sociedade em que vivemos, universalizadora das relações de exploração do homem pelo homem, que usurpa da grande maioria das pessoas o direito a uma existência digna, a realidade, criada pelos próprios homens, não pode ser mero objeto de percepção, contem-plação passiva e ação adaptativa. Preparar os indivíduos para seu controle e domínio demanda torná-la inteligível e objeto de ações trans-formadoras.

Tais ações exigem, necessariamente, um tipo de pensamento que promova a superação da empiria fetichizada, das aparências –

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sejam elas falsas ou verdadeiras –, instrumentalizando os indivíduos para a atividade consciente, para a transformação das circunstâncias e de si mesmos. É com essa tarefa que entendemos a educação escolar verdadeiramente emancipadora, e a serviço dela colocam-se tanto a pedagogia histórico-crítica quanto a psicologia histórico-cultural.

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4. A educação escolar da criança pequena na

perspectiva histórico-cultural e histórico-crítica

Juliana Campregher Pasqualini

No livro Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, Saviani (2005) resgata as origens da educação escolar, afirman-do que esta constituía outrora uma forma secundária de educa-ção, convertendo-se em forma dominante no interior da sociedade burguesa. Na Idade Média, a transmissão de conhecimentos e das tecnologias prescindia de instituições especializadas e de textos es-critos, sendo a forma dominante de educação a transmissão oral, incorporada aos costumes e ritos, à divisão de tarefas e à tradição (petitat, 1994). Nas palavras de Saviani (2005), a forma predomi-nante de educação era a educação pelo trabalho.

Conforme Duarte (2006), a passagem à sociedade capitalista implicou profundas alterações nas relações entre produção mate-rial, produção do saber e apropriação do saber. Com o desenvolvi-mento das forças produtivas e o deslocamento do eixo do processo produtivo do campo para a cidade e da agricultura para a indústria, a expansão da utilização da escrita e a generalização do conheci-mento sistemático, colocou-se a exigência de universalização da es-cola básica. Assim, com o advento da sociedade burguesa, a forma escolar da educação, antes parcial, secundária e não generalizada, torna-se generalizada e dominante (saviani, 2005).

Ainda segundo Saviani (2005), assistimos, na atualidade, a um fenômeno que pode ser denominado “hipertrofia” da escola, isto é, uma tendência a ampliar sua esfera de ação educativa. É nes-

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se contexto que situamos o surgimento e a consolidação da educa-ção escolar voltada a crianças menores de 6 anos:

[…] há não apenas a tendência a ampliar o tempo de escolaridade do ensino médio para a universidade, da graduação para a pós-graduação e assim por diante, como também a ampliá-la, antecipando seu início. Daí a reivindicação mais ou menos generalizada de educação escolar para a fase anterior à idade propriamente escolar. A chamada educação pré-escolar ou educação infantil é requerida hoje não mais em termos de apenas um ou dois anos, correspondentes ao antigo curso pré-primário, mas desde o zero ano. […] A própria família, em lugar de requerer para si a exclusividade da edu-cação, na primeira infância, tende a exigir a educação escolar desde a mais tenra idade; se possível desde o nascimento. Além desta extensão vertical, há a extensão horizontal. Reclama-se a ampliação da jornada escolar. Pretende-se que as crianças não fiquem apenas três horas por dia na escola mas sim seis, ou até oito horas. Em suma, reivindica-se a escola de jornada integral [saviani, 2005, p. 98, grifo meu].

Assim como o surgimento e estabelecimento da educação es-colar como forma dominante de educação se dá mediante determi-nadas condições de desenvolvimento da sociedade, tal hipertrofia da escola responde a necessidades bastante concretas da sociedade capitalista na atualidade. No que se refere à educação infantil, tais necessidades remetem fundamentalmente à demanda pela força de trabalho feminina (Martins, 2006). Dessa forma, resgatando as origens da educação infantil como segmento educacional, obser-vamos historicamente que a difusão das creches atende essencial-mente à necessidade de guarda dos filhos das famílias trabalhado-ras durante a jornada de trabalho.

Ao longo de sua história, a educação infantil vem sendo compreendida tanto como equipamento de caráter assistencial--custodial, especialmente no caso das creches, quanto como estra-tégia de combate à pobreza, prevenção do fracasso escolar, pre-paração para o ensino fundamental ou mesmo sua antecipação. Trata-se de um segmento historicamente desprovido de identidade, atrelado a finalidades extrínsecas, ora se apoiando em modelos domésticos ou hospitalares (cerisara, 2002), ora reproduzindo o

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formato característico do ensino fundamental – desconsiderando as peculiaridades da faixa etária atendida.

Conforme Martins (2006, p. 69), “[…] desde suas origens, a educação infantil aparece como empreendimento a baixo custo, legado histórico que se expressa nas frágeis expectativas educa-cionais que se tem a seu respeito”. Nesse sentido, corroboramos a afirmação da autora de que a história da educação infantil pode ser caracterizada como uma história da subalternidade, uma história de desqualificação pedagógica marcada pela redução de finalidades de suas instituições.

A partir da década de 1990, ganha força no Brasil um movi-mento de debate acerca da especificidade do trabalho pedagógico na educação infantil e de busca de uma identidade própria do seg-mento.

Desde então, as proposições apresentadas pelos pesquisa-dores da área têm se concentrado em uma perspectiva antiescolar. Defende-se que, em nome de sua especificidade, a educação infan-til deve afastar-se do modelo escolar de atendimento educacional, o qual é considerado prejudicial à faixa etária em questão, como pode ser observado na afirmação de Pinazza (2005, p. 87):

[…] quando procuramos defender a especificidade da pré-escola, fa-zemos isso tentando distanciá-la, a todo custo, dos fazeres escolares, da escolarização. Ao propor a questão dessa forma, estamos assumindo que não convém igualar a pré-escola à escola, porque a escola é muito ruim e ela não vem cumprindo adequadamente seus compromissos com a infância de 7 a 12 anos [grifo meu].

A expressão antiescolar é adotada por Arce (2004) para referir--se a uma abordagem que tem se tornado hegemônica nas pesqui-sas em educação infantil e que se caracteriza pela negação do ato de ensinar e pelas ideias, entre outras, de que o lúdico (prazeroso) deve ser o eixo central na prática educativa e de que a criança deve ditar o ritmo do trabalho pedagógico, cabendo ao professor seguir seus desejos, interesses e necessidades. Tal perspectiva vem sendo denominada por seus proponentes de pedagogia da infância (ou

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pedagogia da educação infantil). Nega-se a pertinência do ensino na educação da criança pequena, bem como a adoção das nomen-claturas aluno e escola para se referir à criança atendida pela insti-tuição de educação infantil e à própria instituição (rocHa, 1999).

A negação do ato de ensinar tem se mostrado uma perspec-tiva hegemônica no campo da educação infantil. O parecer da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (anped) sobre o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, publicado no 7º número da Revista Brasileira de Educação, afirma, por exemplo, que o uso do termo ensino na educação infan-til representa um retrocesso e um desrespeito às especificidades deste segmento: “Ao insistir no uso da palavra ensino ao longo de todo o documento, o Referencial retrocede em relação a todo um debate desenvolvido no país, o qual já obteve consensos impor-tantes a respeito das características específicas que deve assumir a educação e o cuidado da criança pequena em contextos coletivos” (anped, 1998, p. 94).

Em minha pesquisa de mestrado1, tomei como ponto de par-tida um breve exame das proposições dos estudiosos da área, as quais se organizam em torno da ideia da negação do modelo esco-lar para a educação infantil. A análise evidenciou o quanto tal con-cepção aponta para uma violenta descaracterização do papel do professor por meio da negação do ato de ensinar. Corroboro, nesse sentido, a denúncia de Arce (2004, p. 156), que aponta que a visão antiescolar acaba por contribuir para a diluição das fronteiras entre a educação escolar infantil e outras agências socializadoras: “Mas é possível haver educação sem ensino? Se as instituições de educa-ção infantil não tiverem por objetivo último o ensino e a aquisição de conteúdos por parte das crianças, o que caracterizaria a especi-

1 Intitulada Contribuições da psicologia histórico-cultural para a educação escolar de crianças de 0 a 6 anos: desenvolvimento infantil e ensino em Vigotski, Leontiev e Elkonin, defendida em dezembro de 2006 no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Unesp - Araraquara (Cf. pasqUalini, 2006).

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ficidade dessas instituições perante outras como, por exemplo, um clube, onde a criança também brinca e interage?”

Diante desse quadro, entendo que a explicitação de qual deve ser o papel ou a contribuição específica da educação escolar infantil na formação e na promoção do desenvolvimento humano da criança é ainda uma tarefa a se realizar. É preciso caminhar na direção da delimitação de finalidades pedagógicas que, fundadas no conhecimento científico sobre as características e peculiarida-des do desenvolvimento infantil nesse período, possam superar a mera socialização da criança pequena – expressão maior da redução de finalidades que caracterizou historicamente o trabalho desen-volvido nas instituições de educação infantil.

Entendendo que as ideias que vêm sendo produzidas e di-vulgadas no campo da educação infantil pouco ou nada têm con-tribuído para essa superação e buscando contribuir para a com-preensão sobre a especificidade e as potencialidades do trabalho pedagógico dirigido à criança pequena, propus uma investigação teórico-conceitual que teve como objetivo analisar as relações en-tre desenvolvimento infantil e ensino na faixa etária de 0 a 62 anos em obras selecionadas de autores da psicologia histórico-cultural. O acervo pesquisado incluiu obras de L. S. Vigotski, A. N. Leontiev e D. B. Elkonin, nas quais se buscou identificar as especificidades desse período do desenvolvimento infantil sobre as quais possa operar o ensino escolar. A hipótese que orientou a investigação foi a de que a produção teórica dos autores em questão sustenta a defesa do ensino como elemento fundante do trabalho do pro-fessor de educação infantil. Apresentarei a seguir alguns dos re-sultados obtidos na pesquisa, tendo em vista propiciar ao leitor

2 A despeito das recentes mudanças no sistema educacional brasileiro que estabeleceram o ensino fundamental de nove anos, reduzindo a faixa etá-ria atendida pela educação infantil, optou-se na pesquisa pela manutenção da faixa etária de 0 a 6 anos, tendo em vista que os autores pesquisados incluem, em suas investigações teóricas e experimentais, o sexto ano de vida no período pré-escolar do desenvolvimento infantil.

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a compreensão da perspectiva histórico-cultural sobre a educação escolar da criança pequena. Abordarei num primeiro momento a concepção geral de desenvolvimento infantil dessa vertente teóri-ca, destacando as implicações pedagógicas das ideias de Vigotski, Leontiev e Elkonin, e focalizarei em seguida as relações entre de-senvolvimento e ensino na primeira infância (0 a 3 anos) e idade pré-escolar (3 a 6 anos).

1. O desenvolvimento infantil na perspectiva de Vigotski, Leontiev e Elkonin

Alguns elementos se mostram fundamentais para a compreen-são do desenvolvimento infantil em uma perspectiva histórico--cultural, entre eles: o caráter histórico e dialético desse processo, a relação entre desenvolvimento psíquico e atividade, o conceito de funções psicológicas superiores e a relação entre desenvolvimento e aprendizagem.

Vigotski se opôs à compreensão do desenvolvimento infantil como um processo estereotipado de crescimento e maturação de potências internas previamente dadas, como um processo mera-mente evolutivo. Em sua perspectiva, o desenvolvimento não se caracteriza por mudanças puramente quantitativas, mas por rup-turas e saltos qualitativos, isto é, pela alternância de períodos está-veis e críticos. Nos períodos estáveis, o desenvolvimento deve-se principalmente a mudanças “microscópicas” da personalidade da criança, que vão acumulando-se e manifestam-se mais tarde como uma repentina formação qualitativamente nova em uma idade. Nos períodos de crise, produzem-se mudanças e rupturas bruscas e fundamentais na personalidade da criança em um tempo relati-vamente curto (vygotski, 1996).

A concepção do desenvolvimento psíquico como processo dialético está presente também nos trabalhos de Leontiev (2001) e Elkonin (1987b). Leontiev (2001) postula a existência de momen-tos críticos, rupturas e mudanças qualitativas no curso do desen-

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volvimento infantil. Elkonin (1987b, p. 107), apoiado em Vigotski, afirma que o desenvolvimento deve ser compreendido como “[…] um processo dialeticamente contraditório que não transcorre de maneira evolutiva progressiva, mas que se caracteriza por inter-rupções da continuidade, pelo surgimento, no curso do desenvol-vimento, de novas formações”.

Elkonin (1987b) chama a atenção também para a importân-cia de um enfoque histórico do processo de desenvolvimento. De acordo com o autor, certos períodos ou estágios do desenvolvi-mento infantil delineiam-se no curso da história da humanidade, com a alteração do lugar ocupado pela criança nas sociedades. Sua análise acerca da origem histórica do jogo protagonizado (jogo de papéis) ilustra com clareza essa tese. Elkonin (1998) demons-tra, apoiado em estudos antropológicos e etnográficos, que o jogo protagonizado é muito raramente observado em comunidades primitivas e mesmo em sociedades de economia baseada em for-mas rudimentares de agricultura e pecuária; conclui, assim, que a origem desse jogo está relacionada à mudança do lugar ocupado pela criança na vida das sociedades – fundamentalmente no que se refere a seu afastamento da atividade produtiva3.

Fica clara, assim, a importância de considerar-se o vínculo entre criança e sociedade, ou o lugar que a criança ocupa no siste-ma das relações sociais. Vale ressaltar, conforme Elkonin (1998), que esse vínculo entre criança e sociedade, que constituía, a princí-pio – nas comunidades primitivas –, uma relação direta e imediata, apresenta-se na sociedade contemporânea como uma relação me-diada pela educação e pelo ensino.

Nessa perspectiva historicizadora do desenvolvimento infan-til, não é possível estabelecer estágios do desenvolvimento psico-lógico que se sucedam em uma ordem fixa e universal, válida para toda e qualquer criança em todo e qualquer contexto e a qualquer

3 Cf. Elkonin, 1998, capítulo “Acerca da origem histórica do jogo protagoni-zado”.

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tempo. Nesse sentido, Leontiev (2001, pp. 65-66), ao discutir a questão dos estágios de desenvolvimento do psiquismo infantil, afirma:

Nem o conteúdo dos estágios nem sua sequência no tempo, porém, são imutáveis e dados de uma vez por todas. […] As condições histó-ricas concretas exercem influência tanto sobre o conteúdo concreto de um estágio individual do desenvolvimento, como sobre o curso total do processo de desenvolvimento psíquico como um todo. […] Assim, embora os estágios do desenvolvimento também se desdobrem ao lon-go do tempo de uma certa forma, seus limites de idade, todavia, depen-dem de seu conteúdo e este, por sua vez, é governado pelas condições históricas concretas nas quais está ocorrendo o desenvolvimento da criança. Assim, não é a idade da criança, enquanto tal, que determina o conteúdo de estágio do desenvolvimento; os próprios limites de idade de um estágio, pelo contrário, dependem de seu conteúdo e se alteram pari passu com a mudança das condições histórico-sociais.

Diante do exposto, temos como uma primeira constatação que Vigotski, Leontiev e Elkonin concebiam o desenvolvimento infantil como fenômeno histórico e dialético, que não é determi-nado por leis naturais universais mas se encontra intimamente ligado às condições objetivas da organização social e não se de-senrola de forma meramente linear, progressiva e evolutiva, mas compreende saltos qualitativos, involuções e rupturas.

Nessa direção, Leontiev (2001) postula que a situação objeti-va ocupada pela criança no interior das relações sociais em cada período de seu desenvolvimento constitui um aspecto funda-mental para compreender o processo de desenvolvimento psíqui-co. Ao analisar as forças motrizes do desenvolvimento psíquico da criança, o autor afirma que o primeiro elemento a ser conside-rado é que “[…] durante o desenvolvimento da criança, sob a in-fluência das circunstâncias concretas de sua vida, o lugar que ela objetivamente ocupa no sistema das relações humanas se altera” (leontiev, 2001, p. 59). Para ele, essa mudança da posição real ocu-pada pela criança nas relações sociais, que resulta em uma reestru-

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turação de suas relações sociais básicas, é um fator determinante na transição para novos estágios em seu desenvolvimento.

O vínculo entre criança e sociedade realiza-se por meio da atividade da criança. Assim, segundo Leontiev, é preciso analisar o conteúdo da atividade da criança e como essa atividade é consti-tuída nas condições concretas de vida:

Só com este modo de estudo pode-se elucidar o papel tanto das con-dições externas de sua vida, como das potencialidades que ela possui. Só com esse modo de estudo, baseado na análise do conteúdo da própria atividade infantil em desenvolvimento, é que podemos compreender de forma adequada o papel condutor da educação e da criação, operando precisamente em sua atividade e em sua atitude diante da realidade, e determinando, portanto, sua psique e sua consciência [leontiev, 2001, p. 63].

É importante destacar do trecho anterior a referência ao papel do trabalho educativo, que deve operar precisamente na atividade da criança e em sua atitude perante o mundo e, com isso, determinar seu psiquismo e sua consciência. Com tal afirmação, Leontiev não deixa dúvidas quanto ao papel diretivo do trabalho do educador na promoção do desenvolvimento da criança: o educador opera sobre a atividade da criança e determina o desenvolvimento de seu psiquismo. Vale ressaltar que tal postulado se opõe diretamente à concepção do educador como alguém que deve limitar-se a “se-guir as crianças”, conforme expressão do educador italiano Loris Malaguzzi (arce, 2004), representativa da perspectiva antiescolar em educação infantil. Na perspectiva de Leontiev (2001), a análise da atividade da criança visa justamente fornecer ao educador sub-sídios para uma intervenção mais precisa e eficaz no processo de desenvolvimento infantil.

A importância da atividade da criança para seu desenvol-vimento psíquico também foi apontada por Vigotski (2001), que, embora não tenha se debruçado diretamente sobre essa questão, foi bastante claro ao afirmar que o desenvolvimento intelectual infantil deveria ser estudado como resultado da assimilação prática da realidade, ou seja, em estreita relação com a atividade

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prática da criança. Elkonin (1987b), por sua vez, considera que a introdução do conceito de atividade nas investigações sobre o de-senvolvimento do psiquismo e da consciência – essencialmente a partir dos trabalhos de Leontiev e Rubinstein – representou uma grande contribuição para a psicologia soviética.

A análise de Leontiev (2001) sobre o papel da atividade no desenvolvimento intelectual, corroborada por Elkonin (1987b), não se refere, contudo, à atividade da criança em geral, mas a de-terminados tipos de atividade que são mais importantes para o desenvolvimento em determinados estágios do desenvolvimen-to. Trata-se do conceito de atividade principal, ou atividade-guia4. Para Leontiev, a atividade-guia é aquela cujo desenvolvimento governa as mudanças mais importantes nos processos psíquicos e traços psicológicos da personalidade da criança em cada estágio de seu desenvolvimento: “[…] devemos, por isso, falar da depen-dência do desenvolvimento psíquico em relação à atividade prin-cipal e não à atividade em geral” (leontiev, 2001, p. 63).

A atividade-guia não é aquela que ocupa mais tempo na vida da criança em um certo estágio do desenvolvimento; ela tem, de acordo com Leontiev (2001), três características básicas: a) é a ati-vidade no interior da qual surgem e se diferenciam outros tipos de atividade; b) é aquela na qual os processos psíquicos particulares tomam forma ou são reorganizados; c) é a atividade da qual de-pendem, de forma mais íntima, as principais mudanças psicoló-gicas na personalidade infantil. Assim, a transição de um estágio do desenvolvimento a outro na perspectiva desse autor se dá pela mudança do tipo principal de atividade: “[…] surge uma contradi-ção explícita entre o modo de vida da criança e suas potencialida-

4 Em sua tese de doutorado, Zoia Ribeiro Prestes examina obras de Lev S. Vigotski identificando equívocos e descuidos na tradução que redundam em adulterações ou distorções de conceitos fundamentais de sua teoria. Nesse contexto, a autora defende a adoção do termo atividade-guia como tradução mais adequada do termo russo veduschaia deiatelnost, que vem sendo traduzido para o português como atividade principal ou atividade do-minante (prestes, 2010).

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des, as quais já superaram este modo de vida. De acordo com isso, sua atividade é reorganizada e ela passa, assim, a um novo estágio no desenvolvimento de sua vida psíquica” (leontiev, 2001, p. 66).

Leontiev demonstra que o desenvolvimento das funções psicofisiológicas da criança se encontra na dependência de sua atividade, ou seja, dos processos concretos nos quais estão en-volvidos:

[…] qualquer função se desenvolve e é reestruturada dentro do proces-so que a realiza. As sensações, por exemplo, incrementam-se em cone-xão com o desenvolvimento dos processos de percepção dirigidos por um alvo. É por isso que elas podem ser ativamente cultivadas em uma crian-ça, e seu cultivo não pode, de mais a mais, em virtude disso, consistir em um treinamento simples e mecânico das sensações em exercícios formais [idem, p. 77, grifo meu].

Chama a atenção nessa citação a afirmação de que o cultivo das funções psicológicas na criança não pode reduzir-se a um trei-namento simples e mecânico das sensações em exercícios formais. É preciso, diferentemente, que tais funções integrem processos di-rigidos por um alvo, ou seja, é preciso que seu desenvolvimento seja intencionalmente buscado pela criança como condição para a reali-zação da atividade.

Essa constatação tem implicações diretas para a organização do trabalho educativo. Podemos afirmar que não basta expor a criança a estímulos diversos, não basta disponibilizar a ela os ob-jetos da cultura; mais que isso, é preciso organizar sua atividade. Conforme Davidov (1988), a educação e o ensino somente alcança-rão efetivamente suas finalidades se a atividade da criança estiver “sabiamente orientada”. Logo, fica evidente a pertinência da inter-venção intencional do educador no processo de desenvolvimento da criança nessa perspectiva teórica.

Vale ressaltar que o desenvolvimento das funções psicofisio-lógicas e da atividade estabelecem entre si mútua dependência. Além da dependência do desenvolvimento das funções em relação ao desenvolvimento da atividade,

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Há também uma conexão inversa entre o desenvolvimento das funções e o da atividade; o desenvolvimento das funções, por sua vez, torna possível um desempenho melhor da atividade correspondente. Uma distinção apurada entre tonalidades de cor, por exemplo, é frequente-mente o resultado da execução de uma atividade tal como o bordado, mas essa distinção, por sua vez, facilita uma escolha mais apurada das cores para o bordado, isto é, torna possível uma execução mais aprimo-rada dessa atividade [leontiev, 2001, p. 78].

O processo de desenvolvimento das funções psicológicas na criança é também analisado por Vygotski (1995). O autor estabe-lece uma diferenciação entre funções psíquicas elementares ou pri-mitivas e funções psíquicas superiores, exclusivamente humanas. As funções psicológicas elementares são garantidas pelo aparato biológico da espécie e são comuns a homens e animais; são exem-plos de funções elementares a atenção involuntária e a memória imediata. Já as funções superiores têm origem em processos emi-nentemente culturais.

As formas psíquicas elementares são completamente deter-minadas pela estimulação (funcionamento involuntário). As fun-ções superiores, por sua vez, tendem à autoestimulação por meio da criação e do emprego de estímulos-meio artificiais – os signos, que colaboram na determinação da própria conduta do homem. Por-tanto, o traço característico da operação psíquica superior, exclusi-va do homem, é o domínio do próprio processo de comportamen-to, por meio da introdução de signos. São exemplos de funções superiores a atenção voluntária e a memória cultural, entre outras.

Nesse sentido, Vygotski (1995, p. 90) afirma que a peculiari-dade da conduta humana “[…] em primeiro lugar se deve a que o homem intervém ativamente em suas relações com o meio e que, através do meio, ele mesmo modifica seu próprio comportamento, submetendo-o a seu poder”. Assim, enquanto na memória natural “algo se memoriza”, na memória cultural, com a ajuda dos signos, “o homem memoriza algo” (vygotski, 1995).

É importante salientar que esse autor não estabelece uma di-cotomia entre as funções elementares e superiores. Para ele, as for-

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mas inferiores não se aniquilam, mas continuam existindo como instância subordinada às funções superiores.

O desenvolvimento das funções elementares é garantido pelo próprio aparato biológico da criança. Já o desenvolvimento das funções superiores depende, na ontogênese, da apropriação da cultura pela criança. Nessa direção, Leontiev (1978) demonstra que as funções e aptidões especificamente humanas não se transmitem pela via da hereditariedade, mas fixam-se sob uma forma objetiva, exterior aos indivíduos, nos produtos da atividade humana, de-vendo ser apropriadas pelos indivíduos singulares na ontogênese. O processo de apropriação, na análise de Leontiev (1978), dá-se justamente por meio da atividade da criança: ela deve reproduzir a atividade adequada aos objetos da cultura (material e não mate-rial), o que só é possível, como veremos, pela mediação do adulto.

Ao longo do processo de desenvolvimento, a criança assimi-la as formas sociais de conduta e as transfere para si mesma, ou seja, começa a aplicar a si própria as mesmas formas de comporta-mento que a princípio outros aplicavam a ela. Segundo Vygotski (1995), com a introdução de instrumentos culturais externos, que serão internalizados pela criança, as operações psíquicas da crian-ça reor ganizam-se, na direção do autodomínio de seus processos de comportamento. A condição para tal reorganização é uma ope-ração cultural organizada, a princípio, pelo adulto.

Vygotski (1995) ilustra essa premissa ao analisar o desen-volvimento da atenção mediada ou voluntária na criança. O autor afirma que a princípio o adulto dirige/orienta a atenção da criança por meio de palavras, o que desencadeia uma interação da criança com o entorno. Ao final do processo, a criança torna--se capaz de dirigir sua própria atenção, atuando sobre si mesma; para tanto, recorre inicialmente a procedimentos exteriores, poste-riormente internalizando a operação. Nesse sentido, o pesquisador afirma: “[…] o importante é que organizamos para a criança essa operação mediada, dirigimos sua atenção primária e tão somente depois a própria criança é quem começa a organizar-se por si mes-ma” (vygotski, 1995, p. 237).

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A análise de Vygotski (1995) acerca do desenvolvimento das funções psíquicas superiores traz implicações diretas para pensar--se o trabalho pedagógico, pois ressalta a dependência do desen-volvimento psíquico da criança em relação aos processos educa-tivos. Na medida em que se constata que as funções psicológicas superiores têm gênese fundamentalmente cultural e não biológica, conclui-se que o ensino não deve basear-se na expectativa da ma-turação espontânea das funções psíquicas superiores, nem tomar tal maturação como condição prévia para as aprendizagens. Ao contrário, o ensino é responsável por promover seu desenvolvi-mento. Isso significa que a atenção voluntária, a memória mediada e o pensamento abstrato, entre outras funções psicológicas, não se desenvolverão natural ou espontaneamente na criança, mas de-pendem dos processos educativos. Particularmente no que se refe-re à faixa etária atendida pela educação infantil, parece-nos plau-sível afirmar que o ensino deve promover uma primeira etapa do processo de superação das relações naturais e imediatas do sujeito com o mundo (funções elementares) que ascenderão a processos superiores mediante a apropriação de instrumentos culturais.

Vale destacar que essa apropriação de instrumentos cultu-rais, conforme Leontiev (1978), envolve necessariamente a co-municação entre a criança e os adultos. O autor revela que a ati-vidade adequada ao processo de apropriação não se forma por si mesma na criança, pelo contato direto, imediato e espontâneo com os objetos da cultura. Embora em tais objetos estejam encar-nados os modos de ação e as faculdades humanas historicamente elaboradas, é necessária a mediação de outros homens para que se concretize o processo de apropriação. Em consonância com os pressupostos de Leontiev (1978), Elkonin (1987b) afirma que os procedimentos socialmente elaborados de ação com os objetos não estão postos de forma imediata em tais objetos, mas exigem um processo peculiar de apropriação por parte da criança, no qual o adulto aparece à criança como portador de tais procedi-mentos sociais de ação. Assim, podemos constatar que cabe ao professor explicitar para a criança os traços da atividade humana

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cristalizada nos instrumentos da cultura, promovendo, assim, a formação na criança da atividade adequada à apropriação de tais conteúdos culturais. Dessa forma, o professor promove o desen-volvimento psíquico da criança, na direção dos processos psíqui-cos superiores.

A afirmação de Vigotski (2001, pp. 318-319) de que o ensino não deve tomar a maturação das funções psicológicas superiores como condição prévia para as aprendizagens se baseia nos resul-tados de suas investigações empíricas, que revelaram um fato fun-damental: a imaturidade do pensamento no início do processo de ensino-aprendizagem: “[…] a aprendizagem se apoia em proces-sos psíquicos imaturos, que apenas estão iniciando o seu círculo primeiro e básico de desenvolvimento. […] a imaturidade das funções no momento em que se inicia o aprendizado é a lei geral e fundamental a que levam unanimemente as investigações em to-dos os campos do ensino escolar”.

O ensino apoia-se, portanto, naquilo que ainda não está “ma-duro” na criança. Mediante essa constatação, o autor defende que a psicologia e a pedagogia devem libertar-se “[…] do velho equí-voco segundo o qual o desenvolvimento deve necessariamente percorrer seus ciclos, preparar inteiramente o solo em que a apren-dizagem irá construir seu edifício” (idem, p. 332). Para Vigotskii (2001, p. 115), a aprendizagem está sempre adiante do desenvolvi-mento. Podemos afirmar que o ensino e a aprendizagem antece-dem o desenvolvimento para promovê-lo:

[…] a aprendizagem não é, em si mesma, desenvolvimento, mas uma correta organização da aprendizagem conduz ao desenvolvimen-to mental, ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ativação não poderia produzir-se sem a aprendizagem. Por isso, a aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e universal para que se desenvolvam na criança essas características humanas não naturais, mas formadas historicamente. […] todo o processo de aprendizagem é uma fonte de desenvolvimento que ativa numerosos processos, que não poderiam desenvolver-se por si mesmos sem a aprendizagem [gri-fo meu].

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Nessa perspectiva, Vigotski (2001) aponta a existência, para além do nível de desenvolvimento atual da criança, da zona de de-senvolvimento iminente5. O desenvolvimento atual refere-se às ope-rações que a criança é capaz de realizar com autonomia, apoiada nas funções já desenvolvidas (em outras palavras, o que ela já sabe fazer sozinha). A zona de desenvolvimento iminente refere-se aos processos psíquicos ainda não plenamente desenvolvidos, mas em processo de maturação. Em outras palavras, refere-se às possibi-lidades de desenvolvimento da criança criadas pela atividade em colaboração, ou seja, pela atividade sob orientação do adulto ou em colaboração com colegas mais desenvolvidos apoiada nas fun-ções psíquicas ainda em processo de maturação. É justamente na “[…] esfera dos processos imaturos, mas em vias de maturação” (vygotski, 1996, p. 269) que o ensino deve intervir.

Com o conceito de zona de desenvolvimento iminente, Vigotski pretende promover uma revisão das concepções de ensino. O único bom ensino, para o autor, é aquele que passa adiante do desenvolvi-mento e o conduz, atuando sobre aquilo que ainda não está forma-do na criança: “[…] o ensino deve fazer o desenvolvimento avan-çar” (vigotski, 2001, p. 333).

Elkonin (1960a, p. 498) compartilha a perspectiva vigotskiana das relações entre desenvolvimento e ensino, enfatizando o papel diretivo do adulto no processo educativo. Para o autor:

5 Prestes (2010) defende que a tradução que mais se aproxima do termo rus-so zona blijaichego razvitia, no lugar de zona de desenvolvimento potencial, proximal ou imediato, é zona de desenvolvimento iminente. Em sua análise, o termo iminente revela a característica essencial do conceito, qual seja, as possibilidades de desenvolvimento da criança criadas pela atividade em co-laboração, mais do que um suposto imediatismo ou obrigatoriedade de ocorrência sugeridos pelo termo imediato; o termo potencial também é con-siderado inadequado pela autora, uma vez que em nenhuma das obras de Vigotski analisadas em sua pesquisa o autor se refere ao nível potencial de desenvolvimento, mesmo porque, em sua perspectiva, “[…] nada está pre-determinado na criança, há muitos outros aspectos envolvidos para que os processos internos sejam despertados para a vida por meio das atividades--guia” (p. 174).

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O desenvolvimento psíquico das crianças tem lugar no processo de educação e ensino realizado pelos adultos, que organizam a vida da criança, criam condições determinadas para seu desenvolvimento e lhe transmitem a experiência social acumulada pela humanidade no período precedente de sua história. Os adultos são os portadores dessa experiência social. Graças aos adultos a criança assimila um amplo círculo de conheci-mentos adquiridos pelas gerações precedentes, aprende as habilidades socialmente elaboradas e as formas de conduta criadas na sociedade. À medida que assimilam a experiência social se formam nas crianças distintas capacidades [grifo no original].

Assim, de acordo com esse autor, a formação de distintas ca-pacidades na criança se efetiva mediante a apropriação da expe-riência social, num processo organizado e dirigido pelo adulto. O pesquisador chama a atenção, contudo, para a constatação de que nem todos os atos dos adultos têm suficiente influência sobre o desenvolvimento da criança:

Nem todo conhecimento recebido […] influi sobre a formação da per-sonalidade e na conduta da criança. Não qualquer maneira de adquirir os conhecimentos desenvolve as capacidades intelectuais e a atividade intelectual. […] O desenvolvimento do psiquismo não reflete de maneira au-tomática tudo o que atua sobre a criança. O efeito dos agentes externos, a influência da educação e do ensino, dependem de como se realizam estas influências e do terreno já anteriormente formado sobre o qual recaem [idem, ibidem, grifo meu].

Concluindo a análise da concepção geral de desenvolvimento infantil em Vigotski, Leontiev e Elkonin, que incluiu o olhar histó-rico e dialético sobre o fenômeno, o exame das relações entre o de-senvolvimento e a atividade da criança, a compreensão do processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores como re-sultado da apropriação do patrimônio cultural do gênero humano e das relações entre desenvolvimento e aprendizagem, considera-se sintética e representativa a assertiva de Elkonin (idem, p. 502) acerca das forças motrizes do desenvolvimento do psiquismo infantil: “As forças motrizes do desenvolvimento psíquico que atuam mutua-mente são o lugar ocupado pelo indivíduo na sociedade entre as

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demais pessoas, as condições de vida, as exigências que se lhe apresenta a sociedade, o caráter da atividade que realiza e o nível de desenvolvimento alcançado em cada momento dado”.

Os resultados da pesquisa evidenciam o papel diretivo do adulto na promoção do desenvolvimento infantil, que se concre-tiza na organização da atividade da criança e transmissão da ex-periência social acumulada, levando em conta as particularidades essenciais de cada fase do desenvolvimento para fazê-lo avançar. Tal constatação refuta a visão do professor como um mero acompa-nhante do processo de desenvolvimento, enfatizando a importân-cia decisiva de sua intervenção pedagógica intencional na promo-ção do desenvolvimento psíquico da criança.

2. A educação escolar na primeira infância e na idade pré-escolar

Afirmei na introdução deste artigo que a pesquisa aqui rela-tada buscou colaborar no debate acerca da especificidade da con-tribuição da educação escolar infantil para a promoção do desen-volvimento da criança pequena. A partir da concepção de desen-volvimento infantil aqui exposta, acredito ter ficado evidente, em primeiro lugar, que na perspectiva da psicologia histórico-cultural não é possível se pensar o papel do professor de educação infantil como alguém que apenas estimula e acompanha a criança em seu desenvolvimento. O educador é compreendido como alguém que transmite à criança os resultados do desenvolvimento histórico, medeia o processo de apropriação dos objetos culturais e organiza a atividade da criança. Com isso, provoca o desenvolvimento psí-quico da criança, ou seja, promove a formação das funções psico-lógicas superiores.

A tarefa de garantir a apropriação do patrimônio cultural humano é, portanto, a finalidade precípua da educação infantil, assim como dos níveis subsequentes da educação escolar. Com tal afirmação, nos aproximamos da concepção do trabalho educativo

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da pedagogia histórico-crítica: trata-se do “[…] ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humani-dade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (saviani, 1995, p. 17).

Assim, entendo que, em uma perspectiva histórico-cultural e histórico-crítica, a finalidade da educação escolar na primeira infância e idade pré-escolar é transmitir a toda e cada criança o patrimônio cultural do gênero humano, tendo em vista a promo-ção de seu desenvolvimento humano nas máximas possibilidades colocadas para cada faixa etária.

