Luisa Nogueira - a Filosofia No Espaco Escolar

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA A FILOSOFIA NO ESPAÇO ESCOLAR Luísa Margarida de Mendonça Freire Nogueira DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA ENSINO DA FILOSOFIA 2008

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História do Ensino da Filosofia em Portugal

Transcript of Luisa Nogueira - a Filosofia No Espaco Escolar

  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    A FILOSOFIA NO ESPAO ESCOLAR

    Lusa Margarida de Mendona Freire Nogueira

    DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA

    ENSINO DA FILOSOFIA

    2008

  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    A FILOSOFIA NO ESPAO ESCOLAR

    Lusa Margarida de Mendona Freire Nogueira

    DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA

    ENSINO DA FILOSOFIA Tese orientada pelo Professor Doutor Pedro M. S. Alves e pelo Professor Doutor Leonel Ribeiro dos Santos, co-orientador.

    2008

  • Ao Gil

  • AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, quero agradecer ao Professor Doutor Joo Paisana, que

    j no est entre ns. Porque os Seminrios de Mestrado que com ele realizei, a

    dissertao de Mestrado de que foi Orientador, foram fundamentais na minha

    formao acadmica. No seu pensamento encontrava a clareza e o rigor da

    Filosofia; nele, o gosto pela comunicao do Mestre. Para alm disso, a

    possibilidade que me deu de participar no projecto da Revista Phainomenon, de

    que foi fundador, constituiu-se como uma experincia nica, desinteressada, de

    debate e de partilha intelectuais.

    Ao Professor Doutor Pedro Alves, Orientador desta tese, agradeo a

    disponibilidade, a leitura atenta, as correces oportunas e, principalmente, o ter

    acreditado que este projecto se podia concretizar. Sem o seu estmulo, as suas

    palavras certas, dificilmente teria conseguido iniciar, prosseguir e concluir este

    trabalho.

    Ao Professor Doutor Leonel Ribeiro dos Santos, co-orientador desta tese,

    cujo Seminrio de Doutoramento, Filosofia da Educao, que frequentei no ano

    lectivo de 2003/2004, foi to importante, agradeo especialmente a orientao

    bibliogrfica, as observaes pertinentes e a confiana sempre depositada.

    Por ltimo, devo referir que esta investigao tambm foi possvel pela

    situao de equiparao a bolseira, que solicitei Direco Geral dos Recursos

    Humanos da Educao e me foi concedida, anualmente, entre os anos de

    2002/2003 e 2005/2006.

  • Resistamos iluso de supor que tudo pode ser inundado de luz. Deixaramos de ver.

    Eduardo Loureno

  • RESUMO

    A FILOSOFIA NO ESPAO ESCOLAR

    Esta investigao tem como objecto de estudo a Filosofia escolar. Est centrada entre a primeira Reforma do Ensino Secundrio em 1905 e a ltima Reforma do Ensino Liceal do Estado Novo, em 1947/48. Consiste numa anlise e interpretao do percurso de constituio da Filosofia como disciplina escolar atravs dos elementos mediadores que a transformam num saber ensinvel no Liceu. Finalidades educativas, programas de ensino, manuais escolares e uma estrutura curricular e administrativa configuram a Filosofia como disciplina escolar. Procurou-se uma perspectivao diacrnica e sincrnica destes diferentes elementos, em relao com a poltica de ensino e de educao, com determinadas concepes do espao pblico e do valor do prprio saber. Acompanhando a gnese de alguns equvocos associados ao valor formativo da disciplina, detectando os pressupostos filosficos dos diferentes programas que representam a dominncia de uma determinada Filosofia no ensino, ressaltando a importncia de alguns manuais e das relaes no lineares entre estes e os programas, mostrando os procedimentos de aprovao oficiais dos manuais ao longo do Estado Novo, estabelece-se o perfil e os traos configuradores da Filosofia no Ensino Liceal.

    As dificuldades pelas quais o saber filosfico passou no seu percurso de constituio como disciplina escolar so, no entanto, partilhadas por qualquer cincia com expresso na escola sempre que a orientao da poltica educativa interfira directamente nos processos de mediao do saber e que os mecanismos do poder se exeram de forma activa e orientada sobre o espao escolar.

    Filosofia escolar; programas; manuais; espao pblico; poder

    ABSTRACT

    PHILOSOPHY IN THE SCHOOL PLACE The aim of this research is to investigate the subject of scholarly Philosophy in

    Portugal. Its fundamental temporal core begins in the first Reform of Secondary School in 1905 and lasts until the final Reform of the Estado Novo in 1947/48.

    This dissertation attempts to interpret the mediating elements which have turned Philosophy into a scholarly subject, that is, Philosophy as a teachable subject in middle school. Philosophy as a scholarly subject is constituted by the following: educational objectives in general; school programmes; school textbooks; school curricula and administration structure.

    The aforementioned mediating elements are analysed under a diachronic and synchronic perspective. We will then explore their links to education policies, to the conception of public space and to the value attributed to knowledge itself.

    The formative value of Philosophy as a scholarly subject has given rise to some misunderstandings. This dissertation aims at explaining the origins of these misunderstandings and how they have come into play. The different school programmes rely on philosophical premises which represent the hegemony of a certain view of Philosophy. Our aim is to explain these premises. The connection between the several

  • school textbooks and the school programmes of the time was not always a linear one. This dissertation investigates how some came to gain importance and meaning.

    However, the difficulties which have stricken philosophical knowledge in the process of becoming a scholarly subject are common to any science which is taught at school. They emerge whenever education policies interfere directly in the process of knowledge mediation; and whenever power is exerted in such a way as to actively interfere in the school place.

    Scholarly philosophy; school programmes; school textbooks; public space; power

    RSUM

    LA PHILOSOPHIE DANS LESPACE SCOLAIRE Cette investigation a pour objet la philosophie scolaire. Elle se centre sur

    lintervalle entre la premire Rforme de lEnseignement Secondaire en 1905 et la dernire Rforme de lEnseignement Lycen de lEstado Novo en 1947/48. Elle se compose dune analyse et dune interprtation du parcours de ltablissement de la Philosophie en tant que discipline scolaire tenant compte des lments mdiateurs qui la transforment en un savoir enseignable au Lyce. Les finalits ducatives, les programmes scolaires, les manuels scolaires, le curriculum et lorganisation administrative configurent la Philosophie comme une discipline scolaire. On a cherch une perspectivation diachronique et synchronique de ces diffrents lments, en les articulant avec la politique de lenseignement et de lducation, ainsi quavec certaines conceptions de lespace public et de la valeur du savoir. Le contour et les grands lignes qui configurent la Philosophie au sein de lenseignement secondaire sont tablies accompagnant la gense de quelques quivoques associes la valeur formative de la discipline, dcelant les suppositions philosophiques des diffrents programmes qui signifient lhgmonie dune certaine Philosophie, soulignant limportance de quelques manuels et leurs relations de non linarit avec les programmes e prsentant galement les procdures dapprovation officielles des manuels pendant lEstado Novo.

    Les difficults que le savoir philosophique a prouves pendant son parcours d tablissement en tant que discipline scolaire sont, pourtant, partages par toute science enseigne chaque fois que lorientation politique ducative intervient directement dans le processus de mdiation du savoir et que les dispositifs du pouvoir sexercent de forme active et oriente sur lespace scolaire.

    Philosophie scolaire; programmes; manuels; espace public; pouvoir

  • NDICE GERAL

    Introduo

    1. Problemas, orientao e objecto de investigao ............................................ 1

    2. Fontes de investigao e plano de trabalho ..................................................... 5

    1 Seco - A ESCOLA, O SABER E A EDUCAO NA I REPBLICA E

    NO ESTADO NOVO

    Introduo .......................................................................................................... 13

    Captulo 1 O primado da educao no Estado Novo

    1. Da instruo educao e a desvalorizao do espao escolar

    enquanto lugar de transmisso do saber .............................................................. 21

    2. Discurso pedaggico e discurso poltico: a formao dos portugueses....... 35

    3. A verdade nacional e o currculo escolar ..................................................... 41

    3.1. Nacionalismo na educao: o contributo da Filosofia .................................. 47

    Captulo 2 A aco educativa no Estado Novo e a construo do sujeito

    moral

    1. A aco educativa, a escola e os seus agentes ................................................. 57

    2. A educao moral e a posse das conscincias ............................................. 68

    3. A educao do carcter e da vontade ............................................................... 76

    Captulo 3 O ensino e a educao na I Repblica e no Estado Novo

    1. Ensinar e educar: o lugar da formao moral .................................................. 83

    2. A questo do analfabetismo: significado de alguns equvocos ....................... 88

  • 3. As relaes entre a esfera pblica e a esfera privada no

    Estado Novo e a desvalorizao da poltica ..................................................... 96

    4. A educao e o ensino: de direito do cidado a prerrogativa

    do Estado-Nao ................................................................................................... 108

    2 Seco - REPRESENTAO ESCOLAR DA FILOSOFIA

    Introduo ........................................................................................................... 116

    Captulo 1 O nascimento da disciplina de Filosofia

    1. A Filosofia e os Estudos Menores na Reforma de 1772:

    estatuto propedutico ............................................................................................ 121

    2. Filosofia e Retrica ........................................................................................... 125

    3. Programa de Filosofia e compndio aprovado: eclectismo e Genovesi ........... 129

    4. Os estudos filosficos e o projecto das Luzes: contradies ............................ 134

    5. As Reformas ps-pombalinas e a desvalorizao do ensino secundrio .......... 142

    6. Reduo dos estudos filosficos ao ensino secundrio .................................... 145

    Captulo 2 A disciplina de Filosofia: entre o prestgio e a decadncia

    (de 1895 a 1926)

    1. A Reforma de Jaime Moniz: a contradio entre a importncia da disciplina

    e a sua situao curricular (1894-95) .................................................................... 157

    2. A Reforma de Eduardo Jos Coelho: o Positivismo e o lugar residual da

    disciplina de Filosofia (1905) ............................................................................... 169

    Captulo 3 - Recuperao curricular da disciplina de Filosofia na I Repblica

    1. A Reforma da Instruo Secundria de Jos Pedro Martins (1917) ................. 177

    2. A Reforma do Ensino Secundrio de Alfredo Magalhes (1918) ................... 179

    3. A Reforma de Joaquim Jos de Oliveira (1919) ............................................. 188

  • Captulo 4 - A importncia escolar da Filosofia sob o signo das Humanidades

    1. A Reforma de 1926: reduo curricular e manuteno do estatuto da

    disciplina de Filosofia .......................................................................................... 191

