NOÇÕES DE PSICOLOGIA DA CRIANÇA: ESTUDO SOBRE UM MANUAL...

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NOÇÕES DE PSICOLOGIA DA CRIANÇA: ESTUDO SOBRE UM MANUAL DIDÁTICO DE THEOBALDO MIRANDA SANTOS Rodrigo Augusto de Souza - UFPR [email protected] RESUMO O trabalho apresenta uma reflexão sobre o estudo da psicologia infantil com base na obra Noções de Psicologia da Criança de Theobaldo Miranda Santos (1904-1971). O manual didático foi publicado como parte da coleção Curso de Psicologia e Pedagogia, da Companhia Editora Nacional. O intelectual, autor de inúmeros manuais didáticos, investigou as concepções de infância presentes nos ensinamentos dos maiores psicólogos do século XX, segundo sua compreensão. Em seu manual didático, analisou as ideias de infância presentes na obra de autores como: Claparède, Piaget, Wallon, Vermeylen, Bühler e Stern, entre outros. Este estudo utiliza das contribuições da análise do discurso para identificar a importância da psicologia da criança na referida obra de Theobaldo Miranda Santos. Palavras-chave: Discurso Pedagógico; Psicologia da Criança; Theobaldo Miranda Santos. Introdução O uso da psicologia no campo da educação permite situar o intelectual Theobaldo Miranda Santos (1904-1971) entre os renovadores educacionais do movimento pela Escola Nova. A reconhecida identificação de Theobaldo como um intelectual católico não significa afirmar que o personagem ignorou as contribuições das ciências humanas e sociais, especialmente a psicologia, aplicadas à pedagogia. Sem abrir mão de seus princípios católicos, o intelectual forjou um discurso pedagógico que aliava a renovação do pensamento católico com a utilização de algumas ciências, entre elas, a psicologia. Outro elemento a ser investigado será a concepção de infância presente no manual didático. A noção de psicologia manipulada pelo intelectual será problematizada a fim de permitir a compreensão dos seus fundamentos. As diferentes fases do desenvolvimento da psicologia infantil serão questionadas. Os conflitos de concepções de infância entre os autores manipulados por Theobaldo serão expostos. As ideias antagônicas sobre a infância apresentadas no manual didático receberão uma análise pormenorizada. A inserção da psicologia no currículo da formação de

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NOÇÕES DE PSICOLOGIA DA CRIANÇA: ESTUDO SOBRE UM MANUAL

DIDÁTICO DE THEOBALDO MIRANDA SANTOS

Rodrigo Augusto de Souza - UFPR

[email protected]

RESUMO

O trabalho apresenta uma reflexão sobre o estudo da psicologia infantil com base na

obra Noções de Psicologia da Criança de Theobaldo Miranda Santos (1904-1971). O

manual didático foi publicado como parte da coleção Curso de Psicologia e Pedagogia,

da Companhia Editora Nacional. O intelectual, autor de inúmeros manuais didáticos,

investigou as concepções de infância presentes nos ensinamentos dos maiores

psicólogos do século XX, segundo sua compreensão. Em seu manual didático, analisou

as ideias de infância presentes na obra de autores como: Claparède, Piaget, Wallon,

Vermeylen, Bühler e Stern, entre outros. Este estudo utiliza das contribuições da análise

do discurso para identificar a importância da psicologia da criança na referida obra de

Theobaldo Miranda Santos.

Palavras-chave: Discurso Pedagógico; Psicologia da Criança; Theobaldo Miranda

Santos.

Introdução

O uso da psicologia no campo da educação permite situar o intelectual

Theobaldo Miranda Santos (1904-1971) entre os renovadores educacionais do

movimento pela Escola Nova. A reconhecida identificação de Theobaldo como um

intelectual católico não significa afirmar que o personagem ignorou as contribuições das

ciências humanas e sociais, especialmente a psicologia, aplicadas à pedagogia. Sem

abrir mão de seus princípios católicos, o intelectual forjou um discurso pedagógico que

aliava a renovação do pensamento católico com a utilização de algumas ciências, entre

elas, a psicologia. Outro elemento a ser investigado será a concepção de infância

presente no manual didático. A noção de psicologia manipulada pelo intelectual será

problematizada a fim de permitir a compreensão dos seus fundamentos. As diferentes

fases do desenvolvimento da psicologia infantil serão questionadas. Os conflitos de

concepções de infância entre os autores manipulados por Theobaldo serão expostos. As

ideias antagônicas sobre a infância apresentadas no manual didático receberão uma

análise pormenorizada. A inserção da psicologia no currículo da formação de

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professores demonstra um ideário renovador no campo da educação. A concepção

psicológica da criança e da infância será investigada no presente trabalho.

