notas do caderno amarelo a paixão do rascunho Silvio Ferraz

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notas do caderno amarelo:

a paixão do rascunho

silvio ferraz

s.paulo - 2007

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notas do caderno amarelo:

a paixão do rascunho

silvio ferraz

Tese apresentada à Banca Examinadorado Instituto de Artes da UniversidadeEstadual de Campinas como exigênciaparcial para obtenção de título de LivreDocente na área de Criação Musical.(composição)

IA-UNICAMP

s.paulo - 2007

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 para annita

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178. a eficáciado do incompleto. – assim como as figuras em relevo

fazem muito efeito sobre a imaginação por estarem como que a

ponto de sair da parede e subitamente se deterem, inibidas por algo:

assim também a apresentação incompleta, como um relevo, de um

pensamento, de toda uma filosofia, é às vezes mais eficaz que a

apresentação exaustiva: deixa-se mais a fazer para quem observa, ele

é incitado a continuar elaborando o que lhe aparece tão fortemente

lavrado em luz e sombra, a pensá-lo até o fim e superar ele mesmo o

obstáculo que até então mpediu o despreendimento completo.”

nietzsche. humano, demasiado humano

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sumário

primeiro livro: notas do caderno amarelo [1]

fórmula do desenho e das linhas [8]fórmula da imagem de som e do gesto deformado [25]fórmula da incrustacão [43]fórmula da reescritura [69]

segundo livro: [89]páginas sobre tempo e espaço na composição musical [89]

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notas do caderno amarelo: a paixão do rascunho

silvio ferraz, 2007

Escrevo este pequeno livro (de fato, dois pequenos livros) em

primeira pessoa. Escrevo assim por se tratar de um livro em que

simplesmente me sinto em primeira pessoa. Os dois livros expõemalgumas idéias e imagens que atravessam meu processo de criação

musical e não mais do que isto. Claro que este trabalho de criação se

se cruza com a época em que vivo, com idéias diversas, pessoas

diversas, músicas diversas, porém não esconde que todas estas coisas

são vividas por uma pessoa e que tais cruzamentos têm suas

implicações pessoais, quase que privadas, não fossem elas serem

comuns a muitas pessoas que vivem a relação da vida com o

processo de criação artística.

Recentemente, lendo um pequeno relato de um artista-estudante-de-

arte, notei que existia ali uma escrita totalmente distinta da escrita

dos trabalhos acadêmicos sobre a arte ou mesmo dos escritos

acadêmicos de artistas. Aquela forma de escrever não era diferente,

no entanto, daquela dos diários e notas de aulas de Paul Klee; ela

ressoava também na maneira de Giacometti referir-se a seu trabalho,

nas cartas de Cézanne, nas observações musicais de Debussy em

 Msieur. Croche , em Marguerite Duras pensando sobre sua escrita, ou

ainda, na forma alucinada dos escritos do compositor Roberto

Victório e no cruzamento de rascunho e texto poético das descrições

musicais de Georges Aperghis. Desta leitura nasceu uma

preocupação: como não matar mais a fabulação da criação musical ao

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escrever sobre música? Como evitar a mão que constantemente corta

as narrativas em primeira pessoa, aquela que impõe legendas e

normas explicativas, a mão que nos obriga à ordem cronológica do

texto? Como abdicar deste rigor para-científico que acabou

adentrando o discurso sobre a arte? Mas também, como evitar o

discurso fanfarrão, que mistura falsa poesia com arte, que toma um

termo ou outro da filosofia, meramente por ser termo da moda, e que

gera mais e mais prospectos de exposição e notas de concerto?

De fato, quando escrevemos uma tese, quando escrevemos na

academia, existe sempre o fantasma do acadêmico que julgará cada

linha, cada parágrafo, cada citação. Aquele que irá revolver cada

data, cada item em itálico. Difícil evitar esta escrita reativa, escrita

que se defende a cada linha dos golpes que poderiam ser

desfechados por uma banca. Se é difícil escrever um texto sob a

sombra destes fantasmas, imaginem escrever uma música acadêmica.

Por isto fujo aqui da forma acadêmica de escrita, já que estarei

escrevendo sobre “uma” música e não sobre “a” música no sentidogenérico; sobre uma música naquele sentido singular que uma

música é; uma música e uma escuta. Mas manterei as citações, as

referências bibliográficas, no seu sentido prático e de comunhão.

Cada texto citado, cada autor é assim um lugar por onde passou a

imagem de pensamento que exponho nos livros. Cada citação não

será assim apenas referência, nem resultado de acúmulo de pesquisa,

mas sim, a expressão de marcas de caminhos que se cruzaram. Não

esquecendo que cada livro referido é sempre o construir de uma

comunidade e um convite ao leitor para que expanda sua leitura

além do livro que tem às mãos: “olhe, dê uma lida nisso também!”.

Trazendo a leitura para este campo específico do singular, de uma

música singular, de um sujeito singular, o ponto de partida destes

livros serão os desenhos que rabisco quando componho música –

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geralmente rascunhos, desenhos feitos à mão. Com eles, tentarei falar

desta música. Por tal razão, as partituras, os desenhos, a própria

forma do texto, tudo isto servirá aqui como modo de abrir o espaço

para cruzamentos livres com outras linhas de leitura e manifestações

daquilo que chamamos de musical. Como em uma partitura

medieval cheia de suas iluminuras ou no Codex Chantilly do

renascimento,1 ou nas partituras desenhadas para serem não só

cantadas, mas vistas, como o fizeram John Cage, Earl Brown, Anestis

Logothetis.

* * *

De modo geral, não gosto de falar muito de como escrevo música e

as coisas que escrevo sobre música são sempre mais conceituais do

que técnicas. Talvez porque não acredite que tenha muito a

compartilhar em termos de técnica composicional. As técnicas que

todos compositores utilizam são não muito mais do que aquelas

mesmas empregadas por qualquer estudante de composição

antenado às mais recentes invenções da música atual. Faço tal

afirmação porque as técnicas composicionais, todas as técnicas, no

fundo, são sempre comuns. São sempre as técnicas de uma época; e é

neste sentido que talvez o mais interessante a ser compartilhado aqui

sejam aquelas maneiras com as quais tentei resolver certos

problemas composicionais, mais do que falar de novas técnicas que

pude engendrar e das quais me arrogaria ser o dono. Espero assim

dividir com o leitor o que vou chamar de “algumas fórmulascomposicionais”: maneiras pelas quais nascem os problemas

composicionais nos quais as técnicas que utilizo se inserem.

 1 O codex Chantilly, compilado no final do século XII, reúne partituras manuscritasde polifonistas franceses da intitulada Ars Subtilior. Um exemplo de prática destescompositores é a partitura de Bello, Bonnes, Sage  de Baude Cordier, que édesenhada no formato de um coração.

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A noção de fórmula me veio das leituras que fiz da filosofia

contemporânea francesa, na qual é comum isto que poderia chamar

de roubo conceitual. O filósofo francês Gilles Deleuze fala da fórmula

como modo de apropriação de uma fala2 que parece segura e que

portanto fornece uma ou outra garantia de que no final do túnel a luz

será visível. A fórmula se contrapõe à certeza do método e do

esquema. Uma fórmula é assim uma ressonância de um modo de

pensamento, de uma cadeia de conceitos, em um lugar distinto

daquele em que nasceu. Por isto não tenho muito a falar sobre

técnicas a não ser narrar os roubos técnicos e o modo de fazer taistécnicas viajarem por músicas que elas desconhecem totalmente: o

serialismo passeando pelos sons de carro de boi, a música acusmática

viajando com as linhas de uma pequena cidade mineira, o

espectralismo em meio às rabecas e cantadores sertanejos.

São seis as principais fórmulas que tratarei aqui: a do desenho, a do

som, a do gesto instrumental, a da incrustação, reescritura e fórmula

do tempo. Não tratarei de todas as fórmulas, algumas delas foramexpostas em outros trabalhos dos quais este é uma espécie de

continuação. É assim que uma fórmula como a do ritornelo foi

trabalhada em meu segundo livro (Livro das sonoridades), fórmula que

tomei emprestada de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Antes disto,

havia me dedicado ao estudo do tempo na análise de obras de

Olivier Messiaen e Brian Ferneyhough (em Música e repetição: aspectos

da diferença música contemporânea). Aqui tratarei apenas destas outras

seis fórmulas: desenho, som, gesto, incrustação, reescritura e tempo.

Mantenho dos outros dois livros um pouco da temática e, sobretudo

do segundo livro, a forma aforismática de dispor as idéias.

 2 Sobre a noção de fórmula em Deleuze ver: Martin, Jean-Clet (1994). Variations, la

 philosophie de Gilles Deleuze. Paris: Payot, 1994, p. 76.

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Grande parte das idéias musicais que tenho nasce de desenhos. Não

é preciso que estes desenhos sejam feitos em algum pedaço de papel

e, na maior parte das vezes, estes desenhos podem ser imaginários;

outras vezes, o desenho se esconde por detrás de uma partitura

grosseira, sem detalhes. Costumo encontrar idéias musicais quando

desenho alguma coisa, em um cruzamento do som com a imagem.

Os desenhos quase sempre se relacionam com alguma sonoridade,

lugar privilegiado de diálogo com a música (a sonoridade das

rabecas, o som dos carros de bois, a sonoridade das grades de metal

raspadas, as sonoridades diversas de compositores do século XX).Não muito longe das sonoridades estão os gestos instrumentais com

os quais desenhos e sonoridades dialogam: os arpejos e passagens

graves de um clarinete, os jogos de dedilhado e manejo do piano, as

disposições espaciais dos instrumentos de percussão contemporânea

no palco.

No mecanismo dos pequenos roubos, algumas das fórmulas também

referem autores que constituem a família de referências deste meutrabalho atual. O desenho está ligado a Paul Klee e Kandinsky, as

sonoridades aos compositores da música espectral francesa,

sobretudo Gerard Grisey, a fórmula do tempo liga-se às noções de

tempo e espaço estriado e liso, de Pierre Boulez,3 das noções de

espaço hors-temps, temporel e en-temps , de Iannis Xenakis,4 mas são,

sobretudo as proposições sobre o tempo intensivo desenvolvidas por

Gilles Deleuze em sua filosofia que atravessam com mais força a

fórmula de tempo que aqui se propõe. Diria que as quatro primeiras

fórmulas (desenho, sonoridade, gesto, incrustação) articulam-se

 basicamente com a sexta: a fórmula do tempo.

 3 Boulez, Pierre. Penser la musique aujourd’hui. Paris: Gallimard. 1963. pp. 110 seq.4 Xenakis, Iannis. “Sur le temps”. In:  Musique et originalité  . Paris: Séguier, 1996.pp.40 seq.

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O tempo tem um lugar privilegiado na música, já que a escuta da

música só se concebe no tempo. Messiaen chega mesmo a dizer que

ela é a arte do tempo, arte de desenhar o tempo, idéia que Deleuze

retoma ao dizer que Messiaen torna sonoro o tempo.5 O que realço

do tempo aqui é que não tentarei pensá-lo como cronológico, como

tempo em linha reta medida em partes: tempo extensivo. Nem

tampouco como tempo da eternidade, não mensurável por ser mais

longo do que a maior das medidas humanas – Messiaen trata desta

questão em Temps et éternité .6 Mas tentarei me ater ao tempo como

tempo intensivo; o tempo visto como uma sobreposição deslizantedos distintos tempos de escuta, tempos em que o som é imaginado –

imaginar aqui no sentido mesmo de inventar a imagem. Fugirei

assim das figuras de tempo científicas, já que estou falando de

estratégias de composição musical e não de uma resposta final para o

problema do tempo. Afinal de contas, Messiaen encarregou-se de

realizar o fim do tempo; fim do tempo medido e extensivo.

Mesclando músicas que escrevi nos últimos anos, análises de obrasdiversas, referências visuais, remissões constantes à filosofia da

diferença e da imanência (sobretudo Gilles Deleuze), pretendo aqui

apenas trazer à discussão um modo de pensar a música que seja

próprio da composição: lugar específico de se interligar formas de

pensamento e torná-las sonoras.

A primeira idéia era escrever um pequeno livro, no entanto, não

consegui restringir-me a poucas páginas. Ficaram assim doispequenos livros: o primeiro sobre as cinco primeiras fórmulas que

composicionais que citei antes, apresentadas junto a diversas

composições que realizei nos últimos anos; o segundo, sobre a

 5 Deleuze, Gilles. “Boulez, Proust et le temps”. In: Deux régimes de fous . Paris:Minuit, 2003.6 In: Messiaen, Olivier. Traité de rythme, de couleur et d'ornithologie . Paris: Leduc,1949-92.

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fórmula do tempo intensivo. Tanto um quanto outro, como já disse,

vêm atravessados de desenhos. Não são ícones ilustrativos, mas sim,

parte integrante do texto escrito numa linguagem não verbal. Ao

menos é assim que imaginava serem lidos. E, por fim, talvez quando

o leitor chegar ao final do segundo livro lhe seja interessante retomar

o primeiro. Alguma coisa do segundo transpassa o primeiro.

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primeiro livro: fórmula do desenho e das linhas

1.

Gosto muito de desenhos e sem dúvida faço meus rascunhos como

se fossem pequenos desenhos – rabiscos toscos, feitos

apressadamente, sem acabamento, a lápis mesmo, com pequenos

 borrões, como se fossem uma escritura antiga abandonada na chuva.

São eles que vou usar aqui como exemplos. O que significa a fórmulado desenho para a música? No desenho posso pensar a música um

pouco distante da “grande” música; posso pensar a música sem

pensar muito em tudo o que herdamos da tradição musical. E o

desenho para mim tem muito a ver com a simplicidade da linha.

Impressionaram-me muito, quando estudante, os cadernos e

anotações de Paul Klee com suas aulas sobre linhas, estruturas e

ritmo. As aulas de Klee estão em basicamente em três livros: La

 pensée créatrice , Histoire naturelle infinie e nos Pedagogical sketchbooks ,

este último com aulas compiladas e diagramadas por Lazlo Moholy-

Nagy.7 Nestes livros aparecem páginas em que Paul Klee faz das

linhas o ponto de apoio de sua pedagogia e de sua idéia de imagem

visual. Em alguns momentos desenha séries de linhas que se

parecem a partituras cheias de senóides que se transformam, como

em Movimento nas eclusas. Este desenho é quase uma partitura, com

seqüências, cortes, só não estando definidas as sonoridades. Umapartitura do movimento, de um gesto que pode ser sonoro,

instrumental e, por conseguinte, musical. Sem dúvida se conjugam

com tais desenhos de Klee os desenhos preliminares que Xenakis

 7 Klee, Paul.La Pensée créatrice. Trad. de Sylvie Girard. Paris: Dessain et Tolra, 1977;Histoire naturelle infinie.  Trad. de Sylvie Girard. Paris: Dessain et Tolral, 1970;Pedagogical Sketchbook. London: Faber and Faber, 1953.

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realiza para obras como  Metastasis , Polytope , e a idéia de que tais

linhas estariam interligadas a gestos sonoros.8

Paul Klee - página com linhas em Pedagogical Sketchbooks: linha simples,contraponto de linhas e contraponto com sombreamentos.

Klee – Movimento nas eclusas.

 8 Ver entrevista com Xenakis em Boseur, Jean-Yves. Le sonore et le visuel . Paris:Editions Dit Voir, 1993.

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2.

Como disse, as linhas de Klee parecem-se muito com música

(falamos de linha melódica constantemente e não nos damos mais

conta do cruzamento de olho e ouvido implicado nesta imagem). Em

seu texto La pensée créatrice , Paul Klee mostra a linha nascendo do

movimento de um ponto. Para transcrever tal idéia à música, apenas

acrescentei outra idéia, esta de Kandinsky, de que o ponto é uma

força que segue livre, mas sofrendo interferência de outras forças que

não vemos: forças externas que deformam a linha. Estes elementos

externos que ganham forma nas curvaturas, nos cortes, nastransições, nas modulações, conduções, mudanças de densidade, e

assim vai. Como no desenho da linha que é o tempo toda curvada

como se fosse curvada por uma força externa. Como a roupa que se

curva com a força do vento ou ainda a força da gravidade, como

desenha Klee em um exemplo gráfico do crescimento de uma folha –

um contraponto das forças de crescimento com a força da gravidade.

É como o vento que se torna sensível ao ouvido por assobiar numa

 janela.

Linhas alteradas por forças externas.

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Klee – crescimento radial de uma folha.

3.

A fórmula do desenho tem seu lado relevante no momento em que

no desenho imperam procedimentos que não são aqueles da música

tal qual aprendida em sua história e teorias tradicionais. O desenhotraz sempre o frescor de um novo lugar de encontro no qual um

 bloco sonoro extraído de uma amostra de música africana pode

mesclar-se facilmente com um fragmento de Beethoven. Não existe

necessariamente nenhuma hierarquia musical no desenho, nenhum

sistema de alturas e durações, nenhuma forma a priori , o que permite

fluxos mais livres de imagens musicais.

4.Por tais razões diversos dos rascunhos que faço partem ou têm o

desenho como lugar de desenvolver idéias, de transformar

elementos, de pensar a seqüência de elementos etc. Nada diferente

dos rascunhos coloridos de Luigi Nono, ou da idéia do desenho

como fundamento composicional e analítico defendido por Salvatore

Sciarrino quando fala da noção de figura, a qual ele diz poder

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espelhar uma modalidade de organização próxima de nossas

faculdades perceptivas do sonoro e do musical.9 Ao falar desta fusão

imagem-escuta, é próximo pensar-se no que Alois Riegl chamou de

espaço háptico, lugar em que todas as faculdades de percepção se

mesclam, e o olho ouve tão bem, ou melhor, do que o ouvido, e o

ouvido vê tão bem, ou melhor, do que o olho.10

Rascunhos de No encalço do Boi.11

 9 Sciarrino é conhecido basicamente por uma composição que explora sonoridades

as mais diversas através do uso de técnicas instrumentais estendidas. Porémgrande parte do pensamento musical deste compositor está fundado na noção defigura, como ele mesmo relata em seu livro Le figure della musica, da Beethoven a oggi(Milão: Ricordi, 1998). Sciarrino tem em vista o que chama de uma concepçãosinestésica do material musical e sonoro.10 Em seu livro A indústria artística do império romano  (Spätrömanische Kunstindustrie),de 1901, o historiador vienense Alois Riegl formula a idéia de percepção háptica, aqual entrecruzaria a noção de espaço visual e tátil. Gilles Deleuze retoma esteconceito e o amplia, imaginando uma percepção que vai além de suas restriçõessensíveis.11 No encalço do boi  (2000), para clarinete e percussão. Estréia: Merz Musik. Colônia:2001. Clarinete: Luiz Eugênio Montanha; percussão: Carlos Tarcha.

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Rascunhos de Deserto.12

Rascunho de Arcos para Giacometti.13

 12  Deserto (1998), para conjunto instrumental. Estréia: “Festival Música Nova”.

S.Paulo: 1998. Ensemble Champs d’Action.13 Arcos para Giacometti  (2004), versão para viola e violino. Estréia: Concerto duo

Tokeshi Kubala. S.Paulo: 2004. Violino: Eliane Tokeshi; viola: Ricardo Kubala.

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5.

A imagem de desenho sobre a qual pretendo me prolongar um

pouco é então a linha. A idéia de compor com linhas é um resgate

recente que realizei de trabalhos da minha época de formação. Em

1979 escrevi Anel anemic.14 A peça é como uma pequena linha que

dura menos de um minuto.

São dois instrumentos que tocam exatamente a mesma partitura,

porém cada um deve considerar um andamento individual, distinto

do outro, de modo a provocar pequenas defasagens entre as linhas e

resultar na micropolifonia de uma mesma linha contraposta a ela

mesma.

A composição desta peça sobrepõe diversas imagens de linhas: alinha dos pontos-notas que se aproximam com a diminuição da

figura de duração; a linha do âmbito da tessitura de notas que se

amplia; a linha do espaço entre as notas ré e sol que é preenchido

passo a passo; e ainda duas outras linhas: os dois instrumentistas

 14  Anel anemic  (1978), para viola e violino. 1979. Estréia “I Encontro de JovensCompositores”. S.Paulo: 1980. Violino: Mayra Lima; viola: Perez Dvoreck.

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caminhando um em direção ao outro. A frase de Leonardo da Vinci

“le cose vedute de vno medesimo ochio paranno alcuna volta• grãde

alcuna volta• picole [H.3.85a]”, como epígrafe da partitura, sintetiza

um pouco da imagem de linhas superpostas.

6.

Levaria esta idéia do desenho um pouco além da sinestesia, mas

realmente para um espaço háptico de fusão de modos perceptivos os

mais diversos. No espaço háptico o desenho aparece não apenas

como modelo de escuta, mas como campo de pensamento de um

provável sonoro. A linha pode estar assim associada a qualquer

elemento: tessitura, sonoridade, alturas, dinâmicas, densidade,

superfícies, índice de atividade. E pode ainda associar-se a imagens

mais cotidianas. Tomo por exemplo um velho desenho do perfil da

cidade alta em Salvador com suas igrejas e campanários que foi

praticamente transposto na composição de Casa tomada:15 uma longa

linha melódica cortada por acordes, acentos, apojaturas.

 15  Casa tomada  (2003), para piano solo. Estréia: “Concerto Sesi Paulista”, S. Paulo:2004. Piano: Lidia Bazarian.

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Linhas de Casa tomada e a “linha” de Salvador com seus campanários.

7.

Circunscrito ao âmbito das fórmulas composicionais que apresento

aqui, a idéia de linha aparece em mais de uma dimensão na

composição de uma série de peças intituladas linhas: Linha torta ,

Linha de passagem e Linha solta.16 De que linhas estou falando quando

falo de tais peças? São diversas linhas, como se diversas sínteses

entre imagem visual e imagem sonora e musical se mesclassem.

8.

As dimensões de linhas que comento para Linha torta , Linha de

 passagem e Linha solta dizem respeito justamente às fórmulas que 16  Linha torta , Linha de passagem e Linha solta  (2005-2006), para violoncelo e piano.Estréia: “Circulação de música de concertos Petrobras/Funarte”, 2006. Piano: LidiaBazarian; violoncelo: Teresa Cristina Rodrigues Silva.

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referi anteriormente: o desenho, a sonoridade e uma idéia de música.

a.

A primeira é aquela idéia de linha ela mesma, da linha desenhada

por Paul Klee e da qual já falei. Klee faz a linha nascer do ponto em

movimento; tudo se inicia no ponto que, movido, torna-se linha.

Vemos o desenho de uma linha ativa que se move livremente – de

modo que esta linha é a marca do agente do movimento: o ponto.

Klee imagina também um contraponto de linhas: uma linha (ou até

mesmo mais de uma linha) não precisa vir sozinha, ela pode vir

acompanhada de outras linhas ou de uma sombra. Ela pode também

curvar-se sobre si mesma, se auto-ornamentar etc. E uma linha pode

ser ativa ou passiva, mas o ponto é sempre ativo.

Klee: linha auto-ornamentada e contraponto de duas linhas – Pedagogical

sketchbooks.

Então a linha visual, desenhada, cruza-se com a linha musical, sendo

diversos os desenhos que poderiam aludir a esta linha. Um exemplo

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de linha é o poema Uivôo  do poeta paulista Edgard Braga.17 Do

poema nasceram duas linhas contrapostas em uma pequena peça

para duas vozes: Cantilena en canto.18 Uma linha rápida e outra lenta.

E as duas se sobrepõem à linha de referência, à linha melódica de

Ondas do mar de Vigo do poeta galego Martin Codax (final do séc.

XIII). Uma linha visual, uma linha de sonoridades e uma linha

melódica. Poderia ainda falar das linhas de recordação, dos cânticos

diversos de procissão e semanas santas que atravessam este duo:

talvez um canto de Verônica a duas vozes.

Poema Uivôo de Edgard Braga.

 17 In: Braga, Edgar, Tatuagens, edição do autor, s/d.18  Cantilena em Canto  (1979). para duas vozes femininas. Estréia: “I Encontro deCompositores”, S.Paulo: 1980. Vozes: Yara Campos e Katia Guedes.

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Partitura de Cantilena en canto , realizada a partir de Uivôo.

Martin Codax, Ondas do mar de Vigo.

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 b.

A linha envolve assim não apenas a sua visualidade, mas pode ser

compreendida como linha de sonoridade; linha sonora como a linha

desenhada pelo som de um carro de boi.

Na sonoridade do carro de boi, sem descartar todas as lembranças

que ela possa trazer (roça, vida no campo, vida antiga, madeira e

ferro, bois, cheiros; as linhas de recordação), o que me interessa é sua

característica irregularmente constante, falsamente contínua, como

pode mostrar uma análise espectral de um som de carro de boi.

