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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
MEMÓRIA E HISTÓRIA NOS TEXTOS ANGLO-NORMANDOS
DE TRISTAN (SÉC. XII-XIII)
As complexas relações entre Memória e História na Idade Média já foram objeto
de inúmeras reflexões de autores consagrados, e continuam a ser problematizadas no
presente, o que se pode atestar inclusive por este Seminário Temático. Nosso objetivo é
contribuir para o debate através da consideração das relações História e Memória nos
textos sobre Tristan, escritos no ambiente anglo-normando entre a segunda metade do
século XII e princípios do XIII.
Os cinco textos do ciclo, escritos em língua vernácula nascente, permitem
colocar vários tipos de problemas: como pensar textos dessa natureza e as narrativas
neles contidas como fontes históricas? Que informações sobre o cotidiano da produção e
circulação das obras eles podem conter, como representam a organização social e
política do período, como o escritor – na maior parte das vezes apenas um nome
reivindica autoridade, ou um desconhecido – e seus públicos estão inscritos no texto?
Pela natureza dos textos, como essas informações estão articuladas à tradição de relatos
orais? Como se estabelecem, nos textos, as relações entre o presente da elaboração e os
elementos ou dimensões do(s) passado(s) presentificadas pela memória? Como dados
de imaginários de diferentes temporalidades são representados e recriados pelo
presente? Como esses dados são apreendidos em diferentes contextos no presente da
produção da obra, e a que imperativos respondem?
Matéria de Tristan e escritura: reelaborações, intertextualidades e relatos orais
Os mais antigos textos que constituem a legenda medieval de Tristan que
conhecemos foram escritos em duas regiões da Europa na segunda metade do século
XII. No ambiente anglo-normando, Roman Tristan de Béroul, o Tristan de Thomas
d’Angleterre, os poemas Folie de Berne e Folie d’ Oxford, e o lai Chèvrefeuille de
Marie de France; na Germânia, Tristrant de Eilhart von Oberg1. Os textos anglo-
normandos sobre Tristan – como inúmeros outros textos medievais escritos nas
1 Tristrant traduzido, apresentado e anotado por René Pérennec, consta da coletânea dos textos editados por Christiane Marchello-Nizia, Tristan et Yseut – Les premières versions européennes, Bibliothéque de la Pléiade, Paris: Gallimard, 1995, pp. 263-388. É o primeiro texto completo da “biografia” do herói, que permite a localização de passagens e episódios
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nascentes línguas vernáculas2 – são fragmentários, têm passagens ilegíveis, são
anônimos3, e as datas e os locais específicos da produção de cada um permanecem
objeto de discussão entre os estudiosos contemporâneos. Para estabelecer esses textos a
partir de cópias manuscritas, e reconstituir a história legendária completa de Tristan,
filólogos do século XIX buscaram determinar suas origens, compararam os conteúdos
formais e significativos das “versões”4, e utilizaram a obra germânica da mesma época
como uma das referências5.
Os elementos que compõem os textos e as narrativas dos séculos XII e XIII – a
ambientação das ações dos protagonistas, as relações que mantém com as demais
personagens, as caracterizações de cada personagem e do conjunto delas, as tramas das
quais participam, os temas colocados e discutidos através dos episódios selecionados e
de seu encadeamento, as perspectivas e comentários dos narradores – variam de texto
para texto; mas o conjunto está fortemente relacionado ao período e ao universo cultural
anglo-normando no qual os textos foram forjados e circularam inicialmente. Nos
cenários construídos, bem como na caracterização das personagens, misturam-se as
molduras históricas das cortes desse período – espaço-tempo das obras encomendadas –
e os espaços-tempos imaginários de múltiplas temporalidades. E, segundo os “gêneros”
em que foram escritos, há variações significativas na forma de participação dos relatos
orais e da memória.
2 A história das línguas vernáculas faladas e escritas, e de seus dialetos, é complexa, e não será desenvolvida aqui. No entanto, no contexto da cultura anglo-normanda onde foram escritos os textos sobre Tristan abordados neste trabalho, algumas referências e esclarecimentos são necessários. Segundo Michel Zink, “Sur le territoire de la Gaule, deux langues apparaissent, désignées traditionnellement
depuis Dante par la façon de dire oui dans chacune: la langue d’oïl au Nord et la langue d’oc au Sud.
Ces langues elles-mêmes se divisent en nombreux dialectes, au point que les contemporains semblent
avoir eu longtemps le sentiment qu’il n’y avait qu’une seule langue romane et que toutes les variations
étaient dialectales.” E, segundo Anita Guerreau-Jalabert, as caracterizações e classificações dialetais estabelecidas pela filologia do século XIX devem ser consideradas com cuidado. De fato, sabemos muito pouco sobre as línguas faladas, sobre a forma de constituição das línguas escritas, os usos sociais de diferentes níveis dessas línguas. Dois grandes grupos de dialetos são, no entanto, reconhecidos hoje: ao norte da atual França, aquele da langue d’oïl; e ao sul, a partir de uma linha que vai da Gironda aos Alpes do sul, englobando o Limosin, aquele da langue d’oc. E nestes grupos, sobretudo por diferenças fonéticas observadas nos documentos escritos, reconhecemos, no norte, o picardo, o champanhês, o anglo-normando – este utilizado na corte dos reis ingleses – o francês, dialeto da Île de France. 3 Embora existam referências mais ou menos precisas sobre “autores” de três textos – Béroul, Thomas,
Marie de France – a natureza da “autoria” desses e dos demais textos medievais permanece em discussão. Por isso, justifica-se afirmar que são anônimos, sobretudo porque a elaboração da matéria é fundamentalmente oral e coletiva. 4 A palavra versão, no contexto dos estudos sobre a matéria de Tristan, é correntemente utilizada para designar uma interpretação, um tipo de tradução ou adaptação de uma história arquetípica. Neste trabalho, optamos por considerar cada texto e a narrativa que apresenta como parte de uma obra específica. Por isso, a palavra aparecerá entre aspas. 5 Joseph Bédier reconstituiu a história de Tristan e Yseut em 1900 (há uma tradução brasileira dessa obra, BÉDIER, J. Tristan e Yseut, São Paulo: Martins Fontes, 1988), sobre a qual há uma discussão adiante.
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O roman é uma grande novidade no contexto cultural do século XII, um
“gênero”, um tipo de relato considerado hoje, pelos especialistas, fortemente
intelectualizado e com construções eruditas6. De fato, o contexto amplo em que os
primeiros textos sobre Tristan se inserem é o do desenvolvimento de uma produção de
obras escritas – e especificamente de romans – a partir das chamadas “Matéria Antiga”7
e “Matéria da Bretanha”. No séc. XII, as obras singulares escritas sobre o rei Arthur,
seus cavaleiros e a Távola Redonda, a busca do Graal, e o romance de Tristan e Yseut,
reelaboraram esse amplo repertório de temas e motivos da “Matéria da Bretanha” que
exerceram na época, e exercem hoje, interesse e fascínio. Esses escritores interferiram
no movimento da matéria oral – que já existia no período anterior ao século XI – e
participaram da modificação seus conteúdos, formas e funções das narrativas. Essas
“versões” escritas passaram a fazer parte da movência8 da matéria, constituindo-se como
variantes que, na reelaboração de cada texto escrito, promovia mudanças levando para a
matéria oral conteúdos do contexto da elaboração, alimentando o núcleo tradicional de
relatos com dados desses contextos (seleções, valorizações específicas de temas,
motivos e episódios, valores sociais na lógica da narrativa etc.).