Ainda conforme Saviani (1995), a educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados no processo de humanização dos indivíduos e, de ou-tro lado (e concomitantemente), à descoberta das formas mais ade-quadas para atingir esse objetivo.

Entendo que a contribuição da psicologia do desenvolvimen-to nessa direção consiste na explicitação das especificidades do desenvolvimento infantil nos primeiros anos de vida da criança. Compartilho a perspectiva do psicólogo russo S. L. Rubinstein, ci-tado por Davidov (1988), que afirma que, nas relações entre psi-cologia e pedagogia, o que para uma é objeto, para a outra é condição. Assim, “[…] o objeto da psicologia são as leis do desenvolvimento do psiquismo da criança; desse ponto de vista, o processo peda-gógico é sua condição” (davidov, 1988, p. 58). Por sua vez, “[…] o objeto da pedagogia são as leis específicas da educação e do ensi-no” (idem, ibidem); considerando-se que tais processos intervêm sobre diferentes níveis do desenvolvimento psíquico da criança, o conhecimento dos princípios que regem o desenvolvimento infan-til é condição para seu planejamento6.

6 Considero que, ao apontar o processo educativo como condição para o desenvolvimento psíquico da criança, o autor se afasta das abordagens psicologizantes que foram historicamente predominantes no campo da educação infantil. Tais abordagens preconizam a primazia do conheci-

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Nesse sentido, partindo dos princípios gerais que regem o desenvolvimento infantil descritos na primeira parte desse artigo, busquei avançar, em minha pesquisa, na direção das particulari-dades do desenvolvimento da criança de 0 a 6 anos. Dessa forma, debrucei-me sobre o tema da periodização do desenvolvimento infantil e o desenvolvimento do pensamento da criança nessa faixa etária. A primeira parte da análise apoiou-se fundamentalmente na proposta de periodização do desenvolvimento infantil apresen-tada por Elkonin (1987b), abordando os estágios ou períodos do desenvolvimento pelos quais passa a criança até o sexto ano de vida, a saber: primeiro ano de vida, primeira infância e idade pré--escolar.

Cabe esclarecer que a periodização proposta pelo autor não tem caráter natural ou universal, mas busca compreender como se desenrola o processo de desenvolvimento infantil nas condições históricas objetivas por ele pesquisadas. Nesse sentido, o eixo das análises sobre os períodos do desenvolvimento infantil será a ati-vidade da criança, cujo delineamento é social e historicamente de-terminado.

A periodização do desenvolvimento em uma perspectiva histórico-cultural fundamenta-se, assim, na categoria de atividade--guia, anteriormente apresentada. Para Leontiev (2001) e Elkonin (1987b), determinados tipos de atividade são mais importantes para o desenvolvimento em determinados estágios do desenvolvi-mento, de modo que cada estágio ou período se distingue por uma atividade principal, que guia ou impulsiona o desenvolvimento psíquico. Retomando a perspectiva dialética de Vygotski (1996), temos que durante cada estágio do desenvolvimento se processam mudanças quantitativas, que culminam em uma mudança quali-

mento psicológico, apresentando-o como suficiente ou mais importante na formação do educador que atua com a criança pequena, reduzindo o trabalho do educador a um acompanhamento do desenvolvimento natural ou espontâneo da criança (arce, 2002).

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tativa na transição ao estágio seguinte, a qual se caracteriza justa-mente pela mudança de atividade-guia.

A atividade que guia o desenvolvimento psíquico da criança no primeiro ano de vida é a comunicação emocional direta. O bebê utiliza vários recursos para se comunicar com os adultos, como o choro, o sorriso e o balbucio, e no interior dessa atividade (e a par-tir dela) tomam forma as ações sensório-motoras, de orientação e manipulação. Como evidencia Elkonin (1960a), todas as aquisições da criança nessa fase aparecem por influência imediata dos adul-tos, que, além de satisfazerem todas as suas necessidades, organi-zam seu contato variado (ou não…) com a realidade. Além disso, o déficit de comunicação com o adulto nesse período pode, segundo o autor, trazer significativos prejuízos para o desenvolvimento in-telectual da criança.

Posteriormente, converte-se em atividade-guia a atividade ob-jetal manipulatória, ou seja, a criança passa às ações propriamente objetais, iniciando-se no domínio dos procedimentos socialmente elaborados de ações com tais objetos. Verifica-se, nesse período, um ativo domínio das operações objetais-instrumentais e o desen-volvimento da chamada inteligência prática. Um elemento funda-mental desse período é o surgimento das formas verbais de comu-nicação da criança com os adultos, sendo a linguagem utilizada pela criança essencialmente no contato prático com o adulto, ou seja, para organizar a colaboração com os adultos no interior da atividade objetal conjunta (elkonin, 1987b). A comunicação emo-cional direta com o adulto passa, portanto, a um segundo plano, e ganha destaque a colaboração prática. Vale ressaltar que o domí-nio das ações e operações com os objetos da cultura alcançado nes-sa fase do desenvolvimento é impossível sem a participação dos adultos, que as mostram para a criança e as realizam juntamente com ela, evidenciando-se novamente a importância dos processos educativos para que o desenvolvimento psíquico possa avançar.

O período seguinte, a idade pré-escolar, que se estende em ge-ral do terceiro até o sexto ano de vida, tem como atividade-guia o jogo de papéis. Nessa atividade, as crianças reproduzem e apropriam-

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-se das relações sociais e do sentido social das atividades humanas (leontiev, 2001), e aprendem a subordinar seu comportamento às exigências do papel que representam (elkonin, 1987a). As crianças refletem no jogo a realidade que as circunda, de modo que, confor-me Mukhina (1996, p. 157), “[…] quanto mais ampla for a realida-de que as crianças conhecem, tanto mais amplos e variados serão os argumentos de seus jogos”, sendo o inverso necessariamente verdadeiro. Conclui-se, portanto, que a educação escolar infantil deve garantir a ampliação do círculo de contatos da criança com a realidade.

A respeito da intervenção do professor na brincadeira, Elkonin (1987a) considera que as funções do pedagogo na organização dessa atividade não são tão claras e definidas quanto em outras tarefas, mas reafirma a importância de um bom direcionamento pedagógi-co para que a brincadeira possa promover o desenvolvimento psí-quico em toda a sua potencialidade. Na perspectiva do autor, a in-tervenção do professor pode dar-se tanto na seleção de temas para a brincadeira, quanto na distribuição dos papéis entre as crianças e sugestão/definição dos acessórios a serem utilizados. A interven-ção pedagógica mostra-se ainda fundamental para a formação de atitudes na criança.

Em razão dos limites objetivos deste artigo, não será possível nos aprofundarmos na complexa discussão sobre a periodização do desenvolvimento infantil7. No entanto, acredito que as ideias

7 Um aspecto fundamental que não poderá ser aqui explorado se refere à tentativa de Elkonin (1987b) de captar a unidade entre os aspectos intelec-tual e afetivo no desenvolvimento da personalidade. O autor sugere que os períodos do desenvolvimento infantil podem ser agrupados em épocas, quais sejam: primeira infância, infância e adolescência. Cada época seria constituída de um período em que prepondera o desenvolvimento afetivo--motivacional (pela apropriação dos sentidos fundamentais das atividades humanas), seguido de um período em que prepondera o desenvolvimento intelectual-cognitivo (pela apropriação de habilidades e procedimentos so-cialmente elaborados de ação com os objetos). As atividades do primeiro grupo promovem o desenvolvimento de novos motivos e necessidades na criança, “preparando o terreno” para as habilidades cognitivas a serem de-

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aqui apresentadas já permitem identificar algumas características do desenvolvimento da criança que devem orientar o trabalho educativo junto a cada faixa etária.

Como vimos, a atividade-guia é aquela na qual os processos psíquicos particulares tomam forma ou são reorganizados. Além disso, é em seu interior que surgem e se diferenciam outros tipos de atividade. Dessa forma, o professor de educação infantil deve-rá organizar o trabalho pedagógico tendo em vista as atividades que promoverão as principais mudanças psicológicas na persona-lidade infantil em cada estágio do desenvolvimento, inserindo os conteúdos escolares e as funções psicológicas que se pretende de-senvolver na criança na estrutura dessas atividades.

Cabe esclarecer que o fato de um determinado tipo de ati-vidade figurar como principal em um determinado período do desenvolvimento não significa, de forma alguma, que não exista simultaneamente desenvolvimento em outras direções: “Na vida surgem novos tipos de atividade, novas relações da criança com a realidade. Seu surgimento e conversão em atividades principais não eliminam as atividades existentes anteriormente, elas apenas mudam de lugar no sistema geral de relações da criança com a rea-lidade, tornando mais ricas essas relações” (elkonin, 1987b, p. 122).

O educador deverá, portanto, articular os objetivos pedagó-gicos e a diversidade de atividades da criança tendo em vista a atividade-guia daquele período do desenvolvimento, como exem-plifica Leontiev (2001, p. 64) ao mencionar a importância da arti-culação entre a instrução e a brincadeira na idade pré-escolar: “Por exemplo, a instrução, no sentido mais estreito do termo, que se desen-volve em primeiro lugar já na infância pré-escolar, surge inicialmente no brinquedo, isto é, precisamente na atividade principal deste estágio

senvolvidas nas atividades do segundo grupo. A comunicação emocional direta e o jogo de papéis são, na análise de Elkonin (1987b), atividades do primeiro grupo, enquanto a atividade objetal manipulatória e a atividade de estudo (característica da idade escolar) são atividades do segundo grupo.

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do desenvolvimento. A criança começa a aprender na brincadeira” (grifo meu).

Outro aspecto importante se refere aos períodos de crise que, na perspectiva de Vygotski (1996), caracterizariam a transição en-tre os estágios. Na análise de Leontiev (2001, p. 67), as crises não são em si necessárias e inevitáveis, apenas o salto qualitativo o é: “[…] não são as crises que são inevitáveis, mas o momento crítico, a ruptura, as mudanças qualitativas no desenvolvimento. A crise, pelo contrário, é a prova de que um momento crítico ou uma mu-dança não se deu em tempo”. Não ocorrerão crises, em sua pers-pectiva, se nos períodos de ruptura e salto qualitativo no desen-volvimento o professor apresentar novas tarefas e exigências que correspondam às potencialidades em mudança da criança e à sua nova percepção da realidade.

2.1 A educação escolar infantil e o desenvolvimento do pensamento da criança

Além da teorização a respeito dos períodos do desenvolvi-mento infantil, encontrei em minha pesquisa elementos para a compreensão das especificidades do desenvolvimento infantil na criança de 0 a 6 anos nas análises de Vigotski acerca do desen-volvimento do pensamento da criança, ou, mais especificamente, da formação de conceitos nessa faixa etária. Pude concluir que, na perspectiva vigotskiana, o pensamento conceitual ainda não é ple-namente acessível à criança de 0 a 6 anos, tendo em vista que a formação do verdadeiro conceito implica processos de abstração e síntese e de tomada de consciência do próprio conceito. No en-tanto, é nesse período que se estabelecem as raízes para o desen-volvimento desse tipo de pensamento, por meio da utilização pela criança de equivalentes funcionais aos conceitos (vigotski, 2001).

O pesquisador descreve os equivalentes funcionais como formações intelectuais originais que em sua aparência externa se assemelham aos conceitos e desempenham efetivamente função

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semelhante na resolução de problemas, contudo, “[…] pela sua natureza psicológica, a composição, a estrutura e o modo de ativi-dade, eles têm tanta relação com os conceitos quanto um embrião com o organismo maduro” (vigotski, 2001, p. 168). Vale ressaltar que a evolução das formas inferiores para as superiores de pensa-mento não se dá por uma mera complexificação quantitativa, mas por mudanças qualitativas.

Ao longo da primeira infância e idade pré-escolar, a criança opera cognitivamente com agrupamentos sincréticos, noções gerais e finalmente com pseudoconceitos. Na transição à idade escolar, segun-do Vigotski (2001), começa a produzir-se a tomada de consciência dos pseudoconceitos da criança. A forma superior de pensamento conceitual mencionada se tornará possível apenas na adolescência, tendo nos conceitos científicos sua expressão mais “pura” (vigotski, 2001). O desenvolvimento de tais conceitos implica formas de ca-tegorização e generalização avançadas, que se caracterizam pelos processos de síntese abstrata e tomada de consciência. Tais proces-sos iniciam seu ciclo de desenvolvimento na idade escolar.

A tomada de consciência e o controle voluntário são traços que começam a se formar na criança apenas no limiar da idade escolar, como resultados das aprendizagens típicas dessa fase do desenvolvimento. Para Vigotski (2001), a tomada de consciência e a voluntariedade podem ser consideradas as novas formações essenciais da idade escolar, de modo que todas as funções básicas envolvidas na aprendizagem própria a esse período giram em tor-no do eixo dessas novas formações. Dessa forma, a idade escolar constitui o período mais propício para o ensino de disciplinas que se apoiam ao máximo nas funções conscientizadas e voluntárias.

Ocorre que a tomada de consciência e a voluntariedade são necessariamente precedidas por um estágio de funcionamento não conscientizado e não voluntário, ou seja, espontâneo. Vigotski res-salta que a formação do conceito e a tomada de consciência de sua existência são aspectos distintos do processo. Afirma, nesse senti-do, que “[…] a criança adquire certos hábitos e habilidades numa área específica antes de aprender a aplicá-los de modo consciente

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e arbitrário [voluntário]” (idem, p. 322), ou ainda, que “para to-mar consciência é necessário que haja o que deve ser conscienti-zado” (idem, p. 286).

Logo, um determinado grau de desenvolvimento dos concei-tos infantis apresenta-se como condição para o desenvolvimento dos conceitos científicos por meio do ensino na idade escolar:

[ …] o sistema e a tomada de consciência a ele vinculada não são tra-zidos de fora para o campo dos conceitos infantis, deslocando o modo próprio da criança de informar e de empregar conceitos, mas que esse sistema e essa tomada de consciência já pressupõem a existência de conceitos infantis bastante ricos e maduros, sem os quais a criança não dispõe daquilo que deve tornar-se objeto de sua tomada de consciência e de sua sistematiza-ção […] [idem, p. 293, grifo meu].

Constata-se, assim, que, na perspectiva de Vigotski, o pré--requisito para a tomada de consciência dos conceitos na idade escolar é a existência de conceitos infantis bastante “ricos e ma-duros”. Um determinado grau de desenvolvimento dos conceitos infantis apresenta-se, assim, como condição para o desenvolvi-mento dos conceitos científicos por meio do ensino na idade es-colar (vigotski, 2001).

Para o pesquisador russo, o desenvolvimento dos conceitos espontâneos da criança deve elevar-se a ponto de a voluntarie-dade e a tomada de consciência manifestarem-se na zona de de-senvolvimento iminente. Uma importante implicação referente ao trabalho pedagógico na educação infantil pode ser extraída des-ta análise acerca do desenvolvimento dos conceitos científicos e espontâneos: cabe ao ensino infantil garantir que o desenvolvi-mento dos conceitos espontâneos atinja efetivamente esse limiar indicado pelo autor.

Só se pode tomar consciência do que existe. Só se pode subordinar a si mesmo uma função atuante. Se até essa idade a criança já ela-borou a aplicação espontânea do “porque”, em colaboração ela pode tomar consciência dele e aplicá-lo voluntariamente. Se nem mesmo no pensamento espontâneo ela ainda não domina as relações expressas pela conjunção “embora”, é natural que no pensamento científico não

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possa tomar consciência do que não possui nem dominar funções au-sentes [idem, p. 343].

Dessa forma, considera-se que o fato de a criança ainda não operar cognitivamente de forma voluntária e consciente com os significados da cultura a ela disponibilizados não significa que o professor não deva adiar o trabalho com o conhecimento cien-tífico para a idade escolar. É possível e desejável inserir conteú-dos científicos nas atividades pedagógicas, pois o trabalho com o conhecimento científico pode promover o desenvolvimento das noções gerais da criança sobre os objetos e fenômenos do mundo, garantindo a formação de conceitos “ricos e maduros”, os quais atuarão como mediadores no posterior desenvolvimento dos conceitos no início da idade escolar.

Tal afirmação se sustenta no postulado de Vigotski (2001) segundo o qual os conceitos espontâneos e científicos se reve-lam interligados por complexos vínculos internos, sendo que os conceitos espontâneos atuam como mediadores da apropria-ção dos conceitos científicos. Portanto, é possível afirmar que a aprendizagem dos conceitos científicos pressupõe um sistema já constituído de conceitos espontâneos, os quais deverão mediar a apropriação dos primeiros. A criança, portanto, só é capaz de assimilar os conceitos científicos pela mediação dos conceitos es-pontâneos.

Vigotski (2001) esclarece, nesse sentido, que os conceitos não se recriam a cada novo estágio. O que se altera a cada estágio do desenvolvimento é a estrutura de generalização, isto é, altera--se a relação do conceito com o objeto, os vínculos e relações entre os objetos refletidos no pensamento, a relação com o significa-do da palavra, o círculo de operações com o conceito possíveis à criança. Se os conceitos espontâneos da criança atuam como me-diadores na apropriação dos conceitos científicos, então é possí-vel inferir que quanto maior a discrepância entre os significados assimilados pela criança na fase espontânea do desenvolvimento de seu pensamento e aqueles a serem assimilados na idade esco-

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lar, maior a dificuldade de superação dos conhecimentos espon-tâneos pelos científicos.

Vale lembrar que esse autor não analisa propriamente a atividade do educador, mas investiga a formação de conceitos do ponto de vista psicológico. O desafio a ser enfrentado pelos pesquisadores em educação e professores que atuam junto a essa faixa etária é a compreensão de como trabalhar o conhecimento científico com crianças que operam – do ponto de vista do funcio-namento cognitivo – com conceitos espontâneos. Trata-se, contu-do, de um desafio que não pode ser respondido exclusivamente pela análise psicológica, mas um objeto de reflexão fundamental-mente pedagógico.

Considerações finais

A pesquisa aqui relatada constituiu um esforço de apropria-ção dos conhecimentos produzidos pelos autores da psicologia histórico-cultural sobre o desenvolvimento infantil como sub-sídio para o debate sobre a educação escolar da criança peque-na. Acredito ter evidenciado que a psicologia russa de vertente histórico-cultural traz inegáveis contribuições e implicações para esse debate. O estudo dos princípios gerais que regem o desen-volvimento psíquico, dos períodos ou estágios desse processo e do desenvolvimento do pensamento da criança compõe a análise do que Rubinstein chamou de leis do desenvolvimento do psi-quismo da criança, cujo conhecimento é condição [essencial mas não suficiente] para o planejamento dos processos de educação e ensino (davidov, 1988).

Pode-se concluir que a perspectiva da psicologia histórico--cultural sobre a educação escolar infantil se coloca na contramão das vertentes hegemônicas de caráter antiescolar, explicitando a dependência do desenvolvimento psíquico da criança em rela-ção aos processos educativos e ao ensino, bem como afirmando a apropriação do patrimônio cultural humano-genérico como con-

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dição para esse desenvolvimento e finalidade última da educação escolar infantil.

O professor de educação infantil não deve, portanto, “seguir as crianças”, mas dirigir o processo educativo. Deve ensinar, en-tendendo-se por ensino toda intervenção intencional e conscien-te do educador que visa garantir a apropriação do patrimônio humano-genérico pela criança, promovendo, assim, seu desen-volvimento psíquico. Em outras palavras, o professor de educa-ção infantil deve transmitir a toda e cada criança os resultados do desenvolvimento histórico do gênero humano. Para tanto, ele precisa organizar a atividade da criança e explicitar os traços da atividade humana cristalizada nos objetos da cultura, como con-dição para o processo de apropriação. Precisa planejar e organi-zar as atividades pedagógicas considerando a atividade que guia o desenvolvimento da criança em cada período, maximizando assim o impacto dos conteúdos escolares sobre o desenvolvimen-to psíquico da criança. Precisa criar condições para a paulatina superação das funções psicológicas elementares, em direção à formação dos processos psicológicos superiores. Precisa inserir o conhecimento científico nas atividades pedagógicas, para garan-tir a formação de pseudoconceitos “ricos e maduros”. Tudo isso, como nos lembra Elkonin, para provocar o surgimento do novo, ou ainda, para provocar revoluções no desenvolvimento infantil, tornando realidade a educação escolar infantil como expressão do direito da criança pequena ao conhecimento e ao desenvolvi-mento humano em suas máximas possibilidades.

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5. Ética marxista e formação moral na escola

Juliane Zacharias Bueno

Esta apresentação trata de um tema de extrema relevância, sobretudo nos tempos decisivos que vivenciamos nestas últimas décadas de acirramento das contradições do capital na reprodu-ção da existência. É efetiva a premência não somente da discussão sobre a ética como principalmente a concretização da ética nas re-lações humanas.

Abordarei a ética pelo viés marxista – a relação entre o ser e o dever-ser que repercute deste método de compreensão da realida-de e o valor moral como aspecto da atividade humana constituído historicamente. Em seguida, apresentarei, em linhas gerais, alguns elementos para a formação moral escolar a partir desta ética.

1. O que é ética?

Etimologicamente a palavra ética vem do grego ethos, que designa os costumes constituídos em uma comunidade pela sua tradição, bem como o comportamento do indivíduo, seu caráter desenvolvido no interior dessa comunidade. No latim, esse termo é substituído pelo termo mos, que possui o mesmo significado.

Nota-se que ética e moral possuem significado etimológico análogo. No entanto, no decorrer da história, esses termos ganham cada um uma definição específica. Desta forma, são atribuídas à moral as formas de comportamento humano julgadas socialmente como boas ou más, justas ou injustas, permitidas ou proibidas; ao passo que a ética se desenvolve como as reflexões filosóficas rea-lizadas em determinada circunstância histórica em relação à mo-

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ral, tanto no que concerne ao fato moral em si nas relações sociais como às diversas formas morais que aparecem em cada sociedade (bUeno, 2009).

Dependendo da maneira como a sociedade reproduz a sua existência, tanto a moral como a ética possuem uma função social específica. Assim, na Grécia antiga, por exemplo, a ética desenvol-vida possuía como imperativo a democracia. Essa democracia, no entanto, era limitada ao cidadão da pólis, excluindo mulheres e escravos. Na sociedade medieval, existiam diversas formas mo-rais: uma no contexto religioso, uma moral cavalheiresca, uma moral entre os nobres, e uma moral entre os plebeus, ao passo que o desenvolvimento ético medieval é atribuído principalmente a São To más de Aquino e Santo Agostinho, que retomaram o pen-samento de teóricos gregos como Platão e Sócrates, convertendo para uma razão justificadora da “revelação” cristã. E por fim, na sociedade capitalista, podemos conferir o desenvolvimento de uma moral voltada para o lucro, a ganância, a concorrência e a mesquinhez. A ética vem funcionar como elemento regulador des-tas relações, pregando justamente o contrário do fato moral predo-minante. Assim, valores anunciados como respeito, solidariedade, amor etc. apresentam-se como entidades abstratas praticamente vazias de sentido objetivo.

A moral é um elemento existente no comportamento humano em todas as formações sociais. Conforme o ser humano desenvolve suas capacidades propriamente humanas e o indivíduo amplia sua autonomia em relação à comunidade onde vive, lhe é possibilita-do também o desenvolvimento de uma autonomia moral, ou seja, amplia-se tanto o discernimento para escolher entre as alternativas existentes nas circunstâncias onde vive como a responsabilidade que é atribuída à sua ação de cunho moral.

Entretanto, ao longo da história, o gênero humano não so-mente progrediu em suas relações; à medida que as formas de manutenção de sua existência ocorreram por meio da exploração do homem pelo homem, este desenvolvimento do ser humano ocorreu de forma contraditória. Assim também no aspecto moral

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se refletem estas contradições. A moral que em si possibilitaria o enriquecimento das relações humanas em razão da sua peculia-ridade de levar o indivíduo a projetar a sua atividade tendo em vista as necessidades da sua comunidade, contraditoriamente se revela, em determinadas circunstâncias, como inviabilizadora des-te processo. Nas relações capitalistas, baseadas na exploração e na propriedade privada, em que as relações humanas são barradas pelas necessidades voltadas à obtenção da mercadoria e à geração de capital, a moral converte-se também na negação do homem em relação ao homem.

2. Concepção de homem e de sociedade

O marxismo compreende o homem como ser que se faz his-toricamente a partir do suprimento de suas necessidades básicas de sobrevivência que ocorre por meio do trabalho. Conforme na história o ser humano intervém na natureza para sobreviver, ele cria instrumentos, desenvolve uma socialidade e uma consciência que viabiliza o desempenho de novas atividades. Estas, por sua vez, criam novas formas de ser que possibilitam a constituição de sua cultura.

As novas gerações, portanto, para viverem na comunidade em que estão inseridas, necessitam apropriar-se de elementos des-ta cultura para poderem inserir-se neste contexto e nele intervir. Desta forma, diferentemente dos outros animais que reproduzem a sua existência unicamente por sua capacidade genética, o ser humano constitui-se como ser social – como ser que, além de es-tabelecer a sua natureza física e biológica, desenvolve sobre essa natureza a sua forma humana, podendo por meio desta intervir na realidade dando a ela novos atributos.

Esta incorporação dos elementos do gênero humano não é uma mera “absorção” subjetiva deste conhecimento e sua repro-dução de forma reflexa, mas uma síntese individual realizada a partir das diversas formações culturais com as quais o indivíduo estabelece relação em sua atividade no decorrer de sua vida. Esta

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apropriação possibilita o desenvolvimento progressivo de media-ções e abstrações em sua subjetividade em relação ao real e a cons-tituição de seu ser em forma de segunda natureza (saviani, 2003).

Desta forma, a história se estabelece como o conjunto das objetivações humanas viabilizadas por meio da peculiaridade do homem de constituir-se como síntese destes múltiplos fatores so-ciais aos quais ele tem acesso, intervindo assim na objetividade e instituindo a permanência dessa história e a sua transformação.

O ser humano apresenta-se como ser singular dotado de ca-pacidades intelectual, sensitiva, afetiva e valorativa, capacidades estas situadas nas circunstâncias sócio-históricas em que está inse-rido; é ser singular porque sua atividade, por mais que reproduza as formações sociais que o circunda, possui mediação de abstra-ções subjetivas, abstrações estas realizadas em maior ou menor grau dependendo das possibilidades a ele dadas de apropriação dos elementos do gênero humano constituído.

O ser humano é também ser genérico – o conjunto das rela-ções humanas e das objetivações por elas alcançadas no decorrer da história, desde os modos de produção da existência material desenvolvidos, até as expressões culturais mais complexas como o direito, a política, a arte e a filosofia.

O desenvolvimento das forças produtivas que possibilitaram uma relativa liberdade do ser humano em relação ao restante da natureza e a criação de formas culturais mais complexas ocorreu, no entanto, de forma contraditória. A divisão social do trabalho e a apropriação privada dos bens produzidos, sistematizados e universalizados nas relações capitalistas, acarretaram ao mesmo tempo um salto qualitativo dessas forças produtivas e também a negação à maioria dos indivíduos a essa riqueza constituída.

A alienação gerada no trabalho realizado sob essas relações repercute na alienação em relação às demais riquezas produzidas pelo gênero humano. Assim, a partir da divisão de classes são apresentados ao indivíduo os elementos do gênero humano aos quais ele deve apropriar-se, restando-lhe – apesar de a ideologia burguesa pregar o contrário – ínfimas possibilidades de ascensão

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neste meio social e possibilidades efetivas quase nulas de apro-priação dos elementos culturais pertencentes à classe dominante.

A moral apresenta-se como um dos aspectos da atividade humana mutilados por esta alienação. Na sociedade capitalista, a contraditoriedade na realização deste valor explicita o seu auge. São anunciados valores voltados para a socialidade humana, po-rém não é questionada a forma de produção da existência que pro-duz valores opostos, o que repercute no esvaziamento de sentido concreto dos valores anunciados.

A autonomia necessária para discernir entre as alternativas existentes na realidade, bem como a responsabilidade sobre a ação executada na atividade humana – e nesta inclui o seu aspecto mo-ral – veem-se comprometidas e precarizadas em função da alie-nação nas relações humanas, tendo em vista que estes elementos da atividade humana só podem ser desenvolvidos plenamente por meio do acesso à cultura humana que viabiliza o desenvolvimento da individualidade.

No entanto, a contraditoriedade revela-se justamente na ex-pressão alienada da existência diante das possibilidades postas objetivamente de superação destas circunstâncias. Historicamente o ser humano desenvolveu as condições não somente para pos-suir uma liberdade suficiente em relação à sua atividade primária de subsistência, mas ainda para que essa liberdade seja colocada como possível na vida de todos os seres humanos igualmente. Confe-rimos na sociedade capitalista a universalização das relações eco-nômicas propriamente sociais, ou seja, relações que possibilitam ao indivíduo se constituir com uma relativa liberdade em relação à comunidade onde vive, compreendendo-se não mais como uma célula da comunidade sem qualquer caracterização que o distinga como ser singular. Porém, enquanto nas comunidades primitivas os seres humanos possuíam uma autonomia extremamente restrita em relação à natureza, e consequentemente ao meio social onde viviam, nas relações capitalistas, apesar de estas condições serem viabilizadas, dada a universalização das relações produtivas, elas são negadas à maioria dos indivíduos, em virtude da base aliena-

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da que sustenta essas relações. O indivíduo nestas circunstâncias cai no extremo oposto: ele não somente se compreende distinta-mente da sociedade em que vive, como se vê desvinculado deste meio, caindo assim numa compreensão individualista e abstrata da realidade. Os outros indivíduos apresentam-se para ele como empecilho ao seu sucesso na realização dos valores dominantes nesta sociedade, o que acaba culminando, nas relações em seu con-junto, num processo de estagnação cultural, em função da busca desenfreada pelo capital e, como podemos verificar nestas últimas décadas, na bancarrota deste meio de reprodução social.

Assim, é colocada objetivamente aos seres humanos a neces-sidade de superação destas condições, viabilizando as possibilida-des constituídas na história de emancipação humana e constitui-ção de relações que projetem novas formas de ser voltadas para o próprio homem e o enriquecimento de suas capacidades.

3. A ética marxista

Diferentemente da visão de mundo dominante que, como vi-mos, compreende as diversas atividades humanas de forma frag-mentada, desvinculando a realidade e o dever-ser – tornando as perspectivas de transformação um conjunto de ideais abstratos –, a ética marxista apresenta-se como afirmação da história, como uma concepção realista de transformação justamente porque o dever-ser que ela projeta parte do ser tal como ele é – da natureza humana precisamente como se desenvolveu na história.

A relação entre a continuidade do ser e a transformação em novas formas de ser no interior do processo histórico reflete o ca-ráter de reprodução e de recriação no ser humano: de sua capacidade de dar continuidade ao que foi constituído pelas gerações ante-riores e sua capacidade de transformar essa realidade constituída. Portanto, nem o ser humano como indivíduo, nem o ser humano como ser genérico são entes prontos e estáticos; o ser humano, por ter a capacidade de transformar o que se lhe apresenta e criar algo

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novo, possui o seu devir – o vir-a-ser – como parte integrante de sua natureza.

A necessidade humana de superação das relações de explora-ção não se apresenta somente como uma questão meramente sub-jetiva, mas como necessidade histórica que impinge objetivamente os indivíduos a superarem estas circunstâncias. Assim, o impera-tivo que emerge da ética marxista se volta para a emancipação hu-mana, não somente como transformação por livre iniciativa parti-cular, mas como vontade humana fundada nas condições objetivas que viabilizam as possibilidades de realização de uma atividade conjunta, coerente e organizada pela transformação das relações de produção baseadas na alienação.

4. Elementos para a formação moral escolar a favor da emancipação humana

A organização em torno de um fim revolucionário não pode ocorrer pela atividade gerada por um conjunto de indivíduos ma-nipulados por uma vanguarda ou por um representante “detentor da verdade”, mas pela força constituída pelos indivíduos cientes de sua situação a ponto de não mais a tolerarem.

Ora, se a consciência humana não é inerente aos indivíduos – nem biológica e, muito menos, espiritualmente – mas resultado da apropriação dos elementos culturais aos quais o indivíduo tem acesso, a educação apresenta-se como questão central na luta re-volucionária.

A escola explicita-se historicamente como instituição que pos-sui o papel de socialização do conhecimento de forma sistemática e elaborada. Na sociedade capitalista, a burguesia atribui à escola a função dominante de reprodução ideológica com a finalidade de manter sua hegemonia. No entanto, para atingir esse fim a bur-guesia também necessita levar os indivíduos da classe trabalha-dora a se apropriarem, mesmo que minimamente, da linguagem escrita e dos conhecimentos historicamente constituídos em suas

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diversas áreas. Assim, à medida que esses indivíduos se apropriam dos elementos do gênero humano, eles têm a possibilidade de uma compreensão mais ampla da realidade e o questionamento sobre a situação em que vivem na classe social em que estão inseridos.

Essa apropriação de forma sistematizada da realidade sócio--histórica permite – dentro dos limites existentes nas relações estabe-lecidas em nossa sociedade – a constituição de uma autonomia rela-tiva no que concerne aos vários aspectos que abrangem a consciência humana, inclusive no âmbito moral. Os elementos que viabilizam a atividade especificamente humana: a liberdade, a responsabilidade, o conhecimento sobre as alternativas existentes, bem como sobre os meios e fins adequados à intervenção sobre esta realidade, possibili-tam uma ação com um nível maior de intencionalidade. O desenvol-vimento dessas características propriamente humanas é indispensá-vel para se estabelecerem possibilidades concretas de transformação da realidade. No entanto, não basta conhecer as circunstâncias; nas palavras de Gramsci (2006, p. 406): “[…] é necessário ‘conhecê-las’ e saber utilizá-las. Querer utilizá-las”.

O ser humano possui a peculiaridade de realizar escolhas diante das alternativas que a realidade lhe apresenta; neste sentido, é obje-tivamente impossível determinarmos inequivocamente as repercus-sões históricas da atividade humana. Contudo, as possibilidades es-tão postas à medida que os indivíduos têm presentes objetivamente em suas vidas as contradições que reproduzem a sociedade capitalis-ta. Desta forma, tornar evidente e inadmissível essas contradições é uma das mediações fundamentais para a luta revolucionária.

Neste sentido, o conhecimento tomado no seu aspecto objetivo, evidenciando as contradições da realidade e as repercussões dela na vida de cada um, bem como o caráter sócio-histórico humano, ou seja, a constatação de que a história é constituída pelo homem e só pode ser transformada por ele, apresenta não somente o potencial educa-tivo voltado para a formação intelectual, como também se articula a valores que impingem à tomada de posição diante da realidade tal como ela é. Assim, a educação não deve ser encarada como ideologi-camente neutra. Ela possui um caráter valorativo que possibilita ao

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indivíduo tomar uma posição ético-política diante das contradições que a realidade apresenta. Por isso a formação escolar não deve ser tomada como meio de inserção do indivíduo no mercado de trabalho ou de adaptação e conformismo em relação à realidade em que vive, mas como forma de humanização dos indivíduos provenientes da clas-se trabalhadora, de tal forma que permita ao indivíduo ser não indi-ferente em relação aos outros e à realidade onde vive, o que repercute numa formação moral voltada não mais para uma moral abstrata, desvinculada do real, mas uma moral concreta, que se realiza a partir da relação do homem com o homem.

Não podemos ignorar o valor contido no acervo cultural sociali-zado na instituição escolar. A seleção do conteúdo e a forma como ele é abordado é parte do trabalho pedagógico, e esse trabalho de forma alguma possui uma suposta neutralidade – constantemente prega-da pelo discurso dominante. Devemos defender intransigentemente a socialização do conhecimento na escola, abrangendo neste acervo cultural as áreas básicas do conhecimento: a língua materna, a mate-mática, as ciências naturais e as ciências sociais.

O acervo em referência inclui a linguagem escrita e a matemática, já incorporadas na vida da sociedade moderna; as ciências naturais, cujos elementos básicos relativos ao conhecimento das leis que regem a nature-za são necessários para se compreender as transformações operadas pela ação do homem sobre o meio ambiente; e as ciências sociais, por meio das quais se pode compreender as relações entre os homens, as formas como eles se organizam, as instituições que criam e as regras de convivência que estabelecem, as quais vão implicar a definição de direitos e deveres. O úl-timo componente, as ciências sociais, corresponde, na atual estrutura, aos conteúdos de história e geografia [saviani, 2005, p. 234].

Não se trata portanto de uma formação moralista, voltada para o propagandismo político ou para qualquer forma de doutrinação, mas da humanização por meio da apropriação dos elementos do gênero humano a ponto de tornar explícitas as contradições da rea-lidade e possibilitar ao indivíduo a tomada de posição diante das alternativas existentes.