Digamos que é como uma “arcada incorreta”, trazendo micro-

variáveis o tempo todo: pequenos rangidos que se sobrepõem

irregularmente ao canto da roda (dada a irregularidade do giro), da

madeira, do chão e dos passos dos bois. Tal característica pode ser

resgatada composicionalmente no desenho irregular de uma linha,

ou no desenho irregular de um calçamento de pedras (imagem à

qual retornarei mais adiante), tanto quanto ser nos modos de técnica

instrumental como as alternâncias irregulares de arcada compassagens constantes tasto->ponticello ou arco leggero->écrasé  segundo

uma figuração rítmica irregular.

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Espectro de um trecho de som contínuo de carro de boi com sua sonoridadecontínua e irregular.

O compositor Rodolfo Caesar, em sua peça Tinnitus , realiza tambémuma linha de sonoridades muito próxima a esta do carro de boi.

Caesar passa uma amostra de sons cotidianos, uma paisagem sonora

urbana, por um banco de filtros que realça a irregularidade das

faixas superiores do espectro desta paisagem, desenhando assim

uma linha ofegante.19

 19 Desenvolvi análises mais detalhadas desta peça em “Duas peças de RodolfoCaesar” (artigo inédito) e em “De Tinnitus a Itinerários do Curvelo”, Anais daAnppom, 2007. O próprio compositor apresenta o procedimento composicionalempregado em Tinnitus em seu artigo “A confluência em Tinnitus” (edição digitaldo autor).

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Análise espectral de uma pequena amostra de Tinnitus e suas irregularidades.

c.

A terceira idéia de linha relaciona-se à linha harmônica, timbrística e

melódica, aqui tendo a música barroca e suas peças para violoncelo econtínuo como principal referência sonora e gestual.

As notas longas, os acordes, a forma de arcada barroca e o pouco uso

do vibrato , tornam a afinação em uma linha estável, mas de

sonoridade muitas vezes instável sem o auxílio do vibrato  que

poderia simular um som contínuo homogêneo. Desta música é

também exemplo o movimento das resoluções descendentes das

dissonâncias e os movimentos melódicos cromáticos dos lamentos:linhas descendentes. Ou ainda as linhas ascendentes arrastadas,

como a afastar-se lentamente de um eixo fixo. É interessante como

nos lamentos as cordas raspadas dos violinos, violas e violoncelos,

como tudo isto pode se encontrar com o som das rodas do carro de

 boi, sobretudo quando reforçadas por longos momentos dissonantes

como no início da Sinfonia al santo sepolcro (RV 169) de Vivaldi. A

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longa sobreposição da dissonância  fá #-sol  e o modo sem vibrato de

algumas realizações de obras do barroco enfatizam os batimentos

irregulares que facilmente são resgatáveis como princípio

composicional para uma música atual, para uma música de

sonoridades.

Esta última idéia de linhas diz respeito ao contraponto de linhas:

uma linha fixa e uma ou mais linhas que se afastam ou se

aproximam. Um pouco desta idéia estaria na música dos sécs. XVII e

XVIII. Não são necessárias exatamente duas linhas, mas uma linha

que se move e um fantasma de linha, como um centro harmônico

que permanece. Uma nota pedal fixa já faria o papel da linha parada.

Por duas vezes dediquei-me a compor passagens em que figuram

tais linhas de afastamento lento: Cortazar ou quarto com caixa vazia e

Catedral das 5:45.20 Da tradição citaria o início do Stabat Mater de

Pergolesi, a introdução da Paixão segundo S. Matheus de Bach, ou

ainda parte angustiada da “Cavatina” do Quarteto, op.130 d e

Beethoven. Não se trata aqui da idéia de contraponto, mas sobretudoda idéia de um espaço visual que se realiza no afastamento entre as

linhas, de modo que se possa sentir tal ampliação do espaço sonoro,

como num movimento de ascensão.

 20  Cortazar ou quarto com caixa vazia  (1999), para piano e live-electronics com uso eMAX/MSP. Estréia: “Festival Música Nova”, S.Paulo: 1999. Piano: Lidia Bazarian.Catedral das 5:45  (2004), para piano solo. “Concerto Sesi”, S.Paulo: 2004. Piano:Lidia Bazarian.

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Contrapontos de linhas com linhas fixas e afastamentos.

Trecho lentamente ascendente de Catedral das 5:45.

A mesma idéia, em Cortazar: a melodia progride em direção ao agudo porpequenos movimentos de vai-e-vem.

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Fórmula da imagem de som e do gesto deformado

1.

Aparentemente o som é uma referência importante para o

compositor atual. No entanto, ao apresentar primeiro a fórmula do

desenho para depois falar da do som, estava querendo trazer para o

debate o fato de que uma fórmula não se dá sem uma outra, de a

música ser um espaço de cruzamento e não um espaço exclusivo do

sonoro. Historicamente não foi assim. A música não é o espaço

exclusivo do sonoro como pretendem as áudio-partituras das

décadas de 1970 e 80 – que no fundo são desenhos.

Com a notação sobre o papel a música fundou um novo modo de

funcionamento e isto determinou todo seu desenvolvimento desde

os primeiros contrapontos no séc. IX. A música, escrita no papel,

ganhou traços de desenho, tornou-se uma espécie de caligrafia, e

como tal, ornada de iluminuras e pequenos floreios. Saiu assim do

universo puro e simples da voz e foi ancorar-se em correspondências

visuais as mais diversas. A partitura mais do que um simples lugar

de registro passou a ser o lugar de criação, como nos diversos

tratados e manuais que a povoam, sobretudo no renascimento. É

fácil notar como o ato de compor passa a ser o próprio jogo de

desenhar a partitura. As técnicas de contraponto desenvolvidas apartir do séc. IX também deixam isto bem claro. Em pleno

renascimento, o cerne do trabalho do compositor é aquele de

relacionar notas musicais (cada época com suas regras). E os

desenhos que figuram na partitura funcionam como ilustrações. É a

forma recorrente do “Emblema”, no qual o ícone (imagem visual)

tem a função de ilustrar um poema ou uma música ou mesmo um

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dogma (um lema, ou tema). Porém, não é esta forma de

representação que chamo aqui à leitura e sim os cruzamentos

improváveis que fazem da imagem visual uma imagem musical e

vice-versa. A visualidade que ganha o canto, e o fato de este espaço

visual atravessar a música de modo a não se separar mais tão

facilmente. O séc. XX verá este atravessamento – evito aqui a palavra

fusão visto os dois vetores, o da imagem e o do som, se manterem

apontando linhas diferentes – tomar vulto em uma música visual das

décadas de 1950 e 1960, em trabalhos de John Cage, Earl Brown,

Logothetis, nas esculturas sonoras de Jean Tinguely, dos desenhossonoros de Milan Grygar, e levados a uma potência máxima nos

cruzamentos realizados pelo grupo Fluxus. Da voz ao instrumento

que canta, do canto à partitura, foi necessário um passo um tanto

largo a mais para que o som figurasse como componente

composicional com certa autonomia. Se no renascimento e início do

 barroco o som ilustrava uma música como “as espadas” no

Combattimento, de Monteverdi, e se esta mesma idéia permanece em

Vivaldi, quase um século depois, somente com Debussy é que o som

se tornará autônomo, mesmo que o compositor francês ainda faça

alusões a relacionar sons e imagens visuais. Como ficou claro a partir

da música concreta e dos escritos de Pierre Schaeffer, será com o

advento do alto-falante que se dará a revolução do som: o

nascimento do som como imagem composicional, estabelecido com

maior precisão na música espectral de Grisey e Murail.21 Mesmo

assim não sem ter suas contradições, como nas decorrênciasespectrais que faz Kaija Saariaho em Verblendungen , quando deduz

um espectro e a forma global de sua peça a partir de uma pincelada.

 21 Ver: Barrière, J.B., Le timbre, métaphore pour la composition, Paris: IRCAM, 1991.Ver texto de Saariaho neste mesmo volume “Timbre et harmonie” (pp.412-453).

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2.

E assim passo a falar do som como segunda fórmula composicional.

Mas que som é este? Pois são muitos os sons que nos rodeiam e mais

ainda as imagens sonoras. Estas imagens podem ser o som de um

carro de boi, o som de uma construção de prédios, o som de placas

metálicas se chocando, vozes que conversam ou mesmo o canto de

pássaros. Destes sons são importantes tanto suas características

espectrais quanto as referências que ele traz. Há uma escolha no

pacote de sons que rodeia cada pessoa, cada compositor, cada obra,cada momento de vida. Pacotes de sons que não correspondem

necessariamente às paisagens sonoras em que o momento se dá; os

pacotes são independentes dos lugares em que os sons ocorrem. É

importante dizer que os sons trazem sempre referências pessoais e

também que cada pessoa tem suas referências. No entanto, uma

pessoa já “é” um pacote de sonoridades. Cada pessoa é um pacote de

sonoridades específicas das quais nem sempre esta pessoa se dá

conta de que está povoada. São forças que se dão sentidomutuamente. Um compositor está imerso em um pacote de

sonoridades: os sons de sinos, a sonoridade dos grupos de música

em pequenas comunidades rurais, os ruídos de obras (a construção

de grandes prédios com o uso de betoneiras e bate-estacas), os sons

de carro de boi, os instrumentos musicais, os ruídos de rádio etc. E

estes sons podem ser transformados de maneiras as mais diversas,

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dependendo do momento e da necessidade de gerar materiais

composicionais: análises espectrais, simples imitações, deduções por

desenhos, imagens que os sons possam entrecruzar (o canto de uma

procissão cruzado aos ruídos dos pés que se arrastam e à escritura

musical do barroco mineiro; o ranger de roda de um carro de boi que

se liga incessante à própria imagem do animal e que não tem nada a

ver com ele).

3.Seguindo a proposta espectral: de um espectro sonoro podem ser

gerados sistemas de alturas; pacotes de alturas e modos de relacioná-

las entre si. Desde minhas primeiras peças, ainda no final da década

de 1970 (sem dúvida ali de forma mais ingênua) recorri à série

harmônica como modo de gerar sistemas de relação de alturas. A

primeira peça a fazer este uso foi Ora H  , para quarteto de cordas. Na

peça, cada um dos instrumentos trabalhava com as notas decorrentes

dos espectros de quatro formas de ondas: quadrada, triangular,

dente de serra e senóide. Em outras peças esta mesma idéia foi

retomada mas transformada ou ainda, gerando alturas decorrentes

de cálculos de sons diferenciais e fundamentais virtuais. Em Capela

do Rosário22 realizei cálculos intuitivos de fundamentais virtuais

deduzidas da seqüência de acordes do moteto Bajulans , atribuído ao

compositor mineiro Manoel Dias de Oliveira, para gerar as notas do

contrabaixo. Posteriormente, em Les silences d’un étrange jardin , fiz umuso mais preciso das séries harmônicas no qual foram empregadas

duas séries permutadas de forma a realizar uma passagem lenta de

uma à outra ao longo da primeira parte da peça. Desde então

incorporei à idéia da série maneiras diversas de permutar seus

 22  Capela do rosário  (1985), para trombone, trompa e contrabaixo. Estréia: “FestivalMúsica Nova”, S. Paulo, 1985. Trio Música Nova.

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elementos (um forma de evitar o sentido totalmente ascendente ou

descendente natural da série e permitir construções melódicas em

ziguezague alternadas com momentos mais direcionais) e formas de

deformação: justaposição e interpolação de espectros distintos,

espectros defectivos, sons diferenciais, modulação em anel (ring-

modulations). São recursos bastante comuns na música de hoje e

qualquer compositor que tenha à mão “softwares” como Patchwork e

Open-Music pode gerar coisas parecidas e terá à sua disponibilidade

diversos aplicativos  preset  para este tipo de operação.23 Cito então

duas imagens, feitas à mão: a primeira de Ritornelo e a segunda deLes silences d'un étrange jardin ,24 as duas realizadas a partir de

permutações de notas de séries harmônicas.

 23 Patchwork e Open Music são dois aplicativos desenvolvidos pelo IRCAM paracálculos pré-composicionais. Se tais aplicativos vieram facilitar e acelerar osprocedimentos pré-composicionais, também implicaram numa estandarizaçãodestes procedimentos ao trazem  presets  incorporados. Tristan Murail trata destaquestão em entrevista a Daniel Cohen-Levinas (Cohen-Levinas, Daniel, “Entretienavec Tristan Murail”, Les cahiers de l’Ircam , no.1, Paris: IRCAM, 1992).24  Ritornelo (1998), para flauta e percussão. Estréia: “Festival Música Nova”, S.Paulo: 1998. Flauta: Cássia Carrascosa; percussão: Rodrigo Foti. Les silences d’unétrange jardin (1994), para flauta solo. Estréia: “Festival d’ Automne”, Paris: 1994.Flauta: Félix Renggli.

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Trecho de rascunho de Les silences d’un étrange jardin, para flauta solo, em queaparecem fragmentos de séries harmônicas permutadas e intercaladas.

Rascunho de Ritornelo com as séries harmônicas defectivas (com fundamental emfá) utilizadas para as séries de apojaturas.

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Ou seja, não se trata apenas de uma série harmônica, esta só se torna

material composicional após sua deformação. Este espectro em

algum casos nasceu da análise de sons. Em De um tempo em deserto25

as alturas praticamente foram deduzidas da análise de um espectro

de tantã. Nestes casos, mesmo nascendo da análise de um som, uma

imagem de espectro deve passar por demais etapas de transformação

para que volte a ser sonora, para que ganhe novamente interesse

sonoro e musical.

4.

Com toda a necessidade de uma objetividade científica na análise

musical e, por conseguinte, na própria composição musical, tornou-

se desaconselhado falar-se nas referências pessoais. Porém, quando

estou falando de sons, existe uma preferência por certos sons. Cada

compositor traz em suas músicas certos sons e evita outros. Isto pode

estar na sua orquestração, nas suas referências, seja lá onde for, mas

nasce aqui uma questão: o que são as referências pessoais? O fato é

que um compositor procura imagens, e procura imagens para

compor este lugar cheio de coisas a que chama de música.26 Se

imagino que numa música, no mundo, cada presença é uma imagem,

tais imagens, quando colocadas lado a lado, se inter-modulam, e elas

se compõem umas com as outras. No nosso caso haveria uma

imagem que privilegia as outras e a ela chamamos de compositor.

Uma imagem sonora ao lado de outra: um computador permutandodados recolhidos de arquivos sonoros disponíveis em uma grande

rede de computadores, aleatoriamente, poderia realizar isto sem

 25  De um tempo em deserto  (1997), para conjunto instrumental. Estréia: Ensemble

Nord, “12a Bienal Brasileira de Música Contemporânea”, Rio de Janeiro: 1997.26 Roubo aqui um pouco a idéia de “espírito” de Hume, retomada por Deleuze emEmpirismo e subjetividade. Deleuze, Gilles, Empirisme et subjectivité, Paris: PUF, 1953[trad. bras. Luiz Orlandi, S. Paulo: Ed. 34, 2001, p.12].

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problemas. Mas quando quem reúne as imagens é um compositor –

que é ele mesmo outra imagem –, esta nova imagem privilegia certas

imagens. E ao analisar uma música, tenho as imagens sonoras e

percebo que algumas foram privilegiadas, e que algumas ocupam

lugares privilegiados e que o compositor-imagem tem sua maneira

de recolhê-las e de mostrá-las. Daí a importância do repertório

pessoal, do repertório daquele indivíduo que reuniu e compôs.

5.Deste modo, as referências não são aqui signos que representem um

ou outro dado da vida privada do compositor. Procurar os

significados e origens das referências não só nos afasta do plano de

composição, como faz com que a análise musical se perca em planos

anexos que acabam limitando as formas de nascimento dos signos,

congelando estes em topos fixos que se pretendem sempre um único

viés de leitura. As referências pessoais interessam quando se

permitem cruzar umas com as outras, cruzando um som com outros.

Nas composições elas podem aparecer sozinhas ou transformadas

por algumas outras forças: em diversas peças que escrevi as

estruturas harmônicas da música barroca foram a base para deduzir

os sistemas de alturas (como citado acima). Em Fragmentos de hoje

como ontem ao meio dia27  a idéia do som de sino entrecruzada ao

“movimento das pessoas”, ruído de pés se arrastando, e outros

elementos de uma procissão de sexta feira da paixão foi tomadacomo matriz composicional.

 27 Fragmentos de hoje como ontem ao meio dia  (2002), para coro misto e piano. Estréia:Concertos Osesp, S. Paulo: 2002. Coral da Osesp, sob reg. de Samuel Kerr.

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6.

São muitos os modos para se transformar o resultado da análise

espectral de um som, e tais modos podem aparecer em diversas

peças ou mesmo manifestarem-se diversificados na escrita de uma só

peça. Em uma aplicação pessoal, ao ter um espectro como imagem

composicional, qualquer que seja o modo de transformação que este

sofra, é importante salientar que ele gere algoritmos composicionais

de fácil utilização, os quais não escondam relações improváveis de

serem trabalhadas – num esforço de tornar sonoro e musical este

algoritmo.

Tornar sonoro um algoritmo, tornar sonoro um dedilhado, ou uma

seqüência de arcadas, não é apenas um artifício de escrever as notas

e pedir para alguém tocar. John Blacking, em How musical is man?

Comenta que, depois que se conhece a música dos Nande (tocadores

de flauta do Zaire), um trecho melódico pode ser analisado de duas

formas diferentes: a primeira é aquela que mais estamos

acostumados no ocidente e diz respeito às notas, a como elas seafastam ou se aproximam umas das outras, uma escuta quase que

visual que tanto remete ás figuras da partitura quanto à imagem

visual dos pequenos buracos de uma flauta (uma melodia pode ser

apenas um dedilhado de flauta); já a segunda forma de análise não

diz respeito nem a uma notação nem a uma forma de manejo do

instrumento, mas à dinâmica de tensão e relaxamento daquele que

toca, levando a escuta não mais para as notas mas para a vida de um

som, suas características espectrais e sua allure. O que aproxima esta

segunda idéia com o que chamo de sonoridade é o fato de o som ser

aqui um elemento de composição. É a partir do som que o

compositor imagina seus ciclos, as permanências e transientes de

uma peça. Esta idéia pode ser claramente observada em Circles de

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Luciano Berio. Logo no início desta peça28 a linha da voz alterna

notas longas e  gruppeto , as primeiras cantadas com voz ordinaria , o

segundo com voz em boca chiusa; o timbre desenhando os ciclos que

marcam a peça.29

7.

A relação entre o pessoal e o privado, no que tange às referências,

pode ser dita também daquela entre o singular e o senso comum. O

privado é sempre da ordem do senso comum, enquanto que opessoal, aquele que diz a constituição de uma subjetividade, este é

sempre singular. É inclusive este singular, esta dose de pertencer a

apenas um ponto conector (mesmo este ponto sendo composto de

pontos e mais pontos), é este “sujeito” que arrasta para um ponto

ainda improvável a técnica de uma época. A técnica pura e simples é

o exercício estilístico, e o exercício, por ser da ordem do senso

comum, sempre compreende a prova, a comparação, o correto e o

incorreto. Já a técnica arrastada para os seus pontos improváveis,

esta diz respeito a uma singularidade que se dá apenas uma vez e só

se repete enquanto outra.

8.

Neste sentido de “pessoal”, de coleção de sonoridades cujas

referências privadas não interessam, é que realizei a composição deItinerários do Curvelo,30 para pequena orquestra. A peça tem como

ponto de partida diversas coleções de sonoridades. A primeira 28 Ver partitura da primeira canção do ciclo de Circles como exemplo do “aforisma66“ do “segundo livro” desta tese.29 Blacking, John, How musical is man? , Seattle: Univ. Washington Press, 1972. p.17.Ver também “segundo livro” nesta tese sobre Circles de Berio.30 Estréia: “XVII Bienal de Música Contemporânea”, Rio de Janeiro: 2007 . Sob reg.Roberto Duarte.

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sonoridade é a da obra Tinnitus do compositor Rodolfo Caesar, uma

composição acusmática que se constitui a partir de filtragens

diversas de uma amostra de uma paisagem sonora cotidiana: sons

noturnos que passam por um processo de filtros móveis e que

resultam em duas pistas distintas de sinais sonoros, às quais

acrescenta uma terceira, um reverb aplicado à pista de sons filtrados.

Este primeiro material serviu-me de composição para imaginar o

plano geral da nova peça, para fabular todo o processo de recriar, de

ressíntese da sonoridade ofegante obtida pelos filtros empregados

por Rodolfo Caesar por parte de um conjunto instrumental. Mas seos sons ficam soltos eles começam a se ligar livremente uns com os

outros. E então o som de Tinnitus , o som eletronicamente

transformado, cruzou-se com outro bastante arcaico: o do carro de

 boi. O ruído do carro de boi traz toda uma continuidade irregular,

uma continuidade ofegante, e a síntese da simulação de Tinnitus

tornou-se a síntese do som de um carro de boi, e o material original

de Caesar – os sons do cotidiano – acabou por ressurgir na melodia

da introdução de um Boi-de-reis, da cidade Cuité (RN), intitulado

Corta pau.31 Como estas coisas todas se cruzam? Talvez apenas o som

saiba porque ele se cruza com outro.

9.

Associando imagem de sonoridade e imagem visual, o gesto

instrumental pode ser visto como uma terceira fórmula. Lembroaqui, como referência quase que obrigatória, a obra de Luciano Berio.

Muitas das músicas de Berio parecem nascer de um gesto

instrumental, e isto é até mesmo manifesto em seus títulos como em

Gesti ou nos subtítulos, como nos “manèges” de Linea. Os “manèges”

 31 Toque registrado na coleção de Cds reunida em Vianna, Hermano e Villares,Beto, Música do Brasil, S. Paulo: Abril, 2001.

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são manejos de toques de instrumentos de teclados, figurações

melódicas que lentamente se ampliam a partir de um pequeno

núcleo intervalar. Tais manejos são modos de tocar os instrumentos

de teclas que o compositor retoma como ponto de partida para a

composição de sua peça. E não precisaria citar apenas Berio ou a

música contemporânea, os Estudos e Prelúdios de Chopin manifestam

este mesmo modo de manejo do instrumento de teclado, de maneira

que cada peça nasce de um manejo, sendo como que uma expansão

deste manejo. Mais recentemente, no seu primeiro livro de Estudos

 para piano , Gÿorgy Ligeti emprega o mesmo recurso composicionaltomando por referência o manejo instrumental da música akadinda

de Uganda.

Figura de manejo de Ab’e mbuga basengejja , música Akadinda - Salama (Uganda). 32

 32  Imagem retirada de Bouliane, Denys, “ Six Études pour piano”, in: Contrechampsnºs 12 e 13 (Ligeti/Kurtag), Lausane: L’Age D’Homme, 1990.

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10.

Quando começo a escrever uma música, ou apenas a imaginá-la, écomum começar por alguma coisa que costumo “rabiscar ao piano”,

ou cantando, ou alguma coisa que observei em algum instrumentista.

Em Anel anemic , usei um pouco do modo de tocar da rabeca. Ali era

apenas uma simples imitação, sem nenhuma análise, mas não do

som da rabeca direto, e sim do som da rabeca como se viesse de um

rádio de pilha dentro de uma casa – como ainda se pode ouvir nas

madrugadas frias de inverno quando se anda pelas ruas das

pequenas cidades mineiras. Naquela peça este som de rabeca não

aparece logo no início, ele vai sendo construído lentamente a partir

de uma nota e o timbre do violino e da viola é deformado pelo uso

do sul ponticello e esta transformação é ainda reforçada pela micro-

defasagem que torna o resultado metálico e difuso.

11.E outra peça Window into the pond tomei como ponto de partida um

outro gesto.33 A idéia de gesto é interessante porque este se torna um

dado composicional que pode ser deformado ao longo do tempo de

uma música. Em Window , um gesto que costumava tocar ao piano foi

transposto para flauta baixo e transformado (ou melhor, deformado)

ao longo da peça.34 De certa forma o gesto é como o movimento de

uma linha, ou de uma série de linhas, ou uma forma qualquer que

ora é curvada, ora cortada, ora simplesmente apagada. No caso desta

peça o gesto foi transformado em um algoritmo simples e

posteriormente deformado pelo emprego de técnicas da música mais

 33 Window into the pond  (1995), para conjunto instrumental. Estréia: “Festival MúsicaNova”, S. Paulo: 1995. Ensemble Contrechamps.34 Apresentei mais detalhadamente este modo de compor por deformações naconclusão de Música e repetição (op.cit.).

