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    Invariantes axiolgicasM I G U E L R E A L ENo creio possa haver tema mais fascinante do que este das inva-riantes axiolgicas, isto , da existncia ou no de valores fu n-damentais e fundantes que guiem os homens, ou lhes sirvamde referncia, em sua faina cotidiana. Seriam como que estrelas valo-rativas determinantes ou esclarecedoras de cada vocao, desde a dosacerdote para o sagrado do poeta para a beleza, desde a do empresriopara a riqueza do filsofo para a verdade, desde a do jurista para ajustia do trabalhador para a produo e o til-vital.

    A magnitude do assunto suscita logo uma srie de perguntasinquietantes: "sero tais valores primordiais inatos? Se no o forem,tero objetividade em si, mas como e quando a constituram? Ou sero,ao contrrio, meras aparncias, simples idealizaes subjetivas com quenos enganamos a ns mesmos, mascarando a nossa ignorncia?".Vede que esto em jogo a natureza e o destino do homem, parasabermos se a sua vida tem um sentido, ou mera folha solta e inerme,entregue aos surpreendentes e imprevistos avatares da Histria?Compreendeis, pois, nesta conferncia, com que provocis minhavaidade, por ser o modo gentil e generoso de homenagear-me emmeu octogsimo aniversrio compreendeis que aconselhvel come-armos pela anlise da prpia palavra Valor, dada a transparncia pri-meira do verbo.Numa indagao fenomenolgica, que partindo da conscinciaintencional se proteja nos horizontes da Histria e da Cultura, tentareicaptar algo do sentido da palavra Valor nos momentos iniciais e sempre

    reveladores de sua compreenso. No cuidarei de fazer arqueologia nomundo das idias, mas apenas discernir algo de significativo no " es-tado nascente" da experincia valorativa.Nessa ordem de entendimento, cabe-me lembrar que a Antigi-dade clssica no teve plena percepo do fenmeno axiolgico, como orevela a verificao de que o substantivo Valor ou inexiste, como se dem Roma, ou apenas representa um esboo dessa multiplicidade cadavez mais rica e desafiante de sentidos que o homem moderno sente ne-

    cessidade de descobrir no mago da palavra Valor.Os gregos usavam, sem dvida, o substantivo xia raiz do

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    termo Axiologia mas ainda era de pobre contedo, servindo maispara indicar o preo ou valor de uma coisa, para distinguir uma situaomeritria, ou seja, uma "dignidade" como tal merecedora de nossoapreo, ou ainda a fim de estimar-se a espcie e o grau de pena a seraplicada. A bem ver, os gregos davam mais realceao adjetivo xios, querdizer digno de estima, com que enalteciam a valentia dos heris ou dosguerreiros, os seus valorosos estadistas e artistas e asvirtudes vlidas dosartfices.

    No plano filosfico, ento, quando Plato ou Aristteles se refe-rem ao valor mais alto, preferem empregar a palavra gathon, quesignifica bem, na qual estava inerente o sentido de valor. Na considera-o do bem, todavia, j variavamas "valoraes", apresentado que erao Bem por Plato como um arqutipo ideal, enquanto Aristteles, rea-listicamente achegado s vicissitudes humanas, o via antes segundo ra-zes de proporcionalidade.

    Ora, foi a prevalncia do adjetivo xios sobre o substantivo xiaque levou Ccero, ao transladar para o latim os vocbulos gregos, a tera feliz percepo da palavra aestimabile, o que deve ser salientado, pois,em portugus, dizemos tanto "mundo dos valores" como "mundodas estimativas".Na falta do substantivo Valor, os romanos,a exemplo dos gregos,

    propenderam para a palava Bonum, um valor singularque assumia sen-tido genrico, prevalecendo entre os jurisconsultos, como bem supre-mo, a Justitia, universalmente entendida como divinarum achumanarumrerum notitia.