Os romans – pela extensão e temáticas desenvolvidas – foram compostos a partir
de seleções e recombinações de episódios da matéria de Tristan, produzindo
amplificações e variações da história ao desenvolver as tramas em que o casal amoroso
esteve envolvido. Os poemas curtos do século XII anglo-normando – Folie de Berne,
Folie d’Oxford e lai du Chevrefoil – resultam de um processo diferente: tendo como
base as especificidades da recitação oral – essencialmente episódica, concentrada nas
ações mais imediatas das personagens – e, também, as particularidades da recepção do
relato mais curto, apresentam um único episódio. Através dos percursos realizados pelos
amantes, construídos por uma sucessão de cenas, diálogos, monólogos e interferências
do narrador, os poemas focalizam aspectos específicos do amor, e visam a tornar
perene, pela narrativa, o momento do encontro. Seus escritores escolheram um episódio
da tradição compartilhada (oral e escrita) e, a partir dele, renarraram a história de
6 GUERREAU-JALABERT, A. Le temps des créations (Xie-XIIIe. Siècle). In : SOT, M.; BOUDET, J-P; GUERREAU-JALABERT, A. Le Moyen Âge. Histoire Culturelle de la France – 1. Paris : Ed. Du Seuil, 2005, p.221. 7 A designação refere-se aos temas e motivos provenientes da Antiguidade, ressignificados na produção escrita da Idade Média Central, a partir da releitura de mitos e autores clássicos. Constituem-se como relatos propriamente medievais, de caráter erudito e clerical, transmitidos a partir de fontes latinas. Idem, ibidem, p.221. 8 Entendida aqui como a propriedade de relatos e temas serem recriados e transformados, pelos rearranjos de um escritor, e pelas leituras realizadas em diferentes meios culturais e sociais nos quais circulava.
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Tristan. O foco num encontro dos amantes permitiu a eles tratar de temas variados
relacionados à matéria e ao presente histórico da produção, cada qual à sua maneira, por
vezes numa articulação sutil. Todos e cada um dos poemas problematizaram questões
de sua época, como obras abertas ao diálogo com a tradição e a inovação. Assim,
desenvolveram temas tristânicos, e agregaram outros à matéria, alimentando a sua
movência.
Assim, as pequenas diferenças entre as obras escritas testemunham as misturas
de diversos materiais, provenientes das culturas célticas, com aqueles das matrizes
clássicas e judaico-cristãs. A matéria de Tristan desenvolveu-se nesse cruzamento, e
num contexto feudal, monárquico e cristão: por isso, encontramos, nos textos do ciclo,
temas e motivos, tais como o herói órfão, realizador de façanhas; magia, provas físicas,
feridas e curas; disfarces, dissimulação e travestimento, armadilhas, delação,
esconderijos, reconhecimento, recompensa; guerra, lutas pelo poder; traição, descoberta,
exílio; paixão/amor, casal amoroso, casamento, serviço, fuga, mergulho na natureza,
solidão, morte, forma de viver, união/separação, sono/despertamento, pecado, salvação,
provação, remorso, arrependimento, confissão, oposição corpo/alma, essência/aparência
etc. E esses “materiais”, num contexto de forte intertextualidade, deram bases à
produção de textos em que aparecem combinados entre si, e também com outros tipos
de narrativa.
Matrizes escritas de uma memória: romans
Os escritores medievais utilizaram-se do passado para tratar do presente, sem
preocupação com o que se entende como fidelidade histórica. Dessa forma, não se
coloca para o historiador a questão das origens: de fato, os relatos célticos e o universo
feérico ganham sentidos diversos no contexto mental e social dos séculos XII e XIII nos
textos que combinam de forma peculiar esses elementos. É nessa perspectiva que
buscamos ler os textos sobre Tristan do século XII.
O único manuscrito conhecido da obra de Béroul é uma cópia feita na segunda
metade do século XIII. Cheia de lacunas, versos ilegíveis, com passagens
incompreensíveis, a referida cópia não nos permite saber como o escritor concebeu o
início e o final da relação entre Tristan e Yseut, ou se essa relação fazia parte de uma
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história mais longa e detalhada do protagonista narrada nesse texto. Isso explica em
parte o grande número de estudos que a obra inspirou9.
É discutível também o fato de ser esse texto o mais antigo da legenda medieval,
embora alguns autores argumentem que a forma de tratar a matéria – utilização de
elementos do universo mágico, como l’arc-qui-ne-faut, e a aparente falta de lógica na
sucessão de episódios – podem indicar uma clara aproximação entre o texto e os relatos
orais10.
A aparente falta de lógica – resultante da quebra da linearidade de sucessão dos
eventos da narrativa – é, de fato, expressão de outro padrão de logicidade, que expressa
uma concepção de mundo em que tudo ocorre ao mesmo tempo. Segundo R.C. West11,
essa estrutura de entrelaçamento revela uma visão panorâmica do mundo em
movimento e turbilhão, no qual as personagens transitam, agem, constroem-se e
revelam suas características em diferentes níveis. Na construção de seu perfil social e
psicológico interfere diretamente o narrador, que joga com o conjunto dos elementos da
narrativa para construir o sentido da trajetória e das relações mantidas entre as
personagens. Dessa forma, o ponto de vista do narrador aparece em dois níveis: na
seleção dos episódios e sua sequência, e nas interferências diretas que este faz através
dos comentários sobre a ação das personagens e seus significados.
Essa estrutura digressiva possui também uma função objetiva: o escritor-
narrador – que escreve um roman para ser recitado, falado – traz constantemente à
memória dos leitores/ouvintes eventos que explicam determinadas passagens separadas
pelo tempo cronológico da narrativa, mas ligadas pela significação. A solicitação do
narrador funciona como um chamado integrador dos níveis de temporalidade,
presentificados a cada performance12. Os ouvintes vivem e revivem a história dos
amantes, participam da trama, são solicitados a seguir pela memória, pela emoção e
pelos sentidos (olhar, ouvir) as personagens e o narrador/recitador. A obra demanda sua
9 É possível observar na listagem bibliográfica os variados aspectos do texto que são objetos de estudos e controvérsias: hipóteses sobre datação, “autoria” e fontes, estudos sobre influências filosóficas e “literárias” do período de elaboração, sobre personagens, episódios, passagens específicas, etc. 10 BAUMGARTNER,op.cit., p. 38. 11 WEST, R.C. The interlace structure of the Lord of the Rings. A Talkien Compass, Jaud Lodbel, La Salle: Open Court, 1975. 12 Fazemos referência aqui ao conceito de Paul Zumthor, que entende performance como a forma pela qual uma mensagem poética é transmitida e recebida, no momento mesmo em que ocorre: “A
performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário, e circunstâncias (quer o texto, por outra via, com a ajuda de meios lingüísticos, as represente ou não) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis.” Introdução à Poesia Oral, São Paulo: HUCITEC/EDUSC, 1997, p. 33.
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participação ativa, o que implica várias possibilidades de realizações da mensagem ou
de seu conjunto a cada leitura. O escritor-narrador, que, como mencionamos, interfere
direta e indiretamente no texto, indicando uma possibilidade (intencional ou não) de
interpretação, não pode ter o controle sobre o processo de difusão das mensagens. Mais
que isso, a estrutura da narrativa implica várias possibilidades de leitura da história,
relativas às perspectivas de observação dos movimentos e das relações entre
personagens.