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recente como hiper-serializações, sistemas de filtros de alturas

(tomados emprestados de Brian Ferneyhough), inclusão de pausas

etc. Os rascunhos desta peça trazem uma longa série de

transformações, linhas e mais linhas. Após uma série grande de

transformações, uma descoberta: a linha deformada começava a se

assemelhar a uma outra linha composta alguns anos antes. Com o

que coloquei-as para conviverem juntas nesta peça.

Primeira série de transformações do gesto inicial e a inclusão de pausasfragmentando o ciclo contínuo em pequenas figuras soltas.

Linha melódica do solo de piano final de Conferência com a qual a linha deformadade Window veio se encontrar.

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12.Passo a falar então dos gestos de deformação que já dizem respeito à

sonoridade que se tornou objeto-sonoro (no sentido dado por Pierre

Schaeffer), cruzamento de gesto e som. Com isto as peças que narro

aqui são geralmente deformações de objetos. Por serem escritas

passo a passo, não há um plano geral detalhado que as anteceda, elas

incorporam deformações conforme os encontros que se dão, como se

cada uma das peças encontrasse outras peças livremente, sem a

presença do compositor. São assim não um só procedimento de

transformação, ou um grande ciclo direcional de transformações,

mas deformações locais que não têm por razão se conectarem com

uma ou outra forma de deformação que já tenha ou venha a aparecer

na composição. O que une os elementos da peça é a pressão do

tempo, é a proximidade de alguns elementos frente à distância de

outros, os fluxos contínuos contrapostos a elementos descontínuos,

fatores que acabam por amalgamar concretamente cada componentecomposicional, tal qual propôs Tarkovski em Esculpir o tempo.35 Não

se trata de um tempo que se articula por causa-efeito, mas de uma

linha reta do tempo que não remete mais à imagem do círculo ou da

espiral desenrolada, nos quais o tempo pode retornar.

13.

Na prática das fórmulas de deformação, algumas estratégias

acabaram por tornarem-se mais ou menos fixas. É interessante que a 35 O termo foi proposto por Andrei Tarkovski e diz respeito à pressão do tempo,

relativo à intensidade e densidade que mantêm conectados os elementos de umplano de composição fílmico. O compositor e filósofo brasileiro César Spontonretomou esta idéia ao falar do tempo em Bernd Alois Zimmermann. Cf. Tarkovski,Andrei, Esculpir o tempo , S. Paulo: Martins Fontes, 1998, p.139; Sponton, César, Asestratégias e a forma: algumas considerações acerca do tempo musical. Dissertação deMestrado, São Paulo: PUC-SP, 2000.

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linha principal, aquela que é deformada, seja uma figura bastante

simples, um gesto simples como no exemplo de Window into the pond.

Em uma série de peças do ciclo Livro das sonoridades parti de uma

frase extremamente simples e lentamente fui deformando, a cada

momento com uma estratégia simples. Um exemplo bastante claro é

a pequena peça Transição II,  para piano, concebida originalmente

para dois pianos. A peça nasce de um primeiro um arpejo que é

lentamente deformado. São três as principais formas de deformação

empregadas: a) a transposição irregular de tons e semitons da

estrutura do acorde; b) a ampliação de algumas notas em acordesque reproduzem espectros inarmônicos e c) a deformação temporal

com as alterações na seqüência rítmica e no andamento. A presença

de mais de uma força de deformação aumenta o que poderia chamar

aqui de pressão temporal - aumento do número de focos de atenção

de escuta.

Trecho inicial da Transição II e exemplo de transformação informal do primeiroarpejo fá#-lá-dó-mi com notas (ver também o deslocamento da figura de

semicolcheias).

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14.

Outra peça que serve como exemplo é Casa tomada. O processo

composicional é praticamente o mesmo, com deformações graduais,

porém o número de operadores é maior e a linha não é mais tão

simples, pois entra em jogo um sistema de incrustações, forças que

interrompem momentaneamente o desenrolar da linha principal.

Este aumento em operadores aumenta proporcionalmente o que

chamei de pressão temporal.

15.

Casa tomada começa com uma seqüência de figuras de mesmo valor

(colcheias) alternadas a uma figura da metade do valor das figuras

principais (uma semicolcheia). Esta segunda figura muda de lugar na

estrutura de figuras isócronas. Utilizei diversas forças externas de

deformação que interrompem o movimento, inserem citações e a

inclusão de acentos que destacam fortemente algumas notas da linha

em  pianissimo  e faz surgir uma terceira linha de dentro das duas

linhas; nenhuma linha foi acrescentada, mas a força de deformação

fez nascer outra linha lançada em primeiro plano.

Deslocamento de valores longos (círculos vazios) e curtos (circulos cheios) nosprimeiros compassos de Casa tomada.

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Valores longos e curtos, deslocados, e ampliação por acorde inarmônico (segundalinha da partitura de Casa tomada).

Nascimento de terceira linha pela acentuação de pontos nas duas linhas.

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Fórmula da incrustação

1.

Desde que comecei a empregar a deformação constante como

estratégia composicional, tive de enfrentar a exagerada linearidade

que nasce deste modo de pensamento. Esta linearidade nasce

sobretudo do encadeamento de transformações de um primeiro

gesto passo a passo. A mesma linearidade está nas direcionalidadesgerais que uma peça pode ter, como em Anel anemic. Ali a peça nasce

de uma nota e lentamente expande o universo de alturas que utiliza.

Ou seja, instaura-se uma linearidade que acaba por preencher o

espaço de escuta com previsibilidades quase que didáticas,

restaurando a relação clássica de causa-efeito. A primeira saída que

encontrei foi desmontar a série inicial e ainda me valer de pequenas

incrustações de trechos de uma música dentro de outra. Em Ora H  ,36

não só inverti a ordem linear progressiva dos blocos como também

incrustei na seqüência linear uma das Bagatelas op.9  de Anton

Webern. Continuei usando esta forma de quebrar a linearidade em

outras peças mais recentes e até mesmo cheguei a desenvolver um

sistema de geração de linhas melódicas a partir de incrustações. Já se

encontrava aí um problema de tempo a ser resolvido. A fórmula da

incrustação nasce justamente de dentro deste problema do tempo

que visa quebrar a idéia de linearidade direta das formastradicionais, quebrar a relação causa-efeito entre as componentes de

uma música trazendo à direcionalidade uma instabilidade: existe

uma direção e é por ela existir que esta linha pode ser quebrada.

 36  Ora H  (1979), para quarteto de cordas. Estréia: “I Encontro de compositores”.S.Paulo: 1980. Violinos: Maria Vishnia e Mayra Lima; viola: Perez Dvoreck;violoncelo: Zigmunt Kubala.

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Forma inicial direta de Ora H (HORA) e a forma definitiva, com o deslocamentodo momento H para o final e a incrustação de Webern entre A e H..

2.

Desenvolvi bastante estas idéias ao compor Ritornelo , para flauta e

percussão. Nesta peça tudo vai sendo gerado passo a passo até que a

linha principal é cortada por uma grande incrustação. Mas a peça é

feita de diversas pequenas incrustações formais e até mesmo a

grande linha melódica que atravessa a composição é composta com

incrustações: uma primeira seqüência de notas vai recebendo

incrustações de notas originadas de uma série harmônica defectiva. É

aqui que, para mim, a idéia de uma linha que sofre com forças

externas tem grande importância, pois permite que escape dalinearidade, mas mantenha o processo composicional atado à idéia

de composição musical como gênese.

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Sistema intervalar de Ritornelo, realizado a partir do crescimento pelo centro com aincrustação de notas de uma série harmônica no interior de uma série simples de

quatro notas que giram em torno de um centro fixo (nota mi).

3.Ritornelo  e outras peças trabalham esta idéia de incrustação. No

repertório tradicional encontraria procedimento paralelo no Quarteto

op.133   de Beethoven, mais precisamente no compasso 144 do

segundo movimento, quando o curso da obra é interrompido para

inclusão de uma espécie de segunda dança camponesa. Neste caso é

como se o compositor suspendesse o tempo anterior para abrir

caminho a um outro que invade o plano de composição. Para tanto,

Beethoven se vale da diferença de dinâmica (o trecho incrustado

aparece todo em fortíssimo), da interrupção de qualquer progressão

harmônica (o trecho é praticamente modal, estável sobre jônico de lá )

e de uma clara diferenciação de texturas melódica (a melodia

incrustada vem sincopada pelos saltos do primeiro violino reiterada

como que incessantemente).

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Trecho do Quarteto op.133 em que irrompe uma incrustação. Notem-se os baixoconstantemente reiterado no violoncelo, a nota lá  também reiterada no primeiro

violino e a melodia aguda quase sincopada.

4.

Mas a questão da incrustação não está apenas em interpor outra

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música, uma seqüência musical que não apresente traços comuns

com o que vinha antes, no corpo de uma primeira. Com o uso da

incrustação pode-se pensar o desenvolvimento de uma peça não

mais no sentido do tempo cronológico extensivo, mas sim

promovendo uma espécie de implosão formal ao desenvolver tanto a

peça quanto seus menores componentes rítmicos e melódicos, pelo

centro. A composição de Ritornelo  traz uma série de exemplos de

incrustações. Nesta peça existem incrustações formais, ou seja, em

meio à peça irrompe outra peça. O próprio material, como vimos,

advém de incrustações. O sistema de geração de notas para asapojaturas que irrompem (também como incrustações) na seqüência

melódica da flauta foi realizada com um mecanismo em que, a cada

reiteração, o material é desdobrado pelo centro, fazendo assim com

que elementos que antes estavam próximos, contíguos tornem-se

distantes passo a passo e novas figurações intervalares e melódicas

venham se interpor na seqüência original. Utilizei esta forma de

compor pela primeira vez em Ninféia encarcerada.37 Nesta peça escrevi

uma grande primeira seqüência à qual incrustei uma segunda e uma

terceira seqüências. O que me interessava no uso deste procedimento

era a idéia de interromper o fluxo de causa-efeito afastando

elementos outrora ligados por contigüidade.

 37  Ninféia encarcerada  (1995), para oboé solo. Estréia: “Festival Música Nova”, S.Paulo: 2005. Oboé: Piet von Boekstal.

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Rascunho de série de incrustações.

5.

Assim como Beethoven realiza sua incrustação tendo a textura e o

plano harmônico como lugares de corte, nas peças em que emprego

incrustações também o lugar do corte é sempre realizado levando-se

em conta a textura das primeiras seqüências e aquela do objeto

incrustado, geralmente objetos de texturas fortemente distintas e que

deixem clara a idéia de que se abriu uma janela. Para tanto são

empregados mais freqüentemente cortes em meio a notas longas ou a

seqüências de notas reiteradas, ou cortes em momentos de grande

movimento, quando se visa à incrustação de um objeto estático. Isto

dá a impressão de suspensão do movimento para que se estabeleça

um novo tempo,38

 assim como o retorno da primeira textura égarantido também pela nota longa. Alguns procedimentos seriais

foram lentamente sendo empregados também neste jogo das

incrustações, sobretudo os espelhamentos. Em Ritornelo  após a

incrustação central todo o material da primeira parte é espelhado.

 38 No “segundo livro” desta tese abordarei este aspecto do corte como lugar denascer e renascer o tempo.

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Todas as notas rápidas da flauta são retomadas pela percussão e esta,

que na primeira parte era simples ressonância da flauta, agora tem a

flauta como sua ressonância, as notas longas desaparecem: um

espelhamento em negativo.

6.

A idéia também aparece na composição da linha principal de Dona

Letícia (Ritornelo II) , para conjunto de câmara.39 A peça é movida pela

idéia de uma nota longa na qual é incrustada uma melodia. A peça éuma seqüência de incrustações as mais diversas, desde a da linha

que se amplia pelo meio até incrustações de materiais diversos ao

longo da peça em lugares não definidos de antemão. À certa altura é

incrustada uma outra composição, para percussão (uma variável de

Várzea dos pássaros de pó40), associada a um canto de viola que fica

retornando ao longo da peça.

 39 Inédita, 2007.40  Várzea dos pássaros de pó (1992), para percussão. Estréia: “Festival de Londrina”,Londrina: 1992. Duo Contexto: Silvio Ferraz e Edson Gianesi.

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Linha principal de Dona Letícia (Ritornelo II) e quatro de seus desdobramentos, comindicação das incrustações (+) e observação de uso de retrogradações e módulo de

alteração de intervalo melódico.

Melodia da viola constantemente incrustada em Dona Letícia.

7.

Concebo assim a forma musical não como uma sucessão, mas como

um campo de encontros de materiais; um constante movimento de

acoplamentos, de aproximações e afastamentos, de alternâncias e

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entrelaçamentos em diversos níveis: nível da forma geral, nível do

material, nível dos micro-elementos que compõem o material. De

certo modo esta maneira de compor por implosões reflete a imagem

de dobra proposta por Deleuze em Le pli41 no fato de que o tempo

não se desenrola, mas se desdobra infinitamente em um mesmo

ponto, fundando o que chamo aqui de tempo intensivo.

8.

Descendo ao fundo do material estariam o som, a figura e o gesto. Éassim que a fórmula das sonoridades se cruza com a de gesto, e se

cruza ainda com algumas idéias de figura. As sonoridades de certa

forma já pertencem ao ouvinte, já pertencem àquele que ouve. Uma

sonoridade, havia dito antes, chama à ação um objeto sonoro, e pode

desdobrar-se em um objeto musical. Mas aqui talvez caiba recorrer a

Pierre Schaeffer que pensou todo este mecanismo de escuta que

distingue objeto sonoro de musical. O objeto sonoro é aquele que diz

respeito ao som que ouço, sem que este se reduza à imagem do

instrumento, a uma narrativa, a uma linguagem. Ele é uma imagem

de som e imagens de som dificilmente têm representação na vida

cotidiana. Dizemos de um som sempre recorrendo a outras formas

de percepção; agudo, grave, baixo, alto, brilhante, cheio, liso,

ondulado, curvo, áspero. A imagem de som que pensava Schaeffer

seria justamente aquilo que foge a estas maneiras apenas sinestésicas

de descrição. Mesmo os técnicos de áudio e suas representações sãoparte destas maneiras de descrição. Descreve-se o som com os

recursos da ondulatória, descreve-se o som como se fosse formado

de ranhuras paralelas, e linhas, e assim por diante. O que Schaeffer

imaginava era uma imagem de som. Outro compositor acusmáta,

 41 Deleuze, Gilles, Le pli, Leibniz et le barroque, Paris: Minuit, 1988 [trad. bras. LuizOrlandi, A dobra, Leibniz e o barroco, Campinas: Papirus, 2000].

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François Bayle também se lançou nesta compreensão de imagem de

som, aliás, o termo é dele: image de son , i-son , “modelo reduzido do

aparecimento”.42 E a imagem de som, ela nasce com aquele que foi

afetado pelo som e nasce com formas variáveis, ela não tem forma

fixa, é matéria não formada.

9.

Com a imagem de som nasce outra imagem, a imagem musical. Esta

por sua vez vem também toda atravessada de sistemas de notação,de referencialidades, aparece toda cheia de nomes. Mas os nomes

também podem ser suspensos. Diria que a imagem sonora musical

nasce do embate com outras duas imagens: a figura e o gesto. O

gesto, suas referencialidades múltiplas que vão do desenho do som

ao movimento do instrumentista. A figura, os mais diversos

desenhos que a música ganhou sobre as mais diversas partituras e

que nos fazem ver-ouvir linhas  melódicas, blocos sonoros, massas

sonoras, marchas harmônicas , seqüências de alturas. Com o gesto

ouvimos o movimento, com a figura ouvimos as proporções. Mas

escolhi como recurso composicional partir da sonoridade. Partir da

sonoridade, imaginá-la (fazer dela uma imagem) e fissurá-la na

figura e no gesto.

10.Falei antes das estratégias composicionais que foram se fixando com

o tempo, como o de partir sempre de um gesto sonoro simples. Diria

que a este gesto acopla-se um pouco outra idéia à qual também me

 42 Bayle dedica todo um capítulo de  Musique acousmatique , “L’image de son, ou ‘I-son’: métaphore/métaforme”. Bayle, François,  Musique acousmatique , Paris: INA-GRM, 1993.

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referi: a de deformar o gesto. Um dos modos de deformar o gesto e

desfazer a sonoridade em pequenas moléculas recombináveis é a

permutação das imagens que se desenham dentro de uma imagem

(as micro-figuras e micro-gestos que se desenham dentro do gesto).

Uma imagem é sempre imaginável como composta de outras

imagens. É neste sentido que o gesto do violoncelista é deformado

em Lamento quase mudo.43 A peça nasce da sonoridade do violoncelo

 barroco. O que é esta sonoridade? É um pacote de muitas coisas, de

muitos gestos e figuras. O som da nota longa dos pedais, o médio-

agudo cantabile. É também a sonoridade gélida do sul ponticelloimaginável no “Inverno” das Quatro estações  de Vivaldi. Cada

pequena partícula destas pode cruzar-se com outras, não barrocas,

provenientes de outras sonoridades. Havia dito que os sons se

relacionam livres. Neste caso, o som do violoncelo barroco pode se

cruzar com alguns tambores ouvidos em alguma festa popular (de

fato Lamento  foi primeiramente pensada para violoncelo e dois

tambores de Minas).

Pequeno trecho de lamento em que há rápida alternância de arco ord , ponticello , pizzbartok , bater no tampo (perto do centro-perto da borda), passagens rápidas, cordas

simples -> duplas.

 43  Estréia: “Circulação de música de concertos Petrobras/Funarte”, 2006.Violoncelo: Teresa Cristina Rodrigues Silva.

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11.

Este processo de molecularização (termo que tomo emprestado de

Gilles Deleuze) conduz por outro lado a um recurso técnico da

escrita instrumental: a extended technique. As passagens rápidas

alternando incessantemente modos distintos de jogo instrumental

trazem a necessidade de uma expansão da técnica do instrumentista,

não apenas pela dificuldade técnica que implica, mas por articular

 jogos instrumentais que não costumam ser articulados juntos. Esta

mesma forma de trabalhar o instrumento liga-se ainda à idéia do que

Ligeti chamou de estereometria: o encadeamento de uma mesmaaltura produzida com articulações e instrumentos diferentes

realçando as diversas formas de difusão sonora presentes em um ou

mais instrumentos. Ligeti observa isto no Op.27 de Webern quando

nota a permutação constante das células motívicas, cada célula

caracterizada por um nível de intensidade específico, fazendo

manifestar assim a “profundidade do espaço”.44 Dois exemplos desta

forma composicional em Ligeti seriam a primeira e a nona de suas

Cinco peças para quinteto de sopros. No domínio da música que escrevo,

observo a estereometria na composição de Lamento , e o excerto acima

é exemplo desta forma de multidifusão espacial de um instrumento

solista.

12.

Distingo ainda mais um ponto na questão da sonoridade e dosgestos. Volto um pouco a falar do pacote pessoal de sons. Quando

falei do som disse que ele é sempre de ordem bastante pessoal. Mas é

importante falar da diferença que existe entre o som como matéria da

natureza e o som como material composicional. Matéria e material,

 44 Ligeti, György, “Aspects du langage musical de Webern”, in: Neuf éssais sur lamusique, Genève: Contrechamps, 2001.

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forma e força, são dois pares de termos que Gilles Deleuze trabalha

em Francis Bacon: Logique de la sensation  e que podem trazer

interessante contribuição para o pensamento da composição.

Trazendo para o terreno da composição musical, e para um campo

sem os meandros conceituais da filosofia, onde um conceito sempre

engendra outro quadro de conceitos e pedaços de conceitos, o que

viria a ser esta idéia de matéria, material, forma e força? Começo pela

forma: forma é matéria formada, ela depende de alguém que a

forme, ela depende de uma síntese perceptiva, está totalmente ligada

a algo com nome, lugar, definição, qualidade, categoria. Uma formase liga a um quadro de imagens já formadas também e esta forma

sempre se diz de uma matéria. Deleuze liga assim a forma à matéria.

Deste modo, toda matéria engendra e é engendrada pela forma. Ela é

conjugada na forma. Acrescenta ainda que a matéria possa ser tanto

uma matéria de conteúdo, ela traz alguma coisa no seu bojo, quanto

uma matéria de expressão, ela indica algo, a presença de algo. Fica

assim que a matéria, no ciclo do que poderia chamar de cosmogonia

do ritornelo em Deleuze, nasce da permanência de um movimento

no caos. A permanência dá a matéria que se define por um espaço

conciso e este mesmo espaço ganha lugar como forma. O que

Deleuze quer dizer com isto é que, do caos (lugar das não matérias e

não formas) nasce a matéria, pela permanência de certo ritmo de

trocas, um código; e que esta matéria define uma forma (que por fim

a define também). Contém um código e expressa uma forma. Mas o

ciclo imaginado por ele não se interrompe neste ponto, ele continua,pois imagina um grande movimento. O ciclo continua, pois os

pontos da matéria mantêm-se juntos enquanto estão se relacionando

internamente, mas quando entram em embate com outros ciclos, com

outros códigos, relações inusitadas saltam para fora da forma, e

manifestam-se como simples forças, a forma se desfaz e a matéria se

torna máquina de captar forças: um material. Do par matéria-forma,

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da fenomenologia, passamos ao par material-forças. Daí a idéia que

ele resgata de Paul Klee de captar as forças do não visível para torná-

lo visível.

13.

O ato de composição musical que relato aqui é então o de forçar o

desfazimento do par matéria-forma, de desfazer textura e gesto,

 buscando o material que permitirá captar forças que ainda não se

estabeleceram; presenças sem código, mas com direção, comdensidade e velocidade próprias. A força da gravidade. Todos

sentimos a força da gravidade, mas os músicos fabulam esta força

nas suas harmonias, em diversas teorias de polarizações e conduções

melódicas, ou ainda no desenho de linhas descendentes como em

dois exemplos recentes: segundo movimento de Vortex Temporum de

Gerard Grisey (um espécie de “Tombeau de Messiaen”) e no

“Automne a Varsovie” de Ligeti (Estudo nº6  do primeiro livro de

estudos). Nas duas peças a gravidade está ali na linha que

imaginamos descendente. Forças de afastamento, como as que citei

em Cortazar e Catedral da 5:45. Captar as forças simples da gravidade

para torná-las sensíveis lá onde elas não são mais sensíveis enquanto

fenômeno, mas somente enquanto fabulação. E as forças são soltas,

elas se conectam umas com as outras sem a necessidade do código,

sem a necessidade das relações tradicionais, das relações aceitas. Em

uma de suas entrevistas, o compositor Iannis Xenakis observa anecessidade de se prestar atenção ao fato de que uma forma

interessante visualmente não corresponde necessariamente a um

interesse musical, é preciso que tais forças tornem-se sonoras e, por

conseguinte tornem-se musicais.45

 45 Bosseur, Jean-Yves, Le sonore et le visuel, Paris: Éditions Dit Voir, 1993, p.50.

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14.O sino: Como matéria sonora ele é a mesma coisa para todos nós –

pode até ser medido –, mas como material ele é diferentes coisas para

cada pessoa. Um sino pode ser um punhado de lembranças. De

“matéria sonora sino” a “material de recordação sino”. Diferente da

“matéria sonora sino”, o “material composicional sino” se liga a uma

rede infindável de relações, e esta rede é heterogênea, uma coisa não

remete obrigatoriamente à outra. Então escrever música com “sinos”

não precisa ser simplesmente imitar o som dos sinos, mas imaginar

este som e suas relações. Assim, os sinos do desenho tornam-se

facilmente acordes que não necessitam serem sinos, é apenas um

desenho na partitura que traz uma relação que se torna sonora por

conta do próprio espaço contrastante entre uma linha horizontal

calma e seus cortes verticais ríspidos, como em Casa tomada.

15.

Fica assim a onda de vai e vem da matéria formada ao material que

capta forças. Da análise do espectro de um sino às conexões livres; e

um sino pode virar uma longa melodia. Então, a matéria pode ser o

sino, mas o material sino é que opera as deformações. Do gesto

catalogado à sua molecularização por vias as mais diversas e

dispares.

16.

Na música que escrevo o carro de boi, os sinos das igrejas, os ruídos

de procissões, se misturam a um exercício de reescritura de obras do

 barroco. Na música do barroco, sobretudo em Vivaldi, existe o

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problema de produzir um efeito, de inventar uma técnica para

produzir um efeito. Em algumas de minhas composições tenho

retomado o barroco na forma de reescrituras: tomo um trecho de

música que me interessa e reescrevo com o suporte técnico de minha

época. Reescrevi um grande trecho do início da Sinfonia al santo

sepolcro em um trio para cordas. Um carro de boi barroco seria um

pouco o que fiz em Linha de passagem , para violoncelo solo.

