Monografia - Jonas C. Oliveira - VERSÃO FINAL

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA FACULDADE DE DIREITO JONAS CARVALHO DE OLIVEIRA O CLAMOR PÚBLICO PELO MAIOR RIGOR PENAL E A INEFICÁCIA DO AUMENTO DAS PENAS COMO ÚNICO MEIO DE OBTENÇÃO DA PAZ SOCIAL (ANÁLISE À LUZ DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA) Juiz de Fora 2014

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Monografia Conclusão de Curso UFJF

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

    FACULDADE DE DIREITO

    JONAS CARVALHO DE OLIVEIRA

    O CLAMOR PBLICO PELO MAIOR RIGOR PENAL E A INEFICCIA DO AUMENTO

    DAS PENAS COMO NICO MEIO DE OBTENO DA PAZ SOCIAL

    (ANLISE LUZ DA CRIMINOLOGIA CRTICA)

    Juiz de Fora

    2014

  • JONAS CARVALHO DE OLIVEIRA

    O CLAMOR PBLICO PELO MAIOR RIGOR PENAL E A INEFICCIA DO AUMENTO

    DAS PENAS COMO NICO MEIO DE OBTENO DA PAZ SOCIAL

    (ANLISE LUZ DA CRIMINOLOGIA CRTICA)

    Monografia apresentada Faculdade de

    Direito da Universidade Federal de Juiz de

    Fora - UFJF, como pr-requisito para

    obteno do ttulo de bacharel em Direito na

    rea de concentrao do Direito Penal, sob

    orientao da Prof. Ms. Ellen Cristina

    Carmo Rodrigues.

    Juiz de Fora

    2014

  • JONAS CARVALHO DE OLIVEIRA

    O CLAMOR PBLICO PELO MAIOR RIGOR PENAL E A INEFICCIA DO AUMENTO

    DAS PENAS COMO NICO MEIO DE OBTENO DA PAZ SOCIAL

    (ANLISE LUZ DA CRIMINOLOGIA CRTICA)

    Monografia apresentada Faculdade de

    Direito da Universidade Federal de Juiz de

    Fora UFJF, como pr-requisito para obteno do ttulo de bacharel em Direito

    Banca Examinadora composta pelos

    membros:

    Aprovado em ____ de _________________ de 2014

    _________________________________________

    Prof. Ms. Ellen Cristina Carmo Rodrigues

    (Orientadora)

    _________________________________________

    Prof. Ms. Leandro Oliveira Silva

    (Membro da Banca)

    _________________________________________

    Prof. Ms. Marcella Alves Mascarenhas Nardelli

    (Membro da Banca)

    Juiz de Fora

    2014

  • Talvez vir um tempo em que a necessidade de punio ser menor do que na atualidade, e

    em que os meios que se dispe para evitar o

    delito estaro para a pena assim como o arco-

    ris est para o tremendo temporal que o

    precedeu Theodor Reik, 1971

  • RESUMO

    Este trabalho prope uma reflexo sobre o anseio popular pelo recrudescimento

    penal baseado no discurso do medo disseminado de forma sensacionalista pela mdia, em

    especial no cenrio brasileiro a partir da dcada de 1990. Alm disso, pretende-se pesquisar

    como este quadro reflete o interesse das instncias superiores do sistema capitalista na

    construo social do domnio de classes. A partir do delineamento de um panorama histrico

    sobre o desenvolvimento da cincia criminolgica at os dias atuais, este trabalho buscar

    demonstrar como o aumento deliberado de penas, alm de no solucionar o problema da

    violncia, constitui-se um retrocesso no campo penal. Adotando-se como marco terico a

    Criminologia Crtica, proposta por Alessandro Baratta, procurar-se-, ainda, apontar as

    mazelas do sistema penal atual, a partir da anlise de dados estatsticos e sua repercusso

    miditica, bem como indicar quais so as propostas da criminologia crtica tendentes

    desarticulao desse modelo.

    Palavras Chave: Recrudescimento Punitivo Mdia Medo Criminologia Crtica

    Alternativas.

  • ABSTRACT

    This paper proposes a reflection on the popular yearning for criminal

    recrudescence based on the discourse of fear spread in a sensationalist way by the media,

    especially in the Brazilian scene from the 1990s. Moreover, it intends to investigate how such

    framework reflects on the interest of higher courts of the capitalist system, in the social

    construction of prevailing classes. Starting from the outline of a historical background of the

    development of criminological science until today, this work will try to demonstrate how the

    intentional increase in penalties, beyond not solving the problem of violence, constitutes a

    step backwards in the criminal field. Taking as a theoretical framework the Critical

    Criminology, proposed by Alessandro Baratta, it will seek to, yet, to point out maladies of the

    criminal current justice system, based on analysis of statistical data and their media impact, as

    well as indicate which proposals of critical criminology aimed at dismantling this model.

    Keywords: Punitive Recrudescence Media Fear Critical Criminology Alternatives.

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ................................................................................................................. 7

    2. A EVOLUO DO PENSAMENTO CRIMINOLGICO .......................................... 9

    2.1 A GNESE DA CRIMINOLOGIA ................................................................................... 10

    2.2 A ESCOLA LIBERAL CLSSICA .................................................................................. 11

    2.3 O DETERMINISMO POSITIVISTA ................................................................................ 13

    2.4 A IDEOLOGIA DA DEFESA SOCIAL ............................................................................ 14

    2.5 AS TEORIAS PSICANALTICAS DA CRIMINALIDADE ........................................... 16

    2.6 A SOCIOLOGIA NA CRIMINOLOGIA .......................................................................... 17

    2.7 O ROTULACIONISMO ................................................................................................... 19

    2.8 O MARXISMO E A CRIMINOLOGIA CRTICA ........................................................... 21

    3 A CRIMINOLOGIA CRTICA ..................................................................................... 23

    4 O MEDO COMO MTODO DE MANUTENO DA SELETIVIDADE .............. 26

    4.1 O FATOR LEGITIMANTE MEDO .............................................................................. 26

    4.2 A MDIA DE MASSA COMO MEIO DE INCULCAO DO MEDO ........................... 27

    4.3 RETRATOS DA SOCIEDADE BRASILEIRA ................................................................ 32

    5 A CONTRADIO ENTRE A PENA E A PAZ SOCIAL NO ATUAL CENRIO

    NACIONAL ............................................................................................................................ 38

    5.1 AS TEORIAS DA PENA .................................................................................................. 38

    5.2 A REALIDADE DA EXECUO PENAL NO BRASIL ................................................ 41

    6 A PROPOSTA DA CRIMINOLOGIA CRTICA ....................................................... 45

    7 CONCLUSO ................................................................................................................. 48

    REFERNCIAS ..................................................................................................................... 50

  • 7

    1. INTRODUO

    O aumento da violncia em geral, conforme amplamente divulgado pela imprensa

    nacional a partir da dcada de 1990, principalmente, considerado um dos maiores problemas

    atuais e o que mais aflige a sociedade brasileira. Pens-lo de maneira leviana, buscando

    solues paliativas de curto prazo que visam proporcionar uma sensao momentnea e

    superficial de segurana populao, esquecendo-se da preveno, no parece ser a sada que

    deve ser proposta por aquele que realmente queira modificar solidamente a sociedade. O

    discurso manipulador e parcial frequentemente veiculado pelas mdias brasileiras de massa1

    nas ltimas dcadas, impregnado por um alarmismo exacerbado quanto ao caos da segurana

    pblica, vem criando bases para corroborar polticas penais cada vez mais severas no mbito

    nacional. No entanto, aquele que se prope a uma anlise mais aprofundada de todo esse

    cenrio no deve apenas reproduzir ideais revanchistas, ao contrrio, deve refletir detidamente

    sobre o porqu da existncia de todo um aparato voltado para o encarceramento e controle de

    massas marginalizadas, desde a mdia at as penitencirias, que se mostra atuante em toda a

    histria, em maior ou menor grau.

    O presente trabalho pretende, por meio de pesquisa bibliogrfica, refletir sobre a

    correlao entre o anseio pelo aumento das penas e a sua contribuio para o objetivo que se

    pretende alcanar, qual seja, a paz social, analisando o curso dos discursos criminolgicos,

    refutando o discurso disseminado pela mass media, criando alternativas ao pensar

    criminolgico e jurdico no que tange ao fato social crime, demonstrando os problemas atuais

    da execuo da pena privativa de liberdade, suas finalidades e alternativas, e atual situao de

    ineficcia.

    Inicialmente, ser feita uma exposio sobre as principais Escolas Criminolgicas

    existentes ao longo da histria, revelando em cada exposio, basicamente, como cada uma

    visualizava o fato crime e a figura do delinquente, de modo a demonstrar como o pensamento

    criminolgico evoluiu at os dias atuais. Esta anlise crucial para se trabalhar, em um

    captulo parte, o marco terico que nortear este trabalho: a Criminologia Crtica, proposta

    por Alessandro Baratta, importante por deslocar o enfoque de estudo do autor e/ou do crime

    1 ou mass media, o termo utilizado para referir-se mdia pblica, impessoal, produzida de maneira

    centralizada e padronizada, com o objetivo de alcanar o maior nmero de espectadores possvel.

    Podemos citar como exemplos a televiso, cinema, rdio, jornais, revistas, livros, gravaes

    musicais, e a Internet.

  • 8

    para as condies objetivas, estruturais e institucionais do desvio, analisando os mecanismos

    de construo da realidade social voltados criminalizao das massas em detrimento do

    interesse no conhecimento das causas do crime, e, por ltimo, entendendo a criminalidade

    como status atribudo a determinados sujeitos atravs da seleo dos bens protegidos

    penalmente e dos indivduos estigmatizados no processo de criminalizao.

    Posteriormente, dentro da lgica do constructo social, procurar-se- mostrar como

    o medo legitima tais construes, gerando uma alta aceitabilidade da populao a polticas de

    segurana que visam o maior rigor penal s classes mais baixas da sociedade, e cada vez mais

    protetivas s classes dominantes, aprofundando o estigma e o processo de formao do

    outro dentro da sociedade atual.

    Na sequncia ser realizada uma anlise comparativa entre as funes da pena e

    dados estatsticos do Sistema Integrado de Informaes Penitencirias (InfoPen) 2 e do

    relatrio divulgado pelo Conselho Nacional do Ministrio Pblico no ano de 2013, a fim de

    revelar como a priso tem falhado na consecuo das funes elencadas e, ainda, como a

    constituio da populao carcerria revela as mazelas da sociedade e a construo social (e

    no ontolgica) do fato criminoso.