O ambiente social de leitura e performance é fundamentalmente cortesão; no
espaço de teatralização da história – as cortes normandas e anglo-normandas da
Inglaterra e do norte da França – as performances podem ter enfatizado variados
aspectos da narrativa e problematizações colocadas pelas tramas que a compõem. É
possível e provável, por exemplo, que as questões relativas ao poder tenham sido
enfatizadas na leitura cortesã da obra. A literarização realizada por Béroul ocorreu
provavelmente no reinado de Henrique II Plantageneta e Eleonor de Aquitânia,
momento de intensas lutas feudais, de afirmação do poder real e das intrigas palacianas
que envolveram o rei, a rainha, seus parentes e vassalos. O texto apresenta um rei
instável emocionalmente, influenciável por seus conselheiros, inclusive no que se refere
a questões afetivas e familiares, incapaz de realizar e manter o equilíbrio do reino,
barões poderosos que agem no sentido de desagregar a ordem: em síntese, a versão se
constrói registrando dados das práticas políticas do momento e lançando sobre elas um
grande questionamento, ao articulá-las à problemática da vivência do amor. De fato,
pensamos que os eixos temáticos da estrutura profunda da obra são o amor e o poder:
não se trata de atribuir a um ou a outro, maior importância; Béroul registra uma forma
de perceber e viver essas dimensões, refletindo sobre as relações, influências, limites e
contradições entre elas.
Contemporâneo de Béroul, Thomas d’Angleterre deve ter escrito Tristan entre
1172 e 1173. Coincidem também a ambientação da produção dos textos – durante o
governo de Henrique II – e o provável perfil dos escritores: Thomas teria sido um
clérigo que viveu na Bretanha. Seu público-alvo deve ter sido composto inicialmente
pelas cortes anglo-normandas insulares. Do texto original, conseguiram-se recompor
3145 linhas, a partir de diferentes fragmentos manuscritos, cópias do século XIII. Essa
recomposição cobre o período da vida de Tristan que vai de seu exílio até a morte e,
nesse sentido, focaliza a história de amor do casal Tristan/Yseut. O fragmento de
Strasburg (I) abre-se com rápidos comentários e questionamentos do narrador sobre a
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necessidade de retomar episódios anteriores e relembrar seus sentidos, e focaliza Tristan
aguardando a passagem da comitiva real para rever a amada. Thomas indica a existência
dos vários relatos que circulavam na Bretanha, e cita Bréri, o escritor do texto fundador
da tradição escrita, que afirma ter lido. Comenta explicitamente que a matéria de Tristan
é muito diversa, e sugere que a sua obra foi escrita a partir da seleção que fez dos relatos
que ouviu, segundo sua proximidade da verdadeira história. Béroul, por sua vez, refere-
se à Yvain, ao conhecimento da história, e à sua própria memória. Thomas declara que
ouviu muitos, e apresenta a sua versão da história dos amantes, autorizada porque
escrita e verdadeira. Ambos afirmam que seus textos recontam uma história narrada em
outro texto.
Poemas do encontro, muitas memórias
A Folie d’Oxford faz referência implícita à narrativa de Thomas ao manter a
ordem dos episódios renarrados; no entanto, o poeta omite a referência, talvez para
afirmar a autonomia e a autoridade de sua própria obra, que narra, de forma singular,
uma história que naquele momento já se contava por si só. Da mesma forma, a Folie de
Berne – provavelmente derivada da tradição de Béroul, e considerada, em termos
poéticos, “inferior” à de Oxford – é um poema episódico que trata a matéria com um
tom peculiar, também pleno de renarrações da história de Tristan, e referências a outras
passagens da história.
As Folies Tristan sintetizam e recontam a história do casal amoroso através de
um episódio central emblemático, que corporifica fortemente o poder do simbolismo
físico, com a utilização de disfarces e sinais materiais da presença dos amantes e do
sentimento amoroso. Para rever a amada, e estar novamente com ela, Tristan enfrenta
vários tipos de perigo, os quais servem inicialmente como prova autoimposta que,
dialeticamente, satisfaz e realimenta o sentimento amoroso. Ao longo da realização da
aventura de buscar a amada, que se constitui como um tipo de provação/peregrinação
solitária, porém, Tristan encontra e reencontra outras personagens, para as quais sua
presença implica outros tipos de prova. Sobretudo, Tristan submete intencionalmente a
amada e os membros da corte a provas similares, complementares, e outras ainda
opostas às suas.
As cenas que compõem o desenvolvimento do episódio nos mostram as referidas
provas às quais as personagens são submetidas, que devem revelar, principalmente, suas
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capacidades para ler e interpretar sinais de identificação através dos disfarces, e do
reconhecimento a partir da memória. Em Berne, Yseut é incapaz de reconhecer seu
amante até que ele lhe mostre o anel de ouro com o qual ela o presenteou; na Folie
d’Oxford, nem mesmo o anel permite a Yseut reconhecer a identidade de Tristan, que só
é definitivamente revelada pela voz. Dessa forma, os poemas episódicos relacionam os
temas amor, encontro e reconhecimento através da construção, caracterização e
objetivos do disfarce, e a utilização de outros sinais, dentre os quais o disfarce é o
elemento catalisador. E o disfarce de louco escolhido e/ou utilizado por Tristan é um
sinal ambíguo que pode ser lido, dependendo da perspectiva, como expressão exterior
da experiência amorosa mais íntima. Máscara e sinal de presença nua do amante, que o
utiliza para apresentar-se e rememorar toda a verdadeira história dos amantes diante dos
algozes e da amada, com diferentes objetivos, o disfarce é elemento que sinaliza em
direções opostas, e a máscara da loucura a metáfora amorosa mais eloquente.
A realização plena do casal no encontro amoroso é o motivo central das
narrativas, nas quais também fazem eco, de formas diversas, os problemas relativos ao
exercício do poder. Momento fugidio para os amantes, o encontro recoloca todo o
sentido da história, como se fossem miniaturas e rubricas dela, valorizada pela memória.
Embora a loucura de amor, a aventura e o disfarce sejam comuns aos dois
poemas, as perspectivas, as memórias, a composição e as funções do disfarce da
personagem central variam. Significativamente. E o lai Chevrefoil, por sua vez, nos
conta também um único encontro – mais um, entre tantos, dos quais o amor de Tristan e
Yseut se alimentou, no imaginário do século XII anglo-normando –, episódio que
evidencia como uma história de amor e de morte é feita de momentos maravilhosos e
fugidios, para os amantes, escritores e públicos medievais, e para nós. Tristan e Yseut
continuam a viver a cada renarração de suas aventuras. Até mesmo hoje, quando nós o
fazemos.
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A memória nos textos e a produção de sentidos
“...o herói não existe senão no canto, mas não deixa de existir também na
memória coletiva, na qual participam os homens, poeta e público.”
Paul Zumthor13
Essas obras foram produzidas num momento da Idade Média em que se
multiplicavam os textos escritos, mas no qual essa “literatura” era marcada
essencialmente, como vimos, pela oralidade. Na “literatura” oral, a memória tem um
papel fundamental, dado que caracteriza esse tipo de produção. As marcas da memória
estão presentes de forma significativa no Tristan de Béroul: funciona como uma forma
de organizar a trama e cadenciar a narrativa, além de ser o fundamento da elaboração da
versão, e o meio através do qual o autor-narrador constrói o discurso que comunica aos
seus leitores - ouvintes.
A importância da memória nos textos medievais desse período pode ser avaliada
também pelo papel que ela desempenhava nos níveis clerical e laico da cultura.14
A oralidade continuou a ter um papel cultural importante ao lado da escrita. Isso
é particularmente verdadeiro para os séculos XI e XII. Além de ganharem força de
permanência com o registro escrito, essas canções e as histórias que narravam estavam
integradas à memória oral, coletiva e popular. Ocorria, portanto, o fenômeno
denominado circularidade entre as formas escrita e oral da cultura, movimento no qual
ambas eram transformadas.
A recorrência a discursos anteriores é própria do relato oral. É procedimento que
relembra ao ouvinte o que já foi narrado e, ao mesmo tempo, vincula esses eventos à
situação de momento da narrativa, ao presente da narração.