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Partitura da peça breve Linha de passagem e sua sonoridade de carro de boi com opedal arrastado e a sonoridade constante do sul ponticello.

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17.Citando ainda mais matérias formadas que se deformam em

material, citaria os cantos de pássaros. A situação é semelhante à do

sino que se transforma em vozes. Messiaen já chamava a atenção

para o fato de que no canto de pássaro estão as árvores, a umidade

da chuva e da madrugada, a cor dos pássaros e até mesmo o vôo dos

pássaros pode estar na série que se chama canto de pássaro. Posso

prolongar esta série, para além da paisagem e encontrar outra

paisagem em que figuram compositores: Clément Janequim, Olivier

Messiaen e Igor Stravinsky. Podemos nos debruçar sobre um canto

de pássaro, realizar uma analise espectral, transcrever tudo em

partitura. Mas as transcrições são sempre bem pobres perto do que se

passa quando se ouve um pássaro, porque um canto de pássaro é um

cruzamento de tudo que gira em torno do pássaro, até mesmo da cor

de sua plumagem.46 Não se trata então de ter bom ouvido ou um

 bom gravador, ouvir bem e imitar bem o canto dos pássaros. Umadas primeiras vezes em que utilizei cantos de pássaros foi em Várzea

dos pássaros de pó para percussão. A peça teve por "inspiração" uma

cena de pássaros ressecados narrada pelo escritor Ignácio de Loyola

Brandão em seu livro Não verás país nenhum. Para compor, imaginei

os pássaros tocados por um instrumento de percussão, e não mais

por flautas, clarinetes. Percussão? Nada lembraria menos a um

pássaro do que um tambor. O que havia ali de pássaros, talvez um

trejeito ou outro, ou o fato de a peça ter a certa altura um turbilhão

de coisas sobrepostas, todas muito rápidas, lembrando pássaros, não

apenas cantos de pássaros, mas vôo de pássaros.

 46 Desenvolvi este tema em “19 pássaros de papel”, artigo inédito apresentado empalestra no VII Simpósio internacional e filosofia Nietzsche-Deleuze – jogo emúsica. Fortaleza, 2006.

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18.

No canto de pássaro, já sem forma nem matéria, estão outras forças

como, por exemplo, a leveza, um tipo de canto mais leve e ágil do

que o humano e o modo como usam a repetição com micro-

variações. E este tipo de repetição, ou melhor, reiteração direta de

objetos, pode delinear toda uma técnica de construção melódica;

uma espécie de modelo que me permite construir os gestos

deformados, os mecanismos de transição, o desenho de paisagens

sonoras. Esta reiteração também tem seu interesse no modo que

desenha o tempo da figura. A figura, no caso, sofre uma espécie deanestesia, pois sua constante reiteração a torna secundária no

movimento de diferenciação, abrindo espaço para o tempo da

textura e do gesto e também para a própria noção de ciclo – num

canto de pássaro temos sempre diversos ciclos sobrepostos.

19.

São esses pertencimentos de pássaro, pertencimentos de sinos,

pertencimentos de linhas, de carro de boi, da sonoridade dos

instrumentos do barroco, das “dissonâncias” em Vivaldi, que

acabam fazendo com que parte da matéria sonora seja sempre

deformada em material composicional.

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Caderno de transcrições de cantos de pássaros.

Trecho de música: passagem dos oboés em Em torno da Pedra , para orquestra, esonograma de sabiá laranjeira – reiterações.

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20.

Aqui estaria o que poderia chamar de alguns afetos, algumas coisas

de interesse pessoal, que talvez possam ter valor para mais pessoas,

mas que antes de mais nada são pessoais. Mas dito isto, nasce outra

questão: como fazer com que todos estes elementos ganhem

movimento? Como fazer para que o pacote de afetos ganhe

movimento e não fique enfadonho? Lembro aqui de Hume e sua

pergunta: como um pacote de idéias se torna um sujeito?47 Por

exemplo, um carro de boi, o seu som é interessante de se ouvir, mas

ouvir e re-ouvir várias vezes torna este som quase que insuportável.Todo aquele ranger, quando está longe dos bois, da imagem do

carro, da paisagem que o circunda, das árvores e pessoas

conversando, perde uma força que permitia uma escuta não saturada

de sua repetição; o som sozinho corre o risco de se desfazer em um

 barulho pouco desejado.

21.

Na idéia que apresento aqui de uma composição passo a passo os

procedimentos são totalmente informais, são decisões locais, para o

que contribui a idéia das incrustações. Decisões locais e não previstas

nos dados de saída. Claro que o ponto de partida já dá algumas dicas

de como prosseguir, a idéia reiterativa, os jogos de personagens. Falo

um pouco de Linha torta ,  para piano e violoncelo. Esta peça é um

pequeno móbile de quatro termos (quatro notas) que gira elentamente se deixa completar por outros sons, novas notas e ataques

de intensidades extremas ( forte ou  pianissimo), num tempo

cambaleante (pulsos quialterados), mas desenhando sempre, ou

quase sempre, o mesmo gesto de uma linha que serpenteia isócrona.

Não houve projeto original da peça, apenas um gesto (a permutação

 47 Cf. Deleuze, Gilles, Empirismo e subjetividade (op. cit.).

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de notas que desenha a linha), uma sonoridade (o “violoncelo carro

de boi”) e uma relação intervalar (o colorido das sextas e terças, que

poderiam remeter ao barroco). Se há alguma mobilidade na peça,

esta se deve a um pequeno e simples jogo de aumentar ou diminuir a

densidade da linha, a velocidade da linha, as novas notas que entram

lentamente no discurso, maior ou menor duração dos pequenos

 blocos-móbiles; movimentos de torção da linha sobre ela mesma. A

isto eu chamaria de processo composicional. No processo

composicional vale de tudo, cálculos, tentativas menos calculadas, no

sentido de simplesmente realizar a junção dos elementos paraesculpir o tempo e o espaço. Outro artifício para esta mobilidade,

este jogo de esculpir tempo e espaço, é também a inclusão de um

segundo personagem, um segundo gesto, que se contraponha à linha

como um corte brusco: o ataque piano+violoncelo, os acordes

estranhos ao piano, os pizzicati Bartók e os ataques de notas soltas em

fortíssimo ao piano. Todo um artifício de combinar e recombinar as

articulações e timbres. O novo personagem na forma de corte levaria

a escuta de um tempo-espaço para outro.

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Início de Linha torta.

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22.

Há ainda outra sonoridade acoplada à do carro de boi: a de objetosmetálicos (as chaves de casa) percutindo postes de metal nas ruas, ou

os corrimãos de ferro das escadas. No caso específico de Linha torta ,

as notas que geraram a peça nascem do acorde defectivo da série

harmônica de fá  , empregado em outras composições na formação dó-

mi-lá -dó# ,48 e que lembra a sonoridade das chaves percutindo o

metal. Em Linha torta  o acorde aparece em uma versão defectiva,

movendo a segunda nota de meio tom abaixo e a terceira de meio

tom acima, do-míb-láb-réb , agora transposto uma terça menor acima.

As notas que compõem este acorde foram encontradas por

experimentação, a elas são lentamente inseridas notas vizinhas em

relações cromáticas ou de terças menores, quase sempre

recompondo, ou permutando, notas de um acorde diminuto. Não se

trata, no entanto, de um simples uso de cálculos ou uma paixão

inexplicável pelos espectros abstratos. Este emprego de defectivas

está ligado à idéia de harmonicidade ou inarmonicidaderelacionadas à sonoridade que se quer como material. As

sonoridades retornam. Uma sonoridade familiar, e este e outros

acordes surgem como objetos encontrados. Vale ressaltar que cada

um desses acordes estranhos, com sonoridades metálicas (a chave

que bate no poste de metal), são deduzidos destas séries calculadas,

mas sempre experimentados ao piano em busca de sonoridades

metálicas a partir da simulação de espectros inarmônicos. Na

composição de tais acordes é importante a experimentação, vista a

disposição das notas geralmente na ordem de uma proto-série de

ressonância, constituídas de sétimas e nonas (no lugar de oitavas),

sextas ou terças no grave, de modo a haver sempre um acorde maior

ou menor, porém deformado por desvios cromáticos.

 48 Quase como um fetiche, empreguei este acorde em diversas peças: Window intothe pond , Les silences d’un étrange jardin , Dona Francisca , Casa vazia e Catedral das 5:45.

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Coleção de acordes cores: ressonantes (metálicos); acordes sinos; acordes de vidro.

23.

Falei das incrustações, do par material-forças e fica uma questão:

como este material todo se liga? Seria suficiente a simples pressão

temporal? Como os disparates se ligam em uma obra na qual cada

passo pode definir novo material, pode estar ligado a processos

composicionais diversos? Na composição de Ritornelo não havia um

plano primeiro, nem mesmo uma única estratégia composicional foiempregada. Técnicas as mais variadas vieram participar, também

passo a passo, sendo lentamente incorporadas ou abandonadas no

corpo da obra. Citaria então duas idéias. Primeiro a idéia de

Takemitsu, que nos lembra, em Confronting silence , que o silêncio liga

os disparates. Em uma música e escuta cujo interesse principal é a

qualidade individual do som, e não o som como forma de expressão

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ou forma de conteúdo, os sons são deixados para que se encontrem

livremente, como na natureza. Neste lugar do som quase que em si

mesmo, os disparates – cada som com suas características – são

ligados não mais pelas qualidades mas é o silêncio e a pressão

temporal que os relacionam em suas diferenças. Ao dizer que o

silêncio ou a pressão ligam e relacionam os sons, adota-se uma visão

inversa àquela que enfatizava a necessidade de elementos

unificadores da ordem da identidade e da semelhança. Takemitsu

ainda observa que, assim como no Teatro Nô, nesta música e escuta

de sons não há um personagem privilegiado cujo destino é o delegislar sobre a proximidade ou distância entre os outros. É neste

sentido que a incrustação apenas arrasta a escuta para outro tempo,

faz nascer outro tempo; assim como o gesto de corte que separa um

objeto de outro pode ser compreendido como um espaço silencioso.49

 49 Ver: Takemitsu, Toru, Confronting silence, Berkeley: Fallen Leaf Press, 1995, pp.56-58.

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A fórmula da reescritura

1.

Volto a falar um pouco desta coisa que são as sonoridades que nos

circundam, mas para trazer outra fórmula composicional: a da

reescritura. O que é a reescritura? É ser atraído por uma música de

outro compositor, de outro período ou de nós mesmos. Ser atraído

por uma música de outra cultura e querer reescrevê-la, porémexplorando não sua forma aparente, mas tentando extrair dela

aquelas forças que nos atraíram. O que pode estar em uma pequena

sonoridade: ouve-se uma música inteira e é um pequeno intervalo

arrastado de segunda menor que nos chamou a atenção. Por vezes é

como se a outra música se convertesse em um grande gesto a ser

refeito. São assim diversos os pontos de contato que entram em

questão na reescritura que acabam por implicar em etapas diversas

de análise do material sonoro e musical, seja uma análise no sentido

tradicional para identificar elementos melódicos, harmônicos,

técnico-instrumentais, seja em um sentido mais estendido como nas

análises espectrais e análises de procedimentos técnicos da obra

original. Deste modo a referência aqui deixa de ter sua função de

citação, o que implicaria em mecanismos de identificação de uma

música na outra, pois a obra original é retomada por sua força de

atração e não por sua referencialidade semântica (mesmo que estaporventura tenha participado de uma das etapas de aproximação).

2.

É principalmente de Berio que resgato a noção de reescritura. Berio

praticou esta forma de criação musical em diversas de suas obras,

desde a reescritura de suas próprias obras como em seus Chemins

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(afirmando várias vezes que este ciclo de peças foi a melhor análise

que realizara de suas Sequenzas), até a reescritura de música do

repertório das culturas tradicionais. É assim que ele compõe Coro ,

obra na qual figura a reescritura do grande coro de trompas dos

Banda Linda (África Central), transcrita pelo etnomusicólogo Simha

Aron.50 A composição de Voci e Naturale também se dá na forma de

reescritura a partir de cantos sicilianos, na maioria pregões e

vendedores de rua.51 Os exemplos de reescritura não são, no entanto,

um privilégio do séc. XX: no barroco a prática da reescritura é quase

que fato comum. Neste sentido, são de grande interesse astranscrições para teclados que J. S. Bach realiza de obras de

Alessandro Marcello, Antonio Vivaldi e outros compositores

italianos do séc. XVII e XVIII. Citaria ainda o Requiem de Mozart, o

qual vem atravessado por obras de Haendel, Pergolesi, Palestrina. 52

Voltando ao séc. XX, é nesta mesma linha de reescrituras que se

inscrevem diversas obras de Igor Stravinsky, como quando

acrescenta uma linha a mais em uma série de madrigais de Carlo

Gesualdo, e em todas as outras peças de seu período neo-clássico

como em Pulcinella , obra em que “re-instrumenta” e “harmoniza”

fragmentos de obras de Pergolesi. Mais recentemente, o compositor

Salvatore Sciarrino tem empregado esta prática composicional em

trabalhos que relacionam sua música com G. de Machaut, C.

Gesualdo, J. S. Bach, W. A. Mozart. As reescrituras de Sciarrino

 50  Cf. Arom, Simha, “Les musiques traditionelles d’Afrique Centrale”, inContrechamps, nº 10 , Paris/Lausanne: L’Age D’Homme, 1989 e “La ‘mémoirecollective’ dans les musiques traditionnelles d'Afrique Centrale”, in: Revue de

 Musicologie, T. 76, No. 2.51 Stoïanova, Ivanka, “Luciano Berio, Chemins en musique”, in : La Revue Musicale  ,triple numéro 375-376-377, Paris: Richard-Masse, 1985; Berio, Luciano, Rememberingthe future, Cambridge: Harvard Univ. Press, 2006; Stenzl, Jürg. “La languematernelle de Luciano Berio”, encarte do CD Berio-VOCI  Munique: ECM Records,2001.52 Wolf, Christophe, Mozart’s Requiem, Berkeley: Univ. California Press, 1991.

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trazem para a sonoridade do séc. XX as músicas da tradição histórica

desde música do séc. XII àquelas do próprio séc. XX.53

Em seu curto texto sobre Voci e Naturale de Berio, Jürg Stenzl aponta

três formas de aproximação para a reescritura. Primeiro, uma

identificação com o original: existe algum ponto que liga o

compositor a uma sonoridade que o atrai e lhe parece de interesse

composicional – digamos que seja seu agenciamento, a forma como

reúne sonoridades e referências. Segundo, retomar esta sonoridade

para experimentá-la, fazer dela um campo de descobertas através de

análises, escutas, detalhamentos. Por fim, uma terceira forma de

aproximação que consiste em ultrapassar o original, “abusar do

original”. Estas três etapas de aproximação, sobretudo a terceira que

consiste no desfazimento do original, distinguem a citação e o

pastiche daquilo que chamo de reescritura.54

3.Nas primeiras tentativas de praticar reescritura, utilizei a pequena

peça coral Bajulans , do ciclo de Visitação dos passos  atribuída ao

compositor mineiro Manoel Dias de Oliveira. Foi assim que escrevi

Capela do Rosário. Prados. MG ,55 e na mesma época a peça orquestral

Extemporânea.56 As duas peças têm como campo de reescritura a

seqüência de acordes do Bajulans , ampliados com notas deduzidas

do cálculo de fundamentais virtuais que estariam ligadas a estes

acordes. O cálculo neste caso é bastante simples e consiste apenas em

 53 Angius, Marco, “La voce sottovetro: da Sciarrino a Gesualdo” e “SalvatoreSciarrino: sulla coscienza compositiva”, in: Hortus Musicus. 2002.54 Stenzl, op.cit.55 Capela do Rosário. Prados. MG . (1985), para trombone e trompa. Estréia: “Festivalmúsica nova”. S. Paulo: 1985. Trio Música Nova.56 Obra inédita, embora conste do programa de concertos da “IX Bienal Brasileirade Música Contemporânea” de 1991.

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localizar possíveis fundamentais para as relações de terças e quintas

constantes no acorde original. O material então é tratado com

retardos e antecipações das notas dos acordes e das fundamentais

virtuais e posteriormente tratado ritmicamente. Este mesmo material

harmônico serviu ainda na composição de diversas outras peças.

Página do caderno de rascunhos com trecho de seqüência harmônica que serviu de base para composição de passagem dos instrumentos de metal de Extemporânea e

para Capela do Rosário.

4.

De um modo geral, a reescritura é simplesmente tomar um trecho de

música de outro compositor, uma frase, uma seqüência harmônica,

um timbre, e copiá-la de modo irregular, arrastando as notas para

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lugares errados, fazendo pequenos ou grandes retardos e

antecipações, esticando algumas passagens. Um uso mais agudo

desta forma de escrita empreguei no ciclo Arcos para Giacometti , para

trio ou duo de cordas. Este ciclo de peças é uma reescritura de

diversas peças de Vivaldi: Sinfonia em si menor, al Santo Sepolcro  e

trechos do “Verão” das Quatro Estações. Do início da Sinfonia , foi

reescrita a lenta sobreposição de segunda menor ( fá#-sol) retomada

diversas vezes ao longo da primeira peça do ciclo, “Pequena onça

com cordeiro”. O intervalo de segunda menor, que no original de

Vivaldi é sustentado por um longo compasso, é prolongado emdiversos momentos desta primeira peça, sobretudo na sua parte

central (p.4 da partitura), momento em que o violino realiza uma

série de passagens rápidas com timbre alterado ( punta d’arco , sul

 ponticello e arco rapido-aspirato), como se alguém ouvisse a peça de

Vivaldi ao longe, em meio ao vento, de dentro de uma caixa

reverberante de vidro, ou ainda com o ouvido semi-coberto pela mão

em concha. Contrapostos ao violino, a viola e o violoncelo sustentam

as notas originais de Vivaldi (sol e fá#) com o acréscimo da nota  fá aumentando ainda mais a sensação de rugosidade da dissonância.

As notas que se seguem na partitura de Vivaldi ( lá#-si) , e a proto-

melodia realizada pelo violino, também estão transformadas no trio,

e igualmente a cargo do violino agora com arco  poco a poco écrasé .

Também num contraponto de camadas, a viola alude Vivaldi

mesclando peças diferentes: a harmonia vem realizada em colcheias

que pulsam como nas semicolcheias pulsantes do início da ária“Gelido in Ogni Vena” da ópera Farnacce.

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Trecho do rascunho de “Pequena onça com cordeiro”, primeira peça do ciclo Arcos para Giacometti em que se dá a reescritura dos primeiros compassos da Sinfonia em

si menor de Vivaldi.

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Partitura manuscrita de Vivaldi, início da ária “Gelido in ogni vena”.

5.

Em outras passagens de Arcos para Giacometti  também realizei

reescrituras, porém de forma menos específica. Em “Adagio”,

terceira peça do ciclo, a referência são as passagens com arco forte erapidamente raspado da tempestade do “Verão” das Quatro estações.

É o gesto instrumental que é levado em conta na reescritura – gesto

que será lentamente deformado. Este gesto é retrabalhado com o uso

de seqüências não periódicas de fusas (13, 3, 9, 5, 5…) em frases

estanques cromaticamente moduladas. O título “Adagio” diz

respeito à lentidão da transformação harmônica e não ao andamento

(allegro vivace).

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Início do “Adágio”, com uso de notas reiteradas rapidamente, como umatempestade.

6.

Ainda no que tange ao gesto reescrito, outra sonoridade de cordas do

 barroco retomadas em Arcos , é a bariolage. São utilizadas falsas

bariolages , parte-se de um acorde em bariolage e vai-se deslocando as

notas de meio em meio tom em cordas alternadas. A bariolage aparece

não só no “Adagio”, mas também nas outras peças do ciclo Arcos

 para Giacometti e em Lamento quase mudo , para violoncelo solo.

Trecho de falsa bariolage em “Adagio”, passando do violoncelo para o violino.

7.

Lamento quase mudo também faz uso da fórmula da reescritura,

porém em diversos planos. Primeiramente, a própria idéia de

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lamento que vem do “Lamento de Ariane” do Orfeu de Monteverdi.

Do lamento extraí duas idéias-gestos: o movimento das resoluções

descendentes das dissonâncias e os movimentos melódicos

cromáticos ascendentes dos retardos. Como me lembrou a

violoncelista Teresa Cristina Rodrigues, que realizou a estréia das

duas peças, nos lamentos barrocos as apojaturas podem ser

trabalhadas longas ou breves, convenientes ao “afeto” que se deseja

extrair. Digo afeto aqui não no sentido de um significado para cada

modo de realizar as apojaturas, mas no sentido de um afeto da

apojatura ela mesma, cada uma com seu afeto, uma apojaturadistinguindo-se das outras, já que não me interessa privilegiar ou me

valer de afetos específicos, sendo o bastante aquele afeto aludido

pelo simples fato de as peças serem lentas, contínuas, arrastadas.

Mais interessante do que codificar ou decodificar afetos, interessa-me

no processo de composição desta peça de que maneira os lamentos,

as cordas raspadas dos violinos, violas e violoncelos, como tudo isto

pode se encontrar com o som das rodas de um carro de boi.

8.

Em Lamento  as apojaturas são tomadas como principal elemento

composicional. A primeira parte da peça (visto que a peça toda é

cortada por duas incrustações) é praticamente toda de apojaturas

reescritas. As apojaturas passam assim por uma série de variáveis

das quais cito três como exemplo: apojaturas simples de uma só nota,amplas apojaturas de mais de uma nota (estas duas formas são

observáveis logo na primeira linha da peça) e os  gruppeti em notas

rápidas.

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Duas linhas Lamento com exemplos de três “apojaturas”.

Esta tipologia não foi formulada, no entanto, de antemão. Ela se deu

apenas na forma de análise do material depois de já ter escrito mais

de uma página do rascunho. Tais apojaturas acabam imprimindo à

peça sempre uma sensação de condução melódica em vista de uma

resolução sobre uma ou outra nota, mas como não se tem uma

tonalidade ou um centro modal específico, esta resolução é sempre

prorrogada.

9.

 Já comentei a reescritura do “gesto tempestade” tomado de

empréstimo de Vivaldi. Ele aqui reaparece como incrustação. De

fato, Lamento são duas peças entrelaçadas, uma para viola solo eoutra para violoncelo. A “tempestade muda”, pois é realizada com

arco étouffé   de forma a resultar em uma sonoridade mais eólia e

distante, foi imaginada como início de uma peça para viola que

posteriormente foi incorporada como incrustação em Lamento. Aqui

se segue o mesmo procedimento usado na escrita de “Adagio” de

Arcos para Giacometti: notas “esfregadas” rápida e violentamente

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contidas, que se movem gradualmente (segundas menores). São

irrupções de frases que escutadas na seqüência de apojaturas de

Lamento acabam por se assemelhar àquelas apojaturas.

Reescritura da "tempestade" em frases-fragmentos que se desenvolvem em lentocromatismo.

10.

Lamento agrega assim diversas reescrituras, não apenas das cordas do

 barroco, mas também do cruzamento destas com os instrumentos de

percussão ouvidos nos tambores de crioula – porém tão deformados

que não são notados como tal, apenas resta o aspecto percussivo que

poderia ter vindo de qualquer outro lugar. O fato é que tais

“tambores” estão integrados à peça na forma de cortes e em

momentos de permutação intensa também como incrustações, pois

impõem outro ritmo e textura às passagens em que se inserem. A

outra reescritura integrada diz respeito ao já tão evocado carro de

 boi. Uma longa nota pedal é contraposta a uma “melodia” de frase

fragmentada, levemente ofegante, à distância de uma oitava da nota

pedal. A frase “ofegante” relaciona-se ao distanciamento de linhas

comentando anteriormente. Trata-se de um distanciamento lento earrastado, na forma de longas e breves apojaturas entrecortadas por

pausas, de modo a simular uma respiração ofegante.

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Dois momentos de Lamento: “tambores” e “carro de boi”.

11.

A forma-seqüência de Lamento é resultado das incrustações: as

apojaturas (como primeira linha), os “tambores” (segunda linha), o

carro de boi (terceira linha) e a “tempestade” (quarta linha). Ainda

poderia elencar mais algumas linhas incrustadas nesta peça, mas oque interessa pensar é o fato de que tais “linhas” não foram

concebidas uma em relação à outra, mas independentes umas das

outras, e apenas interpostas uma à outra.

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Plano de composição resultante de incrustações em Lamento quase mudo:apojaturas/tambores/apojaturas/tambores/carro de boi

/tempestade/tambores+apojaturas/carro de boi com elementos de música barroca.

12.