    Por ltimo, explicitar-se- a proposta da criminologia crtica para a fixao e

    execuo das penas, soluo esta antes voltada para a incluso dos ditos delinquentes

    sociedade do que para a severa punio e aumento desenfreado das penas, o que s geraria um

    crculo vicioso entre delito, crcere e marginalizao.

    2 O InfoPen um programa de computador de coleta de dados do sistema penitencirio no Brasil, que

    integra rgos nacionais de administrao penitenciria, mais especificamente os estabelecimentos

    prisionais (estaduais e federais) com o Departamento Penitencirio Nacional do Ministrio da

    Justia, possibilitando a criao de bancos de dados federais e estaduais sobre os estabelecimentos

    penais e populaes penitencirias. Oferece, assim, informaes confiveis, subsidirias

    administrao do Sistema Penitencirio Nacional e para o direcionamento de polticas pblicas neste

    mesmo mbito.

  • 9

    2. A EVOLUO DO PENSAMENTO CRIMINOLGICO

    Para iniciarmos a anlise do tema proposto, de suma importncia que

    conheamos os cernes bsicos da criminologia, apontando a sua funo, introduzindo o seu

    conceito, e iniciando a uma delimitao de seu objeto. Tais elementos modificaram-se ao

    longo dos tempos acompanhando a evoluo das escolas criminolgicas, principalmente no

    que tange ao seu objeto de anlise. Assim, tal esclarecimento devido neste ponto da

    apresentao por orientar o conceito que ser adotado, bem como em qual objeto se debruar

    o estudo aqui proposto.

    A definio de criminologia frequentemente presente nos manuais jurdicos, de

    cunho eminentemente positivista, a aponta como o exame causal-explicativo do crime e dos

    criminosos. Tais definies derivam de uma perspectiva da Criminologia Tradicional e tm

    por foco precpuo a pessoa do delinquente, enxergando o comportamento desviante como uma

    patologia do infrator, e como foco secundrio o delito em si.

    Um conceito bsico e amplo, que atende aos vrios momentos criminolgicos,

    pode ser resumido pelas palavras de Ral Zaffaroni, segundo o qual a criminologia seria o

    saber e arte de despejar discursos perigosistas e nada mais do que o estudo sobre o curso

    dos discursos sobre a questo criminal, ou seja, a anlise do que foi e o que considerado

    crime, no enquanto ilcito penal, mas sim o estudo de sua natureza, das suas origens e do seu

    processo de realizao e conteno, como fato humano e social, tendo como objetos diretos o

    delinquente, a vtima e o controle social do comportamento dito delitivo, sendo este ltimo

    objeto o principal para entendermos o delito como aqui ser defendido, no como algo

    ontolgico, prprio do ser humano, mas sim fruto de uma construo social (ZAFFARONI,

    1988).

    Para Lola Aniyar de Castro, a Criminologia a atividade intelectual que estuda os

    processos de criao das normas penais e das normas sociais que esto relacionadas com o

    comportamento desviante; os processos de infrao e de desvio destas normas; e a reao

    social, formalizada ou no, que aquelas infraes ou desvios tenham provocado: o seu

    processo de criao, a sua forma e contedo e seus efeitos, dando suporte de aparncia

    cientfica s atividades de controle social formalizado, sendo, tambm, uma forma de controle

    social (CASTRO, 1983, p. 52 - 53).

  • 10

    Dentro da concepo de Alessandro Barata (in BATISTA, 2011, p. 16), a

    criminologia o enfoque macrossociolgico, que historiciza a realidade comportamental,

    iluminando as relaes com a estrutura, tendo como tarefa fundamental a realizao da teoria

    crtica da realidade social do direito, na perspectiva de um modelo integrado de cincia penal,

    como veremos pormenorizadamente.

    Estas definies de Lola Aniyar e Alessandro Baratta voltam-se Criminologia

    Moderna, e procuram expandir o seu campo de estudo para alm daquele perseguido pela

    Criminologia Tradicional, visando tambm a vtima e a complexa questo que envolve o

    controle social propiciado pelo direito penal.

    Aqui trabalharemos com o conceito de criminologia como a cincia que estuda o

    fato crime a partir dos desdobramentos e conjunturas da ordem social, ordem esta que molda

    o rol de delitos a partir de processos de criminalizao orientados para a manuteno dos

    poderes nas mos das classes dominantes e para a subjugao das classes que, por interesse do

    capital, devem permanecer marginalizadas. Assim, o objeto de estudo volta-se para os

    processos de criminalizao, entendidos estes como os processos de segregao e

    criminalizao que a demanda de ordem, prpria do capitalismo, impe manuteno da

    dicotomia entre classe dominante (burguesia) e marginalizados (sujeitos que no se adaptam

    aos interesses de consumo e trabalho do capital). O objetivo dessa anlise crtica dos

    processos de criminalizao o de levar a efeito uma crtica ao Sistema Penal em vigor

    buscando, principalmente, alternativas demanda desenfreada pelo aumento de penas e,

    tambm, uma alternativa s penas.

    2.1 A GNESE DA CRIMINOLOGIA

    Ao longo dos sculos, a presena de poderes punitivos focados na procura e

    definio de inimigos elencados pela ordem vigente a cada poca fora uma constante, sendo

    crucial para legitimao de tais poderes, constituindo-se a individualizao de um inimigo,

    para Zaffaroni, uma construo tendencialmente estrutural do discurso legitimador do poder

    punitivo (ZAFFARONI, 2007, p. 88). Esta noo de inimigo tem sede na cultura penal grega

    na figura dos crimes penais atentatrios contra o Estado, e visava proteger os Monarcas contra

    atos atentatrios.

  • 11

    Em Roma surge a primeira diviso efetiva e organizada de tratamento entre os

    indivduos a partir da distino entre os inimicus, o inimigo pessoal, e hostis, o verdadeiro

    inimigo poltico, contra o qual sempre colocada a possibilidade de guerra como negao

    absoluta do outro ser ou realizao extrema da hostilidade (in ZAFFARONI, 2007). O

    conceito jurdico de hostis aceita, ainda, a diviso em hostis aliengena, na figura dos

    estrangeiros, e do hostis judicatus, na figura daqueles declarados inimigos pelo Senado, tendo

    como consequncia a perda da nacionalidade. Entre as sanes mais importntes encontrava-

    se a escravizao, tornando-se o trabalho escravo do estrangeiro a principal fonte de mo-de-

    obra existente na Roma Antiga.

    O poder punitivo organizado perde fora com decadncia do Estado Romano e

    asceno do Feudalismo, ressurgindo no perodo Inquisitorial durante o sculo XIII e,

    segundo o entendimento de Raul Zaffaroni, neste perodo que a criminologia tem seu

    embrio formado, com o surgimento dos primeiros procedimentos do poder punitivo ligados

    aos movimentos polticos de centralizao do poder da Igreja Catlica, de formao de

    Estados ainda latentes, e aos primeiros esboos do capital. Neste perodo surgira um novo

    desenho de poder punitivo estabelecido atravs de uma relao entre as noes de delito e de

    castigo que levou formao dos conceitos de infrao e pena pblica.

    Neste contexto, tambm, ressurge a figura do outro ao qual seria destinado o

    mtodo punitivo, revelando-se, neste momento, o medo ao sujeito considerado desviante

    como principal precursor e legitimador de polticas de segurana pblica e ensejando os

    estudos sobre as causas do mal, as formas em que se apresenta, e tambm o mtodo para

    combat-lo. Esta criminalizao do outro, inegavelmente, propiciou o controle das massas

    sem ocupao econmica aos moldes requisitados pelo capital em formao, protegendo a

    burguesia em crescimento da classe trabalhadora atravs dos mais variados tipos de controle,

    como, por exemplo, a represso vadiagem e as primeiras leis de pobres, nos sculos XIV e

    XVII.

    2.2 A ESCOLA LIBERAL CLSSICA

    A conjuntura revolucionria dos sculos XVIII e XIX, fomentada pela

    insatisfao da burguesia com a brutalidade e a crueldade com que o Estado Absolutista

  • 12

    tratava os condenados, a partir da noo de pena como meio de expiao dos pecados, como

    simples castigo, gerou diversos conflitos que culminaram com o movimento iluminista.

    Dentro deste movimento surgem as teorias contratuais da sociedade 3, que, por sua

    vez, criam a necessidade de ordem e institucionalizao de um Estado baseado em leis,

    cabendo ao direito penal a delimitao do poder punitivo estatal e as novas tcnicas para o

    controle das massas. As concepes de dano social e de defesa social surgem neste momento

    e so elementos fundamentais dessa teoria.

    Tal escola, em consequncia da noo de contrato social, no considerava o

    delinquente como um ser diferente dos outros, detendo-se, objetivamente, sobre o delito,

    entendido este como a violao do direito e do pacto social que basearia o Estado de direito.

    Era o delito, assim, definido apenas pelo seu carter de contrariedade lei e, por conseguinte,

    ao contrato social.

    Conforme bem explicita Alessandro Baratta:

    Como comportamento, o delito surgia da livre vontade do indivduo, no de

    causas patolgicas, e por isso, do ponto de vista da liberdade e da

    responsabilidade moral pelas prprias aes, o delinquente no era diferente,

    segundo a Escola clssica, do indivduo normal. Em consequncia, o direito

    penal e a pena eram considerados pela Escola clssica no tanto como meio

    para intervir sobre o sujeito delinquente, modificando-o, mas sobretudo

    como instrumento legal para defender a sociedade do crime, criando, onde

    fosse necessrio, um dissuasivo, ou seja, uma contra motivao em face do

    crime. Os limites da cominao e da aplicao da sano penal, assim como

    as modalidades de exerccio do poder punitivo do Estado, eram assinalados

    pela necessidade ou utilidade da pena e pelo princpio da legalidade. (2002,

    p. 31)

    Ao propor a ideia de pena como reflexo do Contrato Social, em contrariedade

    noo de meio de expiao dos pecados, a escola em comento introduz um importante legado

    no pensamento criminolgico, referente s limitaes ao poder de punir de que dotado o

    Estado, e, certamente, os princpios consequentes, bases de uma teoria jurdica do delito, da

    pena e do processo penal, e que se mostram presentes at os dias atuais. Esta limitao seria

    3 Trata o contratualismo de uma classe ampla de teorias aptas a explicar os caminhos que levam as

    pessoas a formarem Estados e manterem a ordem social, trazendo implcita a ideia segundo a qual as

    pessoas abrem mo de certos direitos para um governo ou outra autoridade a fim de obter a ordem

    social. Em suma, o contrato social seria um acordo entre os membros da sociedade, pelo qual

    reconhecem a autoridade, igualmente sobre todos, de um conjunto de regras, de um regime poltico

    ou de um governante.

