Micronovelas

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Trecho de amostra de trabalho gráfico.

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1 - Purgatório Redux 11

2 - Crepúsculo de Cubatão 34

3 - Definição de Samba 67

4 - Monsenhor 72

5 - Noites de Hotel 94

6 - O Baú de Cerejeira 111

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Para Cris e Mel

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Micronovelas por Marcelo Barbosa

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1 - Purgatório Redux

Esta história é verdadeira e aconteceu no dia 29/02/2003...

A última vez que havia olhado o reló-gio passava das dezesseis. Pontual e ansioso, compareci à clínica situada num sobrado da rua do Ouvidor construído em estilo neoclássico. Jamais esquecerei o aspecto do inte-rior do prédio: lembrava a ostentação cafona de um bingo de subúrbio. Não à toa, o especialista trouxe um envelope lacrado onde se encerrava minha sorte e o meu azar. E deu azar. Meio atônito, caminhei até uma importadora na esqui-na da Buenos Aires com a Rio Branco e fiz a única coisa que me pareceu adequada: comprei uma garrafa pequena, des-sas que cabem no bolso do paletó, de Chivas Regal. Tomei um, dois, três goles. O bastante para me fazer lembrar que em poucos meses esse prazer, assim como todos outros, me seria arrancado junto com a vida.

Olhei em volta, o mundo seguia o seu normal. As pessoas que atravessavam a rua não sabiam do meu dra-ma. E se soubessem, cagariam. Meu celular começou a to-car. Não atendi a nenhuma das chamadas porque não havia

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mais sentido. Joguei o aparelho no chão e já me preparava para pisoteá-lo quando um mendigo, deitado em frente ao um tapume de obras, gritou:

–Não quebra não, doutor. Me dá para eu vender a bateria.

Deixei com ele o que restou do telefone, o dinheiro que eu tinha no bolso e as chaves do meu Audi. Antes de par-tir, dei uns goles de Chivas ao pedinte. Daí, segui andando, a esmo, em direção à Marina da Glória.

Foi lá que encontrei com Deus.

Ao contrário do que muita gente poderia pensar, a aparição do Todo-Poderoso não foi um efeito especial. O céu não se abriu para Ele descer por entre as nuvens. Tampouco as águas da enseada se ergueram do seu leito ante o efeito da sua presença. Na realidade, Ele apareceu casualmente, como se fosse assistir a uma exposição no MAM ou a uma pelada no Aterro. Confesso que esperava uma figura pode-rosa, uma espécie de Paulo Autran com barbas. Mas quem apareceu diante de mim foi um negro com a serena dignida-de de um Pixinguinha.

Não perdi tempo com reverências:

– Que baita sacanagem que você aprontou para mim, hein?!

– Meu filho, posso entender sua revolta...

– Não pode! Ano que vem você vai continuar por aqui.

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Já eu, nunca saberei se o meu filho passou no vestibular...

– Você deve se resignar...

– Por que eu deveria? Você me abandonou!

– Não é nada disso!

Nesse momento, Pixinguinha, isto é, Nosso Senhor, respirou fundo. Pediu silêncio com um gesto amável mas firme e seguiu falando:

– Meu filho, a tua sorte não me é indiferente embora o que te aconteceu não seja culpa minha.

– Ah, já entendi, você está tirando o corpo fora!

– Não, o que quero dizer é que é do ciclo da vida nas-cer e crescer, assim como morrer.

Sob o ponto de vista lógico, aquilo fazia sentido. De fato, Deus daria um bom teólogo. Porém suas respostas não resolviam nenhum dos meus problemas.

Assim, resolvi dar as costas para Deus.

Prosseguindo em minha caminhada, sem direção, pela cidade, começaram a brotar ideias homicidas contra mim mes-mo. Pensei: para que ir definhando aos poucos, sentindo dores inenarráveis, aporrinhando a minha família e os meus amigos com a minha doença? Melhor seria acabar com tudo aquilo de uma vez, escolhendo uma morte rápida, de preferência indolor. Foi justamente quando avistei a estação do Metrô da Cinelândia.

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Com pouca prática de suicídio, não chegou a causar surpresa a atrapalhação e a falta de planejamento de minha tentativa. É que após comprar um bilhete e passar na roleta, várias dúvidas apareceram na minha cabeça: deveria saltar nos trilhos no sentido zona norte ou zona sul? Esperar um horário mais vazio para causar menos transtorno? Quem sabe aguar-dar a saída das crianças que estavam na plataforma?

O alto-falante da estação tocava um dos Noturnos de Chopin, numa gravação de Rubinstein talvez. Comecei a ficar distraído e encantado com a possibilidade de encer-rar a existência ao som de uma música tão bonita. Toda a minha excitação desapareceu. Caminhava agora com a de-cisão tranquila de ultrapassar a faixa amarela do limite de segurança. De tão relaxado quase flutuava sobre os próprios sapatos, como se fosse possível ir ao encontro do desconhe-cido dançando os compassos daquele tema, melodia tão fa-miliar que minha mãe cansou de tirar ao piano da casa onde passei a infância. Meu enleio não deve ter durado muito. Talvez alguns segundos. O suficiente para a segurança des-confiar do meu comportamento – afinal pessoas não dan-çam em estações do metrô. Assim, quando me joguei em-baixo do primeiro vagão, a carga dos trilhos de alta tensão já havia sido desligada.

O trem fez uma freada brusca por cima de mim. Lembro-me de ouvir os gritos das senhoras. Num primeiro momento, até achei que tinha sido bem-sucedido na minha tentativa. Logo reparei, no entanto, que estava ileso, sem

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nem um ferimento superficial que fosse. No máximo um pouco amarrotado.

Fui retirado dos trilhos pelo pessoal da manutenção e da segurança que me xingaram o tanto que puderam. Um dos caras chegou a me perguntar por que eu resolvera me matar logo no turno dele. Respondi que não havia nada de pessoal naquilo. Um outro ainda insistiu:

– Quer se matar mesmo? Pula do vão central da Rio–Niterói.

Fiquei indignado. O brasileiro consegue ser espírito de porco até com a eutanásia alheia.

Antes que trouxessem a polícia, consegui fugir por uma das galerias da estação Cinelândia e fui sair na Uruguaia-na. Prossegui em direção a Santa Teresa até a atingir a encos-ta do Morro dos Prazeres. Não sentia nem fome e nem sede. De vez em quando levava aos lábios mais uma dose do Chivas.

O tempo todo pensava no plano para pôr fim à mi-nha vida. Algo me dizia que tentativas como a do metrô não me levariam a nenhum resultado proveitoso. Precisava de alguma coisa cem por cento garantida. Era por isso que con-tinuava andando em direção ao topo do Morro dos Prazeres. Lá encontraria a oportunidade que buscava.

Não segui a rota mais óbvia. Preferi subir por uma picada em meio ao matagal. Era um caminho repleto de ar-bustos, cheio de espinhos e de muitas pedras, sem viv’alma