A peça é assim uma sucessão de cortes, onde o que foi almejado

composicionalmente foram tanto os blocos, cada grande momento

que chamei de “linhas”, quanto os momentos de cortes e micro-cortes. É o corte que quebra o rumo das coisas e dá nascimento ao

tempo (falarei disto especificamente no “segundo livro”). O que

estou chamando aqui de tempo é tempo musical, tempo de escuta, e

não tem nada a ver com tempo para as ciências, para os relógios ou

mesmo para a filosofia. Tempo aqui é uma ferramenta de

composição e imagino assim que o tempo nasce justamente quando

os ciclos permanentes se rompem, quando as coisas param de

funcionar como vinham: “estou olhando pras nuvens (como se diz) ede repente um barulho me chama a atenção, quebra a calmaria, e me

dou conta de que estou ali já tem mais de cinco horas”. Vale apenas

dizer que tal especulação sobre o tempo não é filosofia, nem ciência, 57

é música mesmo, é só música.

 57 Mesmo que faça referências à filosofia ou à ciência, não se trata aqui de umestudo no escopo destas áreas, e sim de uma leitura musical do tempo, ou melhor,

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13.Surge assim, com as incrustações, com o material truncado

(“ofegante”), um cruzamento da idéia de desenho com a de gesto

deformado, dando nascimento a um problema de “tempo”. Não sei

qual vai ser o percurso completo da peça quando começo a escrevê-

la. O que tenho é um ponto de partida, um ou mais objetos-sonoros e

possíveis linhas de deformação. Não sei quais serão as sonoridades

decorrentes destes objetos, nem qual o percurso completo. Isto põe

um problema não de equilíbrio das partes da peça, mas de como

manter uma pressão temporal ou criar ilhas de silêncio que

favoreçam a escuta da peça.

14.

Um dos modos que uso para resolver este problema de tempo está

em pensar uma peça como uma sucessão de ciclos de tensão. Cadaciclo com duração diferente, uns completos, outros incompletos, uns

que se afastam excessivamente de um suposto centro, outros que

circulam apenas nas imediações deste centro, uns que oscilam

regularmente, outros que saltam. Neste sentido concorrem as idéias

de sístole-diástole, contração-expansão, centrífugo-centrípeto, o que

é realizado a partir do controle de densidade, direcionamento no

espaço de alturas (tender para o agudo ou para o grave), velocidade

das componentes, intensidade.

 

uma leitura composicional do tempo na música que eventualmente se vale deimagens-fórmulas roubadas destes campos de conhecimento.

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Os ciclos como em uma partitura.

Dou um outro exemplo, desta vez musical, nas 10 peças para quintetode sopros de György Ligeti, creio que não seja difícil procurar aqui as

forças de expansão e contração.

Ligeti: transcrição gráfica da partitura da peça 5 das 10 peças quinteto de sopros.

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15.Existem diversos desenhos de Paul Klee que podem servir para

visualizar esta forma de construção de ciclos, de ritmos.

Desenhos de ciclos em Klee.

16.

Os ciclos podem transitar de um para outro, serem cortados ou

sobrepostos. Imagino aqui uma escala de transições entre as partes: a

transição gradual (dégradé ) e o grande contraste. Evito empregar a

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passagem do tipo fade-in/ fade-out , é uma obviedade do séc. XX, e uso

passagens por um mecanismo de ponderação de densidade (forma

empregada pelo compositor G. Ligeti) por ser mais elaborada e por

permitir variáveis que não são possíveis nas transições do tipo fade-

in/ fade-out.58

Exemplos de passagens entre duas texturas.

17.

Mas como saber qual passagem, se gradual ou brusca, é mais

adequada? É uma ponderação quase que intuitiva. Tenho para mim

uma escala para trabalhar uma textura quanto à sua duração,

densidade, pressão harmônica e temporal. Se imagino o curso deuma música como um organismo vivo, grandes cortes geralmente

realimentam todo o organismo, enquanto transições graduais não

têm esta força. Paul Klee observa que o corte e a transição gradual

são a real medida do conteúdo dramático de uma arte temporal. Ao

 58 Daria como exemplo o “Presto” da Sinfonia 9 de Beethoven, do qual tratarei maisadiante ao falar do tempo musical.

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longo de uma música pode-se pensar que o “sistema de escuta”

perde energia, e que um corte tem a força de realimentar este

sistema; e que os cortes bruscos talvez não sejam necessários nas

primeiras mudanças de textura, mas são de grande importância para

realimentar o sistema de escuta quando se está a 2/3 da peça. Pensei

nisto ao compor a guia de improvisação depois vertida em partitura

de Várzea dos pássaros de pó. É claro que todas estas normas são

relativas – por exemplo, Bartók faz exatamente o contrário, no

grande corte que realiza logo no primeiro terço de  Música para cordas

 percussão e celesta , ou na Sonata para dois pianos e percussão.

Transcrição gráfica de Várzea dos pássaros de pó.

18.

Antecipo um pouco o que falarei mais adiante quanto ao tempo e a

como venho pensando este tempo e trabalhando sua presença na

música. No segundo livro desta tese, apresentarei mais

detalhadamente esta concepção do tempo. Mas, adiantando um

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pouco, de um modo geral distingo dois extremos: a paisagem sonora

e a paisagem melódica.

19.

A paisagem sonora é estática, mesmo quando composta de pequenos

movimentos. Uma paisagem sonora é uma sobreposição de

pequenos ciclos periódicos de sonoridades e suas micro-variações.

Como uma paisagem cheia de pássaros, as ondas do mar em uma

praia, uma avenida movimentada, o som da madrugada, o som danoite, uma fábrica. A paisagem é movida, mas aparentemente

sempre no mesmo lugar. Uma paisagem sonora pode ser natural, de

pequenas variáveis e períodos irregulares, ou artificiais, como uma

fábrica, com períodos mais regulares. Mesmo quando uma paisagem

sonora se modifica, a gente não percebe claramente, a não ser que

haja um grande corte, algo súbito. Na paisagem sonora não há tempo

intensivo e o tempo extensivo está suspenso.

20.

A paisagem melódica é diferente da paisagem sonora. Ela também

tem ciclos e quebra de ciclos, interrupções e transformações lentas,

mas suas transformações se dão em um tempo que é percebido na

escuta musical. Existem paisagens sonoras que evoluem como um

dia inteiro, ele é composto de ciclos sonoros que lentamente sedesenrolam, mas não conseguimos ouvir um dia inteiro como uma

só e grande seqüência. É preciso compactar o dia em poucos minutos

para torná-lo paisagem melódica. Mas de fato, tanto o dia que se

transforma quanto a música são ouvidos passo a passo e não em sua

forma global, e com isto a escuta é uma escuta que distingue

permanências (paisagens sonoras estáticas e paisagens evolutivas) e

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transiências (cortes, instabilidades). Tenho para mim que o tempo

musical só nasce no momento em que as permanências se desfazem e

aparece o que poderíamos chamar de tendências. Teríamos antes

disto um tempo ainda da paisagem. Ouvindo um trecho musical

podemos deduzir como ele evoluirá: uma escala tem uma tendência,

um aumento ou diminuição de densidade também. É como no

dégradé  pictórico, há uma tendência de uma cor para outra, de um

tom para outro. E a composição é um jogo de dosagem entre

paisagens estáticas, evolutivas, cortes, instabilidades e passagens

graduais (dégradés).

21.

Em Lamento esta idéia do tempo está pensada de modo molecular, ou

seja, são pequenos instantes de sístole-diástole – a melodia ofegante

que escapa lentamente à nota pedal, as notas quase tremulo que se

distanciam por intervalos contíguos, as apojaturas breves-curtas-longas- gruppeti  –, instantes pensados desde a composição de cada

personagem até a composição do ciclo completo, ponderando-se,

como em Várzea , a duração de cada momento, de cada seqüência

longa e o lugar das irrupções de cortes.

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segundo livro:

páginas sobre tempo e espaço na composição musical

“1. todo agir requer esquecimento:

assim como a vida de tudo o que

é orgânico requer não somente luz,

mas também escuro.”

Nietzsche, Considerações extemporâneas

1.

Neste pequeno “segundo livro” pretendo falar sobre o tempo

musical.1 Pensei nisto como uma conversa com o filósofo brasileiro

Luiz Orlandi. No entanto, abordarei este conceito (extremamente

complexo no campo da filosofia e da ciência do séc. XX) como sendo

um problema composicional. O que seria o tempo musical, para um

compositor, no momento mesmo em que concebe sua música? Emais, como este tempo dialoga com outra questão que se impõe

constantemente, o espaço? Pretendo assim discorrer sobre o tempo

tendo o espaço como ponto de partida. E é neste sentido que reforço

o fato de que é preciso certo cuidado para não confundir aqui as

noções cotidianas que temos de espaço e tempo com aquelas que irei

empregar ao longo deste texto.

Começo então pelo espaço. O que entenderei por espaço? Muitasvezes pensa-se o espaço musical através das dimensões cotidianas de

 1 Este pequeno texto tem um precedente publicado em lingua brasileira o qual nãopoderia deixar de ser citado aqui, o livro Do tempo musical do compositor EduardoSeincman. O presente texto não é, entretanto, uma complementação oucontraponto ao livro de Seincman, mas sim um percurso totalmente diversodaquele em que vêm detalhados os conceitos de tempo, duração, instante, emBachelard e Bergson e suas presenças na música clássico romântica. Cf. Seincman,E., Do tempo musical , S. Paulo: Via lettera / Fapesp, 2001.

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espaço: profundidade, largura, altura. Este espaço é aquele que

chamarei aqui de espaço extensivo. Ele é mensurável, divisível.

Podemos subdividi-lo em intervalos iguais, diferentes, em

freqüências, em centímetros, em palmos, em gradações luminosas.

Espaço extensivo. Existem trabalhos diversos sobre este espaço

musical, e esta dimensão ganhou uma forte presença na música do

séc. XX. De uma maneira geral, são trabalhos que se referem

necessariamente à ciência. Mas não é este espaço que vai me

interessar. Se bem que o espaço extensivo foi constantemente

deformado pelos compositores, desde as proposições de Varèse, suaidéia de refração do som, à difusão eletroacústica. Varèse imaginava

uma música que se deslocasse no espaço físico da sala de concerto;

imaginava a refração do som e se valeu desta idéia para realizar

grande parte de suas fabulações musicais. Deste modo, dizemos

espaço musical tanto para o espaço visual de uma partitura, o

distanciamento das notas, o valor de cada nota, os timbres

instrumentais, até o espaço de performance, a difusão de cada

instrumento ou a difusão por alto falantes.2 Mas existiria ainda outra

maneira de se conceber e fabular o espaço: o espaço intensivo. E é

este que vai me interessar particularmente para adentrar a questão

do tempo na música.

Os mesósticos de Cage são espaços intensivos. Nos seus mesósticos,

Cage modula um espaço mensurável, a folha de papel. Ou seja, o

papel perde suas medidas. No espaço intensivo não há medidas nemvalores justos que possam subdividir o espaço. Se a folha de papel

sozinha é mensurável, se podemos encontrar suas proporções,

calcular sua área, não é o que acontece depois que um mesóstico é

desenhado nesta folha. Qualquer subdivisão passa a ser apenas uma

 2 Neste sentido, ver: Freire, Sérgio, Auto, alter, alto-falantes,  tese de doutorado, PUC-SP, 2004.

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tentativa, uma especulação breve de leitura. Poderia dizer então que

Cage subverte as medidas do espaço. Dei o exemplo de Cage, mas

poderia ter falado de Klee, de Kandinsky, de Earl Brown, de

qualquer trabalho no campo das artes visuais. Fazer um espaço

intensivo é justamente um dos jogos das artes visuais. Bem como a

música torna sensível à nossa percepção um tempo intensivo, as

artes visuais tornam sensível um espaço intensivo. Fica assim que

neste texto, o espaço será entendido apenas como sendo aquilo que

faz com que se note a existência de um lugar – o que, no caso da

composição musical, faz do compositor aquele que desenha o lugarem que se passa a escuta.

É por pensar o espaço como sendo a existência de um lugar que

posso pensar a música também como um domínio de desenhar

espaços. Assim, cada música desenha um lugar específico, um lugar

de escuta por onde passeia o “ser da escuta”. Por ora direi apenas

que o “ser da escuta” não é apenas o ouvinte, mas algo mais

complexo do que isto (como voltarei a falar mais adiante). Como se

dá então este fazer o espaço, qual a ação do compositor neste jogo? O

compositor é aquele que desenha os limites do espaço, 3 é ele que

num primeiro momento diz o que tem e o que não tem no espaço, e

determina assim a presença; a permanência ou não permanência dos

objetos que ele põe neste espaço. O ouvinte desdobra este espaço,

mas uma coisa é clara: ele o desdobra apenas com aquilo que já está

no espaço. O ouvinte pode trazer coisas para participar deste espaço– uma ou outra lembrança, um ou outro dado teórico, histórico,

conceitual –, mas no espaço de composição está apenas aquilo que o

 3 Esta idéia se assemelha bastante à proposta de Claude Lévi-Strauss, tal qualapresentada por Gilles Deleuze em “À quoi reconnaît-on le structuralisme?”, in:L’île déserte et autres textes, Paris: Minuit, 2001. Para Lévi-Strauss a estrutura é umreservatório em que coexistem coisas atualizadas, sensíveis, e virtuais, e que taisvirtuais são atualizados sempre segundo direções exclusivas, condições concretasque excluem certas atualizações (pp.250-251).

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compositor ali colocou e que o músico realiza (seja numa

improvisação livre, seja numa peça de partitura extremamente

definida, seja em uma peça acusmática). É como uma viagem: posso

levar roupas e tudo o mais, mas o caminho da viagem, o lugar onde

estarei, tudo isto estará lá composto anteriormente por alguém. O

espaço é assim composto de coisas e vou chamar tais coisas por

imagens, um pouco ao modo de Bergson em  Matéria e memória.4 O

espaço ou o lugar é composto pelas imagens ao mesmo tempo em

que ele é resultado da reunião e do movimento destas imagens. As

imagens estão nele e ele é as imagens que nele emergem. Outra coisacerta é que o espaço, o que o diz como espaço, é a presença destas

imagens e para que ele se desenhe é necessário que tais imagens

possam permanecer, mesmo que seja por um curto tempo. É preciso

um mínimo de tempo sensível de permanência para que se funde e

se desenhe um espaço. Se as coisas forem mutáveis demais, se forem

exageradamente transientes, fica difícil de o espaço ser desenhado.

Considerando esta possibilidade, poderia dizer que existem espaços

com imagens de maior ou menor permanência e podemos dizer que

os espaços têm velocidades distintas. Para que se dê a permanência,

reconheceria aqui duas estratégias: a reiteração direta e a

ressonância; eco e reverberação. Um bom exemplo das duas

estratégias, sobrepostas, aparece em O King de Luciano Berio, peça

em que o compositor emprega tanto as reiterações de um pequeno

conjunto de notas cantadas pelo coro, quanto a ressonância deste

conjunto ao ser ampliado pelos instrumentos da orquestra quedesdobram as notas sem seguir exatamente a sua ordem na série em

que são apresentadas pelas vozes, contrapondo ainda esta máquina a

outra, em que notas que não estão na primeira série desfazem a

plenitude constante do espaço harmônico. É o mesmo que ouvimos

 4 No “primeiro livro” chamei de imagens a tudo aquilo que e constitui uma forçano plano.

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numa paisagem sonora: um canto de pássaro, diversos cantos de

pássaros, o vento, o ruído cíclico das ruas de uma cidade, o barulho

de uma porta que abre e fecha com grande constância em um bar,

todos estes objetos cíclicos desenham lugares, independente da

referencialidade que possam conter. São espaços criados pela

permanência de certas sonoridades, pela permanência de um modo

de conexão entre sonoridades, de modo que se evidencie um ou mais

ciclos de vai-e-vem, sobrepostos ou simples. Neste mesmo sentido,

outro exemplo fascinante são as esculturas sonoras do suíço Jean

Tinguely ou os móbiles de Alexander Calder.

2.

São assim duas as formas de os objetos ganharem permanência: pelo

seu desdobramento, em ampliação ou espessura, e pela proximidade

de suas reiterações; esses seriam como fatores que não os deixam sair

de cena. Claro que aqui imagino que a percepção das coisas é

ligeiramente descontínua, que ela é feita de pequenas presenças

reiteradas, e para isto bastaria citar o cinema, citar novamente

Bergson, as taxas de amostragem de áudio-digital etc.5 Definindo

agora, de forma mais direta, o espaço é a permanência de imagens –

sendo que esta permanência não implica que o espaço seja

necessariamente estático, as imagens estão em movimento, porém

mantidas em cena como pequenos pontos de ligação entre um

momento e outro, o mínimo suficiente para que se completem ciclos,

ou seja, a repetição do fluxo aparecimento-desaparecimento. Assim,cada imagem é notável por constituir no mínimo um ciclo, o

suficiente para ser sensível e pensável. As imagens também

constituem ciclos, nos quais podem variar de posição ou de

aparência. Se observarmos com calma cada detalhe do espaço vivo,

 5 Sobre a noção de contínuo e descontínuo em Henry Bergson, ver  Matière etmémoire , Paris: PUF, 1939 e Gilles Deleuze, Cinema 1 – l’image-mouvement,  Paris:Minuit, 1983.

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notaremos que alguns de seus componentes variam enquanto outros

são constantes, e nesta dança cada qual muda seu estado, passa de

variável a estável e vice-versa. Observar um espaço é sempre estar

localizando algo que muda e algo que permanece num conjunto

infinito de micro-ciclos dentro de um desenho que parecia limitado.

O espaço se define apenas pela permanência de algum traço comum

na reiteração ou variação de um ciclo regular ou não de imagens. No

dia-a-dia é comum ouvirmos paisagens sonoras, a paisagem de som

em nosso entorno. E como posso definir a paisagem sonora? Um

som, outro som, o retorno do primeiro som, o retorno do segundo,um terceiro, e assim seguindo o curso dos ciclos e sobreposições de

ciclos. A contração destes ciclos na escuta pode gerar a idéia de um

contínuo, e a idéia de micro-ciclos pode gerar o que chamamos de

um som longo como uma nota pedal. A paisagem sonora é assim um

espaço.

3.

No âmbito circunscrito por esta definição específica de espaço, fica

determinado também que um espaço não pode mudar de súbito,

pede-se que ele permaneça como uma nota longa ou uma textura

constante, como em Atmospheres de Ligeti ou em Partiels de Gerard

Grisey. Nestas duas obras os compositores tanto desenham espaços

estáveis como operam transformações nas superfícies sonoras que

criam – rompem ou transitam entre ciclos distintos de imagens:

Ligeti empregando mais livremente a noção de corte (a mudançasúbita de uma paisagem, de um espaço) e Grisey operando cada um

dos blocos que compõe (a peça é subdividida em blocos) por

transições graduais. Mas por que não falar de mudança súbita de

espaço? Antes pretendo falar da segunda dimensão com que

 jogamos – o tempo – para só então falar das mudanças súbitas de

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espaço. Por enquanto é necessário que não haja mudanças para que

se estabeleça um espaço.

4.

Quando nasce o tempo? Se o espaço trata da permanência, posso

pensar o tempo como sendo seu contraponto. O tempo nasce quando

a permanência é rompida, quando o espaço se desfaz pontualmente,

no istmo preciso de um corte. Os primeiros ciclos, por proximidade,

que desenhavam o espaço, podem ser entendidos como sendo

hábitos. Um hábito pode fundar o tempo, mas pode ainda pertencerao espaço. O espaço fundaria assim o tempo através da noção de

ciclos rompidos, de espaço quebrado. Mas o tempo mesmo, quem

fundamenta o tempo? Para não falar sozinho sobre este tema, diz

Deleuze ao ler Kant que o tempo é fundamentado pela memória. A

memória em suas três vertentes: a imediata, a curta e a de longo

termo. E do que trata a memória? Ela trata da não permanência; da

transformação e do esquecimento.6

5.

Transformação e esquecimento: a transição, mesmo que lenta, e o

corte brusco dão então nascimento ao que chamarei aqui de tempo.

Mesmo que o tempo já tenha sido fundado sobre o falso contínuo,

aquele de micro-ciclos contraídos, ou pela reiteração imediata, é

somente quando a permanência se desfaz que me dou conta de que

ele existe – o tempo nasce para mim quando perco o chão. Atransformação contínua e o corte retiram, em velocidades diferentes,

o chão; retiram a base, e tudo que estamos vivendo se torna quase

que solto, sem contigüidade. Mas o compositor pode refazer o 6 Tal temática é trabalhada por Deleuze em Diférence et répétition , Paris: PUF, 1968.Mais precisamente nos capítulos sobre as três sínteses do tempo no segundocapítulo do livro “A repetição para si mesma”. São também de grande interessepara esta abordagem as aulas de Gilles Deleuze sobre Kant, aulas de 14, 21 e 28 demarço e 4 de abril de 1978 (disponíveis em http://webdeleuze.net).

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contíguo com as retomadas. Então, junto ao longo som pedal e aos

ciclos de permanência, são necessários outros retornos, o nascimento

de outro espaço, um espaço enlouquecido que pouco a pouco ganha

consistência. E quando falo no “nascimento de outro espaço” estou

falando de outro espaço de escuta, outra forma de escuta, cada

espaço pedindo uma forma de escuta. É o que realiza Luciano Berio

na primeira canção de Circles. São diversos micro-ciclos que se

sobrepõem a outros ciclos maiores (expansão de tessitura, ampliação

dos saltos intervalares) para em um último momento operar o salto,

sair da escuta melódica e mergulhar na escuta textural. Berio operanesta peça uma interessante itinerância da escuta. Começamos

ouvindo um jogo melódico, ciclos de canto contrapostos à harpa.

Tudo se passando no âmbito da melodia e do colorido da voz

(ordinario  e boca chiusa). Este campo de escuta transforma-se

totalmente ao final da primeira “canção”. Berio deixa de moldar sua

música a partir dos jogos melódicos e traz à tona a sonoridade do

texto cantado e, de súbito as consoantes do texto são transformadas

em sons dos instrumentos (sand-blocks  e maracas) como se fossem

cantadas pelos instrumentos. Salta-se assim da escuta de um tempo

em que os ciclos melódicos são de grande importância, momento de

pequenas permanências por ciclos, e passa-se a outro tempo, no qual

é a textura sonora que coordena a escuta – mergulha o ouvinte em

um tempo liso, contínuo, em que todo dado de memória (seja curta

ou longa) torna-se desnecessário. Este é o ser da escuta: este que salta

de um espaço para outro e que funda tempos de escuta.

6.

Visto assim, só me dou conta do tempo, ou o tempo só nasce, quando

se dá a quebra do espaço, quando se dá a quebra das permanências:

e o compositor, para fundar o tempo em sua música, precisa desta

quebra e para que depois ele pretenda novamente desfazer o tempo e

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inventar outro tempo, o da memória, será preciso um passo a mais: o

compositor deverá também fazer esquecer, esquecer para que o

retorno seja de fato um retorno e não apenas simples permanência

intercalada. Por exemplo, uma imagem que volta constantemente:

esta volta constante indica uma permanência. Se ela continuar

voltando constantemente mesmo que intercalada com outra imagem,

esta segunda imagem perde sua potência de corte, as duas imagens

assim se constituiriam em uma só imagem, igualmente permanente.

Portanto, é necessário que haja um espaço suficiente entre uma

imagem e seu retorno para que haja o esquecimento. Só assim nasceo tempo.

7.

 De fato o simples corte já opera um esquecimento, pois é pelo

esquecimento que posso abandonar o espaço calmo em que estava e

me lançar em novos espaços; sem o esquecimento não consigo viver

o abandono, mas somente uma histérica permanência. Em música,

muito falamos e estudamos sobre a volta, a presença, a repetição e a

variação, sobre a memória, mas deixamos de lado este fator

importante que é o esquecimento.7

8.

Earth dance , do compositor inglês Harrison Birthwistle, é um exemplo

de paisagem em evolução. A peça é uma sobreposição de ciclos, em

que os objetos estacionam em pequenos ritornelos cheios devariações, como em um móbile em que as peças mudassem de cor e

 7 O compositor Daniel Charles dedicou um estudo sobre esta questão em seu livroLe temps de la voix , mais especificamente no capítulo “La musique et l’oubli” noqual narra a escuta musical que corre sempre na rabeira de um som que se lançaincessante para o passado e ao invés de viver o momento das conexões presentes,perde o presente da escuta em detrimento de reconhecer peças do jogo, tentandoparar o tempo para resgatar esses elementos que se lançam ao passado. Charles,Daniel, “La musique et l'oubli”, in: Le temps de la voix , Paris: J.-P.Delarge, 1978.

