Memórias Forca e Farsas

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Eça de Queirós

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Arcdia

1

MEMRIAS DE UMA FORCA

Foi por um modo sobrenatural que eu tive conhecimento deste papel, onde uma pobre forca apodrecida e negra dizia alguma coisa da sua histria. Esta forca intentava escrever as suas trgicas Memrias. Deviam ser profundos documentos sobre a vida. rvore, ningum sabia to bem o mistrio da natureza; forca, ningum conhecia melhor o homem. Nenhum to espontneo e verdadeiro como o homem que se torce na ponta de uma corda a no ser aquele que lhe carrega sobre os ombros! Infelizmente, a pobre forca apodreceu e morreu.

Entre os apontamentos que deixou, os menos completos so estes que copio resumo das suas dores, vaga aparncia de gritos instintivos. Pudesse ela ter escrito a sua vida complexa, cheia de sangue e de melancolia! tempo de sabermos, enfim, qual a opinio que a vasta natureza, montes, rvores e guas, fazem do homem imperceptvel. Talvez este sentimento me leve ainda algum dia a publicar papis que guardo avaramente, e que so as Memrias de um tomo e os Apontamentos de Viagem de Uma Raiz de Cipreste.

F-lo-ei se a vasta matria que reparte a vida do corpo o consentir, do que duvido, felizmente.

Diz assim o fragmento que eu copio e que simplesmente o prlogo das Memrias:

Sou duma antiga famlia de carvalhos, raa austera e forte que j na Antiguidade deixava cair, dos seus ramos, pensamentos para Plato. Era uma famlia hospitaleira e histrica: dela tinham sado navios para a derrota tenebrosa das ndias, contos de lanas para os alucinados das Cruzadas, e vigas para os tectos simples e perfumados que abrigaram Savonarola, Espinosa e Lutero. Meu pai, esquecido das altas tradies sonoras e da sua herldica vegetal, teve uma vida inerte, material e profana. No respeitava as nobres morais antigas, nem a ideal tradio religiosa, nem os deveres da histria. Era uma rvore materialista. Tinha sido pervertida pelos enciclopedistas da vegetao. No tinha f, nem alma, nem Deus! Tinha a religio do Sol, da seiva e da gua. Era o grande libertino da floresta pensativa. No Vero, enquanto sentia a fermentao violenta das seivas, cantava movendo-se ao sol, acolhia os grandes concertos de pssaros bomios, cuspia a chuva sobre o povo curvado e humilde das ervas e das plantas e, de noite, enlaado pelas heras lascivas, ressonava sob o silncio sideral. Quando vinha o Inverno, com a passividade animal dum mendigo, erguia, para a impassvel ironia do azul, os seus braos magros e suplicantes!

Por isso ns os seus filhos, no fomos felizes na vida vegetal. Um dos meus irmos foi levado para ser tablado de palhaos: ramo contemplativo e romntico, ia, todas as noites, ser pisado pela chufa, pelo escrnio, pela farsa e pela fome! O outro ramo, cheio de vida, de sol, de poeira, spero solitrio da vida, lutador dos ventos e das neves, forte e trabalhador, foi arrancado dentre ns, para ir ser tbua de esquife! Eu, o mais lastimvel, vim a ser forca!

Desde pequeno fui triste e compassivo. Tinha grandes intimidades na floresta. Eu s queria o bem, o riso, a dilatao salutar das fibras e das almas. O orvalho de que a noite me banhava, atirava-o a umas pobres violetas, que viviam por debaixo de ns, doces raparigas lutuosas, melancolias condensadas e vivas da grande alma silenciosa da vegetao. Agasalhava todos os pssaros na vspera dos temporais. Era eu quem asilava a chuva. Ela vinha, com os cabelos esguedelhados, perseguida, mordida, retalhada pelo vento! Eu abria-lhe as ramagens e as folhas, e escondia-a ali, ao calor da seiva. O vento passava, confundido e imbecil. Ento a pobre chuva, que o via longe, assobiando lascivo, deixava-se escorregar silenciosamente pelo tronco, gota por gota, para o vento a. no perceber; e ia, de rastos, por entre a erva, acolher-se vasta me gua! Tive por esse tempo uma amizade com um rouxinol, que vinha conversar comigo durante as longas horas consteladas do silncio. O pobre rouxinol tinha uma pena de amor! Tinha vivido num pas distante, onde os noivados tm mais moles preguias: l se enamorara: comigo chorava em suspiros lricos. E to mstica pena era que me disseram que o triste, de dor e de desesperana, se deixara cair na gua!

