Mattozzi Didatica Historia Ed Patrimonio

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Ivo Mattozzi Historiador italiano, é docente de História e Didática de História da Universidade Livre de Bolzano e presidente da Clio '92 - Associação de Professores e Pesquisadores de Didática da História Artigo | Ivo Mattozzi Didática da História e Educação para o patrimônio 1 Ivo Mattozzi |< < Página de > >| "A história é feita com documentos" é o que se diz na escola e nas explicações sobre a metodologia historiográfica. Mas esses documentos são reduzidos a citações, referências e imagens em livros de historiadores. A relação entre o conhecimento e os documentos se perde nos livros escolares ou é evocada com imagens paratextuais. As fontes (objetos materiais, mensagens escritas e orais gravadas, imagens, esculturas, paisagens, arquiteturas e centros urbanos) são, em geral, consideradas bens culturais. Mas todas as coisas, antes de serem usadas para a produção de informação, são coisas em sua origem e, no presente, se tornam vestígios de atividades humanas no passado. Em Nell'Apologia della Storia o Mestiere di Storico, Marc Bloch (1998, p. 44) diz: "O conhecimento de todos os fatos humanos no passado, da maior parte deles no presente, possui como primeira característica a de ser (...) um conhecimento por vestígios. (...) O que queremos dizer, na prática, com documentos, se não um 'vestígio', o que equivale a um sinal perceptível aos sentidos, mas que deixou um fenômeno impossível de ser detectado em si mesmo?". Se a história é apenas a que está nos livros, os alunos perdem a chance de relacionar o conhecimento histórico aos vestígios graças aos quais tal conhecimento foi gerado e não têm a possibilidade de se dar conta dos procedimentos de produção e uso das fontes. Com isso, não terão oportunidade de aprender a interpretá-los. E, caso tenham a chance de considerar os objetos pelo seu valor artístico ou simbólico, não conseguem conectá-los às atividades historiográficas. Além do mais, não adquirem habilidades para dar sentido aos bens culturais do território em que vivem. Se quisermos honrar a promessa de utilidade do conhecimento histórico, devemos projetar e implementar processos de ensino para relacionar o conhecimento histórico às coisas consideradas bens culturais e despertar a consciência cívica em relação ao patrimônio

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artigo da revista Nova Escola

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    Ivo Mattozzi

    Historiador italiano, docente de

    Histria e Didtica de Histria da

    Universidade Livre de Bolzano e

    presidente da Clio '92 - Associao

    de Professores e Pesquisadores

    de Didtica da Histria

    Artigo | Ivo Mattozzi

    Didtica da Histria e Educao para

    o patrimnio1

    Ivo Mattozzi

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    "A histria feita com documentos" o que se diz na

    escola e nas explicaes sobre a metodologia

    historiogrfica. Mas esses documentos so reduzidos a

    citaes, referncias e imagens em livros de historiadores.

    A relao entre o conhecimento e os documentos se perde

    nos livros escolares ou evocada com imagens

    paratextuais.

    As fontes (objetos materiais, mensagens escritas e orais

    gravadas, imagens, esculturas, paisagens, arquiteturas e

    centros urbanos) so, em geral, consideradas bens culturais.

    Mas todas as coisas, antes de serem usadas para a produo

    de informao, so coisas em sua origem e, no presente, se

    tornam vestgios de atividades humanas no passado. Em Nell'Apologia della Storia o

    Mestiere di Storico, Marc Bloch (1998, p. 44) diz: "O conhecimento de todos os fatos

    humanos no passado, da maior parte deles no presente, possui como primeira caracterstica a

    de ser (...) um conhecimento por vestgios. (...) O que queremos dizer, na prtica, com

    documentos, se no um 'vestgio', o que equivale a um sinal perceptvel aos sentidos, mas que

    deixou um fenmeno impossvel de ser detectado em si mesmo?".