    No ser demais notar que os romanos, ao indagarem do bem su-premo, acolhiam a herana dos Esticos, os quais haviam transferido otratamento de gathon, do bem, do plano ontolgico ainda preva-lecente em Plato e Aristteles para o plano tico, dominante em suacosmoviso naturalista.Permiti que, ao concluir este breve escoro histrico sobre a idiade Valor na Antigidade clssica, me arrisque a observar que era indaimprecisa ou reduzida a acepo dos termos xia ou aestimabile, o queconfirma minha afirmao sobre a inexistncia ento de uma Axiologia

    qua talis, de sorte que, na linha do pensamento clssico, no haveriaque falar em invariantes axiolgicas, mas sim em invariantesontolgicasou ticas, estas no pensamento de Zeno e de Crisipo.Talvez se possa dizer que, enquanto um sentido no se substancia-

    liza plenamente, sinal de que ainda se encontra em processo de forma-o ou de revelao, o que mostra o contraste impressionante entre o

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    uso da palavra Valor entre os antigos mestres ocidentais e os pensa-dores modernos, por assim dizer angustiados pelo emprego dominadordessa palavra-chave, to ligada ao sentimento dos riscos que atualmenteameaam o destino do homem.Salvo engano, parece-me que a palavra Valor somente aparece nolatim medieval, e, com mais plenitude, nas lnguas novilatinas, notada-mente no provenal e no italiano, fazendo pendant com o termo wertdos alemes.Todavia, nos textos filosficos clssicos da Idade Mdia, escritosem latim, no encontramos a palavra Valor, prevalecendo ainda a pa-lavra Bonum, mas em correlao direta com a idia de Ens, a partir daconvico, de manifesto sentido religioso, de que quod est bonum est.Haveria muito que indagar sobre as razes da inexistncia da palavra

    Valor na obra, por exemplo, de Santo Toms de Aquino, to rica demotivos axiolgicos.E num discpulo de Santo Toms, no entanto, em Dante Alighierique encontramos a expresso eterno valore para indicaro supremo bem,como nos seguintes versos:" Si ch, quantunque carita si stende

    Cresce sovr 'essa l 'eterno valore" (Purg. XV, 71)ou

    " Guardando nel su o Figlio con l 'AmoreC he 1'uno e l 'altro eternalmente spiraLoprimo ed ineffabile Valore..." (Par. X, 1).

    ou ainda,11 Vedi l 'eccelso e Ia larghezza

    De I 'eterno Valor..." (Par. XXIX, 142).Como se v,Deus sentido por Dante como o primeiro, o eterno

    e o inefvel Valor, o que demonstra quanto Heidegger se afasta da ver-dade quando assevera, na Carta sobre o Humanismo, que considerarDeus "o Valor mais alto" seria perpetrar a maior blasfmia, por de-gradar-lhe a essncia...Talvez Heidegger tenha tirado essa concluso da tese, que nos vemde Nicolau de Cusa, de que o Valor diz respeito to-somente ao homeme sua problemtica, em virtude de sua finitude ante o Deus Oculto,perante cuja qualificao somente podemos confessar nossa ignorncia,

    mas na Idia dantesca de Valor inefvel est implcito o sentimento denossa precria cincia do divino.

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    deveras relevante, porm, que no Quattrocento, na era do Hu-manismo, uma ponte entre a Idade Mdia e o Renascimento, um pen-sador como Nicolau de Gusa, cuja modernidade salientei em meu livroVerdade e conjetura, haja retomado e desenvolvido o problema do Valorsituando-o na relao entre o homem e Deus, e suscetvel to-somentede conjeturas.

