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111 Conexão – Comunicação e Cultura. UCS, Caxias do Sul – v. 11, n. 22, jul./dez. 2012 111 Mídia, jornalismo e contemporaneidade: desafios éticos num contexto de rupturas Media, journalism and contemporaneity: ethical challenges in the context of ruptures Basílio Alberto Sartor 1 e Rudimar Baldissera 2 RESUMO No âmbito das relações entre mídia e democracia, a questão ética no jornalismo assume centralidade. Princípios deontológicos do campo jornalístico – como representar a verdade e de‑ fender o interesse público – podem ser redimensionados a partir das mudanças e rupturas culturais da pós‑modernidade. Sob essa ótica, o texto problematiza as intersecções entre contemporaneidade, ética e jornalismo. A partir de reflexões sobre as mudanças socioculturais verificadas no atual contexto,a crise dos fundamentos da ética e o jornalismo produzido no âmbito das grandes organizações midiáticas, o texto evidencia desafios éticos do campo, tais como a necessidade de investir na compreensão complexa da alteridade, na atenção à multiplicidade de vozes que emergem no espaço público e na ampliação de formatos menos ortodoxos. Palavras‑chave: Mídia. Jornalismo. Ética. Contemporaneidade. Interesse público. ABSTRACT In the scope of relations between media and democracy, the matter of ethics in journalism takes centrality. Deontological principles of journalistic field – as representing the truth and defending the public interest – can be redirected from cultural changes and ruptures of postmo‑ dernity. Under this perspective, the text problematizes the intersections amongst contempora‑ neity, ethics and journalism. Based on reflections concerning the sociocultural shifts observed in the current context, the crisis of ethics foundations and the journalism produced within large media organizations; the text highlights the ethical challenges of the field, such as the necessity of investing in the complex understanding of otherness, in the attention to the multiplicity of voices that emerge in the public space and in the expansion of less orthodox formats. Keywords: Media. Journalism. Ethics. Contemporaneity. Public interest. 1 Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), RS, Brasil. Jornalista pela UFRGS. Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós‑Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM/UFRGS). E‑mail: <[email protected]> Data da submissão: 22/agosto/2013. Data da aprovação: 26/agosto/2013. 2 ** Professor no Programa de Pós‑Graduação em Comunicação e Informação (PPGCOM) e no curso de Comunicação da UFRGS, RS, Brasil. Relações Públicas pela UCS. Mestre em Semiótica pela Unisinos. Doutor em Comunicação Social pela PUCRS. E‑mail: [email protected]

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Conexão – Comunicação e Cultura. UCS, Caxias do Sul – v. 11, n. 22, jul./dez. 2012

111Mídia, jornalismo e

contemporaneidade: desafios éticos num contexto de rupturasMedia, journalism and contemporaneity: ethical challenges in the context of ruptures

Basílio Alberto Sartor1 e Rudimar Baldissera2

RESUMO

No âmbito das relações entre mídia e democracia, a questão ética no jornalismo assume cen‑tralidade. Princípios deontológicos do campo jornalístico – como representar a verdade e de‑fender o interesse público – podem ser redimensionados a partir das mudanças e rupturas culturais da pós‑modernidade. Sob essa ótica, o texto problematiza as intersecções entre con‑temporaneidade, ética e jornalismo. A partir de reflexões sobre as mudanças socioculturais ve‑rificadas no atual contexto,a crise dos fundamentos da ética e o jornalismo produzido no âmbito das grandes organizações midiáticas, o texto evidencia desafios éticos do campo, tais como a necessidade de investir na compreensão complexa da alteridade, na atenção à multiplicidade de vozes que emergem no espaço público e na ampliação de formatos menos ortodoxos.

Palavras‑chave: Mídia. Jornalismo. ética. Contemporaneidade. Interesse público.

ABSTRACT

In the scope of relations between media and democracy, the matter of ethics in journalism takes centrality. Deontological principles of journalistic field – as representing the truth and de‑fending the public interest – can be redirected from cultural changes and ruptures of postmo‑dernity. Under this perspective, the text problematizes the intersections amongst contempora‑neity, ethics and journalism. Based on reflections concerning the sociocultural shifts observed in the current context, the crisis of ethics foundations and the journalism produced within large media organizations; the text highlights the ethical challenges of the field, such as the necessi‑ty of investing in the complex understanding of otherness, in the attention to the multiplicity of voices that emerge in the public space and in the expansion of less orthodox formats.

Keywords: Media. Journalism. Ethics. Contemporaneity. Public interest.

1 Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), RS, Brasil. Jornalista pela UFRGS. Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós‑Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM/UFRGS). E‑mail: <[email protected]>

Data da submissão: 22/agosto/2013. Data da aprovação: 26/agosto/2013.2 ** Professor no Programa de Pós‑Graduação em Comunicação e Informação (PPGCOM) e no curso de

Comunicação da UFRGS, RS, Brasil. Relações Públicas pela UCS. Mestre em Semiótica pela Unisinos. Doutor em Comunicação Social pela PUCRS. E‑mail: [email protected]

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asprotestos, verdade e interesse público

N o atual contexto, a legitimidade das grandes organizações midiáticas e do campo jornalístico tem sido contestada. Exemplo disso foram os protestos que se alastraram pelo Brasil, em junho de 2013,3 os quais

materializaram a insatisfação difusa e generalizada da população com as instituições públicas e os representantes políticos do País. Também as mais importantes organizações midiáticas foram colocadas no “banco dos réus”, com a proliferação de ataques simbólicos a empresas jornalísticas brasileiras e diversas tentativas de impedir a cobertura dos eventos feita por repórteres das principais emissoras nacionais de televisão. Nas ruas e no ambiente das mídias sociais, denunciaram‑se a parcialidade das coberturas sobre as mani‑festações, a ênfase nos fatos capazes de deslegitimar o movimento, a aliança da mídia com interesses privados ou governistas, a mentira e o engodo.

Ainda que tais manifestações se limitem a uma parcela específica e restri‑ta da população, familiarizada com o uso das mais recentes Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) – e que, de resto, há muito desconfia da isenção e do compromisso com o interesse público em favor dos quais os meios afirmam pautar sua produção informativa – pode‑se dizer que a inten‑sidade e a visibilidade das críticas atingiram níveis inauditos, pelo menos no horizonte dos últimos anos. Falar em crise de credibilidade supõe uma per‑cepção negativa generalizada acerca da mídia que não se pode comprovar aqui. Entretanto, parece razoável dizer que a ideia de “espelho da realidade” poucas vezes coube tão mal ao jornalismo produzido no âmbito dessas gran‑des organizações midiáticas.