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A escola deve ser considerada de forma realista, tendo-se em conta os limites e as possibilidades históricas e políticas que ela nos apresenta. As políticas realizadas pelo Estado na escola con-temporânea têm cada vez mais empobrecido a formação humana dela proveniente. Portanto, evidenciar sua importância histórica na socialização do conhecimento e lutar contra as mazelas provo-cadas pelas políticas estatais na escola pública – como a desvalori-zação do trabalho do professor, a burocratização da rede escolar, a adoção de teorias educacionais que inviabilizam a socialização do conhecimento etc. – tornam-se imperantes na luta pela educação a serviço da emancipação humana.

A defesa da socialização do conhecimento historicamente acumulado em sala de aula apresenta-se não apenas como uma perspectiva educacional com finalidades voltadas à reprodução da sociedade, mas fundamentalmente voltada para a humanização dos indivíduos provenientes da classe trabalhadora com o fim ético--político de superação da sociedade de classes.

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6. A prática pedagógica na perspectiva da pedagogia

histórico-crítica

Ana Carolina Galvão Marsiglia

Durante minha graduação em pedagogia (concluída em 2005), realizei, com bolsa de Iniciação Científica do CNPq, meu trabalho de conclusão de curso intitulado Como transpor a pedagogia históri co--crítica para a prática pedagógica do professor na educação infantil? (Marsiglia, 2005). Nesse trabalho, fiz minhas primeiras aproxi-mações como educadora na perspectiva marxista. Entre 2006 e 2007, coordenei juntamente com a professora Rita de Cássia Bastos Zuquieri, na Secretaria Municipal de Educação de Bauru (SP), o “Grupo de estudos da pedagogia histórico-crítica para a prática pedagógica na educação infantil e ensino fundamental”, no qual tive oportunidade de compartilhar com professores de diferentes áreas do conhecimento experiências de aplicação dessa vertente teórica.

Também em 2006 assumi meu cargo como professora efetiva da rede estadual de ensino de São Paulo, lecionando até 2009 em turmas de alfabetização. Na escola em que trabalhei, E. E. “Ana Rosa Zuicker D’Annunziata”1 (Bauru-SP), fundamentei meu tra-balho na pedagogia histórico-crítica. Considero importante neste

1 A escola permitiu a divulgação de seus dados, bem como todos os traba-lhos com os alunos foram devidamente autorizados por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

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momento agradecer ao corpo diretivo e docente dessa unidade escolar, que sempre teve postura invejável em favor da aprendi-zagem dos alunos, fator primordial para que as escolas assumam seu papel social.

Foi também por meio dessa última experiência profissional que tomei contato com os documentos oficiais da Secretaria de Es-tado da Educação de São Paulo, que oficializam o construtivismo como concepção pedagógica há mais de 25 anos, o que me levou ao meu objeto de pesquisa do doutorado, desenvolvido sob orien-tação do professor Newton Duarte.

Dediquei-me nesse primeiro momento a historicizar meu percurso profissional para demonstrar que uma prática se torna espontaneísta se não há embasamento teórico. Da mesma maneira que uma teoria se torna vazia se não estiver voltada a responder questões colocadas pela prática real dos indivíduos… E, para man-ter essa dialética entre teoria e prática, há que se comprometer com um projeto: de sociedade, de escola, de vida2.

1. Retomando alguns fundamentos

Outras contribuições apresentadas neste livro se destinam a tratar mais extensamente sobre aspectos que aqui não me caberá abordar. Apenas farei alguns apontamentos que indiquem liga-ções da prática pedagógica com seus fundamentos, que devem ser estudados em profundidade para serem incorporados ao trabalho do professor em sala de aula.

2 E falando sobre comprometimento com a perspectiva marxista, a defesa intransigente da escola e uma vida voltada ao ensino, dedico este artigo à professora Adriana J. F. Chaves, aluna do professor Dermeval Saviani no programa de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 1984, lutadora incansável da educação laica, pública, gratuita e de qualidade por mais de cinquenta anos. Foi minha primeira influência marxista e uma das maiores personalidades com quem tive o privilégio de conviver.

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A pedagogia histórico-crítica está comprometida com um projeto educativo fundado em uma visão de ser humano e de sua relação com o trabalho determinada pelo materialismo histórico--dialético.

O trabalho humano pode ser material ou não material e am-bos estão relacionados. O trabalho material produz objetos con-cretos e está ligado à garantia de subsistência humana, enquan-to o trabalho não material está associado à produção de valores, conceitos, habilidades etc. A educação é trabalho não material, pois não produz resultados físicos (objetos) e sim ideias, valores, conceitos etc., sejam de manutenção ou transformação da ordem vigente (saviani, 2003).

Na perspectiva da pedagogia histórico-crítica, a educação es-colar é valorizada, tendo o papel de garantir os conteúdos que per-mitam aos alunos compreender e participar da sociedade de forma crítica, tendo o diálogo entre professores e alunos, o respeito ao desenvolvimento psicológico dos educandos e superando a visão de senso comum, incorporando a experiência inicial do educando ao universo cultural acumulado historicamente pela humanidade (saviani, 2008).

Cabe à educação, portanto, identificar os elementos culturais que devem ser assimilados e as formas mais adequadas a essa as-similação.

No que se refere à identificação dos elementos culturais, a escola deve socializar o conhecimento construído historicamente, possibilitando aos educandos o acesso à cultura erudita (saviani, 2003), superando o senso comum e a imersão na cotidianidade, levando os alunos à desmistificação da realidade, possibilitando compreender a totalidade, a essência que se desvela por detrás da aparência dos fenômenos (kosik, 2002).

Em relação às formas de transmissão/assimilação do conhe-cimento, é importante fazer a distinção entre o principal e o secun-dário, ou seja, selecionar dentre a produção humana, traduzindo em saber escolar, aquilo que é primordial, tornando esse conhe-cimento um conteúdo de ensino do currículo escolar. Também é

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fundamental que o conhecimento seja dosado e sequenciado de forma que garanta a automatização de mecanismos que permitam a tomada de uma posição de reflexão crítica propiciada pelo domí-nio de determinados procedimentos (saviani, 2003).

A pedagogia histórico-crítica desenvolve uma reflexão com proposições concretas, de forma que a crítica a outras correntes teóricas não seja esvaziada pela falta de soluções e organização metodológica do pensamento. Assim, propõe cinco momentos interdependentes: ponto de partida da prática educativa (prática social), problematização, instrumentalização, catarse e ponto de chegada da prática educativa (prática social qualitativamente su-perior) (saviani, 2008).

1. Ponto de partida da prática educativa: neste primeiro momento cabe ao professor conhecer a realidade so-cial dos educandos e nela reconhecer aquilo que deve servir como ponto de partida do processo de ensino e aprendizagem. No entanto, é relevante destacar que considerar a realidade do aluno e utilizar seu conhe-cimento de senso comum como ponto de partida não deve significar oferecer ao aluno tão somente aqui-lo que já está em seu cotidiano. Ao contrário, o pon-to de partida determina os problemas da prática so-cial que devem ser compreendidos em totalidade em busca de sua superação e modificação (saviani, 2008). É importante salientar também que o saber das crianças, baseado em suas experiências do cotidiano, pode contri-buir para a estruturação do início da atividade pedagógi-ca, mas não é condição para ela. Isto por duas razões: pri-meiro, porque as experiências dos alunos são baseadas no senso comum, referem-se ao conhecimento “em-si” e a forma de conhecimento que a escola deve dedicar-se

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a desenvolver é o conhecimento “para-si”3. A segunda razão, decorrente da primeira, é que a escola, dedicando--se ao saber erudito, nem sempre encontrará nos interes-ses imediatos e nos conhecimentos prévios dos alunos os conteúdos que a escola deve transmitir e isso não signi-fica que não se devam criar as necessidades e oferecer os conhecimentos históricos e elaborados. Concordando com Facci, reafirma-se que,

[…] sem dúvida alguma, a experiência da vida cotidiana da criança deve ser levada em conta no processo de ensino--aprendizagem, no entanto o professor deve agir na reestru-turação qualitativa deste conhecimento espontâneo, levando o aluno a superá-lo por meio da apropriação do conhecimento científico-teórico. Na relação dialética entre conceito espontâ-neo e conceito científico, percebe-se o desenvolvimento das FPS4 [facci, 2004, p. 235].

Nesse primeiro momento, o professor tem uma “síntese precária”, pois há conhecimento e experiências em rela-ção à prática social, mas seu conhecimento é limitado, pois ele ainda não tem claro o nível de compreensão dos seus alunos. Por sua vez, a compreensão dos alunos é sincrética, fragmentada, sem a visão das relações que for-mam a totalidade inicial. O primeiro momento do méto-do articula-se com o nível de desenvolvimento atual do aluno, relacionado à prática social do educando, baseado no senso comum de forma fragmentada e caótica. Com isso se pode dizer que esse momento deve, com base nas demandas da prática social, selecionar os conhecimentos historicamente construídos que devam ser transmitidos, traduzidos em saber escolar. O ponto de partida da prá-tica educativa é a busca pela apropriação, por parte dos alunos, das objetivações humanas.

3 Sobre objetivações “em-si” e “para-si”, cf. Duarte, 1999.4 Funções psicológicas superiores.

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2. Problematização: o professor deve apresentar aos seus alunos as razões pelas quais este ou aquele conteúdo es-tão inseridos no planejamento. A problematização, por-tanto, deve conduzir o aluno do conhecimento advindo das relações do cotidiano (conhecimento sincrético, frag-mentado, parcial sobre o fenômeno) para o conhecimen-to científico, que deve ser oferecido na escola, reestrutu-rando qualitativamente o domínio sobre as questões da prática social. É o momento em que “[…] se torna evi-dente a relação escola-sociedade com as questões da prá-tica social (que precisam ser resolvidas) e os conhecimen-tos científicos e tecnológicos (que devem ser acionados)” (vale, 1994, p. 220). Trata-se de colocar em xeque a forma e o conteúdo das respostas dadas à prática social, ques-tionando essas respostas, apontando suas insuficiências e incompletudes; demonstrar que a realidade é composta por diversos elementos interligados, que envolvem uma série de procedimentos e ações que precisam ser discuti-dos. No momento da problematização, o professor preci-sa ter claro como orientará a aprendizagem, baseando-se naquilo que já tem como material da etapa anterior e seus objetivos de ensino. Além disso, seu planejamento deve abordar as diversas dimensões do tema e evidenciar a importância daquele conhecimento, fazendo-o ter senti-do para o aluno, atuando na zona de desenvolvimento iminente5 do educando.

3. Instrumentalização: oferecer subsídios para compreen-der a prática social em suas implicações complexas. Nes-ta etapa, os alunos devem apropriar-se dos instrumentos culturais produzidos pela humanidade; instrumentos es-ses que garantem aos indivíduos participarem da socieda-de de forma qualitativamente superior. A apropriação dos

5 Sobre os conceitos de desenvolvimento atual e iminente, ver o capítulo 4 deste livro, de autoria de Juliana Campregher Pasqualini.

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instrumentos físicos e psicológicos permite a objetivação dos indivíduos, tornando “órgãos da sua individualida-de” o que foi construído socialmente ao longo da história humana. A importância dessa instrumentalização está em possibilitar o acesso da classe trabalhadora ao nível das re-lações de elaboração do conhecimento e não somente sua produção. Segundo Saviani (2003, p. 77):

A produção do saber é social, se dá no interior das relações sociais. A elaboração do saber implica expressar de forma elaborada o saber que surge da prática social. Essa expressão elaborada supõe o domínio dos instrumentos de elaboração e sistematização. Daí a importância da escola: se a escola não permite o acesso a esses instrumentos, os trabalhadores ficam bloqueados e impedidos de ascender ao nível da elaboração do saber, embora continuem, pela sua atividade prática real, a contribuir para a produção do saber.

4. Catarse: etapa culminante do processo educativo, quan-do o aluno não tem mais uma visão parcial e fragmentada do fenômeno, mas sim compreende o todo, o sentido de sua complexidade e do contexto do fato. Há uma trans-formação e a aprendizagem efetiva acontece. É preciso dizer que a catarse não se dá num único e determinado momento, pois se trata da síntese, que vai acontecendo de maneira cada vez mais aprofundada. Na verdade, a apre-sentação de “passos” é um recurso didático. O que há são momentos que se articulam toda vez que se quer ensinar algo. A problematização exige a instrumentalização e esta nada será se não houver apropriação dos instrumentos. O momento da catarse é parte do processo de homoge-neização, “[…] que se efetiva enquanto superação da he-terogeneidade da vida cotidiana” (dUarte, 2007, p. 61). Segundo esse autor (2008, p. 6), “[…] a catarse opera uma mudança momentânea na relação entre a consciência in-dividual e o mundo, fazendo com que o indivíduo veja o mundo de uma maneira diferente daquela própria ao pragmatismo e ao imediatismo da vida cotidiana”. Essa

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mudança, sendo parte de um processo, é caracterizada pela diferença qualitativa entre o antes e o depois da ca-tarse. Sendo assim, o momento catártico modifica a re-lação do indivíduo com o conhecimento, saindo do sin-cretismo caótico inicial para uma compreensão sintética da realidade, relacionando-se intencional e consciente-mente com o conhecimento. Para Saviani (2008, p. 57), nesse momento ocorre “[…] a efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados agora em elemen-tos ativos da transformação social”.

5. Ponto de chegada da prática educativa: quando o aluno problematiza a prática social e evolui da síncrese para a síntese, está no caminho da compreensão do fenômeno em sua totalidade. O primeiro e o quinto momento são a prática social, mas diferem no sentido de que ao final do processo essa prática se modifica em função da aprendi-zagem, sofrendo uma alteração qualitativa (saviani, 2008).

2. A linguagem no desenvolvimento infantil

Antes de adentrar na questão do desenvolvimento da lingua-gem, analisemos uma citação de Gramsci (1966, pp. 13-14):

Se é verdade que toda linguagem contém os elementos de uma con-cepção do mundo e de uma cultura, será igualmente verdade que, a partir da linguagem de cada um, é possível julgar da maior ou menor complexidade a sua concepção de mundo. Quem fala somente o dialeto e compreende a língua nacional em graus diversos, participa necessaria-mente de uma intuição do mundo mais ou menos restrita e provinciana; fossilizada, anacrônica em relação às grandes correntes de pensamento que dominam a história mundial. Seus interesses serão restritos, mais ou menos corporativos ou economicistas, não universais. Se nem sempre é possível aprender outras línguas estrangeiras a fim de colocar-se em con-tato com vidas culturais diversas, deve-se pelo menos conhecer bem a língua nacional. Uma grande cultura pode traduzir-se na língua de outra grande cultura, isto é, uma grande língua nacional historicamente rica e

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complexa pode traduzir qualquer outra grande cultura, ou seja, ser uma expressão mundial. Mas, com um dialeto, não é possível fazer a mesma coisa.

Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”; significa também, e sobretudo, difundir cri-ticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma mul-tidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato “filosófico” bem mais importan-te e “original” do que a descoberta, por parte de um “gênio filosófico”, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais.

Esse trecho destaca a necessidade de desenvolvimento da linguagem para a superação dos limites das objetivações “em-si”, contrapondo-se à visão das pedagogias do “aprender a aprender” (Cf. dUarte, 2001), que situam a linguagem no campo das repre-sentações de cada grupo social. Por detrás do discurso do respeito às particularidades de cada grupo, condicionam-se os sujeitos a um ensino que não contribui para que os indivíduos se aproxi-mem das objetivações “para-si”. Isso pode ser visto, por exemplo, em material da Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo, que vem adotando o construtivismo como concepção peda-gógica há mais de 25 anos:

[…] a alfabetização é um processo, que não se esgota na 1ª série, no sim-ples reconhecimento e uso de sinais gráficos, mas, se estende pelas séries do 1º grau, na apreensão do mundo que se revela em signos, no respeito à expressão do indivíduo, que se manifesta em linguagem própria. Nas 1as séries do 1º grau, a apreensão do mundo se faz pela linguagem oral e a aquisição da leitura e da escrita deve ser a extensão desse mundo, e não a apresentação de um novo mundo que pouco diz ao indivíduo, ou pior ainda, que deve sobrepor-se ao dele ou até anulá-lo [são paUlo, 1983, p. 8, grifo meu].

Ao fazer a defesa do respeito à linguagem do indivíduo, a concepção construtivista afirma que a realidade não deve ser con-siderada una. É como se fosse possível cada um ter a sua realidade e, da mesma maneira, a sua forma de expressão de linguagem. Se

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cada sujeito tem a sua realidade, a sua verdade, o conhecimento aca-ba por perder sua identidade universal, como defendeu Gramsci. O indivíduo só poderá, então, adaptar a sua realidade ao mundo como ele o vê. Este será o processo de conhecimento: a adaptação do mundo aos próprios olhos e adaptação do “olhar” às exigências circunstanciais do cotidiano. As implicações dessa visão ao proces-so de alfabetização não são poucas. A transformação da aquisição da leitura e da escrita como algo individual impede o sujeito de ascender às formas mais desenvolvidas da cultura, neste caso, as formas mais elaboradas da linguagem, e com isso inviabiliza o pro-cesso de humanização plena dos indivíduos.

Para a psicologia histórico-cultural, o natural é transformado pela cultura em um processo de superação por incorporação. As-sim, as funções psicológicas superiores desenvolvem-se superan-do aquelas elementares. Elas são

[…] produzidas na história de cada indivíduo particular, dependentes, portanto, de suas condições de vida e de aprendizagens. As funções superiores, exclusivamente humanas, não são produtos de uma estru-tura psíquica natural, estática e a-histórica, mas sim correspondentes a situações de desenvolvimento que não são sempre as mesmas para um dado indivíduo e muito menos para diferentes indivíduos, especial-mente enquanto representantes de classes sociais desiguais [Martins & arce, 2007, p. 54].

Segundo Vigotskii (2006, p. 114),

Todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas ativida-des coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíqui-cas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas.

Como isso se desenvolve na linguagem, uma das ferramentas fundamentais ao ser humano em seu processo de humanização, que se define como uma função psicológica superior, de origem social e que envolve a utilização de mecanismos intencionais? (facci, 2004).

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A atividade consciente possui três aspectos que a diferenciam da atividade dos animais:

1. não está ligada a motivos biológicos; 2. não se estabelece obrigatoriamente a partir de sua expe-

riência individual e imediata;3. em contraposição ao aspecto anterior, a imensa maioria

“[…] dos conhecimentos e habilidades do homem se for-ma por meio da assimilação da experiência de toda a huma-nidade, acumulada no processo da história social e trans-missível no processo de aprendizagem” (lUria, 1979, p. 73, grifo do autor).

Dois fatores que contribuem na diferenciação da atividade consciente da atividade animal são o trabalho social (e o uso de instrumentos nesse trabalho), já abordado anteriormente neste ca-pítulo, e a linguagem, que tem suas raízes “[…] nas relações sociais do trabalho cujos primórdios de surgimento remontam ao período de transição da história natural à história humana” (idem, p. 79). Explicar o processo pelo qual o ser humano precisou comunicar--se e como isso se desenvolveu, apesar da relevância desse tema, nos desviaria do objeto central deste artigo6. Assim, basta saber-mos que foi o trabalho que criou a necessidade de comunicação e a complexificou de tal forma que a desvencilhou da atividade práti-ca para tornar a língua um sistema de códigos independente. Três mudanças importantes que podem ser mencionadas na formação da consciência que decorrem da linguagem:

1. possibilitou identificar objetos e lidar com eles mesmo quando estão ausentes;

2. asseverou o processo de generalização e abstração, que propicia à linguagem não se restringir a meio de comuni-

6 Para saber mais, cf. Luria, 1979.

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cação, mas ser também “[…] o veículo mais importante do pensamento, que assegura a transição do sensorial para o racional na representação do mundo” (idem, p. 81);

3. é o meio pelo qual são transmitidas as informações, per-mitindo ao ser humano assimilar a experiência histórico--social “[…] e por meio dela dominar um ciclo imensurá-vel de conhecimentos, habilidades e modos de compor-tamento, que em hipótese alguma poderiam ser resulta-do da atividade independente de um indivíduo isolado” (idem, ibidem).

A linguagem movimenta todos os campos de atividade da formação da consciência do sujeito: percepção (altera a percepção do mundo e cria outras leis dessa função), atenção (voluntária), memória (quantidade de informações e voluntariamente selecio-nar informações) e imaginação (proporciona processos criativos porque desliga o indivíduo da experiência imediata).

Já nos aproximando mais diretamente às questões da lin-guagem no desenvolvimento infantil, que permeia a intervenção que será aqui apresentada, é possível observar que, se no início do desenvolvimento da linguagem o vocabulário tinha a função de estabelecer relações interpessoais e denominar objetos e situações, vencida essa etapa “[…] a atenção da criança deve ser dirigida pelo adulto para suas particularidades formais” (Martins, 2007), pro-movendo o surgimento da linguagem coordenada, que também colabora na aprendizagem da leitura e da escrita.

A criança interessa-se pela pronúncia adequada das palavras. Se aos 3 anos seu domínio de vocabulário é de oitocentas a mil pa-lavras, aos 6 ultrapassa 3.500 e sua preocupação com a pronúncia se deve não só pela ampliação de seu vocabulário, mas principal-mente para que possa corrigir suas insuficiências (elkonin, 1960; Martins, 2007). Assim, ela aprende a utilizar todos os tipos funda-mentais de orações, inclusive as compostas com diferentes conjun-ções e assimila o sistema morfológico do idioma, as declinações e

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conjugações e compreende o significado das distintas formas gra-maticais (elkonin, 1960).

O desenvolvimento da leitura e da escrita foi descrito por Luria (2006) na forma de estágios: pré-escrita; atividade gráfica diferen-ciada; escrita pictográfica; escrita alfabética simbólica. “Porém, tais estágios não são naturais, mas sim absolutamente dependentes das condições sociais de desenvolvimento, o que torna impossível demarcá-los cronologicamente” (Martins, 2007, p. 86).

Já no primeiro estágio, no qual a criança utiliza a escrita tentando apenas escrever como os adultos (seu ato resume-se à imitação, sem compreensão dos mecanismos do ato de escrever), com a intervenção do professor, ela estabelece relações com as funções da escrita (idem, ibidem), encaminhando-se para, em contato com outros indivíduos que escrevem e atribuem sentido à escrita (relação interpsíquica), ter necessidade de produzir a sua escrita de forma compreensível ao ou-tro, bem como ser capaz de ler aquilo que o outro escreve. Assim, a criança compreende a necessidade de apropriar-se de um código escrito: a base alfabética. Esse desenvolvimento a faz passar de ope-rações que necessitam do auxílio do outro para um processo no qual não há mais necessidade de intervenção (processo intrapsíquico).

A escrita é uma construção social, que se modificou ao longo do tempo e que se estabeleceu na história humana por necessida-des como o registro, a transmissão de conhecimentos e a comuni-cação. O patrimônio cultural humano está basicamente preservado pela escrita de diferentes civilizações e tempos históricos.

Ler e escrever significa dominar instrumentos que permitem compreender a sociedade, sua dinâmica e relações contraditórias, históricas e a totalidade dos fenômenos. Mesmo antes de domi-nar o código escrito, a criança está exposta a situações comunica-tivas informais. Ao iniciar seu processo de alfabetização, é preciso promover situações de apreciação, reflexão, elaboração e revisão de textos, que apresentem tanto aqueles com os quais já convive quanto aqueles com que não teve contato, mas que fazem parte da cultura humana a ser apropriada.

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Nesse sentido, o trabalho com diferentes portadores de textos em paralelo ao oferecimento de instrumentos que permitam o do-mínio técnico da base alfabética possibilita que os alunos, ao serem capazes de escrever com autonomia, sejam capazes também de ela-borar textos enriquecidos por suas experiências com diferentes gê-neros, apresentados formalmente e intencionalmente pela escola.

3. A prática pedagógica na perspectiva da pedagogia histórico-crítica

É preciso primeiramente ressaltar que este trabalho pretende apenas ilustrar uma prática pedagógica calcada na pedagogia his-tórico-crítica. Com isso não espero oferecer um modelo de interven-ção, como uma bula de remédio que prevê a posologia, as indica-ções, contraindicações, reações adversas etc. É fundamental compre-ender a teoria e adotar essa concepção pedagógica visando garantir aos dominados aquilo que os dominantes dominam para contribuir com a busca de superação de sua condição de exploração (saviani, 2008). Também vale destacar que os procedimentos didáticos po-dem parecer compatíveis, por exemplo, com o construtivismo. En-tretanto, escrever uma resenha, desenhar uma história ou assistir a um filme não é propriedade desta ou daquela teoria. A diferença não está nas operações, mas na intencionalidade das ações.

Com o objetivo de caracterizar os gêneros de resenhas e his-tórias em quadrinhos (HQs), foi realizada uma intervenção de dez horas num 1° ano do ensino fundamental, com 29 alunos com ida-de entre 6 e 8 anos de idade.

A averiguação dos conhecimentos prévios dos alunos sobre os gêneros de resenhas e histórias em quadrinhos (ponto de parti-da da prática educativa) foi feita em conversas realizadas a partir da apresentação desses portadores de textos, em que se constatou que os educandos não conseguiam indicar características dos gê-neros propostos, especialmente das resenhas. No que se refere às HQs, apontavam que ela é composta por figuras e textos, mas não

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eram capazes de elaborar um quadro de história em quadrinhos que utilizasse elementos como cenário, personagens devidamente caracterizados para serem reconhecidos pelo leitor, sequência de falas e acontecimentos.

Em seguida, foi apresentado um filme aos alunos (Happy Feet, 2006) e solicitou-se a elaboração coletiva7 de um texto em que o fil-me fosse relatado em seus pontos principais e que tivesse a opinião dos alunos sobre ele. O material produzido apresentou: aconteci-mentos do filme de forma desordenada; repetição de fatos (o mes-mo trecho relatado mais de uma vez); transposição da linguagem oral para a escrita sem considerar as características específicas da escrita; utilização repetitiva de pronomes, sem lançar mão de ou-tros recursos; erros de concordância verbal e ortografia8; ausência da opinião dos alunos. A seguir, a transcrição do texto:

A fêmea foi pescar e o pai cuidando do ovo nasceu o filhotinho daí a mãe chegou da pesca aí o pai foi ver ela daí Happy Feet cresceu. Ele sapa-teava com o pé. Ele não sabia cantar. Ele foi pra a escola e depois foi viver sosinho ele encomtrou cinco amigos. Daí ele escorregou na agua quebrou um pedaço de gelo e a foca apareceu e ficou rodeando o gelo e ele correu da foca e daí se encomtrou com os amigos dele os amigos dele espatou a foca ele foi para outro lugar e encomtrou duas baleias assassina ele foi sauvar o Amoroso daí a baleia tirou o lixo do pescoço do Amoroso daí ele nadou atras do baco [barco] e pulou na rede aí depois o pesquero cutucou ele e ele caiu na agua. Daí ele foi parar no zoológico depois ele sapateou para a menina e a menina chamou a mãe dela e depois os outros chegou e tirou foto do Mano ele voutou para a casa dele e colocaran um aparelho nas costas do Mano para sabe onde ele estafa ele ensinou o pai sapatear e apareseu o helicópitero ele ensinou todo mundo sapatea e daí eles dançaram para as peçouas e daí os peixes voutou e eles comeram. Fim.

O texto foi reescrito na lousa e relido com os alunos (proble-matização) e nesse momento foram apontadas as questões des-

7 Alguns alunos já se encontravam alfabetizados quando da realização des-sas atividades. Assim, os alunos nessa condição deveriam participar da elaboração coletiva, mas copiar individualmente seu texto.

8 Analisados nos textos individualmente transcritos.

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critas anteriormente. Essas análises foram feitas em duas etapas: ordenação dos acontecimentos do filme e questões relacionadas à escrita, dividida em duas partes: questões do sistema de escrita e diferenças entre a linguagem oral e escrita.

Para instrumentalizar os educandos, foram lidos textos do gê-nero de resenhas, apontando suas características, os recursos de lin-guagem utilizados pelo autor, a ortografia e concordância verbal. A primeira resenha produzida também foi explorada em mais de um momento, aprimorando sua escrita a cada revisão coletiva realizada.

Em paralelo ao trabalho com as resenhas, as HQs também foram estudadas por meio da análise de suas características em diferentes histórias. Também foi utilizado um software de elabo-ração de histórias em quadrinhos para que os alunos iniciassem o contato com a produção de uma HQ explorando seus elementos constitutivos.

Após essas atividades, os alunos assistiram a um documen-tário (A marcha dos pinguins, 2005) e novamente tiveram a tarefa de elaborar coletivamente uma resenha sobre o filme e depois trans-formá-la em diálogos para a HQ (catarse).

Nessa atividade, os alunos: fizeram uma lista daquilo que abordariam no texto (o que facilita a organização dele), escreve-ram o texto preocupando-se com a seleção de informações e com-paração entre os dois filmes assistidos, corrigiram (já na primeira escrita) o uso repetido de algumas palavras, emitiram sua opinião sobre o filme e preocuparam-se com questões ortográficas e de concordância9.

O filme conta a história real dos pinguins imperadores que vivem no gelo. Mostra a vida dos pinguins: o que eles fazem, [o] que comem e como cuidam do filhote. Nós gostamos dos bebês pinguins da foca e de quando os pinguins nadaram. Aprendemos que os pinguins não falam nem sapateiam e que eles podem se perder e congelar. Os filhotes não

9 No caso daqueles alunos já alfabetizados que podiam fazer isso autonoma-mente. Para o restante, a ortografia e a concordância constituíram-se como uma aprendizagem inicial.

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podem ficar longe dos pais e a mãe tem que colocar o ovo nos pés e cobrir senão ele morre.

A transformação da resenha em diálogos apresentada a seguir exigiu a adequação de alguns trechos à fala dos personagens, inser-ção de contexto ao diálogo (início e fim da história), correta utilização da linguagem quadrinizada (uso de balões) e do sistema alfabético.

- Oi Cebolinha! Ontem eu assisti o filme “A Marcha dos Pinguins”! (Mônica)- Eu também! (Cebolinha)- O filme conta a história real dos pinguins imperadores. (Mônica)- Mostla como cuidam dos filhotes e o que comem. (Cebolinha)- Eu gostei dos bebês pinguins, da foca e de quando eles nadalam. (Cebolinha)- Aprendi que os pinguins não sapateiam, não falam e que eles podem se perder e congelar. (Mônica)- Os filhotes não podem ficar longe dos pais. (Cebolinha)- Porque eles podem morrer de frio. (Mônica)- Por isso eles devem ficar cobertos nos pezinhos dos pais. (Mônica)- Filho, vem almoçar. (Dona Maria Cebola, mãe do Cebolinha)- Tchau, Cebolinha. (Mônica)- Tchau, Mônica. (Cebolinha).

Em decorrência do trabalho desenvolvido, verificou-se uma alteração no ponto de chegada da prática educativa, pois os alunos agora eram capazes de reconhecer e descrever as características dos tipos de textos trabalhados, escrever e revisar coletivamente textos que respeitem as especificidades de cada gênero e ampliaram as apropriações sobre o sistema de escrita. Nesse sentido, os resultados contribuem na formação de leitores e escritores críticos e criativos, como pretende a proposta da pedagogia histórico-crítica.

Desejo que práticas como essas, realizadas por educadores alinhados à pedagogia histórico-crítica, contribuam para a consoli-

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dação dessa vertente teórica e suas possibilidades de aplicação em diferentes áreas do conhecimento com resultados qualitativamen-te significativos para o processo de ensino-aprendizagem, oportu-nizando uma educação rica e cheia de possibilidades aos filhos da classe trabalhadora.

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7. A crítica às pedagogias do “aprender a aprender”

a naturalizaçao do desenvolvimento humano e a influência do construtivismo

na educação

Marilda Gonçalves Dias Facci

Minha finalidade, neste artigo, é apresentar elementos para reforçar a crítica ao “aprender a aprender”, tomando como refe-rência pressupostos da pedagogia histórico-crítica e da psicolo-gia histórico-cultural, ambas com fundamento no marxismo. Pre-tendo apresentar algumas ideias gerais sobre o construtivismo e a influência deste no processo ensino-aprendizagem. Para tanto, abordarei a concepção de desenvolvimento humano em Piaget, teórico que tem fundamentado essa tendência, assim como discu-tirei como a escola e o trabalho do professor vêm sendo compre-endidos no construtivismo.

Jean Piaget (1896-1980) é considerado o pai do construtivis-mo – ou neoescolanovismo –, como destaca Saviani (2007). A ca-racterística básica de sua epistemologia é procurar descobrir, ex-perimentalmente, as origens dos diversos tipos de conhecimento, desde suas formas elementares, seguindo seu desenvolvimento nos níveis posteriores, até o pensamento científico.

A influência da teoria de Jean Piaget – a epistemologia gené-tica – na educação brasileira vem desde as primeiras décadas do século XX, com o movimento da Escola Nova, numa proposta de contraposição à escola tradicional.

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Piaget (1978, p. 225) afirma que “[…] o ideal da educação não é aprender ao máximo, maximizar os resultados, mas é antes de tudo aprender a aprender; é aprender a se desenvolver e aprender a continuar se desenvolver depois da escola”. Ele dá sustentação científica à escola ativa (ferreiro, 2001; parrat-dayan & trypHon, 1998; vasconcelos, 1996), pregando o respeito à atividade do alu-no, defendendo a importância da cooperação e da solidariedade, da autonomia e do trabalho em grupo.

A influência da teoria piagetiana ficou evidente no contexto educacional brasileiro quando da reformulação do sistema esco-lar, especificamente na aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei n. 4.024/61). Também está presente nos Pa-râmetros Curriculares Nacionais, que foram publicados em 1998, com assessoria de César Coll, construtivista espanhol. Verifica-se, portanto, que o lema “aprender a aprender”, enfatizado na Escola Nova, já no início do século XX, ainda se encontra presente nos documentos oficiais de nossa época. Em nível mundial, conforme Duarte (2000a) e Saviani (2007), ele tornou-se uma das referências da educação no Relatório da Comissão Internacional da Organi-zação das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), conhecido como “Relatório Jacques Delors”, no Brasil publicado com o título “Educação: um tesouro a descobrir”1.

Segundo Saviani (2007, p. 429), o lema “aprender a aprender” remete às ideias pedagógicas escolanovistas, “[…] deslocando o eixo do processo educativo, do processo lógico para o psicológico; dos conteúdos para os métodos; do professor para o aluno; do es-forço para o interesse; da disciplina para a espontaneidade”, con-forme veremos no decorrer deste texto.

1 Delors (1999), nesse livro, esclarece que a educação deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais, que são os pilares do conhe-cimento: aprender a conhecer – aquisição de instrumentos da compreen-são; aprender a fazer – para poder agir sobre o meio; aprender a viver juntos e, finalmente, aprender a ser; aspecto essencial que integra os três pilares precedentes.

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Embora Piaget seja o autor que fundamenta o construtivismo, sua teoria não mantém hegemonia nesta tendência pedagógica. Jean Piaget, Henri Wallon, David Ausubel, L. S. Vigotski, entre ou-tros autores, vêm sendo utilizados para embasá-la, sem discrimi-nação de suas filiações filosóficas. Cunha (2000, p. 99) afirma que as teses piagetianas têm contribuído para concepções educacionais divergentes, embora partam dos postulados de Piaget. César Coll (2000), por exemplo, apresenta vários autores que colaboram para uma compreensão construtivista do desenvolvimento humano. O que se constata é a aproximação, em muitas obras, da teoria pia-getiana com a psicologia histórico-cultural. No entanto, parto da premissa que essa aproximação é equivocada, uma vez que, con-forme destaca Duarte (1996, 2000a, 2000b) em suas análises sobre esta tendência, falta justamente a historicidade na epistemologia genética, visto que ela se apoia no biologicismo, o que a distan-cia dos pressupostos vigotskianos. Justamente a base marxista da psicologia histórico-cultural, questão da historicidade e da com-preensão do homem como um sujeito que, por meio do trabalho, transforma a natureza e se transforma, um homem localizado no seu tempo histórico, é que distancia essas duas teorias. Não coa-duno, portanto, com esse ecletismo presente no construtivismo e muito menos com a aproximação de Piaget e Vigotski. Neste tra-balho, o termo construtivismo será usado para referir-se à teoria de Piaget e de seus continuadores, independentemente das eventuais divergências, grandes ou pequenas, que possam existir entre esses seguidores no tocante à fidelidade ou correção das interpretações da obra de Piaget.