O manual didático que analisamos no presente trabalho procurou demonstrar o

surgimento da “psicologia da criança” como uma disciplina autônoma no currículo da

formação de professores. A intenção de Theobaldo Miranda Santos era que a obra fosse

utilizada nas “Escolas Normais, Institutos de Educação e Faculdades de Filosofia”.

Trata-se, portanto, de um manual destinado à formação docente. A dedicação do livro

foi para o intelectual José Barreto Filho, que por certo tempo, foi professor dessa

disciplina na Universidade Católica do Rio de Janeiro. Assim, fica evidente, o intento

de Theobaldo Miranda Santos de subsidiar o trabalho docente daqueles que estavam

responsáveis pela formação de novos quadros para o magistério brasileiro.

Como característica da obra, percebemos o estilo do autor em privilegiar a

compilação das principais tendências e teorias da psicologia infantil. Não deixa, porém,

de oferecer sua interpretação às ideias pedagógicas advindas dessas teorias. No seu

estilo peculiar, Theobaldo Miranda Santos ofereceu amplo destaque aos temas

relacionados com a História e a Filosofia. Identificou, por exemplo, o surgimento da

psicologia entre os filósofos da Grécia antiga, nesse sentido, divergindo da consideração

comum entre os historiadores de que a psicologia como ciência só teria surgido na

Alemanha, no século XIX, com base nos estudos de Wilhelm Wundt (1832-1920). O

intelectual divergiu dessa concepção, mostrando inclusive, a presença da psicologia na

Idade Média (SANTOS, 1965, p.57). Esse exercício de anacronismo mostrou as

nuances do discurso pedagógico de Theobaldo Miranda Santos. Outro aspecto relevante

é o surgimento da criança como sujeito no sentido psicológico no campo da educação.

A criança apareceu como um sujeito psicológico com implicações diretas sobre a prática

pedagógica. Nesse sentido, as ideias pedagógicas de Theobaldo participaram do ideal de

renovação educacional do movimento pela Escola Nova.

A Organização do Manual Didático

O manual didático integra um conjunto de 274 páginas, divididas em 10

capítulos. A primeira edição do livro remonta ao início da década de 1950. No ano de

1951, o manual já se encontrava na sua segunda edição, chegando à quinta edição em

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1957. As tiragens dos livros didáticos de Theobaldo Miranda Santos são realmente

surpreendentes. O livro foi publicado como o volume 16 da coleção Curso de

Psicologia e Pedagogia, da Companhia Editora Nacional. A referida coleção foi

destinada exclusivamente às publicações de Theobaldo. Durante esse processo de

sucessivas edições, o manual não passou por alterações significativas no seu conteúdo.

Apenas mudanças na forma e não no conteúdo, como a inserção de fotografias e

gravuras no corpo do texto e mudanças na capa e contracapa. Apresentaremos a

organização do manual quanto à disposição dos capítulos.

Capítulo Conteúdo

Capítulo I: Psicologia da Criança I. Evolução histórica. A) Período

filosófico. B) Período descritivo. C)

Período experimental.

II. Concepção da infância. A) A

Concepção otimista. B) A Concepção

pessimista. C) A Concepção realista.

IIII. A criança e o adulto. A) A criança

como miniatura do adulto. B) Autonomia

da personalidade infantil.

IV. Problemas e exercícios

V. Referências bibliográficas.

Capítulo II: Métodos e Técnicas I. Caracteres gerais. A) O problema do

método. B) Classificação dos métodos.

II. Aplicação dos métodos.

A) Observação. B) Experimentação.

III. Problemas e exercícios.

IV. Observações e experiências. A) A

Ordenação dos métodos da psicologia da

criança. B) Métodos de laboratório. C)

Classificação geral dos testes.