Numa perspectiva mais ampla, pode‑se afirmar que essa desconfiança em relação ao jornalismo não se limita ao atual contexto brasileiro. Nas socie‑dades democráticas ocidentais, de modo geral, embora a liberdade de im‑prensa seja reconhecida como um dos valores fundamentais herdados da modernidade, defensável e imprescindível, frequentemente a legitimidade das organizações e dos profissionais que atuam em nome desse valor é questionada. No campo das ciências sociais, é vasta a produção teórica que sublinha menos as virtudes democráticas da produção informativa das mí‑dias do que seu caráter alienante, espetacular ou simplificador. A capacidade do jornalismo de apresentar os fatos com veracidade e defender o interesse público sempre esteve sob suspeita para boa parte dos pensadores que se

3 Iniciados pelo Movimento pelo Passe Livre (MPL) contra o aumento do valor das passagens do transpor‑te público em São Paulo (SP), os protestos expandiram‑se para os principais centros urbanos do Brasil, incorporando outras reivindicações, como o combate mais rigoroso à corrupção e maiores investimen‑tos em saúde e educação públicas, ganhando a adesão de milhares de pessoas.

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dedicaram a refletir sobre as relações entre imprensa e democracia. Nesse prisma, uma das discussões pertinentes ao campo da comunicação diz res‑peito aos fundamentos éticos do jornalismo, já que verdade e interesse pú‑blico constituem o núcleo deontológico da profissão.

Contudo, verdade e interesse público – como eram pensados desde uma óti‑ca da modernidade, essencialmente iluminista – tornam‑se conceitos cada vez mais difíceis de resistir às questões suscitadas pelo pensamento pós‑mo‑derno. Como falar em verdade quando os chamados metarrelatos (razão, ciência) que deveriam representá‑la são desnudados e revelam‑se frágeis, ilusórios ou incapazes de explicar o mundo com alguma certeza? Como falar em interesse público, conceito que pressupõe certo consenso acerca do que é a vontade geral ou o bem comum, quando a própria ideia de consenso tende a tornar‑se ultrapassada e suspeita? (lyotard, 1998). De modo mais genérico, como falar em ética jornalística quando os próprios fundamentos da ética parecem atravessar uma crise (Morin, 2007), e a contemporaneida‑de faz emergir (ou ressurgir) um vigoroso “politeísmo de valores”? (MaffeSoli, 2010). É certo que tais questões envolvem noções complexas e debates pro‑blemáticos, demandam profunda discussão teórica e mesmo extensa pesqui‑sa empírica. Mais modestamente, busca‑se, neste ensaio, problematizar as relações entre contemporaneidade, ética e jornalismo, na trilha de pensado‑res que discutem essas questões e que, de algum modo, refletem o (ou sobre o) percurso da modernidade às rupturas socioculturais que têm marcado as sociedades democráticas nas últimas décadas. Dessa forma, procura‑se ain‑da indicar alguns desafios éticos do jornalismo no contexto contemporâneo.

O contexto contemporâneo: as grandes rupturas

No âmbito das disciplinas humanas e sociais, a ideia de modernidade cor‑responde a um dado contexto histórico e sociocultural, caracterizado essen‑cialmente pelo espírito das transformações econômicas que conduziram à ascensão da burguesia e do capitalismo liberal, bem como das mudanças culturais representadas pelo Iluminismo. Buscando assinalar um novo perío‑do histórico, as noções de pós‑modernidade, ou hipermodernidade, enfren‑tam resistências no campo teórico e são objeto de intensos debates, ainda que hoje menos frequentes e acirrados do que já foram no fim do último século. Existiriam rupturas significativas que apontassem à emergência de uma cultura pós ou hipermoderna? Quais são os critérios pertinentes para se demarcar a passagem (se é que ela existe) de uma cultura moderna para uma cultura que, embora constituída tanto por aspectos pré‑modernos quan‑to modernos, parece apresentar algo pregnante de novo, de inédito, a ponto

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asde receber outra denominação? Desde já, importa dizer que se parte do pres‑suposto de que a contemporaneidade é marcada pelos efeitos de importan‑tes rupturas em relação à modernidade, sobre as quais se discorre a seguir, à luz das reflexões de Lyotard (1998), Maffesoli (2010) e Lypovetsky (2004a).

Lyotard (1998) caracteriza a condição pós‑moderna sob a ótica da crise dos (ou da incredulidade em relação aos) “metarrelatos”. Para o autor, a ciência moderna

exerce sobre seu próprio estatuto um discurso de legitimação, chamado filosofia. [....] é assim [...] que a regra do consenso entre o remetente e o destinatário de um enunciado com valor de verdade será tida como aceitável, se ela se inscreve na perspectiva de uma unanimidade possível de mentalidades racionais. (lyotard, 1998, p. 15).

A legitimidade da ciência moderna ancora‑se no grande relato do Iluminismo e, assim, supõe que a legitimação do saber (seu estatuto de verdade) seja fundamentada na razão e no projeto teleológico de emancipação da huma‑nidade. Entretanto, o próprio desenvolvimento das ciências conduziu ao questionamento acerca da validade de seus fundamentos de legitimação como saber verdadeiro. Para responder às questões: “Como provar a prova?” ou “Quem decide sobre o que é verdadeiro?” admite‑se, inicialmente, que “as regras do jogo científico não podem ser estabelecidas de outro modo a não ser [...] [baseadas no] fato delas formarem consenso entre os experts”. (lyotard, 1998, p. 54). Tal pressuposto leva à constatação pós‑moderna de que a ciência “joga seu próprio jogo, ela não pode legitimar os outros jogos de linguagem. Por exemplo, escapa‑lhe o da prescrição. Mas antes de tudo ela não pode mais legitimar a si mesma como o supunha a especulação”. (lyotard, 1998, p. 73).

Nessa direção, a ciência – compreendida como um jogo de linguagem – en‑tra em crise no sentido de prescrever o que é globalmente válido ou deter‑minar uma verdade universal. “O vínculo social é de linguagem [...], mas ele não é constituído de uma única fibra. É uma tecitura [sic] onde se cruzam [...] um número indeterminado de jogos de linguagem que obedecem a regras diferentes.” (lyotard, 1998, p. 73). Em certa medida, a ciência é colocada em paridade com outros jogos de linguagem, como as ideologias, os saberes cotidianos, e as narrativas míticas, perdendo seu estatuto moderno de único conhecimento válido.

Desde uma perspectiva sociológica, Maffesoli (2010) caracteriza a pós‑mo‑dernidade como uma ambiência cultural heterogênea, em que os grandes sistemas explicativos (religiosos, científicos ou ideológicos) encontram‑se saturados e cedem lugar a verdades “locais”, ao mesmo tempo que res‑

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surgem e convivem com valores arcaicos, plurais e mesmo antagônicos. O autor também assinala como traço contemporâneo “a predominância do societal [...] sobre o individual” (MaffeSoli, 2010, p. 223), a vontade dos in‑divíduos de reunirem‑se em grupos por afinidades e de buscarem “um fazer em comum” e “um sentir em comum” (MaffeSoli, 2010, p. 222), embora dis‑tanciados da coerência identitária que teria marcado o indivíduo moderno como pertencente a uma classe social ou a uma agremiação com objetivos racionais e ideários totalizantes. As manifestações a que se aludiu na intro‑dução do texto podem servir de exemplo dessa atual configuração social: mais do que objetivos claramente definidos e projetos racionalmente orien‑tados, mobilizam as pessoas o desejo de estarem juntas e a identificação provisória, emocional.