    Se a histria apenas a que est nos livros, os alunos perdem a chance de relacionar o

    conhecimento histrico aos vestgios graas aos quais tal conhecimento foi gerado e no tm

    a possibilidade de se dar conta dos procedimentos de produo e uso das fontes. Com isso,

    no tero oportunidade de aprender a interpret-los. E, caso tenham a chance de considerar os

    objetos pelo seu valor artstico ou simblico, no conseguem conect-los s atividades

    historiogrficas. Alm do mais, no adquirem habilidades para dar sentido aos bens culturais

    do territrio em que vivem.

    Se quisermos honrar a promessa de utilidade do conhecimento histrico, devemos projetar e

    implementar processos de ensino para relacionar o conhecimento histrico s coisas

    consideradas bens culturais e despertar a conscincia cvica em relao ao patrimnio

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    cultural.

    Como demover os alunos da ideia de que a histria apenas texto? Em primeiro lugar, ns,

    professores, temos de pensar de forma mais geradora os instrumentos usados para a produo

    da informao histrica. Independentemente do que se trate, nenhum deles foi produzido para

    essa funo. Tinham outros fins em sua origem (utilitrios, estticos, simblicos,

    comunicativos, burocrticos, ldicos etc.). Foram transmitidos at o presente ou

    desenterrados e considerados sinais de uma atividade humana que os produziu ou os usou.

    Mas at que algum os considere objetos que podem ser usados para produzir informao,

    eles permanecem inertes, podendo parecer insignificantes ou artefatos simblicos bonitos.

    O que se v atualmente que os objetos no tm sido usados para produzir conhecimento na

    sala de aula. Para transform-los em objeto de informao, preciso haver vontade de

    conhecer as habilidades cognitivas e as prticas. Tanto a vontade como as habilidades devem

    ser postas em cena de acordo com procedimentos organizados: necessrio formular o tema

    de conhecimento definindo os limites temporais e espaciais e o ponto de vista. Depois,

    elaborar as perguntas a serem respondidas por meio das fontes. Esse o funcionamento

    mental da tematizao, a qual induz e orienta, em princpio, a pesquisa e a identificao dos

    vestgios teis e conduz a explorao desses a fim de produzir uma informao. Finalmente,

    preciso identificar com base em quais elementos possvel produzir as informaes

    desejadas e adequadas.

    A matria, as dimenses e a forma do objeto, seus sinais e mensagens podem (um por um ou

    todos juntos) ser a base para a produo de informao. Mas eles so insuficientes: o

    potencial de cada um aumenta se forem levadas em considerao as informaes produzidas e

    a quantidade de coisas quando elas so relacionadas ao contexto (como um livro em relao a

    uma biblioteca), s sries (uma srie de testamentos) e aos conjuntos (como o grupo de

    edifcios em um complexo urbano). o sujeito que faz dos objetos instrumentos de

    informao. Depois de t-los explorado para o seu propsito cognitivo, ele deve cit-los

    como peas de apoio, documentao das afirmaes factuais e das hipteses interpretativas.

    Isso permite ao leitor verificar e criticar os procedimentos em que as fontes foram usadas.

    Os objetos (mesmo os documentos escritos so objetos materiais) podem ser tema de

    pesquisas. Sinais (mesmo os aparentemente banais) da cultura material, obras de arte,

    conjuntos e sries de objetos devem ser estudados e colocados no centro do discurso

    histrico. Dispomos, portanto, de uma infinidade de textos que analisam e interpretam

    vestgios escritos (manuscritos de qualquer tipo, protocolos notariais, diplomas, tratados,

    contratos, cartas particulares, livros etc.), utenslios, objetos da vida cotidiana, imagens,

    edifcios e estruturas paisagsticas a fim de facilitar e tornar segura a transformao deles em

    instrumentos de informao, ou para estabelecer melhor os projetos de restaurao,

    conservao, musealizao ou para compreender sua estrutura e configurao.