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forma a cada volta, mas ficando sempre claro que giram, que há

ciclos. Um pouco do que Messiaen chamou de frase comentário.8 Em

alguns momentos de obras do compositor Heitor Villa-Lobos a

situação é muito semelhante à construção de paisagens sonoras. E as

paisagens de Villa são, diríamos, tropicais, cheias de planos

sobrepostos – ouve-se certa profundidade no espaço criado pelo

compositor e os pequenos e grandes ciclos.9

As permutações de Messiaen em “Dance de la fureur pour les sept

trompetes” do Quatuor pour la fin du temps , assim como diversosmomentos de Dialogue de l’ombre double  de Boulez, ou a grande

maioria dos cantos de pássaros e cantos de culturas tradicionais são

exemplos de ciclos realizados com imagem variáveis.

 8 “O comentário é um desenvolvimento melódico do tema. Um ou demaisfragmentos do tema são repetidos sobre diversos graus diferentes de um tomoriginal, ou ainda em outros tons, e variado rítmica, melódica e harmonicamente.O comentário pode também desenvolver elementos estranhos ao tema, mas queapresentem com este uma certa concordância de acentuação”. Messiaen, Olivier,

Technique de mon langage musical , Paris: Leduc, 1944.9 Observo a esta altura do texto, que estou a todo momento falando de ciclos, e nãode instantes, durações, partes. Mesmo quando mais adiante empregar o termopartes, estarei falando de ciclos. Ciclos completos e incompletos. Ciclos que se dãorelevantemente à percepção. Esta idéia condiz com as críticas de Gérard Grisey emseu artigo “Tempus ex machina: a composer’s reflection on musical time”(Contemporary music review , vol .2, London: Harwood Acad. Press, 1987) àconcepção de um tempo extensivo praticamente estático, feito da somatória deinstantes, durações e partes. Neste artigo Grisey comenta ironicamente: “Talveznosso super-homem tenha sido agraciado com uma memória tal que o permitereconstruir a duração inteira de uma obra, a posteriori, com o que ele poderáreconstruir e classificar se ela é simétrica ou não!…” (op.cit. p. 242).

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Paisagem permanente natural variável; rua, mata, água que corre etc.

Paisagem permanente artificial, constância dos motores de uma fábrica, máquinasdomésticas etc.

Paisagem natural com interferência de um novo bloco de som, uma igreja que tocaao meio dia.

9.

Pensando no tempo como uma quebra de espaço, um tempo que

nasce do espaço, posso imaginar outras formas de me relacionar com

o tempo. O tempo não seria mais sucessões, um tempo extensivo,

mas apenas sinal de quebras de permanência, grandes quebras ou

micro-quebras, um tempo intensivo (nem do presente, nem do

passado, nem do futuro, mas uma conexão incessante e instantânea

desses lugares).10 E é assim que podemos literalmente entrar no

tempo como propõem as poéticas de Giacinto Scelsi e Salvatore

Sciarrino: Viaggio al centro del suono.

 10 Em “Sur le temps” ( op.cit., p.40), o compositor Iannis Xenakis lembra que amúsica é uma arte que participa tanto do fluxo temporal quanto do espaço hors-temps.

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10.

Para uma paisagem variável, a estratégia pode ser a da permutação

ou a da frase comentário,11 como a reiteração direta de um perfil, de

um núcleo que funcione como pólo, de um objeto sonoro

parcialmente reiterado, mas que mantenha sempre traços de

familiaridade. Lembrando que este processo, no caso de objetos-

musicais, não implica na reiteração de notas, mas na simples

manutenção de uma forma geral. Núcleo polar seria aquela

reiteração estabilizada em uma nota polar, uma nota em posiçãoprivilegiada e sempre reiterada (nota final, nota de apoio, nota de

partida), como uma rima. São exemplos desde cantos de pássaros até

muitas das melodias em música de culturas tradicionais, ou nas já

citadas máquinas de Tinguely.

Melodia pendular: canto de pássaro.

 11 Cf Messiaen, Technique de mon langage musical , op.cit.

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“Akazehe a dois”, Burundi. Note-se o retorno constante sobre a nota sol em posiçãoprivilegiada e repetição tipo forma comentário.

11.

Numa paisagem sonora sobrepõem-se não apenas séries

homogêneas mas sobretudo séries heterogêneas, cada série podendo

ser coordenada, cada pequena série podendo ter sua “evolução”

própria.

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12.

Como nasce então o tempo? Até aqui tudo que falei foi que se cria

um lugar com aquilo que roda, aquilo que estabelece um hábito, uma

casa. O tempo funda-se no hábito. Deleuze fala disto em Diferença e

repetição , a fundação do tempo que pede um segundo passo, a sua

fundamentação. E a fundamentação do tempo, com a interrupção do

hábito, relaciona-se a Eros e Mnemósine: uma memória voluntária e

uma involuntária. Mas tanto uma quanto a outra nascem da

interrupção de um hábito. É preciso que a reiteração cesse, é preciso

um corte na presença constante para que nasça o tempo e a músicadeixe de ser espaço para tornar-se escuta do tempo.

Uma primeira paisagem interrompida por outra.

13.

São as pequenas ou grandes mudanças no espaço que farão

nascerem os problemas de tempo na música. Não é apenas o tempo

que nasce, são os problemas de tempo, um novo campo

problemático. Um ciclo se rompe e dá nascimento a outro, tudo de

novo, do sem permanência ao que se estabelece como permanente.

Se antes tinha apenas presença e ciclos, agora tenho também

manifestações distintas de memória: a memória de curto prazo e a de

longo prazo, a memória voluntária e a involuntária: uma disparada

por um reencontro do hábito interrompido e a outra por um

encontro com qualquer outra coisa e que dispara uma lembrança

aparentemente desconectada do fato (as sempre relembradas

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madeleines de Proust 12). O contraponto entre permanências longas e

curtas, permanências alternadas ou entrelaçadas e o surgimento dos

transientes – daquelas pequenas formas que de tão curta existência

quase não são formas, embora deixem marcas – menores do que o

mínimo de tempo pensável.13

14.

Para ter alguma permanência é preciso que no mínimo um ciclo se

complete. É preciso que um ciclo se complete para que nasça a forma

e o espaço, para que se entreveja um código – o código sendodefinido aqui como o resultado de um ciclo completo. Enquanto os

ciclos incompletos, cujas amostragens não chegam a se fechar, ou que

rompem ciclos, estes fazem nascer o tempo e se fundam não apenas

na memória que solicitam, mas sobretudo no esquecimento. O tempo

é assim filho tanto do esquecimento quanto da memória (Lesmosyne

e Mnemosyne). Mas esquecimento aqui trata simplesmente de

interrupção em um movimento, não permanência.

15.

Então posso imaginar o tempo musical como que nascendo não da

reiteração e sim da ruptura com a reiteração; rompimento de um

hábito, quebra da presença. Um desdobramento desta idéia que

parece mais interessante e talvez mais próximo à experiência de

escuta musical, é que o fundamento do tempo seria mais uma

tendência ao esquecimento do que o simples esquecimento – aseqüência interminável de transiências. E esta quebra da presença dá

 12 Diversos autores costumam citar sempre as madeleines de Swam em La recherchedu temps perdu. Deleuze constantemente se refere às madeleines como a abertura dotempo que liga um momento a outro, “um pouco de tempo em estado puro” (Cf.Deleuze, Gilles, “Occuper sans compter: Boulez, Proust e le temps” e “Rendreaudibles des forces non-audibles par elles mêmes” in: Deux régimes de fous, Paris:Minuit, 2003).13 Deleuze, Gilles e Guattari. Félix, O que é a filosofia?,  S. Paulo: Editora 34, pp.153seq.

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lugar a um novo problema: criado o espaço dado pela presença,

nascido o tempo pela quebra da presença, é preciso fundamentar o

tempo. É justamente este fundamento que nos é dado pela memória,

a maneira pela qual as coisas poderão voltar sem sua concretude

primeira. São dois lugares: o da permanência concreta e aquele das

memórias (lembranças, representações e reencontros). Com isto

superamos em nossas vidas o problema das rupturas intermináveis.

 Já que o excesso de transiência fundaria outra forma de permanência:

uma permanência do sem fundo, do lugar em que nada nasce, pois o

que deveria nascer é a presença, o ciclo, o hábito, e ele já está lá. Osem fundo poderia fundar o hábito. Quebrar a não permanência é

estabelecer um pequeno ciclo que seja a condição de toda forma.

16.

Como disse até agora, um ambiente sonoro, uma paisagem, nasce do

surgimento e permanência dos ciclos ao que acrescento que cada

ciclo envelopa pequenos ciclos, seus ciclos formantes. Como em um

som, um aparente grande ciclo constituído de pequenos ciclos

formantes. Ou ainda, um tema musical, que volta sempre, pode

mudar de timbre: detalhes que desfazem ciclos, ou que inauguram

outros ciclos, e deste mesmo modo um ciclo e seus formantes é

formante de outros ciclos; um ciclo ou formante sendo formante de

mais de um ciclo por vez. Um objeto sonoro seria nada mais do que

ciclos com determinadas tendências.

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Ciclos de componentes formadas por micro-ciclos de formantes.

17.

A música sempre soube se alimentar deste fato, mas desfazendo a

hierarquia entre grandes ciclos e formantes. Ou seja, na música todos

os formantes têm igual privilégio. Os músicos dão o nome de tema

ao tema e de transição à transição, mas para um ouvinte, para quem

está simplesmente vivendo o chocar-se de elementos, existem apenas

 blocos sonoros cujos modos de permanência os distinguem uns dos

outros. O dois temas de uma sonata clássica permanecem de um

modo distinto, não só entre si, como também em relação àstransições e à co d a. Formas mais ou menos modulantes de

permanência.

Lectios, salmodias e himnodias na Palestina trazem um tanto destes

ciclos embutidos como se fossem matrioscas melódicas. Em torno de

uma nota principal, reiterada como uma grande paisagem de fundo,

giram outras notas como pequenas quase não-permanências,

inaugurando pequenos hábitos, novos ciclos que acabam por afirmaruma permanência de momentos pouco estáveis – permanência

mutável, modulante.

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Manuscrito de salmo, com ciclos embutidos em ciclos: ciclos de vogais, ciclos denotas, retorno cíclico de algumas figuras.

18.

Parece que estou rodando no vazio, falta alguma coisa além das

permanências e transiências, e esta coisa estaria na idéia de

tendência. Existe uma tendência de certos transientes. Mesmo os

transientes não completando um ciclo podem fazer com que se note

uma tendência, um movimento, um sentido para o movimento:

crescer, diminuir, expandir-se, contrair-se, concentrar-se, dispersar-

se. Pois estes fazem agora parte de um ritornelo maior, o da

tendência, e compreende-se assim um código.

Transientes com tendência a proliferar entre um e outro ciclo do ponto principal.

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A figura que desenhei acima traz uma linha com tendências: o ponto

principal tende a criar um lugar passo a passo, e pequenas

tendências de giro escalares (de escapada) se estabelecem sobre seu

eixo principal como formantes de cada um desses pontos. A grande

tendência aqui é o centrífugo-centrípeto e suas decorrências: giros e

escalas, passagens e escapadas. Conforme a distância entre um ponto

principal e outro não é possível medirmos por meio de escuta sua

precisão. As diversas cláusulas e glosas da idade média e

renascimento contam um pouco desta dinâmica.

19.

Vistos desta maneira, alguns ciclos possuem formantes com presença

maior ou menor de tendências, e tais tendências apontam o quê? Elas

apontam uma síntese de pensamento, uma forma que está apenas no

modo de relacionar os pequenos pontos e que não está nos pontos,

não está no ciclo dos pontos enquanto matéria. Inaugura-se um

pensamento que permite imaginar e fabular o futuro a partir da

soma de presentes que chamo de passado. O presente deixa de ser

simplesmente um presente contraído a cada ponto, sem lembrança,

mas traz a marca da memória, a marca do passado como que se

projetando sobre o novo presente.

Das construções que falei acima imaginamos ciclos e tendências de

ciclos, mas uma construção pode ser constituída de formantes de

tendências quase que nulas, como em um canto de pássaro. Em umapaisagem sonora irregular em que tudo fica no mesmo lugar, não há

nenhuma tendência predominante. Ou seja, tendência permanente

na modulação incessante dos transientes. Um exemplo interessante é

como Villa-Lobos normatiza o canto do pássaro dando-lhe uma

tendência linear no início de seu Uirapuru.

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Dois ciclos: o de um sabiá e o do Uirapuru de Villa-Lobos. Por razões de suamúsica, Villa normatiza o canto do pássaro e lhe dá uma tendência linear.

20.

Toda idéia de permanência consistiria então em cumprir-se no

mínimo um ciclo. Mas como notar a tendência? O que diz que há

uma tendência? Messiaen observa em Igor Stravinsky a tendência

ligada a no mínimo três personagens ao analisar Le sacre du

 printemps: personagens ativos, passivos e testemunhos.14 Para que

haja o movimento, um primeiro movimento, uma primeiratendência, algo se move e algo fica parado como testemunho do

movimento. Distinguem-se assim dois personagens no mínimo: um

personagem fixo e outro que se afasta, cresce, diminui, se aproxima,

se alonga. Muito da música do barroco traz esta figura: a nota longa

pedal, grave ou aguda, e a linha melódica que sobe ou desce

lentamente. Na frase de Villa-Lobos, citada antes, o canto é sempre

reiniciado acrescido de uma ou mais novas notas. A nota estável,

parada, cumpre a função de ponto de partida e contempla o

movimento de expansão e contração. Poderia dizer o mesmo do

 14 Messiaen analisa toda parte final do Sacre , na “Danse Sacrale” (cifra 142 dapartitura) observando a presença de um grande contraponto de personagensrítmicos: personagens móveis, crescentes e decrescentes; lembrando as três ordensrítmicas: quantitativa (durações longas), dinâmica (intensidades e densidades),fonética (timbres, ataques)” (Cf. Messiaen, Olivier, Traitée de rythme, de couleur etd’ornithologie , Tomo II, Paris: Leduc, 1995, pp. 124 seq. e p.99..

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“Akazehe” Burundi citado anteriormente. Interessante notar como

tais procedimentos podem voltar na música mais recente, como na

música eletroacústica, citando-se aqui dois exemplos: Tinnitus e

Bioacústica , ambas de Rodolfo Caesar. Tanto em uma quanto na

outra, um pedal de ruídos de fundo, de sons extraídos de gravações

ambientes, serve de grande testemunho do movimento que se

desenha. Em Bioacústica uma voz se desenrola sobre o este fundo

testemunho. O fundo é realizado com sons cotidianos de uma mata,

um quintal, ou algo do gênero, de tendência quase nula e um piano

toca ao fundo uma das 15 invenções, BWV 772-786,  de Bach. Sãogeradas assim pequenas transiências e tendências provisórias. Talvez

more aí uma das grandes distinções desta música: as tendências

provisórias.

21.

A música é assim o complexo ciclo do ritornelo e não a simples

reiteração ou variação. Ela é a simples sobreposição de objetos

permanentes, cíclicos, na forma de uma paisagem regular, irregular,

mutável. Até mesmo no minimalismo de Reich ou Glass, ou na nota

constante de Scelsi, ou nos mantras indianos, não se trata apenas de

fazer território, mas de encontrar transientes e fundar linhas de fuga

– cortes. Estabelecer permanências diferenciadas e que se sabem

provisórias.

22.Há sempre tendências ou quebras suficientes para que o tempo

nasça. Ou para que o tempo se desfaça. Como se a música fizesse

nascer uma espécie de tempo a que chamamos de tempo musical. O

tempo musical cambaleia, ele não é fixo, ele nasce.

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23.

Ouço o mar, as ondas, os ciclos de ondas. Em “Palomar na praia:

leitura de uma Onda”, Ítalo Calvino tece bem este quadro de contar

as ondas, suas constâncias e permanências, seus ciclos disjuntos.15

Também as transiências são ouvidas – um bloco ou outro de voz

humana indecifrável, que não se deixa compreender pela distância.

Uma paisagem, como uma praia, pouco evolui num espaço

cronológico curto. Existem alguns rompantes, momentos em que um

ou outro som corta a sonoridade contínua do mar: um grupo de

pássaros que passa gritando, alguém que fala ao longe. Ao longo dodia existem linhas, direções, mas não são da ordem de um curto

tempo de relógio ou de percepção. Na escuta dessas paisagens

lentamente móveis, existem tendências, existe uma longa tendência a

qual não percebo, ou percebo duramente, e pequenas tendências as

quais no ciclo completo se tornam transientes. Daí que em uma longa

espera o tempo não passa, pois ele simplesmente não nasce e não se

fundamenta nunca. Tal situação abre espaço para um mergulho não

na paisagem, mas para fora da paisagem; momento de recordar

coisas que não estão ali, memória de pequenas sensações que o lugar

conecta e que podem não ter nada a ver com a concretude do lugar.

24.

Voltando aos ciclos: poderia compactar todo o ciclo de uma

paisagem musical e se esta paisagem incluísse cortes, interrupções,

transientes, fundaria um tempo musical. Como um pêndulo em quenascem e renascem paisagens. Se com o corte, com a interrupção das

permanências, nasce o tempo, e sobretudo o tempo musical, a escuta

musical também nasce do corte realizado por um som específico (não

é qualquer coisa que tem a potência de cortar). O corte que se dá

quando quem escuta é invadido pelo som a ponto de as faculdades

 15 Calvino, Italo, Palomar , Milão/Turin: Mondadori, 1994.

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de percepção – as sínteses, isto que Cage chamava de consciência –,

entrarem em colapso. Este colapso se dá não pelos limites de tais

faculdades, mas pela excesso que comportam, ao serem arrastadas de

seus eixos cômodos e levadas a pontos notáveis onde não mais

operam ordenadas;16 então choro, dou gargalhadas, fico paralisado.

Minha atenção muda de endereço e descobre um novo lugar. E a

música brinca de fazer isto, de fundar um lugar e depois retirar o

campo tranqüilo para que se dê o salto. Deleuze e Guattari, em seu

platô sobre o Ritornelo, em Milles plateaux , diversas vezes retomam a

idéia de que o ritornelo é o problema da música. O que eles queremdizer com isto é justamente que o problema da música é que ela

facilmente desenha um lugar, desenha um território. Este território

tende a se estabilizar, daí a música ter o ritornelo como problema:17

como desfazer o território que insiste em se estabelecer? Como fazer

nascer o tempo? Nem paisagem sonora, nem marcha militar: como

fazer nascer o tempo? Criar escapadas. Mas para falar das escapadas,

devo lembrar que elas não se restringem apenas àquelas que se

desenham no corpo concreto da composição. Qualquer imagem pode

ser uma escapada. Uma recordação que um tema traz; a memória

involuntária que se manifesta sem ser chamada… são escapadas. E o

compositor sabe disto e deve esquecer-se disto. Se em meio a uma

profusão de vozes instrumentais emerge uma batida rítmica forte,

pode advir daí uma imagem de escuta para alguém que tenha vivido

uma escuta anterior de um batuque. Então as escapadas não se dão

exatamente nas estruturas sonoras das relações figurativas, mesmoque tenham uma estreita relação com tais estruturas (perfis

melódicos, figurações rítmicas, timbres específicos, uma harmonia

qualquer etc.), mas elas se dão no embate entre tais estruturas e o ato

 16  Em Le Pli,  Gilles Deleuze chama este ponto em que as faculdades entram emcolapso de “acordo discordante” (accord discordant).17 Tratei mais detalhadamente do conceito de ritornelo, a partir dos contornos queele assume no pensamento de Deleuze e Guattari, no Livro das sonoridades (op. cit.).

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complexo da escuta. Lembro que a escuta é um cruzamento dos

prováveis humanos e do improvável futuro com o que não há como

abarcar todo o universo de escapadas. Sabemos do espaço, das

componentes espaciais e de como elas estão dispostas, mas não

temos como falar das conexões que farão. Daí não ser possível

abordar as escapadas, porque estamos em um campo das múltiplas

variáveis que compõem o que tentamos chamar de música. Haveria

na música algo que nos faz sentir estranhos, como que escapando de

nós mesmos. A cada corte, a cada nascer do tempo (e ele nasce em

todas as direções e dimensões), algo que não está claramente namatéria sonora move uma sensação. Acabamos movidos pela

materialidade do som para fora da própria matéria e levados a um

lugar de forças de conexão soltas. Fica também que sempre se foge à

matéria, mas para fugir à matéria era necessário estar antes atado à

matéria, mais precisamente entre as matérias, no ponto de corte,

lugar do salto: alguém que entra uma sala e desvia o olhar de todos

para si; um cheiro que nos invade e não tem nome; uma simples nota

longa filtrada de um tutti , como faz Mahler ao longo de todo o

“Adagio” da sua Sinfonia IX (seqüências de filtragens).

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Exemplo de filtros em Mahler (“Adagio” da Sinf. IX), cp.100 para 101 e 107 para

108. O dó# das flautas a 3 e passagem para as cordas também sobre dó#.

25.

Começa-se assim primeiro com o hábito, repetindo pedaços de sons e

lhes dando permanência. Depois se interrompe esta brincadeira para

começar outras, e dá-se nascimento às memórias (longa, breve, ativa,

passiva), à fundamentação do tempo. Por fim um último passo,

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retirar o tempo de seu eixo de reiterações, tendências e cortes, para

observar outro tipo de corte – um corte que se dá porque

simplesmente a escuta da matéria sonora não está solta no nada, mas

sim mergulhada no nascimento do material que torna sensíveis

forças de conexão as mais diversas: é assim que a escuta conecta o

som agudo de um violino à imagem de uma linha, uma nota que

sobra sozinha a um filtro de alturas, um duo de clarinete e flauta a

um povo, um cântico a uma revolução. Boulez chamou este lugar de

espaço adjacente por “fixos”. Deleuze retoma este mesmo conceito

para falar da música de Vinteul em Proust: “Na pequena frase deVinteuil a nota aguda sustentada por dois compassos e ‘estendida

como uma cortina sonora para esconder o mistério de sua

incubação’, é um exemplo privilegiado de Fixo /…/ é bem este o

papel da memória involuntária em Proust, constituir envelopes de

fixos.”18

26.

Para alguém que compõe música usando melodias ou

encadeamentos de acordes, como na música das práticas coletivas

tradicionais, isto tudo que digo aqui é sem sentido. Não é necessário

pensar em tudo isto. Nas melodias, nos encadeamentos de acordes,

nas cadências do ritmo, o tempo já nasceu e já está fundamentado

não estamos mais falando de paisagens; a melodia conduz, ela

sempre mostra de onde veio; remete às linhas que escapam a um

eixo e depois volta, repousa, mesmo que seja sobre outro eixo,modula. É como tentei mostrar ao falar das salmodias, ao desenhar o

ciclo com formantes. Nos sistemas diatônicos já estão embutidos os

recursos todos de afastamento, aproximação, cortes e permanências.

O tempo é problema justamente em outra música, naquela em que

 18 Deleuze, Gilles, “Boulez, Proust e le temps”, in: Deux régimes de fous,  Paris:Minuit, 2003, p.277.

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nada disto está previsto, em que tudo se encontra em estado

nascente, daí o tempo ter se tornado tema da música do séc. XX, de

Bernd Alois Zimmermann a Brian Ferneyhough, passando por

Messiaen, Boulez e Xenakis.19

27.

A melodia já tem em si a presença de no mínimo dois personagens:

longa e breve (troqueu ou iâmbico). A alternância constante de

longas e breves (troqueus) faz um lugar, mas se de súbito inverter-se

a ordem (troqueu/iâmbico; anapesto/dáctilo), ou quebrar-se o ciclolonga-breve (troqueu/spondeu), é então que renasce o movimento

que poderia estar perdido na constância das reiterações métricas. A

linha de seu porto seguro.

 19 Zimmerman, B.A., “Intervale et temps”, in: Contrechamps. nº.5, Lausanne: L’Aged”homme, 1985; Xenakis, Iannis, “Sur le temps”, in:  Musique et originalité  , Paris:Séguier, 1996; Ferneyhough, Brian, “The tactility of time”, in: Perpectives of newmusic , v.31, no.1, Seattle: Univ. of Washington, 1983; Messiaen, Olivier, “Temps etéternité”, in: Traité d’ornitologie, temps et couleur-1942-1992 , tome II, Paris: Leduc,1994; Boulez, Pierre, Penser la musique aujoud’hui , Paris: Gallimard, 1963.

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Desenho aqui uma seqüência que alterna dois

personagens, mas os dois em igual privilégio, nem

ativos, nem passivos, nem testemunhos. E mesmo nesta

pequena seqüência, cada personagem, cada novo

ataque, pode envelopar um pequeno conjunto deformantes. Ligeti se vale desta idéia em seus Estudos

 para piano,  de 1982. E esses formantes, por sua vez,

como nas relações fractais, refazem a relação longa

 breve. Imagens que são elas mesmas compostas de

imagens. De certo modo os valores acrescentados que

Messiaen encontra na música indiana desdobram esta

forma de pensamento.

