Monografia - Jonas C. Oliveira - VERSÃO FINAL
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
FACULDADE DE DIREITO
JONAS CARVALHO DE OLIVEIRA
O CLAMOR PBLICO PELO MAIOR RIGOR PENAL E A INEFICCIA DO AUMENTO
DAS PENAS COMO NICO MEIO DE OBTENO DA PAZ SOCIAL
(ANLISE LUZ DA CRIMINOLOGIA CRTICA)
Juiz de Fora
2014
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JONAS CARVALHO DE OLIVEIRA
O CLAMOR PBLICO PELO MAIOR RIGOR PENAL E A INEFICCIA DO AUMENTO
DAS PENAS COMO NICO MEIO DE OBTENO DA PAZ SOCIAL
(ANLISE LUZ DA CRIMINOLOGIA CRTICA)
Monografia apresentada Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Juiz de
Fora - UFJF, como pr-requisito para
obteno do ttulo de bacharel em Direito na
rea de concentrao do Direito Penal, sob
orientao da Prof. Ms. Ellen Cristina
Carmo Rodrigues.
Juiz de Fora
2014
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JONAS CARVALHO DE OLIVEIRA
O CLAMOR PBLICO PELO MAIOR RIGOR PENAL E A INEFICCIA DO AUMENTO
DAS PENAS COMO NICO MEIO DE OBTENO DA PAZ SOCIAL
(ANLISE LUZ DA CRIMINOLOGIA CRTICA)
Monografia apresentada Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Juiz de
Fora UFJF, como pr-requisito para obteno do ttulo de bacharel em Direito
Banca Examinadora composta pelos
membros:
Aprovado em ____ de _________________ de 2014
_________________________________________
Prof. Ms. Ellen Cristina Carmo Rodrigues
(Orientadora)
_________________________________________
Prof. Ms. Leandro Oliveira Silva
(Membro da Banca)
_________________________________________
Prof. Ms. Marcella Alves Mascarenhas Nardelli
(Membro da Banca)
Juiz de Fora
2014
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Talvez vir um tempo em que a necessidade de punio ser menor do que na atualidade, e
em que os meios que se dispe para evitar o
delito estaro para a pena assim como o arco-
ris est para o tremendo temporal que o
precedeu Theodor Reik, 1971
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RESUMO
Este trabalho prope uma reflexo sobre o anseio popular pelo recrudescimento
penal baseado no discurso do medo disseminado de forma sensacionalista pela mdia, em
especial no cenrio brasileiro a partir da dcada de 1990. Alm disso, pretende-se pesquisar
como este quadro reflete o interesse das instncias superiores do sistema capitalista na
construo social do domnio de classes. A partir do delineamento de um panorama histrico
sobre o desenvolvimento da cincia criminolgica at os dias atuais, este trabalho buscar
demonstrar como o aumento deliberado de penas, alm de no solucionar o problema da
violncia, constitui-se um retrocesso no campo penal. Adotando-se como marco terico a
Criminologia Crtica, proposta por Alessandro Baratta, procurar-se-, ainda, apontar as
mazelas do sistema penal atual, a partir da anlise de dados estatsticos e sua repercusso
miditica, bem como indicar quais so as propostas da criminologia crtica tendentes
desarticulao desse modelo.
Palavras Chave: Recrudescimento Punitivo Mdia Medo Criminologia Crtica
Alternativas.
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ABSTRACT
This paper proposes a reflection on the popular yearning for criminal
recrudescence based on the discourse of fear spread in a sensationalist way by the media,
especially in the Brazilian scene from the 1990s. Moreover, it intends to investigate how such
framework reflects on the interest of higher courts of the capitalist system, in the social
construction of prevailing classes. Starting from the outline of a historical background of the
development of criminological science until today, this work will try to demonstrate how the
intentional increase in penalties, beyond not solving the problem of violence, constitutes a
step backwards in the criminal field. Taking as a theoretical framework the Critical
Criminology, proposed by Alessandro Baratta, it will seek to, yet, to point out maladies of the
criminal current justice system, based on analysis of statistical data and their media impact, as
well as indicate which proposals of critical criminology aimed at dismantling this model.
Keywords: Punitive Recrudescence Media Fear Critical Criminology Alternatives.
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SUMRIO
1. INTRODUO ................................................................................................................. 7
2. A EVOLUO DO PENSAMENTO CRIMINOLGICO .......................................... 9
2.1 A GNESE DA CRIMINOLOGIA ................................................................................... 10
2.2 A ESCOLA LIBERAL CLSSICA .................................................................................. 11
2.3 O DETERMINISMO POSITIVISTA ................................................................................ 13
2.4 A IDEOLOGIA DA DEFESA SOCIAL ............................................................................ 14
2.5 AS TEORIAS PSICANALTICAS DA CRIMINALIDADE ........................................... 16
2.6 A SOCIOLOGIA NA CRIMINOLOGIA .......................................................................... 17
2.7 O ROTULACIONISMO ................................................................................................... 19
2.8 O MARXISMO E A CRIMINOLOGIA CRTICA ........................................................... 21
3 A CRIMINOLOGIA CRTICA ..................................................................................... 23
4 O MEDO COMO MTODO DE MANUTENO DA SELETIVIDADE .............. 26
4.1 O FATOR LEGITIMANTE MEDO .............................................................................. 26
4.2 A MDIA DE MASSA COMO MEIO DE INCULCAO DO MEDO ........................... 27
4.3 RETRATOS DA SOCIEDADE BRASILEIRA ................................................................ 32
5 A CONTRADIO ENTRE A PENA E A PAZ SOCIAL NO ATUAL CENRIO
NACIONAL ............................................................................................................................ 38
5.1 AS TEORIAS DA PENA .................................................................................................. 38
5.2 A REALIDADE DA EXECUO PENAL NO BRASIL ................................................ 41
6 A PROPOSTA DA CRIMINOLOGIA CRTICA ....................................................... 45
7 CONCLUSO ................................................................................................................. 48
REFERNCIAS ..................................................................................................................... 50
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1. INTRODUO
O aumento da violncia em geral, conforme amplamente divulgado pela imprensa
nacional a partir da dcada de 1990, principalmente, considerado um dos maiores problemas
atuais e o que mais aflige a sociedade brasileira. Pens-lo de maneira leviana, buscando
solues paliativas de curto prazo que visam proporcionar uma sensao momentnea e
superficial de segurana populao, esquecendo-se da preveno, no parece ser a sada que
deve ser proposta por aquele que realmente queira modificar solidamente a sociedade. O
discurso manipulador e parcial frequentemente veiculado pelas mdias brasileiras de massa1
nas ltimas dcadas, impregnado por um alarmismo exacerbado quanto ao caos da segurana
pblica, vem criando bases para corroborar polticas penais cada vez mais severas no mbito
nacional. No entanto, aquele que se prope a uma anlise mais aprofundada de todo esse
cenrio no deve apenas reproduzir ideais revanchistas, ao contrrio, deve refletir detidamente
sobre o porqu da existncia de todo um aparato voltado para o encarceramento e controle de
massas marginalizadas, desde a mdia at as penitencirias, que se mostra atuante em toda a
histria, em maior ou menor grau.
O presente trabalho pretende, por meio de pesquisa bibliogrfica, refletir sobre a
correlao entre o anseio pelo aumento das penas e a sua contribuio para o objetivo que se
pretende alcanar, qual seja, a paz social, analisando o curso dos discursos criminolgicos,
refutando o discurso disseminado pela mass media, criando alternativas ao pensar
criminolgico e jurdico no que tange ao fato social crime, demonstrando os problemas atuais
da execuo da pena privativa de liberdade, suas finalidades e alternativas, e atual situao de
ineficcia.
Inicialmente, ser feita uma exposio sobre as principais Escolas Criminolgicas
existentes ao longo da histria, revelando em cada exposio, basicamente, como cada uma
visualizava o fato crime e a figura do delinquente, de modo a demonstrar como o pensamento
criminolgico evoluiu at os dias atuais. Esta anlise crucial para se trabalhar, em um
captulo parte, o marco terico que nortear este trabalho: a Criminologia Crtica, proposta
por Alessandro Baratta, importante por deslocar o enfoque de estudo do autor e/ou do crime
1 ou mass media, o termo utilizado para referir-se mdia pblica, impessoal, produzida de maneira
centralizada e padronizada, com o objetivo de alcanar o maior nmero de espectadores possvel.
Podemos citar como exemplos a televiso, cinema, rdio, jornais, revistas, livros, gravaes
musicais, e a Internet.
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para as condies objetivas, estruturais e institucionais do desvio, analisando os mecanismos
de construo da realidade social voltados criminalizao das massas em detrimento do
interesse no conhecimento das causas do crime, e, por ltimo, entendendo a criminalidade
como status atribudo a determinados sujeitos atravs da seleo dos bens protegidos
penalmente e dos indivduos estigmatizados no processo de criminalizao.
Posteriormente, dentro da lgica do constructo social, procurar-se- mostrar como
o medo legitima tais construes, gerando uma alta aceitabilidade da populao a polticas de
segurana que visam o maior rigor penal s classes mais baixas da sociedade, e cada vez mais
protetivas s classes dominantes, aprofundando o estigma e o processo de formao do
outro dentro da sociedade atual.
Na sequncia ser realizada uma anlise comparativa entre as funes da pena e
dados estatsticos do Sistema Integrado de Informaes Penitencirias (InfoPen) 2 e do
relatrio divulgado pelo Conselho Nacional do Ministrio Pblico no ano de 2013, a fim de
revelar como a priso tem falhado na consecuo das funes elencadas e, ainda, como a
constituio da populao carcerria revela as mazelas da sociedade e a construo social (e
no ontolgica) do fato criminoso.
Por ltimo, explicitar-se- a proposta da criminologia crtica para a fixao e
execuo das penas, soluo esta antes voltada para a incluso dos ditos delinquentes
sociedade do que para a severa punio e aumento desenfreado das penas, o que s geraria um
crculo vicioso entre delito, crcere e marginalizao.