Pobre rouxinol! Ningum to amante, to vivo e to casto! Dorme na sepultura errante da gua, entre o lodo de todos. Eu queria proteger todos os que vivem. E quando as raparigas do campo vinham para junto de mim chorar, eu erguia sempre as minhas ramagens, como dedos, para apontar pobre alma aflita de lgrimas todos os caminhos do Cu!

Nunca mais! Nunca mais, verde mocidade distante!

Enfim, eu tinha de entrar na vida da realidade. Um dia, um daqueles homens metlicos que fazem o trfico da vegetao, veio arrancar-me rvore. No sabia eu o que me queriam. Deitaram-me sobre um carro e, ao cair da noite, os bois comearam a caminhar, enquanto ao lado um homem cantava no silncio da noite. Eu ia ferido e desfalecido. Via as estrelas com os seus olhares lancinantes e frios. Sentia-me separar da grande floresta. Ouvia o rumor gemente, indefinido e arrastado das rvores. Eram vozes amigas que me chamavam!

Por cima de mim voavam aves imensas. Eu sentia-me desfalecer, num torpor vegetal, como se estivesse sendo dissipado na passividade das coisas. Adormeci. Ao amanhecer, amos entrando numa cidade. As janelas olhavam-me com olhos ensanguentados e cheios dum sol irado. Eu s conhecia as cidades pelas histrias que delas contavam as andorinhas, nos seres sonoros da espessura. Mas como ia deitado e amarrado com cordas, apenas via os fumos e um ar opaco. Ouvia o rumor spero e desafinado, onde havia soluos, risos, bocejos, e mais o surdo roar da lama, e o tinido sombrio dos metais. Eu sentia enfim o cheiro mortal do homem! Fui arremessado para um ptio infecto, onde no havia o azul e o ar. Comecei ento a compreender que uma grande imundcie cobre a alma do homem, porque ele se esconde tanto das vistas do Sol!

Uns homens vieram, que me deram desprezivelmente com os ps. Eu estava num estado de torpor e de materialidade, que nem sentia as saudades da ptria vegetal. Ao outro dia, um homem veio para mim e deu-me golpes de machado. No senti mais nada. Quando voltei a mim, ia outra vez amarrado no carro, e pela noite um homem aguilhoava os bois, cantando. Senti lentamente renascer a conscincia e a vitalidade. Parecia-me que eu estava transformado numa outra vida orgnica. No sentia a magntica fermentao da seiva, a energia vital dos filamentos e a superfcie viva das cascas. Em redor do carro iam outros homens, a p. Sob a brancura silenciosa e compassiva da Lua, tive uma saudade infinita dos campos, do cheiro dos fenos, das aves, de toda a grande alma vivificadora de Deus, que se move entre a ramagem. Eu sentia que ia para uma vida real, de servio e de trabalho. Mas qual? Tinha ouvido falar das rvores, que vo ser lenha, aquecem e criam, e, tomando entre a convivncia do homem a nostalgia de Deus, lutam com os seus braos de chamas para se desprender da terra: essas dissipam-se na augusta transfigurao do fumo, vo ser nuvens, ter a intimidade das estrelas e do azul, viver na serenidade branca e altiva dos imortais, e sentir os passos de Deus!

Eu tinha ouvido falar das que vo ser vigas da casa do homem: essas, felizes e privilegiadas, sentem na penumbra amorosa a doce fora dos beijos e dos risos; so amadas, vestidas, lavadas; encostam-se a elas os corpos dolorosos dos Cristos, so os pedestais da paixo humana, tm a alegria imensa e orgulhosa dos que protegem; e risos. das crianas, ais namorados, confidncias, suspiros, elegias da voz, tudo o que lhes faz lembrar as murmuraes da gua, o estremecimento das folhas, as cantigas dos ventos toda essa graa escorre sobre elas, que j gozaram a luz da matria, como uma imensa e bondosa luz da alma.