  • 13

    reflexo do prprio contrato social vez que, ao aquiescer em participar de determinada

    sociedade, o indivduo dispe de parte de sua liberdade em favor da coletividade, cabendo ao

    Estado control-la no limite da necessidade de manter unidos os interesses particulares,

    superando possveis divergncias entre eles, sendo ilegtimo qualquer controle que extrapole

    tal necessidade, situao em que o direito tornar-se-ia um abuso. Decorre deste contexto que a

    pena deve levar ao mnimo sacrifcio necessrio da liberdade individual que ela implica.

    Assim, o poder punitivo estatal deveria ser limitado de acordo com a necessidade e a utilidade

    da pena, bem como pela pr-existncia de lei para tal. Neste contexto surge o princpio da

    legalidade, princpio da necessidade e princpio da proporcionalidade.

    Este conjunto limitaes do poder punitivo estatal reveste a lei de uma aparncia

    racional e equitativa e, embora no haja uma crtica objetiva sobre a razo punitiva, os

    princpios aqui conformados permanecem, at hoje, no liberalismo garantista.

    2.3 O DETERMINISMO POSITIVISTA

    O Positivismo surge no sculo XIX no s como uma escola de pensamento, mais

    ainda, como uma cultura apta a influenciar diversas reas do saber, tendo como principal

    expoente na criminologia o italiano Cesare Lombroso. Em sua vertente criminolgica pode

    ser considerada como uma ideologia resultante do medo das classes dominantes frente s

    revolues populares, visando desqualificao da ideia de igualdade entre os indivduos por

    meio da patologizao do delito e da diviso entre os normais e os anormais, passando a

    priso, nesse contexto histrico, a figurar como a pena mais importante do mundo ocidental.

    Nega-se o livre-arbtrio e a responsabilidade moral proposta pela Escola Liberal Clssica,

    sendo o delito o sintoma da personalidade patolgica do indivduo, carecendo este, ento, de

    tratamento.

    Assim, a pena se mantm como ferramenta de defesa social, porm passou a ter

    carter corretivo, sendo a priso, a partir do modelo das casas de correo, o dispositivo

    disciplinador e tendo-se no trabalho a principal medida ressocializadora. O centro das

    atenes que antes se voltava para o delito, agora se volta para o delinquente.

    Os ideais positivistas de busca das razes da criminalidade atravs de sinais

    biolgicos e psicolgicos, inseridos criminologia, continuaram sendo reproduzidos em

    escolas subsequentes, ainda que sob um vis social, at o advento do paradigma da escola

  • 14

    Rotulacionista que, como veremos adiante, rompe com o determinismo positivista e passa a

    adotar o crime como algo definido pelo direito e no existente por si s.

    No Brasil, a maior expresso do Positivismo Criminolgico se deu com o

    Movimento Eugnico Brasileiro, no incio do sculo XX, sendo o primeiro pas sul-americano

    a ter um movimento eugnico organizado, em 1918, com a criao da Sociedade Eugnica de

    So Paulo, seguida pelo Boletim de Eugenia, peridico fundado em 1929, e

    subsequentemente, em 1931, do Comit Central de Eugenismo.

    A Eugenia, que em sua traduo significa bem nascido, pode ser definida como

    o estudo das caractersticas dos agentes, sob o enfoque social, que podem melhorar ou

    empobrecer as qualidades raciais das futuras geraes, seja fsica ou mentalmente. Entre as

    propostas de tal movimento estavam a educao higinica e sanitria, a seleo de imigrantes,

    a educao sexual, o controle matrimonial e da reproduo humana e debates em torno da

    miscigenao, branqueamento e a regenerao racial.

    Na Europa, o maior e mais triste movimento eugnico fora o nazista, base

    fundamental da ideologia de "pureza racial", a qual ensejou o Holocausto. A revelao dos

    horrores nazistas levou ao descrdito cientfico e tico do movimento por todo o mundo, e fez

    com que a palavra desaparecesse abruptamente do uso permanecendo, ainda que velados,

    alguns de seus fundamentos.

    2.4 A IDEOLOGIA DA DEFESA SOCIAL

    A Ideologia da Defesa Social 4, presente no pensar de vrias escolas

    criminolgicas, visa, como pode se aduzir do termo, no a mera retribuio e o simples

    castigo do delinquente, mas sim a proteo da sociedade atravs da preveno na ocorrncia

    de novos delitos e, ainda, pela ressocializao do ru. Ainda que sob fundamentos diferentes,

    esteve presente na Escola Liberal Clssica e no Positivismo como meio de fundamentar,

    terica e politicamente, tais sistemas cientficos.

    O contexto de seu surgimento est ligado revoluo burguesa e crescente

    necessidade de sistematizao e codificao do sistema jurdico como um todo e,

    4 O termo ideologia aqui empregado em seu sentido negativo, ou seja, o da falsa conscincia sobre

    determinado argumento de modo a desvirtuar as suas reais funes, podendo ser aqui substitudo

    pelo termo falcia (cf. nota de rodap 2 do captulo II de BARATTA, 2002).

  • 15

    principalmente, do crescente sistema penal voltado para a conteno das massas, servindo tal

    ideologia, mais especificamente, como elemento fundamental dentro deste setor.

    Alessandro Baratta lista uma srie de princpios a fim de traar o contedo desta

    ideologia que passou a fazer parte no s do modo de pensar da classe cientfica, mas tambm

    das opinies comuns de sujeitos envolvidos no aparato penal penitencirio e homens comuns

    do povo (BARATTA, 2002).

    1. Principio da legitimidade: e Estado est legitimado a reprimir a criminalidade

    por meio de instncias oficiais de controle social, uma vez que representa a sociedade, sua

    reprovao ao comportamento desviante individual e a reafirmao dos valores e das normas

    sociais.

    2. Princpio do bem e do mal: o delito e o delinquente so elementos negativos e

    danosos ao sistema social. Assim, divide-se a sociedade entre o mal, representado pelos

    sujeitos desviantes, e o bem, representado pela sociedade constituda.

    3. Princpio da culpabilidade: o delito a expresso da contrariedade do

    indivduo s normas sociais, presentes na sociedade antes mesmo de qualquer sistematizao

    legislativa, e, por isso, devem ser rechaados a fim de manter a coeso da sociedade.

    4. Princpio da preveno: a pena, alm de retribuir e ressocializar o delinquente,

    previne o crime, criando uma contramotivao ao comportamento criminoso.

    5. Princpio da igualdade: a lei penal se mostra igual a todos e a reao penal se

    aplica de modo igual aos autores de delitos.

    6. Princpio do interesse social e do delito natural: o ncleo central dos delitos

    definidos nos cdigos penais representa uma proteo s condies essenciais existncia de

    toda sociedade, sendo estes denominados delitos naturais. Somente uma pequena parcela dos

    delitos codificados representa a violao de determinados arranjos polticos e econmicos, e

    so punidos a partir da necessidade de proteo a estes, sendo esses delitos denominados

    artificiais.

    Sob a tica da defesa social, a diferena entre a escola liberal clssica e a escola

    positivista reside no Princpio da Culpabilidade. Enquanto para a primeira escola a

    culpabilidade surge de um desvalor da ao voluntria do indivduo frente coletividade,

  • 16

    ensejando-lhe a culpa, para a segunda escola essa culpabilidade decorre de fatores scio-

    psicolgicos que independem da vontade do desviante, o que revela sua periculosidade social.

    O conceito de defesa social marca uma evoluo do pensamento penal e

    penitencirio ao criar justificativas e fundamentos racionais para a aplicao do direito penal,

    porm ainda no representa uma via satisfatoriamente crtica de pensar a prxis penal a qual

    este trabalho se prope, mostrando-se tolerante concepo de delito como algo imanente e

    natural dentro da sociedade e, ainda, se comportando de maneira acrtica quanto s

    caractersticas histricas de formao das mais diversas sociedades, considerando-as como

    uma totalidade de valores e interesses. A teoria que aqui se pretende demonstrar

    caracterizada por elementos opostos ideologia da defesa social frente anlise de

    especficas formaes econmico-sociais e seus problemas inerentes, entre eles o dos

    conflitos de classe e as contradies especficas das relaes de produo.

    2.5 AS TEORIAS PSICANALTICAS DA CRIMINALIDADE

    Tais teorias invertem a perspectiva da investigao criminolgica, deslocando o

    foco de anlise do fenmeno criminal do sujeito criminalizado para o sistema penal e os

    processos de criminalizao que dele fazem parte e, mais em geral, para todo o sistema da

    reao social ao desvio (BARATTA, 2002, p. 49).

    Apresentam duas linhas bsicas de pensamento, visando, a primeira, a explicao

    do comportamento criminoso, tendo como principal expoente Sigmund Freud e, a segunda, a

    discusso sobre a legitimidade do direito penal.

    Freud entende que a personalidade humana se estrutura sobre trs esferas

    existentes somente no plano denominado inconsciente: Id, Ego e Superego. Assim, todas as

    aes humanas, inclusive a conduta criminosa, podem ser compreendidas atravs deste nvel

    de subconscincia.

    O comportamento criminoso explicado a partir de uma deficincia no superego,

    estrato responsvel pela introjeo de limitaes e, portanto, de leis, princpio e normas de

    convivncia social. Apesar dessas limitaes existentes no inconsciente, contidas pelo

    sentimento de culpa e a tendncia a confessar, o superego reprime, mas no consegue eliminar

    por completo os instintos criminosos, fazendo com estes se fiquem sempre latentes. a

    superao do sentimento de culpa, no inconsciente, que gera o comportamento delituoso.

  • 17

    Desta forma, o criminoso no seria um sujeito culpvel, luz do tradicional

    conceito de culpabilidade, mas apenas uma consequncia da estruturao da personalidade

    individual, no havendo o que se falar, tambm, em funo preventiva da pena, defendida

    pela ideologia social, uma vez que a reao penal no se mostraria apta a eliminar a

    ocorrncia de crimes.

    As teorias psicanalticas deram incio a uma atitude crtica perante os ideais da

    defesa social, porm apresentaram deficincias e limitaes, principalmente, ao ignorar por

    completo as questes histricas e as circunstncias socioeconmicas nas quais o

    comportamento desviante est necessariamente inserido. Apresentaram-se, assim,

    semelhana das teorias de orientao positivistas, como a etiologia de um comportamento

    cuja qualidade criminosa aceita sem anlise das relaes sociais que explicam a lei e os

    mecanismos de criminalizao (BARATTA, 2002, p. 57).