V. Referências bibliográficas.

Capítulo III: Desenvolvimento Pré-Natal I. Caracteres gerais. A) O período pré-

natal. B) A vida intrauterina.

II. Desenvolvimento fetal. A)

Desenvolvimento sensorial. B)

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Desenvolvimento motor.

III. Problemas e exercícios.

IV. Observações e experiências. Variação

das proporções do corpo humano durante

a vida fetal.

V. Referências bibliográficas.

Capítulo IV: Desenvolvimento do Recém-

Nascido

I. Caracteres gerais. A) Situação vital do

recém-nascido. B) Trauma do nascimento.

II. Vida psíquica do recém-nascido. A)

Sistema nervoso do recém-nascido. B)

Sensações do recém-nascido. C)

Movimentos do recém-nascido. D)

Estados afetivos do recém-nascido.

III. Problemas e exercícios.

IV. Observações experiências. A)

Métodos de estudo do recém-nascido. B)

Concepções atuais do recém-nascido.

V. Referências bibliográficas.

Capítulo V: O Crescimento Físico I. Caracteres gerais. A) Natureza do

crescimento.B) Ritmo do crescimento. C)

Fatores do crescimento.

II. Estádios evolutivos. A) Fases do

crescimento.B) Normais pedagógicas.

III. Problemas e exercícios.

IV. Observações e experiências. Variações

das proporções do corpo humano a partir

do nascimento.

V. Referências bibliográficas.

Capítulo VI: O Desenvolvimento Mental I. Caracteres gerais. A) Natureza do

desenvolvimento. B) Teorias do primado

dos fatores internos. C) Teorias do

primado dos fatores externos. D) Teorias

da interação dos fatores.

II. Estádios evolutivos. A) Fases do

desenvolvimento mental. B) Normas

pedagógicas.

III. Problemas e exercícios.

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IV. Observações e experiências. Variações

das proporções do corpo humano a partir

do nascimento.

V. Referências bibliográficas.

Capítulo VII: A Primeira Infância I. Caracteres gerais. A) A primeira

infância. B) Evolução dos interesses.

II. Organização sensório-motora. A) As

percepções. B) Os movimentos. C)

Linguagem.

III. Vida afetiva. A) As tendências. B) As

emoções.

IV. Problemas e exercícios.

V. Observações e experiências. A) As

fases do desenvolvimento motor da

criança. B) Avaliação do desenvolvimento

mental da primeira infância. 1. Testes de

Izard-Simon. 2.Testes de Kuhlmann.

VI. Referências.

Capítulo VIII: A Segunda Infância I. Caracteres gerais. A) A segunda

infância. B) Evolução dos interesses.

II. Organização da atividade objetiva. A)

A curiosidade. B) A imitação. C) As

atividades espontâneas.

1. O jogo. 2. O desenho. D) As funções de

aquisição. E) A atenção.

F) A memória. G) A associação.

III. Problemas e exercícios.

IV. Observações. A) Métodos de Estudo

do desenho infantil. B) Exame

experimental de atenção. C) Exame

experimental da memória. D) Exame

experimental da associação.

V. Referências bibliográficas.

Capítulo IX: A Terceira Infância I. Caracteres gerais. A) A terceira

infância. B) Evolução dos interesses.

II. Organização da atividade intelectual.

A) Formação do pensamento. B) A

abstração e a generalização. C) As noções

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abstratas. D) Do juízo e do raciocínio. E)

Evolução do pensamento infantil. 1. O

pensamento artístico. 2. O pensamento

pré-lógico. 3. O pensamento lógico. F) A

imaginação e a invenção. G) A

sugestibilidade e a mentira. H) A criança e

o mundo. I) A criança e o sonho. J) A

criança e os contos de fadas. L) A criança

e a sociedade.

III. Problemas e exercícios.

IV. Observações e experiências. Exame

experimental da imaginação infantil. 1.

Teste de Bine-Simon. 2. Teste de

Ebbinghaus. 3. Teste de Whippie.

V. Referências bibliográficas.

Capítulo X: Adolescência I. Caracteres gerais. A) A adolescência. B)

Evolução dos interesses.