Eu tinha ouvido falar tambm das rvores de bom destino, que vo ser mastro de navio, sentir o cheiro da maresia e ouvir as legendas do temporal, viajar, lutar, viver, levadas pelas guas, atravs do infinito, entre surpresas radiosas como almas arrancadas do corpo que fazem pela primeira vez a viagem do Cu!

Que iria eu ser?... Chegmos. Tive ento a viso real do meu destino. Eu ia ser forca!

Fiquei inerte, dissolvida na aflio. Ergueram-me. Deixaram-me s, tenebrosa, num campo. Tinha, enfim, entrado na realidade pungente da vida. O meu destino era matar. Os homens, cujas mos andam sempre cheias de cadeias, de cordas e de pregos, tinham vindo aos carvalhos austeros buscar um cmplice! Eu ia ser a eterna companheira das agonias. Presos a mim, iam balouar-se os cadveres, como outrora as verdes ramagens orvalhadas!

Eu ia dar esses negros frutos: os mortos!

O meu orvalho seria de sangue. Ia escutar para sempre, eu a companheira dos pssaros, doces tenores errantes, as agonias soluantes, os gemidos de sufocao! As almas ao partir, rasgar-se-iam nos meus pregos. Eu, a rvore do silncio e do mistrio religioso, eu, cheia de augusta alegria orvalhada e dos salmos sonoros da vida, eu, que Deus conhecia por boa consoladora, havia de mostrar-me s nuvens, ao vento, aos meus antigos camaradas puros e justos, eu, a rvore viva dos montes, de intimidade com a podrido, de camaradagem com o carrasco, sustentando alegremente um cadver pelo pescoo, para os corvos o esfarraparem!

E isto ia ser! Fiquei hirta e impassvel como nas nossas florestas os lobos, quando se sentem morrer.

Era a aflio. Eu via ao longe a cidade coberta de nvoa.

Veio o sol. Em roda de mim comeou a juntar-se o povo. Depois, atravs dum desfalecimento, senti o rudo de msicas tristes, o rumor pesado dos batalhes, e os cantos dolentes dos padres. Entre dois crios, vinha um homem lvido. Ento, confusamente, como nas aparncias inconscientes do sonho, senti um estremecimento, uma grande vibrao elctrica, depois a melodia monstruosa e arrastada do canto catlico dos mortos!

Voltou-me a conscincia.

Estava s. O povo dispersava-se e descia para os povoados. Ningum! A voz dos padres descia lentamente, como a ltima gua duma mar. Era o fim da tarde. Vi. Vi livremente. Vi! Dependurado de mim, hirto, esguio, com a cabea cada e deslocada, estava o enforcado! Arrepiei-me!

Eu sentia o frio e a lenta ascenso da podrido. Ia ficar ali, de noite, s, naquele descampado sinistro, tendo nos braos aquele cadver! Ningum!

O sol ia-se, o sol puro. Onde estava a alma daquele cadver? Tinha passado j?

Tinha-se dissipado na luz, nos vapores, nas vibraes? Eu sentia os passos tristes da noite, que vinha. O vento empurrava o cadver, a corda rangia.

Eu tremia, numa febre vegetal, dilacerante e silenciosa. No podia ficar ali s. O vento levar-me-ia, atirando-me, aos pedaos, para a antiga ptria das folhas. No. O vento era brando: quase somente a respirao da sombra! Tinha vindo ento o tempo em que a grande natureza, a natureza religiosa, era abandonada s feras humanas? Os carvalhos j no eram, pois, uma alma? Podiam, com justia, vir o machado e as cordas buscar os ramos criados pela seiva, pela gua e pelo sol, trabalho suado da natureza,. forma resplandecente da inteno de Deus, e lev-los para as impiedades, para os tablados da forca onde apodrecem as almas, para os esquifes onde apodrecem os corpos? E as ramagens puras, que foram testemunhas das religies, j no serviam seno para executar as penalidades humanas? Serviam s para sustentar as cordas, onde os saltimbancos bailam, e os condenados se torcem? No podia ser.

Pesava sobre a natureza uma fatalidade infame. As almas dos mortos, que sabem o segredo e compreendem a vegetao, achariam grotesco que as rvores, depois de terem sido colocadas por Deus na floresta com os braos estendidos, para abenoar a terra e a gua, fossem arrastadas para as cidades, e obrigadas, pelo homem, a estender o brao da forca para abenoar os carrascos!