2 O InfoPen um programa de computador de coleta de dados do sistema penitencirio no Brasil, que
integra rgos nacionais de administrao penitenciria, mais especificamente os estabelecimentos
prisionais (estaduais e federais) com o Departamento Penitencirio Nacional do Ministrio da
Justia, possibilitando a criao de bancos de dados federais e estaduais sobre os estabelecimentos
penais e populaes penitencirias. Oferece, assim, informaes confiveis, subsidirias
administrao do Sistema Penitencirio Nacional e para o direcionamento de polticas pblicas neste
mesmo mbito.
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2. A EVOLUO DO PENSAMENTO CRIMINOLGICO
Para iniciarmos a anlise do tema proposto, de suma importncia que
conheamos os cernes bsicos da criminologia, apontando a sua funo, introduzindo o seu
conceito, e iniciando a uma delimitao de seu objeto. Tais elementos modificaram-se ao
longo dos tempos acompanhando a evoluo das escolas criminolgicas, principalmente no
que tange ao seu objeto de anlise. Assim, tal esclarecimento devido neste ponto da
apresentao por orientar o conceito que ser adotado, bem como em qual objeto se debruar
o estudo aqui proposto.
A definio de criminologia frequentemente presente nos manuais jurdicos, de
cunho eminentemente positivista, a aponta como o exame causal-explicativo do crime e dos
criminosos. Tais definies derivam de uma perspectiva da Criminologia Tradicional e tm
por foco precpuo a pessoa do delinquente, enxergando o comportamento desviante como uma
patologia do infrator, e como foco secundrio o delito em si.
Um conceito bsico e amplo, que atende aos vrios momentos criminolgicos,
pode ser resumido pelas palavras de Ral Zaffaroni, segundo o qual a criminologia seria o
saber e arte de despejar discursos perigosistas e nada mais do que o estudo sobre o curso
dos discursos sobre a questo criminal, ou seja, a anlise do que foi e o que considerado
crime, no enquanto ilcito penal, mas sim o estudo de sua natureza, das suas origens e do seu
processo de realizao e conteno, como fato humano e social, tendo como objetos diretos o
delinquente, a vtima e o controle social do comportamento dito delitivo, sendo este ltimo
objeto o principal para entendermos o delito como aqui ser defendido, no como algo
ontolgico, prprio do ser humano, mas sim fruto de uma construo social (ZAFFARONI,
1988).
Para Lola Aniyar de Castro, a Criminologia a atividade intelectual que estuda os
processos de criao das normas penais e das normas sociais que esto relacionadas com o
comportamento desviante; os processos de infrao e de desvio destas normas; e a reao
social, formalizada ou no, que aquelas infraes ou desvios tenham provocado: o seu
processo de criao, a sua forma e contedo e seus efeitos, dando suporte de aparncia
cientfica s atividades de controle social formalizado, sendo, tambm, uma forma de controle
social (CASTRO, 1983, p. 52 - 53).
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Dentro da concepo de Alessandro Barata (in BATISTA, 2011, p. 16), a
criminologia o enfoque macrossociolgico, que historiciza a realidade comportamental,
iluminando as relaes com a estrutura, tendo como tarefa fundamental a realizao da teoria
crtica da realidade social do direito, na perspectiva de um modelo integrado de cincia penal,
como veremos pormenorizadamente.
Estas definies de Lola Aniyar e Alessandro Baratta voltam-se Criminologia
Moderna, e procuram expandir o seu campo de estudo para alm daquele perseguido pela
Criminologia Tradicional, visando tambm a vtima e a complexa questo que envolve o
controle social propiciado pelo direito penal.
Aqui trabalharemos com o conceito de criminologia como a cincia que estuda o
fato crime a partir dos desdobramentos e conjunturas da ordem social, ordem esta que molda
o rol de delitos a partir de processos de criminalizao orientados para a manuteno dos
poderes nas mos das classes dominantes e para a subjugao das classes que, por interesse do
capital, devem permanecer marginalizadas. Assim, o objeto de estudo volta-se para os
processos de criminalizao, entendidos estes como os processos de segregao e
criminalizao que a demanda de ordem, prpria do capitalismo, impe manuteno da
dicotomia entre classe dominante (burguesia) e marginalizados (sujeitos que no se adaptam
aos interesses de consumo e trabalho do capital). O objetivo dessa anlise crtica dos
processos de criminalizao o de levar a efeito uma crtica ao Sistema Penal em vigor
buscando, principalmente, alternativas demanda desenfreada pelo aumento de penas e,
tambm, uma alternativa s penas.
2.1 A GNESE DA CRIMINOLOGIA
Ao longo dos sculos, a presena de poderes punitivos focados na procura e
definio de inimigos elencados pela ordem vigente a cada poca fora uma constante, sendo
crucial para legitimao de tais poderes, constituindo-se a individualizao de um inimigo,
para Zaffaroni, uma construo tendencialmente estrutural do discurso legitimador do poder
punitivo (ZAFFARONI, 2007, p. 88). Esta noo de inimigo tem sede na cultura penal grega
na figura dos crimes penais atentatrios contra o Estado, e visava proteger os Monarcas contra
atos atentatrios.
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Em Roma surge a primeira diviso efetiva e organizada de tratamento entre os
indivduos a partir da distino entre os inimicus, o inimigo pessoal, e hostis, o verdadeiro
inimigo poltico, contra o qual sempre colocada a possibilidade de guerra como negao
absoluta do outro ser ou realizao extrema da hostilidade (in ZAFFARONI, 2007). O
conceito jurdico de hostis aceita, ainda, a diviso em hostis aliengena, na figura dos
estrangeiros, e do hostis judicatus, na figura daqueles declarados inimigos pelo Senado, tendo
como consequncia a perda da nacionalidade. Entre as sanes mais importntes encontrava-
se a escravizao, tornando-se o trabalho escravo do estrangeiro a principal fonte de mo-de-
obra existente na Roma Antiga.
O poder punitivo organizado perde fora com decadncia do Estado Romano e
asceno do Feudalismo, ressurgindo no perodo Inquisitorial durante o sculo XIII e,
segundo o entendimento de Raul Zaffaroni, neste perodo que a criminologia tem seu
embrio formado, com o surgimento dos primeiros procedimentos do poder punitivo ligados
aos movimentos polticos de centralizao do poder da Igreja Catlica, de formao de
Estados ainda latentes, e aos primeiros esboos do capital. Neste perodo surgira um novo
desenho de poder punitivo estabelecido atravs de uma relao entre as noes de delito e de
castigo que levou formao dos conceitos de infrao e pena pblica.
Neste contexto, tambm, ressurge a figura do outro ao qual seria destinado o
mtodo punitivo, revelando-se, neste momento, o medo ao sujeito considerado desviante
como principal precursor e legitimador de polticas de segurana pblica e ensejando os
estudos sobre as causas do mal, as formas em que se apresenta, e tambm o mtodo para
combat-lo. Esta criminalizao do outro, inegavelmente, propiciou o controle das massas
sem ocupao econmica aos moldes requisitados pelo capital em formao, protegendo a
burguesia em crescimento da classe trabalhadora atravs dos mais variados tipos de controle,
como, por exemplo, a represso vadiagem e as primeiras leis de pobres, nos sculos XIV e
XVII.
2.2 A ESCOLA LIBERAL CLSSICA
A conjuntura revolucionria dos sculos XVIII e XIX, fomentada pela
insatisfao da burguesia com a brutalidade e a crueldade com que o Estado Absolutista
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tratava os condenados, a partir da noo de pena como meio de expiao dos pecados, como
simples castigo, gerou diversos conflitos que culminaram com o movimento iluminista.
Dentro deste movimento surgem as teorias contratuais da sociedade 3, que, por sua
vez, criam a necessidade de ordem e institucionalizao de um Estado baseado em leis,
cabendo ao direito penal a delimitao do poder punitivo estatal e as novas tcnicas para o
controle das massas. As concepes de dano social e de defesa social surgem neste momento
e so elementos fundamentais dessa teoria.
Tal escola, em consequncia da noo de contrato social, no considerava o
delinquente como um ser diferente dos outros, detendo-se, objetivamente, sobre o delito,
entendido este como a violao do direito e do pacto social que basearia o Estado de direito.
Era o delito, assim, definido apenas pelo seu carter de contrariedade lei e, por conseguinte,
ao contrato social.
Conforme bem explicita Alessandro Baratta:
Como comportamento, o delito surgia da livre vontade do indivduo, no de
causas patolgicas, e por isso, do ponto de vista da liberdade e da
responsabilidade moral pelas prprias aes, o delinquente no era diferente,
segundo a Escola clssica, do indivduo normal. Em consequncia, o direito
penal e a pena eram considerados pela Escola clssica no tanto como meio
para intervir sobre o sujeito delinquente, modificando-o, mas sobretudo
como instrumento legal para defender a sociedade do crime, criando, onde
fosse necessrio, um dissuasivo, ou seja, uma contra motivao em face do
crime. Os limites da cominao e da aplicao da sano penal, assim como
as modalidades de exerccio do poder punitivo do Estado, eram assinalados
pela necessidade ou utilidade da pena e pelo princpio da legalidade. (2002,
p. 31)
Ao propor a ideia de pena como reflexo do Contrato Social, em contrariedade
noo de meio de expiao dos pecados, a escola em comento introduz um importante legado
no pensamento criminolgico, referente s limitaes ao poder de punir de que dotado o
Estado, e, certamente, os princpios consequentes, bases de uma teoria jurdica do delito, da
pena e do processo penal, e que se mostram presentes at os dias atuais. Esta limitao seria
3 Trata o contratualismo de uma classe ampla de teorias aptas a explicar os caminhos que levam as
pessoas a formarem Estados e manterem a ordem social, trazendo implcita a ideia segundo a qual as
pessoas abrem mo de certos direitos para um governo ou outra autoridade a fim de obter a ordem
social. Em suma, o contrato social seria um acordo entre os membros da sociedade, pelo qual
reconhecem a autoridade, igualmente sobre todos, de um conjunto de regras, de um regime poltico
ou de um governante.
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reflexo do prprio contrato social vez que, ao aquiescer em participar de determinada
sociedade, o indivduo dispe de parte de sua liberdade em favor da coletividade, cabendo ao
Estado control-la no limite da necessidade de manter unidos os interesses particulares,
superando possveis divergncias entre eles, sendo ilegtimo qualquer controle que extrapole
tal necessidade, situao em que o direito tornar-se-ia um abuso. Decorre deste contexto que a
pena deve levar ao mnimo sacrifcio necessrio da liberdade individual que ela implica.