    No obstante o interesse do Gusano pelo valor do homem, noencontramos a palavra Valor em seus escritos latinos, em De DoctaIgnorantia ou em De Coniecturis, nos quais recorre a parfrase para in-dicar o que designamos hoje com a palavra Valor. Assim, por exemplo,quando ele indaga do valor da coincidncia dos opostos um de seustemas principais e se refere a quantum valeat coincidentia oppositorumPodemos, pois, concluir que, at a poca do Humanismo, no nos

    seria possvel tratar de invariantes axiolgicas, como algo "a sestante",pois o que prevalece a subordinao do Valor (implcito no tratamentoda matria) ao conceito primordial de Ens. Todos os discursos axiol-gicos ficavam, em suma, ancorados na idia de Sere de suas proprieda-des transcendentais, nem sequer constituindo um captulo ou livro au-tnomo dos estudos ontolgicos.No houve, penso eu, uma Teoria do Valor qua talis, donde aimpossibilidade, repito, de falar-se em pressupostos axiolgicos fundan-

    tes da ao humana, mas sim em princpios ontolgicos sobre os quaisse fundava a noo do dever e da realizao de tudo que fosse digno deadmirao, por ser expresso da verdade, da beleza, do herosmo, etc.Na linha tradicional da inspirao clssica, parece-me que se poderelacionar os pressupostos legitimadores da conduta humana com aconcepo dos transcendentalia, ou propriedades primeiras do Ser. Daa preferncia e apego idia de bonum como algo de reversvel com aidia de ens.No fundo, tratava-se empregando eu expresses mais corres-pondentes forma do discurso atual de "invariantes axiolgicastranscendentes", reveladas umasou conquistadas outras pela razo, massempre transpessoais e objetivas, em funo dasquais o homem adquiriaconscincia e medida de si mesmo e de seus atos, sendo a pessoa humanavista, antes de mais nada, como criaturade Deus, e no como ente deper si vlido.Parafraseando Hugo Grocio, diria que, na Idade Moderna, homovalet, etiam daremous Deum non e s s e , mas, como veremos, essa super-valorizao do homem enquanto tal no foi bastante para a elaboraode uma Teoria do Valor que, para empregarmos linguagem afinada ao

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    discurso de Giambattista Vico, fatto degli uomini, ou seja, coisahumana. necessrio lembrar, com efeito, neste passo de minha exposio,que, com o Renascimento, o sentido teocntrico da cultura medievalcede lugar a uma viso antropocntrica que podemos sintetizar no Co-

    gito de Descartes, quando este funda o fato de existirsobre o ato depensar.No cogito, ergo sum, o "ser" um consecutivum do "pensar,"de maneira que na razo enquanto tal que se ancoram as razes (per-miti-me o jogo de palavra) de nosso conhecer e de nosso agir.Apesar, porm, dessa virada de 180 na posio do homem nocosmo cultural, Descartes se limita a estabelecer as condies primeirasdas idias claras e distintas, sem se altear cogitao do que hoje de-

    nominamos "invariantes ou constantes axiolgicas", ainda que em ter-mos de idias m estras ou princpios primeiros e irrenunciveis da ativi-dade humana em seus mltiplos caminhos. Adquiria-se, tudo somado,nova conscinciagnoseolgica, mas no axiolgica do Eu que pensa... Nem demais lembrar que o autor do Discurso sobre o Mtodo, ao passar paraas suas Meditaes metafsicas, mantm-se, em ltima anlise, fiel linhatradicional da fundamentao da vida tica, ainda que se reportando conjetura instigante de um "Deus enganador".No creio que ser exagero afirmar que os continuadores deDescartes, Espinosa e Leibniz inclusive, no sentiram necessidade deemancipar as pesquisas sobre o valor, sendo que Leibniz, com a suadoutrina da harmonia preestabelecida, restabelecia, sob nova luz, aantiga correlao entre Ens e Bonum, na qual o pensamento medievalancorava o ajuizamento de nossas estimativas.Essa situao de indetermina o ontolgico-axiolgica perm anecepraticamente imutvel at Immanuel Kant. Ao contrrio do que algunsafirmam (entre eles Nicolau Abbagnano), com o filsofo da Crtica

    da Razo Pr tica que se abre nova e decisiva perspectiva problemticado valor, em virtude de sua distino bsica entre ser e dever ser(Sein/Sollen), dois verbos indicativos de duas posies do homem, en-quanto ele e enquanto deve, tanto no plano da tica como no daEsttica, objeto da Crtica da faculdade de julgar.