E depois de sustentarem os ramos de verdura que so os fios misteriosos, mergulhados no azul, por onde Deus prende a terra fossem sustentar as cordas da forca, que so as fitas infames, por onde o homem se prende podrido! No! se as razes dos ciprestes contassem isto em casa dos mortos faziam estalar de riso a sepultura!

Assim falava eu na solido. A noite vinha lenta e fatal. O cadver balouava-se ao vento. Comecei a sentir palpitaes de asas. Voavam sombras por cima de mim.

Eram os corvos. Pousaram. Eu sentia o roar das suas penas imundas; afiavam os bicos no meu corpo; penduravam-se, ruidosos, cravando-me as garras.

Um pousou no cadver e ps-se a roer-lhe a face! Solucei dentro de mim. Pedi a Deus que me apodrecesse subitamente. Era uma rvore das florestas a quem os ventos falavam! Servia agora para afiar os bicos dos corvos, e para que os homens dependurassem de mim os cadveres, como vestidos velhos de carne, esfarrapados! Oh! meu Deus! soluava eu ainda eu no quero ser relquia de tortura: eu alimentava, no quero aniquilar: era a amiga do semeador, no quero ser a aliada do coveiro! Eu no posso e no sei ser a Justia. A vegetao tem uma augusta ignorncia: a ignorncia do sol, do orvalho e dos astros. Os bons, os anglicos, os maus so os mesmos corpos inviolveis, para a grande natureza sublime e compassiva. meu Deus, liberta-me deste mal humano to aguado e to grande, que se traspassa a si, atravessa de lado a lado a natureza, e ainda te vai ferir, a ti, no Cu! Oh! Deus, o cu azul, todas as manhs, me dava os orvalhos, o calor fecundo, a beleza imaterial e fluida da brancura, a transfigurao pela luz, toda a bondade, toda a graa, toda a sade: no queiras que, em compensao, eu lhe mostre, amanh, ao seu primeiro olhar, este cadver esfarrapado!

Mas Deus dormia, entre os seus parasos de luz. Vivi trs anos nestas angstias.

Enforquei um homem um pensador, um poltico, filho do Bem e da Verdade, alma formosa cheia das formas do ideal, combatente da Luz. Foi vencido, foi enforcado.

Enforquei um homem que tinha amado uma mulher e tinha fugido com ela. O seu crime era o amor, que Plato chama mistrio, e Jesus chamou lei. O cdigo puniu a fatalidade magntica da atraco das almas, e corrigiu Deus com a forca!

Enforquei tambm um ladro. Este homem era tambm operrio. Tinha mulher, filhos, irmos e me. No Inverno no teve trabalho, nem lume, nem po. Tomado dum desespero nervoso, roubou. Foi enforcado ao Sol-posto. Os corvos no vieram. O corpo foi para a terra limpo, puro e so. Era um pobre corpo que tinha sucumbido por eu o apertar de mais, como a alma tinha sucumbido por Deus a alargar e a encher.

Enforquei vinte. Os corvos conheciam-me. A natureza via a minha dor ntima; no me desprezou; o Sol alumiava-me com glorificao, as nuvens vinham arrastar por mim a sua mole nudez, o vento falava-me e contava a vida da floresta, que eu tinha deixado, a vegetao saudava-me com meigas inclinaes da folhagem: Deus mandava-me o orvalho, frescura que prometia o perdo natural..

Envelheci. Vieram as rugas escuras. A grande vegetao, que me sentia esfriar, mandou-me os seus vestidos de hera. Os corvos no voltaram: no voltaram os carrascos. Sentia em mim a antiga serenidade da natureza divina. As eflorescncias, que tinham fugido de mim, deixando-me s no solo spero, comearam a voltar, a nascer, em roda de mim, como amigas verdes e esperanosas. A natureza parecia consolar-me. Eu sentia chegar a podrido. Um dia de nvoas e de ventos, deixei-me cair tristemente no cho, entre a relva e a humidade, e pus-me silenciosamente a morrer.

Os musgos e as relvas cobriam-me, e eu comecei a sentir-me dissolver na matria enorme, com uma doura inefvel.