Nesse contexto, o afetivo, o emotivo e a fruição do presente assumem o pri‑meiro plano da vida social, em detrimento da racionalidade e da busca ou ex‑pectativa de um futuro utópico, a ser construído. Além disso, verifica‑se, “no dia a dia, ser difícil discriminar com certeza o verdadeiro do falso, a ciência da ‘ideologia’” (MaffeSoli, 2010, p. 92), fazendo com que a realidade social seja mais facilmente compreendida a partir de um relativismo sociológico.

Para Lipovetsky, o termo pós‑moderno daria relevo a uma profunda reorgani‑zação do modo de funcionamento das sociedades democráticas avançadas, cujos principais vetores seriam a

rápida expansão do consumo e da comunicação de massa; enfraquecimento das normas autoritárias e disciplinares; surto de individualização; consagração do hedonismo e do psicologismo; perda da fé no futuro revolucionário; [...] sociedades abastadas, livres do peso das grandes utopias futuristas da primeira modernidade. (liPoVetSKy, 2004a, p. 52).

As mudanças que pareciam decretar uma superação da modernidade, porém, seguiriam seu curso, de acordo com o autor, até um ponto em que o contexto sociocultural das democracias avançadas assumisse, nas últimas décadas, um desenho hipermoderno: todos os obstáculos que outrora se interpunham ao projeto moderno perdem força, e o que se constata é a dinâmica hiper‑bólica e irrefreável do consumismo, do individualismo, do desenvolvimento tecnocientífico e da liberalização, tanto econômica quanto comportamental. (liPoVetSKy, 2004a). A lógica dominante é a do excesso, mas também a do paradoxo, uma vez que forças igualmente potentes rivalizam no espaço so‑cial: o culto ao presente lado a lado com a valorização e espetacularização da memória e com o temor em relação ao futuro ameaçado por catástrofes (possíveis e imaginárias) de toda ordem; o recrudescimento da insegurança (terrorismos, colapsos sociais e ambientais) e a sofisticação e o incremento de técnicas de vigilância e controle; a explosão hedonista das festas e das

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asdrogas, o gosto pela aventura e pelo risco acompanhados da obsessão pela segurança e pela saúde; o elogio da hiperatividade produtivista e da eficiên‑cia e os apelos à ociosidade criativa, à fruição do tempo e à espiritualidade.

Nesse cenário, os próprios extremismos são contrabalançados pela busca de equilíbrio, e ao crescimento do pessimismo correspondem novas possibilida‑des de esperança. O quadro cultural contemporâneo assumiria contornos de uma modernidade “de segundo tipo”,

aquela que, reconciliada com seus princípios de base (a democracia, os direitos humanos, o mercado), não tem mais um contramodelo crível e não pára de reciclar em sua ordem os elementos pré‑modernos que outrora eram algo a erradicar. A modernidade da qual estamos saindo era negadora; a supermodernidade é inte‑gradora. Não mais a destruição do passado, e sim sua reintegração, sua reformu‑lação no quadro das lógicas modernas do mercado, do consumo e da individuali‑dade. (liPoVetSKy, 2004a, p. 57‑58).

Na perspectiva do que há de comum, aproximativo ou passível de sinte‑tização entre as ideias aqui apresentadas,4 assumem‑se como aspectos característicos importantes da contemporaneidade: a) crise dos grandes relatos e sistemas explicativos do mundo e a consequente perda de legi‑timidade das ciências – mas também das religiões e ideologias – como produtoras de um saber verdadeiro e universal; b) multiplicidade e he‑terogeneidade de “jogos de linguagem” e o consequente reconhecimen‑to de verdades locais e efêmeras; e c) predomínio da lógica do excesso, da complexidade, da incerteza e do contraditório. Contraditório que se manifesta pelo tensionamento entre tendências paradoxais, tais como: hiperindividualismo e retorno do tribalismo e do societal; avanço da racionalidade tecnocientífica e recrudescimento das pulsões afetivas e emocionais; consolidação das democracias e crise de legitimidade das instituições democráticas modernas (partidos políticos, instâncias de representação e mídia); “presenteísmo” (MaffeSoli, 2010); reciclagem do passado e insegurança quanto ao futuro.

Nessa direção, reflete‑se sobre a questão ética na contemporaneidade.

4 Obviamente, há diferenças não desprezíveis entre o pensamento de cada um dos autores referenciados acerca da caracterização do contexto contemporâneo. Para Lipovetsky (2004a), a pós‑modernidade te‑ria sido um período de curta duração, representado pela ambiência sociocultural da Europa e demais democracias ocidentais desenvolvidas entre as décadas de 60 e 80 (séc. xx). Mais ou menos a partir daí, teria início a hipermodernidade, com traços próprios, distintos. Contudo, mais do que denominar o cenário atual como pós ou hipermoderno, objetiva‑se aqui indicar aspectos e dimensões importantes da contemporaneidade.

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117A ética na contemporaneidade

Na pré‑modernidade, os mitos e as religiões forneciam os fundamentos da ética. Na modernidade, a razão tornou‑se a base da justificação ética, cujo modelo teórico e conceitual é dado pelo imperativo categórico kantiano. No contexto atual, esses fundamentos perdem sua eficácia.

Para Morin (2007), o individualismo que se apresenta como característico da contemporaneidade potencializa as pulsões egocêntricas do sujeito. O autor afirma que o sujeito é constituído por dois princípios antagônicos e complementares: um princípio de inclusão da alteridade (fonte das identida‑des familiar e social, do apego ao outro e do altruísmo) e um princípio de ex‑clusão (fonte da identidade singular, do egocentrismo e do egoísmo). Nesse sentido, ao mesmo tempo que o individualismo é fonte de responsabilidade pessoal, “é também fonte de fortalecimento do egocentrismo. Este se desen‑volve [atualmente] em todos os campos e tende a inibir as potencialidades altruístas e solidárias, o que contribui para a desintegração das comunida‑des tradicionais”. (Morin, 2007, p. 26). Por um lado, a crescente autonomia do indivíduo liberta‑o das amarras de uma moralidade que antes condenava certos comportamentos privados como desviantes ou perversos (adultério, homossexualidade); por outro, a ética torna‑se privatizada e deixa de obede‑cer a modelos normativos sagrados ou comunitários.

Num sentido mais abrangente, Morin (2007) sustenta que os deslocamen‑tos produzidos pela modernidade não conduziram apenas à autonomização do indivíduo, mas também da política, da economia, da ciência e da arte, que passaram a assumir lógicas e valores próprios, independentes de uma ética universal, como aquela imposta pela teologia medieval. A política pas‑sa a obedecer menos a uma ética global e mais à lógica do pragmatismo; a economia, mais aos imperativos do lucro e da eficiência; a arte e as ciências, mais às finalidades próprias de seus campos, respectivamente, a estética pela estética e o conhecimento pelo conhecimento. A crescente especiali‑zação e compartimentação dos saberes e da vida social teriam como uma de suas consequências a fragmentação da responsabilidade e da solida‑riedade, rompendo com as forças de conexão entre os indivíduos e o corpo coletivo. Além disso, a crise dos fundamentos da ética também derivaria de uma “crise geral dos fundamentos da certeza: crise dos fundamentos do co‑nhecimento filosófico, crise dos fundamentos do conhecimento científico”. (Morin, 2007, p. 27).