    Quando usados para a construo de conhecimento sobre o passado, os objetos adquirem

    valor de patrimnio cultural, que deve ser preservado, protegido e posto em exposio. Por

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    um motivo maior, transformam-se em bens culturais caso tenham sido reconhecidos como

    produtores de emoes estticas e investimentos afetivos.

    1 Artigo publicado na Rivista dell'Istruzione, Scuola e Autonomie Locali, ano XXIV (2008), 5, pp. 23-

    28, com o ttulo Didattica della Storia, Beni Culturali, Educazione al Patrimonio.

    A produo das informaes

    H outra mudana de pensamento necessria para lidar com a tarefa de colocar a histria a

    servio da descoberta, do conhecimento e da valorizao do patrimnio. Ela diz respeito s

    atividades que o sujeito faz para acumular informaes teis aos seus propsitos.

    Geralmente, so usadas expresses como "saber interrogar", "fazer as fontes falarem" e

    "encontrar a informao". No vocabulrio escolar, essa ltima a mais difundida e sugere uma

    operao banal. No entanto, convm pensar que o historiador (e ns mesmos como sujeitos

    conscientes) faz operaes mentais para usar os vestgios-fontes e "extorquir-lhes a

    informao que no tinham nenhuma inteno de fornecer" (BLOCH, 1998, p. 69).

    Temos de aprender a explorar o potencial das fontes, consultando diferentes elementos que

    consideramos pertinentes para o tema a ser desenvolvido na escola e p-las em conjuntos,

    sries ou grupos para estabelecer as condies para o desenvolvimento das "informaes

    conclusivas". A maioria das informaes que compem os conhecimentos histricos

    produzida graas capacidade da mente de usar as j existentes para produzir outras,

    aplicando saberes extrafontes e esquemas cognitivos disponveis. Por isso, os verbos mais

    adequados para expressar o trabalho com fontes so "produzir" e "elaborar" informaes.

    Os bens culturais no ensino de Histria

    Como os bens culturais podem entrar no processo de ensino e aprendizagem? Primeiro,

    devemos assumir a amplitude de viso do historiador Lucien Febvre (1878-1956) (1949): "A

    histria feita com documentos escritos, claro. Quando existem. Mas pode e deve ser feita

    sem documentos escritos, se no h nenhum. Com tudo aquilo que a engenhosidade do

    historiador lhe permite utilizar para produzir o seu mel mesmo se no h as flores habituais.

    Portanto, com palavras, sinais, paisagens, telhas; com as formas do campo e das ervas

    daninhas; com o eclipse da Lua e com os cabrestos dos cavalos de arado; com a experincia

    em pedras dos gelogos; e com a anlise de metais feita pelos qumicos. Enfim, com tudo o

    que, por pertencer ao homem, depende do homem, serve ao homem, exprime o homem,

    demonstra a sua presena, a sua atividade, os seus gostos e as maneiras de ser do homem.

    Talvez toda uma parte, a mais fascinante, do trabalho de historiador no consista precisamente

    no esforo contnuo de dar voz s coisas mudas, de faz-las dizer o que por si s no dizem

    sobre os homens e as sociedades que as produziram, e de constituir, finalmente, aquela vasta

    rede de solidariedade e de ajuda recproca que compensa a falta de documento escrito?"

    Em segundo lugar, devemos parar para refletir que objetos de museu, obras de arte,

    documentos escritos e lugares servem em atividades escolares apenas para promover

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    habilidades interpretativas. Precisamos garantir que os percursos didticos induzam os

    estudantes a pensar os objetos utilizados como fontes tambm como bens culturais em

    relao s instituies e s comunidades que os tutelam.