    2. A superioridade do saber e do ensino filosficos na legislao

    de Cordeiro Ramos (1929) ................................................................................... 196

    2.1. As finalidades do Ensino Secundrio ........................................................... 198

    2.2. O desgnio de uma educao nacional .......................................................... 200

    2.3. O papel director da disciplina de Filosofia ................................................... 202

    3. A Reforma de Carneiro Pacheco (1936) .......................................................... 207

    3.1. A aco formativa do ensino liceal ............................................................... 211

    3.2. Objectivos do ensino liceal: a cultura e a preparao para a vida ........ 213

    3.3. A supremacia da Filosofia ............................................................................ 217

    4. A representao escolar da Filosofia na Revista Brotria:

    a recepo da Reforma de 1936 ........................................................................... 220

    5. A Reforma de Pires de Lima: confirmao do estatuto curricular

    da disciplina de Filosofia (1947-48) .................................................................... 229

    3 Seco - PROGRAMAS DA DISCIPLINA DE FILOSOFIA

    Introduo .......................................................................................................... 239

    Captulo 1 - A ruptura com a tradio no Programa de 1905 (Perodo da

    Monarquia Constitucional)

    1. O Positivismo no Programa de 1905 ............................................................... 245

    Captulo 2 - A ausncia da Metafsica nos Programas de 1918 e de 1919

    (Perodo da I Repblica)

    1. O Programa de 1918: que positivismo? ........................................................... 249

    1.1. As Instrues: sinais de inovao ............................................................. 255

    2. O Programa de 1919: abertura Metafsica .................................................... 265

  • Captulo 3 - Retorno paulatino da Metafsica nos Programas de 1926 a 1935

    (Perodo da Ditadura Militar)

    1. O Programa de 1926: a excepo ..................................................................... 271

    2. O Programa de 1929: o reaparecimento da Metafsica e

    uma nova representao escolar da disciplina ...................................................... 276

    2.1. Influncia francesa nos contedos programticos de 1929 ........................... 280

    2.2. Influncia francesa nas Instrues ............................................................. 285

    3. A concepo de programa escolar na legislao de 1930 e de 1931 ................ 292

    4. Os programas de 1930: deslocamento do centro de estudos ............................ 297

    5. O programa de 1931 ......................................................................................... 307

    6. Os programas de 1934 e de 1935: inflexo moralizante e

    introduo da moral crist ................................................................................ 311

    7. Os programas entre 1929 e 1935: continuidade e ruptura ................................ 320

    Captulo 4. - Espiritualismo cristo nos Programas de 1936, de 1948 e de 1954

    (Perodo do Estado Novo)

    1. O Programa de 1936: a presena oculta da Metafsica..................................... 323

    1.1. Filosofia: um ensino elementar? .................................................................... 332

    2. O Programa de 1948 ......................................................................................... 334

    2.1. Psicologia ....................................................................................................... 336

    2.2. Lgica, Teoria do Conhecimento e Metodologia ......................................... 344

    2.3. tica e Esttica: o reaparecimento da moral crist e

    a viso moralizadora da arte ................................................................................ 348

    2.4. A afirmao da Metafsica ............................................................................ 350

    2.5. A questo da Psicologia como tema de abertura do programa:

    Psicologia versus Lgica ...................................................................................... 353

    2.6. O professor: servo da verdade ................................................................... 360

    2.7. Leituras aconselhadas: evidncias e ambiguidades ....................................... 364

    2.7.1. Carrel e Mendes do Carmo: que Filosofia? ................................................ 372

    2.7.1.1. O Homem esse desconhecido de Alexis Carrel ....................................... 372

  • 2.7.1.2. Porque Jurei Crer em Deus de Mendes do Carmo ................................ 380

    3. A orientao escolstico - tomista do programa espanhol de 1939

    e a tibieza dos programas portugueses ................................................................ 385

    4. Programa de 1954 ............................................................................................ 390

    5. Alteraes no programa de 1954: a reforma anunciada .................................. 403

    4 Seco - ENSINO DA FILOSOFIA E MANUAIS ESCOLARES

    Introduo .......................................................................................................... 415

    Captulo 1 - Da diversidade estabilidade

    1. Primeiro quartel do sculo XX: diversidade de orientaes filosficas .......... 419

    1.1. Divrcio entre programas e manuais ............................................................ 422

    2. Entre a escassez editorial e a procura de estabilidade ..................................... 439

    2.1. A preocupao didctica do manual de Hortncio da Piedade Morais ........ 444

    2.2. A orientao de filosofia crist do Manual de Charles Lahr ........................ 447

    2.3. A ascenso dos manuais de Eugnio Aresta ................................................. 451

    2.4. Riscos e ambiguidades de um ensino elementar e formativo ....................... 465

    Captulo 2 O imprio do manual no Estado Novo

    1. Compndios em lngua francesa: a importncia da orientao filosfica ....... 475

    2. procura do livro nico .................................................................................. 485

    2.1. Contradio entre o Parecer e a deciso ministerial:

    o caso do Compndio de Filosofia de Jos de Almeida Correia ......................... 487

    2.2. O papel da Filosofia no Liceu no pedido de aprovao do Compndio

    de Filosofia, de Jos Bonifcio Ribeiro e Jos da Silva, em 1940 ..................... 491

    2.3. Pareceres sobre o Manual de Eugnio Aresta: divergncias ........................ 494

    3. A hegemonia do Manual de Eugnio Aresta ................................................... 499

  • Captulo 3 Manuais dissonantes

    1. Elementos de Filosofia, de Vieira de Almeida e Augusto Reis Machado ....... 505

    1.1. O ensino da Filosofia: o significado de elementar e de propedutica ... 508

    1. 2. Os problemas filosficos .............................................................................. 509

    2. Filosofia de Antonino de Sousa........................................................................ 519

    3. O Pequeno Manual de Filosofia de Vasco de Magalhes-Vilhena .................. 522

    5 Seco A FILOSOFIA COMO SABER ESCOLAR

    Introduo ........................................................................................................... 527

    Captulo 1 - Saber escolar

    1. Saber e compendiao ...................................................................................... 531

    2. A compendiao do saber filosfico ............................................................... 538

    Captulo 2 O livro escolar

    1. A questo do livro nico na Reforma de 1895 e na Lei de Bases de 1936 ...... 545

    2. Do professor-investigador ao professor-funcionrio ........................................ 548

    3. O livro nico para a disciplina de Filosofia no Estado Novo ........................... 553

    4. O poder: formas de exerccio............................................................................ 559

    4.1. O dito e o no dito: evidncias, omisses e ambiguidades ........................... 561

    Captulo 3 Percursos margem

    1. A proposta de Antnio Srgio para o ensino da Filosofia em 1934 ................. 567

    2. Sinais de renovao: a primeira publicao da Breve Antologia Filosfica

    de Joel Serro e Jorge de Macedo (1948) ............................................................ 570

    3. Textos de Filosofia de Maria Lusa Guerra ...................................................... 579

  • Concluso ............................................................................................................ 585

    Fontes e Bibliografia .......................................................................................... 601

    Anexos ................................................................................................................. 635

    Anexo 1 ................................................................................................................ 637

    Anexo 2 ................................................................................................................ 651

    ndice das matrias ............................................................................................ 699

    ndice onomstico .............................................................................................. 700

  • 1

    Introduo

    1. Problemas, orientao e objecto de investigao

    Para a Filosofia, surgida nos alvores do sculo VII a.C., o pensamento

    racional e crtico uma exigncia, e o seu lugar no campo do saber humano no

    depende das condies de circunstncia que ditam o seu reconhecimento social,

    cultural ou institucional. Enquanto pensamento humano, do tempo e no tempo,

    tem passado por momentos de crise interna e de afirmao renovada sem que

    nenhum anncio de morte se tenha alguma vez concretizado. Como logos, recolha

    de sentido, discurso e explicao racional, a Filosofia tem o seu destino unido ao

    da Cincia e ao da Cultura na qual teve origem, para a definio de cuja matriz

    contribuiu e com a qual continua a cooperar.

    Nascida na polis, desde o incio ligada directamente formao e educao

    dos jovens, a Filosofia nunca perdeu a dimenso dialctica e dialgica do seu

    mtodo e do seu saber, nem a sua implicao existencial e prtica.

    Na relao que Scrates estabelecia com os jovens e na atraco que sobre

    eles exercia a sua actividade interrogativa, encontramos o sinal de uma vocao

    pedaggica, ainda que paradoxal. que, no s Scrates no ensina, como no

    certo que o verdadeiro objecto de ensino, a virtude, possa ser ensinvel.

    Na distino kantiana entre filosofar e Filosofia, continuamos a encontrar

    uma direco para o seu ensino, a sada da menoridade, a orientao do

    pensamento no sentido da liberdade e da racionalidade, seja qual for o modo de

    operacionalizar estes conceitos.

    De que Filosofia falamos quando nos referimos Filosofia ensinada nas

    escolas? O Liceu, nome prestigiado que se referencia ao ensino filosfico

    aristotlico, foi o local onde se constituiu a Filosofia como objecto de estudo no

    ensino mdio, qual se foi associando uma determinada representao escolar e

    social do saber filosfico veiculada pelo sistema de ensino, pelos mtodos, pelo

    currculo, pelos programas, pelos professores. Currculo e programas so, por sua

  • 2

    vez, aspectos de opes curriculares, filosficas e pedaggicas directamente

    ligadas poltica educativa e aos valores associados ao sistema de ensino e

    escola.

    Qualquer objecto de ensino se constitui na rede saber-programa-escola-

    -poltica educativa e por ela se avalia. Nesta perspectiva, no h contedos

    abstractos que atravessem o tempo, o lugar e o modo. As matrias ensinveis

    constantes nos programas oficiais de ensino podem ser interpretadas sob o ponto

    de vista de opes filosficas, embora pedaggica e didacticamente orientadas.