    No h, todavia, uma Axiologia autnoma em Kant, o qual secontenta em fundar a tica sobre a intuio intelectiva imediata dodever, estrela polar que i lumina o mundo da conscincia e funda a li-berdade como condio de adimplemento do que devido. Poder-se-ia,pois, falar em fundao kantiana de uma Deontologia, ou teoria dos de-

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    veres, em significativo paralelismo com o seu coetneo Jeremas Ben-tham que, no plo oposto do utilitarismo emprico, dera essa denomi-nao ao seu tratado dos deveres que exerceu to relevante influncianos quadrantes tanto da tica como do Direito.J na linha do pensamento de Hegel, verifica-se algo que importa

    na supresso do axiolgico por sua identificao com o antolgico noprocesso concreto da Idia.Observe-se que, na paideia antropocntrica da Idade Moderna,Hegel acaba transferindo para a esfera da ao humana a identificaoque Nicolau de Gusa visionara to-somente em Deus: o que vale e o que

    vale . esse conceito que Benedetto Croce ir repetir para sustentar,contra Guilherme Dilthey, a inconsistncia de uma " Filosofia dos Va-

    lores", pois, a seu ver, o que se pensa concomitantemente vale e vice-versa, na unidade concreta do processo histrico, sendo a idia de va-lores em si mera abstrao intil.A mim me parece que a plena revelao do valor em seu statusepistemolgico prprio (o que marca a passagem do verbo valer para osubstantivo valor) o resultado de uma longa experincia mundanal, medida que o homem veio adquirindo cincia e conscincia do valor emdistintas esferas de sua faina histrica, no plano militar, no plano arts-

    ticoe no plano econmico. sobretudo na viso do valor segundo o homo oeconomicus per-sonagem por excelncia da poca moderna como se d nas obras deAdam Smith e David Ricardo, que o estudo do valor comea a adquirirstatus epistemolgico autnomo, distinguindo-se, a um s tempo, daidia de Ser e da idia em si de Bem, pois o que est em jogo o estudode um dos aspectos essenciais da atividade humana, o bem econmico. sabido que, a partir de ento, esse aspecto antropolgico parcial veioganhando terreno progressivamente, at se tornar o sentido essencial dasociedade e da civilizao chamada burguesa, que , como assinalouCroce, menos a expresso de uma classe do que de uma cultura.

    As conquistas da nascente Cincia Econmica, significativamentedenominada Economia Poltica, indicadora de uma vinculao essencialentre a Economia e o Estado, agitaram o problema existencial do ho-mem em funo de suas necessidades vitais, acabando por se bifurcaremem duas direes contrastantes: de um lado, a posio filosfico-polticade Karl Marx levantando a bandeirada mais valia, como pedra de toqueda revoluo socialista; de outro lado, a posio tico-metafsica deFrederico Nietzsche, pregando a supremacia dos valores vitais e anun-

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    ciando a subverso de todos os valores, sobretudo dos consagrados peloCristianismo.Foi na onda dessas pulsaes antropocntricas que surgiu e,note-se, somente a cavaleiro dos sculos XIX e XX a conscincia plenade uma autnoma Teoria, dos Valores.No podemos, com efeito, olvidar que foi apenas na primeiradcada de nosso sculo que surgiu a palavra Axiologia, consolidandopesquisas enquadrveis em uma "Teoria dos Valores", j implcita, claro, na "Filosofia dos Valores". Mas uma teoria autnoma, comoparte fundamental da Filosofia, apenas se configura, como lembraAbbagnano, nas obras de Lapie, de Eduardo von Hartman e W. M.Urban publicadas, respectivamente, em 1902, 1908 e 1909.Todavia, no creio que, com o advento da Axiologia qua, talis, setenha conseguido estabelecer desde logo as bases axiolgicas do mundo da,cultura,, qual o valor se acha essencialmente ligado, nem alcanar umconceito de valor capaz de assegurar sua autonomia epistemolgica.De incio, sobretudo por influncia de Nietzsche e da Filosofia.Naturalista, o que predominou foi o relativismo no estudo dos valores,num perspectivismo multifrio, desde a irradiao vitalista dos valorescomo signos do poder depotncia do homem enquanto homem, at asmais distintas formas de subjetivao do valioso. A Axiologia, antes