Assim, o poder punitivo estatal deveria ser limitado de acordo com a necessidade e a utilidade
da pena, bem como pela pr-existncia de lei para tal. Neste contexto surge o princpio da
legalidade, princpio da necessidade e princpio da proporcionalidade.
Este conjunto limitaes do poder punitivo estatal reveste a lei de uma aparncia
racional e equitativa e, embora no haja uma crtica objetiva sobre a razo punitiva, os
princpios aqui conformados permanecem, at hoje, no liberalismo garantista.
2.3 O DETERMINISMO POSITIVISTA
O Positivismo surge no sculo XIX no s como uma escola de pensamento, mais
ainda, como uma cultura apta a influenciar diversas reas do saber, tendo como principal
expoente na criminologia o italiano Cesare Lombroso. Em sua vertente criminolgica pode
ser considerada como uma ideologia resultante do medo das classes dominantes frente s
revolues populares, visando desqualificao da ideia de igualdade entre os indivduos por
meio da patologizao do delito e da diviso entre os normais e os anormais, passando a
priso, nesse contexto histrico, a figurar como a pena mais importante do mundo ocidental.
Nega-se o livre-arbtrio e a responsabilidade moral proposta pela Escola Liberal Clssica,
sendo o delito o sintoma da personalidade patolgica do indivduo, carecendo este, ento, de
tratamento.
Assim, a pena se mantm como ferramenta de defesa social, porm passou a ter
carter corretivo, sendo a priso, a partir do modelo das casas de correo, o dispositivo
disciplinador e tendo-se no trabalho a principal medida ressocializadora. O centro das
atenes que antes se voltava para o delito, agora se volta para o delinquente.
Os ideais positivistas de busca das razes da criminalidade atravs de sinais
biolgicos e psicolgicos, inseridos criminologia, continuaram sendo reproduzidos em
escolas subsequentes, ainda que sob um vis social, at o advento do paradigma da escola
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Rotulacionista que, como veremos adiante, rompe com o determinismo positivista e passa a
adotar o crime como algo definido pelo direito e no existente por si s.
No Brasil, a maior expresso do Positivismo Criminolgico se deu com o
Movimento Eugnico Brasileiro, no incio do sculo XX, sendo o primeiro pas sul-americano
a ter um movimento eugnico organizado, em 1918, com a criao da Sociedade Eugnica de
So Paulo, seguida pelo Boletim de Eugenia, peridico fundado em 1929, e
subsequentemente, em 1931, do Comit Central de Eugenismo.
A Eugenia, que em sua traduo significa bem nascido, pode ser definida como
o estudo das caractersticas dos agentes, sob o enfoque social, que podem melhorar ou
empobrecer as qualidades raciais das futuras geraes, seja fsica ou mentalmente. Entre as
propostas de tal movimento estavam a educao higinica e sanitria, a seleo de imigrantes,
a educao sexual, o controle matrimonial e da reproduo humana e debates em torno da
miscigenao, branqueamento e a regenerao racial.
Na Europa, o maior e mais triste movimento eugnico fora o nazista, base
fundamental da ideologia de "pureza racial", a qual ensejou o Holocausto. A revelao dos
horrores nazistas levou ao descrdito cientfico e tico do movimento por todo o mundo, e fez
com que a palavra desaparecesse abruptamente do uso permanecendo, ainda que velados,
alguns de seus fundamentos.
2.4 A IDEOLOGIA DA DEFESA SOCIAL
A Ideologia da Defesa Social 4, presente no pensar de vrias escolas
criminolgicas, visa, como pode se aduzir do termo, no a mera retribuio e o simples
castigo do delinquente, mas sim a proteo da sociedade atravs da preveno na ocorrncia
de novos delitos e, ainda, pela ressocializao do ru. Ainda que sob fundamentos diferentes,
esteve presente na Escola Liberal Clssica e no Positivismo como meio de fundamentar,
terica e politicamente, tais sistemas cientficos.
O contexto de seu surgimento est ligado revoluo burguesa e crescente
necessidade de sistematizao e codificao do sistema jurdico como um todo e,
4 O termo ideologia aqui empregado em seu sentido negativo, ou seja, o da falsa conscincia sobre
determinado argumento de modo a desvirtuar as suas reais funes, podendo ser aqui substitudo
pelo termo falcia (cf. nota de rodap 2 do captulo II de BARATTA, 2002).
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principalmente, do crescente sistema penal voltado para a conteno das massas, servindo tal
ideologia, mais especificamente, como elemento fundamental dentro deste setor.
Alessandro Baratta lista uma srie de princpios a fim de traar o contedo desta
ideologia que passou a fazer parte no s do modo de pensar da classe cientfica, mas tambm
das opinies comuns de sujeitos envolvidos no aparato penal penitencirio e homens comuns
do povo (BARATTA, 2002).
1. Principio da legitimidade: e Estado est legitimado a reprimir a criminalidade
por meio de instncias oficiais de controle social, uma vez que representa a sociedade, sua
reprovao ao comportamento desviante individual e a reafirmao dos valores e das normas
sociais.
2. Princpio do bem e do mal: o delito e o delinquente so elementos negativos e
danosos ao sistema social. Assim, divide-se a sociedade entre o mal, representado pelos
sujeitos desviantes, e o bem, representado pela sociedade constituda.
3. Princpio da culpabilidade: o delito a expresso da contrariedade do
indivduo s normas sociais, presentes na sociedade antes mesmo de qualquer sistematizao
legislativa, e, por isso, devem ser rechaados a fim de manter a coeso da sociedade.
4. Princpio da preveno: a pena, alm de retribuir e ressocializar o delinquente,
previne o crime, criando uma contramotivao ao comportamento criminoso.
5. Princpio da igualdade: a lei penal se mostra igual a todos e a reao penal se
aplica de modo igual aos autores de delitos.
6. Princpio do interesse social e do delito natural: o ncleo central dos delitos
definidos nos cdigos penais representa uma proteo s condies essenciais existncia de
toda sociedade, sendo estes denominados delitos naturais. Somente uma pequena parcela dos
delitos codificados representa a violao de determinados arranjos polticos e econmicos, e
so punidos a partir da necessidade de proteo a estes, sendo esses delitos denominados
artificiais.
Sob a tica da defesa social, a diferena entre a escola liberal clssica e a escola
positivista reside no Princpio da Culpabilidade. Enquanto para a primeira escola a
culpabilidade surge de um desvalor da ao voluntria do indivduo frente coletividade,
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ensejando-lhe a culpa, para a segunda escola essa culpabilidade decorre de fatores scio-
psicolgicos que independem da vontade do desviante, o que revela sua periculosidade social.
O conceito de defesa social marca uma evoluo do pensamento penal e
penitencirio ao criar justificativas e fundamentos racionais para a aplicao do direito penal,
porm ainda no representa uma via satisfatoriamente crtica de pensar a prxis penal a qual
este trabalho se prope, mostrando-se tolerante concepo de delito como algo imanente e
natural dentro da sociedade e, ainda, se comportando de maneira acrtica quanto s
caractersticas histricas de formao das mais diversas sociedades, considerando-as como
uma totalidade de valores e interesses. A teoria que aqui se pretende demonstrar
caracterizada por elementos opostos ideologia da defesa social frente anlise de
especficas formaes econmico-sociais e seus problemas inerentes, entre eles o dos
conflitos de classe e as contradies especficas das relaes de produo.
2.5 AS TEORIAS PSICANALTICAS DA CRIMINALIDADE
Tais teorias invertem a perspectiva da investigao criminolgica, deslocando o
foco de anlise do fenmeno criminal do sujeito criminalizado para o sistema penal e os
processos de criminalizao que dele fazem parte e, mais em geral, para todo o sistema da
reao social ao desvio (BARATTA, 2002, p. 49).
Apresentam duas linhas bsicas de pensamento, visando, a primeira, a explicao
do comportamento criminoso, tendo como principal expoente Sigmund Freud e, a segunda, a
discusso sobre a legitimidade do direito penal.
Freud entende que a personalidade humana se estrutura sobre trs esferas
existentes somente no plano denominado inconsciente: Id, Ego e Superego. Assim, todas as
aes humanas, inclusive a conduta criminosa, podem ser compreendidas atravs deste nvel
de subconscincia.
O comportamento criminoso explicado a partir de uma deficincia no superego,
estrato responsvel pela introjeo de limitaes e, portanto, de leis, princpio e normas de
convivncia social. Apesar dessas limitaes existentes no inconsciente, contidas pelo
sentimento de culpa e a tendncia a confessar, o superego reprime, mas no consegue eliminar
por completo os instintos criminosos, fazendo com estes se fiquem sempre latentes. a
superao do sentimento de culpa, no inconsciente, que gera o comportamento delituoso.
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Desta forma, o criminoso no seria um sujeito culpvel, luz do tradicional
conceito de culpabilidade, mas apenas uma consequncia da estruturao da personalidade
individual, no havendo o que se falar, tambm, em funo preventiva da pena, defendida
pela ideologia social, uma vez que a reao penal no se mostraria apta a eliminar a
ocorrncia de crimes.
As teorias psicanalticas deram incio a uma atitude crtica perante os ideais da
defesa social, porm apresentaram deficincias e limitaes, principalmente, ao ignorar por
completo as questes histricas e as circunstncias socioeconmicas nas quais o
comportamento desviante est necessariamente inserido. Apresentaram-se, assim,
semelhana das teorias de orientao positivistas, como a etiologia de um comportamento
cuja qualidade criminosa aceita sem anlise das relaes sociais que explicam a lei e os
mecanismos de criminalizao (BARATTA, 2002, p. 57).
2.6 A SOCIOLOGIA NA CRIMINOLOGIA
A primeira ruptura expressiva com o positivismo foi proposta por mile
Durkheim que, colocando em dvida a dicotomia entre o bem e mal, construiu uma
interpretao a partir da ideia de reao social ao delito e da introduo dos conceitos de
desvio fenmeno da estrutura social relacionado no aceitao do papel social atribudo
pela diviso do trabalho numa sociedade capitalista, sendo necessrio e til para o equilbrio e
o desenvolvimento sociocultural e anomia como a extrapolao do limite mximo do
desvio, a partir do qual se instauraria um estado de desorganizao. Assim, entende-se que o
crime fruto da prpria estrutura social, tendo uma funo dentro da sociedade, razo pela
qual no deve ser tomado como uma anomalia ou molstia social.