Lipovetsky (2004b) não vê propriamente uma crise da ética na pós‑moder‑nidade, mas, antes, uma mudança provocada pela radicalização do pro‑cesso moderno de secularização das sociedades. A moral laica, produto

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asda modernidade e fundamentada na razão universal, teria mantido de sua antecessora a moral teológica, as ideias de “dever absoluto” e de “ética do sacrifício”. (liPoVetSKy, 2004b, p. 26). O indivíduo moderno, liberto das obrigações e dos deveres religiosos, passou a servir à família, à nação, à história e/ou aos projetos emancipatórios que animaram o Iluminismo e o Marxismo. Já a cultura contemporânea, ao exaltar o bem‑estar, a satis‑fação do ego e os direitos individuais promoveria uma deslegitimação do dever austero e sacrificial para com a família, a pátria ou as ideologias. Concomitantemente, porém, sobretudo no espaço midiático, cresceriam os apelos à solidariedade e os eventos assistencialistas: “A moral está recicla‑da segundo as leis do espetáculo, do show business, da distração midiáti‑ca.” (liPoVetSKy, 2004b, p. 26).

À ética moderna sacrificial segue‑se uma ética pós‑moderna emocional e es‑petacular. Mas não apenas isso. quanto mais a autonomia individualista é incentivada, os mercados são desregulados, os negócios se orientam pela primazia do lucro e da eficiência a qualquer custo e as velhas referências nor‑mativas e institucionais deixam de exercer sua força, mais os efeitos deleté‑rios dessas tendências se manifestam, produzindo instabilidades e sensação de insegurança crescentes – as quais, por sua vez, fazem frutificar múltiplas iniciativas em favor da ética. (liPoVetSKy, 2004b). Como contrapeso a todos os fenômenos que parecem decretar a morte da ética na contemporaneidade, crescem as preocupações e iniciativas com relação ao combate da desigual‑dade social, à preservação do meio ambiente, ao estabelecimento de uma ética empresarial e de uma ética política, à cooperação e à defesa dos direi‑tos humanos fundamentais. Para o autor (2004b, p. 34), é falso “que não tenhamos mais uma visão comum, que todos os sistemas de valores sejam percebidos como equivalentes, que não sejamos mais capazes de falar com a menor convicção do bem e do mal”.

Retomando a perspectiva de Morin (2007, p. 21), o fortalecimento da ética no contexto contemporâneo exigiria um esforço de “religação”, à medida que “o ato moral é um ato individual de religação: [...] com um outro, [...] com uma comunidade, [...], com uma sociedade e, no limite, [...] com a espécie humana”. Juntar o que foi separado pela modernidade – seja no campo do pensamento, seja no da ação – é o desafio ético que se impõe. Contudo, ainda de acordo com o autor, é preciso reconhecer o princípio da incerteza ética. A intenção de fazer o bem não basta, pois “toda ação escapa, cada vez mais, à vontade do seu autor na medida em que entra no jogo das in‑ter‑retro‑ações do meio onde intervém. Assim a ação corre o risco não so‑mente de fracassar, mas também de sofrer desvio [...] de sentido”. (Morin, 2007, p. 41). Há, portanto, limites quanto à previsibilidade dos efeitos de uma ação, que pode desvirtuar‑se do sentido tencionado pelo autor da ação:

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um comportamento considerado benéfico pode gerar consequências perver‑sas. Apresentam‑se, também, dilemas relacionados a imperativos éticos que se contradizem, quando um bem a um indivíduo próximo pode resultar num mal à coletividade e vice‑versa. Há, ainda, poderosos riscos de ilusão e auto‑engano. Tomar consciência da complexidade da ética, recusar a moralina,5 investir no reconhecimento e na compreensão do outro e de si mesmo, assim como promover esforços no sentido de que a política e as ciências assumam a responsabilidade pelas consequências de suas intervenções no mundo, na perspectiva de uma moral humanista, constituiriam o projeto voltado a recriar os (novos) fundamentos da ética.

Reconhecendo, de um lado, que o individualismo hipermoderno favorece a permissividade e o relativismo de valores, Lipovetsky (2004b) observa, de outro, que essa mesma força pode (e frequentemente o faz) promover a res‑ponsabilidade individual e mesmo social. Ao inegável crescimento do indi‑vidualismo irresponsável, o autor contrapõe as potencialidades de um indi‑vidualismo responsável – desgarrado do modelo rigorista do sacrífico, mas nem por isso desprovido de qualquer regra ou controle. Simultaneamente, destaca a necessidade de pensar a ética no âmbito mais propriamente co‑letivo, no que se refere às instituições políticas, econômicas e científicas. Nesse aspecto, o conhecimento e a inteligência devem ser mobilizados em favor da ética, pois, para além de nobres intenções e das iniciativas de estí‑mulo à solidariedade, mostra‑se necessária “mais inteligência organizacional e política se desejamos realizar, não o bem, mas algo melhor, único objetivo que homens vivendo em sociedade podem, sem exagero, estabelecer para si mesmos”. (liPoVetSKy, 2004b, p. 40).

Pensando com Morin (2007) e Lipovetsky (2004b), é possível dizer que os fundamentos da ética encontram‑se, senão em crise, ao menos em estado de grande debilidade. Ainda que se concorde com Lipovetsky, no sentido de que a ética no contexto contemporâneo não pode ser definida apenas nos termos de um individualismo irresponsável – e as pessoas, os grupos e as organizações que se empenham em promover o respeito pelos direitos hu‑manos, pelo meio ambiente e pela democratização das sociedades estão aí para comprová‑lo – o enfraquecimento dos grandes referenciais normativos da modernidade, assim como a fragmentação do conhecimento e da vida social, operam na direção de um relativismo de valores e de uma crescente incerteza quanto aos critérios que distinguem uma ação ética de uma ação

5 Morin (2007) recupera a distinção de Nietzsche entre moral e moralina. Esta última “julga e condena com base em critérios exteriores ou superficiais de moralidade, apropria‑se do Bem e transforma em oposição entre bem e mal aquilo que, na realidade, não passa de conflito de valores. [...] Substitui a purificação ética pela polêmica e evita o debate pela exclusão dos adversários julgados indignos de refutação”. (Morin, 2007, p. 98).

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asindiferente ou mesmo contrária à ética. Não se trata de lamentar as trans‑formações que a pós‑modernidade produziu nesse nível nem de buscar um retorno aos antigos fundamentos, o que, de resto, não parece possível, mas de questionar quais são as possibilidades da ética – e de que ética se pode falar – no ambiente contemporâneo.

Nessa perspectiva, problematiza‑se a ética jornalística e seus desafios na atualidade. Antes, porém, realizam‑se algumas reflexões críticas sobre as re‑lações entre mídia e democracia, precisamente o âmbito no qual a questão ética no jornalismo assume centralidade.