A presença da memória, típica da literatura oral, nos textos da “legenda de
Tristan” é também importante porque conservou elementos do folclore, de antigos
mitos, de crenças e valores tradicionais. Nos textos escritos, a memória passa a
desempenhar também papel de elemento constitutivo produtor de sentidos. Assim, deve
13 Apud J. Le Goff, “Memória”, Enciclopédia Einaudi, op. cit., p. 29. 14 Como sabemos, na tradição cristã, a memória ocupava um papel central. Para os monges medievais, como lembra Leclercq14, a lembrança está aliada à meditação, uma vez que promovia “um profundo mergulho nas palavras da Escritura.” A catequese cristã se baseava, como sabemos, em uma técnica de memorização e repetição. Os próprios estudos dos textos sagrados desenvolvidos nos mosteiros envolviam o treino da memória, articulando o oral e o escrito. O calendário litúrgico reforçava a memória dos santos, ligando a catequese, que tinha por base os escritos sagrados, com a memória oral popular. Como sabemos, um dos esforços da Igreja para cristianizar a sociedade medieval foi no sentido de se apropriar da memória popular.
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ser considerada como parte da estratégia do narrador e técnica narrativa por ele
utilizada.
A repetição como técnica narrativa pode ser exemplificada na versão de Béroul
pelo número de vezes que aparece o elogio às façanhas de Tristan: nada menos que oito.
Uma série de elogios relata as aventuras do herói na Irlanda, outra suas façanhas na
Cornualha. Ao mesmo tempo em que revelam a técnica de composição de base oral de
Béroul, essas repetições ajudam a compor a trama, na medida em que servem a
diferentes objetivos do narrador, conforme o momento e a situação em que são
introduzidas na narrativa.
Um dos sentidos dos elogios às façanhas de Tristan é o de evidenciar oposições:
o narrador e as personagens, em seus discursos, opõem o bem ao mal, a virtude ao vício,
o herói aos anti-heróis. As qualidades de Tristan, cavaleiro corajoso e vassalo fiel, são
apresentadas em oposição às características dos barões, intrigantes e conspiradores. Esse
sentido é claro em várias cenas, sobretudo naquelas em que os amantes percebem o rei
Marc oculto e simulam um diálogo que mascara o verdadeiro sentido do encontro.15 As
falas de Tristan visam diretamente à memória de Marc.
O apelo à memória do rei pela referência aos feitos de Tristan é um eficiente
expediente para evidenciar a inocência dos amantes em relação às acusações que lhes
são feitas pelos barões do reino. Os episódios rememorados mostram acusações do
presente, formuladas pelos barões, em oposição à memória dos feitos heroicos. Assim,
Tristan e Yseut apelam à memória do rei para provar inocência em relação às acusações.
Invocam fatos passados para que se tornem referências dos juízos forjados no presente.
Um outro momento da narrativa em que as façanhas do herói são lembradas é no
episódio da redação da carta que o eremita Ogrin escreve e envia ao rei Marc em nome
de Tristan. Antes de começar a escrever, Ogrin compõe a carta oralmente para que
Tristan a aprove, recordando cada um de seus feitos e aventuras na Cornualha até o
pronunciamento de sua sentença de morte feita por Marc. O primeiro dado interessante
é que Ogrin acrescenta às façanhas antigas a fuga da capela, vista de forma miraculosa.
Isso também é próprio das narrativas orais tradicionais, que repetem temas antigos
15 No conhecido episódio do “Encontro sob a árvore”, por exemplo. As proezas guerreiras, a conquista do direito ao casamento com a princesa da Irlanda e a consanguinidade são invocados para compor o quadro a ser julgado pelo rei, ao qual o herói opõe a infidelidade e a fraqueza dos barões. O discurso enfatiza a oposição entre as ações positivas do campeão e as negativas e desagregadoras dos barões. Tristan apresenta ao rei, como se não o estivesse fazendo, visto que finge ignorar sua presença, sua versão dos fatos. É sobre essas versões que o rei deverá refletir e optar.
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agregando novos elementos à história. Recordam o passado ao mesmo que atualizam a
memória.
Mas o importante é que aqui o relembrar das façanhas tem outra função
narrativa, e amplia seus significados na composição da trama. A carta serviu para o
autor - narrador passar de um episódio, o da vida dos amantes na floresta, para outro,
novamente desenrolado na corte. O discurso de Ogrin é direcionado para justificar o
amor dos protagonistas e para obter a reconciliação com o rei Marc.
Cheio de detalhes, o discurso de Ogrin é um ensaio do elogio final do roman,
quando da entrega da carta escrita a Marc. O rei convoca o seu conselho para que a
carta seja aberta e lida na presença dele. Só então o leitor - ouvinte conhece as palavras
escritas por Ogrin. A carta, rememorando as façanhas heroicas de Tristan, funciona
como um epílogo da história.
Em outro momento da narrativa, as façanhas de Tristan são relembradas pela
multidão de um novo ponto de vista. O discurso dessa multidão passa por três
dimensões de tempo: comemora o passado, apresenta os fatos da realidade e anuncia o
futuro. A recordação dos feitos é apresentada, então, como uma prova de que lado se
encontrava a justiça. A multidão desempenha o papel de um juiz, negando a justiça do
rei Marc e, quem sabe, reconhecendo em Tristan um rei mais legítimo e verdadeiro.
Como pudemos observar, a repetição, como um constante relembrar de fatos
passados e já narrados, é uma técnica narrativa na qual se tece uma trama sempre
agregando elementos novos a um determinado núcleo essencial. Dessa forma, a
sequencia de episódios, em torno de núcleos significativos, permitiu a Béroul apresentar
aos seus leitores – ouvintes uma variedade de materiais recolhidos de várias fontes, mas
em um arranjo novo no qual a matéria adquiriu novos sentidos.
Assim, na narrativa de Béroul cada palavra funciona como um gancho que
agarra uma ou várias outras formando uma cadeia e criando uma verdadeira
cumplicidade com os leitores – ouvintes. Isso porque a narrativa é composta de
fragmentos de um passado mítico reconhecível por esses leitores, reelabora conteúdos
da memória social e cultural. Uma frase do poema de Béroul funciona como um gancho
de memória, desenhando passagens anteriores do roman e de outras narrativas, que lhes
precederam e circularam também simultaneamente. Conforme as personagens vão
rememorando, a memória dos leitores-ouvintes também é convocada para esclarecer os
eventos no presente da narração. Esse processo de composição, a arte narrativa de
Béroul, incorpora pela memória a experiência dos ouvintes. São especialmente as
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rememorações que permitem ao poeta imprimir ritmo próprio à narrativa, e envolver os
leitores – ouvintes por meio da memória.
Diferentemente do tom de Béroul, obra caracterizada pelo peso da narração de
aventuras e da variação numérica e qualitativa dos diálogos, a obra de Thomas é
considerada uma leitura cortês da matéria, com ênfases em sentimentos das personagens
– sobretudo de Tristan – e reflexões do narrador. Por outro lado, tal como a narrativa de
Béroul, a de Thomas faz uso das lembranças, sobretudo do protagonista, mas também
das de outras personagens, para compor a memória de uma história completa; tal como
a de Béroul, apresenta Tristan disfarçado, trata de questões relativas às vivências do
amor por cada um dos amantes, como o casamento e o adultério, entre outras. Mas a
ênfase nas questões do exercício do poder, suas contradições e ambiguidades
explicitadas por Béroul, são aqui secundárias em relação ao amor.
A narrativa narra o casamento de Tristan com Yseut aux Blanches Mains
ocorreu, que não foi consumado pois cada vez que Tristan pronuncia seu nome, e vê o
anel com o qual a rainha Yseut (sua verdadeira amante) o presenteou, a memória lhe
impede de amar a outra, de cumprir suas obrigações como marido.