1. A naturalização e a universalização das etapas de desenvolvimento humano

A epistemologia genética dá grande ênfase aos aspectos bio-lógicos e maturacionais do desenvolvimento humano. O desen-volvimento cognitivo é entendido como um processo interativo e construtivo. Mediante a interação do indivíduo com o meio e so-

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bre os objetos, o indivíduo constrói seu conhecimento. Para Piaget (1973, p. 40),

[…] os conhecimentos não partem, com efeito, nem do sujeito (conhe-cimento somático ou introspecção) nem do objeto (porque a própria percepção contém uma parte considerável de organização), mas das interações entre sujeito e objeto, e de interações inicialmente provo-cadas pelas atividades espontâneas do organismo tanto quanto pelos estímulos externos.

Todo conhecimento é formado, em parte, pelo que fornece o objeto, que possui propriedades físicas, sociais e culturais, e par-te é disponibilizada pelo sujeito, com a organização de seus es-quemas e assimilação. Na relação entre sujeito e objeto, o sujeito constrói conhecimento à medida que se adapta à realidade por meio de suas ações. A interação entre o sujeito e o mundo ocor-re por meio de um processo de assimilação e acomodação. Piaget (1967, p. 11) esclarece que o desenvolvimento mental “[…] é uma equilibração progressiva, uma passagem contínua de um estado de menor equilíbrio para um estado de equilíbrio superior”, tendo como meta uma adaptação mais precisa à realidade. Essa adapta-ção acontece numa sequência de quatro estágios de desenvolvi-mento: sensório-motor (0 a 2 anos); pré-operacional (2 a 6 anos); de operações concretas (6 a 11 anos); de operações formais (11 a 15 anos). Cada estágio é caracterizado pelo surgimento de estruturas originais, cuja construção o diferencia dos estágios anteriores. O fundamental de tais construções sucessivas permanece como su-bestruturas no decorrer dos estágios ulteriores. As etapas de de-senvolvimento são caracterizadas por uma ordem de sucessão fixa, as idades podem variar de uma sociedade a outra, mas a ordem de sucessão é constante. Ela é sempre a mesma e, para atingir certo estágio, é necessário ter construído as estruturas preliminares que permitem progredir mais (piaget, 1978). Segundo Coll e Gillièron (1987), o desenvolvimento possui um caráter universal e o ponto fundamental da teoria de Piaget, para La Taille (1992), é que a in-teligência caminha para o equilíbrio. Este é o centro da inspiração

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biológica de Piaget e, também, a explicação da sequência de está-gios. O desenvolvimento é um caminhar rumo ao equilíbrio, um caminhar que é característico de todo e qualquer indivíduo, seja qual for o sexo, a idade ou a cultura.

Nessa teoria, de acordo com Corazza (1994), a ontogênese re-pete a filogênese. Essa é uma ideia bastante difundida quando se enfoca o construtivismo. A produção individual do conhecimento é considerada análoga aos mecanismos sócio-históricos utilizados pela humanidade no processo de conhecimento.

Piaget entendia que os mesmos processos de equilibração de-terminantes do desenvolvimento da inteligência estão presentes nas estruturas sociais. Ele pensava o social e suas influências sobre os indivíduos pela perspectiva da ética. De acordo com La Taille (1992), a teoria do pesquisador suíço é limitada, porque, mesmo quando fala de cultura, ele não se remete a temas sociais, tais como: deter-minadas ideologias, religiões, classes sociais, sistema econômico, processo de escolarização, características da linguagem de etnias diferentes etc. Afirmar que o homem é social não significa explicar como os fatores sociais interferem no desenvolvimento intelectual. Quando fala em social, Piaget está preocupado com a oposição en-tre coação e cooperação.

Duarte (2000a) ressalta que a questão do social em Piaget acaba sendo reduzida somente às interações sociais entre os indi-víduos, realizadas na forma de cooperação ou não. Segundo esse autor, Piaget não analisa as relações de determinação entre as re-lações sociais e o desenvolvimento intelectual; refere-se ao social como algo externo a esse desenvolvimento. Nessa perspectiva, o processo de socialização seria aquele por meio do qual o que é natural ao indivíduo vai cedendo terreno ao que é imposto pela sociedade.

Reforçando a crítica ao fato de que a noção de conhecimen-to em Piaget subestima os fatores sociais, Carvalho (2001) ressalta que Piaget não conseguiu superar a divisão entre o aspecto indivi-dual e social porque não abandonou a perspectiva biologizante e, portanto, naturalizante das relações entre indivíduo e sociedade.

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Como afirma Klein (2000, p. 71), “[…] todos os elementos da sua teoria derivam de uma mesma raiz: uma concepção da realidade que, abandonando o terreno do processo histórico, vai assentar--se no terreno da biologia”. Ela afirma que, para o autor, o desen-volvimento humano ocorre por meio de “[…] leis imutáveis, que se mantêm à revelia das transformações históricas” (klein, 2000, p. 83). O que varia de indivíduo para indivíduo é somente o ritmo e a qualidade em que ocorrem as transformações nas estruturas mentais.

Considero que não é possível estudar o psiquismo humano, que é resultante de um processo histórico e socialmente produzi-do, respaldando-se somente na biologia, como fez Piaget, univer-salizando todo o desenvolvimento. As condições sócio-históricas estão presentes no desenvolvimento ontogenético e filogenético dos indivíduos, conforme vemos em Carmo (2006, p. 331) ao abor-dar esta questão.

A perspectiva de Piaget do processo de construção do conhecimento não considera a importância do contexto sócio-histórico na determina-ção das individualidades, subjugando esta às regulações naturais que ocorrem em qualquer organismo vivo. As próprias categorias constitu-ídas por Piaget denotam os limites de seu constructo teórico, no tocante à historização da atividade vital humana, na medida em que ele não percebe diferença desta, para a atividade dos demais seres vivos.

Como pensar o homem, conforme essa autora, “[…] destituí-do da concreticidade histórico-social da humanidade”? A ativi-dade vital humana – o trabalho –, conforme abordagem marxista, diferencia os homens de qualquer outra espécie animal. Saviani (2004, p. 28) menciona que “[…] é pelo trabalho que os homens produzem a si mesmos. Logo, o que o homem é, o é pelo trabalho. O trabalho é, pois, a essência humana”. As relações que o homem estabelece com a natureza não ocorrem de forma universal, estão atreladas ao contexto histórico em que a subjetividade humana está desenvolvendo-se. Desta forma, podemos afirmar, apoiando--nos também em Shuare (1990), que os fundamentos marxistas nos

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levam a compreender que mudanças históricas na sociedade e na vida material produzem mudanças na consciência e no compor-tamento humano, que existe um desenvolvimento histórico dos fenômenos psíquicos e estes mantêm uma relação de dependência essencial com respeito à vida e à atividade social.

Conforme mencionei em trabalho anterior (facci, 2004b), no qual analisei a periodização do desenvolvimento humano com base na Escola de Vigotski, deve-se considerar o enfoque histórico dos ritmos de desenvolvimento e o surgimento de certos períodos de acordo com o avanço histórico da humanidade. Elkonin (1987) e Leontiev (1987), ao estabelecerem o conceito de atividade princi-pal, propõem que cada estágio de desenvolvimento seja caracteri-zado por uma relação determinada, por uma atividade dominante do indivíduo em relação à realidade. O indivíduo, neste caso, por meio das atividades principais, relaciona-se com o mundo e, em cada estágio, formam-se nele necessidades específicas em termos psíquicos.

Leontiev (1987) enfatiza que o desenvolvimento dessa ati-vidade condiciona as mudanças mais importantes nos processos psíquicos da criança e nas particularidades psicológicas da sua personalidade. Portanto, é a sociedade que determina o conteúdo e a motivação na vida da criança, uma vez que todas as ativida-des dominantes aparecem como elementos da cultura humana. Os estágios de desenvolvimento, para esse autor, dependem das condições concretas nas quais ocorre o desenvolvimento. As con-dições histórico-sociais concretas exercem influência tanto sobre o conteúdo concreto de um estágio individual do desenvolvimento como sobre o curso total do processo de desenvolvimento psíquico como um todo. Nesse sentido, não se pode afirmar que todos os indivíduos passarão pelos mesmos estágios de desenvolvimento, já que a matriz principal nesse processo não é biológica, mas sim histórico-social.

O desenvolvimento do indivíduo, portanto, não depende dele somente, do desenvolvimento de suas estruturas mentais rumo ao equilíbrio. Para aprender, para passar de um estágio de

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desenvolvimento ao outro, é necessário uma apropriação da cultu-ra, que se dá por meio do processo educativo, conforme evidencia Leontiev (1978). O processo de humanização, tão caro à pedagogia histórico-crítica, está atrelado à apropriação da cultura, e, no caso da escola, aos conteúdos curriculares que devem ser socializados no processo de escolarização.

Quando se parte de uma matriz biológica para compreender o desenvolvimento humano, podemos concluir que no desenvolvi-mento do psiquismo do indivíduo muito pouco cabe ao professor e à escola, conforme veremos no item a seguir.

2. O professor e a prática pedagógica no construtivismo

Analisada a base biológica da epistemologia genética, este item trata da compreensão da escola e do professor pelo constru-tivismo.

Nas obras Para onde vai a educação? (1988a) e Psicologia e pe-dagogia (1988b), Piaget faz sérias críticas à escola tradicional, por entender que leva o aluno à memorização, à repetição, à submis-são ao saber da professora, à heteronomia. Do seu ponto de vista, uma visão construtivista da aprendizagem deve proporcionar aos alunos momentos em que ele possa realizar suas próprias expe-riências, construir o seu conhecimento. O aluno deve ser ativo no processo pedagógico, ele deve aprender a aprender.

É necessário lembrar, neste momento, os problemas que tive-mos na educação, como teoriza Saviani (1983), ao “curvar a vara” para o lado contrário à escola tradicional. Se, por um lado, nessa escola a ênfase estava no professor e no conhecimento, as ideias escolanovistas “envergaram a vara” para o aluno e este passou a ser o centro do processo pedagógico. Saviani (1983), já na primei-ra edição da obra Escola e democracia, apresentou a ideia de que essa tendência pedagógica não considerava as bases históricas da sociedade, entendendo que a escola tinha autonomia para resol-

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ver os problemas produzidos pelo contexto político-econômico. Como enfatiza Saviani (1983), o escolanovismo deslocou o eixo da preocupação do âmbito político para o âmbito técnico-pedagógico, importando-se não com o aprendizado do conhecimento social-mente existente, mas sim com o aprender a aprender. Se na escola tradicional não havia preocupação com o aluno, na Nova Escola foi retirada dos alunos, particularmente os da classe trabalhadora, que encontram na escola a única via de acesso a cultura, a pos-sibilidade de se apropriarem dos conhecimentos produzidos pela humanidade.

Voltemos, no entanto, à compreensão que Piaget tem do pro-cesso de aprendizagem. Para o pensador suíço, a aprendizagem é entendida como um processo de constituição das estruturas ope-ratórias do pensamento. O desenvolvimento é responsável pela aprendizagem, antecede a esta. Em qualquer nível de escolarida-de, a educação deve dar condições aos alunos para obter um maior grau de desenvolvimento. Para Coll (1987, p. 177), deve-se, a partir dessa premissa, “[…] relativizar a importância dos conteúdos es-colares, que passam a ter interesse em função da contribuição em favor do desenvolvimento; a ênfase é colocada nas competências intelectuais, nos instrumentos cognitivos, no amadurecimento da personalidade”.

E se o aluno é quem constrói o seu conhecimento por meio da ação, os processos educacionais têm como objetivo respeitar e criar situações que favoreçam as atividades dos alunos. Impera o espontaneísmo.

Em relação à atuação do professor, Parrat-Dayan e Tryphon (1998), ao fazerem um estudo sobre os escritos pedagógicos de Piaget, afirmam que, em 1933, a função do professor, para Piaget, era desenvolver no espírito da criança um método, um instrumento psicológico – fundamentado na reciprocidade e cooperação, supe-rando o egocentrismo – que a auxiliasse a compreender o mundo. Neste sentido, o docente parece anular-se como adulto para se co-locar como igual da criança, entrar em discussão com ela para que esta procure provas. Nos fins dos anos de 1940, Piaget afirma que

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o professor deve ter habilidade para levar a criança a perceber que ela se coloca perguntas importantes e que tome consciência desses questionamentos. Ele desaparece como pessoa em prol da atividade construtiva do aluno. Em 1970, Piaget (1988b) propõe que o professor seja também um pesquisador, a fim de cons-truir dispositivos para formular problemas úteis para a criança e exemplos que proporcionem a sua reflexão.

No livro Psicologia e pedagogia, Piaget (1988b) defende a ideia de que só se aprende, de fato, a psicologia infantil ao colaborar com pesquisas, geralmente realizadas em universidades. Os pro-fessores, segundo ele, “[…] podem aprender a se tornarem pes-quisadores e a ultrapassarem o nível de simples transmissores” (piaget, 1988b).

O próprio Piaget (1988a, p. 15) ressalta que

[…] é evidente que o educador continua indispensável, a título de ani-mador, para criar as situações e armar os dispositivos iniciais capazes de suscitar problemas úteis à criança, e para organizar, em seguida, contraexemplos que levem à reflexão e obriguem ao controle das so-luções demasiado apressadas: o que se deseja é que o professor deixe de ser apenas um conferencista e que estimule a pesquisa e o esforço, ao invés de se contentar com a transmissão das soluções já prontas […] No sentido inverso, entretanto, ainda é preciso que o mestre-ani-mador não se limite ao conhecimento de sua ciência, mas esteja muito bem informado a respeito das peculiaridades do desenvolvimento psicológico da inteligência da criança ou do adolescente.

O professor construtivista deve conhecer a psicologia da criança. Na escola, é preciso estar atento aos estágios de desen-volvimento da criança, e perceber a importância do meio no de-senvolvimento do aluno. O professor deve criar situações para que o aluno possa realizar experiências, oferecendo oportunida-des e incentivos para que construa seu conhecimento.

Elkind (1978) julga que as características fundamentais do professor de uma escola com pressupostos piagetianos são a fle-xibilidade – para variar o grau de diretividade em consonância com o tipo de aprendizagem em que as crianças estão empenha-

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das – e a mobilidade – para observar o envolvimento das crianças, para aconselhar e acompanhar os alunos em seus trabalhos. Além disso, a compreensão das crianças, o domínio dos conteúdos, a capacidade de avaliação, o desvelo e o cuidado com as crianças são fatores imprescindíveis. O professor, conforme Glasersfeld (1998, p. 23), não é o dono de verdades estabelecidas, não tem a função de ensinar, e o conhecimento dos conceitos não pode ser transferido do professor para o aluno, já que “[…] a aprendiza-gem é uma atividade construtiva que os próprios alunos têm que levar a cabo”.

A negatividade do trabalho do professor é observada tam-bém nos escritos de Juan Delval (1998, p. 34), quando levanta as teses sobre o construtivismo. Ele enfatiza que “[…] a afirmação de que o professor é quem ensina é contrária a uma posição cons-trutivista”. Portanto, uma pessoa adulta, no caso o professor, deve criar situações para que os alunos aprendam, porque é o próprio sujeito, em última instância, que é responsável pela cons-trução do conhecimento, partindo dos conhecimentos prévios para qualquer nova aprendizagem.

Não cabe, nessa perspectiva, ensinar, mas sim levar o aluno a desenvolver o raciocínio; a finalidade de seu trabalho reside no desenvolvimento das estruturas mentais, por meio da prática e do envolvimento do aluno no processo pedagógico. “O objetivo da educação intelectual não é saber repetir ou conservar verda-des acabadas, pois uma verdade que é reproduzida não passa de uma semiverdade: é aprender por si próprio a conquista do verdadeiro, correndo o risco de despender tempo nisso e de pas-sar todos os rodeios que uma atividade real pressupõe” (piaget, 1988a, p. 61).

Os saberes clássicos, defendidos por Saviani (2003), aqueles que resistiram ao tempo e devem permanecer nas grades curri-culares, são deixados de lado. A sistematização da forma como o professor vai transmitir os conteúdos e a organização do espaço escolar são anuladas em função do espontaneísmo, da direção que o aluno deve dar à aula.

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Quanto à formação dos professores, a abordagem piagetia-na defende que tanto o professor como os alunos constroem o conhecimento e que é preciso considerar que o proposto em re-lação ao trabalho do professor com o aluno também é pertinente na relação entre o professor formador e o futuro professor. Na formação de professores, a própria questão do método de ensinar deve ser repensada, visto que, como Costa (2002, p. 45) enfatiza, a proposta de aprendizagem inspirada na teoria de Piaget “[…] vai na contramão da indicada por metodologias, técnicas e didá-ticas de ensino que propõem um planejamento preestabelecido e objetivos homogeneizadores”. O eixo da intervenção com o aluno ou com o professor que está em processo de formação deve ser o sujeito em seu movimento de construção do conhecimento. Não há como o professor, em sala de aula, acompanhar o processo de construção de um aluno se ele mesmo não tiver passado por esse processo, se não tiver sido escutado e acompanhado no desenvol-vimento do seu raciocínio.

Não cabe a ele transmitir os conceitos científicos, mas sim facilitar ou somente colaborar com o processo de aprendizagem dos alunos, apresentando situações-problema a serem resolvidas. Acredita-se que essa postura proporciona aos alunos autonomia moral e intelectual. Não podemos nos esquecer que, de acordo com essa perspectiva, primeiro a criança desenvolve as estrutu-ras mentais para depois aprender, e que, portanto, a aprendiza-gem não provoca desenvolvimento.

Carvalho (2001) relata que, entre professores e profissionais da educação, tem estado muito presente a metáfora educacional que compara o trabalho docente com o de um jardineiro e o de-senvolvimento infantil ao de um organismo operando segundo leis próprias da natureza. O professor, por conseguinte, deve es-tudar e respeitar as fases e as leis do desenvolvimento de forma que otimize as potencialidades dos alunos. O autor comenta que, embora alguns escritos ulteriores de estudiosos construtivistas busquem atenuar a ênfase dada por Piaget à ideia de uma educa-

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ção não guiada pelo professor e pela instituição escolar, colocando o professor como facilitador, o que se torna evidente entre os cons-trutivistas é uma concepção de educação centrada na criança, com fundamento teórico em seu desenvolvimento pessoal.

A epistemologia genética também tem se constituído em fun-damento para compreender o desenvolvimento e aprendizagem humana nas abordagens pedagógicas contemporâneas que discu-tem o trabalho e a formação do professor, como a teoria do profes-sor reflexivo e a pedagogia das competências.

Na teoria do professor reflexivo, é possível constatar que a ex-periência do aluno e a construção individual do conhecimento são encaradas como aspectos fundamentais na atividade pedagógica, as-sim como o professor é encarado como facilitador da aprendizagem. Alarcão (1996, p. 17) apresenta a ideia de que há uma aproximação entre a concepção do professor reflexivo e a do construtivismo, dan-do a conotação de que o trabalho docente deverá estar atrelado à prática dos alunos e que estes devem aprender a aprender.

Chakur (1995, 2001) também caminha nesta linha de apro-ximação entre a teoria do professor reflexivo e o construtivismo. Ela destaca que há pelo menos três construções teóricas de Piaget que podem servir ao estudo da profissionalidade docente. São elas: “[…] o processo de equilibração das estruturas cognitivas, no qual são particularmente relevantes as noções de abstração reflexiva, níveis de desenvolvimento e formas de reação compensatória a elementos perturbadores; a teoria da tomada de consciência, em que se salientam as diferenças entre o fazer e o compreender, com seus mecanismos de regulação; e a teoria do desenvolvimento do juízo moral” (cHakUr, 2001, p. 73, grifo do autor). A autora procura sistematizar informações para dar início a “um casamento feliz e duradouro entre a psicologia genética piagetiana e uma teoria do desenvolvimento profissional docente” (cHakUr, 1995, p. 637).

Na pedagogia das competências, Perrenoud (1999) também se apoia em pressupostos piagetianos, e expõe que é necessário haver uma ruptura com a didática tradicional e enfocar o aluno

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como um sujeito ativo na aprendizagem. Nessa perspectiva, o sa-ber fazer, o desenvolvimento de competências deveria ser o mote da educação. Competência, então, pode ser evidenciada pelos esquemas mentais de percepção, pensamento, avaliação e ação.

Não vamos nos alongar nesses aspectos, que foram mais ex-plorados em trabalho anterior (facci, 2004a), mas não podería-mos deixar de mencionar que realmente, parafraseando Chakur (1995), existe um “casamento” entre as pedagogias atuais, no en-tanto, entendo que está longe de ser “feliz”, quando se analisa o quanto isso tem provocado um esvaziamento do conteúdo e um distanciamento da proposição de uma educação com vistas ao processo de humanização, aspecto defendido pela pedagogia histórico-crítica.

Duarte (1998, 2000a) discute que o construtivismo, ao de-fender o lema “aprender a aprender”, leva à conclusão de que o processo é mais importante que o produto (a apropriação do conhecimento). O autor afirma, desta forma, que ocorre a des-valorização do professor e da escola na perspectiva piagetia-na. Destaca, ainda, que a Escola Nova e o construtivismo – que apresentam um posicionamento negativo (dUarte, 1998) em relação ao ensino como transmissão de conhecimento – estão muito presentes nos meios educativos, interferindo diretamen-te na atuação do professor. Nessa perspectiva, o professor vem perdendo sua característica de um profissional que está na es-cola para ensinar, uma vez que o importante, numa abordagem construtivista, é levar o aluno a se desenvolver. O professor pode apresentar as informações, porém em forma de problemas a serem resolvidos pelos alunos; a ênfase deve ser na forma-ção de atitudes – positivas ou negativas – em relação ao estudo, despertando a curiosidade e a autonomia intelectual. Afirma Saviani (2007, p. 429) que o papel do professor “[…] deixa de ser o daquele que ensina para ser o de auxiliar o aluno em seu próprio processo de aprendizagem”.

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Considerações finais

Conforme concluí em trabalho anterior (facci, 2004a), con-sidero que o construtivismo – compreendido aqui como uma ree-dição da Escola Nova ou neoescolanovismo (saviani, 2007) – tem contribuído para o processo de desvalorização da escola e do professor nos dias atuais, assim como tem criado impedimentos para que o aluno possa realmente ser ativo no processo pedagó-gico; ativo no sentido de poder pensar, refletir sobre os conteúdos curriculares que são transmitidos no dia a dia na escola. Quando colocamos o foco da aprendizagem no aluno que constrói sozinho o seu conhecimento, o processo de transmissão e o próprio saber ficam relegados a segundo ou terceiro plano.

É inegável que o ideário “aprender a aprender” está ampla-mente divulgado. Temos assistido, conforme menciona Rossler (2000), a um processo de sedução dessa tendência, que se explica, de acordo com ele, por três características: por ser tomado como um modelo crítico – o que na realidade não é; por trazer respostas concretas sobre o que fazer no dia a dia na sala de aula e, por fim, por ser investido de prestígio científico, como a teoria de Piaget. Rossler (2000, p. 16) argumenta, ainda, que “[…] o ideário cons-trutivista seduziria por aproximar-se a elementos fortemente ide-ológicos e sedutores, difundidos no cotidiano alienado da nossa sociedade capitalista contemporânea”. Haveria, por parte dos educadores, uma relação com a teoria baseada no pragmatismo, no espontaneísmo, sem uma reflexão crítica sobre os pressupostos teóricos do construtivismo. O processo de sedução revela, portan-to, o grau de alienação que os educadores estão vivendo, que não permite uma análise crítica dos “modismos” que se interpõem na prática pedagógica.

Esse ideário está presente no trabalho do professor. Se fizer-mos uma leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais e dos li-vros lançados recentemente sobre o construtivismo e a formação reflexiva dos professores, ficamos bastante seduzidos pela sua estrutura maniqueísta de argumentação, pelo ecletismo, como

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se fosse possível lançar mão de diferentes perspectivas teóricas, com fundamentos filosófico-metodológicos divergentes (e mes-mo opostos em muitas ocasiões) para compreender os fenômenos presentes na educação. Dessa forma, deixaríamos de ir às raízes de tal perspectiva teórica, utilizando chavões e mesclando aspec-tos desta ou daquela teoria.

Skalinski Júnior (2005, p. 50) credita a grande expansão do construtivismo, na atualidade, à sua vinculação às peculiaridades do universo ideológico contemporâneo – a ideologia neoliberal, que passa a ilusão de que tudo depende do indivíduo, havendo uma naturalização das diferenças individuais. Na modernidade, abre-se espaço para que seja destacado o fetichismo da indivi-dualidade. Segundo o autor, a abordagem piagetiana pretendia ser a difusora de um espírito democrático, desse modo, o “[…] próprio espírito de democracia e respeito ao grupo acabam so-ando como intrínsecos ao indivíduo e não construídos por meio de relações históricas”. A individualidade defendida pelo cons-trutivismo contribui para a manutenção da sociedade capitalis-ta, visto que ideologicamente, por mais que valorize as questões individuais, acaba por implicar o esvaziamento do sujeito con-temporâneo. Hoje, as novas necessidades do mundo do trabalho exigem um homem com capacidade de fácil adaptação, que seja capaz de aprender a aprender, com toda a precarização que o trabalho em si tem sofrido.

Essa ideia também é defendida por Fonseca (apud saviani, 2007, p. 430), para quem “[…] a adaptação à sociedade atual exi-ge novos tipos de raciocínio, o desenvolvimento de capacidade de comunicação e a recuperação de funções cognitivas deteriora-das pelo trabalho puramente mecânico, buscando atingir níveis flexíveis de operação simbólica”. O lema “aprender a aprender” “casa” perfeitamente com a defesa de que os trabalhadores pre-cisam estar prontos para se adaptar às mudanças, que precisam ser flexíveis para enfrentar as novas frentes de trabalho em uma sociedade do não emprego.

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Ao considerar que o processo educacional deve centrar-se somente no desenvolvimento psicológico das capacidades e es-truturas gerais dos alunos, sem considerar a importância da apro-priação dos conhecimentos científicos para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, conforme propõe Vygotski (1993), o trabalho do professor acaba perdendo o sentido. É o sujeito, em última instância, que é considerado no processo de aprendizagem. O professor poderá criar situações para que os alunos aprendam, mas jamais saberá o que os alunos construíram em suas mentes.

Arce (2000, pp. 45-48), de uma perspectiva histórica, também relata que as políticas neoliberais, no que se refere à formação de professores, estão articuladas às proposições construtivistas. A subjetividade é o grande destaque, colocando o aluno, por meio de sua percepção da realidade, como o centro do processo educativo. Os construtivistas valorizam o caráter ativo do sujeito no processo de aquisição do conhecimento. Quem é contrário a tal proposição? Na realidade, o que os caracteriza não é a defesa do caráter ativo no processo de aquisição do conhecimento, mas sim o subjetivismo epistemológico, como pudemos constatar nas ideias de Glasersfeld (1998).

Considero que, numa perspectiva educacional baseada na Es-cola de Vigotski e na pedagogia histórico-crítica, professor, aluno e conhecimento científico são ativos. O professor é ativo porque “[…] pode provocar uma ‘revolução’ no conhecimento dos alunos, buscando socializar o que de melhor a sociedade produziu em termos culturais” (facci, 2006, p. 140); o aluno é ativo porque, no processo de apropriação do conhecimento, precisa estabelecer re-lações, fazer generalizações e sínteses para formar novos conceitos; e, finalmente, o conteúdo é ativo porque construído por meio da prática social dos homens, em condições históricas determinadas. O que é possível constatar no construtivismo, conforme apresen-tado em trabalho anterior (facci, 2004a), é que o professor acabou

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ocupando uma posição “descartável” ou, no mínimo, sem uma atuação definida no processo de apropriação do conhecimento.

Parto da compreensão de que indivíduo e sociedade estão intimamente relacionados e que, embora tenham suas especifici-dades, não podem ser tratados de forma dicotomizada. A própria escola mostra-se desvalorizada pelo construtivismo, conforme destaca Vale (1994, p. 232):

Saviani chamou a atenção para os limites de toda visão naturalista da inteligência que, ao valorizar os componentes biológicos no proces-so de desenvolvimento, minimiza, na verdade, o papel da escola e da aprendizagem […] o construtivismo (centrado numa visão positivista de ciência) tem uma concepção de natureza humana que, no limite, não incorpora a historicidade na cultura humana, desconhecendo que o ser humano é, em suma, “síntese de múltiplas determinações”, produto, enfim, de relações sociais.

Em uma perspectiva historicizadora, considera-se que o ser humano é um ser de relações e sua individualidade é intrinseca-mente social. A educação é um processo de humanização, que está assentado, por sua vez, fundamentalmente, no trabalho educativo dos professores sobre os alunos. Utilizando as palavras de Duarte (2000a, p. 254) no que se refere à importância dessa ação nos sujei-tos em desenvolvimento:

[…] assumir como seu pressuposto maior o da historicidade do ser humano implica defender a concepção de que o gênero humano pode tornar-se sujeito da formação dos processos psicológicos humanos, por meio da educação. Quando os homens se relacionam com a realidade social como se esta fosse regida por forças naturais, eles abrem mão da possibilidade de dirigir os processos sociais.

Considero que a construção do conhecimento se dá a partir da prática social, seja do aluno, seja do professor em processo de formação. O processo de humanização assenta-se na apropriação das objetivações produzidas no contexto histórico-social. Quando relegamos ao segundo plano a apropriação do conhecimento cien-tífico, quando a ciência, a filosofia, a arte, entre outros conteúdos

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são abandonados na prática pedagógica, podemos afirmar que a escola perde sua função como uma instituição socialmente organi-zada que tem como objetivo levar os alunos a se apropriarem do conhecimento já produzido e acumulado pela humanidade.

A psicologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica fornecem elementos para refletir sobre o próprio significado do processo educativo na humanização do indivíduo e sobre a contri-buição do professor nesse processo. Saviani (2003) e Duarte (2000a) entendem que a educação é um processo mediador entre a vida do indivíduo e a história. A escola, nesse processo de humaniza-ção, faz a mediação entre os conteúdos historicamente produzi-dos pela humanidade e sua apropriação pelo aluno, procurando formas para que esses conhecimentos sejam internalizados pelos indivíduos, contribuindo para a formação de novas gerações de seres humanos.

Ao tomar por base os pressupostos de uma teoria marxista da educação, cada professor tem o compromisso de contribuir, com seus conhecimentos, para transformação estrutural da sociedade. Saviani (1983, p. 83) aponta que tal contribuição “[…] se consubs-tancia na instrumentalização, isto é, nas ferramentas de caráter histórico, matemático, científico, literário etc., que o professor seja capaz de colocar de posse dos alunos”. O professor, ao partir da prática social, objetiva alterar qualitativamente a prática de seus alunos, agentes de transformação social.

Os educadores têm de buscar formas adequadas para que o processo de transmissão-assimilação aconteça de forma efetiva. Têm de viabilizar esse processo, de forma que selecionem e se-quenciem os conteúdos “clássicos” (saviani, 2003), que resistiram ao tempo e que são fundamentais ao processo de humanização, para que o aluno passe gradativamente do não domínio ao domí-nio de conhecimentos científicos. O que era um conhecimento sin-crético, desorganizado para o aluno, no final do processo educati-vo precisa estar sistematizado, vinculado à prática social.

Vigotski (1896-1934) e demais pesquisadores da perspectiva da psicologia histórico-cultural, tais como A. N. Leontiev e A. R.

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Luria, consideram que o ensino tem papel central em todo o siste-ma de organização da vida da criança, por determinar seu desen-volvimento psíquico. Entendo, assim como eles, que o ensino cons-titui uma via, um meio sistematizado e organizado de transmissão da experiência social.

Para Vygotski (1993), a aprendizagem é um momento necessá-rio e universal para que se desenvolvam na criança as características humanas estabelecidas historicamente. O professor tem uma função mediadora que é realizada por meio de ações intencionais, conscien-tes, dirigidas para o fim específico de propiciar a instrumentalização básica do aluno de modo que permita que este conheça, de forma crítica, a realidade social e que, com base nesse conhecimento, haja a promoção do desenvolvimento individual. O processo de desen-volvimento segue o processo de aprendizagem, e este é responsá-vel por criar a zona de desenvolvimento proximal (ZDP). Vygotski (1993) enfatiza que, ao intervir na ZDP, o professor provoca o desen-volvimento, pois ajuda o aluno a efetivar aprendizagens.

É fundamental que todo o saber elaborado pela humanidade se torne passível de ser apropriado por todos os membros da so-ciedade. A transmissão do conhecimento deve ser sistematizada, organizada na prática pedagógica, de forma que seja acessível ao aluno. Se a escola não permite o acesso aos instrumentos media-dores, para que o conhecimento científico seja apropriado por to-dos os seus alunos, ela contribuirá para que esse saber continue sendo propriedade privada de uma classe dominante, reforçando a ordem vigente. Cabe ao professor, portanto, partir da prática so-cial, buscando alterar qualitativamente a prática de seus alunos, conforme propõe Saviani (2003). O conhecimento, os conteúdos clássicos serão a ferramenta para passar do conhecimento coti-diano ao conhecimento científico. A psicologia histórico-cultural, quando apresenta a preocupação com a formação dos processos psicológicos superiores, tem como seu alvo principal a apropria-ção do conhecimento científico, do saber sistematizado por parte dos homens.

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Quando se trata do trabalho e formação do professor, Saviani (1997, p. 130) enfatiza a necessidade de o professor dominar os co-nhecimentos específicos da disciplina que ministra (a matemática, por exemplo); precisa ter um conhecimento didático-curricular, que o oriente como sistematizar esse conhecimento para que o aluno aprenda; precisa também ter acesso aos conhecimentos produzidos pelas ciências da educação e sintetizados nas teo-rias da educação; deve ter uma compreensão das condições sócio-históricas que determinam a tarefa educativa; e, por fim, um “saber atitudinal”, categoria que compreende o domínio de comportamentos e vivências considerados adequados ao trabalho educativo. Longe de um “facilitador”, como propõe o construtivis-mo, ele pode ter uma atuação determinante no desenvolvimento psicológico dos alunos.

Saviani (2005), no texto em que trata sobre a educação socia-lista, assevera, por exemplo, que cabe ao ensino fundamental ga-rantir um acervo mínimo de conhecimentos sistemáticos – o saber ler, escrever, calcular, os rudimentos da ciência – sem os quais não se pode ser cidadão, isto é, não se pode participar ativamente da vida em sociedade. Como o indivíduo pode participar dessa socie-dade letrada se não tem acesso a esses conhecimentos, se ele tem de aprender a aprender? Esse autor defende, ainda, uma escola pública que possa garantir a todos o acesso ao saber, que evidencia as contradições da sociedade capitalista.

Fica, portanto, o desafio de criar condições para que o proces-so educativo contribua para o desenvolvimento das funções psico-lógicas superiores, haja vista que estas se desenvolvem na coleti-vidade, na relação com outros homens, por meio da utilização de instrumentos e signos, e, fundamentalmente, de ajudar os alunos a se apropriarem do conhecimento científico. Para Vigotski, somente o pensamento científico pode contribuir para que o aluno conheça a realidade, saindo da aparência e caminhando em direção à essên-cia das relações sociais que produzem e são produzidas pelos pró-prios homens. Só dessa forma teremos a maioria dos indivíduos humanizados!!!

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8. A política educacional e a formação de professores:

reflexões sobre os fundamentos teóricos e epistemológicos da reforma

Lidiane Teixeira Brasil Mazzeu

Considerações iniciais

O presente artigo tem como objetivo apresentar algumas refle-xões suscitadas em investigação de natureza teórico-bibliográfi ca sobre as políticas de formação docente implementadas no Brasil a partir da década de 1990, período marcado por intensa reforma na organização da educação em nosso país.

O estudo buscou analisar os pressupostos epistemológicos subjacentes aos documentos oficiais norteadores dos processos, inicial e continuado, de formação de professores das séries ini-ciais do ensino fundamental. Para tanto, tomamos como objeto os Referenciais para a Formação de Professores (brasil,MEC, SEF, 1998) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica (brasil,CNE, 2001, 2002), além de documentos elaborados por organismos multilaterais internacio-nais e regionais, que serviram de referência à reforma educacional brasileira.