Se antes, no positivismo, o objeto era o homem delinquente, agora volta-se para a
ruptura cultural que determina a violao norma o desvio nos leva ao comportamento
desviante e no ao delinquente, no sendo um ser intrnseco ao sujeito, mas sim um estar.
Nos Estados Unidos da Amrica a onda imigratria das primeiras dcadas do
sculo XX gerou grandes concentraes urbanas de povos de todo o mundo, sendo terreno
fecundo para estudos decorrentes da proposta de Durkheim e sua escola funcional-
estruturalista, enquanto, no mesmo perodo, na Europa ainda se cultivava uma hegemonia
positivista, principalmente estimulada pelos ideais nazifascistas.
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18
Nesse contexto, Robert King Merton, em 1938, desenvolve seu trabalho sobre
Estrutura social e anomia. Assim como Durkheim, entende que o desvio um produto da
estrutura social, absolutamente normal, condutor de uma relao entre os fins culturalmente
elencados e os meios legtimos para se alcanar tais fins. A anomia se instaura quando os
meios para consecuo dos fins superam certos limites, deixando de serem funcionais. A
cultura teria um efeito repressivo ou estimulante na relao entre desvio e anomia.
Anomia , enfim, aquela crise da estrutura cultural, que se verifica
especialmente quando ocorre uma forte discrepncia entre normas e fins
culturais, por um lado, e as possibilidades socialmente estruturadas de agir
em conformidade com aquelas, por outro lado (BARATTA, 2002, p. 63).
Paralelamente, Edwin Sutherland, em 1939, desenvolve a noo de cifras ocultas,
como sendo aquela que no est nas estatsticas oficiais, voltadas para a maior exposio dos
que esto na base da estrutura social: os pobres (BATISTA, 2011, p. 68). Alm disso, prope
o que denomina associaes diferenciais, segundo a qual a criminalidade, como qualquer
outro modelo de comportamento, se aprende conforme contatos especficos aos quais est
exposto o sujeito, no seu ambiente social e profissional, produzindo sistemas de
representaes diferentes sobre o que ou no desvio ou crime.
Como se pode notar a partir dessa breve anlise, os estudos propostos por Merton
e Sutherland visam entender o que se passa fora das prises na interao de grupos culturais
heterogneos estratificados na pirmide social. O crime um reflexo das condies sociais, da
cultura e da aprendizagem, o que se contrape noo de defesa social e de crime como
descumprimento voluntrio do contrato.
Como limites, a escola estrutural-funcionalista constri uma associao entre
crime e pobreza, esquecendo-se dos processos de acumulao de capital para revelar como as
relaes econmico-sociais definem a qualidade criminal do comportamento e do sujeito
criminalizado.
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2.7 O ROTULACIONISMO
A escola rotulacionista, tendo como orientao sociolgica o interacionismo
simblico 5 proposto por George Margareth Mead, em 1934, e a etnometodologia 6,
proposta pela sociloga Alfred Schutz, em 1962, prope a anlise da criminalidade a partir da
ao do sistema penal que a define e que reage contra ela, desde as normas abstratas at as
instncias repressivas, apontando que tais instncias tm papel fundamental na formao do
status social do dito delinquente a partir do momento em que passam a agir contra este, e, ao
revs, do status social do no-delinquente a partir do momento que deixam de agir contra este,
mesmo que tenha cometido atos punveis.
A criminalidade abandona seu status de realidade objetiva e passa a ser lida como
uma definio. Os questionamentos dos criminlogos tradicionais sobre quem criminoso?
d espao para questionamentos voltados para quem definido como desviante? e,
principalmente, quem define o que desvio?. A partir desses novos objetos de anlise, a
pesquisa dos tericos do Rotulacionismo desenvolve-se em duas direes: uma voltada para o
estudo da formao da identidade desviante e para o efeito deste etiquetamento de
criminoso sobre o indivduo; a outra, voltada para o problema da definio do que o
desvio e para o problema da distribuio do poder de defini-lo (ou seja, para o estudo das
agncias de controle social).
Dentro da primeira linha de estudos, procura-se mostrar como a punio de um
primeiro comportamento desviante cria, muitas das vezes, um lao com o desvio, acarretando
uma mudana da identidade social do indivduo estigmatizado e uma tendncia permanncia
no papel social ao qual fora introduzido. O comportamento desviante passa a ser encarado
como uma medida de defesa, de ataque ou de adaptao reao da sociedade ao primeiro
desvio, colocando em dvida a funo preventiva e reeducativa da pena e revelando, em
ltima anlise, que a interveno do sistema penal, especialmente atravs das penas de
deteno, antes de terem um efeito reeducativo sobre o delinquente, determinam, na maioria
dos casos, uma consolidao da identidade desviante do condenado e o seu ingresso em uma
verdadeira carreira criminosa.
5 Segundo o interacionismo simblico, a sociedade constituda por uma infinidade de interaes
concretas entre os indivduos que, a partir de modificaes recprocas e de um processo de
tipificaes, afasta-se do concreto passando a atuar atravs da linguagem (cf. BARATTA, 2002). 6 Segundo a etnometodologia, a sociedade no uma realidade que se possa conhecer sobre o plano
objetivo, mas o produto de uma construo social, obtida graas a um processo de definio e de tipificao por parte de indivduos e de grupos diversos (cf. BARATTA, 2002).
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Sob a segunda linha, para o entendimento dos processos de definio do desvio
devem ser levadas em conta tanto as definies ditadas pelas instncias oficias de controle
social como tambm as ditadas pelo senso comum. O desvio se mostra como um processo
determinado pela maneira que certa sociedade interpreta o comportamento como desviante,
definindo as pessoas aptas a portarem-se dessa forma e o tratamento em face delas,
dependendo tal processo menos de tal comportamento em si e mais da interpretao imposta
pela sociedade e pelos rgos de controle. Para desencadear a reao social, o comportamento
deve ser capaz de perturbar a percepo habitual da rotina, da realidade tomada-por-dada,
suscitando, entre as pessoas implicadas, indignao moral, embarao, irritao, sentimento de
culpa e outros sentimentos anlogos (BARATTA, 2002, p. 95).
Influenciaram para o deslocamento da anlise do crime sob a tica do
comportamento desviante para a dos mecanismos de reao social e de seleo da populao
criminosa, ainda, as investigaes sobre a criminalidade de colarinho branco e as cifras
ocultas (ou cifras negras), encabeadas por Sutherland e desenvolvidas em territrio norte-
americano.
Na primeira, Sutherland mostrava como o comportamento contrrio norma
mantinha-se velado entre as classes de melhor posio social, fenmeno este caracterstico a
todas as sociedades de capitalismo avanado e propiciado pelas conivncias entre classe
poltica e classe burguesa, principal detentora do capital financeiro. Esta falta de interesse no
controle de tais prticas decorrente de fatores ligados: natureza social dos infratores que,
principalmente, no atraem o foco das agncias oficiais por no constiturem o esteretipo do
desviante; natureza jurdico-formal, que demanda meios mais custosos para a punio de
crimes propositalmente elencados, a fim de resguardar os seus agentes, via de regra,
provenientes de classes defendidas; ou ainda de natureza econmica, caracterizada pelo
maior acesso justia que as classes dominantes tm frente possibilidade de contratao de
um melhor quadro de profissionais para sua defesa jurdica.
Na segunda, revela como a criminalidade praticada pelas classes dominantes
influenciam a anlise e distribuio da criminalidade nas vrias camadas sociais, gerando um
falso quadro que concentra os crimes de maior reprovabilidade social mais nas mos das
camadas inferiores e menos nas das camadas superiores da sociedade, ligando-os aos fatores
pessoais e sociais correlacionados pobreza e moldando o modus operandi dos rgos
oficiais. Estas observaes do ensejo a uma fundamental correo do conceito de
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criminalidade, que passa a ser entendida no como o comportamento de uma restrita minoria,
como defendido pelas correntes que se baseiam na ideologia da defesa social, mas, ao
contrrio, o comportamento de largos estratos de nossa sociedade.
Em sua recepo alem, a criminalidade passa a ser observada tambm pela tica
da aplicao das leis em abstrato por parte do intrprete, e os possveis vcios decorrentes da
aplicao errnea de regras, princpios e atitudes subjetivamente contaminadas que podem
surgir em tal momento.
Baratta, no entanto, aponta que a escola rotulacionista, ao apresentar a sociedade
como formada por pequenos grupos estanques, ainda no questiona quem tem o poder de
rotular, aparecendo este poder de maneira acidental dentro da sociedade. Essa no anlise
macula a importncia que a luta de classes tem como mecanismo de regulao da populao
criminosa e de poder sobre as classes criminalizadas. Seu carter formalista e universalizante
acabou produzindo uma viso poltica de mdio alcance, descolada da economia e do
processo de acumulao de capital (BATISTA, 2011, p. 77).
2.8 O MARXISMO E A CRIMINOLOGIA CRTICA
Os ideais marxistas florescem na criminologia crtica, na dcada de 70, como uma
tentativa de aprofundar o pensamento rotulacionista que, frente s limitaes acima expostas,
mostrava-se carente de uma melhor fundamentao sobre a origem das reaes sociais a
determinados comportamentos bem como da origem da parcialidade do sistema judicirio e o
protecionismo s classes dominantes. Em ltima anlise, surgiu para desvelar o fio condutor
que direciona o modo de pensar da sociedade, seja de maneira espontnea ou vinculada a
mecanismos de controle social.
Neste sentido, aponta Baratta a sua inteno ao se valer dos ideais marxistas:
(...) pensamos que o emprego de algumas hipteses e instrumentos tericos
fundamentais, extrados da teoria marxista da sociedade, pode levar a
criminologia crtica alm dos limites que aquelas correntes encontraram, e
permitir, em parte, reinterpretar seus resultados e aquisies em um quadro
terico mais correto (BARATTA, 2002, p. 160).