Mídia, jornalismo e democracia

Do ponto de vista da democracia e da vida social, analisar o modo de atua‑ção e os efeitos das mídias tradicionais, de forma ampla, e de sua produção informativa (jornalística), mais especificamente, significa dar conta de uma multiplicidade de fenômenos e imbricações que não se deixam apreender com facilidade. Procura‑se aqui somente evidenciar, de modo simplificado, algumas reflexões que permitem indicar certo sentido das críticas e teoriza‑ções sobre o jornalismo na contemporaneidade.

Em sua tese clássica, Habermas (2003) já apontava que o jornalismo crítico que outrora permitiu a constituição de uma esfera pública esclarecida foi suprimido por um tipo de jornalismo manipulativo, cooptado por interesses privados e submetido a estratégias diversas de gerenciamento da opinião pública. As empresas jornalísticas que surgiram antes da consolidação do Estado burguês de direito (democrático) tinham um formato artesanal, nas‑ciam normalmente da iniciativa de literatos e homens cultos e, na luta pela liberdade de imprensa, ocupavam‑se mais das polêmicas contra o poder ab‑solutista do que das estratégias de rentabilidade comercial. Eram, portanto, uma das instituições fundamentais da esfera pública burguesa,6 estimulan‑do as trocas argumentativas e os debates críticos entre sujeitos privados so‑bre temas de interesse público. Esse papel teria sido desvirtuado à medida que, consolidados os direitos à liberdade de opinião, as empresas jornalísti‑cas abandonam sua vocação polêmica e começam a priorizar a obtenção de lucro. Ainda, conforme Habermas,

6 A “esfera pública burguesa” (haBerMaS, 2003) constituiu‑se em espaço intermediário entre o Estado e o setor privado da sociedade civil e do domínio íntimo da família burguesa, em que indivíduos privados se reuniam em público para debater entre si assuntos de interesse público.

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o jornal acaba entrando numa situação em que ele evolui para um empreendimen‑to capitalista, caindo no campo de interesses estranhos à empresa jornalística e que permitem influenciá‑la. A história dos grandes jornais [...] demonstra que a pró‑pria imprensa se torna manipulável à medida que ela se comercializa. Desde que a venda da parte redacional está em correlação com a venda da parte dos anúncios, a imprensa, que até então fora instituição de pessoas privadas enquanto público, torna‑se instituição de determinados membros do público enquanto pessoas pri‑vadas – ou seja, pórtico de entrada de privilegiados interesses privados na esfera pública. (2003, p. 217‑218).

A permanência em mãos privadas, que permitiu à imprensa contrapor‑se ao poder despótico do Estado em suas origens, torna‑se justamente aquilo que ameaça as funções críticas do jornalismo, com perda de autonomia das reda‑ções em relação às necessidades comerciais dos empreendimentos midiáti‑cos, à crescente diluição das fronteiras entre notícia e propaganda, à constru‑ção de conteúdos que visam menos a formar cidadãos do que consumidores e à influência progressiva das relações públicas, que tenderiam a conferir aos interesses privados um caráter de interesse público, escondendo suas inten‑ções “sob o papel de alguém interessado no bem comum”. (haBerMaS, 2003, p. 226). As mídias que se popularizaram no século xx (cinema, rádio e televi‑são) teriam reforçado tais tendências à medida que se organizaram na forma de poderosos conglomerados capitalistas. Sob esse viés, o jornalismo contri‑buiria agora para a formação de uma opinião pública fabricada, encenada, uma vez que o consenso da sociedade sobre um tema de interesse geral não seria mais “uma concordância racional de opiniões em concorrência aberta” (haBerMaS, 2003, p. 228), mas antes produto da manipulação orientada por interesses privados privilegiados.

Na perspectiva de sua teoria sobre os campos sociais, Bourdieu (1997) preocupa‑se com as influências que o campo jornalístico (cada vez mais sujeito às exigências do mercado) exerce sobre os próprios jornalistas e de‑mais campos de produção cultural. Segundo o autor, uma das propriedades do campo jornalístico, submetido à sanção dos anunciantes e dos índices de audiência, é a “concorrência pela prioridade, isto é, pelas notícias mais novas” (Bourdieu, 1997, p. 107), como forma de competir pela maior fatia do mercado. Tal propriedade teria como consequência a lógica da velocida‑de, da atualidade e da constante renovação, favorecendo “uma espécie de amnésia permanente que é o avesso negativo da exaltação da novidade e também uma propensão a julgar os produtores e produtos segundo a opo‑sição do ‘novo’ e do ‘ultrapassado’”. (Bourdieu, 1997, p. 107). Outra conse‑quência seria a vigilância sobre a concorrência, com o objetivo de evitar que as empresas jornalísticas concorrentes veiculem notícias e informações exclusivas, beneficiando, paradoxalmente, não a autonomia dos profissio‑nais e a heterogeneidade dos conteúdos difundidos, mas sua uniformidade

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ase homogeneização. Detendo o monopólio7 da divulgação de acontecimentos científicos, artísticos e políticos, o jornalismo tenderia a impor sua lógica comercial – propensa à simplificação e à espetacularização – aos demais campos sociais, uma vez que não há

discurso (análise científica, manifesto público etc.) nem ação (manifestação, greve etc.) que, para ter acesso ao debate público, não deva submeter‑se a essa prova da seleção jornalística, isto é, a essa formidável censura que os jornalistas exer‑cem, sem sequer saber disso, ao reter apenas o que é capaz de lhes interessar, de “prender sua atenção”, isto é, de entrar em suas categorias, em sua grade, e ao relegar à insignificância ou à indiferença expressões simbólicas que mereceriam atingir o conjunto dos cidadãos. (Bourdieu, 1997, p. 67).

Numa análise produzida num contexto mais recente, Lipovetsky (2004b) ad‑mite a influência da mídia sobre a opinião pública e os indivíduos, mas se contrapõe ao tom apocalíptico das análises frankfurtianas ou situacionistas.8 Para ele, os meios de comunicação de massa e o consumo “colocaram em órbita, há meio século, a ‘segunda revolução individualista’, marcada pela falência dos grandes sistemas ideológicos, pela cultura do corpo, do hedonis‑mo, [...] pelo culto à autonomia subjetiva”. (liPoVetSKy, 2004b, p. 70‑71). Nesse sentido, a mídia contribui – mas não determina, pois é apenas uma das for‑ças que se fazem sentir sobre os sujeitos e as coletividades – para a dissolu‑ção das formas tradicionais de sociabilidade, para certa uniformização social quanto aos gostos, às práticas e aos estilos de vida, para o hiperconsumo e a propagação dos “fast foods” filosóficos e culturais. Entretanto, ele nota que “a mídia não consegue controlar e fabricar, peça por peça, os gostos e as reações do público. Estimula‑os, mas não os comanda”. (liPoVetSKy, 2004b, p. 81). Ao mesmo tempo – e aqui o autor faz referência mais específica ao jornalismo – os noticiários e debates jornalísticos dão a conhecer pontos de vista diversos, disponibilizando para o público esclarecimentos sobre ques‑tões políticas, sociais e culturais, bem como promovendo a multiplicação dos valores de referência. O espírito crítico dos cidadãos não desapareceria por influência dos meios; antes, haveria uma emancipação em relação ao pen‑samento monolítico das Igrejas e dos partidos políticos, ajudando a formar indivíduos mais autônomos e a fazer a passagem de uma “democracia de partidos para uma ‘democracia de público’, baseada num midialiberalismo”. (liPoVetSKy, 2004b, p. 81).