    A situao escolar da disciplina de Filosofia (carga lectiva, programa,

    manuais) permevel s vicissitudes do campo poltico (de que a poltica

    escolar e educativa uma parte) e s caractersticas do espao cultural que, alis, o

    pensamento filosfico tambm partilha. Razes internas ou razes externas

    Filosofia justificaro vicissitudes do seu estatuto curricular, a existncia de

    determinados programas e objectivos educativos ou a dominncia de certos

    manuais. Deste modo, a nossa investigao sobre a disciplina de Filosofia no se

    pode circunscrever ao espao limitado da escola. Procurmos perceber como que

    a situao do ensino da disciplina pode ser compreendida tambm na relao com

    outros acontecimentos da histria poltica e cultural, segundo um modelo holstico

    e de complexidade, em mtuas implicaes.

    O facto de a Filosofia se constituir como matria de ensino manifesta uma

    possibilidade que ela tem inscrita. Importa analisar como essa possibilidade, a de

    se constituir como objecto de ensino, se tornou efectiva e, por outro lado, explicar

    como, num processo de contingncias e lutas de poder, se tem jogado o seu

    destino na Escola. Nesta medida, o nosso ponto de vista est j situado numa

    histria, que a da disciplina escolar de Filosofia. A questo terica e filosfica

    da ensinabilidade da Filosofia, que se liga precisamente da mediao, no se

    constituiu aqui para ns como problema. O nosso ponto de partida a existncia

    histrica e factual de uma disciplina escolar, de um saber escolar e ensinvel

    organizado didacticamente segundo um programa, no mbito de um currculo de

    estudos e de uma poltica educativa. Abordamos a Filosofia tal como se foi

  • 3

    constituindo como disciplina no espao escolar no superior, nos Liceus, criados

    em Portugal, em 1836, por Passos Manuel, atravs de programas de ensino,

    integrao em objectivos educativos, ensinada atravs de livros escolares

    elaborados ou adoptados para o efeito e por meio de determinadas prticas

    pedaggicas. Se a produo filosfica pode, de algum modo, ser um trabalho

    solitrio e pr entre parnteses as questes que ao autor no interessarem, a

    transmisso do saber filosfico, no quadro de um sistema de ensino formal, exige

    que se relacione necessariamente com esta dimenso poltica, educativa e

    institucional.

    Assim, devemos considerar a diferena entre o saber filosfico,

    considerado sob o ponto de vista da sua produo e o saber filosfico considerado

    sob o ponto de vista da sua transmisso, a nvel de iniciao, como ser o caso do

    Ensino Secundrio. Consequentemente, lidamos com diferentes tipos de questes

    de que releva, no campo do saber filosfico em situao de ensino, a questo da

    prtica lectiva concebida a partir das condies de recepo do discurso oficial.

    De facto, desse modo que se opera e avalia a sua eficcia, a esse nvel que se

    vai sedimentando uma representao escolar e social da disciplina, a que se

    apresenta na escola como legtima representante da Filosofia, a que fala em seu

    nome. Assim, procuramos acompanhar o processo de constituio desta Filosofia

    escolar partindo da anlise dos documentos que a configuram escolarmente a

    diferentes nveis (legislao geral de ensino, prembulos aos programas,

    programas, manuais) e que se concretiza atravs de uma prtica lectiva

    tendencialmente uniforme.

    O nosso projecto inicial propunha-se abarcar todo o sculo XX portugus, o

    que depressa se revelou demasiado ambicioso. A constatao da fraca produo de

    investigao sobre o ensino da Filosofia, especialmente no que se refere primeira

    metade do sculo XX e, muito particularmente, no que se refere ao perodo to

    rico e fecundo, do ponto de vista pedaggico, da I Repblica, a par do

    reconhecimento das radicais mudanas na poltica educativa ocorridas a partir de

    Abril de 1974, levaram-nos a concluir que esse seria uma tarefa desmesurada, sem

  • 4

    possibilidades de ser levada a bom termo no contexto em que se insere este nosso

    trabalho.

    Assim, a presente investigao encontra-se balizada pela primeira Reforma

    do Ensino Secundrio do sculo XX, em 1905, e pela Reforma do Ensino Liceal

    de 1947/48, a ltima grande Reforma do Ensino Liceal do Estado Novo, que

    permanecer em vigor, nas suas linhas fundamentais, at queda do regime em

    1974. O nosso trabalho debrua-se sobre o ensino da Filosofia no espao dos

    Liceus, nos primeiros cinquenta anos do sculo XX, atravessando os perodos

    histricos da Monarquia Constitucional, I Repblica, Ditadura Nacional e Estado

    Novo. Contudo, o tipo de abordagem e o nvel de aprofundamento que fazemos

    relativamente a cada poca varia consoante os objectivos parcelares da nossa

    anlise. As datas que apontamos devem ser entendidas como pontos de referncia

    histricos que podero ser ultrapassados sempre que necessidades de explorao,

    explicao ou compreenso do nosso objecto de estudo o exijam.

    Temos conscincia de que nos movimentamos numa floresta densa.

    Procuramos clareiras. Mais do que respostas, procuramos elucidar conceitos,

    clarificar questes, apresentar perspectivas, mostrar. Trabalhamos alicerados em

    documentos que vamos apresentando e interpretando. Ou, simplesmente, pondo-os

    em dilogo, num registo de discurso mais fragmentado, confiantes no seu poder de

    falar, nas possibilidades de leitura que geram.

    Cinco tipos de interrogaes fundamentais orientaro este percurso:

    1) Qual a relao entre a disciplina de Filosofia e as finalidades do

    sistema educativo e de ensino? Como deve ser entendido o papel

    formativo da Filosofia no Ensino?

    2) Qual o significado de um programa de ensino? Qual a relao

    entre programas e manuais escolares? Como se explica, e que

    consequncias tem para o ensino da disciplina, a imposio legal

    de um livro nico, como aconteceu durante o perodo do Estado

    Novo?

  • 5

    3) Como explicar as vicissitudes do estatuto curricular da disciplina

    de Filosofia no Liceu, at se tornar dominante na Reforma Liceal

    de 1947/48?

    4) Como interferem a poltica educativa (atravs da legislao de

    ensino) e a poltica geral no saber filosfico ensinvel? Quais as

    condies de enunciao do discurso filosfico no Ensino? Como

    que, no ensino escolar da Filosofia, os elementos de mediao

    (programas, manuais, professores) intervm na constituio do

    prprio objecto de ensino?

    5) De que modo a situao escolar da disciplina se relaciona com a

    dinmica da vida poltica e com as mltiplas e disseminadas

    formas de estratgia e de exerccio do poder?

    6) Que significado tem, finalmente, ensinar Filosofia nos liceus?

    2. Fontes de investigao e plano de trabalho

    Poucos so os estudos sobre o ensino da Filosofia na primeira metade do

    sculo XX em Portugal ou que versem directamente sobre questes do ensino da

    Filosofia. Os que considermos mais relevantes e tm maior expresso no corpo

    do nosso trabalho so:

    O Ensino da Filosofia em Portugal, de Eduardo Fey, publicado em

    19781. Este pequeno livro resulta da reunio de um conjunto de artigos

    inicialmente publicados na revista Brotria. uma obra panormica fundamental,

    embora seja um estudo pouco aprofundado, particularmente no que concerne ao

    sculo XX.

    Da Filosofia no Liceu, de Jos Trindade Santos, publicado em 1974,

    abarca o sculo XX e, especialmente, os finais do Estado Novo2. Resultou de uma

    1 Eduardo Fey, Ensino da Filosofia em Portugal, Braga, 1978. 2 Jos Trindade Santos, Da Filosofia no Liceu, Lisboa, Seara Nova, 1974.

  • 6

    investigao do autor feita em 1972. Inclui entrevistas, orientadas segundo um

    conjunto de questes precisas sobre programas, manuais, prtica lectiva, dirigida

    selectivamente e de modo preferencial a professores de Filosofia do ensino liceal

    pblico oficial ou do ensino liceal particular privado. Escolheram-se nomes de

    figuras to diversas como SantAnna Dionsio, discpulo de Leonardo Coimbra,

    filsofo com importante obra publicada; Manuel S. Loureno, filsofo destacado

    no campo da Lgica, com participao regular na Revista O Tempo e o Modo

    (1963-1977); ou Jos da Silva, co-autor de um dos manuais mais em uso data.

    Para alm deste material, esta obra contm, em apndice e anexos, documentos

    como o registo das edies dos principais manuais escolares do sculo XX e a

    transcrio dos programas da disciplina, de 1905 a 1972.

    Razo e Transmisso na Filosofia, de Manuel Maria Carrilho, publicado

    em 19873. O autor parte da problemtica da transmissibilidade filosfica4 e,

    embora verse fundamentalmente sobre o sculo XIX e se centre numa anlise do

    eclectismo, contm uma perspectiva de abordagem rica e fecunda para a

    explicao dos processos de escolarizao do saber.

    A nossa investigao, enquanto dirigida Filosofia integrada num

    currculo, disciplina de Filosofia, pode considerar-se numa linha de fronteira

    com outros campos epistemolgicos, como o da Histria da Educao, da

    Pedagogia, da Sociologia da Educao ou das Cincias de Educao. Alguns dos

    conceitos que utilizamos e que temos como orientadores foram forjados por estes

    saberes. Assim, por exemplo, tendo por referncia a Teoria Curricular,

    entendemos por currculo, no apenas o plano de estudos ou os contedos da

    disciplina, o seu programa, segundo a perspectiva mais tradicional da teoria

    tcnica do currculo, mas uma actividade prtica. Ao longo do nosso trabalho

    usaremos currculo ora num ora noutro sentido, que o contexto de utilizao

    permite facilmente compreender. O currculo entendido sob a forma de actividade 3 Manuel Maria Carrilho, Razo e Transmisso na Filosofia, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1987. 4 Cf. Ibidem, p. 23.

  • 7

    prtica supe a considerao de elementos de mediao, como materiais

    didcticos, professores e alunos. Adoptamos a concepo de currculo como texto:

    O currculo um texto produzido para resolver o problema da representao

    com estes quatro sentidos: dos materiais escritos (manuais, livros de texto) para os

    alunos; das intenes e orientaes programticas para os professores; da interaco

    didctica que existe ao nvel da sala de aula e que um texto verbal e no escrito; da

    interaco escolar da qual resultam textos no verbais e no escritos5.