O corpo esfria-me: eu tenho a conscincia da minha transformao lenta de podrido em terra. Vou, vou. terra, adeus! Eu derramo-me j pelas razes. Os tomos fogem para toda a vasta natureza, para a luz, para a verdura. Mal ouo o rumor humano. antiga Cbele, eu vou escorrer na circulao material do teu corpo! Vejo ainda indistintamente a aparncia humana, como uma confuso de ideias, de desejos, de desalentos, entre os quais passam, diafanamente, bailando, cadveres! Mal te vejo, mal humano! No meio da vasta felicidade difusa do azul, tu s, apenas, como um fio de sangue! As eflorescncias, como vidas esfomeadas, comeam a pastar-me! No verdade que ainda l em baixo, no poente, os abutres fazem o inventrio do corpo humano? matria, absorve-me! Adeus! para nunca mais, terra infame e augusta! Eu vejo j os astros correrem como lgrimas pela face do cu. Quem chora assim? Eu sinto-me desfeita na vida formidvel da terra! mundo escuro, de lama e de ouro, que s um astro no infinito adeus! adeus! deixo-te herdeiro da minha corda podre!

Assim era a histria testamentria da forca abandonada e morta! Oh meu Deus, se os seus tomos fossem agrupar-se e solidificar-se para fazerem o maquinismo da arma chassepot?....

FARSAS

A LADRA OS HOMENS DOS CES

A FILHA DO CARCEREIRO O PESCADOR

O BECO ONDE MORA O REI LEAR

OS DENTES PODRES A BEBEDEIRA DO COVEIRO

O POBRE SBIO A FORMA O SALTIMBANCO

O POETA LRICO

Aquele pobre moo tinha uma bem-amada, e nas brancuras tpidas da tarde passeavam entre os castanheiros enlaados, como nas velhas estampas alems.

Quando ele a via no via as pombas, nem as estrelas, nem as ervas: mas quando pensava nela via-a luminosa como todas as estrelas, lasciva como todas as pombas, mais fresca que todas as ervas. Ela tinha dois olhos negros como duas flores do mal. E ele dizia-lhe s vezes: eu queria ser a terra em que tu hs-de estar morta branca e fria para te envolver toda num beijo fecundo. Ora, uma madrugada, ela ergueu-se do leito todo quente dos embalos lascivos, roubou-lhe uma bolsa de dinheiro, o relgio, um anel e fugiu.

O pobre moo foi para um hospital, com uma doidice elegaca.

Um dia foi deitar-se para entre as ervas claras, entre o cheiro dos fenos e das seivas, ao sol sonoro, e ps-se a morrer enquanto os pssaros cantavam gloriosos, e ao longe uma flauta entre os milhos tocava uma cantiga das ceifas.

A mulher morreu na enfermaria da cadeia, no apodrecimento da febre, calva e com chagas.

*

* *

Conheci um rapaz mirrado, engelhado, com grandes olhos profundos, que dormia pelos portais, pelos adros, pelas encruzilhadas, e nos pedregulhos junto do rio.

No Inverno, nas geadas, nos luares nevados, nas neblinas, o miservel dormia com os ces sobre os lajedos: os ces conheciam a sua manta esfarrapada e podre, e quando a no viam nos grandes frios mordentes, uivavam.

Ele deitava-se entre os ces, punha a nuca sobre os pedregulhos, e dissolvia-se num sono mole e doentio: ele conhecia os ces mais felpudos, os mais gordos, e os que no cheiravam mal. As vezes deixavam-no dormir numa estrebaria.

*

* *

A pobre rapariga tinha seis anos: era filha do carcereiro. Era loura, com grandes olhos lcidos. Desde a madrugada ia pelos ptios, pelas enxovias, pelas gradarias, leve como uma seda e s como um sol.

Levava braadas de ervas aos presos e clematites.

Na cadeia chamavam-lhe a Cotovia. Tinha pombas.

Tinha um riso transparente e bom, e quando os miserveis sujos e chorosos iam para os degredos ela cantarolava entre eles, serena e gloriosa. Cresceu. A me era lavadeira e morreu no rio, entre os musgos e os canaviais. O pai teve um mal e ficou entrevado.