7 Não se pode mais sustentar que o campo jornalístico detém o monopólio da divulgação de aconte‑cimentos, embora mantenha posição privilegiada no sentido de dar visibilidade aos mesmos. Essa questão será problematizada a seguir.

8 Segundo Lipovetsky (2004b, p. 67), a “Escola de Frankfurt estigmatizou as indústrias culturais, que transformam obras de arte em produtos de consumo. Viu na mídia uma fábrica de estereótipos a ser‑viço da consolidação do conformismo, da justificação da ordem estabelecida, do desenvolvimento da ‘falsa consciência’ e da asfixia do espaço público da discussão. Os situacionistas denunciaram a comu‑nicação unilateral que destrói a comunidade, isolando os indivíduos”.

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Os pontos de vista aqui evidenciados de forma resumida merecem algumas considerações. Habermas (2003) constrói uma crítica bastante animada pelo espírito da modernidade: sua afirmação de um “interesse geral”, baseado num consenso racional, do qual o jornalismo deveria colocar‑se a serviço, assume um sentido perfeitamente iluminista. Pode‑se reter sua preocupação acerca da perda de autonomia e de potencial crítico que o jornalismo praticado no âmbito dos grandes empreendimentos midiáticos nascidos no século xx sofrem ante as crescentes exigências de sobrevivência econômica e lucratividade. Em ou‑tros termos: até que ponto é possível que esse modelo de jornalismo, ainda do‑minante, contribua para esclarecer os cidadãos e fortalecer o espaço público, as democracias e um horizonte coletivo de deliberação? Entretanto, a ideia de um interesse público baseado num consenso não parece encontrar mais sus‑tentação, num contexto em que a alternativa mais justa passa pelo “reconhe‑cimento da heterogeneidade dos jogos de linguagem”, através de consensos “locais”, “limitados no espaço‑tempo”. (lyotard, 1998, p. 118‑119).

Bourdieu (1997), ao analisar o jornalismo como campo social, embora tam‑bém preocupado com a submissão de profissionais e organizações da mídia às demandas mercadológicas, ressalta a interferência jornalística em outros campos (científico, artístico, político), na medida em que detém o monopólio sobre a divulgação dos acontecimentos e, assim, consegue impor suas pró‑prias lógicas a esses campos, que tendem a perder sua autonomia. Os efeitos desse fenômeno seriam a simplificação, a espetacularização, o sensaciona‑lismo e a obsessão pelo novo, inédito ou atual. Considerando que o conceito de campo social implica uma ideia de conflito permanente entre agentes que ocupam diferentes posições (de dominantes ou dominados) dentro do campo, certamente a análise bourdiana deixa espaço para possibilidades de transfor‑mação do jornalismo, a partir de valores e condutas profissionais que, se hoje são periféricos, amanhã podem adquirir centralidade. O que se pode questio‑nar é: Até que ponto o jornalismo produzido pelas mídias convencionais ainda detém o monopólio da divulgação dos fatos e suas interpretações?

O texto aqui referenciado foi produzido num contexto em que as mais re‑centes TICs (internet, de modo amplo, e mídias sociais, de modo particular) ainda não tinham demonstrado sua potência como ambiente para debate público. A título de exemplo, retoma‑se aqui a referência à onda de protestos que atingiu o Brasil, em junho de 2013, quando diferentes versões sobre os acontecimentos ganharam visibilidade na internet, inclusive versões que se opunham francamente ao registro dos fatos pelas mídias tradicionais. Nesse sentido, a ideia de influência do jornalismo sobre outros campos sociais, ain‑da que válida, sobretudo considerando‑se que o acesso às tecnologias digi‑tais é bem mais restrito do que o acesso às mídias convencionais, deve ser flexibilizado: o referido monopólio foi quebrado.

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asCom relação à Lipovetsky (2004b), cuja análise não se limita ao jornalismo, mas inclui a mídia de forma ampla (publicidade, ficção, etc.), importa aten‑tar para a recusa de uma visão simplificadora, a partir da qual os meios de comunicação de massa teriam influência ilimitada na sociedade e produzi‑riam efeitos sempre deletérios à democracia. Sabe‑se que outras instâncias, como a família e a escola, rivalizam com a mídia na formação do sujeito, tendo maior ou menor peso, conforme cada contexto ou situação. Também é pertinente observar que as mídias – e, especificamente, o jornalismo – não operam em sentido único: simplificam, mas também ampliam (massificam) o conhecimento sobre temas socialmente relevantes; estimulam o hiperconsu‑mo, mas também colocam em cena questões que reclamam a participação cidadã; enfatizam mais a lógica do individualismo do que a lógica do coletivo, mas também informam sobre a vida pública e tendem a fazer a defesa dos direitos humanos fundamentais e dos valores democráticos.

Ao mesmo tempo que a proposta do autor no sentido de uma análise mais equilibrada é necessária, cumpre perguntar: Até que ponto essas tendências contraditórias da mídia manifestam‑se com a mesma força, ou seja, em que medida sua contribuição para a qualificação da vida pública e democrática de fato serve como contrapeso às suas características menos afinadas com um compromisso cívico? A concordar com parte das críticas de Habermas e Bourdieu – o jornalismo está sujeito aos interesses dos anunciantes e da au‑diência e, como locus privilegiado de visibilidade, tende a impor suas lógicas a outros campos sociais, lógicas essas que obedecem mais à necessidade do espetáculo do que aos imperativos de uma democracia esclarecida – é possível compreender por que a credibilidade do jornalismo se apresenta de‑bilitada. A partir disso, retoma‑se a reflexão sobre a questão da ética, agora desde a ótica do campo jornalístico.

desafios do jornalismo na contemporaneidade: para além de uma ética mínima

Para problematizar a ética no âmbito do jornalismo contemporâneo, princi‑pia‑se a discussão fazendo menção a um nível normativo mínimo a respeito das práticas atinentes ao campo. A referência, aqui, é a algo semelhante ao nível da “ética absoluta” que Lipovetsky (2004b) propõe para pensar a ética nas empresas. Segundo o autor, seria possível estabelecer uma caracteri‑zação da ética empresarial em três níveis: o facultativo (normas ou valores opcionais), o indeterminado (prescrições cuja validade moral é incerta e não pode ser generalizada) e o absoluto (prescrições obrigatórias, incondicionais e invioláveis). Na perspectiva desse último nível, como pensar a ética jornalís‑

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tica? Que valores normais e prescrições seriam obrigatórios para a profissão e as organizações que atuam no campo?