As tentativas de Tristan de impedir-se de amar não têm qualquer utilidade, mas
indicam um dos pressupostos do amor do século XII. Depois de sua primeira tentativa
(ovidiana) de administrar as emoções, isto é, seu casamento com a segunda Yseut,
Tristan buscou uma saída diferente, cujos contornos ele mesmo definiu: artista que era,
ele reproduziu Yseut na forma de uma estátua. Desde então, o herói atingiu uma espécie
de paz, que só era quebrada quando seu cunhado o forçava a voltar para o mundo “real”,
questionando-o sobre a manutenção da virgindade de Yseut aux Blanches Mains. Assim,
ele conseguiu encontrar uma solução bem-sucedida, ainda que efêmera, de re-presentar
– no sentido de tornar presente novamente – a amada, sem os problemas sociais,
políticos e morais que o casal tinha forçosamente que enfrentar.
A Sala das Imagens era um tipo de lugar de meditação. Tristan a visitava
sempre, como se revisitasse seu passado, pois ali estavam as imagens de seus feitos
heroicos, e uma imagem do amor. Assim, pode-se entender a atitude de Tristan em
relação às mulheres como a de quem sublima o desejo, substituindo a mulher material
pela ideal, inatingível senão pelo êxtase contemplativo. Metáfora eloquente de como o
amor-paixão pode sobreviver numa sociedade que o exila.
No entanto, é possível realizar uma outra leitura, fazer um percurso diferente
pela Sala das imagens, seguindo os passos de Tristan. Ao reproduzir com sua arte a
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imagem da amada, Tristan captou e representou a essência dela. Se lembrarmos que
Thomas era um clérigo do século XII, essa leitura pode fazer todo o sentido, já que
noção da imagem como uma entidade dual, consistindo basicamente num arquétipo
manifestado em matéria física, reveste a estátua de Yseut de uma aura diversa, que
indica a união de partes diversas, mas igualmente necessárias para a existência de um
todo. Além disso, as imagens são esculturas que corporificam a memória do enamorado
e as eterniza, para além dos limites morais e sociais do amor que viveram.
Segundo Tracy Adams, a visita de Tristan à Sala das Imagens era uma forma de
compreender, experienciando seu amor por Yseut através da analogia entre este amor
humano, que não se esgota no desejo sexual, e a relação com a realidade de Deus em
suas manifestações visíveis. Esta seria, portanto, a forma medieval e clerical de explorar
o paradoxo do amor – que, embora profundamente espiritual, demanda expressão física.
É tanto caritas (caridade) quanto cupiditas – (desejo). Os episódios cristalizados nas
estátuas são materializações de uma memória que concretiza aos nossos olhos a
concepção medieval em que o corpo humano, como também o espírito, estão
inevitavelmente implicados no amor.
É muito provável que Thomas tenha sido um clérigo, e como tal, sua visão do
amor-paixão resulte de experiências amorosas de outro tipo, a caritas ou o ágape.
Dizendo de outra forma, sua obra é fruto de uma construção/reflexão sobre o amor
humano, entre homem e mulher, sobre o casal amoroso, que o escritor realiza em
comparação às demais formas que ele conhece. Sua autoridade, tantas vezes afirmada,
pode referir-se a seus conhecimentos da verdadeira história do casal amoroso, cujo
modelo seria cristão e bíblico.16 O que nos importa neste momento é situar o papel da
memória na história “verdadeira” contada por Thomas. Pelo papel desempenhado na
obra, e pelo que pudemos perceber no conjunto de estudos sobre a “versão”, a Sala das
Imagens – criada por Tristan no exílio para lembrar-se de Yseut la Blonde, período em
que estava casado com a segunda Yseut (a de “Mãos Brancas”) para esquecer a primeira
– pode revelar alguns elementos para a compreensão do final da história – a morte de
amor – e o papel das duas mulheres na trajetória de Tristan. A memória de Tristan da
16 Embora não caiba aqui fazê-lo, uma possibilidade interessante para pesquisas futuras é comparar Tristan e Yseut e mesmo outros casais da obra de Thomas, aos muitos e diversos casais protagonistas das narrativas bíblicas, sobretudo do Antigo Testamento.
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rainha Yseut representa tão poderosamente a realidade do amor físico e espiritual, que o
jovem homem torna-se incapaz/inútil diante dela.17
Folies, lai : um episódio, múltiplas memórias
Um único verso, que funciona como prólogo, anuncia a narrativa da aventura de
Tristan na Folie de Berne. Para caracterizá-la, valorizar alguns de seus aspectos
fundamentais – e preparar a tensão da trama – o narrador focaliza diretamente o
protagonista nos versos seguintes (v. 1-18). Indisposto com a corte de Marc, Tristan não
sabe para onde ir. Vive receoso, pois soube que está sendo caçado pelo rei, seu tio, por
causa dos danos que causou à rainha. Exilado e ameaçado pela vingança do rei, e ainda
refém do desejo: embora tenha a seu lado uma Yseut, Tristan deseja a outra, a primeira.
Desde o início do poema (composto por 584 linhas), esboçam-se oposições e
enfatizam-se polarizações. Tristan, antes o preferido de Marc, é no momento objeto de
seu ódio; campeão, de um dos reinos da família, está proscrito em outro de seus
próprios domínios; herdeiro do rei Marc torna-se um traidor perseguido por ele; o
amante exemplar da rainha Yseut torna-se o marido impotente de Yseut aux Blanches
Mains. Marc, por sua vez, passa de um marido traído oscilante, e rei ofendido, para a
condição de senhor poderoso; os barões deixam a posição reativa de delatores para
assumirem a de caçadores em busca de recompensas. A percepção dessas polarizações
implica, para a plateia, a utilização da memória e das conexões operadas pelo escritor e
pelo narrador.
O poeta de Berna constrói as cenas iniciais utilizando o enfoque e os
comentários do narrador, inserindo as reminiscências significativas através das falas das
personagens. A plateia é assim chamada a observar uma aventura e um jogo: Tristan,
“inimigo público”, experimenta as dores do exílio amoroso, da privação do exercício de
17 Outro subtexto, ainda, da história de Thomas pode ser encontrado no milagre latino: “A respeito do jovem nobre que amou demais uma certa dama nobre”, a fonte de “Les 150 Ave du chevalier amoureux” (As 150 Ave Marias do cavaleiro amoroso?), de Gautier de Coinci. Nesta história/lenda, um jovem e belo cavaleiro apaixona-se perdidamente por uma mulher que não quer saber dele. Ele procura um padre, buscando conselho, e lhe é dito que reze à Virgem Maria se quer ganhar a linda dama. O cavaleiro conscientemente faz a novena que o padre lhe havia indicado, mas, ao final, a Virgem aparece a ele em uma capela nos bosques onde estava caçando e o convence de que ela é um objeto muito mais digno do seu amor do que a dama terrena a qual amava. O estudo supra citado de Tracy Adams nos apresenta uma bela análise das aproximações e entrecruzamentos entre tradições cristãs e clássicas, e sugere uma série de questões – inclusive a do papel dos amuletos e símbolos – que merecerão nossa atenção num estudo posteiros sobre esses elementos das narrativas anglo-normandas.
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sua identidade. Por outro lado, e ao mesmo tempo, Marc exerce sua autoridade
“pública” e pessoal numa assembleia de barões, vassalos a quem solicita conselho e
auxílio para uma vingança pessoal, que assume conotação “pública”, na medida em que
se trata de uma ordem real para a captura de um traidor.