Vieram os Invernos. Ela lidava. Cuidava dos irmos pequenos. Lavava ao sol..

Costurava lareira sonolenta.

De madrugada ia atirar gros e migalhas s pombas: depois vinha dar ao pai engelhado, triste, doloroso, as sopas e o caldo.

Um dia entrou na cadeia um bbedo, um covarde, um assassino, que tinha espancado o pai. Era um lindo rapaz, branco com um corpo delgado. A rapariga viu-o, e fugiu com ele de noite embrulhada num cobertor.

Todo o dia seguinte, as crianas no comeram. O pai gritou, chorou e arrastou-se at lareira. Ningum. As pombas voavam tarde inquietas, fugitivas e medrosas. O pai ficou toda a noite ao p da lareira a roer um bocado de po duro. No outro dia ainda as crianas ficaram sem comer. Todas as pombas fugiram. O pai arrastou-se at o casebre; e esfomeado, batia de encontro porta. Por fim vieram. Passados dias. Havia pela vizinhana um cheiro de podrido. As crianas tinham morrido; o pai tinha morrido. Tinha sido a fome, a mingua, a sede, o frio.

A que fugiu hoje velha. Embebeda-se com aguardente: e quando na taberna as esfarrapadas e os miserveis lhe falam nesta histria, ela diz com voz rouca:

Ai que noite aquela, filhas! Ele tinha um modo de dar beijos!

*

* *

Havia um casamento. A noiva era divinamente linda, triste, sria, casta, religiosa; tinha a alma delicada e fina como a alma das virgens das legendas. Amava um rapaz, novo, forte, srio, inteligente, formoso. Ela tinha a religio da beleza, da harmonia e das

rvores cheias de sol: mas o bem-amado era pobre. Velha histria. Casou com um homem rico. A me era pobre e tinha irmos. Necessidades frias, mordentes. Nessa noite havia pela sala sonora grandes sedas, e cintilaes de pedrarias, e as penas dos leques coloridas e devassas.

Estava ali a gente plida, que anda nos veludos, de mos macias e sentimentos macios. O marido era gordo. Entre a orquestra poderosa havia uma flauta que chorava.

Ela, quela hora, sob o peso das luzes e as molezas das respiraes, pensava nas alamedas onde os rouxinis do a rplica aos poetas. A meia-noite o marido levou-a para a alcova. O marido tinha comido muito e anotava. Ela tinha uns grandes cabelos negros. Cabelos do Sul. O Diabo gostava destes cabelos, no tempo dos seus amores.

Mas a rapariga tinha tambm uns olhos azuis de uma serenidade elegaca. Ficaram ss.

Ela estava encostada cama, quase escondida nos cortinados, com frio, e uma vibrao dolorosa da alma. O marido prendeu-a nos braos e deu-lhe um rijo beijo Ela, triste, deu um grito. Ele tinha os dentes podres e a boca com maus cheiros.

*

* *

Um coveiro tinha amigos a cear. Cearam. Beberam. Havia um vinho mordente e duro da taberna.

As estrelas estavam frias. Saram para o cemitrio inconsolvel. Cambaleavam ferozes. Amontoaram a ramaria de um cipreste e acenderam uma fogueira. Cantavam viola e danavam como saltimbancos.

Um deles gritou:

Mulheres! Venham mulheres!

H-de-as haver por a disse com largos risos o coveiro.

E todos comearam procurando uma cova onde estivesse fresco e so um corpo de. mulher: tinha sido enterrada uma rapariga naquela madrugada. Vinha atrs do caixo um rapaz todo amarelo, com grandes cabelos cados. Tiraram a terra. Apareceu o caixo. Ela tinha o vestido despregado no seio e via-se a carne branca.

Archotes! Archotes!

Trouxeram ramos acesos.

Quem h-de ser o primeiro? Que ela est a preceito!

Desceu um, bbedo, desapertado, galhofeiro e obsceno. Estendeu a mo dura e meteu-a pela abertura despregada do vestido entre os seios da morta.

Deu um grito. Tinha sido mordido. Era um bicho das covas. O bicho era o ltimo amante daquele corpo branco; o bicho das covas tinha cimes.

*

* *

O velho Jernimo morreu. Era pescador na costa. Um lobo-do-mar. Ningum como ele para velejar com temporal e vento de travessia nas brumas de Novembro, entre as penedias, esmagando as espumas. Morreu.