    entendida como parte da Metafsica (pela subordinao do Valor aoSer) passou a ser vista como captulo da Psicologia ou da Sociologia.Destarte, no h que falar, num primeiro momento, na autonomia daAxiologia.Feitas as contas, a Axiologia de base psicolgica resultante, emltima anlise, do conceito de desiderabilidade tanto como a Axio-logia Sociolgica fundavam-se ambas em fatos da conscincia: conscin-

    cia individual, num caso, conscincia coletiva no outro, como se d noaxiologismo sociolgico de Emilio Durkheim e Jorge Bougie.Por outro lado, esse reducionismo valorativo, infenso a qualquerreferncia a invariantes axiolgicas, assumiu outras configuraes, taiscomo a do economismo axiolgico, com a reduo da cultura ao fatoeconmico, surgindo ensaios anlogos de fundao do valor do homemem dados empricos, tal como aconteceu com a Psicanlise de Freud ede seus continuadores, sendo vrios pensadores levados a combinarFreud com Marx, origem primeira da contracultura que vicejouenquanto no se deu a dbcle do chamado " socialismoreal". De certaforma, com Marcuse e outros, o que se pretendeu foi a negao radicalde qualquer invariante axiolgica, ficando o homem anarquicamente

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    M ax Scheler1874-1928

    entregue sua ilimitada liberdade, nada lhe sendo proibido.Estou, porm, meafastantode teorias fundamentais queinflurampoderosamente na configurao cultural de nosso sculo. E mister, com

    efeito, lembrar que, notadamente no "primeiro ps-guerra", comoconseqncia dos riscos a que ficara exposta a espcie humana, o receiode uma nova fratura na civilizao levou insignes pensadores, comoMax Scheler e Nicolai Hartman a recolocar em pauta o problema das"invariantes axiolgicas", mas j ento com plena conscincia, digamosassim, apesar da aparente repetio, do valor da conscincia substancial dovalor, ou, por outras palavras, de sua culminante substantivao, o quesuscitava a exigncia de uma Axiologia autnoma, fora dos quadros daMetafsica, onde persistem alguns a situar, erroneamente a meu ver,assim a Teoria dos Valores como a Teoria do Conhecimento. A 2-Guerra Mundial veio ainda mais concentrar a ateno dos filsofos e

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    dentistas sobre a problemtica dos valores, indagando de seus pressu-postos.Pois bem, Scheler e N. Hartman inclinaram-se a volver s razesplatnicas do problema, concebendo os valores como objetos ideais, -(com isso, repeliam sua reduo a objetos naturais, de ordem psi-

    colgica ou sociolgica) com a afirmao, no fundo de inspirao kan-tiana, de que h duas e apenas duas linhas primordiais de pensamento,o Ser e o Valor, de tal modo que, assim como se afirma que Ser o que

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    dever-se-ia dizer: Valor o que vale, sem ser possvel ir alem dessesenunciados intuitivos primordiais.Desenvolvendo o entendimento que Edmundo Husserl dera "teoria dos objetos" de Frank Brentano, os dois citados axiolgicosconsideraram adequado situar os valores entre os objetos ideais, como os

    lgicos e os matemticos, que tm em si sua prpria razo de ser, semreferncia ao real. Da a identificao entre invariante axiolgica e idea-lidade, com opes diversas sobre a hierarquia dos valores considerados" fundantes", a cada um deles correspondendo um campo determinadode ao humana ou da cultura, desde o sagrado aoprofano.

    No me dado analisar, nos limites desta palestra que muito meenvaidece, as diversas variantes tericas que surgiram para apresentareste ou aquele outro valor como sendo o fundante da ordem cultural,bastando assinalar que, de uma forma ou de outra, prevaleceu o enten-dimento da necessidade de invariantes axiolgicas garantidoras do di-logo e da mtua compreenso entre os homens, condio sine qua nonda liberdade cvica e da paz.