    O estudo sobre a disciplina de Filosofia no currculo no se circunscreve

    anlise de planos de estudo e de programas mas alarga-se a todos os elementos

    que intervm nas prticas escolares e que se constituem como condio para a

    compreenso de determinado tipo de interaco didctica e escolar e, no nosso

    caso, de uma determinada representao escolar da Filosofia. Paralelamente,

    trabalhamos a partir da distino entre currculo formal, currculo apresentado e

    currculo realizado6. A anlise dos diferentes programas da disciplina de Filosofia

    e dos seus pressupostos filosficos, a anlise articulada da estrutura e finalidades

    do Ensino Secundrio, do estatuto curricular da disciplina e respectivas

    finalidades, tendo como suporte os documentos oficiais, constitui um dos

    momentos fundamentais para descrever e interpretar o currculo formal. Mas o

    prprio conceito de programa escolar remete para uma realidade educativa,

    didctica e pedaggica, que nos coloca de imediato no campo da prtica docente.

    assim que a anlise dos manuais escolares em uso se torna um dado

    fundamental para acompanhar as condies de enunciao do discurso filosfico a

    nvel escolar e os modos de realizao de um programa atravs da mediao dos

    5 Jos Augusto Pacheco, Currculo: Teoria e Praxis, Porto, Porto Editora, 1996, p. 38, sublinhado nosso. 6 A distino entre currculo formal, currculo apresentado e currculo realizado adoptada por ns a partir da apresentao das fases do currculo feita por Jos Augusto Pacheco referenciando-se a diversos autores. Assim, o currculo formal (Perrenoud) o currculo sancionado pela administrao central e que adoptado por uma estrutura organizacional escolar. O currculo apresentado (Gimeno) o currculo apresentado aos professores atravs dos mediadores curriculares, principalmente dos mediadores curriculares, principalmente dos manuais e dos livros de texto. O currculo realizado (Gimeno) traduz o currculo vivenciado pelos alunos como o currculo vivenciado pelos professores e demais intervenientes. Quando se investiga ou reflecte sobre o currculo esta fase pode corresponder ao currculo observado a partir das opinies dos seus participantes. Jos Augusto Pacheco, ob. cit. p. 69-70.

  • 8

    compndios. Situamo-nos ao nvel do que designamos como currculo

    apresentado. Os intervenientes no acto educativo no contexto da Escola e do

    Ensino, os professores e os alunos, ajudar-nos-o a determinar, dentro dos limites

    do nosso estudo, o currculo realizado. O estudo analtico sobre o currculo

    realizado exigiria materiais de professores, (sumrios, actas de conselho de grupo,

    planos de aula) e cadernos de alunos que esto fora do mbito da nossa recolha

    documental. Os objectivos da presente investigao esto centrados nos dois

    primeiros aspectos referidos tendo por base dois tipos fundamentais de materiais:

    documentao oficial e manuais escolares. Por documentao oficial entendemos

    circulares, normas, regulamentos, correspondncia, pareceres sobre os manuais

    escolares que nos permitem uma compreenso mais aprofundada de certas

    decises e determinaes oficiais, especialmente as que se referem escolha dos

    manuais escolares, o modo como foram levadas prtica e at eventuais tenses e

    dificuldades nesse processo. O Arquivo Histrico do Ministrio da Educao7,

    Fundo da Direco-Geral do Ensino Liceal, foi a nossa fonte. Relativamente aos

    professores, no sentido de poder aceder ao modo como estes recebem as

    determinaes e orientaes oficiais e como lhes respondem na prtica

    profissional, pudemos recolher alguns dados. Assim, os Relatrios de Professores

    constantes igualmente no Arquivo Histrico do Ministrio da Educao, entre os

    anos de 1935 e 1968, forneceram material de alguma relevncia. Estes

    documentos, contendo elementos de tipo vivencial e experiencial, permitem

    detectar certas atitudes e tomadas de posio que nos ajudam a construir uma

    imagem consistente da realidade complexa do ensino da Filosofia nos liceus. No

    esquecemos, no entanto, o seu alcance limitado, tendo em conta tanto o nmero

    relativamente escasso de documentos (pouco mais de uma centena), como o

    contexto da sua elaborao (material para avaliao).

    Legislao de ensino, documentos oficiais, programas de ensino e manuais

    escolares constituem quatro importantes fontes de investigao que sero objecto

    de anlise, ocupando grande parte do nosso trabalho. A intencionalidade educativa 7 Doravante referenciado: A. H. M. E.

  • 9

    das reformas de ensino e a sua relao com os objectivos de ensino da disciplina

    de Filosofia, o seu lugar em diferentes planos de estudo a sua situao

    curricular do-nos o perfil escolar da disciplina e o seu estatuto curricular. Esta

    anlise prvia dos programas e manuais que permite aceder ao currculo

    apresentado e compreenso das relaes no lineares entre o saber filosfico e o

    ensino escolar, entre as orientaes normativas dos programas e a sua

    concretizao atravs dos livros de ensino. A interaco didctica e a interaco

    escolar, a fase do currculo realizado, so os elementos de mais difcil anlise e

    avaliao. No foi nossa inteno fazer o seu estudo analtico, como referimos. No

    entanto, constituem-se como o alvo intencional do trabalho reflexivo.

    O presente trabalho composto por cinco seces, cada uma delas

    iniciando-se com um captulo introdutrio, e por dois anexos.

    A 1 Seco inicia-se com a primeira grande Reforma do Estado Novo, em

    1936, que nos situa no centro do traado da poltica escolar e educativa do Estado

    Novo. A partir da, procuramos linhas de continuidade ou de ruptura com o

    perodo da I Repblica, dando conta de diferentes projectos polticos e do modo

    como comprometem com ele a Educao, a Escola e o Saber.

    Na 2 Seco temos como objectivo fundamental determinar o estatuto

    curricular da disciplina de Filosofia e como se foi sedimentando o seu perfil

    escolar. Isto exigiu um percurso mais alargado no tempo para obter meios de

    perspectivao e de avaliao consistentes. Deste modo, a 2 Seco remonta

    fundao da disciplina de Filosofia, no currculo dos Estudos Menores, na

    Reforma de 1779, do Marqus de Pombal.

    Na 3 Seco analisamos os programas da disciplina, procurando

    determinar os seus pressupostos filosficos e olhar para as sucessivas alteraes,

    quer numa perspectiva diacrnica, comparando programas (portugueses ou no),

    quer numa perspectiva sincrnica, de relacionamento com o panorama do

    pensamento filosfico, portugus ou europeu, ou com a orientao da poltica

    educativa.

  • 10

    Na 4 Seco, analisamos alguns manuais escolares, procurando dar conta

    da importncia que lhes atribuda do ponto de vista oficial, de contradies nos

    procedimentos entre a sua anlise e a sua adopo, do modo como se relacionam

    com os programas e de como se instituem em principais organizadores da prtica

    lectiva.

    Na 5 Seco, questionamos o processo de constituio do saber escolar, do

    perfil e da representao escolar da disciplina, levado a cabo particularmente

    atravs dos programas e manuais oficiais do Estado Novo. Procurmos outras

    propostas, de programas ou livros escolares que, apontando um horizonte de temas

    e apresentando uma orientao terica ou metodolgica divergente da oficial

    dominante, nos permitissem pensar resistncias a este percurso ou mostrar

    possibilidades que a histria no realizou.

    Finalmente, os anexos. O Anexo 1 consiste num esquema das principais

    reformas e alteraes legislativas do Ensino Secundrio, entre 1836 e 1948, em

    articulao com a situao curricular da disciplina de Filosofia e respectivos

    programas. O Anexo 2 consiste na transcrio dos programas da disciplina de

    Filosofia, de 1886 a 1972.

  • 1 SECO

    A ESCOLA, O SABER E A EDUCAO NA I REPBLICA E NO

    ESTADO NOVO

    Desconhecer o valor da teoria, a sua influncia como principal directriz de todo o ensino, mesmo do tcnico, desconhecer o mais fundamental da educao e da instruo. desconhecer o valor da cincia.

    Vieira de Almeida

  • 13

    Introduo

    Esta seco pretende ser, fundamentalmente, uma elucidao de alguns

    pressupostos tericos e filosficos. Tambm esclareceremos os conceitos que

    utilizamos no nosso trabalho e que esto presentes no discurso educativo durante o

    perodo coberto por este (1905-1948). Nele apresentaremos aspectos importantes

    da nossa linha interpretativa, linha hermenutica essa que suporta o trabalho mais

    analtico das seces subsequentes.

    Por discurso educativo entendemos qualquer discurso sobre educao,

    mas, principalmente, o discurso oficial. Adoptamos a definio de Olivier Reboul,

    que manteremos, alis, ao longo de todo o nosso trabalho, de discurso oficial

    como sendo o dos homens que tm o poder de definir a pedagogia ou de a

    modificar na sua organizao, nos seus contedos, nos seus mtodos. Discursos de

    ministros e dos seus representantes. Discurso dos organismos internacionais, cujo

    poder funo dos crditos que podem dispensar. Discurso enfim de certos

    manuais ou dicionrios consagrados8.

    Toda a educao, formal ou no, intencional ou espontnea, confronta o ser

    humano em processo de crescimento, desenvolvimento e formao, com um

    conjunto de valores de aco, explicitado ou no, mais ou menos verbalizado, que

    pode vir a constituir-se numa escala hierarquizada pessoal de modo consciente,

    reflexivo e autnomo. De uma forma ou de outra, o ser humano sempre educado.

    Esta educao ser sempre educao moral se entendermos, num sentido lato, que

    ser moral respeita constituio do humano na rede de relaes pela qual se vai

    construindo como indivduo, como pessoa e como ser social. A dimenso moral

    de qualquer acto educativo consequncia do facto de o ser humano ser

    necessariamente um ser educvel, pelo seu nascimento prematuro e pelo

    8 Jappelle discours officiel celui des hommes qui ont le pouvoir de definir la pdagogie ou de la modifier dans son organisation, ses contenus, ses mthodes. Discours des ministres et de leurs reprsentants. Discours des organismes internationaux, dont le pouvoir est fonction des crdits quils peuvent dispenser. Discours enfin de certains manuels ou dictionnaires consacrs. Olivier Reboul, Le langage de lducation, Paris, P.U.F., 1984, p. 43.

  • 14

    prolongamento e plasticidade do seu tempo de infncia. Neste sentido, ter de

    educar e ter de ser educado no constitui uma opo, mas uma condio.