Tinha me e dois filhos.

Ela consertava as redes ao sol enquanto os filhos dormiam na areia.

O Jernimo tinha as mos duras, o pescoo bestial, o peito largo, cheio do Sol e do mar. O Sol era o seu Deus. Deixou dito que o no enterrassem em cemitrios, debaixo das ervas, entre os germes das florescncias, as razes e as terras limosas.

Deixou dito que o atirassem ao mar. Ao outro dia os filhos saram na barca cheirosa dos mares e dos musgos, com o corpo do pai embrulhado em redes. Uma grande luz de sol escorria pelo mar. Havia uma calmaria sonora e contente. A velha rezava popa.

*

* *

Num beco morava uma mulher perdida. Tinha o pai velho, estonteado e comido das magrezas. Ele que abria a porta aos homens nocturnos.

s vezes no o deixava comer. E arrepelava-lhe os cabelos. Um dia entrou um homem bbedo; ela estava com os vestidos desmanchados, os peitos cados, sobre a cama, assobiando. O velho aquecia-se lareira. O homem disse com um grande riso:

Vamos ns embebedar o velho!

Valeu!

E fizeram-no beber aguardente. O velho teve agonias.

Eles torciam-se em obscenidades brbaras. De manh o velho, com as foras esmigalhadas, os msculos dissolvidos, no pde acender o lume.

Caiu miseravelmente ao p da lareira. A filha deu-lhe com umas cordas, o homem deu-lhe com o p rijo e bestial. O velho soluava.

A mulher esperou, calada, fria e metlica at que a noite veio.

Mandou-lhe ento buscar azeite a uma venda vizinha.

O velho foi. A filha fechou a porta. O velho, ao voltar, chorou, rezou, suplicou de joelhos com as mos postas.

Nada. A filha dentro cantava, toda lasciva, com as pernas nuas. O beco era solitrio e vivo. Veio o frio, a geada. O velho estirado porta gemia. Toda a noite a filha na cama bem quente e sonolenta!

De madrugada uns carreteiros levantaram o velho transido, lvido e gangrenado..

Ao sol desse dia, arrastou a mulher pelas poeiras umas grandes sedas contentes e soberbas.

*

* *

Ele caminhava pelas ruas, com os cabelos desmanchados, magro, anglico.

Conhecia todos os livros santos e todas as Escrituras. E os livros snscritos e os velhos letrados da China; e os poemas divinos e doces da ndia e da luminosa Grcia; e as histrias hierticas e frias da Prsia. Era pobre, miservel. Andava com um longo casaco esfarrapado, rodo do frio e o peito cheio de religies e de teogonias. No tinha casa. As vezes dormia debaixo dos pinheiros, pelos montes. Prenderam-no.

Mas que mal fiz eu? dizia ele com a sua voz lenta e olhar iluminado.

Condenaram-no por vadio. Ele no sabia nada. Ningum o defendeu.

Uma velha que por vezes lhe dava um bocado de po foi dizer, toda triste:

Perdoe-lhe, senhor juiz.

Os sargentos repeliram a velha.

Entre as alocues das leis e as palavras dolentes e as togas negras, ele pensava nos pases sagrados onde nasce a religiosa flor do ltus.

Levaram-no para uma enxovia. Assim esteve anos. Nos frios, na humidade, solitrio, sem livros, sem consolaes, sem vozes. Chorava. E tinha uma suave teima.

Queria que todos os dias a velha lhe levasse flores. Um dia morreu, na enxerga, ao anoitecer, sem o Sol, sem os ventos, sem o grande ar, na humidade, sereno, desfolhando rainnculos.

*

* *

Quando tinha dezoito anos tinha um corpo robusto e meldico. Os cabelos eram como os grandes raios quentes de um sol negro. Tinha grandes braos fortes e magnticos. O olhar tinha, como um mar, grandes ondas de luz, ou dolorosas, ou iradas, ou lascivas. O pescoo tmido e forte tinha brancuras soberbas e rijezas cnicas. E a voz era como sada dos cristais e dos metais sonoros.

E a forma do seio dava o sabor das noites conjugais e a esperana das maternidades. Mas era pobre.