II. Organização da personalidade. A)

Estrutura da personalidade. B)

Personalidade do adolescente. C)

Fases da adolescência. D) Vida Afetiva do

adolescente.

E) Vida intelectual do adolescente.

F) Vida imaginativa do adolescente.

G) Vida sexual do adolescente.

H) Vida social do adolescente. I) Vida

moral e religiosa do adolescente.

III. Problemas e exercícios.

IV. Observações e experiências. Exame

experimental da personalidade do

adolescente. Psicodiagnóstico de

Rorschach.

V. Referências bibliográficas.

A organização do manual didático de Theobaldo Miranda Santos evoca certa

similitude com a teoria de Jean Piaget para a compreensão da criança. Piaget (1967)

dividiu o desenvolvimento infantil em quatro fases: I. O recém-nascido e o lactente; II.

A primeira infância: de dois a sete anos; III. A infância de sete a doze anos e IV. A

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adolescência. A lógica seguida por Theobaldo em seu livro aponta para aquela que foi

desenvolvida por Piaget. O pensador suíço foi citado pelo autor na obra (SANTOS,

1951, p. 23). No entanto, essa não é a referência fundamental do livro, outros autores

também são manipulados pelo intelectual. O aspecto didático está muito presente no

manual de ensino. Há em todos os capítulos sugestões de exercícios, experiências, testes

e referências bibliográficas destinadas aos alunos.

Para Theobaldo (1951), a infância estava dividida em três fases: a primeira

infância, que compreenderia a organização sensório-motora da criança; a segunda

infância, momento das operações objetivas; a terceira infância seria o período do

desenvolvimento intelectual. Na sequência, viria a adolescência que levaria a termo a

infância. Não há originalidade em suas ideias quanto às fases do desenvolvimento da

criança. O intelectual parece recolher o consenso entre os psicólogos que apontam para

as diferentes fases da infância. Desse modo, fica evidente como a psicologia alcançou

um status importante no campo da educação, segundo o pensamento de Theobaldo

Miranda Santos.

As Noções de Psicologia e de Infância

A respeito das noções de psicologia e de infância, encontramos nas obras Noções

de Psicologia da Criança, Noções de Psicologia Educacional e Manual de Psicologia,

fontes privilegiadas para a abordagem do tema no pensamento de Theobaldo Miranda

Santos. Cabe pontuar que o Manual de Psicologia fez parte da coleção Curso de

Filosofia e Ciências, diferindo nesse sentido, quanto ao seu projeto editorial, da coleção

Curso de Psicologia e Pedagogia.

De acordo com a definição de Theobaldo, a psicologia compreenderia a

“totalidade da vida psíquica”. O intelectual afirmou que há diversos pontos de vista

sobre o assunto, no entanto, sua opinião estaria em considerar a psicologia pela

perspectiva da totalidade da vida psíquica. Desse modo, ela viria a se ocupar da

“consciência”, que seria o “foco de irradiação e de convergência da vida psíquica”, do

“inconsciente e subconsciente”, que formariam “infraestruturas psíquicas em

permanente interação com a consciência”, dos “gestos, atitudes e linguagem”, que

tratariam das “diversas formas de conduta” e por fim, dos “produtos objetivos da vida

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psíquica”, como as “realizações concretas da consciência”. Theobaldo insistiu na ideia

de que a psicologia é uma ciência. Primeiro definiu-a como “ciência da conduta ou do

comportamento exterior e interior” e depois como uma “ciência descritiva”. Em última

análise, definiu “a psicologia como a ciência da vida psíquica, esta considerada em sua

realidade total”. O objeto da psicologia seria ocupar-se de “descrever, explicar e

compreender os fenômenos psíquicos, quer na sua atividade interna, quer nas suas

manifestações externas e realizações concretas” (SANTOS, 1965, p. 20-21).