Será apresentada uma síntese das diretrizes gerais dos prin-cipais documentos que orientam a reforma, de modo que se ob-servem as características e finalidades da formação docente pre-conizada pelos organismos responsáveis pelo gerenciamento das propostas políticas colocadas em prática no país. Num segundo momento, passaremos a uma breve apresentação dos documentos

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nacionais analisados, chamando a atenção para a identidade exis-tente entre estes e as orientações internacionais.

O interesse aqui incide na discussão acerca das implicações da adoção de determinadas concepções teóricas e epistemológicas para a formação de professores e, consequentemente, para o de-senvolvimento do trabalho educativo, tomando como pressuposto para a análise as contribuições da pedagogia histórico-crítica.

1. Os parâmetros de referência da reforma educacional brasileira

As demandas da reestruturação produtiva para a formação ou qualificação do trabalhador, apoiadas na tese da reintegra-ção das atividades de trabalho e da necessidade de emprego de mão de obra qualificada, têm sua difusão intensificada no Brasil a partir da década de 1990. Nesse período, é possível observar a promoção de reformas educacionais e a elaboração de programas pautados na competitividade em decorrência da centralidade assumida pela educação no interior dos novos modelos de pro-dução1 que adotam a flexibilidade, a autonomia e a polivalência como conceitos-chave.

Nesse contexto, a reforma estrutural e curricular implementa-da na educação em geral e na formação do professor, em particular, deve ser compreendida como uma estratégia política de reforma do Estado no plano institucional e econômico-administrativo. A finali-

1 Refiro-me aos modelos caracterizados pela “acumulação flexível”. An-tunes (2005) ressalta que a acumulação e a especialização flexível são expressões de uma processualidade que, tendo a “Terceira Itália” como experiência concreta, teria possibilitado o advento de um “novo para-digma produtivo” articulador do desenvolvimento tecnológico e da des-concentração produtiva. Entretanto, o toyotismo, ou o “modelo japonês”, configura-se como o de maior impacto na reestruturação produtiva, tanto pela revolução técnica proporcionada, quanto por sua potencialidade de propagação.

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dade última de tal estratégia consiste na adaptação dos indivíduos às exigências do sistema capitalista no que se refere ao modo de pro-dução e ao novo modelo de sociabilidade imposto pelo capital.

A década de 1990 constitui-se como um período de reformas na educação brasileira marcado pela produção de documentos oficiais, leis, diretrizes e decretos embasados pelas recomendações de organismos multilaterais internacionais e regionais2, dentre os quais destacamos: Banco Mundial, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (cepal) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (pnUd).

Vasta documentação, recheada de diagnósticos, análises e propostas para a reforma educativa e econômica direcionadas aos países da América Latina e Caribe, foi produzida por esses orga-nismos, na qual a centralidade da educação é afirmada de modo imperativo para o desenvolvimento econômico dos países. Nesse contexto, a formação docente assume uma importância estratégica para a efetiva implementação das políticas educacionais (Moraes, 2003).

As recomendações dos organismos multilaterais incidem so-bre as mesmas diretrizes e justificativas acerca da necessidade de re-forma da educação básica para suprir a defasagem existente entre as exigências do sistema produtivo e as possibilidades de resposta do sistema educativo na preparação de recursos humanos adequados ao mercado de trabalho e à cultura da empregabilidade.

Conforme Shiroma e Campos (1997) e Shiroma, Moraes e Evangelista (2004), a importância econômica atribuída à educação foi tratada, primeiramente, em um documento da cepal de 1990 intitulado Transformación productiva con equidad, no qual se pregava

2 Não é a primeira vez que esses organismos assumem protagonismo no gerenciamento das reformas político-administrativas necessárias ao de-senvolvimento capitalista (Cf. saviani, 2002).

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a necessidade de preparação de recursos humanos para a reestru-turação das economias locais (América Latina e Caribe).

O documento observava a necessidade de investimentos em reformas dos sistemas de ensino com a finalidade de adequá-los à oferta de conhecimentos e habilidades específicos à reestruturação do sistema produtivo, dentre os quais se destacam: versatilidade, capacidade de inovação, comunicação, motivação, destrezas bá-sicas, flexibilidade para adaptação a novas tarefas e habilidades como cálculo, ordenamento de prioridades e clareza na exposição, priorizando a educação básica para o desenvolvimento deles.

No mesmo ano, a educação básica foi tema da Conferência Mundial de Educação para Todos realizada em Jomtien (Tailândia), cuja síntese, dada na Declaração Mundial de Educação para Todos (brasil, 1993), apresenta orientações sobre como aumentar a esco-laridade e erradicar o analfabetismo sem aumentar exageradamen-te os recursos financeiros e humanos3.

Financiada por Unesco, Unicef, PNUD e Banco Mundial, a Conferência contou com a participação de 155 países signatários da Declaração, além de agências internacionais e profissionais da educação, interessados nas metas, estratégias e referenciais elabo-rados por esses organismos para a universalização da educação básica até o ano 2000.

De acordo com Shiroma, Moraes e Evangelista (2004), a Con-ferência foi o marco para o início das reformas político-educacio-nais nos nove países com os maiores índices de analfabetismo do mundo (Bangladesh, Brasil, China, Egito, Índia, Indonésia, México, Nigéria e Paquistão). Essas reformas tinham como finalidade conso-lidar os princípios acordados na Declaração e articulados ao Fórum Consultivo Internacional para a “Educação para Todos” (Educa-tion for All), que ao longo da década de 1990 realizou reuniões

3 De acordo com o documento, no início da década de 1990 mais de 100 milhões de crianças não tinham acesso à escola e mais de 960 milhões de adultos eram analfabetos ou analfabetos funcionais.

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regionais e globais de natureza avaliativa sob coordenação da Unesco.

O documento propõe que a educação básica desenvolva as chamadas Necessidades Básicas de Aprendizagem (neba) que compreendem os instrumentos essenciais para a aprendizagem: leitu-ra, escrita, expressão oral, cálculo e solução de problemas; e os con-teúdos básicos da aprendizagem: conhecimentos, habilidades, valores e atitudes.

Cumpre ressaltar que as neba são consideradas essenciais pelo documento para melhorar a qualidade de vida dos indiví-duos e para ensiná-los a aprender a aprender. Conforme o docu-mento, somente uma educação pautada nessa perspectiva poderia dar conta dos desafios que se apresentam para o século XXI, cuja característica fundamental se expressaria no volume de informa-ção disponível no mundo contemporâneo, que estaria crescendo em ritmo acelerado e agregado aos avanços da capacidade de co-municação do mundo globalizado.

Semelhante concepção pode ser encontrada no documen-to Prioridades y estrategias para la educación elaborado pelo Banco Mundial (1995), cujo objetivo era o de traçar as diretrizes políticas para orientar as reformas educacionais nos países de baixa escola-ridade, buscando na educação a sustentação para uma política de contenção da pobreza (sHiroMa; Moraes & evangelista, 2004).

A vinculação entre os investimentos na educação básica e o crescimento econômico aparece de forma cristalina no discurso do Banco Mundial, quando determina que uma de suas principais fi-nalidades é formar indivíduos funcionais, adaptáveis às demandas do mundo trabalho e da economia.

A educação básica proporciona o conhecimento, as habilidades e as atitudes essenciais para funcionar de maneira efetiva na sociedade sen-do, portanto, uma prioridade em todo lugar. Esses atributos incluem um nível básico de competência em áreas gerais tais como habilidades verbais, computacionais, comunicacionais, e a resolução de problemas. Essas competências podem ser aplicadas a uma grande variedade de empregos e permitir às pessoas adquirir habilidades e conhecimentos

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específicos orientados para o trabalho, quando estiverem no local de trabalho [Banco Mundial, 1995 apud torres, 1996, p. 131].

Por esse motivo, o Banco Mundial decide voltar os investi-mentos destinados à educação para os chamados insumos como: textos escolares, capacitação docente, tempo de instrução, ava-liação da aprendizagem, entre outros, atuando em atividades de pesquisa, assistência técnica e assessoria aos governos na ela-boração e implementação de políticas e reformas educacionais (torres, 1996).

No que diz respeito à formação docente, o Banco Mundial re-comenda investimentos na melhoria do conhecimento do professor, considerando que a capacitação em serviço oferece melhores resul-tados para o desempenho escolar em comparação com a formação inicial, além de maiores vantagens com relação ao financiamento.

Assim sendo, o organismo recomenda que a formação ini-cial do professor deva ser realizada em menor tempo, projetada para o nível superior e centrada em aspectos pedagógicos. Tal recomendação diminuiria os dispêndios com uma formação pro-fissional mais longa. Já a capacitação em serviço deveria ater-se à melhoria do conhecimento do professor sobre a matéria que leciona, bem como às práticas pedagógicas que desenvolve, ten-do como norte a atualização desses saberes e a vinculação direta com a prática da sala de aula. Ainda com relação ao quesito baixo custo, o Banco Mundial recomenda as modalidades de educação a distância, tanto para a formação inicial, quanto para a capacita-ção em serviço.

Outro documento de referência na reforma educacional bra-sileira também se apoia na mesma perspectiva de educação e de formação docente. Trata-se do relatório para a Unesco elaborado pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, sob coordenação do economista francês Jacques Delors4.

4 O Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI foi publicado no Brasil no ano de 1998 com o título Educação: um tesouro a descobrir. Na apresentação da edição brasileira do Relatório

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A Comissão teria identificado, no período de 1993 a 1996, as necessidades e tendências consideradas essenciais à formação dos indivíduos para os enfrentamentos de natureza social, cultu-ral, econômica e política. Tais enfrentamentos, específicos ao novo século, reforçariam o papel da educação, na preparação dos indi-víduos, e o da formação docente, na implementação da reforma política estrutural e curricular que deveria ser posta em prática em diversos países.

Nesse sentido, a Comissão propõe um novo conceito de educação, cujas bases são consideradas mais eficazes à adaptação autônoma dos indivíduos em um mundo em constante mudança. Trata-se do conceito de educação como um continuum: o apren-der a aprender, edificado sobre quatro pilares que sintetizam o caráter de prontidão que deve ser formado nos educandos. São eles: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, e aprender a ser.

No que se refere ao aprender a fazer, o documento é taxativo quanto à obsolescência do modelo de qualificação profissional pe-rante as características de formação do trabalhador (operadores e técnicos) exigidas pelos novos processos de produção. Tais proces-sos demandariam domínio cognitivo e informativo dos sistemas, tanto para as tarefas de produção (comando das máquinas, manu-tenção e vigilância), quanto para as tarefas de concepção, estudo e organização do trabalho, implicando, portanto, o aprender a conhe-cer. Como esse novo modo de produção prioriza a organização do trabalho em grupo (“grupos de projetos”), cuja principal referência no documento é o “modelo japonês”, a descoberta do outro e a condução das atividades para objetivos comuns são imprescindí-veis e, por isso, preconizadas pelo aprender a viver juntos (delors, 2002, pp. 93-94).

Jacques Delors (2002) – como ficou conhecido no Brasil –, o então ministro Paulo Renato de Souza destacou sua importância para “repensar a edu-cação brasileira”, numa referência à reforma política e administrativa em processo no país.

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Com relação à preparação do professor, o relatório endossa as orientações do Banco Mundial quanto à formação inicial e con-tinuada. Destaca a formação por competências e para a pesquisa (com vistas à resolução de problemas) como eixo articulador dos processos formativos, tendo como norte a reflexão sobre a prática.

2. A formação do professor profissional

Com base no que foi exposto, podemos afirmar que o ele-mento norteador das reformas na formação docente advém das concepções e estratégias adotadas para a educação básica que exigem um determinado perfil de professor para que sejam im-plementadas.

À semelhança do que ocorre com a formação do trabalhador em geral, o modelo “tradicional” de formação de professores é tam-bém considerado obsoleto pelo discurso reformador. Diante das novas exigências postas para a atuação docente, em uma realidade caracterizada como mutável e complexa, surge a demanda por so-luções práticas, imediatas e criativas aos problemas de um cotidia-no escolar cada vez mais individualizado e particularizado, tendo como objetivo não prejudicar o “andamento” do processo educati-vo, nem a passagem dos educandos pelos sistemas de ensino.

Nesse sentido, um modelo de formação “tradicional” pauta-do no domínio dos conhecimentos teórico-científico e pedagógico seria inadequado. Como alternativa, o discurso reformador pro-põe o modelo da profissionalização pautado pela formação reflexiva e pela competência.

Conforme Shiroma, Moraes e Evangelista (2004), a profissio-nalização é uma proposição problemática uma vez que supõe que o professor não é profissional, mas deve ser profissionalizado a partir de um “saber-fazer” que supere uma dada dicotomia entre a prática educativa e a vida.

Ainda segundo as autoras, para instituir o modelo da profis-sionalização na formação de professores

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[…] foi necessário peculiar estratagema de deslegitimação de seus sa-beres teóricos e práticos, seguido do esforço de convencê-los de que precisam de uma reprofissionalização, desconectada das raízes de seu métier. O ardil consiste em que, buscando retirar do mestre a identidade construída ao longo da história de seu ofício, esvazia-a de seu sentido original e em seu lugar procura construir uma outra mentalidade, com-petitiva e individualista por excelência [sHiroMa; Moraes & evangelista, 2004, p. 99].

No Brasil, a política educacional da década de 1990, associa-da à política de ajuste às exigências da reestruturação econômica em âmbito global, foi iniciada na Era Collor, ganhando força nos Governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) com o lema da “modernização” e da “globalização”. Nesse contexto, a educação apresentava-se como elemento principal para a erradicação da pobreza e para a retomada do crescimento e do desenvolvimento econômico do país.

O primeiro documento que sinaliza o alinhamento com as orientações dos organismos multilaterais é o Plano Decenal de Edu-cação para Todos (1993-2003), elaborado no Governo Itamar Franco. Conforme Shiroma, Moraes e Evangelista (idem, p. 62), “[…] com esse plano, o Brasil traçava as metas locais a partir do acordo fir-mado em Jomtien e acenava aos organismos multilaterais que o projeto educacional por eles prescrito seria aqui implementado”. Os documentos subsequentes ao Plano Decenal expressam, por-tanto, as diretrizes traçadas por esses organismos.

Na avaliação de Shiroma e Evangelista (2003, p. 87), os do-cumentos nacionais apresentam uma leitura particular da refor-ma educacional, na qual se distinguem dois polos: “[…] um rela-tivo à prática escolar e seus correlatos (livro didático, sistema de avaliação, gestão escolar, material pedagógico, currículo, relação pro fes sor-aluno) e outro relativo à formação docente”.

Segundo as autoras, a estratégia adotada pelo Governo FHC foi intervir inicialmente no primeiro polo por meio da produção de documentos, diretrizes, referenciais e programas que possibi-litaram a difusão de princípios baseados na Qualidade Total, com

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o objetivo de adequar o sistema educacional e as administrações escolares à cobrança por resultados. Essa prática institucionalizou mecanismos competitivos e meritocráticos como orientadores de investimentos nas instituições escolares.

Na segunda etapa, procurou-se intervir na lógica da organiza-ção escolar e das práticas educativas, propondo mudanças no sistema de formação docente. Nesse contexto, o professor assume um pro-tagonismo fundamental para garantir a consecução dos objetivos e dos programas de ação elaborados para todos os níveis e moda-lidades de ensino.

A primeira mudança concreta na formação docente no Brasil foi proposta com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) n. 9.394/96 (Art. 61, 62, 63), que, além de possibilitar ações e políticas de referência para o sistema nacional de ensino, projetou a formação do professor da educação básica para o ensino superior, cujo locus preferencial foi atribuído aos Institutos Superiores de Educação (ISE)5.

As agências formadoras e seus respectivos cursos de forma-ção (magistério, no ensino médio; pedagogia e licenciaturas, no en-sino superior) foram considerados inadequados para a preparação do professor de novo perfil. Nesse sentido, embora os documentos que autorizam e justificam as mudanças tenham advertido para a necessidade de estreitamento das relações entre a universidade e os ISE, estes últimos deveriam dedicar-se exclusivamente à capa-citação docente – formação inicial e continuada de professores – e ao ensino. Essa iniciativa buscou atender à orientação das agên-cias multilaterais por uma formação inicial mais rápida e flexível, abstraindo do processo de formação do professor a pesquisa e a extensão e atribuindo forte ênfase à formação pela prática.

Nesse contexto inserem-se os Referenciais para a Formação de Professores (RFP), elaborados pelo Ministério da Educação

5 Os ISE foram eleitos, inicialmente, como locus exclusivo e mais tarde prefe-rencial para a formação de professores.

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(MEC) e Secretaria de Educação Fundamental (SEF) (brasil, MEC, SEF, 1998), assim como as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a Formação de Professores da Educação Básica (brasil, CNE, 2001 e 2002). O primeiro documento propõe um referencial teórico e um modelo curricular adequado ao novo ideário da formação docente, consolidando as bases epistemológicas, os objetivos e as competências profissionais requeridas para a atuação do professor da educação básica. Esses mesmos objetivos e bases serão confir-mados posteriormente pelas DCN.

3. Referenciais e Diretrizes para a Formação de Professores

Publicado em 1998, os Referenciais para a Formação de Pro-fessores (brasil, MEC, SEF, 1998) configuram-se, segundo a SEF, como “fruto” das discussões de diversos profissionais: equipe de elaboração, técnicos de diferentes instâncias do MEC, leitores críticos, consultores, pareceristas, pesquisadores e educadores de todos os estados brasileiros. Sua legitimidade como política edu-cacional nacional ancora-se, portanto, na existência de um suposto consenso acerca dos pressupostos sobre os quais deve ser guiada a formação do professor da educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental.

Embora admita a necessidade de investimentos nas condi-ções objetivas para a realização do trabalho pedagógico (salários, condições de trabalho, valorização do professor etc.), o documento atribui a outras instituições e circunstâncias a discussão sobre es-sas questões e aposta na incorporação de algumas tendências para a formação do “novo perfil profissional” do professor. Tais ten-dências seriam capazes de dotá-lo das competências necessárias ao desenvolvimento de um trabalho pedagógico de “qualidade” mesmo em condições adversas.

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Com a finalidade de redimensionar o papel do professor, sua prática e sua formação, o documento retoma a discussão realizada pelo “Relatório Jacques Delors” (delors, 2002) acerca da importân-cia da educação básica, afirmando a necessidade de se considera-rem os quatro pilares da educação também na formação docente.

De acordo com os Referenciais (brasil, MEC, SEF, 1998), o tra-balho educativo é singular e contextual, em consequência da pró-pria natureza da atuação profissional do professor caracterizada por um conjunto de relações e circunstâncias complexas, diversifi-cadas, conflituosas, que demandariam ações e soluções imediatas e específicas ao contexto.

Desse modo, o documento propõe que a formação de profes-sores seja orientada pela construção de competências profissionais com vistas à resolução de situações-problema e a um saber-fazer que privilegie as aprendizagens específicas e necessárias à atuação profissional para a incerteza e a imediaticidade do cotidiano esco-lar. Para tanto, elege um modelo de formação que toma o desen-volvimento de competências profissionais como princípio, a refle-xão sobre a prática e o desenvolvimento profissional permanente como eixos articuladores.

De acordo com os Referenciais, a formação reflexiva deve ser incorporada à formação do professor de modo que potencialize a ação e a reflexão, tidas como necessárias ao desenvolvimento de uma prática educativa competente e problematizadora.

O documento pauta-se em estudos6 que identificam três ní-veis de conhecimento envolvidos na atuação pedagógica do pro-fessor: conhecimento na ação, reflexão na ação e reflexão sobre a ação e considera que a prática reflexiva deve configurar-se como uma atitude cotidiana do professor em busca da compreensão da reali-dade educativa e da própria prática.

6 As principais referências adotadas no documento estão baseadas nos es-tudos de Schön (2000), Nóvoa (1995a, 1995b), Alarcão (1996) e Perrenoud (1993).

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Cumpre assinalar que a prática reflexiva aparece no docu-mento como: a) um importante instrumento, recurso ou procedi-mento metodológico (ao lado da resolução de problemas) para o tratamento dos conteúdos de todos os âmbitos do conhecimento profissional (teórico, experiencial e pedagógico); b) e uma compe-tência, também designada como atividade intelectual, a ser apren-dida pelos professores no exercício próprio de suas funções.

Tanto a reflexão sobre a ação quanto as competências deman-dariam, segundo os Referenciais, uma compreensão da formação docente como um processo contínuo. Nesse sentido, o documento adverte sobre a necessidade de atualização constante das compe-tências ou, pelo menos, sempre que o contexto educativo o exigir, e introduz uma concepção de formação pautada pelo desenvolvi-mento profissional permanente.

A formação é aqui entendida como processo contínuo e permanente de desenvolvimento profissional, o que pede do professor disponibili-dade para a aprendizagem; da formação, que o ensine a aprender; e do sistema escolar no qual ele se insere como profissional, condições para continuar aprendendo. Ser profissional implica ser capaz de aprender sempre [brasil, MEC, SEF, 1998, p. 63].

Esse posicionamento aponta para o caráter de continuidade e permanência da formação do professor que, como qualquer ou-tro profissional da sociedade contemporânea, deveria ter clareza sobre a obsolescência dos saberes em uma realidade em constante mudança. O documento considera que a formação inicial é impor-tante, mas como meio para a elevação do nível e da transforma-ção de competências, especialmente de professores em exercício, não seria suficiente e apresentaria limites. Desse modo, atribui à formação inicial dos professores a responsabilidade de formar o caráter de prontidão ou a disponibilidade para aprender sempre, apresentando o “aprender a aprender” como uma característica do “ser profissional”.

À formação continuada cabe a responsabilidade pela atuali-zação e o aprofundamento das competências e das temáticas edu-

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cacionais necessárias à atuação docente, mediante demandas sem-pre “flutuantes” da realidade social. Essa atualização deve estar apoiada na reflexão sobre a prática e promover um processo cons-tante de autoavaliação como orientador da construção contínua de competências profissionais.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica (brasil,CNE, 2002) destinam-se à regulamentação dos cursos em nível superior: licenciatura, gradu-ação plena. Toma como fundamento, entre outros documentos, os Referenciais para a Formação de Professores (brasil, MEC, SEF, 1998) e o Parecer do CNE n. 09/2001, no qual se encontram expli-citados os fundamentos teóricos e epistemológicos das Diretrizes.

O Parecer n. 09/2001 apresenta a proposta para as Diretrizes como síntese de “[…] um longo processo de crítica, reflexão e con-fronto entre diferentes concepções sobre a formação docente e suas práticas” (brasil, CNE, 2001, p. 6), para o qual teriam contribuí-do o pensamento acadêmico, a avaliação de políticas públicas em educação, experiências inovadoras de algumas ISE e movimentos sociais.

Tendo como um de seus objetivos “sintonizar” a formação docente com as demandas da formação em geral, o documento chama a atenção para o processo de “ressignificação” da Educa-ção Básica ocorrida ao longo da década de 1990, fundamentada na “revisão conceitual” das iniciativas de gestão e organização pe-dagógica, ocorridas no mesmo período. Nesse sentido, discute as competências e áreas de desenvolvimento profissional necessárias à formação do professor de novo perfil, mais adequado às exigên-cias da sociedade contemporânea.

O Parecer n. 09/2001 (brasil, CNE, 2001) propõe-se a enfren-tar algumas questões históricas que perpassam a discussão sobre a qualidade da formação e da prática docentes. Entre elas destaca-mos o que o documento conceitua como “tratamento inadequado dos conteúdos” que implicaria, em última instância, a dissociação teoria e prática.

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O documento defende que a formação do professor tenha como orientação “nuclear” uma determinada concepção de com-petência que permita ao profissional da educação mobilizar os co-nhecimentos construídos com o propósito de transformá-los em ação. Desse modo, a construção de competências deve perpassar os conteúdos e a abordagem metodológica de modo que organize um percurso de aprendizagem que articule teoria e prática. Tal ar-ticulação pressupõe o “[…] exercício das práticas profissionais e da reflexão sistemática sobre elas” (brasil, CNE, 2001, p. 30).

Nessa perspectiva, a pretendida “articulação” teoria e prática dá-se pela subsunção da teoria à prática, atribuindo caráter instru-mental à primeira. A ação e a competência são consideradas cate-gorias fundantes dos processos formativos, em torno dos quais são definidos os objetivos, os conteúdos, as concepções de aprendiza-gem e as metodologias implicadas na formação docente. As DCN (brasil/CNE, 2002) expressam essas proposições em seus artigos, regulamentando o esvaziamento da formação docente, bem como sua limitação à contingência da prática.

Considerações finais

A análise das orientações dos Referenciais para a Formação de Professores (brasil, MEC/SEF, 1998) e das Diretrizes Curricula-res Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica (brasil/CNE, 2001, 2002), além de apontar para o alinhamento com as prescrições dos organismos internacionais, também evidencia a preocupação com a criação de formas de interferência direta nas práticas educativas desenvolvidas pelos professores nos contextos escolares por meio da formação continuada.

No que se refere ao alinhamento com os organismos mul-tilaterais, os documentos apropriam-se dos mesmos conceitos e orientações metodológicas preconizados para a formação docente. Pautados pela formação por competências e pela prática reflexiva, promovem a redução do trabalho educativo a um saber-fazer cir-cunstancial, os saberes e os conhecimentos àqueles construídos

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na e pela prática e a formação de competências no lugar da for-mação teórica e acadêmica.

Essa perspectiva de formação tem como um de seus funda-mentos a epistemologia da prática, resultante dos estudos realiza-dos por Donald Schön (1995, 2000).

De acordo com Campos e Pessoa (1998), Donald Schön teria desenvolvido seus primeiros estudos sobre formação profissio-nal no campo da arquitetura por solicitação do Massachussets Institute of Tecnology/EUA, no início dos anos de 1970. Funda-mentado na teoria da indagação de John Dewey (1952), o autor desenvolveu argumentos a favor de uma epistemologia da prá-tica em contraposição à racionalidade técnica, que caracterizaria a epistemologia da formação universitária por ele criticada. No início da década de 1990, as reflexões de Schön começaram a ser discutidas no meio acadêmico como contribuição para a forma-ção de professores.

O conceito de prática reflexiva em Donald Schön (1995) des-dobra-se em três outros:

• conhecer-na-ação: apresenta noções de saberes escolares, mas é caracterizado por um conhecimento de caráter mais rotineiro, intuitivo e experimental que permitiria uma primeira incursão sobre a realidade por meio de ações espontâneas e de habilidades próprias do sujeito, ou constituídas em experiências passadas;

• reflexão-na-ação: realizada pelo sujeito a partir das si-tuações de incerteza que se apresentariam na prática profissional, para as quais não se encontram respostas imediatas;

• reflexão sobre a reflexão-na-ação: ocorreria em momento posterior à ação e permitiria a análise da situação vi-venciada para (re)orientação da prática.

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Com base nesses conceitos, Schön (1995) defende uma epis-temologia pautada pela construção de conhecimentos a partir de um “saber-fazer fazendo” por meio de um sistema de formação tutorado, no qual o aprendiz poderia “aprender a prática de um prático praticando” (caMpos & pessoa, 1998, p. 194).

A assepsia teórica realizada na formação profissional pode ser mais bem compreendida se considerarmos que, para Schön (1995), os conceitos da prática reflexiva se ancoram no conhecimento so-bre a prática profissional, uma vez que compreenderiam, além da subjetividade empreendida pelo sujeito que pratica a ação, toda a complexidade do real na qual ela se efetiva. Tal dinâmica possibi-litaria a construção de soluções para problemas distintos em uma realidade situada.

A reflexão sobre a reflexão-na-ação tornaria possível a verifi-cação da validade das soluções construídas, também em uma di-mensão prática, uma vez que “[…] refletir sobre a reflexão-na-ação é uma ação, uma observação e uma descrição, que exige o uso de palavras” (scHön, 1995, p. 83, grifo do original).

Dessa breve contextualização ressalta o fato de que o conheci-mento como um dado subjetivo e a secundarização do saber cien-tífico são fortes componentes dessa perspectiva, com importantes consequências para a formação do professor.

Segundo os Referenciais (brasil, MEC/SEF, 1998), a reflexão--na-ação tem um papel fundamental na formação e na atividade do professor na medida em que permitiria o confronto de ideias, teorias e crenças que comporiam seu repertório de saberes com a prática pedagógica cotidiana. Esse confronto colocaria em ques-tão conhecimentos prévios ante as novas situações vivenciadas pelo professor, impulsionando a disposição para uma nova com-preensão sobre a realidade e a tomada de decisões afinadas com a intencionalidade da prática educativa e as reais possibilidades de efetivação dessa prática. Entretanto, como adverte o próprio documento, essa reflexão se faz “[…] sem o rigor, a sistematização

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e o distanciamento requeridos pela análise racional, mas com a ri-queza da totalidade do momento” (brasil, MEC/SEF, 1998, p. 60).

Tomando como fundamento a perspectiva de formação do-cente defendida pela pedagogia histórico-crítica7, podemos afir-mar que a formação de professores preconizada pela ótica oficial incide na impossibilidade de uma reflexão crítica e efetiva sobre a realidade educacional.

Saviani (1996) assevera que a reflexão filosófica (embasada nas categorias de radicalidade, rigor e globalidade) possibilita ao educador a superação de uma prática pedagógica concebida de for-ma fragmentária e desarticulada, por uma compreensão unitária, coerente, articulada e intencional. Nesse sentido, o autor realiza uma crítica às práticas educativas baseadas em concepções guia-das pelo senso comum, nas quais o trabalho educativo se limita à reprodução do cotidiano fragmentado e alienado.

O autor ainda destaca o papel do conhecimento científico para o desenvolvimento do trabalho educativo, considerando sua importância para a compreensão da realidade na qual a prática pe-dagógica se desenvolve (em suas múltiplas determinações) e seu conteúdo histórico e social, imprescindível ao processo de huma-nização dos indivíduos.

A reflexão filosófica e o conhecimento científico compõem, portanto, as bases sólidas para a formação do educador, cuja ati-vidade deve comprometer-se com uma educação escolar que pro-mova o desenvolvimento das máximas possibilidades de formação humana em cada indivíduo singular.

A proposição de uma formação estruturada em torno da reflexão sobre a prática considera apenas a atuação eficiente do professor no contexto particular no qual, circunstancialmente, o trabalho educativo se desenvolve. Nessa epistemologia da prática,

7 A pedagogia histórico-crítica tem como fundamento teórico-metodológico o materialismo histórico-dialético. Considera a reflexão filosófica impres-cindível para a compreensão da prática educativa no interior da prática social.

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parece não haver espaço para um conhecimento efetivo e verda-deiro sobre a realidade, o que compromete as possibilidades de compreensão, por parte do professor, das múltiplas determina-ções que interferem no desenvolvimento do trabalho educativo, e no próprio sentido dessa atividade para uma formação humana emancipatória.

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9. Pedagogia histórico-crítica, psicologia

histórico-cultural e educação especial:

em defesa do desenvolvimento da pessoa com e sem deficiência

Sonia Mari Shima Barroco

Quero, em primeiro lugar, agradecer o convite feito pelo professor Newton Duarte para participar como palestrante no evento “Pedagogia Histórico-Crítica: 30 anos” (Unesp - Araraquara, 2009). Minha exposição refere-se à educação especial e nela objetivo discutir alguns aspectos do pensamento do professor Dermeval Saviani relevantes para a educação especial ou para a educação de pessoas com deficiências. Também procuro apresentar proposições de L. S. Vygotski1 (1896-1934) para a educação especial soviética, a chamada defectología2. Entendo, por esse modo, ter elementos para entendermos melhor a educação que desenvolvemos nesta primeira década do século XXI.

1 Será adotada esta grafia para o nome do autor, exceto quando citado ou referenciado de modo diferente pelas fontes eleitas.

2 Termo utilizado por Vygotski e outros autores soviéticos. Refere-se à área de estudos teóricos e de intervenção relativa ao que hoje se conhece como educação especial. Não há uma tradução adequada em português, assim, será mantido o termo traduzido do espanhol, também presente em publicações lusitanas. Ante a sua recorrência, doravante será empre-gado sem aspas ou itálico, a não ser que a passagem requeira tal diferen-ciação.

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Para trabalhar como psicóloga e professora universitária na formação de psicólogos e de professores, é necessário identificar alternativas para a aprendizagem e o desenvolvimento de pessoas com e sem deficiências, bem como explicar a situação em que se encontra o homem contemporâneo presente na escola, cuja condu-ta, especialmente nestas últimas décadas, tem sido reprovável – si-tuação que ele (re)produz e na qual se constitui. Ele vê-se às voltas com uma enorme riqueza sendo produzida a passos largos, com uma extensão cada vez maior do seu corpo inorgânico (MárkUs, 1974) e, ao mesmo tempo – e contraditoriamente –, com a imposi-ção da sua própria pobreza, do seu esvaziamento, na mesma velo-cidade e intensidade.

Diante disso, ressalto que olhar para a educação especial ou para a história do reconhecimento da educabilidade da pessoa com deficiência pode ser inspirador. Essa história, longe de ser um arrolamento de fatos e feitos, demonstra, na verdade, as possibi-lidades humanas de aprender, de desenvolver-se, de superar-se e, certamente, a sua apropriação pode vivificar o trabalho educativo em meio à contradição citada que se processa.

Para o propósito deste evento, de comemoração e até de “ba-lanço” da pedagogia histórico-crítica, abordarei a luta pela acessi-bilidade ao conhecimento, a necessidade de superação do escola-novismo na educação especial, a inspiração que a educação social3 e a teoria de Vygotski podem trazer para o trabalho pedagógico. Considero que temáticas como essas sejam necessárias para se pensar e realizar uma educação de fato especial.

1. Uma causa pela qual lutar

Ao atuar na educação, comum ou especial, meu posiciona-mento tem se fixado além da questão de ser contra ou a favor da inclusão escolar. Parece-me que essa discussão não encaminha a

3 Parte do conteúdo aqui exposto pode ser encontrada em Barroco (2007a).

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uma prática social e educacional capaz de fazer frente ao processo de esvaziamento do homem, seja ele deficiente ou não. Considero preocupantes, embora muitas vezes necessários, os vários movi-mentos em defesa dos direitos de um determinado grupo (pessoas com autismo, pessoas cegas ou com baixa visão, com deficiências físicas, e tantos outros e de diferentes naturezas). Se eles são neces-sários para que se reconheçam os diferentes modos de desenvol-vimento humano, também o são para se compreender a situação do ser humano na contemporaneidade. Penso que a nossa luta é pelo enfrentamento às condições geradoras da alienação e do es-vaziamento ou empobrecimento do homem, da sua não realização como homem cultural e livre, em prol da criação e do suprimento de novas necessidades. Meu empenho educacional diz respeito à for-mação do homem rico, apresentando ou não deficiência (barroco, 2007b).

Oferecer subsídios para que professores e instituições esco-lares se posicionem nesse sentido não se constitui em tarefa fácil, seja porque implica se ter uma concepção clara da constituição do humano no homem, de atividade humana na sociedade do não tra-balho, das diferentes possibilidades e modos do existir; seja por se ter de apostar e investir naquilo que não se vê, mas que se espera: no vir-a-ser. A rotina do trabalho escolar, assim como o proces-so de formação docente inicial e continuada (em serviço), não tem colaborado para que essa concepção seja gestada e desenvolvida. Antes, esses fatos têm levado a uma “apropriação” aparente da realidade, e não dela mesma, da coisa em si, o que resulta em in-tervenções ou ações também sobre a esfera da aparência, dos sin-tomas.

Essa prática de pautar-se e de intervir naquilo que se apresen-ta à primeira vista está instituída fora e dentro do âmbito escolar, e reproduz a lógica da produção para que tudo se dê de modo ali-geirado: a formação docente, o ensino, a apropriação dos saberes sistematizados, a produção do conhecimento etc. Assim, não fica difícil entender as pressões de toda a ordem para índices quantita-tivos de produção na esfera educacional, esperando-se que profes-

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sores e alunos apresentem resultados que validem, a olhos vistos, a intervenção escolar. Nesse contexto, também não é difícil entender que essa lógica de aligeiramento e de esvaziamento recai de modo brutal sobre os alunos diferenciados pela deficiência. A saída que se oferece, não só para esses alunos, é que a escola seja cada vez mais fraca para os fracos.

Vygotski (1997b), já na década de 1920, criticava uma peda-gogia especial arcaica e caduca, que era fraca para os fracos. A nova educação especial ou defectologia, a seu ver, deveria oferecer uma escola auxiliar ou escola especial forte para quem se apresentava como fraco. Ela deveria gerar potencialidades, assim como a edu-cação regular ou comum; deveria provocar revoluções nos alunos que nela estudavam. Ele defendia a necessidade de os professores e demais profissionais investirem mais em explicar os aspectos ín-tegros ou positivos do aluno (aspectos físicos, emocionais, sociais) e por eles encaminhá-los às compensações e superações, numa clara aplicação do materialismo histórico-dialético; contudo, não é isso o que temos observado, quase um século depois.