    2.6 A SOCIOLOGIA NA CRIMINOLOGIA

    A primeira ruptura expressiva com o positivismo foi proposta por mile

    Durkheim que, colocando em dvida a dicotomia entre o bem e mal, construiu uma

    interpretao a partir da ideia de reao social ao delito e da introduo dos conceitos de

    desvio fenmeno da estrutura social relacionado no aceitao do papel social atribudo

    pela diviso do trabalho numa sociedade capitalista, sendo necessrio e til para o equilbrio e

    o desenvolvimento sociocultural e anomia como a extrapolao do limite mximo do

    desvio, a partir do qual se instauraria um estado de desorganizao. Assim, entende-se que o

    crime fruto da prpria estrutura social, tendo uma funo dentro da sociedade, razo pela

    qual no deve ser tomado como uma anomalia ou molstia social.

    Se antes, no positivismo, o objeto era o homem delinquente, agora volta-se para a

    ruptura cultural que determina a violao norma o desvio nos leva ao comportamento

    desviante e no ao delinquente, no sendo um ser intrnseco ao sujeito, mas sim um estar.

    Nos Estados Unidos da Amrica a onda imigratria das primeiras dcadas do

    sculo XX gerou grandes concentraes urbanas de povos de todo o mundo, sendo terreno

    fecundo para estudos decorrentes da proposta de Durkheim e sua escola funcional-

    estruturalista, enquanto, no mesmo perodo, na Europa ainda se cultivava uma hegemonia

    positivista, principalmente estimulada pelos ideais nazifascistas.

  • 18

    Nesse contexto, Robert King Merton, em 1938, desenvolve seu trabalho sobre

    Estrutura social e anomia. Assim como Durkheim, entende que o desvio um produto da

    estrutura social, absolutamente normal, condutor de uma relao entre os fins culturalmente

    elencados e os meios legtimos para se alcanar tais fins. A anomia se instaura quando os

    meios para consecuo dos fins superam certos limites, deixando de serem funcionais. A

    cultura teria um efeito repressivo ou estimulante na relao entre desvio e anomia.

    Anomia , enfim, aquela crise da estrutura cultural, que se verifica

    especialmente quando ocorre uma forte discrepncia entre normas e fins

    culturais, por um lado, e as possibilidades socialmente estruturadas de agir

    em conformidade com aquelas, por outro lado (BARATTA, 2002, p. 63).

    Paralelamente, Edwin Sutherland, em 1939, desenvolve a noo de cifras ocultas,

    como sendo aquela que no est nas estatsticas oficiais, voltadas para a maior exposio dos

    que esto na base da estrutura social: os pobres (BATISTA, 2011, p. 68). Alm disso, prope

    o que denomina associaes diferenciais, segundo a qual a criminalidade, como qualquer

    outro modelo de comportamento, se aprende conforme contatos especficos aos quais est

    exposto o sujeito, no seu ambiente social e profissional, produzindo sistemas de

    representaes diferentes sobre o que ou no desvio ou crime.

    Como se pode notar a partir dessa breve anlise, os estudos propostos por Merton

    e Sutherland visam entender o que se passa fora das prises na interao de grupos culturais

    heterogneos estratificados na pirmide social. O crime um reflexo das condies sociais, da

    cultura e da aprendizagem, o que se contrape noo de defesa social e de crime como

    descumprimento voluntrio do contrato.

    Como limites, a escola estrutural-funcionalista constri uma associao entre

    crime e pobreza, esquecendo-se dos processos de acumulao de capital para revelar como as

    relaes econmico-sociais definem a qualidade criminal do comportamento e do sujeito

    criminalizado.

  • 19

    2.7 O ROTULACIONISMO

    A escola rotulacionista, tendo como orientao sociolgica o interacionismo

    simblico 5 proposto por George Margareth Mead, em 1934, e a etnometodologia 6,

    proposta pela sociloga Alfred Schutz, em 1962, prope a anlise da criminalidade a partir da

    ao do sistema penal que a define e que reage contra ela, desde as normas abstratas at as

    instncias repressivas, apontando que tais instncias tm papel fundamental na formao do

    status social do dito delinquente a partir do momento em que passam a agir contra este, e, ao

    revs, do status social do no-delinquente a partir do momento que deixam de agir contra este,

    mesmo que tenha cometido atos punveis.

    A criminalidade abandona seu status de realidade objetiva e passa a ser lida como

    uma definio. Os questionamentos dos criminlogos tradicionais sobre quem criminoso?

    d espao para questionamentos voltados para quem definido como desviante? e,

    principalmente, quem define o que desvio?. A partir desses novos objetos de anlise, a

    pesquisa dos tericos do Rotulacionismo desenvolve-se em duas direes: uma voltada para o

    estudo da formao da identidade desviante e para o efeito deste etiquetamento de

    criminoso sobre o indivduo; a outra, voltada para o problema da definio do que o

    desvio e para o problema da distribuio do poder de defini-lo (ou seja, para o estudo das

    agncias de controle social).

    Dentro da primeira linha de estudos, procura-se mostrar como a punio de um

    primeiro comportamento desviante cria, muitas das vezes, um lao com o desvio, acarretando

    uma mudana da identidade social do indivduo estigmatizado e uma tendncia permanncia

    no papel social ao qual fora introduzido. O comportamento desviante passa a ser encarado

    como uma medida de defesa, de ataque ou de adaptao reao da sociedade ao primeiro

    desvio, colocando em dvida a funo preventiva e reeducativa da pena e revelando, em

    ltima anlise, que a interveno do sistema penal, especialmente atravs das penas de

    deteno, antes de terem um efeito reeducativo sobre o delinquente, determinam, na maioria

    dos casos, uma consolidao da identidade desviante do condenado e o seu ingresso em uma

    verdadeira carreira criminosa.

    5 Segundo o interacionismo simblico, a sociedade constituda por uma infinidade de interaes

    concretas entre os indivduos que, a partir de modificaes recprocas e de um processo de

    tipificaes, afasta-se do concreto passando a atuar atravs da linguagem (cf. BARATTA, 2002). 6 Segundo a etnometodologia, a sociedade no uma realidade que se possa conhecer sobre o plano

    objetivo, mas o produto de uma construo social, obtida graas a um processo de definio e de tipificao por parte de indivduos e de grupos diversos (cf. BARATTA, 2002).

  • 20

    Sob a segunda linha, para o entendimento dos processos de definio do desvio

    devem ser levadas em conta tanto as definies ditadas pelas instncias oficias de controle

    social como tambm as ditadas pelo senso comum. O desvio se mostra como um processo

    determinado pela maneira que certa sociedade interpreta o comportamento como desviante,

    definindo as pessoas aptas a portarem-se dessa forma e o tratamento em face delas,

    dependendo tal processo menos de tal comportamento em si e mais da interpretao imposta

    pela sociedade e pelos rgos de controle. Para desencadear a reao social, o comportamento

    deve ser capaz de perturbar a percepo habitual da rotina, da realidade tomada-por-dada,

    suscitando, entre as pessoas implicadas, indignao moral, embarao, irritao, sentimento de

    culpa e outros sentimentos anlogos (BARATTA, 2002, p. 95).

    Influenciaram para o deslocamento da anlise do crime sob a tica do

    comportamento desviante para a dos mecanismos de reao social e de seleo da populao

    criminosa, ainda, as investigaes sobre a criminalidade de colarinho branco e as cifras

    ocultas (ou cifras negras), encabeadas por Sutherland e desenvolvidas em territrio norte-

    americano.

    Na primeira, Sutherland mostrava como o comportamento contrrio norma

    mantinha-se velado entre as classes de melhor posio social, fenmeno este caracterstico a

    todas as sociedades de capitalismo avanado e propiciado pelas conivncias entre classe

    poltica e classe burguesa, principal detentora do capital financeiro. Esta falta de interesse no

    controle de tais prticas decorrente de fatores ligados: natureza social dos infratores que,

    principalmente, no atraem o foco das agncias oficiais por no constiturem o esteretipo do

    desviante; natureza jurdico-formal, que demanda meios mais custosos para a punio de

    crimes propositalmente elencados, a fim de resguardar os seus agentes, via de regra,

    provenientes de classes defendidas; ou ainda de natureza econmica, caracterizada pelo

    maior acesso justia que as classes dominantes tm frente possibilidade de contratao de

    um melhor quadro de profissionais para sua defesa jurdica.

    Na segunda, revela como a criminalidade praticada pelas classes dominantes

    influenciam a anlise e distribuio da criminalidade nas vrias camadas sociais, gerando um

    falso quadro que concentra os crimes de maior reprovabilidade social mais nas mos das

    camadas inferiores e menos nas das camadas superiores da sociedade, ligando-os aos fatores

    pessoais e sociais correlacionados pobreza e moldando o modus operandi dos rgos

    oficiais. Estas observaes do ensejo a uma fundamental correo do conceito de

  • 21

    criminalidade, que passa a ser entendida no como o comportamento de uma restrita minoria,

    como defendido pelas correntes que se baseiam na ideologia da defesa social, mas, ao

    contrrio, o comportamento de largos estratos de nossa sociedade.

    Em sua recepo alem, a criminalidade passa a ser observada tambm pela tica

    da aplicao das leis em abstrato por parte do intrprete, e os possveis vcios decorrentes da

    aplicao errnea de regras, princpios e atitudes subjetivamente contaminadas que podem

    surgir em tal momento.

    Baratta, no entanto, aponta que a escola rotulacionista, ao apresentar a sociedade

    como formada por pequenos grupos estanques, ainda no questiona quem tem o poder de

    rotular, aparecendo este poder de maneira acidental dentro da sociedade. Essa no anlise

    macula a importncia que a luta de classes tem como mecanismo de regulao da populao

    criminosa e de poder sobre as classes criminalizadas. Seu carter formalista e universalizante

    acabou produzindo uma viso poltica de mdio alcance, descolada da economia e do

    processo de acumulao de capital (BATISTA, 2011, p. 77).

    2.8 O MARXISMO E A CRIMINOLOGIA CRTICA

    Os ideais marxistas florescem na criminologia crtica, na dcada de 70, como uma

    tentativa de aprofundar o pensamento rotulacionista que, frente s limitaes acima expostas,

    mostrava-se carente de uma melhor fundamentao sobre a origem das reaes sociais a

    determinados comportamentos bem como da origem da parcialidade do sistema judicirio e o

    protecionismo s classes dominantes. Em ltima anlise, surgiu para desvelar o fio condutor

    que direciona o modo de pensar da sociedade, seja de maneira espontnea ou vinculada a

    mecanismos de controle social.

    Neste sentido, aponta Baratta a sua inteno ao se valer dos ideais marxistas:

    (...) pensamos que o emprego de algumas hipteses e instrumentos tericos

    fundamentais, extrados da teoria marxista da sociedade, pode levar a

    criminologia crtica alm dos limites que aquelas correntes encontraram, e

    permitir, em parte, reinterpretar seus resultados e aquisies em um quadro

    terico mais correto (BARATTA, 2002, p. 160).