28.

Sempre nos deparamos com esta seqüência de imagens: as imagens

grandes e seus formantes, sua regularidade e irregularidade, umaarrastando a outra, a cor de uma se lançando na cor da outra.

Bastaria olhar os calçamentos, sobretudo aqueles das cidades

coloniais brasileiras: Paraty, Tiradentes, Diamantina. E em meio à

profusão de personagens ativos e passivos – ali um primeiro

contraponto de camadas fazendo aparecerem personagens –, uma

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linha quase que permanente, o personagem testemunho em meio à

capistrana.

Capistranas de Paraty, RJ.

29.

Com a quebra da permanência nasce a memória e, com a

sobreposição de camadas, os personagens, os quais logo vêm retirar

o papel representativo da memória; cada personagem funciona como

presença, como testemunho do movimento do outro. Mas assim que

se dá o primeiro corte (a primeira interrupção) renasce a memória

como maneira de manter a permanência onde ela já não existe

concretamente, modo de perpetuar o ciclo. O compositor pode então

 brincar com isto: sobrepor ciclos, interromper uns e manter outros.

Seqüência com corte, incrustações, permanências.

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30.

A música polifônica alimentou-se deste jogo de permanências e

cortes em suas seqüências sobrepostas. Sua dinâmica estando menos

em um sistema de alturas e mais em estratégias de criar ciclos e

rompê-los. Ciclos métricos, ciclos de alturas, mas não necessa-

riamente sistemas métricos e de alturas, mesmo que se conheçam os

modos de prolação e as gamas. Já a música dos batuques é mais um

grande ciclo cujos cortes e variáveis estão no que chamei antes de

formantes. Penso aqui nos blocos polifônicos que distinguem cada

parte de um madrigal: homofonias, stretti , cânones, blocos deretardos; conforme a forma métrica e rimas do poema. Cada bloco

encerra assim um pacote de formantes.

Blocos e formantes.

Mas poderia imaginar os batuques também como simplessobreposição de linhas regulares e irregulares, num comportamento

em que algumas das linhas se amalgamam a outras, tornando-se

formantes dessas.

Sobreposição de reiterações fixas, mas variantes (tribo imaginária).

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Transcrição de um dos ciclos rítmicos de Agbadza,realizada por Marcos Branda Lacerda.20

31.

Quando existe um ciclo posso dizer que existe um código;21 código

que é comum às camadas do ciclo, fazendo com que aqueles menos

regulares e permanentes tornem-se formantes daquelas mais

regulares – o samba de viola de Saubara-BA, os tambores do

Burundi, Banda Linda, a música dos Atsiã de Ghana. Um pulso serve

nesses casos como ciclo principal, ou como personagem testemunho

do aumento e diminuição de densidade das subdivisões, dos

afastamentos e aproximações das defasagens.

32.

Falando um pouco da matéria com que esses ciclos sonoros são

formados, diria que estas componentes descendem da freqüência e

sua intensidade dos detalhes de timbre. Lembraria aqui as três

classes de Messiaen para o ritmo: quantitativa (durações longas),dinâmica (intensidades e densidades), fonética (timbres, ataques).

Cada detalhes sendo um desvio: a música é feita de pequenos

 20 Lacerda, Marcos Branda, “Textura instrumental na África Ocidental: a peçaAgbadza”, in: Revista Música, vol.1, nº1, S. Paulo: USP, 1990.21 Em  Mille plateaux , Deleuze e Guattari, ao definir as componentes do ritorneloentendem por código simplesmente um ciclo, um ciclo qualquer, uma permanênciaou mesmo uma proto-permanência. Um código não é necessariamente algo comum significado, é simplesmente uma permanência cíclica.

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desvios que curvam o ciclo regular que se quer sem desvios. Elege-se

sempre um ciclo principal e é este ciclo que faz dos desvios pequenos

universos de diversidade, de entroncamentos, de dissonância, no

sentido de soarem separados. Mas chamo a atenção para o fato de

que, neste ponto do ciclo do tempo, cada diversidade (um acento,

um novo timbre, uma nova nota ou nova forma de ataque), qualquer

detalhe serve de ramo, galho que leva o ciclo para longe do ciclo

principal. Na música coletiva tradicional, das pequenas comunidades

ainda distantes da força hegemônica dos sons sintetizados e pré-

gravados, nessa música é este formigar de pequenas linhas sonorasque é constante. São mais do que meras nuanças, elas são a própria

dinâmica da música quando quebram a permanência; quebram

constantemente a permanência, fundando pequenos contrapontos

entre presença, esquecimento e memória. É preciso um ciclo forte

para que alguma permanência sobreviva. A diversidade do detalhe

dos timbres da voz, dos gestos dos dançarinos, dos toques de

instrumentos de afinação incerta, em contraponto com a constância

da melodia reiterada.

Esquema rítmico da passagem final de De um tempo em deserto , sobrepondo flauta,

clarinete e violoncelo.

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33.

É com esta mesma diversidade tímbrica que lidamos na fala. Cada

palavra é um pequeno pacote de timbres e inflexões. O compositor

Gilles Tremblay comenta a este respeito ao analisar a presença do

canto dos pássaros em Messiaen. Tremblay dá o nome de notação

composta à notação de sons simultâneos empregada por Messiaen

para diferenciar as sílabas em um mesmo canto de pássaro – cada

ataque podendo ser uma sílaba diferente.22 Cada sílaba compõe-se

quase que como um pequeno objeto sonoro. Comparo assim a fala a

estas sílabas de pássaros, ela contém assim ciclos de pequenosobjetos, não exatamente paisagens sonoras ou melódicas, mas outro

tipo de temporalidade, outra dimensão de tempo. E o poeta compõe

com tais objetos seus contrapontos de ciclos, ciclos sonoros e ciclos

de remissões a idéias, lugares, coisas, que as palavras acreditam

dizer.

Beckett – Início de “Comment dire”, último da série Poèmes.

 22 Tremblay, Gilles, “Oiseaux-nature, Messiaen, musique”, in: Les cahiers canadiensde musique, Montreal: Conseil Canadien de Musique, 1970.

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34.

Volto um pouco atrás para localizar em que ponto estamos desta

exposição de idéias. Imagine-se uma seqüência, não uma seqüência

de sons, mas de ataques (onsets). Imagine-se também que esta

seqüência insiste em permanecer. Ela pode então permanecer de

diversas maneiras:

a) pode ser formada de um só e longo objeto constante e não sem

nenhuma alteração relevante;

 b) pode ser regular quanto à duração de cada um de seuscomponentes – intervalos regulares entre os ataques e duração

regular de cada onset.23

Point d’orgue e reiteração.

35.

Estabelece-se assim o que chamei até aqui de permanência, algo

incessantemente reiterado ou algo que é longo. No fundo tudo é

reiteração: reiteração abaixo ou acima do limite de integração

temporal do ouvido – da linha reta, passando pela linha granulada,

chegando ao pulso.

 23 No sentido que estou falando aqui é referência crucial a concepção de objetos eos critérios de permanência (“critère d’entretien”) de Pierre Schaeffer, em Traitéedes objets musicaux (op. cit.).

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Da linha ao grão ao pulso.

Uma permanência do tipo reiterada, uma reiteração constante, pode

ser composta por pequenas parcelas: objetos compostos. Cada um

dos onsets pode trazer objetos compostos, o que antes chamei de

formantes. E quanto aos formantes, pode-se dizer que podem ser de

permanência regular (a) ou irregular (b).

Um exemplo desta idéia seria também a precisão da repetição

eletrônica ou mecânica, para o primeiro caso, e a percussão humana

para o segundo, compreendendo aqui a variabilidade aberta, a

transitoriedade instável dos formantes espectrais, as variações e

micro-variações tímbricas da segunda em relação à primeira (sempre

estável e limitada pelo número de amostras pré-gravadas).

São assim permanências regulares ou irregulares. Uma permanência

ou ciclo, composta por formantes regulares os quais dão o sinal de

igualdade, e uma permanência de outro tipo, composta por

formantes irregulares, formantes transientes que comporiam a

diversidade de nuanças. Quando falo dos detalhes de objetos, falo de

micro-cortes. Afinal de contas um objeto nasce quando há um micro-

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corte, quando um ponto de atualização torna-se sensível de modo a

saltar fora do pacote de eventos em que se insere. “Estamos em casa

tranqüilos e nos damos conta de um alarme que está há muito tempo

disparado”, ou ainda, “estamos tranqüilos e um telefone toca forte”;

duas maneiras de um objeto tornar-se sensível, pela insistência ou

pela amplitude cortante. E, quando falamos de objetos, embora

contemplem os micro-cortes, não se trata ainda de ter fundamentado

o tempo musical. Ainda não se tem a quebra do espaço; quebrar o

espaço para fazer nascer o tempo das memórias. Na seqüência de

ataques regulares com formantes regulares ou irregulares não tenhoainda a fundamentação do tempo, esta só nasce com a quebra: a

interrupção.

36.

Fundado nas duas formas de permanência – da reiteração e do pedal

(do point d’ orgue) –, o espaço se torna tempo fundamentado quando

é quebrado. Mas que quebra é esta de que estou falando? A quebra

corresponderia à interrupção do espaço constituído pela

permanência. Com a interrupção sempre nasce outro espaço, seja ele

de nova permanência, seja de total transiência. Quando se dá o corte,

tem-se apenas que uma permanência acabou e que outra será

fundada (ou restabelecida, mas já sendo outra), nascendo aí a idéia

de que existe algo – não se sabe bem onde – que pode tornar-se

espaço e que algo deixou de estar onde estava: é o presente que se

torna passado. O corte torna sensível então uma primeira ordem doque aqui chamamos tempo. A quebra da paisagem sonora fazendo

nascer outro lugar, outra paisagem.

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Klee - curso da água: 1. captar; 2. curso calmo; 3. curso agitado; 4. desaguadouro.24

37.

Como no desenho de Klee, existem também as gradações de corte. O

corte brusco e a passagem gradual. O corte interrompe um espaço

para fundar imediatamente outro, põe em jogo a relação do fim de

um presente constante com a possibilidade de um espaço. Talvez o

que Deleuze chamava de “cristal de tempo”: este momento que

contrai passado, presente e futuro, “unidade indivisível de uma

imagem atual e de ‘sua’ imagem virtual”.25 O corte fundaria assim

este cristal, diferentemente da passagem gradual que fundaria outro

tempo que compreende um passado que se projeta sobre futuro –

distingue-se assim um futuro puro, virtual, sobre o que não se pode

falar nada e um futuro que é projeção do passado. A passagem

gradual põe em jogo a possibilidade da expectativa. Se alguma coisa

está sendo abandonada, se uma paisagem está mudando com micro-

cortes que não percebo como tais, mas que imagino como parte deum contínuo, é porque estou passo a passo moldando uma nova

paisagem e estou em um lugar que não é mais paisagem, é um entre

paisagens. A paisagem sonora ganha então uma nova dimensão

neste entre-paisagens, nasce o tempo como presente que será

 24 Aula de 4 de dezembro de 1923, in: Klee, Paul. Histoire naturelle infinie,  Trad.Sylvie Girard, Paris: Dessain et Tolra, 1970, p.75.25 Deleuze, Gilles, L’image-temps, Paris: Minuit, 1985 [p.99 da trad.bras.].

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passado e presente que projeta um futuro. O futuro aqui sendo

aquele totalmente relacionado ao passado e ao presente (falarei de

outro futuro mais adiante), ele é projeção, ele é determinado passo a

passo, daí a idéia de expectativa.

38.

É no classicismo que a idéia de transição incessante começa a se fazer

presente na música ocidental. É a idéia de modulação e, por

conseguinte, de tonalidade vagante. Não estando nem numa

tonalidade nem noutra, mas entre tonalidades distintas, estemomento de micro-cortes e de transição lenta é a modulação. Ainda

neste sentido harmônico, no barroco teríamos as seqüências de

progressões harmônicas, os encadeamentos que de certo modo

também contraíam a idéia de movimento e direção. E mesmo estas

progressões podiam ser quebradas, e o corte, mesmo em meio a um

hábito de expectativas, surge como abertura para um futuro não pré-

determinado: a bifocalidade. Acordes que agregavam dois ou mais

hábitos de progressão são empregados para justamente criar pontos

de ambigüidade.26 No romantismo este lugar de passagem deixa de

ser um ponto e ganha mais espaço na sonata clássica, tornando-se

verdadeiro lugar de grandes invenções na transição da primeira para

a segunda parte da sonata. É assim que a simples transição deixará

de ser mero lugar de passagem para configurar-se como “segunda

parte”. E as modulações não ficaram apenas no plano da tonalidade.

Na Sonata op.111  Beethoven realiza um exemplo de grandemodulação textural com a lenta e gradual aceleração do pulso,

subdividido a cada passo, chegando quase ao grão sonoro, simulado

por uma série de trilos em direção ao agudo. Cada passo

 26 Em “Bifocal tonality: an explanation for ambiguous baroque cadences” (in: The

 journal of musicology , vol.18, nº2, California: Univ. California Press, 2001, p.283-294), Jan La Rue analisa diversos exemplos de cadências que conduzem à tonalidaderelativa e têm sua resolução sobre a tonalidade principal, ou vice-versa.

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corresponde assim a uma nova variação temporal e textural sobre o

tema. No séc. XX, este mesmo processo pode ser encontrado na

primeira das Variações op.27  de Anton Webern; porém Webern

retorna à figuração do início, procedendo um corte na linearidade

direcional que vinha se estabelecendo.

Györgÿ Ligeti encarregou-se, na segunda metade do séc. XX, de fazer

da música inteira um lugar de modulações texturais, agora não só no

âmbito da subdivisão gradual de um valor principal, mas ampliado

para outros parâmetros, como âmbito de freqüências, timbre,número de eventos. Também com seus cortes abruptos e transições

graduais. Exemplos mais recentes deste jogo nos remetem à música

espectral de Tristan Murail, Gerard Grisey e Hugues Dufourt.

39.

Este lugar da modulação contínua é muito diferente daquele do

 batuque nuançado do qual falei antes. Trata-se de uma concepção de

tempo totalmente distinta e provavelmente de outra condição de

escuta. E talvez uma sobreposição das duas idéias esteja em cada um

dos quadros do Sacre de Stravinsky: modulação contínua, cortes e

 jogos de nuanças. No Sacre , cada quadro nasce com uma figura

 bastante simples e dirige-se a um ápice de densidade e intensidade.

Mas este dirigir-se não é linear, Stravinsky é adepto das constantes

retomadas e intercalações de elementos, desfazendo o tempo linear,

direcional em um lugar de pequenas variações timbrísticas semdireção. Na seqüência que poderia ser linear interpõem-se assim

pequenos pontos de esquecimento, de não tempo, mas de um espaço

que não é mais aquele simples da passagem permanente, mas um

espaço instantâneo que vem e vai imediatamente.

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Desenho da fórmula de seqüência em Stravinsky.

Passagem do “Sacrifício” do Sacre em que se vê claramente a alternância deobjetos, compondo uma paisagem que se transforma lentamente dentro do tempo

musical.

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 Alternância de três elementos no “Ritual dos Ancestrais” do Sacre.

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O compositor François Bernard-Mâche compara este modo de

alternâncias e entrelaçamentos de Stravinsky com as permutações

melódicas em cantos de pássaros.27

40.

Não se trata apenas de um vai-e-vem de blocos, existe aqui um vai-e-

vem também entre o que chamei de espaço e o que chamei de tempo.

O compositor inaugura tempos a cada corte, a cada transição lenta;

ele inaugura tendências (um ciclo de escalas ascendentes, arpejos

descendentes ou em dente de serra, como em Chopin) e com istocambaleia entre tempo e espaço. Nem paisagem sonora pura e

simples, nem rapsódia de objetos musicais e sonoros, mas uma

máquina sonora em que se desenham gradações entre corte e

tendência, entre sistema estacionário (mero pacote de sons) e ciclos

alternados. Esta é a grande diferença entre a simples colagem e a

máquina operada por Stravinsky, de certo modo herdeira daquela de

Debussy. Os blocos são contrapostos de modo a desenharem toda

uma gradação de cortes: abruptos, secos, suave etc.

41.

Feito este percurso, desde o início deste “segundo livro“, o tempo

passou de circular a um tempo linear direcional, a escuta passou

daquele ponto em que reconhecia figuras reiteradas para lançar-se

lentamente na idéia de transformação das figuras e fazer saltar as

qualidades sonoras e musicais. É assim que textura, figura e gestosugerem, cada uma à sua maneira, diferentes imagens de tempo. Mas

o que gostaria de realçar nesta maneira de tratar o material é a idéia

de que na permanência absoluta não há tempo, o tempo nasce com o

corte, e a volta à permanência traz uma suspensão do tempo, a

 27 Mâche, F.- Bernard,  Musique, mythe, nature ou les Dauphins d'Arion  , Paris:Klincksieck, 1986.

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interrupção do tempo. É este recurso que Stravinsky usa na

composição de diversas de suas peças: da alternância em rápida

variação à suspensão do tempo. Observo que a suspensão não se dá

sem o tempo estar fundamentado, é preciso antes fundar e

fundamentar o tempo para fazer nascer a suspensão. Diferentemente

da permanência, a suspensão compreende o tempo, seja na situação

que citei, na qual se corta uma tendência de transformação com a

reiteração, seja na situação contrária: no início da Sinfonia IX de

Beethoven sabe-se da suspensão através dos pequenos cortes que o

compositor emprega, das pequenas tendências que se fundam nasfrases adjacentes ao pedal (lá-mi) que mudam de oitavas, na entrada

gradual de instrumentos alterando timbre e intensidade do pedal, e

finalmente no grande corte no compasso 17 do primeiro movimento.

Beethoven sobrepõe assim, em poucos compassos, as três fórmulas

do tempo: a permanência do pedal, os pequenos cortes, a tendência

que se anuncia nos cortes; a textura, as figuras do tempo e os gestos

que indicam o movimento.

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Início da Sinfonia 9 de Beethoven em redução para piano de Franz Liszt.

42.

Beethoven trabalha ainda mais uma vez a questão do corte, do

tempo, em sua última Sinfonia , no “Presto”. São diversas gradações

de cortes, uma verdadeira aula sobre o corte:

Tutti/grave (contrabaixos e violoncelos)/trompetes cresc.

tutti/grave/dois acordes tutti  f /8 cps. do 1ºmov./grave/ 8cps. do 2º

mov./grave/2cps do 3º mov./grave ampliado pelas

madeiras/trecho do que será o 5º mov./grave + acordes strappati

com tutti f / “Allegro Assai”.

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Contrapõem-se andamentos diferentes, coloridos orquestrais

diferentes, passagens com corte seco e passagens com corte suave

com o recurso da entrada ou saída gradual de instrumentos. É

interessante notar aqui os tempos todos, inclusive uma estranha

memória: logo após o primeiro corte ouve-se o primeiro movimento,

depois o segundo, depois o terceiro. A todo corte reaparece uma

passagem musical com a qual o ouvinte já havia se encontrado antes,

até que “reaparece” uma que não havia aparecido antes, é a melodia

principal do último movimento.

43.

Há algumas páginas atrás, tinha deixado em suspenso a idéia de “ser

da escuta”. Talvez tenha agora algum material a mais para

desenvolver a idéia. O “ser da escuta” é o próprio lugar do corte. O

ser da escuta é este conector solto que liga os momentos, que faz

nascer e suspender o tempo. Ele é a justaposição de elementos,

atraído por uma nova paisagem sonora ou por uma paisagem

melódica. O ser da escuta é aquele lugar em que começa e termina o

objeto sonoro e o musical. Ou seja, dizer que este lugar de conexão é

o “ser da escuta” é o mesmo que dizer que a escuta opera nos cortes,

nos micro e macro cortes, e estes cortes não apenas o compositor os

realiza, mas o ouvinte também acaba juntando alguns elementos por

sua própria conta, essas são as brechas da escuta. O ouvinte acaba

reunindo os ciclos à sua maneira, por vezes conforme os intérpretes

também. O “ser da escuta” é assim o ritornelo: extrai um lugar docaos, elege um centro firme, se protege neste centro, mas continua

sua dinâmica de conexões e, à menor turbulência, acaba conectando

novos centros e abandona o lugar seguro para se lançar em lugares

distintos. Assim a escuta viaja da textura à figura e ao gesto. As três

classes do ritmo em Messiaen: quantitativa, dinâmica e fonética. Fica

o corte como aquele mínimo ponto, não mensurável – como já

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manifestava Kandinsky sobre o ponto – no qual um espaço se

conecta com outro que não se deduz do primeiro, e cujas linhas de

conexões estão por serem feitas, soltas, improváveis (não posso

prová-las sem que aconteçam primeiro). Trazendo para a

terminologia de Deleuze forjou a partir de Bergson, o ponto de corte

é o ponto de atualização, no qual pontos do atual se conectam com

pontos do virtual que acabaram de se tornar sensíveis. Ponto mínimo

em que as atualizações que acabam de se fazer conectam-se com o

que já estava no espaço, e de tais conexões pouco posso provar de

antemão.

44.

Lembro mais uma vez que o tempo do qual estou falando não é o

tempo extensivo, o tempo das sucessões. Estou aqui tentando pensar

um tempo intensivo, tempo que diz respeito a modos de conexão;

sendo textura, figura e gesto uma pequena tipologia de conexões.

Suspender o tempo não significa de modo algum parar o relógio,

mas cavar um buraco no tempo cronológico extensivo e encontrar o

que Henri Bergson chamou de durée e que Deleuze retoma nas suas

idéias de imagem-movimento e imagem-tempo.

45.

Quando falo do tempo na música e de sua qualidade intensiva,

afasto-me da quantidade extensiva e divisível (o que não significa

negá-la, a extensão existe e vivemos cotidianamente nela, e o tempointensivo se dá num contraponto com o extensivo). Se é possível

dividir um jogo em duas partes com durações extensivas

semelhantes, se é dado pensar em dividir o tempo de trabalho, não é

dado dividir o tempo musical. “Vou ouvir os primeiros três minutos

depois volto e ouço o restante”. Na escuta musical dificilmente o

“restante” será a continuação dos primeiros minutos. O tempo

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musical neste sentido não quantifica uma grandeza mensurável, ele

apenas diferencia-se. O tempo musical é o jogo do diferenciar-se do

tempo. No mais, pensando por tal caminho, posso dizer também que

uma música não é a soma de suas partes conforme sua forma (sua

seqüência e apresentação) e proporções, mas muitas vezes uma

música pode ser apenas uma pequena passagem de dez segundos

que nos chamou a atenção, pode ser um detalhe timbrístico, ou pode

ser tais detalhes modulando outros detalhes e modulando ainda uma

sensação de duração (uma sensação, e não uma medida, de

permanência de um campo específico de escuta).

46.

Para prosseguir nesta leitura a principal referência são as aulas de

Deleuze sobre Tempo, imagem-movimento , aulas sobre Bergson, Kant e

Peirce.28 A partir de Bergson, Deleuze talvez pudesse chamar todos

os componentes musicais, os objetos-sonoros, objetos-musicais, de

imagens. Por que imagens? Porque elas são o que nos aparece numa

escuta. E toda imagem é multifacetada, conectando-se a qualquer

outra imagem, suas faces se conectando a quaisquer outras a

qualquer instante, com o que as imagens são dotadas de movimento

com a capacidade de reagir ao movimento de outras imagens. Daí 

chamá-las de imagens-movimento.

Deleuze faz toda esta leitura a partir do primeiro capítulo de  Matière

et memoire de Bergson, no entanto, reiterando a todo o momento deque se trata de um plano intensivo-extensivo e não apenas extensivo.

Prosseguindo nesta linha de pensamento, as imagens-movimento se

chocam incessantemente e se agrupam por velocidades, como os

peixes em um aquário. Do entrechoque das imagens-movimento

 28 Aulas de 31/01/1984; 12/121983; 02/11/1983; 07/06/1983; 18/05/1983;17/05/1983; 12/04/1983; 22/03/1983. Disponíveis em arquivos pdf no sitewebdeleuze.net (acessado em 2007).