Nos dias de hoje, tal como à época de Vygotski (quando era preciso formar um novo homem, com um novo modo de pensar a si mesmo, a educação, a sociedade, a vida), a atenção tem sido direcionada para aquilo que se apresenta como faltoso aos alunos com deficiências, porém, de uma análise apenas aparente. Por esse modo, também fica compreensível – mas nem por isso justificá-vel – que profissionais que atuam junto a eles se dediquem mais aos procedimentos metodológicos que à formação, neles, do hu-mano. Aliás, fica até difícil pensar em como uma pessoa que não enxerga nem ouve, que seja surdo-cega, por exemplo, possa ter funções psicológicas superiores desenvolvidas a um nível tal que lhe permita formar-se em psicologia ou em filosofia, e nessas áreas atuar profissionalmente.

Algo dessa natureza ocorreu na então União Soviética, com uma experiência piloto desenvolvida entre uma escola especial para surdo-cegos e a Universidade de Moscou, nos anos de 1970 (barroco, 2007a). Esse alcance, o de formar aquilo que é especifi-

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camente humano em pessoas cujos órgãos para a linguagem re-ceptiva e expressiva (visão e audição) não se encontram íntegros, foi uma obra coletiva: estava posta uma formação filosófica dos professores da educação especial, havia uma vontade política e um reconhecimento social para investir-se em tão cara e rara educa-ção. O que estava em questão não era o mero desenvolvimento de estratégias de ensino de linguagens (dactilologia, tadoma, braille, língua de sinais), nem somente o conteúdo curricular, mas a con-cepção de que a educação tem papel revolucionário na vida das pessoas – com e sem deficiências. Também estava em aplicação a tese de que os órgãos sensoriais, em sua constituição biológica, têm de ser ponto de partida para a formação dos órgãos sociais; ou seja, o biológico deve ser superado pelo cultural. Ou ainda, estava em pauta a defesa de que, quando falta o talento biológico, deve ser formado o talento cultural. Dito isso de outro modo, as pesso as com deficiência, mesmo tendo grandes especificidades em seus de-senvolvimentos, podem e devem passar pela escola, e o que esta lhes ensina deve projetá-las a outro patamar, deve transformá-las, metamorfoseá-las, deve contribuir para que passem de crisálidas a borboletas (vygotsky & lUria, 1996). Essa seria, pois, a escola que poderíamos chamar de inclusiva.

Repetir uma experiência dessa natureza, em que alunos se apropriem dos conteúdos cotidianos próprios à realização da ge-nericidade humana em suas vidas e também de conteúdos cientí-ficos, filosóficos e artísticos que lhes permitam a constituição da singularidade sobre um patamar mais elevado que o da mera re-produção da existência, só se faz possível se professores, alunos, conteúdos e metodologias se afinam a um dado propósito e se, an-tes disso, a concepção de homem e de sociedade, de educação e escolarização, encaminhar para isso, num posicionamento na con-tramão do instituído.

Nesse sentido, vale lembrar que, se a teoria vygotskiana não pode ser transportada para a defectologia – elaborada num mo-mento de implantação do socialismo, de chamamento de todos à produção, à edificação da sociedade soviética –, ela pode oferecer

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elementos de análise para identificar-se o que pode ser defendi-do e realizado numa sociedade capitalista em crise, que tem como problemática não mais a produção da riqueza, mas a circulação dela pelas diferentes classes sociais, mantendo-as por esse meio. Tal teorização inspira outra proposta de educação especial e ga-nha materialidade com as defesas marxistas para a educação esco-lar contempladas na pedagogia histórico-crítica. O entendimento de homem a ser assumido pela educação, constituído de modo his tó rico-cultural e comprometido ética e politicamente com uma dada concepção de sociedade, faz-se presente em ambas as propo-sições (vygotsky, [1930] 2004; saviani, 2005a e 2005b).

Ao nos depararmos com proposições inspiradoras como a citada, que a história registra, mas nem sempre se divulga, tor-na-se necessário refletirmos sobre a educação escolar que hoje oferecemos, recuperar as estatísticas do Ministério da Educação (brasil, 2007) e observar que o índice de matrículas de alunos com e sem deficiências tem aumentado. Nem por isso, porém, podemos dizer que o ensino e a apropriação do conteúdo curricu-lar estejam dando-se na mesma proporção, como nos indicam os resultados de avaliações nacionais da educação, que apresentam a média 4,2 para a educação básica – séries iniciais, de um total possível de 10,0 (brasil, 2007). Ante índices tão baixos4, observa--se que a acessibilidade ao conhecimento para pessoas com e sem deficiências se mostra como uma causa pela qual todos podem e devem lutar. Isso requer um posicionamento diferente do que ve-nho criticando, que se pauta no aligeiramento de tudo e na desva-lorização do próprio conhecimento tomado em sua radicalidade.

Para se fazer o enfrentamento a esse aligeiramento e ao que Moraes (2001) chamou de recuo da teoria, é preciso enfrentar, entre outros pontos, as tendências escolanovistas. Nesse sentido considero quão importantes se tornam os escritos do professor

4 Conforme material publicado pelo Ministério da Educação (brasil, 2007), os índices médios mais elevados são do Distrito Federal e Paraná, ambos com 5,0.

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Saviani para pensarmos na escolarização de pessoas com e sem deficiências.

2. A necessidade de superação do escolanovis-mo na educação especial

Ao tratar das pedagogias contemporâneas, Saviani (2005a) faz uma exposição crítica a respeito da Escola Nova. Entende que esta objetivava fazer frente a uma pedagogia caracteristicamente burguesa, buscando alcançar aquilo que a escola tradicional não conseguira. Escreve que ambas se inserem num grupo não crítico de teorias. Explica que, no século XIX e início do século XX, a esco-la tradicional tinha a missão histórica de educar a nova classe no poder, a burguesia, devendo os indivíduos ser ilustrados e ascen-der da condição de súditos para a de cidadãos.

Com destaque ao que Saviani teoriza – e que entendo ser de grande relevância para a educação especial –, pode-se analisar a educação com base na compreensão de marginalidade. Naquela so-ciedade oitocentista, marginal era a pessoa ignorante, e nesse sentido a escola torna-se um instrumento para a superação da marginalida-de. O professor torna-se o baluarte dessa educação, visto que

[…] transmite, segundo uma gradação lógica, o acervo cultural aos alu-nos. A estes cabe assimilar os conhecimentos que lhes são transmitidos. À teoria pedagógica acima indicada correspondia determinada manei-ra de organizar a escola. Como as iniciativas cabiam ao professor, o essencial era contar com um professor razoavelmente bem preparado.Assim, as escolas eram organizadas na forma de classes, cada uma con-tando com um professor que expunha as lições, que os alunos seguiam atentamente e aplicava os exercícios, que os alunos deveriam realizar disciplinadamente. Ao entusiasmo dos primeiros tempos suscitado pelo tipo de escola acima descrito de forma simplificada, sucedeu progressivamente uma crescente decepção. A referida escola, além de não conseguir realizar seu desiderato de universalização (nem todos nela ingressavam e mes-mo os que ingressavam nem sempre eram bem-sucedidos), ainda teve de curvar-se ante o fato de que nem todos os bem-sucedidos se ajusta-

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vam ao tipo de sociedade que se queria consolidar. Começaram, então, a se avolumar as críticas a essa teoria da educação e a essa escola que passa a ser chamada de Escola Tradicional [saviani, 2005a, pp. 6-7].

A Pedagogia Nova, por sua vez, forma-se em um movimento de reforma e revela-se, aparentemente, como uma forma de crítica à pedagogia tradicional, mas mantém a crença no poder da esco-la no que se refere à equalização social. Embora à primeira vista, no discurso e em proposições, se apresente revolucionária, não se revela como tal nem consegue fazer, de fato, a crítica ao instituído na prática social. Ela apresenta-se numa embalagem diferente, mas embrulhando o mesmo conteúdo, que é essa crença em seu po-der. Dito de outro modo, ao cuidar da nova forma, a Escola Nova permite que lhe escape o conteúdo sistematizado, tão evidente na escola anterior.

Além do exposto, conforme Saviani (2005a, pp. 7-8), nela “[…] o marginalizado já não é propriamente o ignorante, mas o rejeitado”. Por esse referencial da Pedagogia Nova, a educação po-deria tornar-se instrumento de correção da marginalidade ao con-seguir adaptar os indivíduos à sociedade, ao enfrentar a diferença que se apresentava na instituição escolar quanto mais se buscava a universalização do ensino, quanto mais se propunha uma escola para todos. Esse enfrentamento se daria incutindo-lhes o “[…] sen-timento de aceitação dos demais e pelos demais”. “Forja-se, então, uma pedagogia que advoga um tratamento diferencial a partir da ‘descoberta’ das diferenças individuais. Eis a ‘grande descoberta’: os homens são essencialmente diferentes; não se repetem; cada indivíduo é único”. Por tal entendimento, tem-se que “marginali-zados são os ‘anormais’, isto é, os desajustados e inadaptados de todos os matizes”, e pode-se concluir que a “anormalidade é nor-mal”. É oportuno destacar que esse discurso veiculado pelo esco-lanovismo de que os indivíduos devem aceitar-se mutuamente em suas diferenças se revela muito revigorado neste início de século.

Pode-se, assim, observar que o foco de atenção da educação, na passagem da escola tradicional para a Escola Nova, deixa de ser o intelecto e passa a ser o sentimento. A ênfase nos conteú-

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dos cognitivos é substituída pelo foco nos processos pedagógicos, direciona-se do lógico ao psicológico, da disciplina sistematizada ao espontaneísmo, do diretivismo ao não diretivismo. Abandona--se a ênfase na quantidade (de conteúdos ensinados, de conteú-dos aprendidos/memorizados e de conteúdos expressos em avaliações) em favor da atenção a alguma suposta qualidade. Ao passar-se de uma escola ou pedagogia à outra, abandona-se uma escolarização fundamentada na ciência da lógica e busca-se outra, baseada nas contribuições da biologia e da psicologia. Isso refor-ça a desvalorização da ciência e encaminha à negação da história, uma vez que a vertente da psicologia que ganha notoriedade é a chamada psicologia burguesa (vygotski, 1997a). Esta consegue ex-plicar a constituição do psiquismo humano divorciada do espaço temporal, geográfico e cultural no qual os indivíduos vivem e, de uma ou de outra forma, revelam-se como humanos. A biologia em destaque é aquela também sem historicidade na explicação do seu objeto, que naturaliza as formas e os meios de manifestação da vida.

Assim como Saviani (2005a), Duarte (2001, 2003) ressalta que o escolanovismo é uma teoria pedagógica segundo a qual o essen-cial não é aprender, mas aprender a aprender. Nessa direção, é per-tinente registrar que o “Relatório Jacques Delors” (delors, 2002), material publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) que vem sendo citado no âmbito educacional como crítico, define como essencialidade o aprender a aprender e não é enfático na aprendizagem de conteúdos constitutivos de um currículo que contemple aquilo que é funda-mental e, ao mesmo tempo, avançado em cada disciplina.

Essa defesa assumida no “Relatório”, representando diferen-tes países, acaba refletindo-se em áreas da educação e na modali-dade da educação especial ou na educação inclusiva. Por ela pode--se ter uma ideia de como a pedagogia em questão se apresenta de diferentes modos e dos seus desdobramentos. Nessa publicação não se observa uma defesa de que o conteúdo escolar seja ensina-do em sua complexidade e radicalidade. Isso é demonstrado na própria análise dos fatos, entre eles os que se referem à exclusão

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social. A superação do sofrimento, que se agudiza para os países pobres, acaba sendo defendida por meio de mudanças no mundo das ideias e das representações de mundo, mas sem alcançar as origens das aflições próprias da sociedade capitalista em crise.

Ao criticar o escolanovismo, Duarte (2001) deixa explicitado quanto a própria teoria formulada por Vygotski, em um contexto revolucionário e fundamentado no materialismo histórico-dialético, pode ser tomada por esse viés e adaptada aos propósitos que se queiram. Por esse modo de apreensão, retira-se a sua vitalidade, ao negar-se a historicidade que lhe é própria, transplantando-a a outra época e sociedade, para que cumpra desígnios que lhes são estranhos, como a prática pedagógica do aprender a aprender.

É possível concluir, pelo que ela preconizou e pelo que se efetuou, que a prática escolar escolanovista se apresentou como financeiramente mais cara, pois implicava suprimir aquele profes-sor que dominava as humanidades e outras áreas do saber em prol de um que fosse organizador da atividade, orientador da aprendi-zagem, direcionado pelos interesses dos alunos. O conteúdo a ser ensinado precisou de vários outros recursos, muito além da aula expositiva, tão comum na escola tradicional.

Saviani (2005a) também, ao escrever acerca das teorias crítico--reprodutivistas referentes à educação escolar, considera que estas entendem não ser possível compreender a educação sem se consi-derarem os condicionantes sociais. Tais condicionantes, todavia, concluem que a escola é incapaz de intervir na sociedade, e quanto à questão de destaque, a marginalização, consideram que a educa-ção acaba por reproduzi-la. Cada uma das diferentes teorias que possam ser vistas a partir dessa perspectiva apresenta seus pró-prios princípios e defesas, mas em comum fica marcada a condição negativa da educação ante os enfrentamentos sociais. Nesse caso, a escola não poderia assumir um papel para além da reprodução das relações sociais de dominação.

A superação das teorias educacionais não críticas e crítico--reprodutivistas se daria, no entender de Saviani (2005a), por meio da teoria crítica da educação. Considero de grande relevância a

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problematização que faz a respeito desta: como seria sua propo-sição teórica em relação ao problema da marginalização? Ante a realidade social própria ao capitalismo em crise, ela seria capaz de contribuir para a superação do problema da marginalidade? A pedagogia histórico-crítica proposta por Saviani busca responder a essas indagações, num exercício da lógica dialética e numa visão histórica. Nela, a escola defendida pode fazer enfrentamentos a partir da prática social, a ela ascendendo, teorizando-a e desven-dando as suas múltiplas determinações. Tem-se, assim, o concreto pensado, para apreendê-la e, desse modo, chega-se à prática edu-cativa de um modo diferenciado daqueles criticados. Passa-se de uma prática caótica, sincrética à prática problematizada, contando--se com instrumentos teóricos e práticos para compreender seus conflitos e solucioná-los, e busca-se viabilizar a incorporação des-ses instrumentos como recurso para a vida dos alunos, numa etapa de catarse (saviani, 2005b).

Por esse modo, sim, pode-se fazer frente à marginalização e avançar no trabalho educacional, tornando possível a existência de uma escola crítica numa sociedade capitalista. Nesse sentido, vale retomar a escola do novo homem da sociedade soviética. Em tal so-ciedade, a escola passou a lidar com a marginalização em relação ao conhecimento e assumiu a necessidade de uma educação baseada em outros patamares e propósitos.

Considerando o que escreve Saviani, pode-se entender quan-to a escola soviética das duas décadas seguintes à Revolução de Outubro de 1917 foi emblemática e ainda hoje é inspiradora. Antes de discorrer a respeito da educação social que nela se realizou, des-taco que, na busca pela superação da proposta burguesa czarista, ela também se emaranhou com o “método dos projetos” e com o “método” dos complexos.

Após o ano de 1917, firmou-se o entendimento de que as me-todologias tradicionais trabalhavam os conteúdos escolares de ma-neira fragmentada, pouco dialética, sem a totalidade, num proces-so contraditório. No afã de construir uma nova educação para um novo homem, buscou-se o que se tinha de avançado e que, inicial-

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mente, parecia estar nas “propostas revolucionárias” da Europa e EUA; todavia, como atesta a história, tais proposições acabaram por não priorizar, de fato, o conhecimento científico e revelaram seus teores escolanovistas.

Essas proposições, na verdade, subsidiaram uma prática de “racionalização” do programa de ensino, que deveria ser organiza-do em unidades mínimas de estudo. O aluno teria tarefas mensais a desenvolver livremente e o professor deveria atuar como conse-lheiro e, também, controlador do trabalho. Atividades de labora-tório, conferências e organização do trabalho, sob o propósito de racionalização do trabalho escolar, objetivavam vencer o excesso de intelectualismo das aulas e implantar a individualização do ensino. O trabalho em pequenos grupos passou a ser incentiva-do, assim como as produções dos alunos (composições, relatórios, exercícios), os quais deveriam contar com um plano a eles dirigido que considerasse suas individualidades.

Como pode ser observado, para chegar-se a uma sociedade revolucionária, adotou-se um caminho que levou a esses sérios problemas. Em meio a isso, também se lidava com a necessida-de de formar o novo homem soviético pela apropriação da teoria marxista. Assim, as lideranças da União Soviética detectaram que ensinar a filosofia e os métodos marxistas só seria fecundo com a valorização do conhecimento científico. Sem dúvida, isso provo-cou grande impacto.

3. Educação social para a pessoa com deficiência: uma defesa vygotskiana

Essa retomada da educação soviética revela-se da maior im-portância. Ao pensar uma escola que enfrente a formação unilate-ral do ser humano e as condições que levam a isso, por desvendar o real e as suas múltiplas determinações, é necessário retornar àque-les anos emblemáticos de 1920 e 1930 e à sociedade soviética que lidou com a educação social e, também, com a defesa de Vygotski

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de uma nova educação especial, ou de uma nova defectologia nela embasada.

Para a formação do novo homem, era necessária uma nova teoria explicativa da aprendizagem e do desenvolvimento huma-no que fundamentasse o trabalho educacional. Vygotski liderou a constituição da teoria histórico-cultural (THC), que se apresentou como uma alternativa sistematizada e coerente para tanto – porém, nem por isso reconhecida pelos dirigentes da União Soviética após a morte de Lênin.

Vygotski refere-se várias vezes à educação social. Esta unia o conteúdo escolar aos princípios de uma vida em uma sociedade sem classes sociais antagônicas. Como era baseada no marxismo, ela reconhecia a importância fundamental da filosofia para liberar o homem das ilusões burguesas, indicando-lhe as origens dessas ilusões. Neste sentido, reconhecia que tal filosofia teria um papel crítico e criador, educativo e ativo, visto que ela encontraria no proletariado as suas armas materiais e o proletariado nela encon-traria as suas armas espirituais, como preconizava o marxismo. Estava posta, por essa educação assim adjetivada, o empenho na formação da consciência de um novo homem ante a construção de uma nova ordem político-econômico-social.

Vygotsky ([1930], 2004), em texto pontual, deixa evidente sua aproximação ao pensamento marxista, preocupado com o fato de que a educação, na sociedade burguesa, pode assumir a meta de levar a adaptação às relações existentes, o que garante aos filhos da classe dominante a perpetuação dos seus privilégios, mas também pode ser arma de luta contra a opressão, sendo instrumento moral e intelectual dos jovens da nova geração da classe oprimida.

Já no século XIX Marx e Engels haviam defendido alguns pontos ou princípios referentes à educação escolar que passaram a ser norteadores para a proposta de educação social: gratuidade da educação e a sua oferta pelo Estado socialista/comunista; conside-ração da intrínseca relação entre educação e trabalho produtivo, o que levou à observação da politecnia; concepção de educação como processo histórico-social que permite assegurar o desenvol-

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vimento integral da personalidade, ou o desenvolvimento omnila-teral; atribuição de um novo papel à comunidade, transformando as relações dentro da própria instituição educacional em acordo com o próprio conceito de coletividade. Após a Revolução, a con-cepção de coletividade não se apresentava separada da própria coletivização que se implantou, no campo e na cidade, com a in-dustrialização (barroco, 2007a).

Fazendo um diagnóstico da educação, Lênin salienta que, no período de ditadura do proletariado, uma fase entendida como transitória, a escola deveria ser não só o veículo dos princípios do comunismo, mas também a influência ideológica, organizativa e educativa do proletariado sobre os semiproletários e não proletá-rios das massas trabalhadoras. Aponta que, neste sentido, as ta-refas imediatas seriam: implantar a instrução geral e politécnica gratuita e obrigatória; unir o ensino ao trabalho social-produtivo; intensificar a sensibilização dos docentes à nova sociedade e pre-parar para o magistério novos quadros imbuídos das ideias do comunismo; incorporar o trabalhador numa participação ativa na instrução pública; alcançar a colaboração do poder soviético na autoeducação e formação individual dos operários e camponeses (lênine, 1977).

Segundo Boldirev ([19--], p. 3), até a Revolução de Outubro de 1917, 3/4 da população russa czarista eram constituídos de analfa-betos; “[…] cerca de 80 por cento das crianças e adolescentes não iam à escola; dezenas de povos não russos careciam da possibilida-de e do direito de terem escolas em sua língua materna”. Em 1913, não havia mais que 290 mil pessoas com instrução superior comple-ta e incompleta e instrução média especializada.

Outro autor, Kalinin ([19--], p. 16), explica que estudar o marxismo não significava ler Marx, Engels e Lênin, mas dominar o método marxista, que o indivíduo deveria implantar onde quer que fosse atuar. “O conhecimento textual do marxismo não signi-fica, todavia, que a pessoa que conheça Marx ao pé da letra possa abordar cada problema de forma marxista”. Ser marxista “significa saber adotar uma linha acertada”. Para tanto, era necessário ser um

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excelente especialista no ramo em que trabalhasse. “E esta tese geral é integralmente aplicável a todos os komsomóis5, começando pelos estudantes e terminando pelos komsomóis que trabalham na agri-cultura e os aprendizes das fábricas”. A defesa de Kalinin ([19- -], p. 17) significava impregnar a teoria de vida, vincular o trabalho cotidiano com a teoria. Acreditava, enfim, que “ser marxista é ser criador”.

A. P. Pinkevich (1883/84-1939), reitor e professor da 2ª Uni-versidade de Moscou, foi uma das mais fortes colunas da educação soviética, pois, juntamente com Lunatcharsky, Krupskaya e outros, elaborou a nova pedagogia do proletariado. Segundo Pinkevich (1945, p. 1),

Podemos considerar a “educação propriamente dita” como a ação pro-longada de uma ou mais pessoas sobre outra, com o fim de desenvolver suas qualidades inatas, biológicas e sociologicamente úteis. Segundo esta definição, há que conceder importância à finalidade desta influên-cia. Além disso, a menos que reflita a existência de um certo sistema – completo ou incompleto, consciente ou inconsciente – não pode ser enquadrada nesta categoria, quando não seja prolongada. A influência de um encontro fortuito ou de conversação isolada não pode receber o nome de educação.

Se o processo não for dirigido para uma finalidade determi-nada, não se pode, a rigor, chamá-lo sistemático.

O incentivo ao autogoverno das crianças, o impulso do desenvolvi-mento do movimento comunista infantil, o estímulo da competição normal (competição não descontrolada nem apaixonada), a influência do ambiente físico no aluno e, finalmente, o efeito do ambiente social

5 Refere-se aos membros de uma organização política da juventude, criada em 1918, durante o Primeiro Congresso Russo da Juventude, do Trabalha-dor e do Camponês. Foi denominada primeiramente União da Juventude Comunista Russa - RKSM. Tornou-se conhecida como komsomol, em 1926, que seria a sigla da União das Juventudes Comunistas Leninistas da URSS. A komsomol foi constantemente conclamada a apoiar a nova educação em todos os seus níveis e modalidades. Vygotski faz referências a ela ao tratar da educação especial (barroco, 2007a).

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em que vive (a família, a comunidade, a escola, a comuna escolar, a colônia infantil, de veraneio ou permanente), todos esses fatores agem na esfera da influência indireta [pinkevicH, [19--], p. 16].

Conforme Krupskaya ([19--]), o novo tipo de escola deveria ter como fim a formação de pessoas completamente desenvolvidas, com uma visão integrante do mundo e uma compreensão clara do que estaria acontecendo ao redor delas, a respeito da natureza e da sociedade; de pessoas preparadas nos níveis teórico e prático para qualquer trabalho físico ou intelectual e que fossem capazes de construir uma vida racional plena, bonita e jovial.

A finalidade primeira da instrução geral é o desenvolvimento de uma visão de mundo. Isto supõe a introdução do indivíduo a uma com-preensão e avaliação de toda a herança cultural dos tempos presen-tes. […] Nós temos a obrigação de educar paladinos do socialismo que compreendam com toda claridade os problemas da sua classe e sejam capazes de avaliar com independência as mais importantes expressões da cultura contemporânea. Isto não quer dizer que não tenhamos que fazer concessão alguma às necessidades do desenvolvimento indivi-dual [pinkevicH, 1945, p. 26].

Essas defesas que indicam o teor da educação social se apre-sentam também na obra de Vygotski (1997a, 1997b) em relação à educação de pessoas com deficiência. Sua teoria psicológica, tal como a pedagogia histórico-crítica, ao pautar-se nos fundamen-tos marxistas, leva à compreensão, sob a valorização da história, da educação e do homem que educa. A THC reconhece a história como de fundamental importância, já que tem como tese central a constituição social do psiquismo. Essa tese refere-se às pessoas com e sem deficiência.

A título de exemplo dessa importância, o recuo aos anos pré e pós-1917, atentando para a Rússia e os países constituintes da União Soviética, permite, portanto, uma maior compreensão da obra de Vygotski, as condições nas quais foi produzida bem como as suas implicações para a defectologia ou educação especial da-quela época. Também oferece elementos que revelam as deman-

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das que se apresentaram e as alternativas encontradas para uma análise comparativa com a educação para pessoas com deficiência desta sociedade do século XXI, com suas demandas e proposições.

A obra de Vygotski tem provocado interesse no Ocidente, mas sem essa contextualização histórica e sem esse atrelar de suas elaborações à sociedade soviética. De início (anos de 1980), isso se deu no âmbito da educação regular, com a tradução para o espa-nhol de algumas de suas obras, como os tomos II e III da coletânea Obras escogidas (vygotski, 2000, 2001), referentes aos estudos acerca do pensamento e da linguagem e da constituição social do psiquis-mo. Posteriormente, com a publicação do tomo V, Fundamentos da defectología (vygotski, 1997b), esse autor passou a ser citado na edu-cação especial.

Até meados da década de 1990, os trabalhos vygotskianos ainda não tinham sido tão apreciados por estudiosos dessa área/modalidade de ensino, embora lhe tivessem apresentado novos fundamentos teórico-metodológicos. Não é incomum que profis-sionais que nela atuam tenham interesse por metodologias, por procedimentos que possam levar os alunos com deficiências ao desenvolvimento, porém a força de sua obra não está apenas nesse aspecto, mas, antes, na defesa do desenvolvimento de todos.

Para Gindis (1999), referindo-se ao impacto da obra vygotskia-na na sociedade norte-americana, mesmo após tantos anos, afir-mou que os profissionais da educação especial ainda tinham certa dificuldade em relação aos textos de Vygotski. Explica que isso se devia às tradições humanísticas psicológicas gerais e específicas à ciência americana e à russa, como também à sua própria escrita e às referências que fez a autores desconhecidos ou esquecidos nos dias atuais e ao emprego de terminologia estranha. Considero ne-cessário salientar, todavia, que, ao não se considerar o método do materialismo histórico-dialético assumido pelo autor soviético, a dificuldade se acentua em relação ao entendimento e à aceitação do seu trabalho.

Com a dissolução da União Soviética, estudos analíticos e comparativos passaram a investigar quanto as teorizações e as in-

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tervenções no campo da educação especial avançaram ou não na era soviética e em tempos pós-soviéticos. Alguns autores aponta-ram aspectos críticos ou negativos no que se refere:

1. à centralização da educação soviética em apenas algu-mas regiões, ou seja, à não acessibilidade da escolariza-ção para todos;

2. à existência de escolas-internatos que hoje são tomadas como segregadoras;

3. à falta de relações interpessoais mais próximas entre pro-fessores e alunos que demonstrassem um vínculo afetivo maior;

4. à incidência de problemas emocionais suscitados pela ri-gidez do regime comunista;

5. à falta de atendimento aos alunos com comprometimen-tos menos severos, como é o caso dos denominados dis-túrbios da aprendizagem; e

6. à propaganda ideológica presente em todo o processo educacional (Daniels, 1993; Grigorenko, 1998).

Essas críticas devem ser consideradas, assim como as que o próprio Vygotski fez a respeito da educação de modo geral e à educação da pessoa com deficiência, quando era descolada da própria vida, do trabalho. Ele teorizou quando já havia uma de-fesa da educabilidade da pessoa com deficiência na Rússia, entre as décadas de 1920 e 1930, mas o fez com base na tese citada e no contexto de combate à educação burguesa pela educação social. Entendo que a defectologia se constituiu, desse modo, em um campo fecundo para a elaboração e verificação de suas hipóteses sobre a constituição social do psiquismo humano, bem como so-bre o papel da mediação para a formação das funções psicológi-cas superiores.

É necessário lembrar que na história da educação especial russa há períodos marcados por negligência, abandono e invisi-bilidade da pessoa com deficiência. Também há a busca por sua

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integração e, nos dias atuais, vivencia-se a luta por sua inclusão na escola e na sociedade de modo geral6. Nos anos em que Vygotski escreveu, quando muito, tinha-se a ideia de que o aluno com defi-ciência é que deveria ser preparado para estar na sociedade, e isso pode ser entendido como próprio da fase de integração. Apesar disso, ele defendia algo além: era preciso educar para que a pessoa com deficiência não só levasse a vida mais normalizada possível, mas também se envolvesse com a coletividade, com o trabalho so-cialmente útil, com a política. Foi, pois, sobre as bases da educação social que apresentou novos fundamentos para a defectologia.

Os trabalhos de Vygotski e de outros autores russos e soviéti-cos constituem-se em marcos históricos para a educação especial so-viética e não soviética, por enfatizarem que todas as pessoas, inclusi-ve as surdo-cegas, como apontei, podem beneficiar-se da educação e se desenvolver na mesma direção das pessoas ditas normais, isto é, rumo à formação histórico-cultural de seus psiquismos. Tal for-mação se dá por meio da relação intensa e dinâmica com o mundo exterior, o que movimenta e direciona o desenvolvimento das fun-ções psicológicas superiores. Tal relação se apoia na apropriação dos conhecimentos cotidianos e científicos já elaborados e no de-senvolvimento e emprego do pensamento e da linguagem verbais.

Retomando o exemplo já citado, Mescheryakov (1979) consi-dera que, entre outros, foi o trabalho de Vygotski que pavimentou o caminho para novas aproximações do estudo da mente a partir do ângulo histórico. Entende que a principal proposição teórica advogada pela psicologia histórico-cultural é confirmada no traba-lho de criação e instrução do surdo-cego: o todo da mente humana

6 Conforme Martz (2005), a proposta de educação inclusiva vem alcançando espaço na Rússia, onde há muito a se fazer, desde o atendimento educacio-nal até as adequações arquitetônicas. Roza (2005/2006) explicou que havia em torno de 1,5 milhão de crianças com deficiências ou com necessidades educacionais especiais na Rússia, sendo que cerca de 200 mil ainda não ha-viam começado seus estudos e eram rotuladas como “não educáveis”. Até 2005, não havia nenhuma legislação que regulasse a inclusão de crianças com deficiências nas escolas regulares russas.

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é fruto da interação prática/ativa da pessoa com outras, em um ambiente criado por meio do trabalho humano. Ao atuarem em condições-limite da existência humana, russos e soviéticos desven-daram o que é biológico e o que é cultural, e essa foi uma grande contribuição da defectologia russa e soviética, em especial na área da surdo-cegueira.

Pode-se dizer que grande parte dos trabalhos dos educadores citados e de Vygotski foi desenvolvida num contexto singular, no qual o projeto social e o projeto educacional soviéticos assumiam as mesmas direções: a construção de uma nova sociedade.

De início, como já referi, buscaram-se modelos ocidentais, que levaram a uma educação de cunho escolanovista, o que, posteriormente, motivou as primeiras reformas. Essas deram--se na década de 1930, com ênfase na valorização dos conteú-dos científicos, na apropriação do saber sistematizado para a formação do novo homem, no reconhecimento da sala de aula como espaço de ensino. Como se verificou, não bastava defender ideias marxista-leninistas, como se pensava de início, era preciso entendê-las e, sobretudo, dominar a ciência. Os fundamentos filo-sóficos, os princípios norteadores, os objetivos educacionais para a educação soviética comum foram firmados com vistas à superação da sociedade burguesa e à consolidação do socialismo. Implantar e cultivar as sementes do coletivo e valorizar o trabalho socialmente útil era a tônica.

A convocatória para crianças, jovens, adultos e idosos cons-truírem uma nação que fora destruída por guerras e revoluções, e que antes disso já vinha pauperizada pelo czarismo, era o motivo para que o mundo da produção e a educação sofressem grandes transformações. Deste modo, o termo “coletivo vigoroso” apare-ce em publicações soviéticas ao se referirem à população em si, bem como ao princípio ético a ser cultivado entre todos. O coletivo deveria gerar um novo homem, ou, o que era mais certo, formar uma nova geração. Esse homem ou a nova geração não poderia ser “semisselvagem” [analfabeto] (lênine, 1977, p. 39), nem primitivo (vygotsky & lUria, 1996); antes, deveria contar com o domínio de

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mecanismos psicológicos superiores para apreender e compreen-der o mundo e atuar sobre ele, transformando-o e sendo por ele transformado.

Embora não seja citada pelos autores que escreveram a res-peito da educação russa e soviética naquelas primeiras décadas do século XX, pode-se dizer que a riqueza da teoria de Vygotski reside na demonstração de quanto o coletivo ou a coletividade são fundamentais para a constituição desse homem cultural buscado, e que a deficiência, como fato biológico, não seria necessariamen-te limitante ao desenvolvimento, mas o seriam, sim, as condições sócio-históricas.

Cumpre considerar que quando Vygotski (1997b, 2000, 2001) fala de orientação vocacional, de coletividade, de trabalho, de co-letivo, de revolução, de desenvolvimento por saltos qualitativos etc., ele o faz com base no marxismo, buscando para a sociedade soviética uma psicologia também revolucionária. Quando escreve sobre as relações sociais, considera não somente as relações inter-pessoais, mas, antes, as relações entre os homens que vivem em so-ciedades de classes sociais antagônicas. Quando se refere ao cego, ao surdo-mudo, ao atrasado mental, ao cego-surdo-mudo etc., não defende que “apenas” participem da escolarização; embora esta já pudesse ser considerada uma grande defesa para a época, ele defende a humanização, como ocorre com as pessoas sem deficiên-cias, a efetiva participação na sociedade.

Vygotski demonstra que as pessoas com deficiências podem ser tão alienadas ou livres como as pessoas comuns. Dito isso de outro modo, ele sabia que as elaborações de uma sociedade postas em circulação levam à riqueza dos seus integrantes – algo que não é possível na forma de organização capitalista –, e que o inverso disso os limita e os aliena.

Na época de Vygotski, havia a necessidade de se avançar das análises e dos fundamentos teóricos marxistas para uma proposta de sua aplicabilidade na Rússia e URSS, e nesse âmbito destacaram--se autores como Lênin, Blonski, Krupskaya, Pistrak, Makarenko e outros. Em seus escritos, defendem o que Marx e Engels deixaram

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marcado, no século XIX, acerca da educação. O caráter revolucio-nário da educação estaria no conteúdo programático, no método e nos níveis de ensino, nos anos de obrigatoriedade, na popula-ção atendida – questão crucial, ante a deposição da educação cza-rista, “tradicional”, confessional e destinada às classes abastadas. Era preciso construir o sistema educacional em todos os aspectos, inclusive na escrita do material didático. Assim, o estudo da na-tureza, do homem e da sociedade foi definido e, por vários dos anos subsequentes, mesmo após as reformas, serviu de eixo pro-gramático. A politecnia e o destaque do trabalho socialmente útil serviram como princípios organizadores para a escola soviética e para assegurar a formação do novo homem, o homem comunista.

Considerações finais

Ante o exposto, pode-se afirmar que a formação de psicólo-gos e de educadores deve contemplar a valorização da história e da filosofia, em especial porque a proposta de educação inclusiva não contempla mudanças estruturais na sociedade. A psicologia histórico-cultural, voltada ao campo da defectologia, relaciona a constituição do psiquismo, o desenvolvimento das funções pro-priamente humanas, às condições objetivas da vida, e pleiteia que se saia dos treinos sensoriais e se invista na formação de uma nova natureza humana.