    Ora, ao longo de minha meditao sobre a problemtica axiol-gica, que central em meu pensamento, no me convenci da necessidadeda converso dos valores em idealidades, em arquetipos platnicos, paraassegurar aos homens liberdade de opes e de caminhos, rasgandonovos horizontes.Meditando sobre a natureza do homem, cuja problemtica veioaos poucos dando colorido antropolgico Filosofia de nosso tempo,cheguei a algumas concluses que se correlacionam no mago de seusenunciados, a partir da considerao do homem mesmo como valor-fonte de todos os valores. Nessa linha de pensamento, que se abebera nasmais puras fontes da tradio crist, creio que o ser do homem o seu dever

    ser e que, por isso, da essncia do valor a sua realizabilidade. Seassim, cumpre tambm reconhecer que o campo da realizaodos valores os quais seriam simples quimeras se jamais pudessem se converter emmomentos da experincia humana representado pela Histria.Alis, se o ser do homem seu dever ser, o ser Ao homem essencialmentehistrico.

    E inegvel, segundo penso, que o problemado valor no pode serposto nem proposto fora da Histria, pois a conscincia intencional cul-mina sempre numa projeo ou objetivizao histrica,o que desde logosuscita uma pergunta inquietante sobre a historicidadede todos os va-lores, ou seja, sobre a inevitabilidade de um relativismo axiolgico debase historicista.

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    Ja vimos que Hegel absolutilizou os valores em sentido dialtico na concreo do que e, ipso facto, vale considerando-os mo-mentos da realizao da Idia, em contraste aberto com as concepesnaturalistas ou cticas que negam a existncia de "valores fundantes,"isto , de invariantes axiolgicas.

    Penso, contudo, que entre a concepo idealista da experinciaaxiolgica como totalidade do processo histrico da Idia ou do Abso-luto, e a vertente oposta, a viso emprica do historicismo relativista, possvel uma terceira posio, que resulta de uma compreenso trans-cendental (em sentido em que Kant e Husserl empregam este adjetivo,bem diverso do vigente na Metafsica tomista) do valor em correlaocom a experincia histrica.

    Nesse sentido, porm, havia ou h um problema prvio para quemcorrelaciona o valor com a historicidade do ser humano: trata-se daafirmao limpidamente feita por Durkheim de que "essa aura de san-tidade que cerca a pessoa humana uma conquista social", ou seja, umproduto da histria.

    Parece-me que, na afirmaodurkheimiana h uma confuso entreo aspecto gentico e o aspecto gnoseolgico da historicidade do valor, acomear pelo valor primordial da pessoa. No h dvida, disse eu emmomento crucial de minhas pesquisas, que o homem s tardiamentechegou a tomar conscincia de sua radical valia, mas, convenhamos, seele atingiu esse instante decisivo de sua autoconscincia, porque nele jhavia possibilidade de conscientizar-se, o que um caracterstico ou umprivilgio do ser humano. Assim sendo, do ponto de vista gentico, ovalor do homem uma conquista histrica, mas, sob o prisma lgico eontolgico, ele j era de per si uma fonte de conscientizao, tornando-oum valor transcendental, dotado do poder nomottico de afirmar-se naautonomia de sua validade subjetiva, a qual implica, "uno in acto", oreconhecimento de igual validade nos demais homens.