Todas essas comparações são orquestradas pela memória, e o narrador é
explícito: a plateia observa a situação de Tristan e, para compreendê-la e avaliar
adequadamente seus desdobramentos na narrativa, deve lembrar-se de passagens
anteriores da história da personagem. Primeiramente, sua relação com Yseut, sugerida e
caracterizada indiretamente por adjetivações: a plateia pode identificar os referidos
“danos” causados a ela por Tristan com a conquista de sua mão para Marc, a ingestão
conjunta do filtro na travessia marítima da Irlanda para a Cornualha e a paixão dela
decorrente, a perda de sua virgindade, a necessidade de enganar o rei, os perigos da
manutenção de uma relação adúltera. As anacronias possuem funções significativas, e o
apelo à memória, indiretamente solicitado pela composição da trama, é condição de
intelecção dos sentidos da narrativa episódica.
Em seguida, focalizando o ponto de vista de Tristan, o escritor indica que a
memória sensível é fonte de inúmeras dores: se ele não pode sequer ousar voltar ao país
(de onde foi obrigado a fugir) para reencontrar a amada, a lembrança dos encontros
furtivos e dos prazeres físicos experienciados amplificam a ausência de Yseut no
presente, e torna a distância insuportável. Além disso, a presença de outra Yseut, a
esposa, só contribui para aumentar seu desespero: como a plateia pode se lembrar,
outros narradores contaram que Tristan não conseguiu consumar seu casamento, pois o
anel – que imediatamente invocou a associação com Yseut – não permitiu a Tristan
amar a outra, senão a rainha, representada naquele momento pelo signo material e pela
memória sensível. Da tensão entre emoção e razão, paixão e casamento, passado e
presente, emerge a loucura. E o disfarce de louco, ao mesmo tempo.
Numa mistura muito peculiar da matéria de Tristan com expressões, temas e
estilos dos fabliaux, o escritor nos apresentou a situação do amante em busca da
satisfação de seu desejo, tal como um amante cortês também faria. Enlouquecido pela
memória sensível dos prazeres vividos, o herói assume a condição de louco e a utiliza
como disfarce.
O disfarce de louco, portanto, liberta o louco de amor. Na grande sala, o disfarce
permite a Tristan lembrar e projetar, dizer publicamente coisas absurdas e/ou
verdadeiras, que podem ser levadas a sério (como um tipo de confissão) ou
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desconsideradas (por serem proferidas por um louco), dependendo da perspectiva dos
que o veem e ouvem. De fato, o que ele diz diante da corte é cheio de ambiguidade
porque, de um lado, seu discurso faz parte do disfarce, reforçando pelas palavras a
aparência do louco; por outro, deve dar a Yseut indícios para que reconheça o amante
sob o disfarce, para além das aparências.
Embora inicie com a narrativa do mesmo episódio, a Folie d’Oxford enfatiza
muito mais as condições emocionais de Tristan. Só, pensativo, melancólico,
dissimulando pensamentos e emoções. Doente de amor. Tristan, exilado em seu próprio
país, vive as dores da ausência de sua amada. É com esse retrato da personagem que o
narrador do poema de Oxford (998 linhas) principia a história, nos primeiros 75 versos
que emolduram a narrativa. Ele nos conta que Tristan, consumido pelas dores
lancinantes do desejo da amada, pressente e deseja a morte. A busca de algum conforto
impulsiona uma nova aventura, que está por vir. Arriscar a vida: morrendo aos poucos
pela falta de Yseut, teria conforto se a encontrasse novamente, ou morresse na busca. De
uma forma ou de outra, para Tristan, Yseut precisa saber que é por amor, e por ela, que
ele está mortificado, e pronto para morrer.18 A memória da personagem tem um tom
melancólico, que se manifesta como desconforto físico e psíquico: a razão fraqueja, o
desespero o apunhala. Transtornado pela ausência da amada, e temendo seu desprezo
(caso não fosse capaz de correr, por ela, todos os riscos) resolve revê-la em segredo, ou
disfarçado de louco melancólico.
No grande salão do palácio de Marc, o louco continuava sua performance
ambígua, procurando ao mesmo tempo, sob o disfarce, esconder-se dos cortesãos, e
denunciar sua presença para Yseut. O rei e os seus, segundo o narrador, divertiam-se
com o louco eloquente, que continua insistindo em declarar seu amor pela rainha. De
sua parte, ao ouvir suas palavras de amor eterno, Yseut suspira, perturbada e
empalidecida. O louco, que então se nomeia Tantris, dirige-se diretamente a ela, e
invoca sua memória. Pede que se lembre – como todos ali presentes conheciam a
história – que ele foi ferido ao enfrentar Morholt, a quem matou. Porém, a grave chaga
aberta em seu flanco pela espada envenenada atacou-lhe os ossos, que apodreceram
18 O que para os troubadours, e depois para os trouvères, é simplesmente uma figura de estilo (que a ausência da amada retira da vida qualquer significado e faz com que o amado deseje a morte) torna-se no universo mais tangível do romance uma descrição objetiva que apresenta, com respeito à realidade, um comportamento que é tanto anormal como trágico. Cf. PAYEN, Jean-Charles. The Glass Palace in the Folie d’Oxford: From Metaphorical to Literal Madness, or the Dream on the Desert Island at the Moment of Exile – Notes on the Erotic Dimension of the Tristans. In: GRIMBERT, Joan Tasker (Ed.). Tristan and Isolde – A Casebook. Routledge: New York and London, 2002, p. 111-124.
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provocando então um tal sofrimento que ninguém podia aliviar; acreditando que fosse
morrer, Tristan foi lançado ao mar com sua harpa, embora nem a música pudesse dar-
lhe conforto. Foi então que a tempestade arremessou a nave na direção da Irlanda, onde
o herói aportou, e foi levado – enfraquecido, e contra sua vontade – à corte, a pedido da
princesa, pois sabia tocar bem a harpa. Lá, a rainha – a quem o louco disse ser sempre
agradecido – curou suas feridas. E ele, então, fez-se nomear Tantris, e apresentou belos
lais bretões acompanhado pela harpa.
Tristan buscou utilizar a memória do passado heroico como sinal
simultaneamente de reconhecimento – para Yseut – e de disfarce, para os demais. Sua
insistência nos detalhes e declarações de amor, no entanto, soaram para Yseut como um
indício de que poderia estar sendo testada, como adiante argumentará para Brengain.
Como seria possível alguém conhecer tão bem detalhes íntimos de sua vida “pública e
privada”? E justamente alguém com a aparência absolutamente contrária ao que sua
memória lhe apresentava como traços de seu amado? De seu ponto de vista, o louco –
grosseiro, hediondo, disforme – era um trapaceiro que, pelas palavras, tentava passar
por seu belo e nobre amante. Segundo o poeta, o rei em nenhum momento protegeu a
rainha; muito pelo contrário, divertiu-se com seu desconforto, consentiu em sua
exposição pública. O que para os cortesãos e para Marc era motivo de riso e escárnio,
para Yseut era fonte de sofrimento.