Por volta de 1924, Vygotski (1997a) defende as ideias mar-xistas no tocante à educação e à filosofia e, consequentemente, o método histórico-dialético, no âmbito da defectologia. Ao defen-der a aprendizagem e a possibilidade do pleno desenvolvimento do psiquismo da pessoa com deficiência, supunha-lhe outro devir. A educação que pleiteava não se referia aos mesmos propósitos de Condillac, Montessori e Decroly, autores que ganhavam guarida na Rússia e inspiravam para o treino intensivo das funções bioló-gicas básicas para a vida (medíocre) em sociedade.

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Defende que a educação social do novo homem soviético de-veria alcançar as escolas especiais em seu conteúdo e forma, ou seja, com ênfase no trabalho socialmente útil (que poderia demons-trar a função social da linguagem viva), na coletividade, no saber técnico, na ciência, na filosofia e nas artes. Isso tudo deveria ser figura e fundo no processo de formação da pessoa com deficiência. Sua educação deveria ser tão revolucionária quanto a de pessoas sem deficiências, permitindo que professores operassem milagres, fazendo cegos enxergarem pelo treino do tato e, sobretudo, pela leitura do Braille; fazendo surdos ouvirem e falarem pelo oralismo e pela linguagem mímica e de sinais; possibilitando a deficientes intelectuais desenvolver estratégias de pensamento abstrato e a surdo-cegos pensar e comunicar-se, deixando de viver de modo vegetativo.

Vygotski explica as leis gerais do desenvolvimento com vis-tas em uma nova defectologia, que não fosse uma torre de babel em seu ecletismo, não se orientasse pelos dados quantitativos nem fosse descritiva das impossibilidades. O desenvolvimento humano evoluiria do plano interpsíquico e extrapsíquico para o intrapsí-quico, da comunicação apenas emotiva (comum aos animais) para a constituição da língua/linguagem como base para apreensão do mundo; do pensamento por imagens, direto e descritivo, para o pensamento conceitual; da imitação direta de modelos sociais ime-diatos para a recriação pessoal de padrões de conduta adequados, da conduta instintiva para a voluntária e consciente (vygotski, 2000). Considera que os homens com e sem deficiência deveriam fazer dos seus órgãos biológicos órgãos sociais, empregando-os de modo comprometido com uma sociedade que superasse a bur-guesa. Nessas defesas é possível identificar a convergência dessa teoria explicativa da aprendizagem e do desenvolvimento com a pedagogia histórico-crítica.

Os novos fundamentos vygotskianos condiziam com as pro-fundas transformações que se processavam nos planos econômico, político, social e cultural da Rússia e União Soviética. Vygotski en-

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tende que as pessoas com deficiências e as sem deficiências deveriam conviver umas com as outras, o que provocaria brotos de desenvol-vimento, transformação das crisálidas em borboletas. Isso, porém, só seria alcançado desde que se desse, necessariamente, num con-texto de educação social, com tudo o que o termo implica. Assim, notadamente, o social em Vygotski não é o mero agrupamento de pessoas ou as relações que estas estabelecem entre si.

O exposto permite pensar que os alcances da educação inclusi-va atual, que se vale de tantos recursos importantes para a diagnose e o atendimento, podem ser limitados ao se dispensar a história e a filosofia e ao se desacreditar da escola como instituição capaz, não de acabar com a marginalização ou exclusão em si, mas de levar ao entendimento delas, de suas origens e desdobramentos e dos meca-nismos para seu enfrentamento.

É possível dizer também que a luta de Vygotski, a quem essas duas áreas do saber eram caras, não seria pelo desenvolvimento de um dado indivíduo ou de dada minoria (deficiente), mas de todos. Se a revolução do proletariado não deveria ocorrer em um só país, para um só povo, para um só segmento da população, o desenvol-vimento dos processos psicológicos superiores também deveria ser oportunizado a todos. A luta de Vygotski, se assim se pode dizer, era a luta pelo homem livre.

Os escritos vygotskianos apresentam-se provocativos ao subsidiarem um olhar mais cuidadoso da prática social do século XXI, sob avanço da filosofia pós-estruturalista e sob a ideologia pós-moderna. Sem as mediações da história, reconhecer que esse autor estivesse na defesa da superação da sociedade de classes sociais antagônicas soa tão estranho que autor e obra podem ser simplesmente negados, ou ser apropriados de modo parcial.

Para o autor,

Coletivismo, a unificação do trabalho físico e intelectual, uma mudança nas relações entre os sexos, a abolição da separação entre desenvolvi-mento físico e intelectual, estes são os aspectos fundamentais daquela alteração do homem que é o assunto de nossa discussão. E o resultado a ser alcançado, a glória e coroamento de todo esse processo de trans-

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formação da natureza humana, deveria ser o aparecimento da forma mais alta de liberdade humana que Marx descreve da seguinte manei-ra: “Somente em comunidade, [com os outros, cada] indivíduo [possui] os meios de cultivar seus talentos em todas as direções: só em comuni-dade, então, é possível a liberdade pessoal”. Assim como a sociedade humana, a personalidade individual precisa dar este salto que a leva do reino da necessidade à esfera de liberdade, como foi descrito por Engels [vygotsky, [1930], 2004, s/p.].

A nova natureza humana deve superar a deficiência, não de-vendo esta ser impedimento para que se caminhe pelas sendas da humanização rumo à liberdade. A educação deveria primar pelo enfoque qualitativo do desenvolvimento, pelo emprego das partes íntegras para compensar as partes comprometidas pela deficiên-cia; deveria, enfim, primar pela presença dos princípios e funda-mentos da educação social.

A compreensão desse processo remete a uma reflexão a res-peito de como, numa sociedade capitalista em crise, em sua fase monopolista-hegemônica, podem ser garantidos o bom ensino e as mediações adequadas às pessoas com deficiência, considerando-se a constituição social de seus psiquismos.

Ao verificar-se que a educação escolar não vem garantindo essas condições necessárias nem mesmo às pessoas sem deficiên-cia que pertencem às classes populares, identifica-se a necessidade imperiosa de se avaliar quanto isso não se complica ao se pensar naqueles que têm deficiências ou necessidades educacionais espe-ciais. Embora não bastem, a identificação e o trabalho com as con-tradições revelam-se um primeiro e fundamental passo a ser dado, e para isso a ciência da história deve frequentar os ambientes que se propõem a ser inclusivos.

Saviani (2005a, 2005b) apresenta grande contribuição para a formação de educadores e psicólogos que atuam com a educação especial ou inclusiva ao sistematizar, para os dias atuais e para uma sociedade capitalista em crise, formulações que se pensou estarem perdidas ou atreladas a um tempo e sociedade (já) remo-tos. Permite, também, que as elaborações vygotskianas se façam

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presentes na escola, por meio da pedagogia histórico-crítica, que entendo como proposta teórico-metodológica possível para estes tempos quase impossíveis.

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10. Antecedentes, origem e desenvolvimento da

pedagogia histórico-crítica

Dermeval Saviani

A convite do grupo de pesquisa “Estudos Marxistas em Edu-cação”, participei integralmente do Seminário “Pedagogia histórico--crítica: 30 anos”. Desde a abertura, acompanhei atentamente todas as mesas, ficando emocionado com a seriedade e consistência das várias exposições apresentadas. E fui honrado com a tarefa de pro-ferir a fala de encerramento desse significativo evento.

Pensando no teor de minha exposição, acabei decidindo im-primir a ela um tom de depoimento como o caminho para apresen-tar os antecedentes, situar a origem e indicar alguns aspectos do desenvolvimento da pedagogia histórico-crítica até este momento.

1. Antecedentes

Os antecedentes dessa corrente pedagógica remontam às mi-nhas primeiras preocupações sistemáticas com a educação. Isso ocorreu quando, no início de minha carreira docente, em 1967, atua-va simultaneamente como professor da área de filosofia da educa-ção no curso de pedagogia da Pontifícia Universidade Ca tó lica de São Paulo, como professor de filosofia e de história da arte no Co-légio Estadual de São João Clímaco, que depois veio a se chamar Colégio Estadual Ataliba Nogueira e, no segundo semestre, também no Curso Normal do Colégio Sion, ministrando a disciplina história e filosofia da educação.

Minhas aulas no nível médio operavam como uma espécie de laboratório para as reflexões e investigações que eu vinha de-

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senvolvendo como professor na universidade. Assim, ao iniciar as aulas de filosofia e de história da arte para os alunos do primeiro ano do curso clássico, apresentei a eles minha concepção peda-gógica e como eu iria trabalhar com eles. Deixei claro, então, que minhas aulas iriam orientar-se pela combinação dos princípios da liberdade e da responsabilidade. Isso significava que eu daria as orientações, indicando os temas a serem desenvolvidos, os proce-dimentos que seriam adotados, as tarefas a serem cumpridas pelos alunos e, conforme o princípio da liberdade, cada aluno poderia acatar ou não minhas orientações. No entanto, pelo princípio da responsabilidade, cada um assumiria inteiramente as consequên-cias de suas opções. Assim, por exemplo, se algum aluno na hora de minha aula preferisse ausentar-se e ficar passeando pelo colé-gio, ou preferisse dedicar-se a outro assunto em lugar de prestar atenção no tema de minha aula, eu não iria impedir. Entretanto, ele assumiria a responsabilidade pela ausência arcando com eventuais reprimendas do diretor da escola, caso este o surpreendesse fora da sala de aula. Igualmente, o referido aluno seria responsável por não ter acompanhado o desenvolvimento do assunto daquela aula, arcando com a consequência de uma eventual avaliação negativa.

Feitos esses esclarecimentos, dei início às atividades tendo obtido a plena adesão dos alunos que responderam positivamen-te à minha proposta. Certa vez eu estava ministrando a aula de filosofia quando observei que uma aluna estava estudando fran-cês. Perguntei, então, à classe: vocês têm prova de francês hoje na próxima aula? Eles responderam: “é, sim, professor. O senhor não pode liberar a gente para estudar para a prova”? Respondi: “isso eu não posso fazer. Meu compromisso aqui, hoje, minha responsa-bilidade decorrente de meu contrato de trabalho, do planejamento que tracei com vocês e da programação das aulas deste semestre, é dar esta aula de filosofia. No entanto, se algum de vocês por al-gum motivo, qualquer que seja, não pôde concluir a preparação da prova, tem liberdade de, se assim entender, utilizar esse horário de minha aula para o estudo de francês. Contudo, devo alertar a vocês: isso só é aceitável em caráter excepcional. Portanto, vocês

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precisam estar atentos para não transformar essa situação em algo rotineiro. Vejam: digamos que eu marque uma prova de filosofia para a semana que vem, após a aula de português. Como vocês perderam minha aula de hoje para estudar francês, vocês precisa-rão de um tempo extra para recuperar o conteúdo desta aula. E vão acabar usando a aula de português para se preparar para a prova de filosofia. Aí a professora de português marca uma prova para a semana seguinte, após a aula de história cuja professora, por sua vez, marca uma prova na outra semana após a aula de geografia. Assim, vocês acabarão por se desorganizar inteiramente, não con-seguindo mais regularizar a situação”.

Os alunos ouviram-me com atenção, dando indicação de que estavam compreendendo bem minha orientação pedagógica basea-da nos princípios da liberdade e responsabilidade. E prossegui com a aula de filosofia.

No segundo semestre, ao iniciar as aulas de história e filosofia da educação no Curso Normal do Colégio Sion, ensaiei trabalhar com a mesma orientação que expus às alunas e dei início às ativi-dades. A sala de aula tinha janelas que se abriam para a Avenida Higienópolis, ficando o quadro negro na parede oposta. Verifiquei que as alunas não levaram a sério minha proposta e não acom-panhavam minha aula, sendo que algumas delas se debruçaram sobre as janelas ficando a apreciar o movimento da avenida, de costas para mim. Interrompi a aula com um solene murro na mesa. As meninas voltaram-se para mim surpresas. Disse-lhes então: “vocês querem saber o que vocês são”? E adiantei a resposta: “vo-cês não passam de umas burguesas e reacionárias que não querem nada com nada”. E, diante do estranhamento manifesto em suas fisionomias, acrescentei: “vamos nos reunir em grupos e discutir o sentido disso que acabei de dizer”. Elas formaram seis grupos de cinco a seis alunas cada um, começando a discussão da frase “burguês e reacionário que não quer nada com nada”. Logo deci-fraram o significado de burguês a partir dos estudos que haviam feito na disciplina história, quando estudaram a ascensão da bur-guesia e a queda do antigo regime; e relacionaram com o sentido

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corrente de burguês como o boa-vida, aquele que leva uma vida folgada, pessoa acomodada. Já em relação a reacionário, algumas alunas tiveram dificuldade, observando que reacionário é aquele que reage, que resiste. Ora, se reage, se resiste, não é acomodado. E como podemos ser burguesas e reacionárias ao mesmo tempo? Ao que eu retruquei: “então, será que eu disse uma bobagem”? As alunas discutiram entre si estabelecendo-se uma controvérsia em torno de minha asserção. Algumas raciocinaram nos seguin-tes termos: “a frase quer dizer que somos burguesas, isto é, somos acomodadas, levamos uma vida tranquila e que, se alguém quiser perturbar nossa tranquilidade, nós reagimos”. Aproveitei, por fim, para introduzir o conceito sociológico e político de “reacionário” que está ligado à ideia de que, sendo o progresso e a mudança uma característica própria da sociedade moderna, reacionário é aque-le que reage às mudanças, buscando manter a ordem e preservar seus privilégios.

O interessante nessa experiência é que, após minha agressão em que me impus pela autoridade de professor, as alunas passaram a me respeitar e a interagir positivamente comigo.

Refletindo sobre essa situação, esbocei minha primeira con-traposição a Dewey que descrevi no Memorial redigido para o con-curso de professor titular da Universidade Estadual de Cam pi nas (UnicaMp) nos seguintes termos:

Minha primeira contestação pedagógica a Dewey surgiu da tentati-va, no 2º semestre de 1967, de aplicar no Colégio Sion a mesma atitude pedagógica baseada no princípio de liberdade, do qual decorre a res-ponsabilidade, que havia adotado com êxito no Colégio da periferia. No Sion essa orientação fracassou, tendo eu que revê-la, o que fiz inver-tendo os termos, isto é, condicionando a liberdade à responsabilidade, o que implicava pôr o acento no princípio ético do dever. Ao tentar compreender o problema desenvolvi uma reflexão, cujas implicações e consequências não cabem, infelizmente, nos limites deste Memorial. Em síntese, pareceu-me que os alunos da periferia, cujas condições so-ciais impunham uma vida mais de constrições e imposições do que de opções; mais de deveres do que de direitos, com obrigações que, se não cumpridas, acarretavam consequências muitos concretas, esses alunos

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valorizavam extremamente minha proposta pedagógica. Já as meninas do Sion, cuja situação social, ao contrário, propiciava mais opções que imposições; mais direitos que deveres, não estando as transgressões às normas vigentes sujeitas a consequências mais graves, estas alunas de-ram de ombros para o encaminhamento pedagógico por mim utilizado no início das aulas. Bastou, entretanto, eu “virar a mesa” mostrando--lhes que eu estava levando a sério o meu papel de professor, para que elas passassem a me respeitar, instaurando comigo uma relação peda-gógica estimulante e produtiva. Concluí, então, que o papel da escola não é apenas e nem predominantemente o de organizar as experiências propiciadas pela vida dos próprios alunos. Pareceu-me que o papel da escola é, antes, o de patentear aquilo que a experiência de vida dos alunos esconde.

Em outros termos, concluí que o papel da escola não é mos-trar a face visível da lua, isto é, reiterar o cotidiano, mas mostrar a face oculta, ou seja, revelar os aspectos essenciais das relações sociais que se ocultam sob os fenômenos que se mostram à nossa percepção imediata.

O certo é que a partir daquele momento minhas aulas no Co-légio Sion transcorreram de forma produtiva, dando cumprimen-to ao programa que eu havia traçado de analisar com as alunas os elementos da estrutura do homem como base para discutir filo-soficamente os problemas da educação. Foi assim que no mês de outubro lancei mão de uma grande reportagem sobre preconceito racial que saiu na então recém-criada revista Realidade para traba-lhar com as alunas o homem como ser situado, determinado pelos condicionantes externos. Comecei esse trabalho no dia 8, prossegui no dia 15 e deveria completar no dia 22 de outubro. Mas quando subi as escadas do Colégio Sion no sábado, dia 22, as alunas me cercaram e disseram: “professor, vamos discutir o festival? Na aula de sociologia nós discutimos e foi tão bacana!”. Acontece que na noite anterior, sexta-feira, dia 21 de outubro, tinha se realizado a fi-nalíssima do III Festival da Música Popular Brasileira, promovido pela TV Record em São Paulo, tendo saído vencedores em primeiro lugar “Ponteio”, de Edu Lobo; em segundo, “Domingo no Parque”,

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de Gilberto Gil; em terceiro, “Roda-viva”, de Chico Buarque e em quarto, “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso.

Olhei para aquelas meninas agitadas e logo percebi que, na-quele dia, ou eu discutia o festival, ou não faria nada. Pausada-mente – enquanto passava em revista mentalmente as músicas vencedoras para ver qual delas se prestava melhor ao objetivo da-quela aula de discutir o homem como um ser determinado, condi-cionado pela situação em que se encontra – respondi a elas: “está bem. Vamos discutir o festival”. E no momento em que dizia isso me concentrava na música “Roda-viva”, que me parecia adequada para tratar do tema da aula, uma vez que a roda-viva era o protó-tipo das pressões externas que impedem ao homem ter controle sobre si mesmo. Mas, como as alunas haviam afirmado que tinham discutido o festival na aula de sociologia da educação, não era con-veniente que eu repetisse a mesma música. Perguntei, então, a elas: “que música vocês discutiram na aula de sociologia?”, ao que elas responderam: “nós discutimos Roda-viva”. Foi-se, assim, meu trunfo. Disse-lhes, enfim: “vamos discutir ‘Alegria, alegria’”. Uma das alunas encarregou-se de escrever a letra da música no quadro--negro e procedemos à discussão, primeiro em grupos e depois no conjunto da classe.

O poema de Caetano Veloso, ao retratar um indivíduo sem lenço e sem documento caminhando contra o vento, sendo assalta-do por estímulos externos representados pelas muitas notícias que se superpõem ao serem refletidas pelo sol nas bancas de revista exemplificadas pelos crimes, espaçonaves, guerrilhas, cardinales bonitas, caras de presidentes, beijos, dentes, pernas, bandeiras, bombas, Brigitte Bardot, Coca-Cola, casamento, televisão, fotos e nomes, permitia identificar a condição do homem sendo bombar-deado por um complexo de incitamentos do mundo circundante sem conseguir concentrar-se em si próprio.

Assim foi que, substituindo a reportagem sobre preconceito racial pela letra da música “Alegria, alegria”, dei sequência ao pro-grama da disciplina tratando do tema definido para aquela aula, ou seja, “o homem como ser situado”, atingindo, portanto, o obje-

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tivo previsto. Desse fato é possível tirar duas conclusões importan-tes para o entendimento da pedagogia como teoria da educação:

1. Se eu fosse um professor tipicamente tradicional, minha reação normal em resposta ao pedido das alunas para discutir o festival seria: “o que é isso, meninas! Aula é aula; festival é festival. Está bem que vocês tenham vibrado, torcendo por seus ídolos lá no teatro na noite passada. Agora, porém, estamos no colégio em horário de aula com uma programação a cumprir”.

Essa resposta encontra seu fundamento na teoria da pedago-gia tradicional, segundo a qual no processo educativo a razão deve prevalecer sobre a emoção, o aspecto lógico sobre o psicológico e os conteúdos sobre os métodos ou procedimentos.

Inversamente, caso eu fosse um professor tipicamente escola-novista, minha reação seria diversa e eu responderia ao pedido das alunas da seguinte forma: “ótimo, meninas! Vamos discutir o festi-val, já que esse se apresenta como um interesse genuíno de vocês”.

Essa outra resposta está respaldada na teoria da pedagogia nova para a qual, inversamente, a emoção deve preceder a razão, o aspecto psicológico impõe-se sobre o lógico e os métodos sobre os conteúdos. Assim, já que, conforme Dewey, a razão de ser da educação é o desenvolvimento e a finalidade do desenvolvimento é mais desenvolvimento, o que se consegue mediante as atividades bem conduzidas e movidas por interesses, então ficaria em segun-do plano o conteúdo programado e o objetivo específico daquela aula que era a compreensão do homem como um ser situado. Uma vez que o professor deve sempre partir dos interesses dos alunos, a manifestação de um forte interesse por parte do conjunto das alunas na discussão do festival era muito bem-vinda e prevaleceria sobre as razões lógicas que justificavam a programação prévia e o objetivo estabelecido para aquela aula.

No entanto, minha reação não coincidiu nem com aquela pró-pria do professor tradicional, nem com a do professor escolano-vista. Penso que minha atitude poderia ser descrita como estando além dessas duas correntes pedagógicas. Com efeito, não deixei

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de levar em conta o interesse das alunas e, ao mesmo tempo, não perdi de vista o objetivo daquela aula, tendo ajustado os procedi-mentos sem abrir mão da finalidade que guiava a programação da disciplina história e filosofia da educação no Curso Normal. Assim, embora naquele momento eu não tivesse ainda elaborado os elementos teóricos da orientação que depois vim a denominar “pedagogia histórico-crítica”, minha atitude já convergia nessa di-reção.

2. A segunda conclusão diz respeito à diferença entre arte e técnica na educação. A técnica é definida como a maneira conside-rada correta de se executar uma tarefa. Como tal, ela caracteriza--se por um conjunto de regras extrínsecas que são compendiadas tornando-se suscetíveis de serem apropriadas e aplicadas na ati-vidade prática. Implica, pois, repetitividade. A arte, por sua vez, também se refere à realização prática. Entretanto, diferentemente da técnica, ela define-se por regras intrínsecas, ditadas pela pró-pria obra a ser feita. Implica, pois, originalidade.

Ora, no campo da educação nós encontramos ambas as di-mensões. Pela dimensão técnica, é possível extrair dos enunciados e princípios da teoria da educação determinadas regras que devem ser seguidas na realização do ato educativo. Essa é a forma que se manifesta na composição dos programas escolares das diversas disciplinas nos quais se definem os objetivos a serem atingidos, os conteúdos a serem estudados e os procedimentos que serão ado-tados nas aulas dia a dia, semana a semana, mês a mês, ao longo de todo o período letivo a fim de viabilizar o estudo dos conteúdos e, assim, atingir os objetivos que justificam o ensino daquela dis-ciplina.

No entanto, o trabalho educativo, além da dimensão técnica, contém também uma dimensão artística. Ou seja, a obra educativa reveste-se de um alto grau de originalidade que dita ao educador determinadas regras de caráter intrínseco que, portanto, não são suscetíveis de serem compendiadas externamente para sua apli-cação mecânica na realização prática da tarefa educativa. Esse as-pecto artístico que em condições normais convive com o aspecto

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técnico, exigindo do professor que encontre a medida adequada de combinação das regras intrínsecas e extrínsecas na realização de sua tarefa, em determinados momentos pode manifestar-se de forma mais saliente.

Foi o referido fenômeno que emergiu com toda a sua força naquela manhã do sábado, dia 22 de outubro de 1967, na minha aula de história e filosofia da educação no Curso Normal do Co-légio Sion de São Paulo. O pedido das alunas: “professor, vamos discutir o festival?” fez irromper uma situação totalmente original a exigir uma resposta também original. Com efeito, a aula estava preparada. Eu sabia exatamente quais os procedimentos que eu iria adotar em consonância com o conteúdo que estava sendo tra-balhado tendo em vista o objetivo a ser atingido: a compreensão do homem como um ser situado num espaço e tempo determinados. As regras daquela aula estavam definidas prévia e externamente e eu tinha o domínio pleno delas, o que me permitia aplicá-las com segurança. Assim, a novidade daquela aula em relação à anterior era real porque se tratava de uma nova aula, distinta, portanto, daquela que eu havia ministrado na semana anterior. Mas tratava--se de uma novidade relativa, o que me permitia, pelo domínio do aspecto técnico, ter o controle da situação e responder satis-fatoriamente ao aspecto de originalidade que ela não deixava de apresentar.

Mas o irromper do pedido das alunas subverteu inteiramente aquela segurança decorrente da preparação prévia, exigindo, pela novidade de seu teor, uma atitude original. Vi-me impelido, então, a extrair daquela situação as próprias regras que guiaram o desen-volvimento da aula. O aspecto artístico se impôs sobre o aspecto técnico, determinando inteiramente os rumos seguidos na orga-nização daquela aula. Essa vivência concreta da relação dialética entre arte e técnica na realização prática do ato educativo foi outro elemento que veio a se incorporar na elaboração teórica da peda-gogia histórico-crítica.

Concomitantemente às aulas no ensino médio, prossegui com as aulas no curso de pedagogia ministrando fundamentos filosófi-

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cos da educação no segundo ano em 1967 e 1968 e, a partir de 1969, filosofia da educação para o terceiro ano.

Iniciei a carreira docente entendendo que, especialmente no ní-vel universitário, o professor não poderia ser apenas um repetidor, um transmissor de conhecimentos já compendiados; ele deveria ser também, e sobretudo, um pesquisador, um criador, alguém que se posicionasse ativamente em relação à sua área, tendo condições de contribuir para o seu desenvolvimento.

Tal atitude me levava a estar constantemente atento às situa-ções vivenciadas, procurando elaborar teoricamente as questões que aí se apresentavam, o que pode ser exemplificado com a elaboração das diferenças conceituais entre as noções de “filosofia”, “filosofia de vida” e “ideologia” registradas no texto “A filosofia na forma-ção do educador”, escrito como um recurso didático para compor a primeira unidade da disciplina filosofia da educação do curso de pedagogia e depois incluído em meu livro Educação: do senso comum à consciência filosófica, publicado em 1980.

A elaboração da distinção entre esses três conceitos ocorreu como resposta a uma questão determinada vivenciada em conse-quência de minha intensa participação no movimento de 1968, quando a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a exemplo das principais universidades, foi tomada pelos alunos no final do mês de junho. Ao longo desse período, pude constatar como afloravam contradições na prática dos alunos, acarretando incoerên-cias entre seus propósitos e suas ações. A hipótese de um conflito entre a concepção decorrente de suas condições de vida (“filosofia de vida”) e sua opção político-ideológica (“ideologia”) como expli-cação para as contradições constatadas conduziu-me à reflexão que resultou naquela elaboração conceitual em que a questão passa a ser compreendida num nível teórico de alcance mais amplo. Tento descrever brevemente a experiência vivenciada.

Tendo tomado o prédio da universidade no final do mês de junho de 1968, os alunos nele permaneceram durante as férias de julho e permaneceram no controle da organização do ensino no decorrer do segundo semestre. Nas férias de julho, havia reuni-

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ões por setores na parte da manhã; reuniões por grupos de alunos na parte da tarde para discutir documentos que eram distribuídos versando sobre a conjuntura nacional e internacional e sobre temas ligados à reforma universitária; e na parte da noite normalmente havia uma assembleia de avaliação do movimento e das ocorrên-cias de cada dia.

Numa dessas assembleias, a aluna encarregada das finanças fez alguns apelos tendo em vista que os recursos com que se con-tava para manter o movimento eram escassos e não cobriam todas as despesas. Entre os apelos destaco o pedido de que os alunos tomassem mais cuidado com o que era arrecadado porque no final da tarde do sábado anterior haviam sido arrecadados 90 mil cru-zeiros após um casamento na capela da PUC-SP e meia hora depois haviam desaparecido porque foram gastos com chope. Pedi, então, a palavra e alertei os alunos sobre as contradições aí implicadas.

Como interpretar o comportamento dos estudantes? O movimento que desembocou na ocupação da universidade

se orientava pela ideologia do nacionalismo desenvolvimentista que, na crise dos anos iniciais da década de 1960 e com a eclosão do regime militar, foi radicalizando-se politicamente. Assim foi que, na esteira do movimento de maio de 1968 cujo epicentro se deu em Paris, o movimento estudantil brasileiro, então liderado pela Ação Popular1, desencadeou a mobilização do final de junho. Sabemos que na sua maioria aqueles estudantes integravam a classe média ou a pequena burguesia. Quer dizer, eram filhos de intelectuais liberais e de comerciantes ou pequenos e médios empresários. Ao ingressar na universidade, acabavam participando do movimento

1 A Ação Popular (AP) surgiu em 1962 no Congresso da Juventude Univer-sitária Católica (JUC) realizado em Belo Horizonte. Formalizada em 1963, propunha-se a atuar politicamente segundo uma orientação que se pode-ria chamar de “socialismo humanista”. A partir do golpe militar de 1964, foi conduzida à clandestinidade, aderindo à luta armada em 1966. Em 1971 assumiu o marxismo, transformando-se em Ação Popular Marxista Leni-nista (APML) e em 1973 incorporou-se ao PCdoB.

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estudantil e, nessa condição, assumindo a ideologia nacional de-senvolvimentista que, na vigência da ditadura militar, adquiriu ca-ráter revolucionário. Tal ideologia, porém, entrava em contradição com seu modus vivendi, isto é, com a forma de vida própria de sua condição social.

Ora, fazia parte do estilo de vida desses jovens reunirem-se para tomar chope de modo especial para comemorar acontecimen-tos de alguma importância. Por exemplo, quando se estava na fase de preparação para os exames vestibulares, os jovens faziam gran-de esforço com o objetivo de conquistar uma vaga nos concorridos cursos universitários. Nesse período suspendiam as diversões, as viagens, o namoro e as mais variadas formas de lazer para dedi-carem-se continuamente aos estudos. Após os exames, quando con-feriam as listas e encontravam seus nomes na relação dos aprovados, era aquela alegria. Abraçavam-se e, ato contínuo, iam comemorar. Como? Ora! Dirigiam-se ao bar preferido para tomar chope.

Tendo isso presente, vejamos a situação daqueles estudantes que estavam garantindo a ocupação na universidade.

Eles estavam sacrificando-se pelo movimento. Passavam a noite lá se revezando na vigilância sobre o telhado para avisar, caso avistassem a polícia vindo para desalojá-los. Durante o dia, garan-tiam a organização e participavam das atividades sob permanen-te tensão. Ora, quando a situação se revelava tranquila, com uma rotina assegurada e sem nenhuma ameaça à vista de intervenção policial e lhes caiu nas mãos aquele dinheiro, a lógica imanente à sua “filosofia de vida” falou mais alto. Por que não utilizar aquele dinheiro que eles haviam arrecadado dos convidados ao casamen-to para espairecer um pouco, para um breve lazer? Afinal, depois de tanto trabalho duro, eles faziam jus a uma horinha de descanso. Mas, poder-se-ia argumentar: aquele dinheiro fora solicitado como colaboração à manutenção do movimento dos estudantes. Contu-do, também essa objeção não deixava de encontrar resposta na “fi-losofia de vida” deles: que mal havia em financiar aquele momento de lazer com os recursos do movimento? Afinal, eles não estavam trabalhando para o referido movimento estudantil? Então eles fa-

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ziam jus a uma remuneração, a uma compensação pelos serviços que estavam prestando à mobilização dos estudantes.

Claro que essa argumentação não foi desenvolvida expli-citamente mesmo porque não é própria da “filosofia de vida” a argumentação explícita. Ela consiste exatamente numa orientação implícita que decorre da forma de vida, dos hábitos e costumes que se adquirem na vida em família segundo as determinações da classe social a que se pertence. A argumentação explícita põe-se em outro nível, a saber, o da ideologia. Era, pois, quando os estudan-tes defendiam a validade do movimento que desencadearam que eles argumentavam explicitamente justificando, pela crítica ao que chamavam de dominação ianque, a defesa da libertação nacional, o atendimento às aspirações populares e a necessidade da reforma universitária para articular a universidade com os interesses popu-lares e o desenvolvimento econômico autônomo do país.

Foi nesse quadro que elaborei a distinção entre os conceitos de filosofia de vida entendida como a orientação implícita decor-rente do modo de vida inerente às condições sociais de sua classe de origem que os homens seguem ao realizar suas atividades. Em contraposição, a ideologia corresponde a uma orientação explícita, intencionalmente assumida. Eis como traduzi esse entendimento no texto denominado “A filosofia na formação do educador”:

Nossa ação segue sempre certa orientação; a todo o momento esta-mos fazendo escolhas, mas isso não significa que estamos sempre re-fletindo; a ação não pressupõe necessariamente a reflexão; podemos agir sem refletir (embora não nos seja possível agir sem pensar). Nesse caso, nós decidimos, fazemos escolhas espontaneamente, seguindo os padrões, a orientação que o próprio meio nos impõe. É assim que nós escolhemos nossos clubes preferidos, nossas amizades; é assim que os pais escolhem o tipo de escola para os seus filhos, colocando-os em colégio de padres (ou freiras) ou em colégio do Estado; é assim também que certos professores elaboram o programa de suas cadeiras (vendo o que os outros costumam transmitir, transcrevendo os itens do índice de certos livros didáticos etc.); e é assim, ainda, que se fundam certas escolas ou que o governo toma certas medidas. Nessas situações nós não temos consciência clara, explícita do porquê fazemos assim e não

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de outro modo. Tudo ocorre normalmente, naturalmente, espontanea-mente, sem problemas. Proponho que se chame esse tipo de orientação “filosofia de vida”2. Todos e cada um de nós temos a nossa “filosofia de vida”. Esta constitui-se a partir da família, do ambiente em que somos criados [saviani, 2009, p. 25].

Já a ideologia se coloca como uma exigência quando, emergin-do uma situação verdadeiramente problemática, a orientação es-pontânea propiciada pela “filosofia de vida” se revela insuficiente, o que enunciei na sequência do mesmo texto nos seguintes termos:

Mas, quando surge o problema, ou seja, quando não sei que rumo tomar e preciso saber, quando não sei escolher e preciso saber, aí surge a exigência do filosofar, aí eu começo a refletir. Essa reflexão é aberta; pois se eu preciso saber e não sei, isto significa que eu não tenho a resposta; busco uma resposta e, em princípio, ela pode ser encontrada em qualquer ponto (daí a necessidade de uma reflexão de conjunto). À medida, porém, que a reflexão prossegue, as coisas começam a ficar mais claras e a resposta vai delineando-se. Estrutura-se então uma orientação, princípios são estabelecidos, objetivos são definidos e a ação toma rumos novos tornando-se compreensível, fundamentada, mais coerente. Note-se que também aqui se trata de princípios e normas que orientam a nossa ação. Mas aqui nós temos consciência clara, explícita do porquê fazemos assim e não de outro modo. Contrapondo--se à “filosofia de vida”, proponho que se chame esse segundo tipo de orientação “ideologia”3. Observe-se, ainda, que a opção ideológica

2 Esta noção de “filosofia de vida” corresponde, na terminologia gramsciana, ao conceito de “senso comum”. Cf. Gramsci, 1975, especialmente o caderno 10 (na tradução brasileira, ver Concepção dialética da História – Gramsci, 1978, em especial a Parte I).

3 Para uma discussão dos diversos sentidos da palavra “ideologia”, ver Furter, 1966, cap. 4; Gabel, 1974; Dumont, 1974; e a coletânea de Lenk, 1974, que traz, inclusive, uma abordagem histórica do problema. Sobre o trabalho de Furter, observe-se que ele vale mais pelas indicações bibliográficas que contém do que pelas interpretações do autor. Para uma discussão sobre as relações entre ideologia e falsa consciência, ver Gabel, 1977 e Schaff, 1974, pp. 155-171. Por fim, cabe lembrar que a noção adotada neste texto, ainda que sem preten-sões de se alçar ao plano de uma teoria da ideologia, obtém forte apoio em Gramsci, 1978 (ver principalmente pp. 61-63 e 114-119).

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pode também se opor à “filosofia de vida” (pense-se no burguês que se decida por uma ideologia revolucionária): neste caso, o conflito pode acarretar certas incoerências na ação, determinadas pela superposição ora de uma, ora de outra. Aqui se faz mais necessária ainda a vigilância da reflexão [idem, pp. 25-26].

É exatamente essa oposição, esse conflito, essa superposição da “filosofia de vida” daqueles estudantes sobre a “ideologia” que eles haviam abraçado que se manifestou no episódio da utilização do dinheiro arrecadado para se ir tomar chope. E foi a vivência dessa situação que deu lastro prático e conteúdo concreto à elabo-ração conceitual por mim processada.