    Sob esse prisma, a alteritas tanto um valor ntico como tico eat mesmo gnoseolgico, visto ser possibilitante da compreenso plenado ser do homem.Da a minha afirmao fundamental de que o homem o valor-fonte de todos os valores porque somente ele originariamenteum entecapaz de tomar conscincia de sua prpria valia, da valia de sua subjeti-vidade, no em virtude de uma revelao ou de uma iluminao sbitade ordem intuitiva, mas sim mediante e atravs da experincia histrica

    em comunho com os demais homens.A partir e ao redor do valor do homem como individualidade

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    moral intocvel, deu-se a revelao de outros valores que vieram com-plet-lo e garanti-lo, compondo o universo da cultura. O ltimo dessesvalores o valor ecolgico, universalmente reconhecido como uma in-variante axiolgica, por dele depender a sobrevivncia do homem, ovalor-fonte.Nesse contexto cabe assinalar que, ao mesmo tempo em que meparecia possvel superar o absolutismo e o relativismo historicistas, gra-as a uma posio que Luigi Bagolini acertadamente qualificou de his-

    toricismo axiolgico tambm revia a qualificao platnica do valor, deScheler e Hartman, ao qualificarem-no como objeto ideal.Para mim, ao contrrio, necessrio retificar a teoria dos objetosde Brentano, que somente os v segundo a linha do Ser (Sein) pas-sando-se a consider-lo tamb m segundo as determinan tes do Dever Ser

    (Sollen). Feita essa essencial mudana de enfoque, o valor deixa de per-tencer ao mundo dos objetos que so (objetos naturais e ideais) parapassar a pertencer ao mundo do dever ser (Sollen).Estou convencido, perdoai m inh a imodstia, que, com essa distin -o, contribu para estabelecer novas bases para a autonomia da Axiolo-gia, como teoria dos valores concebidos como expresses ou modelos do dever-ser,um a das duas atitudes gnoseolgico-prticas primordiais do homem emsua universalidade.Dada a premncia de tempo, deixo, nesta altura de meu discurso,de fazer referncia ao conceito de cultura que resulta das posies queacabo de salientar, e que tm sido objeto de origina is pesquisas por partedaqueles que, no Brasil, se situam no culturalismo, o qual, segundo pen-so, no constitui uma Escola, nem tampouco se reduz a uma nica teo-ria, mas antes movimento intelectual aberto que congrega pensadoresde orientaes diversas, todos convictos no s da modernidade e atua-lidade da "Teoria da Cultura" como corolrio necessrio ou exten-so da "Teoria do Valor" mas, outrossim, de que nos pases em

    desenvolvimento a cultura menos um tema acadmico do que umimperativo de sobrevivncia, segundo o grito angustiado de Euciides daCunha em Os sertes: "ou progredimos ou desaparecemos".Aos ouvintes porventura desejosos de conhecer meu pensamentosobre a matria, peo vnia para indicar-lhes meus livros Introduo filosofia, Filosofia do direito e sobretudo Experincia e cultura, do qual

    Verdade e conjetura complemento essencial.Limito-me, pois, a dizer que cheguei a um conceito de objeto cul-

    tural como "sntese do que e do que deve ser", em sntese de com-plementaridade e no hegeliana ou marxista de opostos que se con-

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    tradizem. O mundo da cultura , em suma, o mundo que "", que setornou realidade, em juno do ser do homem e " deve ser" em razo de suavalia primordial, realizando-se ao longo do processo histrico, no obs-tante seus " corsi e rcorsi " (Vio) ou suas surgncias e ressurgncias(Gilberto Freire).Retornando, porm, ao tema central desta palestra, que o dasinvariantes axiolgicas, cabe-me esclarecer que seu carter transcenden-tal no o resultado de mera intuio, nem se pode dizer que haja valoresinatos.Nesse ponto, como exponho em Experincia ecultura, inspirando-me em Jaques Monod, h um paralelismo entre a experincia da bioes-fera e a histria, no que se refere ao advento, s vezes inesperado,(Monod fala at em acaso) de invariantes,biolgicas umas e axiolgicas

    outras, as quais se impem ao consenso universal, isto , estima e aceitao de toda gente, do homem comum e do homem de cincia, atoponto de parecerem inatas, mas, no que tange ao mundo da cultura, sotranscendentais, na acepo kantiana-husserliana que dou a esta palavra.

    a razo pela qual o sistema das invariantes axiolgicas circuns-creve o universo da cultura, como os horizontes a que se refere KarlJaspers, o grande envolvente que nos inspira e nos impele em busca dosvalores religiosos, ticos, estticos, polticos, econmico-sociais maisaltos, tendo como causa o centro irradiante de nossa intocvel sub-jetividade, do esprito subjetivo que uma realidade e no uma conjetura:realidade intuda como autoconscincia e comprovada ao longo do pro-cesso histrico, que de incessante inovao e criao.