Ainda que a contemporaneidade se caracterize pelo reconhecimento de múl‑tiplos jogos de linguagem e pela ideia de verdades locais e efêmeras, o que talvez complique um dos mais importantes princípios deontológicos do jor‑nalismo – “dizer a verdade” – é possível estabelecer como prescrição míni‑ma obrigatória que o jornalismo não pode inventar fatos, fontes ou declara‑ções. Está certo, a realidade é sempre produto de construção social (Berger; lucKMann, 2009), e a objetividade nos termos delineados pelo positivismo (e pelo senso comum jornalístico) resulta impossível. A notícia mais factual irá carregar as marcas da subjetividade de seu produtor e do contexto cultural e institucional no qual é produzida: modos de seleção, hierarquização e en‑quadramento dos fatos produzem possibilidades interpretativas e discursos distintos sobre o mesmo fato. Porém, em nível concreto, ainda faz sentido distinguir realidade de ficção. Por exemplo, não há discurso ou interpretação “verdadeiros” sobre os protestos de junho de 2013, no Brasil, mas, concre‑tamente, eles não podem ser considerados ficção. Do ponto de vista de uma ética jornalística mínima, um jornal ou uma emissora de televisão poderia apresentar diferentes versões sobre as manifestações, mas não poderia afirmar que elas não ocorreram, por exemplo, mostrando imagens de uma Avenida Paulista9 vazia para retratar o momento em que milhares de pessoas ocupavam aquele espaço.

Também se pode circunscrever, numa ética jornalística mínima e obrigatória, a prescrição de divulgar e dar visibilidade a toda informação cujo desconhe‑cimento por parte do público contribua para colocar em risco a vida, a saúde ou a segurança das pessoas. Por exemplo, informações sobre contamina‑ções ambientais, produtos adulterados ou perigosos, doenças transmissíveis e outras ameaças à saúde e à segurança dos indivíduos ou do ecossistema. Nesse sentido, a omissão de uma empresa jornalística acerca de um fato que pode produzir consequências desse tipo, motivada por interesses priva‑dos ou comerciais (proteger um anunciante, por exemplo), seria intolerável. Do mesmo modo que a omissão a respeito de acontecimentos que atentem contra a lei e contra a dignidade humana, tais como: atos de racismo, abuso de poder, violência, corrupção, fraudes na Administração Pública, desvio de recursos públicos, danos ao meio ambiente proibidos pela legislação, entre outros. Aqui, ainda é possível pensar em consenso acerca do que é de inte‑resse público: como bem observa Lipovetsky (2004b), apesar das rupturas morais da pós‑modernidade, ainda resiste uma visão ética comum acerca de valores mínimos historicamente consagrados.

9 Epicentro dos protestos em São Paulo (SP).

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asEstabelecer uma ética mínima, contudo, não parece suficiente para garantir ao jornalismo um lugar relevante na democratização da esfera pública e no desenvolvimento da cidadania, ainda que o jornalismo assuma um papel mais modesto em relação àquele que lhe foi atribuído na modernidade. Primeiro, porque não parece haver polêmica quanto a essas prescrições: pode‑se dizer que elas são consensuais no campo, ao menos em nível discursivo. Segundo, porque a invenção deliberada de acontecimentos e a omissão sobre fatos de forte impacto social são cada vez menos uma alternativa viável para as gran‑des organizações midiáticas. Os novos ambientais digitais de comunicação e informação, ao retirarem o monopólio das mídias tradicionais sobre a divulga‑ção de informações, tornam o controle sobre as mesmas cada vez mais difícil e improvável. Assim, antes de constituir um dever ético, as prescrições até aqui mencionadas apresentam‑se como garantia mínima de legitimidade e sobrevivência do jornalismo e dos meios convencionais de comunicação, que atualmente lutam para manter seu principal capital simbólico (a credibilida‑de), num momento em que o acesso a fontes independentes de informação é cada vez mais amplo e facilitado. Sob essa ótica, como ir além de uma ética mínima, capaz de renovar o papel do jornalismo na contemporaneidade?

Em primeiro lugar, é preciso que o jornalismo invista numa “ética da com‑preensão”. (Morin, 2007). Compreensão do próprio jornalismo e compreen‑são dos outros a respeito de quem o jornalismo publica histórias e relatos. O diálogo entre o campo da pesquisa em comunicação e o mercado de trabalho do jornalismo é quase inexistente: de um lado, as empresas e profissionais da mídia tendem a considerar a produção teórica do campo pouco útil, exage‑radamente crítica ou mesmo utópica; de outro, a academia tende a desqua‑lificar a produção jornalística e a perceber eventuais demandas de pesquisa vindas do mercado como demasiado instrumentais. O fortalecimento do diálo‑go entre teoria, pesquisa e prática profissional no jornalismo afigura‑se como essencial para pensar, inclusive, nas incertezas éticas ou no nível indetermi‑nado da ética, que se apresenta como problemático para o campo. Até que ponto o imperativo jornalístico de divulgar informações de relevância pública coloca‑se acima de outros imperativos, como o respeito à privacidade, à dig‑nidade humana e mesmo à vida? É, por exemplo, defensável que se priorize a captura de imagens em detrimento da ação capaz de salvar uma vida, como no caso do fotógrafo que deixa de prestar socorro a uma vítima de incêndio, inundação ou violência para conseguir registrar o fato? É moralmente aceitá‑vel que um jornalista investigativo obtenha dados e declarações sem que as pessoas com quem interage no curso da investigação saibam que se trata de um profissional da mídia? É ético publicar declarações ou gravar imagens sem o consentimento das fontes? É legítimo que se constitua um organismo fisca‑lizador (como um conselho) para avaliar a produção informativa das mídias ou tal projeto materializaria uma forma de censura? Perguntas como essas

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ainda situam‑se na zona nebulosa da ética jornalística, demonstrando que um esforço de autocompreensão do campo é necessário. Esforço esse que não passa apenas pelo aprofundamento do diálogo entre academia e mercado, mas, inclusive, pela criação de instâncias de discussão sobre as práticas e os produtos jornalísticos nas próprias organizações midiáticas.

Com relação à compreensão da alteridade, a informação midiática – que ten‑de a contribuir mais com a moralina do que com o entendimento complexo dos fatos que reporta – deve ser produto de um esforço permanente para conjugar explicação e compreensão subjetiva. A explicação

obtém, reúne e articula dados e informações objetivos relativos a uma pessoa, um comportamento, uma situação, [fornecendo] as causas e determinações necessá‑rias a uma compreensão objetiva capaz de integrar tudo isso numa apropriação global. (Morin, 2007, p. 112).