    O contexto da Guerra Fria instaurado no perodo ps Segunda Guerra Mundial,

    que instituiu uma bilateralidade entre mundo capitalista e mundo socialista representado,

    respectivamente, por Estados Unidos da Amrica e Unio Sovitica, propiciou terreno

  • 22

    fecundo para a ascenso dos interesses das classes subalternas carentes a uma teoria social

    que vislumbrasse a efetiva mudana da realidade social de constante adestramento imposto

    pelo capital e seus meios coercitivos na qual estavam inseridas. Neste momento histrico, as

    bases do capitalismo, at ento hegemnico no mundo moderno, se viu claramente

    contraposto pelos ideais socialistas, presentes em uma nao, poca, prspera e, ao menos

    ideologicamente, socialmente mais equnime.

    O capitalismo depende da apropriao da mo-de-obra da classe operria pelo

    capital atravs de processos de dominao do corpo, do trabalho vivo e do tempo do homem,

    expandindo-se a partir da mais-valia 7. Para viabilizar esse controle das massas, e a demanda

    por ordem, vrias formas de controle social se impem, e vo desde a educao, que molda o

    pensar da sociedade, at o sistema prisional, que segrega e pune os inadequados a partir de um

    discurso de classe voltado legitimao do capital.

    A partir destas premissas, a criminologia comea a ser lida como cincia do

    controle social, na qual os operadores do sistema penal figuram como instrumentos para o

    processo de organizao das massas dentro da luta de classes, e consequente potencializao

    dos ganhos de capitais, valendo-se do processo punitivo como meio de disciplinar e organizar

    o exrcito industrial de reserva.

    A anlise da desigualdade da justia penal burguesa introduzida pela contradio

    entre a igualdade formal (aquela abstratamente considerada) e a desigualdade substancial (que

    se observa em concreto), que se manifesta em relao s chances de determinados indivduos

    serem definidos e controlados como desviantes (abstratamente, todos esto passiveis dessa

    definio e controle, mas, na prtica, apenas alguns o so).

    A teoria de Baratta, apesar de alar diversos fundamentos do marxismo, no se

    limitou a este, que se mostrava fragmentado sobre o tema, valendo-se, tambm, de um vasto

    trabalho de observao emprica, inclusive, em contextos tericos diversos ao marxismo.

    Alm disso, apesar de romper com as Escolas postas at ento, utiliza de alguns de seus

    conceitos e ideais, principalmente os provenientes do Rotulacionismo.

    7 O conceito de mais-valia, apresentado por Karl Marx, refere-se ao lucro que o capital obtm sobre a

    explorao da mo-de-obra do proletariado e dos meios de produo. Trata-se da diferena entre o

    valor do bem produzido e a soma do valor dos meios de produo e do trabalho (MARX e ENGELS,

    1998).

  • 23

    3 A CRIMINOLOGIA CRTICA

    As teorias da criminalidade baseadas no Rotulacionismo deram ensejo passagem

    da criminologia liberal para a criminologia crtica, no final dos anos 60 do sculo XX. Essa

    criminologia procura desenvolver-se como uma teoria materialista, baseada na observao

    econmico-poltica do desvio, dos comportamentos socialmente negativos (BARATTA, 2002,

    p. 159) e da criminalizao, valendo-se de instrumentos conceituais e hipteses elaboradas no

    mbito do marxismo.

    Sob esse enfoque, produziu dois movimentos fundamentais na anlise do crime,

    quais sejam o deslocamento do autor para as condies objetivas, estruturais e funcionais, e o

    deslocamento das causas para os mecanismos de construo da realidade social (BATISTA,

    2011, p. 89). Desta feita, a noo de criminalidade abandona sua qualidade ontolgica e passa

    a ser compreendida como o status atribudo a determinados indivduos, mediante a dupla

    seleo 1) dos bens protegidos penalmente e dos comportamentos ofensivos a estes bens,

    descritos nos tipos penais e, 2) a seleo dos indivduos estigmatizados entre todos os

    indivduos que realizam infraes a normas penalmente sancionadas.

    Assim, para Baratta, a criminalidade um bem negativo, distribudo

    desigualmente conforme hierarquia de interesses fixada no sistema socioeconmico,

    conforme a desigualdade social entre os indivduos (BARATTA, 2002, p. 161).

    O direito penal no mais considerado um sistema esttico de normas,

    identificando-se funes dinmicas distinguveis por trs mecanismos passveis de anlises

    estanques, mas que se tocam: o mecanismo da produo das normas (criminalizao

    primria); o do processo penal como mecanismo de aplicao das normas, compreendendo a

    ao dos rgos de investigao e culminando com o juzo (criminalizao secundria) e,

    enfim, o mecanismo da execuo da pena ou das medidas de segurana.

    Como crtica aos mecanismos supramencionados, contesta-se o patamar dito

    igualitrio por excelncia do direito, uma vez que o direito penal no defende a todos e,

    quando pune, o faz com intensidade desigual e de modo fragmentrio, sendo o status de

    criminoso distribudo de modo desigual entre os indivduos e, ainda, feito de maneira

    independente da danosidade social das aes e da gravidade das infraes lei, no sentido de

    que estas no constituem a varivel principal da reao criminalizante e da sua intensidade.

    Revela-se, assim, um direito penal to desigual quanto os outros ramos do direito burgus,

  • 24

    que deixa transparecer a latente contradio entre a igualdade formal dos sujeitos de direito e

    a desigualdade substancial entre os indivduos, entendida a primeira como a igualdade perante

    a lei e a segunda como a discrepncia que se manifesta quando os diversos membros da

    coletividade no tm o mesmo poder aquisitivo ou status social.

    Neste nterim, o sistema penal se mostra como um instrumento apto a conservar e

    reproduzir a realidade social, sendo a aplicao seletiva das sanes penais estigmatizantes e,

    especialmente o crcere, um meio de manuteno da escala vertical da sociedade, incidindo

    mais fortemente sobre o status social dos indivduos de estratos sociais mais baixos e

    impedindo sua ascenso. Conforme entendimento de Baratta:

    O Crcere representa, em suma, a ponta do iceberg que o sistema penal

    burgus, o momento culminante de um processo de seleo que comea

    ainda antes da interveno do sistema penal, com a discriminao social e

    escolar, com a interveno dos institutos de controle social e escolar, com a

    interveno dos institutos de controle do desvio de menores, da assistncia

    social, etc. O crcere representa, geralmente, a consolidao definitiva de

    uma carreira criminosa (BARATTA, 2002, p. 167).

    Em relao criminalizao primria, ou seja, aquela que se refere ao direito

    penal em abstrato, a discriminao seletiva tem a ver com os contedos e os no contedos

    da lei penal (BARATTA, 2002, p. 176). A seleo criminalizadora ocorre na formulao dos

    tipos penais e do emaranhado de agravantes que a ele se aplicam, sendo que a comunicao

    dos tipos penais voltados s classes baixas com as agravantes das penas , via de regra, mais

    completa e, a dos tipos penais voltados para a classe mais abastada, mais sutil. Os no

    contedos so silncios legislativos propositais no sentido de dificultar ou anular a

    criminalizao primria das aes antissociais praticadas por integrantes das classes

    dominantes, constituindo verdadeiras zonas de imunizao para comportamentos cuja

    danosidade se volta particularmente contra as classes subalternas.

    Os processos de criminalizao secundria esto relacionados forma como a

    sociedade enxerga o outro, guiando a ao tanto dos rgos investigadores como dos rgos

    judicantes, e que os levam, portanto, a procurar a criminalidade principalmente naqueles

    estratos sociais dos quais normal esper-la. Alm disso, sendo os aplicadores do direito

    oriundos, principalmente, das classes hegemnicas, o seu insuficiente conhecimento e

    capacidade de penetrao no mundo do acusado poder deturpar a aplicao da lei pela

    influncia dos preconceitos e esteretipos do julgador em relao a, principalmente, os

  • 25

    acusados provenientes de classes baixas. Segundo Baratta, pesquisas empricas comprovam as

    diferenas de atitude emotiva e valorativa dos juzes em face de indivduos pertencentes a

    diferentes classes, levando a tendncias de juzos diversificados conforme a posio social do

    acusado, relacionados tanto apreciao do dolo, da culpa e prognoses sobre suas futuras

    condutas e, consequentemente, individualizao e mensurao da pena destes. Neste sentido,

    no segundo semestre de 2013, o Conselho Nacional de Justia (CNJ), com o intuito de

    fortalecer o autoconhecimento da Justia brasileira para fins de aprimoramento e

    planejamento das polticas judicirias, mapeou, pela primeira vez, o perfil dos magistrados e

    servidores do Poder Judicirio Brasileiro 8. Para tal, o Departamento de Pesquisas Judicirias

    (DPJ) do CNJ elaborou questionrios que foram disponibilizados de forma eletrnica na

    pgina do CNJ e, tambm, enviados via correio eletrnico ao universo de pesquisados,

    contando com a adeso de 64% (10.796) dos 16.812 magistrados em atividade no pas.

    Revelando a seletividade existente no Poder Judicirio, conforme proposto por Alessandro

    Baratta nos apontamentos supra, os dados levantados constatam que 82,8% dos magistrados

    so da raa branca, enquanto apenas 15,6% so negros ou pardos e, apesar do censo no

    levantar a origem social dos entrevistados, constata-se que 51,2% deles so oriundos de

    instituies privadas de ensino superior, o que transparece que, em sua maioria, os

    magistrados so oriundos de classes mais abastadas. Em contrapartida, na realidade carcerria

    nacional, segundo dados do InfoPen 9, a maioria dos apenados, cerca de 60%, so negros ou

    pardos e, ainda, cerca de 75% dos presos no possuem sequer ensino mdio, contra uma

    pequena minoria, cerca de 1%, que possui ensino universitrio ou formao superior a esta.

    8 BRASIL, C. N. D. J. Portal CNJ. Censo do Poder Judicirio, Braslia, p. 212, 2014. Disponvel em:

    . Acesso em: 08 out. 2014. 9 BRASIL, M. D. J. Portal Atlas. Relatrios Estatsticos - Analticos do Sistema Prisional

    Brasileiro, Junho 2013. Disponvel em: . Acesso em: 09 out. 2014.