    Sua objetividade histrica, sim, mas por isto no se deve procla-mar que ela importa uma soluo relativista quanto equivalncia detodos os valores. Penso, ao contrrio, que a objetividade das invariantesaxiolgicas se funda sobre a historicidade radical do ser do homem, oqual d origem e legitimidade s demais invariantes axiolgicas, que nose inferem dedutivamente e "in abstrato" da idia de pessoa humana,mas sim, concretamente, no processo histrico.Perguntar algum se essas invariantes axiolgicas transcendentaisso expresses de um Ser transcendente, mas uma questo que envolve

    como diria Fichte a espcie do homem que cada um de ns .Retornando ao paralelismo entre a histria e a bioesfera, arriscaria afir-mar que, assim como cada indivduo obedece a seu irrenuncivel " c-digo gentico", tambm todo homem se vincula sua "estrela polarvalorativa", vivendo, como declara Ortega y Gasset, "o projeto irre-nuncivel de si mesmo". J se nasce, em suma, com inclinao natural

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    para esta ou aquela outra posio filosfica que, no obstante iniciais ourecorrentes vacilaes, acaba por prevalecer, existindo, claro, pensa-dores cujo ser vacilar...Isto posto, situado em minhas convices de criticismo ontgno-

    seolgico, limito-me a dizer que somente a razo conjetural, de que tratoem meu livro Verdade e conjetura, poder estabelecer como plausvel,sem perder seu sentido problemtico, uma possvel correlao entretranscendental e transcendente, abrindo campo para a meditao me-tafsica. Direi mesmo que, nesse ponto-limite, o filosfico se confinacom o teolgico, pondo um problema, no de conhecimento, mas de f,o que nos remeteria ao plano do inefvel.O essencial, todavia, que possamos estar convictos de que a his-tria do homem no uma hamletiana aventurasem nexo e sem sentido,

    mas desenvolve, atravs de contnuos e inevitveis conflitos, as possibi-lidades existenciais da espcie humana, circunscritos todos pelos hori-zontes sempre mveis de constantes ou invariantes axiolgicas, em cujombito se desenrola no apenas a faanha da liberdade, como proclamouCroce, mas sim a faanha de todos os valores fundamentais que se en-razam na capacidade reveladora e nomottica do esprito.Essa revelao ocorreu ao longo dos sculos ou dos milnios, emmltiplas perspectivas, pois cada poca histrica ou civilizao possui

    sua prpria constelao cultural valorativa. Desse modo, a diversidadedos valores hierarquicamente distribudos assume configuraesconjun-turais distintas, devendo-se falar em diferentes tipos de invariantes de-marcadoras dos horizontes espirituais, correspondentes ao esprito epo-cal, que, na Antigidade clssica foi predominantemente ontolgico; naIdade Mdia foi fundamentalmente teolgico; na poca Moderna, deci-didamente gnoseolgico, assim como na Era Contempornea de cres-cente sentido axiolgico, o que se compreende luz da condio dohomem em nossa era, cada vez mais disperso na sociedade de massa;cada vez mais impotente no crculo da absorvente comunicao cibern-tica; cada vez mais temeroso no meio de revolucionrias conquistascientficas e tcnicas, ameaadoras dos bens da natureza e da vida emnosso planeta, sentindo todos os riscos de perder o valor supremo de seuser pessoal no Mundo.

    Miguel Reate professor emrito da Universidade de So Paulo.Conferncia proferida, no Rio de Janeiro, a 9 de julhode 1991, na instalao da VI SemanaInternacional de Filosofia, promovida pela Sociedade Brasileira de Filsofos Catlicos, queassim prestou homenagem ao autor no ensejo de seu octogsimo aniversrio.