Do ponto de vista histórico, a psicologia da criança foi divida em três períodos

de desenvolvimento: período filosófico, período descritivo e período experimental. O

período filosófico foi estabelecido porque de acordo com Theobaldo, “os filósofos

foram os primeiros a se interessar pelo estudo da psicologia da criança”. Os filósofos

procuraram estudar a “alma da criança”, para saber se as ideias eram inatas ou

adquiridas na interação com o mundo. Entre os filósofos citados por Theobaldo estão

Locke, Vives, Montainge e Comênio. Esses pensadores estudaram a “vida espiritual da

criança”. Há também menção ao nome de Fénelon. Um destaque especial foi oferecido

ao pensamento de Rousseau. Entre as obras importantes citadas por Theobaldo estão:

“Pensamentos sobre a Educação”, de Locke, “Tratado sobre a Educação dos Jovens”, de

Fénelon e o “Emílio”, de Rousseau. Na visão do intelectual, essas seriam obras capitais

para a psicologia da criança no período filosófico (SANTOS, 1951, p. 13-14).

Para Theobaldo (1951, p.14-15), seria preciso distinguir os enfoques literários e

filosóficos, da elaboração científica que foi realizada por Piaget. A epistemologia

genética de Piaget teria dado cientificidade à psicologia da criança, de acordo com o

autor. O período descritivo foi iniciado por Pestalozzi e remonta a 1770, quando ele

iniciou seu diário com base na observação do comportamento de seu filho. Esse período

se ocupou da “evolução psíquica da criança”. Theobaldo citou a obra de Darwin,

“Biographical Sketch of an Infant” (Esboço biográfico de um bebê). Entre as muitas

obras e autores mencionados pelo intelectual, encontramos nesse período a “elaboração

da ciência da criança”.

A respeito do período experimental, sustentou que “com o interesse crescente

[da psicologia] pelos problemas educacionais, começou a sentir-se a necessidade de se

penetrar mais profundamente nas questões relacionadas com a natureza psíquica da

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infância”. Esse seria o período dos testes psicológicos relacionados com os estudos

sobre a criança. Os testes começaram a surgir, segundo Theobaldo, em 1890, nos

Estados Unidos, com o psicólogo Terman. Esse movimento de testes teria contribuído

para o estudo da “personalidade infantil”. Assim, a psicologia infantil teria ganhado

“foros de ciência autônoma”. Entre os autores citados estão Vermeylen, Decroly,

Descoeudres, Claparède, Thorndyke, Koffka, Bühler, Piaget e muitos outros (SANTOS,

1951, p. 16).

Como demonstra a imagem abaixo, Theobaldo Miranda Santos utilizou-se dos

estudos da epistemologia genética de Jean Piaget para investigar a formação da criança

na vida intrauterina. Procurou compreender o desenvolvimento normal do “feto”, desde

a sua concepção. Seguiu, dessa forma, uma perspectiva marcadamente biológica

próxima do evolucionismo.

Figura 1: Variação das proporções do corpo humano durante a vida fetal.

Fonte: SANTOS (1951, p.45).

A psicologia da criança, de acordo com o pensamento de Theobaldo expresso no

manual didático, reforçou os papéis sociais ligados às representações de sexo e de

gênero. Por exemplo, quando tratou da importância dos jogos no desenvolvimento

infantil, o autor ressaltou a que a boneca seria um brinquedo muito importante para a

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criança, uma vez que assim ela já começaria a experimentar as suas responsabilidades

da vida de adulto. No caso, ficou evidente a afirmação do papel social da mulher como

mãe e esposa. A mulher deveria ser educada para assumir esses mandatos sócio-

simbólicos: ser esposa e mãe.

A boneca é o mais importante dos brinquedos infantis. Nenhum

brinquedo exerce maior influência sobre a alma da criança. Não há

menina que não ame sua boneca. Brincando com a boneca, as

crianças, dentro do seu mundo lúdico e mágico, preparam-se, sem o

saber, para os futuros encargos da maternidade, derivam para a ficção

as atividades que não podem exercer na realidade e têm a ilusão de um

poder e de um domínio que compensa o seu sentimento de

inferioridade (SANTOS, 1951, p. 181).

Figura 2: Meninas brincam com suas bonecas.

Fonte: SANTOS (1951, p.181).

A afirmação de Theobaldo Miranda Santos dá margem para compreendermos a

educação da mulher como forma de preparação para a maternidade. Pensemos na

boneca como símbolo da educação feminina para a maternidade. As diferenças entre os

brinquedos das meninas e dos meninos demonstram a afirmação das representações

sociais construídas na época em torno das compreensões de feminilidade e masculidade.