O contexto da Guerra Fria instaurado no perodo ps Segunda Guerra Mundial,
que instituiu uma bilateralidade entre mundo capitalista e mundo socialista representado,
respectivamente, por Estados Unidos da Amrica e Unio Sovitica, propiciou terreno
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fecundo para a ascenso dos interesses das classes subalternas carentes a uma teoria social
que vislumbrasse a efetiva mudana da realidade social de constante adestramento imposto
pelo capital e seus meios coercitivos na qual estavam inseridas. Neste momento histrico, as
bases do capitalismo, at ento hegemnico no mundo moderno, se viu claramente
contraposto pelos ideais socialistas, presentes em uma nao, poca, prspera e, ao menos
ideologicamente, socialmente mais equnime.
O capitalismo depende da apropriao da mo-de-obra da classe operria pelo
capital atravs de processos de dominao do corpo, do trabalho vivo e do tempo do homem,
expandindo-se a partir da mais-valia 7. Para viabilizar esse controle das massas, e a demanda
por ordem, vrias formas de controle social se impem, e vo desde a educao, que molda o
pensar da sociedade, at o sistema prisional, que segrega e pune os inadequados a partir de um
discurso de classe voltado legitimao do capital.
A partir destas premissas, a criminologia comea a ser lida como cincia do
controle social, na qual os operadores do sistema penal figuram como instrumentos para o
processo de organizao das massas dentro da luta de classes, e consequente potencializao
dos ganhos de capitais, valendo-se do processo punitivo como meio de disciplinar e organizar
o exrcito industrial de reserva.
A anlise da desigualdade da justia penal burguesa introduzida pela contradio
entre a igualdade formal (aquela abstratamente considerada) e a desigualdade substancial (que
se observa em concreto), que se manifesta em relao s chances de determinados indivduos
serem definidos e controlados como desviantes (abstratamente, todos esto passiveis dessa
definio e controle, mas, na prtica, apenas alguns o so).
A teoria de Baratta, apesar de alar diversos fundamentos do marxismo, no se
limitou a este, que se mostrava fragmentado sobre o tema, valendo-se, tambm, de um vasto
trabalho de observao emprica, inclusive, em contextos tericos diversos ao marxismo.
Alm disso, apesar de romper com as Escolas postas at ento, utiliza de alguns de seus
conceitos e ideais, principalmente os provenientes do Rotulacionismo.
7 O conceito de mais-valia, apresentado por Karl Marx, refere-se ao lucro que o capital obtm sobre a
explorao da mo-de-obra do proletariado e dos meios de produo. Trata-se da diferena entre o
valor do bem produzido e a soma do valor dos meios de produo e do trabalho (MARX e ENGELS,
1998).
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3 A CRIMINOLOGIA CRTICA
As teorias da criminalidade baseadas no Rotulacionismo deram ensejo passagem
da criminologia liberal para a criminologia crtica, no final dos anos 60 do sculo XX. Essa
criminologia procura desenvolver-se como uma teoria materialista, baseada na observao
econmico-poltica do desvio, dos comportamentos socialmente negativos (BARATTA, 2002,
p. 159) e da criminalizao, valendo-se de instrumentos conceituais e hipteses elaboradas no
mbito do marxismo.
Sob esse enfoque, produziu dois movimentos fundamentais na anlise do crime,
quais sejam o deslocamento do autor para as condies objetivas, estruturais e funcionais, e o
deslocamento das causas para os mecanismos de construo da realidade social (BATISTA,
2011, p. 89). Desta feita, a noo de criminalidade abandona sua qualidade ontolgica e passa
a ser compreendida como o status atribudo a determinados indivduos, mediante a dupla
seleo 1) dos bens protegidos penalmente e dos comportamentos ofensivos a estes bens,
descritos nos tipos penais e, 2) a seleo dos indivduos estigmatizados entre todos os
indivduos que realizam infraes a normas penalmente sancionadas.
Assim, para Baratta, a criminalidade um bem negativo, distribudo
desigualmente conforme hierarquia de interesses fixada no sistema socioeconmico,
conforme a desigualdade social entre os indivduos (BARATTA, 2002, p. 161).
O direito penal no mais considerado um sistema esttico de normas,
identificando-se funes dinmicas distinguveis por trs mecanismos passveis de anlises
estanques, mas que se tocam: o mecanismo da produo das normas (criminalizao
primria); o do processo penal como mecanismo de aplicao das normas, compreendendo a
ao dos rgos de investigao e culminando com o juzo (criminalizao secundria) e,
enfim, o mecanismo da execuo da pena ou das medidas de segurana.
Como crtica aos mecanismos supramencionados, contesta-se o patamar dito
igualitrio por excelncia do direito, uma vez que o direito penal no defende a todos e,
quando pune, o faz com intensidade desigual e de modo fragmentrio, sendo o status de
criminoso distribudo de modo desigual entre os indivduos e, ainda, feito de maneira
independente da danosidade social das aes e da gravidade das infraes lei, no sentido de
que estas no constituem a varivel principal da reao criminalizante e da sua intensidade.
Revela-se, assim, um direito penal to desigual quanto os outros ramos do direito burgus,
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que deixa transparecer a latente contradio entre a igualdade formal dos sujeitos de direito e
a desigualdade substancial entre os indivduos, entendida a primeira como a igualdade perante
a lei e a segunda como a discrepncia que se manifesta quando os diversos membros da
coletividade no tm o mesmo poder aquisitivo ou status social.
Neste nterim, o sistema penal se mostra como um instrumento apto a conservar e
reproduzir a realidade social, sendo a aplicao seletiva das sanes penais estigmatizantes e,
especialmente o crcere, um meio de manuteno da escala vertical da sociedade, incidindo
mais fortemente sobre o status social dos indivduos de estratos sociais mais baixos e
impedindo sua ascenso. Conforme entendimento de Baratta:
O Crcere representa, em suma, a ponta do iceberg que o sistema penal
burgus, o momento culminante de um processo de seleo que comea
ainda antes da interveno do sistema penal, com a discriminao social e
escolar, com a interveno dos institutos de controle social e escolar, com a
interveno dos institutos de controle do desvio de menores, da assistncia
social, etc. O crcere representa, geralmente, a consolidao definitiva de
uma carreira criminosa (BARATTA, 2002, p. 167).
Em relao criminalizao primria, ou seja, aquela que se refere ao direito
penal em abstrato, a discriminao seletiva tem a ver com os contedos e os no contedos
da lei penal (BARATTA, 2002, p. 176). A seleo criminalizadora ocorre na formulao dos
tipos penais e do emaranhado de agravantes que a ele se aplicam, sendo que a comunicao
dos tipos penais voltados s classes baixas com as agravantes das penas , via de regra, mais
completa e, a dos tipos penais voltados para a classe mais abastada, mais sutil. Os no
contedos so silncios legislativos propositais no sentido de dificultar ou anular a
criminalizao primria das aes antissociais praticadas por integrantes das classes
dominantes, constituindo verdadeiras zonas de imunizao para comportamentos cuja
danosidade se volta particularmente contra as classes subalternas.
Os processos de criminalizao secundria esto relacionados forma como a
sociedade enxerga o outro, guiando a ao tanto dos rgos investigadores como dos rgos
judicantes, e que os levam, portanto, a procurar a criminalidade principalmente naqueles
estratos sociais dos quais normal esper-la. Alm disso, sendo os aplicadores do direito
oriundos, principalmente, das classes hegemnicas, o seu insuficiente conhecimento e
capacidade de penetrao no mundo do acusado poder deturpar a aplicao da lei pela
influncia dos preconceitos e esteretipos do julgador em relao a, principalmente, os
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acusados provenientes de classes baixas. Segundo Baratta, pesquisas empricas comprovam as
diferenas de atitude emotiva e valorativa dos juzes em face de indivduos pertencentes a
diferentes classes, levando a tendncias de juzos diversificados conforme a posio social do
acusado, relacionados tanto apreciao do dolo, da culpa e prognoses sobre suas futuras
condutas e, consequentemente, individualizao e mensurao da pena destes. Neste sentido,
no segundo semestre de 2013, o Conselho Nacional de Justia (CNJ), com o intuito de
fortalecer o autoconhecimento da Justia brasileira para fins de aprimoramento e
planejamento das polticas judicirias, mapeou, pela primeira vez, o perfil dos magistrados e
servidores do Poder Judicirio Brasileiro 8. Para tal, o Departamento de Pesquisas Judicirias
(DPJ) do CNJ elaborou questionrios que foram disponibilizados de forma eletrnica na
pgina do CNJ e, tambm, enviados via correio eletrnico ao universo de pesquisados,
contando com a adeso de 64% (10.796) dos 16.812 magistrados em atividade no pas.
Revelando a seletividade existente no Poder Judicirio, conforme proposto por Alessandro
Baratta nos apontamentos supra, os dados levantados constatam que 82,8% dos magistrados
so da raa branca, enquanto apenas 15,6% so negros ou pardos e, apesar do censo no
levantar a origem social dos entrevistados, constata-se que 51,2% deles so oriundos de
instituies privadas de ensino superior, o que transparece que, em sua maioria, os
magistrados so oriundos de classes mais abastadas. Em contrapartida, na realidade carcerria
nacional, segundo dados do InfoPen 9, a maioria dos apenados, cerca de 60%, so negros ou
pardos e, ainda, cerca de 75% dos presos no possuem sequer ensino mdio, contra uma
pequena minoria, cerca de 1%, que possui ensino universitrio ou formao superior a esta.
8 BRASIL, C. N. D. J. Portal CNJ. Censo do Poder Judicirio, Braslia, p. 212, 2014. Disponvel em:
. Acesso em: 08 out. 2014. 9 BRASIL, M. D. J. Portal Atlas. Relatrios Estatsticos - Analticos do Sistema Prisional
Brasileiro, Junho 2013. Disponvel em: . Acesso em: 09 out. 2014.
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4 O MEDO COMO MTODO DE MANUTENO DA SELETIVIDADE
4.1 O FATOR LEGITIMANTE MEDO
Como visto no captulo anterior, para a Criminologia Crtica, o delito uma
criao social voltada para a determinao do comportamento desviante atravs da seleo
dos bens tutelados penalmente e comportamentos que os colocam em risco, e a seleo dos
indivduos estigmatizados como os mais propensos ao cometimento de tais, tudo de acordo
com os interesses da classe dominante, em uma criao social eminentemente seletiva.