Um novo conjunto de recordações de suas aventuras é renarrado pelo louco,
todas relacionadas à da conquista da mão de Yseut para Marc (vv. 416-484). Observe-se
que a lógica da rememoração não é essencialmente cronológica, mas responde aos
critérios da revelação da bravura do herói em comparação aos estratagemas do rei, da
memória individual à do casal de amantes, dos feitos políticos e dos correspondentes
perigos aos quais o grande cavaleiro esteve exposto. O jogo de palavras entre o narrador
da história e a personagem, que revive sua própria trajetória, funcionou, para Yseut,
como substituto/símbolo da bebida: a memória que elas invocaram teve ação inebriante,
suspendeu-lhe a razão. Ela realiza uma leitura necessária de todos os signos – visuais,
aurais, gestuais e verbais – para avaliar a identidade do louco. As evidências físicas da
loucura, manifestas em Tantris, são comparadas com as memórias que ela possui de
Tristan, enquanto o bufão renarrava as experiências de Yseut e seu amante no passado, e
solicitava que Yseut utilizasse sua memória. A conclusão de Yseut reflete as hierarquias
de faculdades de conhecimento, nas quais a crença ordena os resultados do intelecto, da
memória e da experiência sensorial (ou da percepção através dos sentidos). A crença
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alcança a totalidade do ser da pessoa, mas o disfarce de Tristan desintegrou essa
totalidade, e os fragmentos perceptíveis de Tristan Enamorado e do louco não podem
fazer Yseut reconstituir a totalidade. No diálogo que então se desenvolveu, Brengain pôs
o louco à prova e, mais uma vez, Tristan invocou a memória do episódio do embarque
da Irlanda para a Cornualha, com riqueza de detalhes, como índice de identificação. O
mais importante dentre todos foi o da entrega à Brengain, pela rainha da Irlanda, do
frasco que continha o filtro amoroso. Tristan aqui, diferentemente de outras narrativas e
mesmo da renarração feita diante da corte, atribui a um servidor qualquer a
responsabilidade pela ingestão do vinho ervoso e, consequentemente, pela paixão.
Brengain finge não se lembrar, mas o louco insiste que ela tem sido confidente e
cúmplice dos amantes desde tal momento.
Observe-se que Tristan lança a Yseut, através da memória, todos os indícios de
que ele é seu amado, vive como louco uma provação autoimposta, e que veio para obter
dela uma prova de amor. Os demais episódios rememorados no âmbito privado, que são
indicativos de sua identidade num sentido amplo, são referidos por ele fora da sequência
cronológica que, no salão do palácio, ainda constituía um dos critérios de narração. Por
livre associação, digamos assim. Tristan dá um sentido cada vez mais material e
simultaneamente mais significativo à rememoração. De fato, ele procura mostrar a Yseut
sua identidade através de todos os tipos de sinais dos quais o amor se alimentou, e a
partir dos quais sobreviveu às pressões da corte. A memória trabalha tanto através da
renarração do passado por Tristan, como de sua percepção do presente, restaurando a
crença de Tristan em Yseut e no amor dela. Assim que Tristan falou com sua própria
voz, ele pôs fim a uma rota falsa inexaurível de interpretação; ele parou de produzir
sinais ambíguos, e falou abertamente. Nas hierarquias das faculdades – crença,
intelecto, memória e percepção – estão os elementos que ordenam a parte interna
daquele processo, e que são representados nas ações e nas relações das personagens. Tal
como na Folie d’Oxford, o encontro e a união dependem da identificação do amante,
sendo condicionado pela memória. Yseut não reconhece Tristan no louco, e ele, com a
ajuda de Brengain, trata de referir-se aos seus feitos passados. No quarto real, a
memória visa a apresentar a Yseut o quanto ele a deseja, e quantos perigos tinham
enfrentado juntos para se amarem, apesar de todas as proibições. Tristan rememora as
vezes em que, no quarto da rainha, tocava harpa para alegrá-la quando estava triste,
havendo a rainha lhe curado, perfeitamente sozinha, as feridas abertas em batalhas e
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pelo veneno do cruel dragão. Lembra-lhe com detalhes de quando estava no banho, e
Yseut desembainha sua espada de aço, experimentando encaixar o entalhe.
O conteúdo dos discursos de Tristan e os temas tratados em seus monólogos ou
nos diálogos que mantém com outras personagens – memórias de atos heroicos, a
fidelidade ao rei, a relação amorosa, suas dores e delícias – são tratados em ambos os
ambientes do palácio de Marc, mas mudam de teor e função, e abordam perspectivas
diferentes em cada um desses espaços.
O problema colocado pela Folie de Berne é aquele da reminiscência e
reconstrução: os leitores são testemunhas e participam da trama através da memória,
assim como Tristan e Yseut, para reunir no presente os fragmentos espalhados do
passado. Uma vez que Tristan e Yseut de novo trocaram “cachorro e anel”, eles
relembram e juntam todos os elementos presentes naquele momento do passado quando
partiram da floresta de Morois. A memória completou seu trabalho na reunião do final.
Marie de France, escritora19 contemporânea de Henrique II, associa suas obras a
um nome próprio, o seu, e não ao do Rei a quem ela oferece a sua coleção. Citando a
auctoritas de outros, ela assegura implicitamente a sua própria, baseada no
conhecimento de tradições, orais e escritas, em latim e vernáculo.20 A forma de
apresentar o lai Chèvrefeuille e sua coleção como um todo, e de apresentar-se como
escritora, também faz referência aos processos culturais da época: reconhece a si mesma
como intermediária entre a aventura, o canto e o texto; e, por extensão, entre o tempo da
aventura, o da composição do lai por Tristan (com o objetivo de contar e conservar a
história), e o da renarração escrita, que é mais um meio de conservação que permite que
a história volte a circular através do canto, efetivando o propósito do primeiro
elaborador: manter viva a memória do evento. Como sabemos, lai é o nome dado a um
tipo de poema versificado, uma canção composta e executada para elogiar um evento
significativo, através de sua permanência na memória de quem a compusesse, e dos que
ouvissem a história e a canção, no presente de sua criação, e na posteridade. Uma de
19 Marie de France e sua obra – composta de lais e traduções – é figura importante no universo cultural do século XII. Sobre ela, ver principalmente BRUCKNER, M. T. Textual Identity and the Name of a Collection: Marie de France’s Lais. In: Shaping Romance – Interpretation, Truth, and Clousure in Twelfth-Century French Fictions. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1993.; BLOCH, R. Howard. The Anonymous Marie de France. Chicago: The University of Chicago Press, 2003. 20 Assim como Chrétien de Troyes afirma orgulhosamente seu nome nos Prólogos a Erec, Cligés e Charrete, para estabelecer a ligação entre o nome do escritor e a tradição textual (e transferindo a garantia de auctoritas do latim para a escrita em vernáculo), também Marie coloca seu nome no início de sua coleção, assegurando-nos de que todas as histórias que seguem foram moldadas por seu cuidado e sua arte.
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suas características é, portanto, a forte e decisiva presença da voz do narrador,
fundamental tanto em termos quantitativos como qualitativos, fosse ele ou não o
elemento intratextual que representa o escritor. A forma como o curto prólogo resume o
conteúdo da história dos amantes chama a atenção: um amor perfeito e que causou
muito sofrimento, antes de provocar a morte dos amantes no mesmo dia. 21
Um encontro, é o que o lai rememora e comemora: pela alegria que
experimentou ao rever sua amada amiga, graças ao bastão que tinha gravado, com um
chamado para ela, e para preservar as palavras do esquecimento, Tristan – que conhece
bem a harpa – compôs um novo lai. Marie o nomeia “sem demora”: Gotelef em inglês,
Chèvrefeuille, em francês.
Memória e voz são os agentes da transmissão oral; escrita e leitura são as
operações primárias da tradição textual. Entre o Lais de Marie, apenas Chaitivel e
Chievrefoil descrevem como a aventura dos personagens foi transformada em lai pelos
amantes que a vivenciaram. No entanto, reiteração da verdade feita por Marie, em todos
os lais, e os problemas que abordam, permite supor que seu relato das aventuras
corrobora fielmente a verdade da experiência humana vivida. Se essa verdade origina-se
de uma específica aventura do passado, então o dever de um narrador de histórias é ao
mesmo tempo, ativo e passivo, ao lembrá-la e passá-la adiante – ativamente,
emprestando sua voz para tornar vivos os personagens e suas histórias na presença do
público ouvinte; passivamente, preservando intacta, sem mudança, uma verdade original
que está embutida (engastada) na própria aventura.