Já a compreensão subjetiva “permite, por mimesis (projeção‑identificação) compreender o que vive o outro, seus sentimentos, motivações interiores, so‑frimentos, desgraças”. (Morin, 2007, p. 112). Essa conjugação de explicação e compreensão subjetiva, ao atentar para as condições psíquicas, culturais, sociais e históricas dos atores envolvidos num dado acontecimento, pode funcionar como antídoto para a superficialidade e a simplificação de que o jornalismo frequentemente é acusado.10

Em segundo lugar, uma ética jornalística sincronizada com a contemporanei‑dade deve reconhecer a heterogeneidade dos jogos de linguagem, a plurali‑dade de valores e a dificuldade de se estabelecerem verdades absolutas que caracterizam, conforme se salientou, o atual contexto histórico. Pode‑se con‑cordar com Lipovetsky (2004b) no sentido de que há acordos mínimos com relação à aceitação da democracia, da liberdade de opinião e dos direitos humanos como valores invioláveis, fundamentais. Afora isso, porém, o que se tem é uma pletora de discursos e valores em disputa, uma multiplicidade de sujeitos com distintas marcas sociais e culturais que emergem no espaço pú‑blico dando voz e sentido a demandas as mais diversas (questões de gênero, sexualidade, etnia, juventude, religiosidade, meio ambiente, inclusão social, regulação econômica, etc.). Uma vez que a religião, a Ciência, o Estado e as grandes ideologias enfraqueceram‑se como lugar de autoridade (autoridade de saber, autoridade normativa), cumpre ao discurso informativo das mídias dar voz a outros atores que entraram na cena pós‑moderna. Nesse ponto, o jornalismo produzido no âmbito das mídias convencionais permanece dema‑

10 “Falta‑nos [compreensão complexa] no mundo da informação midiática em que, como imagina Alain de Botton, as manchetes de jornal diriam de Otelo: ‘Um imigrante louco de ciúme mata a filha de um senador’; de édipo rei: ‘Monarca envolvido num escândalo de incesto’; de Madame Bovary: ‘Mulher adúltera, consumista obsessiva, afogada em dívidas, toma arsênico’.” (Morin, 2007, p. 113‑114).

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assiado “moderno”, dando ênfase às fontes institucionais e aos especialistas, legitimados por certo conceito de “fontes credíveis” que ainda constitui a percepção do campo. Nesse sentido, a qualificação da ética jornalística tam‑bém implica que a notícia incorpore a visão dos movimentos sociais e dos sujeitos marginalizados, dando pluralidade ao discurso usualmente construí‑do na perspectiva das autoridades públicas, políticas, científicas, culturais, empresariais e eclesiásticas.

Em terceiro lugar, importa atentar também para a preocupação bourdiana com as “expressões simbólicas” de outros campos sociais (científico, artís‑tico), que não encontram espaço no campo jornalístico por não se subme‑terem às lógicas do novo, do interessante ou do facilmente compreendido. Parece evidente que não cabe ao jornalismo fazer ciência nem Arte, e, nessa direção, torna‑se inevitável certa simplificação das expressões culturais de outros campos, se se quiser garantir a comunicabilidade de tais expressões para o público amplo. O jornalismo tem rotinas produtivas, necessidades e categorias próprias das quais não pode sempre abrir mão, inclusive sob pena de perder sua própria autonomia. Além disso, convém salientar que a tendên‑cia ao espetáculo, embora potencializada pela mídia, é mais amplamente um fenômeno que atravessa todas as esferas da vida social, como se pode depreender das teses de Debord (1997). Entretanto, a criação ou ampliação de espaços e formatos em que a velocidade e o espetacular não sejam prio‑ridade, bem como o investimento em grandes reportagens, podem contribuir para que reflexões menos digeríveis ganhem visibilidade midiática e passem a integrar o repertório de temas agendados pelo jornalismo.

Cabe observar que uma ética assim fundamentada não depende apenas da disposição das empresas e dos profissionais, uma vez que envolve ainda o problema do financiamento. Habermas e Bourdieu, conforme se ressaltou aqui, mostram que os interesses comerciais assumem centralidade nas em‑presas jornalísticas, as quais, como empreendimentos capitalistas privados, não podem se furtar à luta pelos índices de audiência e por anunciantes, ignorando a necessidade de garantir e incrementar os lucros. Do ponto de vista prático e operacional, um jornalismo baseado na compreensão com‑plexa de si mesmo e dos acontecimentos, na atenção à multiplicidade de vozes que emergem no espaço público e na ampliação de formatos menos ortodoxos requer que as empresas tenham mais profissionais, e que os mes‑mos sejam mais qualificados, bem como implica que a estrutura técnica de cobertura seja ampliada. Tudo isso é necessário para que o jornalismo não se cristalize num formato “de gabinete”, limitado a (e dependente de) re‑leases e outros insumos informativos produzidos por assessorias e fontes institucionais organizadas segundo interesses e estratégias de visibilidade e construção de imagem. (Sartor, 2011). Mas tudo isso também demanda

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alto investimento financeiro por parte das empresas jornalísticas, num mo‑mento em que a rentabilidade das mesmas tende a ser reduzida por conta da perda de anunciantes, assinantes, compradores e/ou audiência. De ou‑tro lado, um tipo de financiamento estatal também se mostra problemático, pois, ainda que se reforce o caráter público (não governamental) de veículos mantidos pelo Estado, sempre há o risco de que a ingerência dos governos e a intrusão de interesses político‑partidários enfraqueçam a autonomia dos jornalistas. Alguns modelos novos de financiamento (dentro e fora das gran‑des organizações midiáticas) estão sendo testados, como as novas formas de comercialização da notícia,11 o financiamento coletivo de reportagens12 e as fundações13 destinadas à produção informativa. De qualquer modo, o jornalismo – ao lado de outras instituições democráticas nascidas na mo‑dernidade – luta para adaptar‑se aos tempos pós‑modernos. E, nessa luta, o desafio de construir uma ética renovada parece incontornável.

Referências

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BOURDIEU, Pierre. sobre a televisão. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

HABERMAS, Jürgen. mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

LYOTARD, Jean‑François. A condição pós‑moderna. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1998.

LIPOVETSKY, Gilles. os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004a.

LIPOVETSKY, Gilles. metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia, empresa. Porto Alegre: Sulina, 2004b.

MAFFESOLI, Michel. o conhecimento comum: introdução à sociologia compreensiva. Porto Alegre: Sulina, 2010.

MORIN, Edgar. Método 6: ética. Porto Alegre: Sulina, 2007.

11 O the new york times, por exemplo, implementou uma nova estratégia de negócios em abril de 2013, a partir de sua plataforma online, por meio da qual assinantes podem acessar todo conteúdo, as principais notícias ou mesmo conteúdos específicos, de acordo com diferentes planos de assinatura. Estratégia semelhante foi adotada por outros jornais brasileiros, como a folha de são Paulo.

12 O chamado crowdfunding – plataforma de financiamento coletivo ou colaborativo para viabilizar proje‑tos, entre os quais projetos de produção de reportagens.

13 Organizações baseadas num modelo de jornalismo sem fins lucrativos, mantidas por apoiadores diver‑sos. No Brasil, exemplo desse tipo de fundação é a agência de notícias Pública. Disponível em <www.apublica.org>.

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asSARTOR, Basílio A. jornalismo e comunicação organizacional em diálogo: imagens da assessoria de imprensa e interações entre fontes, assessores e jornalistas. 2011. Dissertação (Mestrado) – UFRGS, Porto Alegre, 2011.

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