No caminho para essa criao, ho de ser cunhados meios para que a populao
em geral se filie ideia vinculada, sendo o medo largamente utilizado para a consecuo de
tal, servindo, por diversas vezes, ao longo da histria e atualmente, para inflamar estratgias
de neutralizao e disciplinamento planejado das massas empobrecidas. O que se pretende
demonstrar ao longo deste captulo , justamente, como a hegemonia da classe dominante na
nossa formao social trabalha o medo como mecanismo indutor e justificador de polticas
autoritrias de controle social, tornando-o fator de tomadas de posio estratgicas seja no
campo econmico, poltico ou social, podendo-se, ao fim, concluir que a difuso do medo
mecanismo indutor e justificador de polticas autoritrias de controle social (BATISTA, 2003,
p. 51).
O medo e seu impacto difusor na vida social e poltica, alimentado, desde as
razes da sociedade atual, pelo trauma de guerras feudais incessantes, epidemias de praga,
conflitos religiosos virulentos e pela insegurana fsica predominante, moldou profundamente
a sociedade e a cultura europeia no comeo da era moderna. Ainda, durante o Renascimento,
a Igreja habilmente manipulou e canalizou os medos populares para consolidar e estender o
seu poder poltico simblico, mesmo quando a revoluo mental secular levada a cabo pela
burguesia estava ganhando flego. Em mbito nacional, o medo coletivo frente aos tumultos
populares, atividades criminosas alimentadas pela pobreza e a insurreies de escravos,
desempenhou papel importante na sociedade urbana do Brasil ps Independncia, tendo os
projetos de construo da ordem burguesa no pas sempre se deparado com o medo da
rebeldia negra.
Para Vera Malaguti (2003), a grande poltica social da contemporaneidade
neoliberal a poltica penal. Quando esta poltica demonstra sinais de enfraquecimento, os
meios de comunicao de massa se apressam a difundir notcias, campanhas e imagens que
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aterrorizam a populao e cumprem um papel disciplinador emergencial. Dessa maneira, o
medo considerado um projeto esttico que limita a liberdade em nome da segurana.
Segundo a autora, o sculo XX, ao instituir o declnio do poder poltico e a
ascenso do poder econmico transnacionalizado, enfraquece o Estado, que se torna incapaz
de reduzir ou controlar a violncia que sua prpria impotncia gera. O discurso do Estado se
revela ineficaz para convencer ou tranquilizar sua plateia, e este se v obrigado a recorrer a
um libreto para seu espetculo. Este espetculo tem como palco as mdias e as agncias
de comunicao social, e como personagens, determinados grupos que variam dos traficantes
e terroristas, passando por negros, pobres e favelados, em uma estratgia que visa concentrar a
causa da insegurana e do medo numa parte da populao que pode ser nomeada, reconhecida
e localizada, desviando o foco das atenes da ausncia do poder, da poltica e da crescente
desigualdade social.
4.2 A MDIA DE MASSA COMO MEIO DE INCULCAO DO MEDO
Notadamente, os meios de comunicao de massa promovem campanhas seletivas
atravs da enxurrada de discursos perigosistas que incitam a construo no imaginrio
coletivo de esteretipos de crimes e, principalmente, da figura do outro. As reportagens
veiculadas sempre ressaltam mais a crueldade dos bandidos do que o meio cruel que os
cercam; a impunidade total em detrimento da condenao diria da populao
marginalizada; imputam o mau funcionamento do aparelho estatal s leis benevolentes,
especialmente Constituio, que s garante direitos humanos para bandidos, esquecendo-se
da relaxada legislao voltada para a punio da classe dominante.
No que toca aplicao da pena, do processo penal e penalizante, a mdia veicula
incisivas opinies, e acaba prolatando sentenas que tornam-se irrecorrveis frente
coletividade e criam fatos consumados pela propagao de informaes precoces. Zaffaroni, a
respeito do tema, nos mostra que a manipulao da mdia cria esteretipos que direcionam a
criao e aplicao das leis e permitem a catalogao dos criminosos que combinam com a
imagem que correspondem descrio fabricada, deixando de fora outros tipos de
delinquentes, como, por exemplo, os praticantes de crimes econmicos (os denominados
crimes do colarinho branco) e os de trnsito (ZAFFARONI, 2001).
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A partir da veiculao sensacionalista das notcias (que, particularmente, agradam
s massas), o sujeito informado adota as narraes como verdades concretas e absolutas,
passando a acreditar que a qualquer momento pode ser vtima de determinados delitos na
maioria das vezes delitos violentos causados por determinada classe, demasiadamente
estigmatizadas pela mdia em regra, as classes baixas. Fica clarividente o poder que a mdia
detm para criar imagens de medo que na maioria dos casos se tornam permanentes.
A evoluo dos meios de comunicao em massa se confunde com a evoluo do
capitalismo e o controle dos contedos de informao de determinada sociedade em
determinada poca sempre foi do interesse dos dirigentes do perodo, o que pode influenciar
decisivamente nos processos estigmatizantes, como ser demonstrado a frente. No Brasil, por
exemplo, apenas uma estreita classe dominante, mais especificamente nove famlias,
controlam cerca de noventa por cento de tudo o que os brasileiros leem, ouvem e veem
atravs dos meios de comunicao social. Fica claro que a mdia, frente a tais evidncias,
funciona como um Quarto Poder que de fato controla quais assuntos se deve apresentar ao
pblico e, mais traioeiramente, falsear e, sobretudo, silenciar. Assim expe de maneira clara
a opinio de Vera Malaguti sobre o protecionismo arraigado na mdia como espelho da classe
dominante:
A qualquer diminuio de seu poder os meios de comunicao de massa se
encarregam de difundir campanhas de lei e ordem que aterrorizam a
populao e aproveitam para se reequipar para os novos tempos. Os meios de comunicao de massa, principalmente a televiso, so hoje fundamentais
para o exerccio do poder de todo o sistema penal, seja atravs dos novos
seriados, seja atravs da fabricao de realidade para produo de indignao
moral, seja pela fabricao de esteretipo do criminoso. (BATISTA, 2003, p.
33)
Em um sistema de hierarquizao do que ser notcia ou no, o trabalho de
comunicao da mdia se resume em trs fases: eleio dos acontecimentos que sero notcia;
hierarquizao das notcias segundo sua importncia e tematizao ou converso de uma
notcia em tema de debate social. Pelo carter imediatista da sociedade moderna, vida por
informaes e carente, at mesmo, do medo como alimento do subconsciente, os
acontecimentos que provavelmente no despertaro a ateno do pblico e, por conseguinte,
no tero a audincia necessria para que a emissora possa auferir lucros, so excludos da
pauta. Alm disso, so excludas tambm as notcias que no beneficiam ou que
prejudicam os interesses econmicos que o grupo miditico representa, e a ateno do
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29
telespectador dirigida a um tipo especfico de delinquncia, ditado pelo processo de eleio,
hierarquizao e tematizao da notcia, fazendo com que a mdia se detenha sobre
determinados delitos: crimes contra a vida, crimes contra a integridade fsica, crimes contra a
liberdade sexual. Outros tipos de delitos que no interessam aos detentores dos grupos de
comunicao ou que vo de encontro aos interesses pessoais desses so completamente
esquecidos.
Frente a essa satisfao da massa, a mdia acaba sendo legitimada pela sociedade
como um meio fidedigno, imparcial e transparente. Assim o seu poder, quando no aflora e se
sobrepe sobre os poderes constitudos, age de maneira a contrap-los e desconstru-los.
Foucault defende a ideia de que s h verdade se acompanhada de poder:
[...] a verdade centrada na forma do discurso cientfico e nas instituies que o produzem; est submetida a uma constante incitao econmica e
poltica (necessidade de verdade tanto para a produo econmica, quanto
para o poder poltico); objeto, de vrias formas, de uma imensa difuso e
de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educao ou de
informao, cuja extenso no corpo social relativamente grande, no
obstante algumas limitaes rigorosas); produzida e transmitida sob o
controle, no exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos
polticos ou econmicos (universidade, exrcito, escritura, meios de
comunicao); enfim, objeto de debate poltico e de controle social
(FOUCAULT, 1984, p. 12-13).
A partir dessa correlao entre poder e verdade, alimentada uma cultura do
medo, que se desenvolve conforme o interesse de determinados grupos dominantes, conforme
relata Thums:
A escolha dos bens jurdicos que sero objeto de tutela penal deveria ser o
resultado de juzos de valor pronunciados pelo legislador, atuando como
representante da vontade popular. Esses juzos de valor, todavia, sofrem
influncia das mais variadas ordens. Desde o clamor social, manipulado pela
mdia, maximizando fatos isolados, at o explcito interesse de grupos
econmicos ou polticos (THUMS, 2005, p. 23).
A partir de toda essa problematizao e magnificao do crime, elencando a busca
por ordem e segurana como os principais interesses pblicos a serem perseguidos, o tema
acaba se tornando enraizado agenda poltica brasileira. Em um ltimo patamar, legitimam-se
polticas de segurana cada vez mais severas, passa-se a exigir mais leis penais, mais
represso, mais segurana pblica em detrimento, at mesmo, da privacidade, e menos
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30
direitos para o inimigo que, na imensa maioria das vezes, representado por atores das
classes populares.
Diante de todo esse quadro de jogo de interesses, o Poder Legislativo acaba sendo
tocado pelos chamamentos e apelos da mdia e do clamor pblico na elaborao das leis
penais.
Dentre as principais influncias recentes da mdia e do clamor pblico na
elaborao de leis, podemos citar Lei n 8.072/90 Lei dos Crimes Hediondos. Ela foi uma
lei aodada, resultado de uma intensa presso da mdia diante da criminalidade nos meios
urbanos poca de sua criao, sendo, o mais especfico, o caso do sequestro do empresrio
Ablio Diniz, ocorrido em 1989 assim como o sequestro do tambm empresrio Roberto
Medina. Tais crimes foram a mola propulsora para a celeridade no julgamento do projeto de
lei j existente sobre o assunto e determinou o acrscimo dos delitos de extorso mediante
sequestro no rol dos crimes que seriam considerados hediondos. O clamor dos meios de
comunicao antes e depois de o empresrio Ablio Diniz ser libertado, associado com as
ondas de criminalidade urbana, resultaram na promulgao da Lei n 8.072/90 que ,
indubitavelmente, uma das mais miditicas leis produzidas no Brasil.