  • 26

    4 O MEDO COMO MTODO DE MANUTENO DA SELETIVIDADE

    4.1 O FATOR LEGITIMANTE MEDO

    Como visto no captulo anterior, para a Criminologia Crtica, o delito uma

    criao social voltada para a determinao do comportamento desviante atravs da seleo

    dos bens tutelados penalmente e comportamentos que os colocam em risco, e a seleo dos

    indivduos estigmatizados como os mais propensos ao cometimento de tais, tudo de acordo

    com os interesses da classe dominante, em uma criao social eminentemente seletiva.

    No caminho para essa criao, ho de ser cunhados meios para que a populao

    em geral se filie ideia vinculada, sendo o medo largamente utilizado para a consecuo de

    tal, servindo, por diversas vezes, ao longo da histria e atualmente, para inflamar estratgias

    de neutralizao e disciplinamento planejado das massas empobrecidas. O que se pretende

    demonstrar ao longo deste captulo , justamente, como a hegemonia da classe dominante na

    nossa formao social trabalha o medo como mecanismo indutor e justificador de polticas

    autoritrias de controle social, tornando-o fator de tomadas de posio estratgicas seja no

    campo econmico, poltico ou social, podendo-se, ao fim, concluir que a difuso do medo

    mecanismo indutor e justificador de polticas autoritrias de controle social (BATISTA, 2003,

    p. 51).

    O medo e seu impacto difusor na vida social e poltica, alimentado, desde as

    razes da sociedade atual, pelo trauma de guerras feudais incessantes, epidemias de praga,

    conflitos religiosos virulentos e pela insegurana fsica predominante, moldou profundamente

    a sociedade e a cultura europeia no comeo da era moderna. Ainda, durante o Renascimento,

    a Igreja habilmente manipulou e canalizou os medos populares para consolidar e estender o

    seu poder poltico simblico, mesmo quando a revoluo mental secular levada a cabo pela

    burguesia estava ganhando flego. Em mbito nacional, o medo coletivo frente aos tumultos

    populares, atividades criminosas alimentadas pela pobreza e a insurreies de escravos,

    desempenhou papel importante na sociedade urbana do Brasil ps Independncia, tendo os

    projetos de construo da ordem burguesa no pas sempre se deparado com o medo da

    rebeldia negra.

    Para Vera Malaguti (2003), a grande poltica social da contemporaneidade

    neoliberal a poltica penal. Quando esta poltica demonstra sinais de enfraquecimento, os

    meios de comunicao de massa se apressam a difundir notcias, campanhas e imagens que

  • 27

    aterrorizam a populao e cumprem um papel disciplinador emergencial. Dessa maneira, o

    medo considerado um projeto esttico que limita a liberdade em nome da segurana.

    Segundo a autora, o sculo XX, ao instituir o declnio do poder poltico e a

    ascenso do poder econmico transnacionalizado, enfraquece o Estado, que se torna incapaz

    de reduzir ou controlar a violncia que sua prpria impotncia gera. O discurso do Estado se

    revela ineficaz para convencer ou tranquilizar sua plateia, e este se v obrigado a recorrer a

    um libreto para seu espetculo. Este espetculo tem como palco as mdias e as agncias

    de comunicao social, e como personagens, determinados grupos que variam dos traficantes

    e terroristas, passando por negros, pobres e favelados, em uma estratgia que visa concentrar a

    causa da insegurana e do medo numa parte da populao que pode ser nomeada, reconhecida

    e localizada, desviando o foco das atenes da ausncia do poder, da poltica e da crescente

    desigualdade social.

    4.2 A MDIA DE MASSA COMO MEIO DE INCULCAO DO MEDO

    Notadamente, os meios de comunicao de massa promovem campanhas seletivas

    atravs da enxurrada de discursos perigosistas que incitam a construo no imaginrio

    coletivo de esteretipos de crimes e, principalmente, da figura do outro. As reportagens

    veiculadas sempre ressaltam mais a crueldade dos bandidos do que o meio cruel que os

    cercam; a impunidade total em detrimento da condenao diria da populao

    marginalizada; imputam o mau funcionamento do aparelho estatal s leis benevolentes,

    especialmente Constituio, que s garante direitos humanos para bandidos, esquecendo-se

    da relaxada legislao voltada para a punio da classe dominante.

    No que toca aplicao da pena, do processo penal e penalizante, a mdia veicula

    incisivas opinies, e acaba prolatando sentenas que tornam-se irrecorrveis frente

    coletividade e criam fatos consumados pela propagao de informaes precoces. Zaffaroni, a

    respeito do tema, nos mostra que a manipulao da mdia cria esteretipos que direcionam a

    criao e aplicao das leis e permitem a catalogao dos criminosos que combinam com a

    imagem que correspondem descrio fabricada, deixando de fora outros tipos de

    delinquentes, como, por exemplo, os praticantes de crimes econmicos (os denominados

    crimes do colarinho branco) e os de trnsito (ZAFFARONI, 2001).

  • 28

    A partir da veiculao sensacionalista das notcias (que, particularmente, agradam

    s massas), o sujeito informado adota as narraes como verdades concretas e absolutas,

    passando a acreditar que a qualquer momento pode ser vtima de determinados delitos na

    maioria das vezes delitos violentos causados por determinada classe, demasiadamente

    estigmatizadas pela mdia em regra, as classes baixas. Fica clarividente o poder que a mdia

    detm para criar imagens de medo que na maioria dos casos se tornam permanentes.

    A evoluo dos meios de comunicao em massa se confunde com a evoluo do

    capitalismo e o controle dos contedos de informao de determinada sociedade em

    determinada poca sempre foi do interesse dos dirigentes do perodo, o que pode influenciar

    decisivamente nos processos estigmatizantes, como ser demonstrado a frente. No Brasil, por

    exemplo, apenas uma estreita classe dominante, mais especificamente nove famlias,

    controlam cerca de noventa por cento de tudo o que os brasileiros leem, ouvem e veem

    atravs dos meios de comunicao social. Fica claro que a mdia, frente a tais evidncias,

    funciona como um Quarto Poder que de fato controla quais assuntos se deve apresentar ao

    pblico e, mais traioeiramente, falsear e, sobretudo, silenciar. Assim expe de maneira clara

    a opinio de Vera Malaguti sobre o protecionismo arraigado na mdia como espelho da classe

    dominante:

    A qualquer diminuio de seu poder os meios de comunicao de massa se

    encarregam de difundir campanhas de lei e ordem que aterrorizam a

    populao e aproveitam para se reequipar para os novos tempos. Os meios de comunicao de massa, principalmente a televiso, so hoje fundamentais

    para o exerccio do poder de todo o sistema penal, seja atravs dos novos

    seriados, seja atravs da fabricao de realidade para produo de indignao

    moral, seja pela fabricao de esteretipo do criminoso. (BATISTA, 2003, p.

    33)

    Em um sistema de hierarquizao do que ser notcia ou no, o trabalho de

    comunicao da mdia se resume em trs fases: eleio dos acontecimentos que sero notcia;

    hierarquizao das notcias segundo sua importncia e tematizao ou converso de uma

    notcia em tema de debate social. Pelo carter imediatista da sociedade moderna, vida por

    informaes e carente, at mesmo, do medo como alimento do subconsciente, os

    acontecimentos que provavelmente no despertaro a ateno do pblico e, por conseguinte,

    no tero a audincia necessria para que a emissora possa auferir lucros, so excludos da

    pauta. Alm disso, so excludas tambm as notcias que no beneficiam ou que

    prejudicam os interesses econmicos que o grupo miditico representa, e a ateno do

  • 29

    telespectador dirigida a um tipo especfico de delinquncia, ditado pelo processo de eleio,

    hierarquizao e tematizao da notcia, fazendo com que a mdia se detenha sobre

    determinados delitos: crimes contra a vida, crimes contra a integridade fsica, crimes contra a

    liberdade sexual. Outros tipos de delitos que no interessam aos detentores dos grupos de

    comunicao ou que vo de encontro aos interesses pessoais desses so completamente

    esquecidos.

    Frente a essa satisfao da massa, a mdia acaba sendo legitimada pela sociedade

    como um meio fidedigno, imparcial e transparente. Assim o seu poder, quando no aflora e se

    sobrepe sobre os poderes constitudos, age de maneira a contrap-los e desconstru-los.

    Foucault defende a ideia de que s h verdade se acompanhada de poder:

    [...] a verdade centrada na forma do discurso cientfico e nas instituies que o produzem; est submetida a uma constante incitao econmica e

    poltica (necessidade de verdade tanto para a produo econmica, quanto

    para o poder poltico); objeto, de vrias formas, de uma imensa difuso e

    de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educao ou de

    informao, cuja extenso no corpo social relativamente grande, no

    obstante algumas limitaes rigorosas); produzida e transmitida sob o

    controle, no exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos

    polticos ou econmicos (universidade, exrcito, escritura, meios de

    comunicao); enfim, objeto de debate poltico e de controle social

    (FOUCAULT, 1984, p. 12-13).

    A partir dessa correlao entre poder e verdade, alimentada uma cultura do

    medo, que se desenvolve conforme o interesse de determinados grupos dominantes, conforme

    relata Thums:

    A escolha dos bens jurdicos que sero objeto de tutela penal deveria ser o

    resultado de juzos de valor pronunciados pelo legislador, atuando como

    representante da vontade popular. Esses juzos de valor, todavia, sofrem

    influncia das mais variadas ordens. Desde o clamor social, manipulado pela

    mdia, maximizando fatos isolados, at o explcito interesse de grupos

    econmicos ou polticos (THUMS, 2005, p. 23).

    A partir de toda essa problematizao e magnificao do crime, elencando a busca

    por ordem e segurana como os principais interesses pblicos a serem perseguidos, o tema

    acaba se tornando enraizado agenda poltica brasileira. Em um ltimo patamar, legitimam-se

    polticas de segurana cada vez mais severas, passa-se a exigir mais leis penais, mais

    represso, mais segurana pblica em detrimento, at mesmo, da privacidade, e menos

  • 30

    direitos para o inimigo que, na imensa maioria das vezes, representado por atores das

    classes populares.

    Diante de todo esse quadro de jogo de interesses, o Poder Legislativo acaba sendo

    tocado pelos chamamentos e apelos da mdia e do clamor pblico na elaborao das leis

    penais.

    Dentre as principais influncias recentes da mdia e do clamor pblico na

    elaborao de leis, podemos citar Lei n 8.072/90 Lei dos Crimes Hediondos. Ela foi uma

    lei aodada, resultado de uma intensa presso da mdia diante da criminalidade nos meios

    urbanos poca de sua criao, sendo, o mais especfico, o caso do sequestro do empresrio

    Ablio Diniz, ocorrido em 1989 assim como o sequestro do tambm empresrio Roberto

    Medina. Tais crimes foram a mola propulsora para a celeridade no julgamento do projeto de

    lei j existente sobre o assunto e determinou o acrscimo dos delitos de extorso mediante

    sequestro no rol dos crimes que seriam considerados hediondos. O clamor dos meios de

    comunicao antes e depois de o empresrio Ablio Diniz ser libertado, associado com as

    ondas de criminalidade urbana, resultaram na promulgao da Lei n 8.072/90 que ,

    indubitavelmente, uma das mais miditicas leis produzidas no Brasil.