Essa constante preocupação em compreender e formular teoricamente os dados fornecidos pela experiência aliada ao en-tendimento de que o professor universitário deve ser também um pesquisador fez que eu passasse a produzir eu próprio aquilo que chamei de “textos de apoio para seminários”, a partir dos quais se desenvolviam as aulas, estimulando-se o trabalho intelectual e a reflexão crítica dos alunos.

Para a cadeira de fundamentos filosóficos da educação, pre-parei sete textos, respectivamente sobre o idealismo, vitalismo, pragmatismo, historicismo, neopositivismo, fenomenologia e exis-tencialismo, como base para o estudo das correntes filosóficas con-temporâneas e suas implicações educacionais.

A disciplina fundamentos filosóficos da educação era minis-trada no segundo ano de pedagogia e tinha um caráter preparató-rio para a disciplina filosofia da educação, ministrada no terceiro ano e que também ficou sob minha responsabilidade a partir de 1969.

Na cadeira de filosofia da educação, propus-me a aplicar a reflexão filosófica à problemática educativa do homem bra-sileiro. Para tanto, elaborei um texto-base chamado “Análise da estrutura do homem”, a partir do qual construí nove textos denominados “Elementos para a análise do homem brasileiro”, abordando os seguintes aspectos: a priori físico (um texto); a priori biológico (um texto); a priori psicológico (dois textos) e a

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priori cultural (cinco textos, versando, respectivamente, sobre as perspectivas antropológica, histórica, sociológica, econômica e política). O curso completava-se com um texto que denomi-nei “Esboço de formulação de uma ideologia educacional para o Brasil”, em que abordava o problema dos objetivos e meios da educação brasileira.

Com exceção de “Análise da estrutura do homem”, que foi incorporado à minha tese de doutoramento defendida em 18 de novembro de 1971, todos esses textos permaneceram inéditos.

Tendo procurado colocar em prática o sentido da filosofia da educação conforme a defini, isto é, como uma reflexão radi-cal, rigorosa e de conjunto sobre os problemas que a realidade educacional apresenta, organizei os textos de apoio de uma for-ma que provocava os alunos a refletirem sobre os problemas da educação brasileira. E quando a disciplina se aproximava de seu final, preocupou-me o risco de que os alunos se sentissem caindo numa espécie de beco sem saída. Ou seja, na medida em que, para provocar e desenvolver sua capacidade de reflexão, eu questionava todas as respostas que eles apresentavam, pres-senti que a sensação de sem-saída acabaria por se impor. Toma-do de um sentimento de urgência, em poucos dias datilografei, num fôlego só, diretamente nas folhas de estêncil, o texto em que, ao concluir, registrei a data de 16 de novembro de 1969, sendo rodadas no mimeógrafo as cópias que foram entregues aos alunos para que, feita a leitura, procedêssemos à sua discus-são na aula da semana seguinte. Para maior clareza transcrevo, a seguir, as observações introdutórias do referido texto, que co-meça assim:

“Partindo de uma visão sincrética do homem, nós chegamos, pela mediação da análise, a uma visão sintética da estrutura dia-lética da existência humana”. E prosseguia lembrando que para chegar a esse resultado precisamos proceder em consonância com nosso entendimento de que “o filosofar se constitui num refletir sobre os problemas da existência, isto é, sobre o homem atuando dialeticamente no mundo num processo de transformação”.

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Com esse procedimento, os alunos puderam compreender as condições em que a estrutura existencial-dialética do homem se manifesta na realidade brasileira, o que lhes permitiu assumir uma posição crítica em relação a essa realidade. Mas eu acrescen-tara em seguida:

É claro que isso não quer dizer que não se tivesse antes uma posição crítica. Sabe-se que já há alguns anos os estudantes brasileiros vêm exercendo mais e mais um poder de contestação diante da realidade nacional. Entretanto, tal posição apresentava-se com características fragmentárias, às vezes emocionais, frequentemente inconsistente, carente de fundamentação, sustentando-se num sincretismo vaci-lante. Dessa visão sincrética nós partimos. E através de uma reflexão analítica, buscamos identificar os vários fatores, as diversas facetas, os múltiplos problemas com que nos defrontamos na nossa realidade existencial.

Na sequência, eu lembrava que desde o início “os alunos pressentiram a estrutura dialética com que estávamos lidando”, pois desde a abordagem do meio físico “verificou-se a sua relação de dependência com outros setores, de modo especial, o político, envolvendo questões de decisão, o que trazia à baila o aspecto da liberdade e mesmo o da consciência”. Essa percepção levava os alunos a responder um tanto rapidamente às questões formula-das com base no senso comum. Para evitar essa simplificação, eu precisei intervir “procurando garantir que a análise fosse levada a cabo, até suas últimas consequências. Daí o ter eu insistido em que se mantivesse a atitude fenomenológica, isto é, que se prati-cassem as devidas reduções, caminhando progressivamente, eta-pa por etapa, no esclarecimento das relações existenciais em que nos achamos envolvidos”.

Essa intervenção revelou-se necessária para evitar

[…] o risco de nos perdermos no emaranhado das contradições, sem conseguirmos superá-las na dialética. Esta, embora pressentida, não se-ria atingida. Com efeito, acreditava e continuo acreditando que, sem a mediação da análise ser-nos-ia impossível passarmos da síncrese à sín-tese dialética. Percorridos os vários passos, estamos agora em condição

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de adotarmos uma visão sintética do processo em que nos encontra-mos. E esta visão é necessariamente crítica; e, creio, mais agudamente crítica do que antes, mais consistente, pois apresenta-se agora, o quanto possível, fundamentada, sustentada por uma série de razões que conse-guimos enunciar e explicar, de forma coerente e demonstrativa.

Mas, lembrava eu no texto, era necessário ir além, e apresen-tava as razões dessa necessidade argumentando:

Se procuramos ser fiéis ao nosso método que confere prioridade à realidade como critério de análise, eliminando de nosso procedimento qualquer hipótese idealista; se fomos coerentes com o nosso ponto de partida que considera a reflexão posterior à ação, operada em conse-quência das exigências da ação, temos de convir que a reflexão por si mesma, pelo simples gosto de efetuá-la, não nos levaria a nada. A re-flexão parte da ação e redunda em ação. Uma reflexão que partisse da ação e que não levasse à ação seria tão incongruente como aquela que não partisse da ação. Cumpre-nos, pois, prosseguir na nossa tarefa, ten-tando delinear, agora, os rumos da nossa atuação na realidade.

E eu explicitava, nesse ponto, o motivo que me levou à elabo-ração desse texto, isto é, o risco de que a reflexão crítica desembo-casse num beco sem saída:

Na verdade, se parássemos aqui, a atitude crítica poderia resultar destrutiva. Pois a reflexão não deveria levar-nos apenas a identificar as incongruências, as contradições, as carências da realidade. Se ela não re-sultar fecunda em termos da práxis, ou seja, se ela não nos conduzir à manipulação da realidade que apreendemos criticamente, permitindo--nos modificá-la, sua tarefa estará incompleta. Não é outro o sentido que exprimimos ao afirmar que o filosofar se constitui num refletir sobre o homem atuando dialeticamente no mundo, num processo de transfor-mação. Se é verdade que não pretendemos formar pessoas acomodadas, ajustadas à situação, alimentando ilusões, numa visão ingênua do mun-do, mas pretendemos levar até as últimas consequências um processo de desmistificação em que as contradições, as carências e, mesmo, a dra-maticidade da realidade seja patenteada, desvelada, por outro lado, não pretendemos também alimentar um derrotismo estéril, lançar os alunos num beco sem saída, provocar ansiedades que atingem, por vezes, as raias do neurótico.

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E deixava patente a minha visão do que estava ocorrendo com os alunos:

Parece-me que no momento atual os alunos sentem estar diante de uma espécie de beco sem saída; há um sentimento de vazio, a consta-tação de uma lacuna que precisa ser preenchida com algo novo: daí a necessidade de ideias novas. Se não avançarmos além desse ponto, é possível que esta situação acabe resultando fecunda, na medida em que a insatisfação poderá estimular uma busca de caminhos próprios que completará o processo iniciado. Entretanto, é possível também que ocorra alguns desvios: seja no sentido da “racionalização”, o que leva-ria a uma atitude de justificação da acomodação, uma vez que a com-plexidade do real e o fato de não participarmos diretamente da estru-tura de poder nos impediria de assumir uma posição transformadora; seja no sentido da negação verbal que acabaria por tornar-nos peritos no apontar as falhas, as distorções, as incoerências, sem nos decidirmos a intervir no processo manipulando os elementos em questão numa direção transformadora. Para evitar esses desvios é que nos propomos, neste texto, lançar algumas proposições que ultrapassam o nível até agora atingido de visão crítica da realidade.

Resumindo essas observações introdutórias, lancei mão da imagem do horizonte para distinguir a filosofia da ideologia:

Em suma, com estas considerações, gostaríamos de mostrar que a reflexão filosófica encaminha-se para uma formulação ideológica: a ideologia parece-nos ser o complemento natural da filosofia. Esta, em-bora distinta daquela, relaciona-se dialeticamente com ela. Com efeito, se na filosofia nós refletimos sobre os problemas da ação examinando amplamente as suas implicações, isso só é feito objetivando a organi-zação coerente da ação; ora, essa organização da ação é precisamente a ideologia. A filosofia é a garantia de que o horizonte nunca se fecha; a ideologia4, enquanto fechamento provisório do horizonte, é a garantia

4 Essa maneira de colocar as relações entre filosofia e ideologia permite--nos ao mesmo tempo assinalar a oportunidade da distinção entre saber e ideologia e evitar sua possível limitação. Tal limitação consiste em que o saber é geralmente posto como o outro que exclui (porque, ao revelar suas origens, a dissipa) a ideologia. Com isso, acaba-se por defender o caráter desinteressado do saber. Cabe, pois, lembrar que o saber é sempre interes-

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de que não ficamos no mesmo lugar. No texto da “Análise da estrutu-ra do homem” dissemos ser nossa tentativa estabelecer “um ponto de partida para a formulação de uma ideologia educacional destinada à educação efetiva do povo brasileiro”. Com essas notas pretendemos ir um pouco além do ponto de partida; pretendemos fixar já alguns pontos da ideologia a que aludimos.

Concluindo a introdução do texto, encaminhei a questão da formulação dos objetivos da educação brasileira:

O exame da realidade mostrou-nos uma série de necessidades que precisam ser atendidas. Daí, a exigência da ação. Entretanto, para agir e ao fazê-lo, nós precisamos saber para que agimos. Do contrário cor-remos o risco de atuar num sentido que não é aquele exigido pela situação que nos solicita. Defrontamo-nos, pois, com o problema dos objetivos da ação e, no caso específico, dos objetivos educacionais. A educação brasileira não teria, então, objetivos? Sabemos, também como fruto da análise anterior, que, em termos práticos, ela parece mesmo não ter objetivos. Quer dizer, seus agentes frequentemente não sabem para que estão educando; atuam de modo não intencional, ou seja, tornam-se agentes no processo e não agentes do processo. Em termos teóricos, já não poderíamos dizer que a educação brasileira não tem objetivos. No entanto, constatamos também que os objeti-vos definidos nas leis e nos planos e projetos educacionais, desde que amplos e vagos, não são suficientemente existenciais a ponto de se prestarem para orientar efetivamente a ação.

Concluo esse momento da introdução afirmando a necessida-de de se repensar o problema dos objetivos da educação brasileira:

Decidir quais os objetivos da educação significa tomar posição em termos de valores; daí por que essa decisão se liga à opção ideológi-ca. E quanto a nós, qual seria a nossa posição? O que é que achamos válido conseguir com a nossa ação educacional no Brasil? Para respon-

sado, vale dizer, o saber supõe sempre a ideologia da mesma forma que esta supõe sempre o saber. Com efeito, a ideologia só pode ser identificada como tal ao nível do saber. A ideologia que não supõe o saber se supõe saber. Ver, por exemplo, Althusser, s/d., e a apresentação de Chaui em Chaui e Franco, 1978.

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der a essa questão, nós necessitamos retomar o nosso procedimento metodológico. Aqui também, o critério que irá nos orientar será a rea-lidade existencial-dialética na qual nos encontramos em processo de transformação. Aqui também ser-nos-á útil a abordagem fenomenoló-gica: colocaremos entre parênteses todos os objetivos já definidos para a educação brasileira e procuraremos partir dos dados existenciais. Assim, é da análise da estrutura do homem brasileiro, atentos às suas exigências, que iremos retirar a definição dos objetivos da educação brasileira. Com efeito, a nossa reflexão sobre a situação não tinha outra razão senão orientar a nossa ação.

Esse texto configurou-se como uma primeira tentativa de construção de uma teoria dialética da educação evidenciando-se, desde esse momento, a questão da passagem da síncrese à síntese pela mediação da análise, que veio a se afirmar como um elemento central na formulação da pedagogia histórico-crítica.

Ao longo da década de 1970, fui dando continuidade às refle-xões e análises da educação na perspectiva dialética, seja continu-ando no exercício da docência da disciplina filosofia da educação no curso de pedagogia, seja na elaboração da tese de doutoramento defendida em 1971, seja, ainda, na participação, também em 1971, na disciplina introdução à educação do Ciclo Básico de Ciências Humanas e Educação da PUC-SP para a qual elaborei os textos “Dimensão filosófica da educação”, “Valores e objetivos na educa-ção” e “Para uma pedagogia coerente e eficaz”.

A partir de 1972, acrescentou-se o trabalho na pós-graduação, tendo eu assumido a disciplina problemas da educação no Progra-ma de Pós-Graduação em Filosofia da Educação no Instituto Edu-cacional Piracicabano, hoje Universidade Metodista de Piracicaba (UniMep), e na PUC-SP. Organizei o plano da disciplina centrado em seis problemas selecionados de acordo com dois critérios (po-tencial existencial e alcance teórico) e trabalhados em três níveis: constatação, caracterização e tentativa de solução. O primeiro ní-vel punha em evidência o potencial existencial, sendo desenvol-vido a partir das experiências dos próprios alunos que procura-vam constatar em sua prática a incidência do problema proposto.

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O segundo nível fazia intervir a exigência teórica, operando-se a caracterização do problema com o auxílio de textos, de modo que se atingisse uma compreensão consistente e fundamentada do pro-blema examinado. O terceiro nível trazia em seu bojo o problema seguinte. Assim, a tentativa de solução do problema n° 1 colocava a exigência de se examinar o problema n° 2 que era, então, formu-lado, constatado, caracterizado e assim sucessivamente até o pro-blema nº 6, que tinha caráter sintético, completando o programa da disciplina. Vê-se, portanto, que os seis problemas se articula-vam dialeticamente entre si, constituindo uma totalidade orgânica. Pode-se perceber que essa forma de planejar e conduzir a execução prática da disciplina guarda relação com o método da pedagogia histórico-crítica que formulei posteriormente.

2. Origem

Sobre a origem da pedagogia histórico-crítica, já tive oportu-nidade de tratar em outras ocasiões, como se pode ver nos capítu-los 3, 4 e 6 do livro Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações (saviani, 2008a), nos quais abordo, respectivamente: “a pedagogia histórico-crítica no quadro das tendências críticas da educação bra-sileira”; “a pedagogia histórico-crítica e a educação escolar”; e “con-textualização histórica e teórica da pedagogia histórico-crítica”.

Nesses textos, eu situo a mobilização da década de 1970, o cli-ma cultural, político e pedagógico que se instaurou no contexto da crítica à política educacional e à pedagogia oficial do regime mili-tar alimentada pelo que chamei de “teorias crítico-reprodutivistas”, evoluindo-se para a busca de alternativas à orientação oficial, o que colocava a necessidade de se elaborar uma teoria pedagógica que fosse crítica, mas não reprodutivista.

Uma peculiaridade desse período é que emergiu um esforço coletivo caracterizado pela organização do campo educacional ex-presso no surgimento de entidades como a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (anped), criada em 1977,

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o Centro de Estudos Educação & Sociedade (cedes), articulado em 1978 com a organização, nesse ano, do Primeiro Seminário de Educação Brasileira, e a Associação Nacional de Educação (ande), fundada em 1979. Em especial essa última entidade, com o seu periódico, a Revista da ande, constituiu-se num espaço importante para a busca de difusão, preferencialmente junto aos professores das escolas públicas, das ideias pedagógicas de orientação dialéti-ca que vieram a configurar a pedagogia histórico-crítica. E foi tam-bém nesse momento que ministrei, em 1978, a disciplina teoria da educação para a primeira turma do Doutorado em Educação da PUC-SP, cuja programação tinha por objeto um estudo monográfi-co do pensamento e das obras de Gramsci buscando extrair desse manancial os elementos teóricos que nos permitissem compreen-der de forma crítica os problemas da educação brasileira.

Nesse novo quadro que se caracterizou a partir do final da década de 1970, aquilo que eu vinha procurando desenvolver in-dividualmente assumiu caráter coletivo. Os problemas relativos à elaboração de uma concepção pedagógica que permitisse superar os limites da visão crítico-reprodutivista foram sistemática e inten-samente discutidos naquela primeira turma de doutorado e tive-ram continuidade nas turmas subsequentes. Já em 21 de setembro de 1978, Betty Antunes de Oliveira defendia sua tese de doutora-mento sobre a Política de formação de professores do ensino superior, que em 1980 foi publicada na forma de livro com o título O Estado autoritário brasileiro e o ensino superior. Nesse trabalho, ela utilizou o referencial gramsciano para analisar a política de formação de pro-fessores do ensino superior durante o regime militar, entre 1972 e 1978. A partir dos documentos oficiais, mostrou que as diretrizes formuladas pela “sociedade política”, isto é, pelo aparelho gover-namental, geram, na “sociedade civil”, resultados contraditórios.

Mas foi com a tese de Carlos Roberto Jamil Cury, Educação e contradição: elementos metodológicos para uma teoria crítica do fenôme-no educativo, defendida em 3 de outubro de 1979, mas publicada apenas em 1985, que se fez um primeiro esforço de sistematizar, pela via das categorias lógicas, uma teoria crítica não reprodutivis-

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ta da educação. Por isso considerei o ano de 1979 como um marco importante na formulação da pedagogia histórico-crítica.

Esse caráter de construção coletiva vem, desde aí, marcando o desenvolvimento da pedagogia histórico-crítica.

Balizados os marcos teóricos mais gerais do que é exemplo a sistematização levada a efeito pela mencionada tese de Cury, a primeira formulação propriamente pedagógico-metodológica foi efetivada no texto “Escola e democracia II: para além da teoria da curvatura da vara”, publicado em 1982 no nº 3 da Revista da ande, sendo incorporado, em 1983, como o capítulo 3 do livro Escola e de-mocracia (saviani, 2008b, pp. 47-64). Finalmente, em 1984, foi adota-da a denominação pedagogia histórico-crítica a esse esforço coletivo que se vem desenvolvendo desde então até os dias atuais.

Esse caráter coletivo, reiterado por mim em diversas oportu-nidades, pode ser ilustrado com o Simpósio de Marília, assim de-nominado por ter se realizado na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Marília, não apenas pelos trabalhos ali apresentados, mas porque foi explicitado por Newton Duarte, ao iniciar sua ex-posição sobre os elementos para uma ontologia da educação na obra de Dermeval Saviani, nos seguintes termos:

O contexto no qual esta apresentação adquire sentido é o da constru-ção coletiva da pedagogia histórico-crítica. Não é casual que essa cor-rente pedagógica nunca tenha sido denominada “Pedagogia Dermeval Saviani”, ainda que o trabalho desse educador seja uma das referências fundamentais dessa corrente. A construção coletiva dessa pedagogia está em andamento tanto no que diz respeito à elaboração teórica, quanto no que diz respeito ao enfrentamento dos problemas postos pela prática no campo educacional. Há muito por ser feito nessas duas direções [dUarte, 1994, pp. 129-130].

Ao longo dos últimos 30 anos, a construção dessa pedagogia vem contando com colaboradores em número cada vez maior, sen-do uma tarefa um tanto arriscada apresentar uma listagem com-pleta de todos os trabalhos que se inserem nesse esforço comum. Lancemos então um olhar, à guisa de conclusão, sobre os trabalhos

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apresentados no Seminário Pedagogia histórico-crítica: 30 anos que se realizou na Unesp de Araraquara em dezembro de 2009.

3. Desenvolvimento atual

O Seminário Pedagogia histórico-crítica: 30 anos é, sem dúvida, uma amostra significativa do estágio atual do desenvolvimento dessa corrente pedagógica. É uma amostra porque foi programa-do em curto espaço de tempo e sem contar com financiamento externo. Foi viabilizado pelo concurso espontâneo e voluntário das pessoas ligadas ao Grupo de Pesquisa “Estudos Marxistas em Educação” e ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Unesp de Araraquara a partir do trabalho abnegado da Comis-são Organizadora. Nessas condições, não sendo viável contar com a contribuição de outros pesquisadores que vêm-se dedicando ao desenvolvimento da pedagogia histórico-crítica em diferentes instituições de nosso país, optou-se por compor as mesas com es-tudiosos ligados, de alguma forma, ao Grupo “Estudos Marxistas em Educação”. Mas a amostra é significativa pela qualidade das abordagens efetuadas que revela a vitalidade da atual fase de de-senvolvimento da pedagogia histórico-crítica.

O seminário foi organizado em cinco mesas ou eixos temáti-cos: 1. Fundamentos da pedagogia histórico-crítica; 2. Pedagogia histórico-crítica e psicologia histórico-cultural; 3. Contribuições es-pecíficas à pedagogia histórico-crítica: educação infantil, formação moral e prática pedagógica; 4. A crítica às pedagogias do “apren-der a aprender” como contribuição à pedagogia histórico-crítica; 5. Pedagogia histórico-crítica e educação especial.

Distribuíram-se por esses cinco eixos temáticos nove estudio-sos que vêm dedicando-se a pesquisar aspectos de grande relevân-cia da problemática pedagógica.

Trataram dos fundamentos da pedagogia histórico-crítica os professores Newton Duarte e Sandra Soares Della Fonte.

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Newton Duarte, desde pelo menos sua pesquisa de doutora-do concluída em 1992, vem dedicando-se ao estudo aprofundado dos fundamentos filosóficos e psicológicos da pedagogia histórico--crítica. Nesse seminário, sua contribuição, centrada na “formação do ser humano na sociedade comunista como referência para a educação contemporânea”, chamou a atenção para o alvo a que se deve dirigir a educação na sociedade atual, isto é, a construção de uma sociedade na qual os indivíduos possam desenvolver-se de forma livre e universal numa autoatividade plena de sentido, instaurando relações humanas plenas de conteúdo.

Sandra Della Fonte contribuiu também no eixo dos funda-mentos teóricos pondo em ação sua agudez reflexiva testada na brilhante tese de doutoramento sobre as fontes heideggerianas do pensamento pós-moderno defendida em 2006. Com esse cabedal que lhe propiciou o estudo filosófico da condição pós-moderna, ela traz uma contribuição inestimável para situar a pedagogia histórico-crítica como um intento superador do clima cultural que vem sendo chamado de pós-modernidade. Assim, embora na sua humildade intelectual Sandra afirme que não estaria trazendo algo novo em relação às análises apresentadas por Betty Oliveira e Newton Duarte no Simpósio de Marília, em 1994, ouso discordar. Na verdade, ela situa-se na mesma perspectiva daqueles estudos, mas traz uma nova contribuição ao inserir-se resolutamente na “luta ideológica contemporânea” por meio da crítica ao referido clima cultural pós-moderno. E o faz enunciando e defendendo com base principalmente em Marx e Lukács estas três teses lapidares: 1. A realidade existe e é cognoscível; 2. Objetividade não significa neutralidade e totalidade não é tudo; 3. Ser contra o relativismo cultural não é ser contra a multiplicidade da cultura.

O eixo relativo à relação entre pedagogia histórico-crítica e psicologia histórico-cultural ficou a cargo de Lígia Márcia Martins, que, com base num importante lastro de pesquisas sobre o tema abordado, nos brindou com uma verdadeira aula conduzida com didática impecável.

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Na análise do terceiro eixo, associaram-se Juliana Campregher Pasqualini, que discorreu sobre “a educação escolar da criança pe-quena na perspectiva histórico-cultural e histórico-crítica”, Juliane Zacharias Bueno, com o tema “ética marxista e formação moral na escola”, e Ana Carolina Galvão Marsiglia, que analisou “a prática pedagógica na perspectiva da pedagogia histórico-crítica”. Tam-bém nesse caso as análises se assentam em pesquisas sistemáticas trazendo contribuição decisiva em áreas ainda pouco exploradas, como a educação infantil, ou praticamente inexploradas, como são os casos da educação moral e da organização da prática pedagógi-ca no âmbito da pedagogia histórico-crítica.

O quarto eixo contou com as análises de Marilda Gonçalves Dias Facci e de Lidiane Teixeira Brasil Mazzeu. Marilda, a partir de sua ampla experiência de pesquisa e ensino na psicologia edu-cacional, explicita a crítica às pedagogias do “aprender a apren-der” pelo prisma da “naturalização do desenvolvimento humano e a influência do construtivismo na educação”. E Lidiane, também lastreada em sólida experiência de pesquisa e ensino, empreende a crítica da política educacional dos últimos 15 anos sobre a forma-ção de professores pelo aspecto dos fundamentos teóricos e episte-mológicos que orientaram a reforma educacional.

Finalmente, na abordagem do quinto eixo, Sonia Mari Shima Barroco nos brindou com uma exposição abrangente e esclarecedo-ra sobre a educação especial na perspectiva da pedagogia histórico--crítica e da psicologia histórico-cultural, posicionando-se “em defe-sa do desenvolvimento da pessoa com e sem deficiência”.

Numa breve apreciação sobre o conjunto dos temas tratados no seminário, destaca-se a riqueza e consistência das análises efe-tuadas, o que decorreu do fato de que seus autores se expressa-ram com conhecimento de causa resultante de pesquisas sistemá-ticas conduzidas com rigor e seriedade. Dessa forma, não apenas trouxeram uma contribuição específica ao desenvolvimento da pedagogia histórico-crítica, mas vêm somar-se ao coletivo crescen-

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temente ampliado dos cultivadores dessa corrente pedagógica, o que traz a garantia de que continuarão a colaborar no aprofunda-mento e desenvolvimento da pedagogia histórico-crítica.

Referências

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cHaUi, M. & franco, M. S. C. (1978). Ideologia e mobilização popular. Rio de Janeiro, Cedec; Paz e Terra.

cUry, C. R. J. (1985). Educação e contradição: elementos metodológicos para uma teoria crítica do fenômeno educativo. São Paulo, Cortez; Autores Associados.

dUarte, N. (1994). “Elementos para uma ontologia da educação na obra de Dermeval Saviani”. In: silva Jr., C. A. S. (org.). Dermeval Saviani e a educação brasileira: o Simpósio de Marília. São Paulo, Cortez, pp. 129-149.

dUMont, F. (1974). Les idéologies. Vendôme, PUF.

fUrter, P. (1966). Educação e reflexão. Petrópolis, Vozes.

gabel, J. (1974). Idéologies. Paris, Antrhopos.

. (1977). La fausse conscience. 3. ed. Paris, Les Ed. de Minuit.

graMsci, A. (1975). Quaderni del carcere (edizione critica dell’Istituto Gramsci a cura de Valentino Gerratana). . Torino, Einaudi, 4 vols.

. (1978). A concepção dialética da história. 2. ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

lenk, K. (1974). El concepto de ideología. Buenos Aires, Amorrortu.

oliveira, B. A. (1980). O Estado autoritário brasileiro e o ensino superior. São Paulo, Cortez; Autores Associados.

saviani, D. (2008a). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 10. ed. Campinas, Autores Associados.

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. (2008b). Escola e democracia. Edição comemorativa. Campinas, Autores Associados.

. (2009). Educação: do senso comum à consciência filosófica. 18. ed. Campinas, Autores Associados.

scHaff, A. (1974). História e verdade. Lisboa, Estampa.

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Os autores

Ana Carolina Galvão Marsiglia

Graduada em pedagogia pela Universidade Estadual Paulis-ta (Unesp), campus de Bauru, foi professora de educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental, coordenadora do “Grupo de estudos sobre a pedagogia histórico-crítica na prática pedagógica” na Secretaria Municipal de Educação de Bauru (2006-2007). Seu doutorado trata da concepção construtivista na Secretaria de Es-tado da Educação de São Paulo (Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Unesp, campus de Araraquara – bolsista fapesp). Possui diversas publicações na área de educação. Seus interesses de pesquisa são a prática pedagógica, história da educação e de-senvolvimento infantil.

Contato: [email protected].

Dermeval Saviani

Possui graduação em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutorado em filosofia da edu-cação pela mesma universidade. Em 1986, obteve o título de livre--docente e em 1991 foi aprovado no Concurso de Professor Titular de História da Educação da Universidade Estadual de Campinas (UnicaMp). Realizou estágio sênior (pós-doutorado) nas universi-dades italianas de Pádua, Bolonha, Ferrara e Florença, entre 1994 e 1995. Orientou mais de uma centena de trabalhos acadêmicos en-tre projetos de iniciação científica, trabalhos de conclusão de curso,

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dissertações de mestrado, teses de doutorado e supervisão de estágios de pós-doutorado. Foi condecorado com a medalha do mérito educa-cional do Ministério da Educação (1995), recebeu da UnicaMp o Prê-mio Zeferino Vaz de Produção Científica (1997) e o título de Professor Emérito (2002). Em 2010, recebeu do CNPq o título de Pesquisador Emérito. É coordenador geral do Grupo de Estudos e Pesquisas “His-tória, Sociedade e Educação no Brasil” (Histedbr), fundado em 1986. Possui mais de uma centena de publicações entre livros, artigos em periódicos e capítulos de livros. Entre suas obras, podemos destacar Educação: do senso comum à consciência filosófica (1980), Escola e demo-cracia (1983), Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações (1991), A pedagogia no Brasil: história e teoria (2008). Recebeu o Prêmio Jabuti de melhor livro na categoria educação no ano de 2008, pela obra História das ideias pedagógicas no Brasil (2007).

Contato: [email protected].

Juliana Campregher Pasqualini

Graduada em psicologia, é mestre e doutora em educação esco-lar pela Unesp, campus de Araraquara. Realizou estágio de doutorado--sanduíche no CSAT - Centre for Sociocultural and Activity Theory Research (Centro de Pesquisa Sociocultural e da Teoria da Ativida-de) da Universidade de Bath, na Inglaterra, em 2009. É professora do curso de Graduação em Psicologia da Unesp, campus de Bauru, autora de artigos e capítulos de livros na área de educação. Tem como foco de pesquisa o desenvolvimento infantil e o ensino na educação infan-til na perspectiva histórico-cultural e histórico-crítica.

Contato: [email protected].

Juliane Zacharias Bueno

Formou-se em pedagogia pela Unesp, campus de Bauru, onde desenvolveu o trabalho de conclusão de curso Ética e educação. Seu mestrado, realizado no Programa de Pós-Graduação em Educação

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Escolar da Unesp (Araraquara), intitulou-se Fundamentos éticos e formação moral na pedagogia histórico-crítica. É professora das séries iniciais do ensino fundamental da rede estadual de ensino de São Paulo e seu interesse de pesquisa é a ética marxista, objeto de seus estudos na graduação e no mestrado.

Contato: [email protected].

Lidiane Teixeira Brasil Mazzeu

É graduada em pedagogia, possui mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Unesp, campus de Araraquara. É professora e coordenadora dos cursos de licenciatura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnolo-gia do Sul de Minas Gerais, campus Inconfidentes. Tem experiência na área de educação, com ênfase em trabalho educativo, atuando principalmente nos seguintes temas: políticas educacionais; for-mação de professores; teorias educacionais e é autora de artigos publicados em periódicos da área de educação.

Contato: [email protected].

Lígia Márcia Martins

Psicóloga, mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Uni-versidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutora em educação pela Unesp, campus de Marília. É professora do curso de Gradua-ção em Psicologia da Unesp, campus de Bauru, e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da mesma universidade, campus de Araraquara. É autora de livros, capítulos de livros e ar-tigos. Entre seus trabalhos, destaca-se sua obra A formação social da personalidade do professor: um enfoque vigotskiano (2007) e os livros organizados por ela juntamente com Alessandra Arce: Ensinando aos pequenos de zero a três anos (2009) e Quem tem medo de ensinar na educação infantil? Em defesa do ato de ensinar (2007).

Contato: [email protected].

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Marilda Gonçalves Dias Facci

Possui graduação em psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), mestrado e doutorado pela Unesp, campus de Araraquara. É professora da UEM e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da mesma universidade, de que foi coordenadora en-tre 2006 e 2010. É membro da Associação Nacional de Pós-Gradu-ação e Pesquisa em Educação (anped), exercendo diferentes fun-ções, entre elas a coordenação do GT de Psicologia da Educação (2009-2011). Organizou com outros autores as obras: Psicologia histórico-cultural: contribuições para o encontro entre a subjetividade e a educação (2007), A constituição do sujeito e a historicidade (2009) e Escola de Vigotski: contribuições para a psicologia e a educação (2009). É autora do livro Valorização ou esvaziamento do trabalho do profes-sor? Um estudo crítico-comparativo da teoria do professor reflexivo, do construtivismo e da psicologia vigotskiana (2004). Tem experiência na área de psicologia, com ênfase em psicologia do ensino e da aprendizagem, atuando principalmente nos seguintes temas: psi-cologia histórico-cultural, educação e psicologia escolar.

Contato: [email protected].

Newton Duarte

Pedagogo e mestre em educação pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), doutor em educação pela UnicaMp, re-alizou pós-doutorado na Universidade de Toronto (Canadá). É docente do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Unesp, campus de Araraquara, e professor titular do Departamen-to de Psicologia da mesma instituição, além de líder do Grupo de Pesquisa “Estudos Marxistas em Educação”. Entre seus trabalhos destacam-se os livros: A individualidade para-si (1993), Educação escolar, teoria do cotidiano e a Escola de Vigotski (1996), Vigotski e o aprender a aprender: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana (2000) e Sociedade do conhecimento ou sociedade

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das ilusões? (2003). É ainda organizador dos livros: Sobre o constru-tivismo: contribuições a uma análise crítica (2000), Crítica ao fetichis-mo da individualidade (2004), Brincadeira de papéis sociais na educação infantil: as contribuições de Vigotski, Leontiev e Elkonin (2006) e Cri-tical Perspectives on Activity: explorations across education, work and everyday life (2006). Publicou em 2010, com Sandra Soares Della Fonte, o livro Arte, conhecimento e paixão na formação humana: sete ensaios de pedagogia histórico-crítica.

Contato: [email protected].

Sandra Soares Della Fonte

Graduada em filosofia e educação física pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mestre em educação pela Uni-versidade Metodista de Piracicaba (UniMep) e doutora em edu-cação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com estágio de doutoramento na School of Education da University of Nottingham, Inglaterra (2003/2004). É professora efetiva da Ufes desde 1997 e prioriza, em suas atividades, estudos relacionados à filosofia da educação. Além do Grupo de Pesquisa “Estudos Marxistas em Educação”, integra o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação e Filosofia (nepefil/Ufes). Tem artigos e capítulos de livros publicados. Em 2003, lançou a obra Indústria cultural em tempos pós-modernos, escrita com Robson Loureiro. Com Newton Duarte publicou o livro Arte, conhecimento e paixão na formação hu-mana: sete ensaios de pedagogia histórico-crítica (2010).

Contato: [email protected].

Sonia Mari Shima Barroco

Graduada em psicologia pela UEM, é mestre e especialista em Educação, na área de fundamentos da educação, pela mes-ma universidade. Doutorou-se em educação escolar pela Unesp,

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campus de Araraquara, e fez pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Hu-mano (Instituto de Psicologia - USP). É docente do Departamento de Psicologia da UEM, vice-coordenadora do Programa de Pós--Graduação em Psicologia da mesma universidade e editor-assis-tente do periódico Psicologia em Estudo. É autora do livro Psicolo-gia educacional e arte: uma leitura histórico-cultural da figura humana (2007), coorganizadora do livro Intervenções pedagógicas na educação escolar indígena: contribuições da teoria histórico-cultural (2008). Orga-nizadora, juntamente com Marilda G. D. Facci e Silvana C. Tuleski, do livro Escola de Vigotski: contribuições para a psicologia e a educação (2009) e autora de capítulos de livros e artigos cujo aporte teórico é a perspectiva histórico-cultural. Pesquisa no âmbito da psicolo-gia histórico-cultural, aprendizagem e desenvolvimento humanos, educação, educação especial e arte.

Contato: [email protected].

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