    A educao, enquanto processo informal de desenvolvimento humano no

    seio da famlia e da sociedade, e a educao, enquanto processo formal de

    desenvolvimento do ser humano no seio de instituies desenhadas para o efeito,

    devem ser consideradas como distintas. Destes dois processos, s este ltimo

    processo nos interessa, e normalmente dele que falamos quando, no nosso

    trabalho, nos referimos a educao. Sendo assim, as instituies educativas so

    o lugar onde decorrem o ensino e as prticas educativas reconhecidas pela

    sociedade como teis e boas para orientar o desenvolvimento das crianas e dos

    jovens. A determinao do que til e bom varia consoante as sociedades e a

    reflexo que fazem sobre os seus sistemas de ensino. Mas no h arbitrariedade

    nessa escolha. Para ela concorrem elementos da tradio escolar, o corpo de

    conhecimentos disponveis acerca da natureza humana e do processo educativo,

    bem como os projectos polticos que, a cada momento, corporizam a vontade

    colectiva de uma determinada sociedade. Neste sentido, a instituio escolar

    uma instituio poltica.

    Enquanto projecto consciente visando a formao do ser humano, toda a

    educao educao para o futuro, o que significa, antes de mais, que preciso

    saber o que fazer com o passado de que se dispe, e com o presente que se vive.

    No entanto, a tendncia desenhar linearmente a figura do futuro, do futuro

    homem, da futura sociedade e, em funo dessa imagem, definir as linhas

    educativas. Esta tendncia constitui um risco tanto maior quanto se julgue

    conhecer esse modelo imaginado. Este futuro pode ser concebido apenas como

    horizonte ou como realidade qual falta apenas o tempo, linear e abstractamente

    concebido como o do crescimento e maturao de um organismo que a educao

    formar. Educar educar para, mas nenhum projecto educativo se constitui sem

    referncias do passado. Todo o projecto educativo se situa na confluncia e na

    tenso entre o passado, que se constitui como um conjunto de referncias

    conceptuais, valorativas e vivenciais partilhadas pela comunidade dos adultos, o

  • 15

    presente vivido e o futuro desejado ou imaginado. Num certo sentido, na aco

    educativa confluem ideologia e utopia9.

    A poltica educativa, atravs da legislao e de um conjunto de documentos

    normativos e reguladores, determina os princpios, as finalidades e objectivos da

    educao, assim como a estrutura e organizao do sistema de ensino, que do

    corpo s vivncias e aos projectos educativos de uma determinada sociedade. Os

    projectos educativos e as alteraes ao nvel da educao e do sistema de ensino

    dependem de decises do poder poltico no mbito de uma relao no linear entre

    o pensamento filosfico e pedaggico, as decises de poltica educativa e as

    prticas escolares que so levadas a cabo por agentes educativos, que se

    mobilizam em funo tanto das determinaes legais, como da prpria tradio

    escolar sedimentada e do seu prprio poder de iniciativa e deciso. Em qualquer

    circunstncia, as decises de poltica educativa incorporam, de modo mais ou

    menos consciente, por simples tradio, por tradio assumida ou por mudana

    reflectida, concepes filosficas, pedaggicas e de organizao curricular que

    fundamentam a aco educativa e de ensino, e tambm interesses polticos, sociais

    e econmicos que justificam a existncia da Escola como instituio de ensino

    pblico.

    Qualquer sistema institucional de ensino, na medida em que se insere num

    sistema educativo, obedece a finalidades ltimas de formao moral. O que no

    significa considerar que as finalidades de formao moral sejam exclusivas ou

    primeiras e que essa educao moral signifique inculcao doutrinria. Na

    arquitectura do sistema educativo, as finalidades ltimas so os referenciais

    valorativos a partir dos quais os diferentes saberes ensinveis se justificam,

    podendo estar mais ou menos explcitos, mais ou menos destacados, no corpo dos

    documentos legislativos. 9 Afirma Ricoeur, a dado passo da sua anlise dos complexos e ambguos conceitos de ideologia e de utopia: Em certo sentido, toda a ideologia repete o que existe justificando-o, fornecendo-lhe portanto uma imagem uma imagem distorcida do que existe. A utopia, por outro lado, possui o poder ficcional de redescrever a vida (Paul Ricoeur, Ideologia e Utopia, Lisboa, Edies 70, 1991, p. 501). A aco social simbolicamente mediatizada pela ideologia que tende conservao e integrao e pela utopia que tende projeco, desintegrao e recriao. A ideologia liga o presente ao passado dando-lhe consistncia e a utopia puxa-o para um futuro, desintegrando-o mas tambm recriando-o.

  • 16

    Assim, o termo ensino pode referir-se:

    1) Ao sistema de ensino propriamente dito, que inclui as formas

    organizativas e o conjunto das instituies de ensino, o sistema de distribuio dos

    conhecimentos em disciplinas escolares, os planos de estudos e os currculos, as

    regras e critrios de distribuio dos alunos por anos e graus, que define as

    competncias dos professores e agentes educativos, o sistema avaliativo e de

    progresso, e que certifica os graus acadmicos.

    2) A um determinado processo de transmisso de conhecimentos, que

    inclui regras metodolgicas e didcticas. Neste caso, falamos do ensino de, e

    supomos, em primeiro lugar, a existncia de uma matria a ensinar, o objecto de

    ensino. S depois, a de um conjunto de elementos mediadores, os recursos de

    ensino, e dos implicados directamente no processo: o professor e o aluno. O tipo

    de interveno do professor e do aluno varia consoante o tipo de matria e os

    processos de aprendizagem envolvidos. A actividade de ensino pode ser concebida

    segundo um esquema triangular, cujo vrtice o saber, ou o conhecimento. Este

    permanece numa esfera extrnseca ao ensino, apenas como seu objecto. No

    entanto, a relao entre professor e aluno, numa situao escolar de ensino e

    aprendizagem, sustentada, sob formas diferentes, pela comum ligao a essa

    esfera. Para o professor, o saber convertido em objecto de ensino, de um tipo

    particular de ensino, em matria que exige uma forma, ou formas, de tratamento

    didctico adequada. Para o aluno, o saber a matria que exige trabalho de

    assimilao e treino de competncias. Em qualquer dos casos, a referncia o

    saber objectivamente considerado, ainda que sob a forma de corpo de resultados,

    aqueles sobre os quais a passagem do tempo j permitiu a transio para a

    condio de saber escolar.

    O termo formao refere-se ao conjunto de prticas, associadas

    directamente ao acto de ensinar ou no, que decorrem no espao escolar e que

    visam, em primeiro lugar, estruturar o aluno enquanto sujeito. Essa estruturao

    ocorre a nveis como o intelectual, afectivo, social, moral ou profissional. O termo

  • 17

    formao tender comummente a ser identificado com formao moral e, por

    sua vez, a confundir-se com educao.

    A Escola, desde o grau de ensino mais elementar ao mais complexo, lugar

    de entrecruzamento entre os discursos cientfico, pedaggico e educativo. Durante

    o perodo a que se refere o nosso trabalho, as finalidades morais constituram-se

    explicitamente como um dos principais vectores do discurso sobre a Escola, tanto

    do discurso legislativo publicado, como de qualquer discurso sobre a educao e o

    ensino. Que as diferentes disciplinas escolares e as actividades que decorrem no

    espao escolar contribuam para a formao do aluno e, especificamente, para a

    sua formao moral, parece ser um elemento interiorizado pela comunidade

    educativa, pelos tericos da educao, pelos polticos. Mas ser o contedo

    semntico do termos formao e educao moral, e o modo como se

    concretizam na escola, concebida quer como espao de ensino e de aprendizagem,

    quer como espao educativo e territrio poltico e ideolgico, que permite avaliar

    o significado e as consequncias:

    1) de determinadas opes curriculares ou extra-curriculares,

    2) de determinados contedos programticos no mbito das disciplinas

    escolares,

    3) do alcance tico e poltico de certos programas ou contedos de ensino.

    A educao realizada no mbito da escola reveste-se de uma

    intencionalidade visvel nos documentos legislativos que regulamentam a vida da

    escola e as prticas lectivas. Esta intencionalidade pode ser destacada

    principalmente nos prembulos s determinaes positivas dos artigos da lei. O

    discurso preambular inclui, com frequncia, as justificaes filosficas,

    pedaggicas, polticas, das medidas legislativas, enquadrando num projecto os

    articulados legais normativos. O carcter performativo dos textos oficiais faz com

    que possam criar uma realidade determinando a sua existncia legal (o reitor, a

    inspeco, os exames), assim como instituir uma determinada prtica

    lingustica, conduzindo sedimentao de uma certa viso do acto de ensinar ou

    das prticas educativas (a educao dirige-se aos portugueses, como dir o texto

  • 18

    da Reforma do Ensino Liceal de 1936). Isto significa que qualquer texto oficial

    ter de ser lido no apenas quanto ao seu contedo proposicional, quanto ao que

    diz, como quanto aos efeitos associados ao facto de o dizer. Ao carcter

    performativo associa-se o perlocutrio: os textos oficiais incluem, com frequncia,

    antes do articulado legal, em texto preambular, uma linguagem valorativa e uma

    retrica destinadas a produzir um determinado efeito no pblico a que se

    destinam.

    Para alm disso, consideramos que o discurso enunciado, pelo facto de

    dizer o que diz, representa sempre uma opo por um conjunto de significantes,

    deixando de lado outras possibilidades. No caso de um discurso organizado num

    texto de carcter legislativo e de poltica educativa, compreender o que diz, como

    o diz, implica elucidar a razo dessa escolha, explicando como, no campo de

    mltiplas possibilidades, s essa foi eleita.