Tinha, ao andar, ondeamentos de sereia, musicais e castos. Mas era pobre.

Quem a acolhesse no leito de noiva teria contentamentos inefveis e filhos sos e belos. Mas era pobre. E ela era casta e religiosa.

Assim esteve virgem, apaixonada, orgulhosa at que aquela beleza se foi lentamente, como finda um cntico sagrado. E ela era de feito o cntico sagrado da forma da carne.

Outrora, quando ela passava, aquela forma escultural e a brancura lilial da sua pele arrastavam toda a multido filistina. Mas era pobre. No casou. E no se deu.

Agora, velha, engelhada, lenta, com vestgios lgubres e um chapu desbotado, passa, virginal, cheia de solitrias impurezas, arrefecida, oleosa, beata, e com um co felpudo no colo.

*

* *.

O saltimbanco era so, forte, com grandes cabelos e uns olhos negros elegacos.

Uma velha rica desejou aquele corpo elstico, a pele cor de mrmore e os beios grossos.

Ora o saltimbanco tinha uma mulher bem-amada e filhos pequenos. De noite, eles deitavam-se entre os farrapos reluzentes, com as nucas sobre um velho tambor, cobertos de estrelas. A velha sabia que aqueles corpos tinham frio e fome: tentou o saltimbanco com cintilaes de dinheiro. O saltimbanco vem todo irado para junto da mulher, e apertam-se, amados, sujos e resplandecentes.

Mas o tambor e a flauta dos saltimbacos no chamavam a gente do povoado. Veio o frio: sem lume! Veio a fome: sem po!

A velha tentou o saltimbanco com cintilaes de dinheiro; o saltimbanco, veio todo curvado, abraar os filhos todos rotos, amarelos, esfomeados e chorosos.

E ento a mulher foi encontrar o saltimbanco a lavar-se, a preparar umas roupas brancas e a esfregar o peito com folhas.

Onde vais?

Ele disse, a chorar: via a fome, o frio, a magreza, a lareira apagada, os trapos sujos, ia para o leito aveludado e quente da velha.

Ela teve um riso doloroso.

No vs.

Queria ir ela: ir, sob a nvoa, com os peitos nus, para as encruzilhadas, agarrar os homens, os nocturnos, e ali mesmo sobre a erva e o cho duro, torcer-se aos beijos sujos

e entre as sufocaes pedir-lhes um bocado de po.

Ele chorava, arrepelado.

Tu!

E limpava-lhe, com beijos sagrados, a orla das saias: e arrastava-se pelo casebre com os joelhos roxos.

Ela queria ir.

Sou eu que vou: deixa-me ir disse o saltimbanco com a carne tomada de febres e os olhos reluzentes.

E apertavam-se com um amor anglico. E ela ento, chorando, comeou a pente-lo, a lav-lo, a compor-lhe as pregas, a enfeit-lo enquanto Deus dormia.

*

* *

Ele tinha sido um poeta dos bons tempos, arcdico, laureado nos outeiros: tinha composto uma tragdia clssica. Depois envelheceu e empobreceu. Vivia de fazer versos para anos, de escrever cartas para as costureiras e para os lacaios, de redigir cartazes de touros e de fazer cantigas impuras.

Tinha um filho.

Ele esperava que o filho o amparasse na velhice. Mas o pobre rapaz teve uma febre mordente e ficou idiota. O pai cozinhava, limpava a casa e lidava com as rimas e com os sonetos para ganhar o po: e nem sempre havia po na trapeira. Passavam semanas comendo favas. As vezes tinha o pobre poeta lrico encomendas de cantigas obscenas, de epitalmios ou de versos para namoradas: e ento sentado, enquanto, com os olhos arregalados, o filho gritava: Po!, po!, pai ele dizia: Tem pacincia, filho; amanh creio que havemos de comer. E escrevia, pensando e medindo com os dedos:

Dizeis, bela Mrcia.

Que deixei de te adorar:

Tem asas o Deus Frecheiro:

Pois no para esvoaar?

*

* *

Tristes histrias! Sofrer, chorar, ter fome e frio, e morrer mngua, e ter noites de agonia o que que isto prova? Nada, nada, meus senhores.

Words! Words! Words!, dizia o nostlgico Hamlet..