De acordo com a suposição, a verdade foi estabelecida antes que a história fosse
recontada e precisa atravessar intocada através da translatio de Marie, como ocorreu
nas gerações de contadores orais de histórias que a precederam. A presença da obra de
Marie torna o passado presente, mais uma vez, e nos permite reconhecê-lo de um modo
que relembra as estratégias da Folie de Oxford. Marie, assim, enfatiza o caráter oral de
sua competência narrativa para levar a cabo e afirmar a sua continuação inquebrável da
tradição de contar histórias que comemora a aventure original. Ela não é, porém, com
certeza, Tristan, que fala de sua própria história ou de sua própria aventura. Marie
produziu seu próprio texto escrito. Embora sua afirmação explícita de fazer algo
21 No século XIX, uma primeira edição de seus trabalhos (1820-1832, com o título Poésies de Marie de France, poete Anglo-Normand du XIIIe Siècle ou Recueil de Lais, Fables et autres productions de cette femme célèbre, by J.-B.-B de Roquefort, in: F.-J._M. Raynouard’s review in the Journal des Savants of 1820); os grandes medievalistas pós-guerra Franco-Prussiana – Gaston Paris e Joseph Bédier – ampliam o corpus atribuído a ela (os Laís bretões anônimos Tydorel, Guingamor e Tyolet), e Paulin Paris incluiu Evangile des femmes.
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diferente, não romaunz, reforce a oralidade de seu projeto, Marie reconhece, ao mesmo
tempo, certas vantagens associadas à escrita, vantagens que precisam ser compensadas
pela mudança inevitável introduzida, quando uma verdade associada à experiência
humana e tradição oral é transposta para a escrita. Mesmo assim, de fato, a linguagem é
uma mudança reconhecida talvez tanto quanto é negada pela reiteração da verdade.
Como o amor.
Epílogo
Um dos filtros das perspectivas e hierarquias constitutivos das obras de Béroul,
Thomas, das Folies e do lai Chèvrefeuille é a memória. Como já afirmamos, os textos
da legenda resultam de uma seleção da tradição. Além do escritor, que a utiliza como
material para compor a obra, ouvintes e participantes das performances servem-se da
memória para compor e recompor a história de Tristan, participando ativamente de cada
renarração. Some-se, assim, à capacidade de retenção de dados da matéria –
conhecimento e lembranças de episódios, encadeamentos narrativos, motivos – as
competências criativas e formais de recitadores, escritores e seus públicos, em situação
de presença – vozes, gestos, expressões – das quais o texto é um indício. Na
composição e na leitura da narrativa, o jogo entre memória e esquecimento é criativo22.
No sentido medieval, a leitura é busca por decodificar, tirar o véu, apreender e
compreender os significados escondidos nos textos, nos gestos, nas imagens.
Cada personagem, envolvida direta ou indiretamente nos eventos apresentados,
nos fornece determinada perspectiva da história de amor, e referências para a
consideração de sua natureza; os comentários e ênfases dos narradores expressam
simultaneamente as suas visões e os seus expedientes para influenciar a perspectiva dos
ouvintes/leitores, tendo estes últimos leituras pautadas por associações intra e
extratextuais, expectativas conhecidas e, de certa forma, compartilhadas com o escritor,
22 Na poesia oral é impossível se distinguir os atos da composição e da récita, uma vez que ambos são sinônimos (e atos simultâneos). Na produção escrita, existe um intervalo entre o momento da composição e a ocasião da recitação ou da leitura, um intervalo que confere uma vantagem ao poeta letrado sobre sua audiência, vantagem negada ao seu colega de improvisação oral para quem composição e récita são dois aspectos do mesmo processo. Se cada desempenho oral – performance – é portanto único, e se o poema oral não existe (exceto na memória) separado de sua representação, não há nada como um original, ou uma variação e, igualmente, nenhum autor; mas, ao contrário, uma multiplicidade de recitadores/poetas, uma vez que cada recitação é um ato separado. Em razão disso, o poema oral é geralmente anônimo – não no sentido romântico de um ‘dichtender Volksgeist’, mas porque o poeta oral não pode conceber a si mesmo fora da tradição. Adaptado de GREEN, D.H. Irony of the narrator (cap. 7) In: Irony in the Medieval Romance, Cambridge: Cambridge University Press, 1979, pp. 213-249.
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responsável pela composição da trama. Além disso, essas obras permitem conhecer
eventos de uma história completa de Tristan graças aos procedimentos de invocação
retrospectiva, feitos diretamente pelos escritores e narradores nos textos – através de
seleções e focalizações – e, de forma indireta, através das referências e/ou das falas das
personagens, que apelam às memórias umas das outras, e também às dos ouvintes-
leitores. E, como a memória possui diferentes funções no presente da narração de cada
trama – justificar ações, reforçar ideias, elogiar características das personagens –
podemos inferir que os objetivos dos escritores eram outros: não se tratava apenas de
reproduzir a história completa de um herói, mas de recriá-la, com ênfases e perspectivas
diversas, que inserem o problema do amor na historicidade da vida e das relações entre
as personagens e o mundo em que se movimentam, dentro e fora dos textos.
De fato, essas características dos textos sobre Tristan – em particular os do
século XII – são expressão de sua forma de existência através do tempo. São textos
produzidos e reproduzidos “por muitas mãos”, e têm, assim, marcas de diferentes
sujeitos, práticas culturais, concepções e temporalidades: dos primeiros escritores que
selecionaram, combinaram e “puseram por escrito” os relatos orais, as muitas vozes de
cantadores e poetas sobre a personagem central do ciclo que, ao fazê-lo, inseriram em
suas “versões” elementos do contexto histórico amplo no qual escreveram; dos copistas
que, no século XIII, produziram um número variável de manuscritos de cada um dos
textos, com intervenções que desconhecemos (adaptações dialetais, mudança de
palavras ou até de versos inteiros, de tal forma que as cópias podem se tornar “versões”
diferentes de um manuscrito original), funções diversas e para públicos variados; dos
colecionadores eruditos que constituíram os corpora, tratando os textos como suas
propriedades, a ponto de inserir comentários e interferir na obra medieval; finalmente,
dos filólogos que trabalharam no estabelecimento e edições dos textos durante o século
XIX, e dos estudiosos que buscaram interpretar os textos de diversas perspectivas a
partir de então. Devemos, portanto, considerar que as fontes medievais estabelecidas no
século XIX são pontes importantes para nosso acesso à Idade Média, mas não podemos
confundir as diferentes temporalidades históricas que fazem parte delas. De fato, os
textos são rastros de obras poéticas e práticas medievais de “manuscritura”, isto é,
manuscritas (ou elaboradas em manuscritos), e também “modernas” – as “versões” das
cortes, e as obras “literárias” do século XIX, respectivamente – suas concepções de
texto e de “literarização”.
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A memória, em suas dimensões social, cultural e individual, era elemento
fundamental em todos os textos medievais, nos momentos da composição de uma obra e
de sua leitura, fosse ela realizada individual e silenciosamente, ou coletivamente e em
voz alta. Dado essencial da cultura, a memória é, por isso mesmo, elemento que permite
diferenciar as versões de uma mesma matéria e problematizar essas diferenças,
referindo-as ao contexto, ao jogo23 entre tradição e inovação, ao próprio movimento
histórico.
Referências
Edições dos textos do século XII
MARCHELLO-NIZIA, C. (ed.) Tristan et Yseut – Les premières versions
européennes, Bibliothéque de la Pléiade, Paris: Gallimard, 1995.
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YATES, F. A. A arte da memória. Campinas: Editora UNICAMP, 2007.
23 O conceito de jogo utilizado aqui tem como referência a definição apresentada por Hans Ulrich Gumbrecht, Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.., p. 38.
Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
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_________. Tradição e esquecimento. São Paulo: Hucitec, 1997.
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médiévale. Québec: Presses de L’Université de Montréal, 1985.