    A relao entre as determinaes oficiais e aqueles que as devem executar

    uma relao de poder. E, se entendermos o poder como relao e estratgia de

    disseminao, estabelecendo-se em rede e sem centro, isso significa que, ao poder

    de tomar decises com fora de lei, no corresponde necessariamente o poder de

    conseguir que sejam executadas. Estamos a referir-nos ao facto de as decises de

    poltica educativa que a lei publicada enuncia poderem no ter resultados, ao

    mesmo nvel, no campo das prticas educativas. Mas ser pela anlise da

    conformidade ou desfasamento entre os textos legislativos e a prtica efectiva que

    poderemos compreender que, entre as decises polticas e as prticas, se interpe

    outro tipo de poderes ou resistncias. A anlise da legislao, e do discurso oficial

    referente educao e ao ensino, no deixa de constituir um elemento importante

    para compreender a consistncia e a coerncia de um determinado sistema

    institucional de ensino, no seu entrecruzamento com os discursos que o sustentam

    como o poltico, o filosfico ou o pedaggico e que, no discurso oficial, tm

    expresso mais ou menos explcita. Tomando os discursos polticos e os textos

    oficiais como o plano dos princpios, da Teoria e do Direito, consideramos, nesse

    sentido, que os captulos desta seco se situam, fundamentalmente, no mbito de

  • 19

    uma anlise terica e abstracta, pretendendo isolar os conceitos fundamentais que

    estruturam o discurso educativo nas trs primeiras dcadas do sculo XX e

    clarificar a concepo de escola e de saber com a qual se articulam. Procuraremos

    mostrar como podem ser articulados e operantes no plano da linguagem educativa,

    assentando em diferentes pressupostos tericos e polticos relativos ao saber, ao

    ensino, educao e escola. So estes que lhes determinam o sentido e os efeitos

    a nvel das prticas escolares, de ensino e de educao.

  • 21

    Captulo 1 O primado da educao no Estado Novo

    1. Da instruo educao a desvalorizao do espao escolar

    enquanto lugar de transmisso do saber

    Iniciamos a nossa anlise com o perodo denominado Ditadura Nacional,

    de 1926 a 1933, e com os primeiros anos do Estado Novo, de 1933 a 193610.

    Os anos que antecedem a Constituio de 1933 marcam uma profunda

    ruptura em termos de prtica e de teoria de aco poltica, com consequncias a

    nvel de todas as instncias decisrias. A vontade de destruir equiparada de

    comear de novo. O discurso legislativo referente poltica educativa, no perodo

    da Ditadura Nacional, evidencia linhas de ruptura que marcam a oposio com a

    legislao da I Repblica. Principalmente com Cordeiro Ramos, esse discurso

    legislativo define um programa de interveno educativa que, nos seus desgnios

    fundamentais, se manteve durante todo o Estado Novo11. Prosseguiremos at

    10 A expresso Estado Novo ter sido usada pela primeira vez em 1931 por Mrio Pais de Sousa. (Cf. Antnio Quadros, Obra em prosa de Fernando Pessoa, Pginas de Pensamento Poltico 2, 1925-1935, Lisboa, Europa-Amrica, 1986, p. 61, em nota de rodap). Considera-se, historicamente, que a Constituio de 1933 marca o incio do Estado Novo. 11Cordeiro Ramos (1888-1974) foi Ministro da Instruo Pblica de 10/11/1928 a 08/07/1929; de 21/01/1930 a 05/07/32; de 05/07/32 a 11/04/33 e de 11/04/33 a 24/07/ 1933 (Cf. stio oficial do Ministrio da Educao, disponvel em http:\\www.sg.min-edu.pt/ministros, consulta a 12 de Maio de 2006, e Maria Manuela Carvalho, Poder e Ensino, os Manuais de Histria na Poltica do Estado Novo (1926-1940), Lisboa, Livros Horizonte, 2005, 46 e p. 72). Cordeiro Ramos, depois da concluso do Curso Superior de Letras, frequentou a Universidade de Leipzig e foi docente da Faculdade de Letras de Lisboa. Aps a passagem pelo Ministrio foi procurador Cmara Corporativa e voltou docncia na Faculdade de Letras de Lisboa. Presidiu desde 1959 ao Instituto de Alta Cultura. Das suas obras, destacamos Os Fundamentos ticos do Estado Novo, Coimbra, 1937, e Leibniz e a Investigao Lingustica, Coimbra, 1946. Cordeiro Ramos era um admirador, no apenas da cultura alem mas da poltica alem sua contempornea. No dizer de Medina, era um hitlerfilo que compara Salazar a Hitler e a Mussolini. o que se evidencia, nomeadamente, do seu prlogo a uma antologia dos principais discursos e outros textos de Salazar, editado em 1938, na Alemanha, com uma introduo do ministro alemo da Propaganda, Goebbels, publicao patrocinada pelo Ministrio alemo dos Negcios Estrangeiros, com vista formao do seu pessoal diplomtico interessado em conhecer o pensamento de homens de Estado estrangeiros. (Joo Medina, Salazar, Hitler e Franco, Lisboa, Livros Horizonte, 2000, p. 250-254). No entanto, a manifesta proximidade de Cordeiro Ramos com o nazismo, o seu prlogo laudatrio poltica alem e ao ditador portugus, a sua aco enquanto ministro da Educao, no nos permite tirar ilaes sobre o regime salazarista e o regime nazi no sentido de interpretaes simplistas quanto s relaes ideolgicas entre Salazarismo e Hitlerismo, perigo para o qual alerta Medina (Ibidem, p. 260). Acrescentemos que a legislao educativa produzida durante o ministrio de Cordeiro Ramos, como teremos oportunidade de mostrar, a mais estruturada de um ponto de vista conceptual, a mais expressiva e retrica, para alm do seu manifesto contedo mais marcadamente poltico e ideolgico.

  • 22

    1936, data da Remodelao do Ministrio da Instruo Pblica e da Reforma dos

    estudos liceais12, que representa o culminar de todo o processo anterior e o

    primeiro grande momento de estabilidade da poltica educativa13.

    O Ministrio da Instruo Pblica passa a denominar-se da Educao

    Nacional14. este o contedo da Base I da primeira Lei de Bases do ensino do

    Estado Novo. Estamos em 1936, est criado, atravs deste acto legislativo, o

    Ministrio da Educao Nacional, responsvel pela administrao escolar, por

    todos os assuntos relativos ao sistema de ensino, pela aplicao da poltica

    educativa do governo. A alterao do nome do Ministrio, em 1936, acabar por

    traduzir a prtica de interveno dos ministros da Ditadura em prol da Educao,

    ao mesmo tempo que a institui como programa futuro de aco. Esta nova

    designao no , por isso, neutra. Pelo contrrio, condensa a linha de aco

    educativa do Estado Novo em dois aspectos fundamentais:

    1) O predomnio da educao sobre a instruo;

    2) O desgnio da nacionalidade no mbito das polticas de ensino.

    Para compreendermos o significado e o alcance de uma opo poltico-

    -institucional pela educao, necessitamos de compreender o modo como foi

    sendo realizada a estabilizao semntica dos termos instruo e educao,

    nos documentos legislativos e no discurso pedaggico, e como foram

    estabelecidas as suas relaes. Tanto quanto a distino semntica entre os termos

    instruir e educar, interessa-nos determinar o modo como o termo educao, para

    alm de centrado nos aspectos morais, de formao do carcter e de formao

    cvica e poltica, se vai afastando da instruo. Este processo de divergncia cria

    condies para que o educativo tenda a justificar-se autonomamente no mbito

    12Lei n. 1 941 de 11 de Abril de 1936 e Decreto n. 27 084 de 14 de Outubro de 1936. 13 Por esta poca podemos dizer, com Campos Matos, que estava consolidada a poltica educativa e o aparelho escolar do estado autoritrio (Srgio Campos Matos, Histria, Mitologia, Imaginrio Nacional, a Histria no curso dos liceus (1895-1939), Lisboa, Livros Horizonte, 1990, p. 11). Como tambm considera Medina, o Estado Novo foi edificado meticulosa e seguramente nos anos 30 e praticamente concludo, nos conceitos norteadores essenciais e duradouros, bem como nas suas realizaes prticas, institucionais e polticas em 1936 []. Medina, ob. cit., p. 60. 14 Lei n. 1 941, de 16 de Abril de 1936, Base I. Embora, aps a Revoluo de 25 de Abril de 1974, nunca mais tenha aparecido o termo educao nacional, o termo educao, apesar de integrado numa grande diversidade de designaes, nunca mais desapareceu do Ministrio encarregue das questes do ensino.

  • 23

    do sistema de ensino e, no limite, tenda a submeter o saber (o instrutivo) a

    critrios de ndole educativa poltica e ideologicamente definidos. Trata-se de

    mostrar e compreender como se torna possvel, no mbito da educao

    institucional e do sistema de ensino, que o critrio poltico-ideolgico prepondere

    sobre o cientfico-pedaggico. Operamos aqui uma distino entre o plano

    simplesmente poltico e o plano poltico-ideolgico. Consideramos o

    conceito de poltico em duas acepes fundamentais:

    1) Sistema de poder organizado que decide sobre os principais aspectos da

    vida social de um pas ou de uma nao (economia, defesa, justia, educao).

    2) Esfera de vida comum partilhada pela pluralidade dos homens.

    A poltica como sistema organizado do poder est fundada no facto de os

    homens se agruparem em sociedade, de viverem em conjunto e de criarem um

    mundo comum pela sua aco15.

    O poltico-ideolgico refere-se:

    1) A um sistema de ideias, hbitos e crenas associados, de forma

    deliberada ou no, a uma estratgia de reforo e manuteno de uma determinada

    forma de poder. Esta estratgia concorre para a perpetuao de determinadas

    formas de dominao e de submisso numa dada estrutura poltico-social e tem

    como condio de funcionamento e de xito a ocultao, de diversos modos, das

    verdadeiras relaes de poder. A ideologia, neste contexto, funciona para alm

    de elemento de coeso e conservao sociais, como factor de legitimao e

    perpetuao de uma determinada ordem social e de um determinado sistema

    poltico. Neste sentido, qualquer sistema poltico ser ideolgico na medida em

    que todo o poder tende sua autopreservao, atravs de um sistema de ideias que

    o legitima e justifica.

    15 Seguimos o pensamento de Hannah Arendt ao afirmar: A aco, a nica actividade que se exerce directamente entre os homens sem a mediao das coisas ou da matria, corresponde condio humana da pluralidade, ao facto de que homens, e no o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condio humana tm alguma relao com a poltica; mas esta pluralidade especificamente a condio no apenas a conditio sine qua non mas a conditio per quam de toda a vida poltica (Hannah Arendt, A Condio Humana, Lisboa, Relgio dgua Editores, 2001, p. 20).