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Se considerarmos as imagens que apareceram em seus manuais didáticos como

discursos, podemos compreender a afirmação de uma representação social sobre aluno,

como ficou evidente na figura a seguir. Theobaldo procurou demonstrar as

características do bom aluno.

Figura 3: O “bom aluno” tem atenção voluntária.

Fonte: SANTOS (1951, p. 233).

A atenção voluntária, como a deste escolar, só aparece na terceira

infância por influência da aprendizagem. Nesta idade não são apenas os

interesses imediatos que solicitam a atenção da criança. Vários

estímulos de ordem social e moral se tornam agora móveis da atenção:

noção do dever, desejo de agradar aos pais ou aos professores, aspiração

de tirar boas notas ou de aparecer como bom aluno, etc. (SANTOS,

1951, p. 233).

O intelectual apontou para duas concepções antagônicas de infância: a

concepção otimista e a concepção pessimista. Ambas as visões ao tratarem da “natureza

espiritual da criança” possuem análises divergentes. A visão otimista seria representada

por Rousseau e acreditaria na “bondade inata da criança”. Essa ideia teria sido

disseminada nos “sistemas pedagógicos” mais generalizados. No entanto, para

Theobaldo, “a concepção otimista de Rousseau colide a todo o momento com a

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realidade e é desmentida pela mais elementar experiência”. Sustentou que “é falso que

a natureza humana seja essencialmente boa”. Mais adiante afirmou que a doutrina

católica do “pecado original” demonstraria que o homem não é bom por natureza. A

concepção pessimista estaria apoiada na “antropologia dos calvinistas e dos

jansenistas”. Segundo essa compreensão, “a criança é essencialmente má e somente

tomará hábito se for educada por métodos severos”. Trata-se de uma “pedagogia trágica

e angustiada” e que teria apoio na obra de Nietzsche, com “um pessimismo

antropológico doloroso e sombrio”. Para Theobaldo, a concepção realista seria a mais

adequada: “considera a criança como um ser onde se entrechocam tendências boas e

tendências más”. Entendeu que “segundo a concepção cristã, o pecado original não

tornou a natureza humana substancialmente corrompida” (SANTOS, 1951, p. 17-19).

Figura 4: Variação das proporções do corpo humano após o nascimento.

Fonte: SANTOS (1951, p. 72).

Em uma perspectiva linear e evolucionista, Theobaldo Miranda mostrou o

crescimento “normal” e “sadio” do corpo humano. A preocupação com as “proporções”

exatas do corpo revelam uma preocupação minuciosa com o “desenvolvimento” do

corpo humano.

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Observações Críticas

Autores como Santos (1951, 1958 e 1965), Fontoura (1973), Castiello (1958),

Foulquié (1952), entre outros, demonstram a formação de um discurso pedagógico

católico que se utilizou intensamente das contribuições da psicologia no campo da

educação. A pedagogia “católica” desses intelectuais incorporou consigo os

conhecimentos provenientes de variadas correntes da psicologia e da psicanálise. Desde

o seu artigo publicado na Revista A Ordem, Santos (1938) já demonstrava interesse

pelos estudos psicológicos e psicanalíticos. Suas obras são polissêmicas e suscitam o

diálogo com inúmeros estudiosos do tema. O destaque está na sua interloução com

autores estrangeiros, sobretudo europeus e norte-americanos. Isso não significa afirmar

que autores brasileiros e latino-americanos foram ignorados em suas obras.

Foucault (2011, p.198-199) tratou das diferenças entre os termos criança e

infância. Para o pensador francês, o “problema das crianças (quer dizer de seu

nascimento e da relação natalidade – mortalidade) se acrescenta o da infância (isto é, da

sobrevivência até a idade adulta, das condições físicas e econômicas desta

sobrevivência)”. Ainda para Foucault, a infância seria um período de

“desenvolvimento” da criança. Desse modo, a noção de criança estaria ligada ao aspecto

quantitativo, ao passo que a infância, por sua vez, seria a dimensão qualitativa, ou seja,

a criança em seu processo de desenvolvimento humano. Segundo o filósofo, surgem

responsabilidades no “cuidado” com as crianças, “obrigações de ordem física (cuidados,