Zaffaroni e Pierangeli, em obra clssica, apontam:
Menos de dois anos aps a Constituio Federal de 1988, o legislador
ordinrio, pressionado por uma arquitetada atuao dos meios de
comunicao social, formulava a lei 8072/90. Um sentimento de pnico e de
insegurana muito mais produto de comunicao do que realidade tinha tomado conta do meio social e acarretava como consequncias imediatas a
dramatizao da violncia e sua politizao. (ZAFFARONI e PIERANGELI,
2002).
Alguns anos aps, a morte de Daniella Perez, ocorrida em 28 de dezembro de
1992, foi mais um caso criminal que deu azo a mudanas na lei penal. A imprensa divulgou o
acontecimento por anos. Neste caso, a escritora Glria Perez, me de Daniella Perez,
capitaneou um movimento colhendo milhares de assinaturas na tentativa de encaminhar ao
Congresso um projeto de lei de iniciativa popular, no qual se acrescentaria Lei n 8.072/90 o
homicdio qualificado.
Recentemente, em 2003, o assassinato dos jovens Liana Friendenbach e seu
namorado Felipe Caff, perpetrado por uma quadrilha liderada por um adolescente, deu
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ensejo a uma precipitada discusso sobre a reduo da maioridade penal. O pai da jovem, o
Advogado Ari Friendenbach lidera um movimento neste sentido e detm o cabal apoio dos
meios televisivos, sendo corriqueiro encontr-lo em programas de todos os gneros e
destinados a diversos pblicos, quando se est a discutir a questo da reduo da maioridade
penal.
Ainda, a Poltica de Pacificao das comunidades carentes da cidade do Rio de
Janeiro, iniciada no final do ano de 2010, teve ampla divulgao pela mdia e grande
aceitao da sociedade. Em uma clara guerra do bem contra o mal, do civilizado contra o
criminoso, do asfalto contra a favela, legitimou-se o uso de um aparato de guerra contra o
inimigo personificado na figura do traficante. Neste contexto, fez-se vista grossa
carnificina e arbitrariedades da atuao do Estado, na mais clara aplicao da mxima
maquiavlica segundo a qual os fins justificam os meios. Os acontecimentos mostraram uma
classe dominante que, acuada pelo medo imposto pela grande mdia, e mesmo por interesses
de dominao, em certos casos assistiram caladas ao excesso de foras empregadas e, noutros,
louvaram a violncia e ansiaram pelo sangue derramado do inimigo, classificando todo
morador das reas atingidas como tal. Tal concluso pode ser baseada no pensamento de Vera
Malaguti sobre o uso do medo no Brasil:
Sociedades rigidamente hierarquizadas precisam do cerimonial da morte
como espetculo de lei e ordem. O medo a porta de entrada para polticas
genocidas de controle social. (BATISTA, 2003, p. 53)
Por ltimo, no ano de 2013, os Rolezinhos 10, encontros marcados por jovens da
periferia em grandes shoppings e reas frequentadas, geralmente, pelas classes mais abastadas
impactaram a sociedade burguesa ao verem-se rodeada por indivduos que no eram
daqueles locais, em um claro reflexo da estetizao do mal 11. Nesse momento de ecloso
social, de tentativa dos excludos adentrarem em um meio que no lhes era peculiar, a mdia
tornou-se a apontar somente os fatos negativos que supostamente esses encontros geravam,
como furtos, brigas e consumo de drogas, sem, no entanto, conseguir evidenciar o lastro
dessas prticas entre os participantes e, muito menos, contrabalancear tais fatos negativos
10
PINTO, T. Brasil Escola. Rolezinhos e discriminao social, 2014. Disponvel em:
. Acesso em: 13 out.
2014. 11
Expresso utilizada por Vera Malaguti segundo a qual o medo , dentre outros, um projeto esttico,
que entra pelos olhos, pelos ouvidos e pelo corao. Em outras palavras, a estetizao seria a anlise
do que o sujeito v e percebe a partir de padres previamente inseridos em seu subconsciente (por
exemplo, a comparao entre o favelado e o criminoso) (BATISTA, 2003).
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pontuais aos pontos positivos do movimento. Dessa forma, reproduziu, basicamente, o que a
grande massa dominante gostaria de escutar e, ainda, manteve legtimo o medo dessas classes
frente ao outro. Em uma obra anterior a estes acontecimentos, Vera Malaguti expe
claramente o que ocorre em situaes como essas:
A ocupao dos espaos pblicos pelas classes subalternas produz fantasias
de pnico e caos social, que se ancoram nas matrizes constitutivas da nossa formao ideolgica. (BATISTA, 2003, p. 34)
Como se pde notar, a mdia influenciou e influencia, de maneira decisiva, o
modo de pensar e agir da populao em geral, criando bases slidas para a conduo das
polticas de segurana e processos de estigmatizao voltados para a satisfao do interesse
das classes dominantes e interesses prprios.
4.3 RETRATOS DA SOCIEDADE BRASILEIRA
O produto de uma sociedade permeada pelo medo divulgado massivamente
atravs dos meios de comunicao com o intuito de direcionar o pensamento da coletividade
para a dicotomia entre bem e mal, insistindo-se, sempre, na personificao do mal na figura
de grupos pertencentes a classes menos abastadas, e nos meios violentos para sua supresso,
no poderia ser outro que no o disseminado pensamento de tolerncia zero 12, aonde o
rigor penal, atravs do enrijecimento das penas, tido como principal meio para a obteno da
paz social.
Tentando demonstrar como a inculcao do medo pela mdia gera reflexos no
modo de pensar da sociedade, neste ponto ser procedida a anlise de dados de pesquisas
estatsticas procurando apontar, sempre que possvel, como as bases da criminologia crtica
explicam a viso apresentada pela populao.
Tomaremos por base o ltimo levantamento voltado especificamente para a
segurana pblica realizado pelo Instituto Brasileiro de Opinio Pblica (IBOPE), em parceria
12
Em analogia poltica do Law Enforcement desenvolvida em Nova York EUA, a expresso , sobretudo, aplicada como um modelo de segurana pblica em que a ao policial especialmente
intransigente com delitos menores, como no pagar o transporte pblico, a prostituio, os pequenos
furtos etc. O sistema de tolerncia zero tem como meta principal incutir o hbito do respeito
legalidade, o que produziria em mdio prazo uma reduo nos ndices de microcriminalidade, bem
como uma diminuio dos delitos de maior importncia, como estupros e homicdios.
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com o Conselho Nacional da Indstria (CNI), publicado em outubro de 2011 e denominado
Retratos da sociedade brasileira Segurana Pblica (Pesquisa CNI - IBOPE: retratos da
sociedade brasileira: segurana pblica, 2011). Tal levantamento leva em conta a opinio de
todo o territrio nacional, com entrevistados de diversas classes sociais e com idade acima de
16 anos. Para fins de apresentao, os temas sero divididos de acordo com a diviso proposta
no relatrio publicado: principais problemas do Brasil, convivncia da populao com a
violncia e a criminalidade, e polticas e aes para melhorar a segurana pblica do pas 13
.
Em relao aos principais problemas enfrentados pelo Brasil, os candidatos
deveriam escolher, dentro de uma lista pr-determinada de opes, duas respostas, entre as
quais a sade (ou a falta dela) despontou como o principal problema, com 52% de
assinalaes. Em segundo e terceiro lugares ficaram, respectivamente, a segurana pblica
(33%) e as drogas (29%). Observa-se que, apesar da sade ser lembrada com um alto grau de
incidncia, se agruparmos os problemas da segurana pblica e drogas, ambos relacionados
ao comportamento criminoso de classes mais baixas, teremos uma nova primeira colocao,
com um ndice de 62% de apontamentos de pelo menos um destes dois itens pelos
entrevistados, o que os levariam, em conjunto, a uma primeira colocao. Em contrapartida, a
corrupo, crime tipicamente de classes mais altas da sociedade, e que Sutherland elenca entre
os Crimes de Colarinho Branco, aparece com apenas 9% dos apontamentos. Por bvio que no
contexto de 2011, poca da realizao dos levantamentos da pesquisa, no havia menos
pessoas que incorriam neste crime, ou mesmo que este gerava menos danos ao pas, o que se
pode deduzir a partir dos dados e do contexto de outra pesquisa realizada em 2014,
denominada Retratos da Sociedade Brasileira - Problemas e Prioridades para 2014, na qual
a corrupo aparece com 27% de assinalaes como sendo um dos principais frente ao mesmo
conjunto de problemas elencados na pesquisa realizada em 2011. Cabe aqui ressaltar o
contexto de protestos populares ocorridos nos anos de 2012, 2013 e 2014, que, dentre outras
conquistas, se prestaram a acender a chama poltica e crtica na populao em geral, bem
como pressionou a mdia a divulgar casos de escndalo, antes abafados, envolvendo os altos
escales da sociedade.
Aqui fica claro o problema da dicotomia entre a igualdade formal e a desigualdade
substancial apresentada pelo marxismo e incorporada pela criminologia crtica segundo a
13
Os dados estatsticos aqui apresentados e retomados nos pargrafos seguintes deste tpico referem-
se, ainda, queles contidos no relatrio realizado pelo Instituto Brasileiro de Opinio Pblica
(IBOPE), em parceria com o Conselho Nacional da Indstria (CNI), publicado em outubro de 2011
e denominado Retratos da sociedade brasileira Segurana Pblica.
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qual, seguindo os interesses do capitalismo, os comportamentos criminalizados praticados
pelas classes mais baixas da sociedade so mais lembrados como delitos e mais taxados como
problemas, e os de colarinho branco, entre os quais a corrupo se inclui, so relegados como
crimes e problemas menores, enquanto ambos possuem a mesma faceta delituosa. Vale, ainda,
lembrar aqui das trs variveis apontadas por Sutherland que se postam como meios de
acobertamento dos crimes de colarinho branco, quais sejam: a natureza social dos infratores
que, principalmente, no atraem o foco das agncias oficiais por no constiturem o
esteretipo do desviante; a natureza jurdico-formal, que demanda meios mais custosos para a
punio de crimes propositalmente elencados, a fim de resguardar os seus agentes via de regra
provenientes de classes defendidas; a natureza econmica, caracterizada pelo maior acesso
a justia que as classes dominantes tm frente possibilidade de contratao de um melhor
quadro de profissionais para sua defesa jurdica.