  • 24

    2) A um dispositivo do poder para se afirmar politicamente como nica

    fora operante no espao pblico, o que significa a anulao deste enquanto

    espao de debate, discusso e exerccio da cidadania. Neste sentido, o poltico-

    ideolgico significa a reduo do poltico ao exerccio da autoridade e a

    eliminao do espao pblico enquanto espao poltico comum. Em seu lugar,

    desenvolve-se um sistema de doutrinao, acompanhado por propaganda e

    encenao, que se dissemina pelas instituies, pela sociedade. A ideologia

    corresponde a um processo de construo simblica de imagens do sujeito e do

    real de forma a impedir o exerccio da crtica e da recriao do real pela utopia.

    uma estratgia activa e deliberada de atribuio de sentido experincia comum

    que se pretende nica e verdadeira.

    Ao longo do nosso trabalho usaremos os vrios sentidos que o contexto

    permite facilmente identificar. Se a educao, no mbito do sistema de ensino,

    sempre resultado de uma poltica global de que a poltica educativa parte, isso

    no implica que essa mesma educao seja orientada segundo critrios poltico-

    ideolgicos. A dimenso poltica do acto educativo no tem de se confundir com

    processos de doutrinao poltico-ideolgica. possvel conciliar poltica e

    educao, educao e ensino, poltica e liberdade.

    Durante dez anos, de 1926 a 1936, data da primeira grande reforma do

    ensino liceal do Estado Novo, medida que se vai estabilizando um sistema

    poltico autoritrio, consumando a revoluo anti-liberal, anti-democrtica,

    anti-plutocrtica e autoritria, nas palavras de Joo Ameal16, assistimos a um

    conjunto de medidas legislativas respeitantes ao Ensino Secundrio, orientadas

    negativamente pelo ataque ao enciclopedismo da Repblica, ao excesso 16 Joo Ameal, Construo do Novo Estado, Porto, Livraria Tavares Martins, 1938, p. 12-16. Joo Ameal (1902-1982), licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, foi um fervoroso adepto da Revoluo do 28 de Maio tendo-se destacado no domnio da Literatura, da Filosofia e da Histria. O seu livro, Declogo do Estado Novo, foi publicado em 1934, pelo Secretariado de Propaganda Nacional. Pensador neotomista, publica em 1938 o seu livro S. Toms de Aquino Iniciao ao estudo da sua Figura e da sua Obra, que ser prefaciado pelo importante filsofo francs neotomista Jacques Maritain. Dois anos aps, publica a sua Histria de Portugal, no ano exaltante das comemoraes, em 1940, do duplo centenrio, o da independncia e o da restaurao portuguesa (in Enciclopdia Verbo, vol. 2, coluna 403, Lisboa, Editorial Verbo, 1998). Foi jornalista e colaborador, entre outros, do Dirio de Notcias e director da Aco Realista e da Ilustrao Portugueza. Assumiu tambm responsabilidades polticas no regime salazarista, tendo sido deputado Assembleia Nacional e procurador Cmara Corporativa.

  • 25

    informativo e, positivamente, pela construo de um sistema de ensino com

    dominncia dos aspectos educativos.

    O perodo que se inicia com o golpe de Estado de 1926 e que vai at a

    promulgao da Constituio de 1933, denominado Ditadura Nacional, mais do

    que a distino entre instruo e educao, entre os aspectos informativos do

    ensino e os aspectos formativos, acentua uma dicotomia17. o estabelecimento

    dessa dicotomia que ir, por sua vez, permitir o estabelecimento de uma relao

    hierrquica entre formao e informao, em que a primeira domina a segunda,

    at o ponto limite da possibilidade de uma completa separao entre elas. Esta

    separao semntica cria a possibilidade de esses termos serem enunciados

    separadamente, e de se colocar a nfase, sistematicamente, na vertente educativa,

    pela escolha reiterada dos termos formao e educao.

    Em 1935, no Parecer da Cmara Corporativa sobre o Projecto de Lei n.

    1118, cujo relator o germanfilo e ex-ministro da Instruo Gustavo Cordeiro

    Ramos, encontramos uma clara distino entre instruo e educao e um

    esclarecimento acerca das suas relaes, no mbito do sistema pblico de ensino:

    17 O perodo que vai de 1926 a 1933 considerado como um perodo de transio. Stoer e Helena Arajo referem que o que se tornou imediatamente aparente foi acima de tudo a tentativa, por parte do Estado, para um maior controlo da educao em termos da sua contribuio ideolgica para a definio de um bem-estar nacional. Chamam a ateno, no entanto, para o facto de se ter tratado de um processo conflitual. S. Stoer, e Helena Arajo, A contribuio da educao para a formao do Estado Novo: continuidades e rupturas, 1926-1933 in O Estado Novo, das origens ao fim da autarcia (1926-1959), vol. II, Lisboa, Fragmentos, 1987, p. 133. 18 Trata-se do parecer de 21 de Fevereiro de 1935 sobre as alteraes ao seguinte Art. 43. da Constituio de 1933: 3 O ensino ministrado pelo Estado independente de qualquer culto religioso, no o devendo porm hostilizar, e visa, alm do revigoramento fsico e do aperfeioamento das faculdades intelectuais, formao do carcter, do valor profissional e de todas as virtudes cvicas e morais. A alterao que est a ser discutida respeita ao projecto apresentado pela deputada Maria dos Santos Guardiola que prope: O ensino ministrado pelo Estado visa alm do revigoramento fsico e do aperfeioamento das faculdades intelectuais, formao do carcter, do valor profissional e de todas as virtudes cvicas e morais, no podendo contrariar os princpios da moral crist (sublinhado nosso). Do parecer em anlise consta a seguinte proposta: O ensino ministrado pelo Estado visa, alm do revigoramento fsico e do aperfeioamento das faculdades intelectuais formao do carcter, do valor profissional e de todas as virtudes cvicas e morais, orientadas essas pelos princpios da moral crist; no dever, contudo, hostilizar qualquer culto religioso em especial. O texto final publicado a 23 de Maio de 1935 ser o seguinte: O ensino ministrado pelo Estado visa, alm do revigoramento fsico e do aperfeioamento das faculdades intelectuais, formao do carcter, do valor profissional e de todas as virtudes cvicas e morais, orientadas aquelas pelos princpios da doutrina e moral crists, tradicionais do Pas (sublinhado nosso).

  • 26

    O ensino, ministrado pelo Estado, deve tomar dois aspectos, o intelectual

    (instruo) e o aspecto moral (educao)19.

    A relevncia da dimenso educativa e a sua prioridade , logo de seguida,

    evidenciada atravs da transcrio de afirmaes do Ministro da Educao do

    Reich: Mais do que dar o saber, [...] escola cumpre formar o carcter da

    mocidade; [...]20.

    O campo da instruo e o da educao aparecem aqui claramente

    diferenciados como dois aspectos do ensino, sendo a educao identificada com

    o aspecto moral e a instruo com o aspecto intelectual. A importncia da

    dimenso moral do ensino faz com que deva ser explicitada atravs de orientaes

    poltico-educativas claras. Segundo Cordeiro Ramos, neste campo s se

    consideram duas alternativas:

    [] ou a Constituio define essa moral, ou camos no arbtrio do professor, no

    capricho individual, isto , no tumulto, na desorientao21.

    Colocada a questo nestes termos, conclui-se:

    Como o princpio da ordem basilar no Estado Novo, s poderemos admitir a

    primeira soluo, e neste caso, tendo de se escolher uma moral, tem de ser

    necessariamente a moral crist [...]22.

    A educao define-se como educao moral, a Moral como Moral crist,

    segundo um critrio poltico estatal normalizador. Os campos da Moral e da

    Religio tendem a confundir-se, ao mesmo tempo que a formao religiosa se

    especifica como crist. O Parecer de 1935 prope que o ensino ministrado pelo

    Estado seja orientado pelos princpios da moral crist, referindo no fim que,

    19 Parecer da Cmara Corporativa sobre o Projecto de Lei n. 11, de 21 de Fevereiro de 1935. 20 Ibidem. 21 Ibidem. 22 Ibidem.

  • 27

    contudo, no deveria hostilizar qualquer culto religioso em especial. O texto

    aprovado posteriormente na Assembleia, e publicado no Dirio do Governo de 23

    de Maio desse ano, ir mais longe, sob influncia da proposta da deputada Maria

    Guardiola. Assim, eliminar qualquer referncia a outros cultos. j operante a

    estratgia de apagamento e de ocultao que se dissemina pelas esferas de

    interveno poltica, cultural e educativa.

    A Constituio de 1933 tinha considerado o ensino independente de

    qualquer culto religioso, se bem que no o devesse hostilizar; a reviso da

    Constituio, em 1935, considerava os objectivos e a orientao do ensino

    segundo os princpios da doutrina e moral crists, tradicionais do Pas,

    subentendendo-se que se tratava da moral crist catlica. Em plena dcada de

    cinquenta, o texto constitucional ir mais longe e a religio catlica ser

    considerada a religio da Nao portuguesa23. Em 1964, dez anos antes da

    queda do regime, o Ministro da Educao considerar a necessidade de um

    estatuto da Educao Nacional considerada como:

    carta magna do ensino, lei bsica onde se contenham os grandes princpios

    orientadores, as ideias-fora onde se d forma e expresso a um sistema renovado da

    aco educativa, fiel s grandes constantes do cristianismo e da lusitanidade, mas

    modernizado em funo das exigncias do presente e das tendncias do porvir24.

    Tambm a Junta de Educao Nacional, rgo consultivo do Ministrio da

    Educao desde a sua criao em 1936, na sua remodelao de 1965, tornou

    23 livre o culto pblico ou particular da religio catlica como religio da Nao Portuguesa [] Art. 45. da Constituio da Repblica Portuguesa com as alteraes da reviso constitucional pela Lei n. 2 100, publicada no Dirio do Governo, n. 198, 1 srie, de 29 de Agosto de 1959. 24 Discurso do Ministro da Educao Galvo Teles (sublinhado nosso), apud Rui Grcio, O Sistema Escolar Metropolitano Portugal, 1970, in Obra Completa, vol. II, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1995, p. 208. Em 1959, o ministro da Educao Francisco Leite Pinto tinha solicitado O.E.C.E. (a O.C.D.E. sucede-lhe em 1960) a realizao de um diagnstico sobre as necessidades educativas em Portugal, o que deu origem ao Projecto Regional do Mediterrneo que abrangeu a Espanha, Grcia, Itlia, Jugoslvia e Turquia). Cf. Ibidem, p. 218.

  • 28

    possvel, pela primeira vez a representao da Igreja e do ensino particular em

    rgos do Ministrio da Educao Nacional25.