    Se assumirmos o modelo de interpretao das coisas que os arquelogos tm aperfeioado,

    ns, professores, podemos imaginar como projetar percursos e unidades de aprendizagem

    adequados a promover as habilidade interpretativas dos alunos, exercitadas em objetos de

    qualquer perodo. Trata-se de envolver a turma em um projeto de construo de

    conhecimento, de faz-la perceber as coisas que podem ser objeto e fonte no processo de

    construo. Podemos aprender com os arquelogos. Os objetos foram produzidos com

    tcnicas, instrumentos e materiais. Depois foram utilizados nos processos da vida material,

    social e religiosa e inseridos em cenas sociais, atividades de troca e rituais. Em seguida,

    receberam formas que revelam o sentido esttico de quem as elaborou e, finalmente,

    chegaram a ns como vestgios dessas atividades e foram submetidos a um processo de

    valorizao como bens culturais.

    Os objetos, por isso, podem ser mediadores de prticas de produo, de uso, de valorizao

    artstica e de incluso no patrimnio cultural. preciso possibilitar os processos de

    aprendizagem de modo que os alunos aprendam a utilizar os vestgios e as fontes para realizar

    procedimentos de observao, analisar e "extorquir" informaes para responder s

    exigncias de desenvolvimento de um tema e da construo de um conhecimento. Os

    procedimentos podem ser os dos arquelogos, desde que didaticamente simplificados para

    guiar as vrias fases do trabalho:

    1. Observao e anlise dos objetos (para produzir e catalogar informaes diretas).

    2. Organizao das informaes primrias em relao com o contexto e/ou com os conjuntos

    e/ou com as sries (para se ter o fundamento da produo das informaes conclusivas).

    3. Organizao das informaes primrias e das conclusivas (a fim de conect-las em um

    texto).

    4. Reflexo metacognitiva sobre o valor dos vestgios como bens culturais em relao s

    instituies e comunidades.

    5. Reflexo sobre o pertencimento dos vestgios/bens culturais ao patrimnio cultural.

    Essas fases podem ser propostas desde a Educao Infantil. Para a Educao para o

    patrimnio, essencial que as crianas e os jovens faam atividades com bens culturais e que

    as cinco fases sejam percorridas.

    Resumo

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    Levar fontes histricas (como objetos, documentos e imagens) para a sala de aula e ensinar

    os alunos a trabalhar com elas para elaborar informaes tarefa do professor. necessrio

    que eles aprendam mais do que est nos livros. Para isso, precisam relacionar dados e

    conhecer os procedimentos de produo e de uso das fontes a que recorrem historiadores e

    arquelogos. Trabalhando desse modo desde a Educao Infantil, os educadores tornam

    possvel a Educao para o patrimnio.

    Referncias bibliogrficas

    - BLOCH, M. Nell'Apologia della storia o Mestiere di storico. Torino: Einaudi, 1998. 1 ed.

    1949.

    - BORTOLOTTI, A.; CALIDONI, M., MASCHERONI, S.; MATTOZZI, I. Per l'educazione al

    patrimonio. 22 tesi. Milo: FrancoAngeli, 2008.

    - FEBVRE, L. Verso un'altra storia, in Id., Problemi di metodo storico. Torino: Einaudi, 1976. p.

    173. 1 ed. 1949.

    - MATTOZZI, I. La didattica museale: punto di forza dei musei. In: PRIMERANO, D. (org.)

    L'azione educativa per un museo in ascolto. Ata da 8 Conveno da A.M.E.I., Museu

    Diocesano, Trento, outubro de 2001.

    - MATTOZZI, I. As competncias da cidadania: Qual o papel para a Histria? Um olhar da

    Itlia. In: BALDIN, N.; ALBUQUERQUE, C. (orgs.). Novos desafios na Educao.

    Responsabilidade social, democracia e sustentabilidade. Braslia: Liber Livro. 2012. p. 97-

    122.

    - SANTINI, C.; RABITTI, M.T. (orgs.), Il museo nel curricolo di storia, Milo: FrancoAngeli,

    2008.

    Didtica da Histria e Educao para o patrimnio

    A produo das informaes

    Os bens culturais no ensino de Histria

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    Publicado em NOVA ESCOLA Edio 263, Junho/Julho 2013.

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