Nos quesitos relacionados convivncia da populao com a violncia e a
criminalidade, 68% dos entrevistados responderam que no foram expostos diretamente 14
violncia nos ltimos 12 meses, sendo que apenas 11% sofreram com a violncia diretamente
e outros 19% por intermdio de algum parente. Em relao exposio indireta 15
, 80% dos
entrevistados disseram j terem presenciado pelo menos um dos crimes apontados na
pesquisa, sendo o mais comum deles, porm, o uso de drogas nas ruas.
Duas importantes observaes aqui devem ser feitas. A primeira a de que todas
as situaes de violncia e criminalidade apontadas pela pesquisa referem-se a delitos
atrelados s classes sociais mais baixas, tais como uso de drogas na rua, prises efetuadas pela
polcia, agresses, assaltos, etc., no sendo elencados como criminalidade e/ou violncia,
neste quesito da pesquisa, os delitos prprios das classes altas ou agentes do estado, tais como
a corrupo, a prevaricao, as omisses, etc. Isso deixa transparecer a noo seletiva que a
sociedade tem, mesmo que veladamente, sobre o que deve se debruar a questo da segurana
pblica: sobre o controle das massas empobrecidas. O segundo ponto que deve ser ressaltado
a correlao entre algumas condutas e a violncia e, aqui, sem adentrar na questo da
legalizao das drogas ento ilcitas, lano o olhar sobre o imaginrio da populao em
considerar o uso de droga na rua como um sinnimo de violncia, imaginrio este mais
14
Entendida essa exposio direta como a exposio do prprio entrevistado ou de algum parente
(Pesquisa CNI - IBOPE: retratos da sociedade brasileira: segurana pblica, 2011). 15
Entendida essa como a simples visualizao da ocorrncia do fato sem, no entanto, sofrer qualquer
prejuzo direto com este (Pesquisa CNI - IBOPE: retratos da sociedade brasileira: segurana pblica,
2011).
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voltado para o que o usurio representa frente construo social do que para a objetividade
de sua ao propriamente dita.
Ainda dentro do quesito da convivncia da populao com a violncia e a
criminalidade, 45% da populao afirmou ter aumentado os cuidados com a segurana nos
ltimos trs anos. Segundo o relatrio da pesquisa, o percentual de respondentes que afirmou
ter aumentado os cuidados com segurana cresce de acordo com a renda, alcanando 56% das
famlias com renda superior a 10 salrios mnimos e 55% das famlias com renda entre 5 e 10
salrios mnimos. Alm desses cuidados gerais, hbitos mais especficos tambm foram
modificados para se evitar a exposio violncia, entre os quais evitar andar com dinheiro
(63%), cuidados ao sair de e entrar em casa, trabalho ou escola (57%) e deixar de circular
por alguns bairros ou ruas (48%).
V-se que a mxima da segregao revela-se nas estatsticas, e o medo gera nas
classes mais abastadas a repulsa pelo outro, via de regra, personificado na figura do pobre.
Entre os dados acima apontados, o fato de se deixar de circular por alguns bairros ou ruas
revela a criao, dentro da construo social, de determinados locus disseminadores de
criminalidade, concretizados na figura das favelas e bairros perifricos, sem, necessariamente,
haver uma justificativa fundamentada, objetivamente, para esta forma de pensar.
At aqui, os dados obtidos na pesquisa em anlise revelaram facetas da sociedade
fortemente moldadas pelo medo e pela noo de crime como ontolgico s classes mais
baixas da sociedade. Estas construes, como defendido, so frutos de um sistema de controle
(desde a escola at o sistema penal, passando pelas mdias e o medo) voltados satisfao dos
interesses do capital em sua manuteno no poder. Agora, o ltimo quesito da pesquisa a ser
apresentado consubstancia o ponto de chegada ao qual o sistema vigente pretende chegar e
manter. Assim, veremos na anlise dos dados relativos opinio da sociedade sobre as
polticas e aes para melhorar a segurana pblica do pas a reproduo do discurso de
dio e dominao preconizados pela burguesia, aos quais se ope os ideais da criminologia
crtica.
Evidenciando os resultados da poltica de combate s drogas difundida desde os
anos 1970 e, ainda hoje, fortemente utilizada pela mdia para influenciar o sentimento coletivo
pela demanda de ordem, para 58% dos entrevistados, o combate ao trfico de drogas
elencado como ao prioritria para melhorar a situao da segurana pblica. Ainda neste
sentido, apenas 23% dos entrevistados concordam, total ou parcialmente, que Legalizar a
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venda e o uso da maconha reduzir a criminalidade, enquanto 70% dos entrevistados
discordam de tal assertiva. V-se que o inimigo pblico, o outro, j se encontra formado
no imaginrio geral a partir do que Vera Malaguti denominou estetizao do mal.
As demais aes defendidas pela populao tambm so afeitas represso do
crime, estando em segundo lugar o aumento do policiamento nas ruas, com 37%, em
terceiro o aumento de penas pelos crimes cometidos, com 27%, e em quarto o maior
combate venda ilegal de armas, com 24%. As polticas de cunho social aparecem nos
ltimos lugares, na figura da maior presena do Estado com polticas de educao,
saneamento, etc. nas comunidades carentes, com apenas 17% das escolhas, e a ampliao
das polticas de combate pobreza, com 14%.
A maioria da populao defende punies mais duras contra o crime, sobretudo
contra os mais violentos, alcanando o patamar de 79% das indicaes. Dentro desse iderio
enrijecedor, polticas de tolerncia zero so defendidas por 83% dos entrevistados e a priso
perptua apoiada por 69% da populao. A pena de morte ainda divide a opinio da
sociedade com 46% de aprovao e 46% de rejeio, mas j se pode notar a sua grande
aprovao.
Em se falando do tratamento atualmente dado ao menor, a viso da populao
tambm se encontra deturpada pelo medo. Neste contexto, a reduo da maioridade penal para
16 anos encontra 86% de aprovao e a equiparao destes a adultos por ocasio de
julgamentos por crimes violentos alcana 91% de aceitao podendo ambas ser explicadas
pela concepo de que a atribuio da responsabilidade penal somente a partir dos 18 anos
incentiva a participao de menores de idade na prtica criminosa, com 83% das
assinalaes.
Apesar de todo esse iderio penalista, ainda h um fio de esperana dentro do
modo de pensar dos brasileiros, havendo um quase consenso entre os entrevistados de que
polticas sociais, tais como educao e formao profissional, so mais eficazes para a
reduo da violncia do que aes repressivas, como aumento do policiamento ou maior rigor
na punio dos criminosos, com 90% de concordncia total ou parcial sobre essa afirmao.
Dos entrevistados, 76% concordam que as polticas pblicas para reinsero dos presos na
sociedade se constitui um meio de se aumentar a segurana pblica. Por ltimo, 82% da
populao so a favor da adoo de penas alternativas priso, como o trabalho comunitrio,
para crimes de menor gravidade.
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No entanto, as polticas de cunho social aparecem nos ltimos lugares quando fora
questionado aos entrevistados sobre as aes para melhorar a segurana pblica no Pas, na
figura, em quinto lugar, da maior presena do Estado com polticas de educao,
saneamento, etc. nas comunidades carentes, com apenas 17% das escolhas, e, em sexto, a
ampliao das polticas de combate pobreza, com 14%. Neste item, o maior combate ao
trfico de drogas figurou em primeiro lugar.
De tudo aqui exposto, referente aos dados contidos na pesquisa CNI e IBOPE
retratos da sociedade brasileira: segurana pblica, podemos notar que, conforme explicita a
escola da Criminologia Crtica, h uma expressa supervalorizao dos crimes afeitos s
classes mais empobrecidas da sociedade e uma proteo queles afeitos s classes mais altas,
explicada essa diferena pela dicotomia entre os conceitos de Igualdade Formal e a
Desigualdade Substancial apresentada pelo marxismo. Essa diferena causa e efeito, entre
outras, das presses miditicas que superpovoam o imaginrio coletivo com estetizaes do
mau, atribuindo a determinados indivduos, grupos e locais um carter ontologicamente
criminoso e passvel do sentimento de medo pela generalidade da populao. A partir de todas
as situaes supra, a sociedade passa a desejar maiores intervenes penais sobre estre
criminosos, vistas e apresentadas estas como o nico meio de proteger a sociedade de
bem.
No entanto, como veremos a seguir, h uma contradio entre as intervenes
indicadas e os resultados por elas conquistadas, gerando, ao invs de paz social, mais sujeitos
marginalizados e estigmatizados pela sociedade.
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5 A CONTRADIO ENTRE A PENA E A PAZ SOCIAL NO ATUAL CENRIO NACIONAL
Como visto anteriormente, a sociedade atual clama por penas mais severas no
intuito de melhorar a segurana pblica do pas. Frente a esta splica, devemos analisar qual
a funo da pena dentro da doutrina e legislao Penal vigente e, principalmente, qual a sua
eficcia frente ao que propem. A partir desta anlise poderemos construir bases para
concluirmos se, realmente, esta a sada mais vivel ou, como se pretende demonstrar, o
aumento de penas s serviria para agravar e aprofundar os abismos sociais instaurados na
sociedade, perpetuando a luta de classes e os esteretipos vigentes.
Para isso, num primeiro momento, abordaremos as teorias da pena de acordo com
a doutrina vigente, expondo os principais argumentos e, quando cabvel, apresentando breves
crticas a estes. Em um segundo momento, analisar-se- dados do Sistema Integrado de
Informaes Penitencirias (InfoPen) 16
com o intuito de verificar como a pena vem sendo
cumprida no Brasil e, ainda, mostrar a composio dos apenados que, em sua maioria, como
veremos, provm de classes mais baixas da sociedade.
5.1 AS TEORIAS DA PENA
A anlise das funes da pena pressupe a abordagem das diversas teorias que
explicam seu sentido, sua funo e sua finalidade, revel