    O enunciar do aspecto educativo como mais-valia da Escola tende a

    distinguir e separar: os saberes e a formao do carcter; o conhecimento e a

    moral; a instruo e a educao. A possibilidade de submisso da vertente

    intelectual e informativa do ensino (os saberes, o conhecimento, a instruo)

    vertente educativa ser consequncia natural desta distino e separao, feitas

    custa de uma abstraco simplificadora. O educativo reduzido ao moral e, com

    esta reduo, impede-se que o problema das relaes entre instruo e educao

    seja colocado na sua complexidade e dinamismo. A separao em dois campos

    semnticos acantona o saber e o conhecimento no campo do instrutivo e

    disponibiliza-o como realidade instrumental. O saber e o conhecimento passam a

    ser olhados do exterior, como um conjunto de resultados, que devem ou no ser

    ensinados, e a questo do ensino escolar, antes de ser didctica e pedaggica,

    social e poltica. Em 1935, o Decreto-lei n. 25 447, que regulamenta o processo

    de aprovao de livros escolares, considera no prembulo justificativo:

    [] no pode o Governo abstrair da orientao social e poltica das escolas no

    sentido e avigoramento de uma mentalidade nacionalista, que d garantias seguras de que

    o esforo despendido pela Revoluo Nacional de 28 de Maio seja convenientemente

    aproveitado a bem da Nao26.

    A concepo dicotmica de dois campos (mesmo que ligados) conduz a

    uma determinada viso dos saberes ensinveis. Esta uma das suas mais

    importantes consequncias. que, concebendo o educativo no como um aspecto

    exterior a determinado saber, mas como a explorao das suas virtualidades, a

    determinao dos contedos ensinveis ser sempre uma questo de critrio

    pedaggico e didctico, da responsabilidade de cada campo disciplinar. Se o

    aspecto educativo entendido como uma dimenso exterior ao saber, definido

    25 Rui Grcio, ob. cit., p. 203. 26 Decreto-lei n. 25 447, de 1 de Junho de 1935, do Ministro Eusbio Tamagnini de Matos Encarnao.

  • 29

    mediante critrios meramente politico-ideolgicos, corre-se o risco de lhes

    subordinar o material informativo e de abrir portas a uma instrumentalizao do

    conhecimento. Neste caso, a seleco do que nele deve ser ensinvel feita a

    partir de uma intencionalidade educativa definida segundo critrios exteriores aos

    campos disciplinares. Se, no primeiro caso, a explorao da dimenso educativa

    determinada mediante critrios intrnsecos ao prprio saber, no segundo, ser

    determinada por critrios extrnsecos.

    A questo da determinao dos saberes ensinveis do currculo escolar no

    pode ser resumida a este esquema, mas ele representa uma primeira abordagem,

    que nos ajuda a analisar uma posio terica que, distinguindo instruo e

    educao numa linha de aparente continuidade, revela uma perspectiva e uma

    atitude relativamente educao, ao ensino e aos agentes educativos de pesadas

    consequncias. que tambm uma atitude que distingue e coloca a dimenso

    educativa acima da informativa, por exemplo, tender a desculpar, se for caso

    disso, fraquezas cientficas por tendncias ideolgicas ou qualidades de carcter,

    ou a sacrificar qualidade cientfica a tendncias ideolgicas ou de carcter. Isto

    significa, no limite, que os critrios de ordem moral e poltica podero prevalecer

    sobre o critrio cientfico ou pedaggico. o que veremos acontecer, j ao longo

    do Estado Novo, com o processo de seleco e classificao dos professores ou

    com o afastamento de professores do exerccio da docncia por motivos polticos,

    extrnsecos sua qualidade cientfica ou pedaggica. A denominada idoneidade

    moral dos professores, que se refere sua conduta do ponto de vista cvico,

    poltico e de prtica de culto (cristo e catlico), vir a ser condio de ingresso na

    carreira docente, tal como ser factor suficiente para a impossibilidade do seu

    exerccio27. Sob esta expresso caber o controlo de aspectos do comportamento

    27 Lembremo-nos, por exemplo, que as qualificaes para o ensino primrio eram mnimas; aceitavam-se pessoas sem formao cientfica mas que possuam idoneidade moral. Rmulo de Carvalho, na sua Histria do Ensino em Portugal refere, a propsito do ensino primrio e da criao de postos de ensino e dos regentes escolares, em 1931, que se admitiam pessoas a quem no se exigiria qualquer habilitao mas apenas a comprovao de possurem a necessria idoneidade moral e intelectual e que os abusos cometidos foram de tal ordem que, cerca de quatro anos depois, j na impossibilidade de se esconder o que estava acontecendo, foi necessrio publicar um novo decreto, com data de 28 de Agosto de 1935, para se passar a exigir um exame de aptido. Em nota de rodap, d conta de uma situao caricata de que teve

  • 30

    poltico e pblico ou da vida pessoal e privada28, bem como a activao de

    mecanismos de punio perante o que pudesse ser considerado moralmente

    censurvel. Corria j o ano de 1944, por exemplo, quando Joaquim de Carvalho,

    Professor na Universidade de Coimbra, foi encarregado pelo Governo de

    proceder a uma sindicncia a um professor de Liceu que, passagem de uma

    procisso do Corpo de Deus, se no levantara do banco ao lado nem se descobrira,

    tendo acabado por faz-lo, a uma intimao de um polcia29.

    Em 1935, publicado o Decreto n. 25 317, que impe a aposentao,

    reforma ou demisso a quem no der garantias de cooperao na realizao dos

    fins superiores do Estado. Nesse mesmo ano, ao abrigo deste decreto, ser

    conhecimento por informao privada de um alto funcionrio da Instruo, de que um pretendente a regente escolar declarara, ao ter que assinar o auto de posse, que no sabia escrever. Rmulo de Carvalho, Histria do Ensino em Portugal, desde a fundao da nacionalidade at ao fim do regime de Salazar-Caetano, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 2001, p. 736. O critrio da idoneidade ser tambm aplicado aos candidatos docncia em Canto Coral ou Organizao Poltica e Administrativa da Nao. Como se l no Decreto n. 27 085, de 14 de Outubro de 1936, Art. 23., 7.: Para o ensino de educao moral e cvica, de educao fsica, de canto coral e de lavores femininos pode ser autorizado o contrato de indivduos que, embora no possuam as habilitaes normais, sejam julgados idneos em despacho ministerial, sobre parecer da Junta Nacional de Educao, enquanto no for reorganizado o regime legal da respectiva formao pedaggica; e no 8. So de livre nomeao do Ministro os professores da disciplina de organizao poltica e administrativa da Nao, de entre os diplomados com um curso superior e outros indivduos de idoneidade reconhecida, sobre parecer da Junta Nacional de Educao []. Em 1947, o Decreto n. 36 507, de 17 de Setembro, no Art. 17., determina: O ensino liceal s poder ser ministrado pelos indivduos em quem o Estado reconhea, alm da natural competncia cientfica e pedaggica, a indispensvel idoneidade moral e cvica (sublinhado nosso). 28 O casamento das professoras primrias e das enfermeiras ser, por exemplo, objecto de legislao especfica. Vd. infra, p. 97, nota 178. 29 Joaquim de Carvalho, Carta a Carlos Alberto da Costa Soares in Obra Completa, Ensaios e Fragmentos filosficos e bibliogrficos, vol. VIII, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1996, p. 149. A resposta dada por Joaquim de Carvalho, aps insistncia com uma segunda carta do Delegado do Procurador Geral da Repblica em Oliveira de Frades, Carlos Alberto da Costa Soares, inclui uma primeira anlise, geral in abstracto, segundo a qual o acto deste professor censurvel moralmente e acaba distinguindo censura moral e punio atravs da pergunta Ser, porm, alm de censurvel, punvel?. Num segundo momento, numa anlise em concreto Joaquim de Carvalho, no tendo conhecimento da pessoa e das circunstncias do acto cometido afirma que, em rigor no posso julgar, mas apenas ponderar. claro o incmodo desta situao para Joaquim de Carvalho que, depois de incluir elementos de ponderao, como a de que o acto do professor poderia estar ligado a uma atitude anti-clerical mas no anti-religiosa, o que seria factor atenuante, conclui de forma cautelosa mas sem ambiguidade: Atrevo-me, porm, a pensar, em face da inquietao moral que a sociedade portuguesa padece nos nossos dias, e considerando que se tem levado, por vezes muito longe, o abafamento e sequestro das opinies dissidentes que so tambm uma condio necessria de uma sociedade civilizada que so de admitir circunstncias atenuantes. A repreenso, dando ensejo pblico afirmao dos direitos e dos deveres da conscincia religiosa seja qual for, talvez fosse socialmente mais eficiente que outra penalidade, e, alm disto, mais caritativa e humana. Ibidem, p. 149, sublinhado nosso.

  • 31

    afastado da docncia Slvio Lima, da Universidade de Coimbra30, dos primeiros a

    sofrer o afastamento da carreira do ensino e da investigao. Outros se lhe

    seguiro num processo que descapitalizar o pas dos seus quadros mais ricos e

    promissores (cujas consequncias so visveis na fraca produo cientfica

    portuguesa nesse perodo e no que se lhe sucede). Nesse mesmo ano de 1935, so

    demitidos, com Slvio Lima, o mdico e homem de cultura Abel Salazar

    (Faculdade de Medicina da Universidade do Porto), o fillogo Rodrigues Lapa

    (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), o cientista Aurlio Quintanilha

    (Faculdade de Cincias da Universidade de Coimbra). A mesma situao ter

    ocorrido com o filsofo Agostinho da Silva, ento professor liceal31ou, embora

    com contornos diferentes, com o filsofo Antnio Marinho32. J na dcada de

    quarenta, em 1944, o filsofo e historiador Vitorino Magalhes Godinho

    (Faculdade de Letras de Lisboa) e, j depois do final da II Grande Guerra, em

    1946, o matemtico Bento de Jesus Caraa (Instituto Superior de Cincias

    Econmicas e Financeiras), o mdico Francisco Pulido Valente (Faculdade de

    Medicina da Universidade de Lisboa), o fsico Manuel Valadares (Laboratrio de

    Fsica da Faculdade de Cincias da Universidade de Lisboa)33. A impossibilidade

    de interferir nos programas e nos livros de est