contatos, higiene, limpeza, proximidade atenta); amamentação das crianças pelas mães;

preocupação com o vestuário sadio; exercícios físicos para assegurar o bom

desenvolvimento do organismo: corpo a corpo permanente entre adultos e crianças”. A

criança precisaria ser elevada ao “estado de maturidade”. Lembra Foucault que “desde o

fim do século XVIII, o corpo sadio, limpo, válido, o espaço purificado, límpido,

arejado, a distribuição medicamente perfeita dos indivíduos, dos lugares, dos leitos, dos

utensílios, o jogo do ‘cuidadoso’ e do ‘cuidado’, constituem algumas leis morais

essenciais da família”. Essa seria a instância da família medicalizada para cuidar da

criança.

Os estudos de Freud (1996, p. 71) sobre a infância evidenciam a definição dos

seguintes períodos: “a sedução, aos três anos e um quarto”, logo após viria o “período

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da alteração em seu caráter” [da criança], até o sonho de ansiedade (quatro anos de

idade) “e o terceiro seria o período da neurose objetiva, baseada no ‘medo de animais’ e

na ‘iniciação religiosa’, época posterior aos dez anos”, por exemplo. Temos, portanto,

os períodos da sedução, da alteração do caráter e da neurose objetiva. Esses seriam os

correspondentes das fases oral, anal e fálica. Na medida em que, a criança como sujeito

psicológico, foi objeto de testes, mensurações e também deveria receber a iniciação

religiosa, de acordo com Theobaldo Miranda Santos, podemos sustentar que seu manual

didático serviu para produzir o neurótico. O inculcar moral e religioso da criança pelos

educadores, pais e agentes religiosos leva inevitavelmente à neurose. O livro Noções de

Psicologia da Criança ao defender a sedução da criança, pelo brincar e os jogos, a

alteração do caráter por meio dos testes psicológicos e da educação, e a iniciação

religiosa e a formação moral encaixa-se na análise freudiana. O manual didático de

Theobaldo Miranda Santos, do ponto vista freudiano, seria um instrumento da produção

de neuróticos.

Considerações Finais

O manual didático de Theobaldo Miranda Santos mostrou a emergência da

criança como sujeito psicológico no âmbito da educação brasileira. Desse modo,

participou do projeto educacional do Movimento pela Escola Nova. Ao defender a

psicologia da criança como um elemento importante da educação, Theobaldo integrou-

se a um ideário pedagógico renovador. O diálogo do autor com as mais variadas

vertentes da psicologia educacional é marcante ao longo de toda a obra. Amplo destaque

foi oferecido ao pensamento de Piaget, que perpassa todo o livro. Freud também foi

citado. Há uma conciliação das contribuições da psicologia da criança com a renovação

do pensamento católico. A posição de Theobaldo como um intelectual católico

incorporou elementos significativos da psicologia, que foi defendida por ele como

ciência da vida psíquica.

Com base na análise de Foucault, podemos compreender esse manual didático,

como um jogo do “cuidadoso” e do “cuidado” em relação à criança. A preocupação

em garantir o “desenvolvimento” da criança, isto é, a sua infância, apareceu munida de

práticas de saúde e de moralização. A criança precisaria receber “cuidados”,

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medicamentos, ser acompanhada de perto pelo adulto (família) e moralizada, para que a

sua infância seja garantida. O jogo contemplaria o “cuidadoso”, que seria atribuição do

adulto (professores, pais e familiares) e o “cuidado”, que constitui as práticas de saúde,

de escolarização e de moralização das crianças. Já do ponto de vista da psicanálise de

Freud, a psicologia da criança, tal como foi apresentada no livro de Theobaldo Miranda

Santos, pode ser entendida com um mecanismo da produção do indivíduo neurótico. Por

inculcar a religião e a moral na criança, através da sedução e da alteração do caráter, a

educação desenvolvida nesses pressupostos, levaria de modo categórico ao

aparecimento do neurótico.

REFERÊNCIAS

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1958.

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FOULQUIÉ, Paul. As Escolas Novas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952.

FREUD, Sigmund. Uma Neurose Infantil e outros trabalhos (1917-1918). Rio de

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