    Zaffaroni e Pierangeli, em obra clssica, apontam:

    Menos de dois anos aps a Constituio Federal de 1988, o legislador

    ordinrio, pressionado por uma arquitetada atuao dos meios de

    comunicao social, formulava a lei 8072/90. Um sentimento de pnico e de

    insegurana muito mais produto de comunicao do que realidade tinha tomado conta do meio social e acarretava como consequncias imediatas a

    dramatizao da violncia e sua politizao. (ZAFFARONI e PIERANGELI,

    2002).

    Alguns anos aps, a morte de Daniella Perez, ocorrida em 28 de dezembro de

    1992, foi mais um caso criminal que deu azo a mudanas na lei penal. A imprensa divulgou o

    acontecimento por anos. Neste caso, a escritora Glria Perez, me de Daniella Perez,

    capitaneou um movimento colhendo milhares de assinaturas na tentativa de encaminhar ao

    Congresso um projeto de lei de iniciativa popular, no qual se acrescentaria Lei n 8.072/90 o

    homicdio qualificado.

    Recentemente, em 2003, o assassinato dos jovens Liana Friendenbach e seu

    namorado Felipe Caff, perpetrado por uma quadrilha liderada por um adolescente, deu

  • 31

    ensejo a uma precipitada discusso sobre a reduo da maioridade penal. O pai da jovem, o

    Advogado Ari Friendenbach lidera um movimento neste sentido e detm o cabal apoio dos

    meios televisivos, sendo corriqueiro encontr-lo em programas de todos os gneros e

    destinados a diversos pblicos, quando se est a discutir a questo da reduo da maioridade

    penal.

    Ainda, a Poltica de Pacificao das comunidades carentes da cidade do Rio de

    Janeiro, iniciada no final do ano de 2010, teve ampla divulgao pela mdia e grande

    aceitao da sociedade. Em uma clara guerra do bem contra o mal, do civilizado contra o

    criminoso, do asfalto contra a favela, legitimou-se o uso de um aparato de guerra contra o

    inimigo personificado na figura do traficante. Neste contexto, fez-se vista grossa

    carnificina e arbitrariedades da atuao do Estado, na mais clara aplicao da mxima

    maquiavlica segundo a qual os fins justificam os meios. Os acontecimentos mostraram uma

    classe dominante que, acuada pelo medo imposto pela grande mdia, e mesmo por interesses

    de dominao, em certos casos assistiram caladas ao excesso de foras empregadas e, noutros,

    louvaram a violncia e ansiaram pelo sangue derramado do inimigo, classificando todo

    morador das reas atingidas como tal. Tal concluso pode ser baseada no pensamento de Vera

    Malaguti sobre o uso do medo no Brasil:

    Sociedades rigidamente hierarquizadas precisam do cerimonial da morte

    como espetculo de lei e ordem. O medo a porta de entrada para polticas

    genocidas de controle social. (BATISTA, 2003, p. 53)

    Por ltimo, no ano de 2013, os Rolezinhos 10, encontros marcados por jovens da

    periferia em grandes shoppings e reas frequentadas, geralmente, pelas classes mais abastadas

    impactaram a sociedade burguesa ao verem-se rodeada por indivduos que no eram

    daqueles locais, em um claro reflexo da estetizao do mal 11. Nesse momento de ecloso

    social, de tentativa dos excludos adentrarem em um meio que no lhes era peculiar, a mdia

    tornou-se a apontar somente os fatos negativos que supostamente esses encontros geravam,

    como furtos, brigas e consumo de drogas, sem, no entanto, conseguir evidenciar o lastro

    dessas prticas entre os participantes e, muito menos, contrabalancear tais fatos negativos

    10

    PINTO, T. Brasil Escola. Rolezinhos e discriminao social, 2014. Disponvel em:

    . Acesso em: 13 out.

    2014. 11

    Expresso utilizada por Vera Malaguti segundo a qual o medo , dentre outros, um projeto esttico,

    que entra pelos olhos, pelos ouvidos e pelo corao. Em outras palavras, a estetizao seria a anlise

    do que o sujeito v e percebe a partir de padres previamente inseridos em seu subconsciente (por

    exemplo, a comparao entre o favelado e o criminoso) (BATISTA, 2003).

  • 32

    pontuais aos pontos positivos do movimento. Dessa forma, reproduziu, basicamente, o que a

    grande massa dominante gostaria de escutar e, ainda, manteve legtimo o medo dessas classes

    frente ao outro. Em uma obra anterior a estes acontecimentos, Vera Malaguti expe

    claramente o que ocorre em situaes como essas:

    A ocupao dos espaos pblicos pelas classes subalternas produz fantasias

    de pnico e caos social, que se ancoram nas matrizes constitutivas da nossa formao ideolgica. (BATISTA, 2003, p. 34)

    Como se pde notar, a mdia influenciou e influencia, de maneira decisiva, o

    modo de pensar e agir da populao em geral, criando bases slidas para a conduo das

    polticas de segurana e processos de estigmatizao voltados para a satisfao do interesse

    das classes dominantes e interesses prprios.

    4.3 RETRATOS DA SOCIEDADE BRASILEIRA

    O produto de uma sociedade permeada pelo medo divulgado massivamente

    atravs dos meios de comunicao com o intuito de direcionar o pensamento da coletividade

    para a dicotomia entre bem e mal, insistindo-se, sempre, na personificao do mal na figura

    de grupos pertencentes a classes menos abastadas, e nos meios violentos para sua supresso,

    no poderia ser outro que no o disseminado pensamento de tolerncia zero 12, aonde o

    rigor penal, atravs do enrijecimento das penas, tido como principal meio para a obteno da

    paz social.

    Tentando demonstrar como a inculcao do medo pela mdia gera reflexos no

    modo de pensar da sociedade, neste ponto ser procedida a anlise de dados de pesquisas

    estatsticas procurando apontar, sempre que possvel, como as bases da criminologia crtica

    explicam a viso apresentada pela populao.

    Tomaremos por base o ltimo levantamento voltado especificamente para a

    segurana pblica realizado pelo Instituto Brasileiro de Opinio Pblica (IBOPE), em parceria

    12

    Em analogia poltica do Law Enforcement desenvolvida em Nova York EUA, a expresso , sobretudo, aplicada como um modelo de segurana pblica em que a ao policial especialmente

    intransigente com delitos menores, como no pagar o transporte pblico, a prostituio, os pequenos

    furtos etc. O sistema de tolerncia zero tem como meta principal incutir o hbito do respeito

    legalidade, o que produziria em mdio prazo uma reduo nos ndices de microcriminalidade, bem

    como uma diminuio dos delitos de maior importncia, como estupros e homicdios.

  • 33

    com o Conselho Nacional da Indstria (CNI), publicado em outubro de 2011 e denominado

    Retratos da sociedade brasileira Segurana Pblica (Pesquisa CNI - IBOPE: retratos da

    sociedade brasileira: segurana pblica, 2011). Tal levantamento leva em conta a opinio de

    todo o territrio nacional, com entrevistados de diversas classes sociais e com idade acima de

    16 anos. Para fins de apresentao, os temas sero divididos de acordo com a diviso proposta

    no relatrio publicado: principais problemas do Brasil, convivncia da populao com a

    violncia e a criminalidade, e polticas e aes para melhorar a segurana pblica do pas 13

    .

    Em relao aos principais problemas enfrentados pelo Brasil, os candidatos

    deveriam escolher, dentro de uma lista pr-determinada de opes, duas respostas, entre as

    quais a sade (ou a falta dela) despontou como o principal problema, com 52% de

    assinalaes. Em segundo e terceiro lugares ficaram, respectivamente, a segurana pblica

    (33%) e as drogas (29%). Observa-se que, apesar da sade ser lembrada com um alto grau de

    incidncia, se agruparmos os problemas da segurana pblica e drogas, ambos relacionados

    ao comportamento criminoso de classes mais baixas, teremos uma nova primeira colocao,

    com um ndice de 62% de apontamentos de pelo menos um destes dois itens pelos

    entrevistados, o que os levariam, em conjunto, a uma primeira colocao. Em contrapartida, a

    corrupo, crime tipicamente de classes mais altas da sociedade, e que Sutherland elenca entre

    os Crimes de Colarinho Branco, aparece com apenas 9% dos apontamentos. Por bvio que no

    contexto de 2011, poca da realizao dos levantamentos da pesquisa, no havia menos

    pessoas que incorriam neste crime, ou mesmo que este gerava menos danos ao pas, o que se

    pode deduzir a partir dos dados e do contexto de outra pesquisa realizada em 2014,

    denominada Retratos da Sociedade Brasileira - Problemas e Prioridades para 2014, na qual

    a corrupo aparece com 27% de assinalaes como sendo um dos principais frente ao mesmo

    conjunto de problemas elencados na pesquisa realizada em 2011. Cabe aqui ressaltar o

    contexto de protestos populares ocorridos nos anos de 2012, 2013 e 2014, que, dentre outras

    conquistas, se prestaram a acender a chama poltica e crtica na populao em geral, bem

    como pressionou a mdia a divulgar casos de escndalo, antes abafados, envolvendo os altos

    escales da sociedade.

    Aqui fica claro o problema da dicotomia entre a igualdade formal e a desigualdade

    substancial apresentada pelo marxismo e incorporada pela criminologia crtica segundo a

    13

    Os dados estatsticos aqui apresentados e retomados nos pargrafos seguintes deste tpico referem-

    se, ainda, queles contidos no relatrio realizado pelo Instituto Brasileiro de Opinio Pblica

    (IBOPE), em parceria com o Conselho Nacional da Indstria (CNI), publicado em outubro de 2011

    e denominado Retratos da sociedade brasileira Segurana Pblica.

  • 34

    qual, seguindo os interesses do capitalismo, os comportamentos criminalizados praticados

    pelas classes mais baixas da sociedade so mais lembrados como delitos e mais taxados como

    problemas, e os de colarinho branco, entre os quais a corrupo se inclui, so relegados como

    crimes e problemas menores, enquanto ambos possuem a mesma faceta delituosa. Vale, ainda,

    lembrar aqui das trs variveis apontadas por Sutherland que se postam como meios de

    acobertamento dos crimes de colarinho branco, quais sejam: a natureza social dos infratores

    que, principalmente, no atraem o foco das agncias oficiais por no constiturem o

    esteretipo do desviante; a natureza jurdico-formal, que demanda meios mais custosos para a

    punio de crimes propositalmente elencados, a fim de resguardar os seus agentes via de regra

    provenientes de classes defendidas; a natureza econmica, caracterizada pelo maior acesso

    a justia que as classes dominantes tm frente possibilidade de contratao de um melhor

    quadro de profissionais para sua defesa jurdica.

    Nos quesitos relacionados convivncia da populao com a violncia e a

    criminalidade, 68% dos entrevistados responderam que no foram expostos diretamente 14

    violncia nos ltimos 12 meses, sendo que apenas 11% sofreram com a violncia diretamente

    e outros 19% por intermdio de algum parente. Em relao exposio indireta 15

    , 80% dos

    entrevistados disseram j terem presenciado pelo menos um dos crimes apontados na

    pesquisa, sendo o mais comum deles, porm, o uso de drogas nas ruas.

    Duas importantes observaes aqui devem ser feitas. A primeira a de que todas

    as situaes de violncia e criminalidade apontadas pela pesquisa referem-se a delitos

    atrelados s classes sociais mais baixas, tais como uso de drogas na rua, prises efetuadas pela

    polcia, agresses, assaltos, etc., no sendo elencados como criminalidade e/ou violncia,

    neste quesito da pesquisa, os delitos prprios das classes altas ou agentes do estado, tais como

    a corrupo, a prevaricao, as omisses, etc. Isso deixa transparecer a noo seletiva que a

    sociedade tem, mesmo que veladamente, sobre o que deve se debruar a questo da segurana

    pblica: sobre o controle das massas empobrecidas. O segundo ponto que deve ser ressaltado

    a correlao entre algumas condutas e a violncia e, aqui, sem adentrar na questo da

    legalizao das drogas ento ilcitas, lano o olhar sobre o imaginrio da populao em

    considerar o uso de droga na rua como um sinnimo de violncia, imaginrio este mais

    14

    Entendida essa exposio direta como a exposio do prprio entrevistado ou de algum parente

    (Pesquisa CNI - IBOPE: retratos da sociedade brasileira: segurana pblica, 2011). 15

    Entendida essa como a simples visualizao da ocorrncia do fato sem, no entanto, sofrer qualquer

    prejuzo direto com este (Pesquisa CNI - IBOPE: retratos da sociedade brasileira: segurana pblica,

    2011).

  • 35

    voltado para o que o usurio representa frente construo social do que para a objetividade

    de sua ao propriamente dita.

    Ainda dentro do quesito da convivncia da populao com a violncia e a

    criminalidade, 45% da populao afirmou ter aumentado os cuidados com a segurana nos

    ltimos trs anos. Segundo o relatrio da pesquisa, o percentual de respondentes que afirmou

    ter aumentado os cuidados com segurana cresce de acordo com a renda, alcanando 56% das

    famlias com renda superior a 10 salrios mnimos e 55% das famlias com renda entre 5 e 10

    salrios mnimos. Alm desses cuidados gerais, hbitos mais especficos tambm foram

    modificados para se evitar a exposio violncia, entre os quais evitar andar com dinheiro

    (63%), cuidados ao sair de e entrar em casa, trabalho ou escola (57%) e deixar de circular

    por alguns bairros ou ruas (48%).

    V-se que a mxima da segregao revela-se nas estatsticas, e o medo gera nas

    classes mais abastadas a repulsa pelo outro, via de regra, personificado na figura do pobre.

    Entre os dados acima apontados, o fato de se deixar de circular por alguns bairros ou ruas

    revela a criao, dentro da construo social, de determinados locus disseminadores de

    criminalidade, concretizados na figura das favelas e bairros perifricos, sem, necessariamente,

    haver uma justificativa fundamentada, objetivamente, para esta forma de pensar.

    At aqui, os dados obtidos na pesquisa em anlise revelaram facetas da sociedade

    fortemente moldadas pelo medo e pela noo de crime como ontolgico s classes mais

    baixas da sociedade. Estas construes, como defendido, so frutos de um sistema de controle

    (desde a escola at o sistema penal, passando pelas mdias e o medo) voltados satisfao dos

    interesses do capital em sua manuteno no poder. Agora, o ltimo quesito da pesquisa a ser

    apresentado consubstancia o ponto de chegada ao qual o sistema vigente pretende chegar e

    manter. Assim, veremos na anlise dos dados relativos opinio da sociedade sobre as

    polticas e aes para melhorar a segurana pblica do pas a reproduo do discurso de

    dio e dominao preconizados pela burguesia, aos quais se ope os ideais da criminologia

    crtica.

    Evidenciando os resultados da poltica de combate s drogas difundida desde os

    anos 1970 e, ainda hoje, fortemente utilizada pela mdia para influenciar o sentimento coletivo

    pela demanda de ordem, para 58% dos entrevistados, o combate ao trfico de drogas

    elencado como ao prioritria para melhorar a situao da segurana pblica. Ainda neste

    sentido, apenas 23% dos entrevistados concordam, total ou parcialmente, que Legalizar a

  • 36

    venda e o uso da maconha reduzir a criminalidade, enquanto 70% dos entrevistados

    discordam de tal assertiva. V-se que o inimigo pblico, o outro, j se encontra formado

    no imaginrio geral a partir do que Vera Malaguti denominou estetizao do mal.

    As demais aes defendidas pela populao tambm so afeitas represso do

    crime, estando em segundo lugar o aumento do policiamento nas ruas, com 37%, em

    terceiro o aumento de penas pelos crimes cometidos, com 27%, e em quarto o maior

    combate venda ilegal de armas, com 24%. As polticas de cunho social aparecem nos

    ltimos lugares, na figura da maior presena do Estado com polticas de educao,

    saneamento, etc. nas comunidades carentes, com apenas 17% das escolhas, e a ampliao

    das polticas de combate pobreza, com 14%.

    A maioria da populao defende punies mais duras contra o crime, sobretudo

    contra os mais violentos, alcanando o patamar de 79% das indicaes. Dentro desse iderio

    enrijecedor, polticas de tolerncia zero so defendidas por 83% dos entrevistados e a priso

    perptua apoiada por 69% da populao. A pena de morte ainda divide a opinio da

    sociedade com 46% de aprovao e 46% de rejeio, mas j se pode notar a sua grande

    aprovao.

    Em se falando do tratamento atualmente dado ao menor, a viso da populao

    tambm se encontra deturpada pelo medo. Neste contexto, a reduo da maioridade penal para

    16 anos encontra 86% de aprovao e a equiparao destes a adultos por ocasio de

    julgamentos por crimes violentos alcana 91% de aceitao podendo ambas ser explicadas

    pela concepo de que a atribuio da responsabilidade penal somente a partir dos 18 anos

    incentiva a participao de menores de idade na prtica criminosa, com 83% das

    assinalaes.

    Apesar de todo esse iderio penalista, ainda h um fio de esperana dentro do

    modo de pensar dos brasileiros, havendo um quase consenso entre os entrevistados de que

    polticas sociais, tais como educao e formao profissional, so mais eficazes para a

    reduo da violncia do que aes repressivas, como aumento do policiamento ou maior rigor

    na punio dos criminosos, com 90% de concordncia total ou parcial sobre essa afirmao.

    Dos entrevistados, 76% concordam que as polticas pblicas para reinsero dos presos na

    sociedade se constitui um meio de se aumentar a segurana pblica. Por ltimo, 82% da

    populao so a favor da adoo de penas alternativas priso, como o trabalho comunitrio,

    para crimes de menor gravidade.

  • 37

    No entanto, as polticas de cunho social aparecem nos ltimos lugares quando fora

    questionado aos entrevistados sobre as aes para melhorar a segurana pblica no Pas, na

    figura, em quinto lugar, da maior presena do Estado com polticas de educao,

    saneamento, etc. nas comunidades carentes, com apenas 17% das escolhas, e, em sexto, a

    ampliao das polticas de combate pobreza, com 14%. Neste item, o maior combate ao

    trfico de drogas figurou em primeiro lugar.

    De tudo aqui exposto, referente aos dados contidos na pesquisa CNI e IBOPE

    retratos da sociedade brasileira: segurana pblica, podemos notar que, conforme explicita a

    escola da Criminologia Crtica, h uma expressa supervalorizao dos crimes afeitos s

    classes mais empobrecidas da sociedade e uma proteo queles afeitos s classes mais altas,

    explicada essa diferena pela dicotomia entre os conceitos de Igualdade Formal e a

    Desigualdade Substancial apresentada pelo marxismo. Essa diferena causa e efeito, entre

    outras, das presses miditicas que superpovoam o imaginrio coletivo com estetizaes do

    mau, atribuindo a determinados indivduos, grupos e locais um carter ontologicamente

    criminoso e passvel do sentimento de medo pela generalidade da populao. A partir de todas

    as situaes supra, a sociedade passa a desejar maiores intervenes penais sobre estre

    criminosos, vistas e apresentadas estas como o nico meio de proteger a sociedade de

    bem.

    No entanto, como veremos a seguir, h uma contradio entre as intervenes

    indicadas e os resultados por elas conquistadas, gerando, ao invs de paz social, mais sujeitos

    marginalizados e estigmatizados pela sociedade.

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    5 A CONTRADIO ENTRE A PENA E A PAZ SOCIAL NO ATUAL CENRIO NACIONAL

    Como visto anteriormente, a sociedade atual clama por penas mais severas no

    intuito de melhorar a segurana pblica do pas. Frente a esta splica, devemos analisar qual

    a funo da pena dentro da doutrina e legislao Penal vigente e, principalmente, qual a sua

    eficcia frente ao que propem. A partir desta anlise poderemos construir bases para

    concluirmos se, realmente, esta a sada mais vivel ou, como se pretende demonstrar, o

    aumento de penas s serviria para agravar e aprofundar os abismos sociais instaurados na

    sociedade, perpetuando a luta de classes e os esteretipos vigentes.

    Para isso, num primeiro momento, abordaremos as teorias da pena de acordo com

    a doutrina vigente, expondo os principais argumentos e, quando cabvel, apresentando breves

    crticas a estes. Em um segundo momento, analisar-se- dados do Sistema Integrado de

    Informaes Penitencirias (InfoPen) 16

    com o intuito de verificar como a pena vem sendo

    cumprida no Brasil e, ainda, mostrar a composio dos apenados que, em sua maioria, como

    veremos, provm de classes mais baixas da sociedade.

    5.1 AS TEORIAS DA PENA

    A anlise das funes da pena pressupe a abordagem das diversas teorias que

    explicam seu sentido, sua funo e sua finalidade, revel