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nascem outras imagens. Como já disse, elas se agrupam por conta do

empurra-empurra e por suas capacidades de reagir. Neste jogo

nascem outras imagens, estas estão no interstício das primeiras, entre

as primeiras, são o intervalo que nasce na ação de uma sobre as

outras. Imagens-percepção. As imagens-percepção são imagens

privilegiadas, pois imprimem variações de velocidade e constituem

pequenos centros. Isto não é difícil de imaginar; falei dos peixes mas

poderia ter falado dos bois em um curral, todos rodando e se

esbarrando, alguns parando no meio, os da borda mais rápidos, os

do centro mais lentos. As imagens-percepção apenas distinguemintervalos, na ação e reação de uma imagem-movimento sobre outras

nasce um intervalo, e os intervalos se diferenciam. O agrupamento

das imagens não é simplesmente uma reunião, mas uma situação em

que existem alguns movimentos privilegiados, algumas imagens se

aglutinam e ganham lentidão, outras que se afastam e perdem

contato constante, enquanto outras variam incessantemente. Este

agrupamento de imagens é um agenciamento: uma reunião

específica. Deleuze, com Bergson, imagina então mais uma etapa

para este jogo livre. Com a inter e intra diferenciação das imagens,

com suas velocidades distintas, e com as densidades diferentes,

acontece algo no intervalo de reação. A força recebida por uma

imagem não necessariamente se dá com mesma amplitude no

sentido exatamente oposto ao sentido da força recebida. Não se trata

mais de alguém que empurra e alguém que meramente cai, mas sim,

do nascimento de uma cadeia de micro-desdobramentos. Estedesdobramento, Deleuze o chama de imagem-tempo – ela é o que

acontece entre dois momentos distintos de uma ação-reação

aparentemente direta. A imagem-tempo é também aquilo que separa

a ação antecedente de uma reação que não era provável na ação.

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A seqüência de imagens prossegue com as imagens-afecções, mas

paro por aqui com as imagens-tempo, sendo elas o modo de

desdobramento das ações de imagens umas sobre as outras. E é este

desdobramento que estou chamando aqui de textura, de figura e de

gesto. E o que chamo aqui de “ser da escuta” é exatamente uma

imagem-tempo. No ser da escuta cada detalhe vale tanto quanto uma

seqüência completa de eventos, uma pequena amostra vale por uma

música – não no sentido de que ela seria uma parte que representaria

o todo, mas sim no sentido de que ela inaugura, por si só, um novo

todo, uma nova música, até mesmo independente daquela em quefoi extraída. O ser da escuta, o lugar dos cortes e conexões

improváveis, é a própria música, pois assim que ela começa e muitas

vezes quando termina, inaugura um primeiro corte abrindo um novo

campo de escuta no dia-a-dia de uma pessoa. “Ela parou o que

estava fazendo, a carta para uma amiga, parou o movimento de vai-

e-vem da cadeira de balanço, e começou a ouvir alguém que cantava

incessante. Quando aquela voz se calou, era como se o silêncio

tomasse conta da sala e da rua”. Mas, bastaria a música para ter

iniciado o tempo musical? A conclusão que tiro deste fato é a de que

o problema da música é fazer então renascer o tempo a cada espaço

que se fixa.

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As “imagens” de Deleuze-Bergson. 1) imagens-movimento; 2) imagens-percepção;3) imagens-tempo e detalhe do desdobramento da força de ação em micro-forças

de reação e o seu resultado não linear (pequena refração).

47.

 Já habituado a escrever voltando um pouco, lembro que se estou

falando de um tempo intensivo, penso que em música não estamos

falando de um espaço extensivo, mas sempre de um espaço intensivotambém. Não falo de um espaço musical percorrido, uma música

sendo a soma de suas partes de música. Aprendemos a subdividir os

pedaços de uma música, frases, sub-frases, motivos, proto-melodias

etc., mas sabemos que dois pedaços não fazem uma música, que a

música não se subdivide de modo a constituir dois pedaços

mensuráveis. Assim sendo, o que chamamos de espaço musical não

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se mede em metros e centímetros e nem por profundidade – sempre

que falamos em espaço musical estamos lidando com uma fabulação,

na música, as profundidades e distâncias tornam-se sonoras. Deleuze

retoma de Messiaen a idéia de Chronochromie: cronocromia, o tempo

medido pelas suas cores e não mais pelo movimento ou por suas

subdivisões. Brian Ferneyhough fala em “tempo especulativo”,

aquele tempo que se destaca da situação de escuta, tempo como

entidade afetiva autônoma. Ele salta fora da música, mas permanece

ligado a ela.29

48.

Comecei falando do espaço, de como nascia o tempo, e volto a falar

agora do espaço para lembrar duas importantes proposições sobre o

espaço na música do séc. XX. Primeiro, as noções de espaço liso e

estriado, as quais Boulez transpôs para o universo da sucessão – do

tempo extensivo – distinguindo um tempo pulsado, marcado com

traços de hábito e memória, e o tempo flutuante. Boulez identifica

assim um tempo liso e um tempo estriado. De suas obras, talvez

Rituel seja a grande realização do contraponto entre os dois tempos.

Os dois espaços contrapostos de forma a implicar uma pressão

temporal intensa. A segunda proposição é também nasce de uma

concepção espacial, dizendo respeito à idéia de “tactilidade do

tempo” que Brian Ferneyhough fabula junto à composição de

 Mnemosyne , para flauta baixo e oito flautas pré-gravadas, e de

Intermedio , para viola solo. A tactilidade do tempo deve sua origem aum espaço hiper-estriado. Para obter este resultado, Ferneyhough faz

com que o instrumentista trabalhe diversas camadas de razões

métricas distintas; emprega micro-subdivisões métricas com

oscilações de pulso (andamento), fragmenta as pequenas frases em

 29 Ferneyhough, Brian, “The tactility of time”, in: Perpectives of new music,  v.31, no.1,Seattle: Univ. of Washington, 1983, p.21.

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proto-melodias,30 e faz com que tudo seja tocado sob um constante

click-track  que subdivide e mantém constante o pulso no qual o

intérprete tenta encaixar as frases rápidas e intensamente

subdivididas.

49.

Ferneyhough inaugura com a idéia de tactilidade do tempo um novo

espaço musical. Se Webern nos mostrou que a história já havia

passado pela monodia, pela polifonia, pela homofonia e heterofonia,

se ele mesmo acrescentou a esta lista de texturas o pontilhismo.31

 Seposteriormente Ligeti introduziria a micro-polifonia (a síntese

granular instrumental), Ferneyhough introduz a polifonia

interruptiva, feita de proto-melodias truncadas, constantemente

interrompidas por outras proto-melodias. Talvez não seja exagerado

dizer que o espaço unidimensional da monodia expandiu-se no

 bidimensional da polifonia e da homofonia, os dois espaços figurais,

para ganhar mais uma dimensão com a micro-polifonia e a escuta

das texturas, e por fim mais outra dimensão com a polifonia

interruptiva: a tactilidade do tempo.

 30 “/.../ melodias muito pequenas, latências de melodias – /.../ demasiadamentepequenas para que sejam representativas da própria melodia”. Brandel, Rose, Themusic of Central Africa, The Hague: Martinus Nijhoff, 1961.31 Palestra de 14 de março de 1933 publicada em Reich, Willi, The Webern path to anew music, London: Universal Edition, 1960 [Trad. bras. Carlos Kater. Caminhos paraa música nova, S. Paulo: Novas Metas, 1984]; e Ferneyhough, op.cit.

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Pequeno trecho de Mnemosyne.

50.

Sendo um tempo intensivo, o tempo musical não compreende

medirem-se suas velocidades, medir-se sua duração, e duas peças de

vinte e oito minutos não duram a mesma coisa, duas passagens com

dezessete notas em um segundo não têm a mesma velocidade nem a

mesma densidade. Os dez minutos de Atmospheres acabam durando

o mesmo tanto, ou quase, os vinte e oito minutos do Sacre , ou vinteminutos de um só movimento da Sinfonia IX de Mahler. O tempo

agora está em seu estado puro, não se mede, apenas se diferencia e

ganha o nome da música ou do compositor que o carrega, o tempo

do Sacre , o tempo de Mahler, o tempo de Ligeti, o tempo de

Stimmung , o tempo alargado de Grisey e Scelsi.

51.

Fundamentamos o tempo na memória e brincamos com ele no jogodo esquecimento e das tendências. Eis então outra fórmula de

Deleuze: a fórmula do ritornelo. A noção de ritornelo implica uma

imagem de movimento, um movimento que consiste em fazer um

território e deixar o território, em reunir e abandonar coisas para

depois as conectar e desconectá-las. Deleuze e Guattari observam

que o ritornelo nasce do caos e desdobra-se em três aspectos: (1) o

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curso-recurso, a ladainha, o canto reiterado dos pássaros, o

movimento de eleger um eixo; (2) a fuga do território, o desenho das

linhas de fuga; (3) a demarcação, o desenho do território advindo do

movimento em torno do eixo.32 Ou seja, o ritornelo caracteriza-se

pelo movimento de eleger um eixo; de traçar um espaço em volta

deste eixo; de deixar com que alguns elementos se estratifiquem e se

crie a consistência necessária para tornar expressivos tais elementos,

estágio em que encontra uma linha vertiginosa que quase desfaz

tudo: um corte, um acidente, uma sensação qualquer que não estava

ali antes. Aqui o tempo, o ser da escuta, passa a poder perambularpara fora do espaço da música que ele escuta e juntar peças daquela

música com as de outras músicas, com as de um som cotidiano, com

um fato visual, um cheiro, uma presença de alguém familiar, para

nascer enquanto sensação na qual cada micro-componente pode até

ser vislumbrado, mas jamais localizado com certeza. O ritornelo

interno abre-se para aquele que conecta um campo de imagens a

qualquer outro campo de imagens que passe por perto. Entraria aqui

no universo das referências, mas este é pessoal demais, da ordem da

opinião, e não tem a relevância para o que se pretendia com este

trabalho: contar a fábula do nascimento do tempo musical.

52.

Poderia ter parado por aqui, apresentei o espaço, como lugar

intensivo na paisagem sonora, depois o nascimento do tempo

musical, como corte no espaço, interrupção do lugar, e afundamentação do tempo, com a memória, para depois lançar o

tempo para fora de seus eixos, imaginando a música como um lugar

de transição entre um tempo e outro: de um tempo textural, tátil, 32 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix,  Mille plateaux,Paris: Minuit, 1980 (trad. bras.  MilPlatôs , 5 vols. S. Paulo: Ed.34, 1997-9). Na edição brasileira ver sobretudo o volume4, platô “Acerca do ritornelo”. Ver também artigo de Pascale Criton: “A propósitode um curso do dia 20 de março de 1984: O ritornelo e o galope”, em Alliez, Eric(org.), Gilles Deleuze: uma vida filosófica , S. Paulo: Ed.34.

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para um tempo figural, visual e, por fim, um tempo gestual, do

movimento. Tudo isto de modo a retirar o tempo do seu eixo

cronológico e imaginá-lo como intensivo, arrancado da sucessão.

Nesta compreensão do tempo, imagino que exista um tempo da

textura, um tempo do gesto, um tempo da figura. Ou seja, cada um

desses modos de escuta acaba por privilegiar uma forma de tempo.

A textura lança o ouvinte em um tempo liso ao retirar os pontos fixos

de referência, ao operar por quase não cortes. O gesto por sua vez

traz à escuta todo um tempo de referencialidades, que relaciona a

escuta do instante a escutas anteriores, relacionando também aescuta à visibilidade da música. Já as figurações (melódico, rítmicas,

timbrísticas) trazem à tona outra temporalidade, uma vez que

relacionam elementos passo a passo, colocando em jogo uma

memória de curta duração e muitas vezes imaginando o tempo como

reversível.33

No mais, poderia novamente parar por aqui, mas uma questão puxa

outra, e pergunto então: como é que cada paisagem se mantém

consistente; como é que notamos que algo estava acontecendo e que

foi interrompido? Talvez fosse o caso de falarmos um pouco mais

sobre o espaço intensivo.

53.

O corte, aquele que funda o tempo e cinde o espaço, separa blocos.

Para discorrer sobre tal imagem, recorro à leitura de Boulez, de suaidéia do corte como relevante na constituição dos espaços-tempos

liso e estriado. Ao interromper o fluxo da paisagem, o corte

interrompe o espaço, mas deixa neste mesmo espaço a marca de

outra dimensão, a marca do tempo. Os blocos deixam então de ser

 33 Tratei mais detalhadamente desta leitura do tempo em  Música e repetição: adiferença na composição contemporânea (op. cit).

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simples espaços para se tornarem blocos de espaço-tempo. Ou seja, o

espaço não é mais o simples espaço, ele agora vem impregnado pelo

nascimento do tempo. Quando a paisagem é cindida, as micro-

tendências de cada um de seus componentes são interrompidas,

aproximadas ou isoladas por forças que não estavam presentes antes.

O corte abre assim lugar para o desenho de um novo espaço, mas

este novo espaço não se constitui sem trazer nele a forte marca do

espaço que o antecedeu; outro espaço em que outras tendências

estavam ativas, aproximando ou apartando as partículas. É como

uma mancha vermelha ao lado de uma mancha verde. É como cortarum velho LP e colá-lo a outro, não se sabe mais como os sulcos se

corresponderão.34 A paisagem anterior (eis uma marca de tempo),

que tinha por atributo simples a permanência, deixa de existir como

atualidade concreta (na matéria), mas sobrevive como possibilidade

de escuta. O que quero dizer com isto é que a paisagem sobrevive,

ela permanece e continua sendo atualizada, mesmo que sem a

concretude da matéria. É como se ela se escondesse, e fosse

reenviada a um espaço virtual do plano, espaço do qual ela pode

voltar a emergir, mas nunca se sabe se sim ou não, nem como

voltará. Desaparece o som e perduram as possibilidades de retorno,

possibilidades estas que se confrontarão com a atualização de fato,

ou seja, que sofrerão o embate com novos encontros (voltarei a falar

disto quando falar de uma passagem simples no primeiro

movimento da Symphony in three mouvements de Igor Stravinsky).

Com o corte a paisagem renasce, mas como possibilidade; a

paisagem que não está é agora apenas uma possibilidade. Mas vale

dizer que tal recurso da memória não se aplica de modo direto à

escuta musical. Não ficamos o tempo todo rememorando um tema

 34 Algumas experiências do grupo Fluxus, na década de 60, se valiam de quebrardiscos e recolá-los, citando por exemplo o procedimento de dé-coll/age  de Wolf Vostell (Cf. Bosseur, op.cit., pp. 83-93).

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depois que ele se foi (se isto acontece é porque não estamos ouvindo

o que se passa, mas presos no que se passou), na música a memória é

mais da ordem do reencontro do que da ordem da rememoração.35

Ao reencontrar (reouvir) um tema é que nos damos conta de seu

retorno. Para um ouvinte habitué  talvez a própria preparação para a

volta, no final da transição, e as retomadas de pequenos objetos que

 já haviam sido tocados, sejam o sinal de reencontro possível.

Observe-se que distingui por todo o texto o uso das palavras

possível, provável, improvável. Elas se relacionam à idéia de virtuale atual, tal qual reformulada por Deleuze. Improvável é aquilo que

não tenho como provar antes que se dê. Nada do espaço atual em

que vivo me ajuda a deduzir o improvável. Já o possível é uma

extensão do passado sobre o presente e do presente sobre o futuro

provável. É importante tal distinção na leitura deste texto – as

palavras dificilmente são sinônimas quando se tornam ferramentas

de pensamento.

54.

Blocos de espaço-tempo: Deleuze e Pierre Boulez por vezes os

chamam de blocos de duração. Um bloco sempre fala de duas

imagens que se chocam, aqui a do espaço com a do tempo que nasce.

E cada bloco de espaço-tempo é constituído por pequenos blocos de

espaço-tempo, micro-blocos com tendências específicas. Uma frase

melódica é um bloco de espaço-tempo. Nela as notas cantadas seligam por suas tendências: proximidades desenham uma linha,

distâncias podem desenhar pontos isolados, aproximando-se os

 35 Deleuze fala deste aspecto da memória musical em “Devir-intenso, devir-animal,devir-imperceptível”,  Mille plateaux [volume 4 da trad. bras.], p. 364, nota 71. Emuma interessante passagem de seu livro Debussy, la révolution subtile (Paris: Fayard,1998), André Boucourechliev escreve: “Existiria mesmo, não a sua concepção , mas apercepção global de uma música? Não é ela apenas um dos grandes mitos que aescola nos ensinou?”.

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pontos no eixo horizontal, eles podem voltar a desenhar uma linha,

porém uma linha que salta etc.. Este bloco é o lugar de

intermodulação das partículas que constituem velocidades e

densidades específicas. Espaço-tempo estriado e espaço-tempo liso,

aos quais se acrescenta um terceiro elemento, o espaço-tempo fixo –

campo de ressonância, “qualidade comum sem a qual os elementos

não se repetiriam”. 36 São fixos os intervalos, uma escala diatônica e

seus doze intervalos fixos, uma ou outra nota privilegiada (em

posição privilegiada – uma nota pode ser recorrente apenas no início

de uma curva, ou ao final da curva, ou ser reiterada diversas vezes)etc.

Melodia de tribo tukano e seu ré  recorrente em posição de início da curva ou final,um fixo.

Boulez faz com que, em seu serialismo, algumas notas ocupem

posições fixas nas oitavas, mantendo-se sempre em uma mesma

região da tessitura.37 Algumas notas em regiões fixas e outras em

regiões variáveis. A mesma idéia pode ser encontrada, quase como

antecedência às propostas de Boulez, nas construções melódicas de

Edgard Varèse como na primeira linha melódica de Octandre ou em

Densité .

 36 Deleuze, Gilles, “Boulez Proust e le temps”, in: Deux régimes de foux, Paris:Minuit, 2004.37 Sobre os fixos em Boulez, ver Penser la musique aujoud’hui , Paris: Gallimard, 1968,p. 123 seq.

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Passagem central de Densité  com alturas congeladas.

55.

Espaço-tempo liso ou estriado, com alguns fixos intermodulandosuas componentes. Observe-se, no entanto que o fixo não é um

elementos unificador que se retira do fluxo para administrá-lo de

fora, o fixo é apenas aquilo que permanece, aquilo que reaparece e

insiste, fundando hábito. Evito pensar na hipótese de um elemento

que transcende o plano de atualizações da escuta e se constitui

abstratamente como medida do plano. Diferentemente da unidade

que se retira do plano e dá coerência a um discurso, da qual

podemos generalizar juízos diversos, penso aqui no plano imanente38

em que se dá a escuta, plano de permanências. Um fixo é um dado

permanente, algo que retorna. Ele é aquilo que, estando no plano,

insiste em sua permanência, nenhuma superestrutura, apenas um

modelo de ressonância ou interrupção. Ele é o que chamei antes, via

Deleuze e Messiaen, de personagem testemunho.

 38

 Imanente deve ser aqui entendido como aquilo que está no plano e que delineia oplano e não como inerente a algo, essência de algo que se subtrai ao plano paralegislá-lo de fora. “Não há nada fora do plano, o plano está por toda parte, e tudoestá sobre o plano” (Deleuze, Gilles, Les cours Gilles Deleuze, 02/11/1983. Arquivodisponível no site http://www.webdeleuze.com - acessado no ano de 2007). Aidéia de imanência me interessa aqui pois ela é uma imagem interessante paramostrar que quando uma música começa a ser tocada não há mais como ocompositor colocar algo nela. Tudo que está numa escuta é limitado pelo ouvinte,seus hábitos e lembranças, a música que está sendo tocada, a sala de concerto salade audição ou fone de ouvido, os músicos que tocam ou o encarte do cd. Não hácomo anexar nada mais ali, nenhuma teoria explicativa, nenhuma teoria de causa eefeito ou de unificação que cumpra esta função de fazer o plano funcionar.

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56.

Para tornar sensível a idéia de fixo, talvez valha recorrer a uma

imagem visual. Tomo como exemplo os cenários previstos por

Beckett em suas peças para televisão, especificamente o cenário fixo

do Trio du fantôme: porta, janela, espelho, cômoda, personagens

parados, três câmeras fixas. Os fixos são assim aqueles pontos que

persistem em torno dos quais todas as partículas soltas giram,

portadoras e modulantes: os fixos modulam os móbiles e transientes,

ou vice-versa. Nasce daí toda consistência, independente de uma

 forma geral que coordene o todo e que dele se retire. A consistêncianasceria assim da paisagem, da permanência de ciclos, consistência

imanente aos ciclos, ao código entendido aqui como ciclo. Cada

objeto no cenário de Beckett é um fixo, desenha um ciclo periódico

permanente.

Plano para palco de Trio du fantôme , de Beckett.39

 39 Beckett, Samuel, Quad et autres pièces pour la télévision, Paris: Minuit, 1992, p.20.

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Disse que a idéia, a essência, de um modo geral, se retira do todo?

Por que digo que ela se retira ou se subtrai ao plano? Digo tendo em

vista a forma musical. Ora, a forma musical não se dá como um todo,

quase ninguém numa escuta fica identificando momentos, a não ser

o connaisseur diletant  ou o técnico. No mais, mesmo estes ouvintes

especializados têm a partitura em mente ou à sua frente.40 E numa

escuta não linear, quando uma música acaba, são alguns pontos que

nos sobram, algumas passagens soltas. Afora estas sobras concretas

retidas pela memória, outros elementos, como a idéia principal daobra, são deduções que estão fora do plano. Elas tanto estão fora do

plano que um compositor atento como Arnold Schoenberg chama a

atenção diversas vezes que, para a idéia ser clara, ela precisa ganhar

corpo no plano de composição.41 O que é a idéia para Schoenberg? É

a peça toda, a idéia seria aquilo que, quebrado o equilíbrio, seria

capaz de restabelecê-lo. É desta forma que uma nota destoante de

um todo seria num momento seguinte substituída por outra para que

o equilíbrio fosse restabelecido – para o que qualquer estratégia é

 bem vinda, inclusive “a repetição de temas, grupos e passagens mais

extensas”.42 Mas ficam as perguntas: O que é “equilíbrio”? O que é

“destoante”? Este elemento abstrato estaria ligado à essência de uma

música, aquilo que para Schoenberg é a idéia e que deve atravessar

uma música para dar-lhe sua unidade orgânica. Distingue-se assim a

essência que se pretende subtraída do plano de imanência daquilo

 40 Cito duas passagens de Arnod Schoenberg: “a unidade do espaço musical exigeuma percepção abstoluta e unitária”. Schoenberg retira a música do tempo: “comoo céu de Swedenborg em que não há nenhum declínio completo, nem direita nemesquerda, nem à frente nem atrás” (“A composição com doze sons”, Style and Idea,Londres: William Norgate, 1951).41  “Todo criador humano, quando alcança uma visão, há de percorrer o longocaminho que o separa de sua realização; duro caminho onde, expulsos do paraíso,inclusive os gênios terão de colher o fruto com o suor no rosto” (Schoenberg.op.cit.).42 Schoenberg, op.cit.

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que seria o estilo: sua aparência externa.43 Talvez valha pensar não

exatamente na contramão, mas de outro modo. Nem estilo nem

idéia, mas a imanência das imagens que aparecem e são o plano,

nada que lhe seja subtraído nem que o restrinja à materialidade e à

sua forma de percepção.

57.

É importante salientar constantemente que na proposição

composicional que faço aqui, nesta proposição de espaço-tempo,

 busca-se pensar a escuta como gênese e, por conseguinte, umprocesso composicional que leve em conta tal dimensão. E é pelo fato

de as proposições abstratas se retirarem do plano que elas passam a

ser quase que inacessíveis através da atualização da escuta. E é por

elas demandarem um aprendizado prévio – teórico – ou habitual,

que dificilmente permitem pensar uma música atual. É fácil

compreender uma escuta moldada (chamarei de escuta moldada esta

aprendida por formas padronizadas de escuta) quando temos pela

frente uma música da tradição ocidental cujas formas, hoje teorias,

têm sua presença garantida em um hábito social. Mas como pensar

uma música atual, que ainda não existe, com tais juízos de hábito? O

resultado é sempre o mesmo, o de um ouvinte-juiz acostumado a

formas, cadências, homocronias e homotematismo, que quando se

depara com uma música de uma só nota, que quando tem de

enfrentar uma música que não tem cadências, uma música de sons

eletrônicos, ou uma música de sons captados do cotidiano, revelasempre sua inaptidão para viver na imanência. “O que esta música

quer dizer?” é a pergunta mais freqüente frente à inaplicabilidade

das formas da “escolástica”. E se espantam ouvindo Perotin, ouvindo

Claude Le Jeune, ou uma canção dos pigmeus da África Central,

tanto quando se espantam ouvindo John Cage. E, para não se

 43 “Música nova, música antiquada, o estilo e a idéia”, em Style and idea (op. cit.).

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sentirem sós e isolados neste enfrentamento com a forma que nasce,

se valem de teorias as mais mirabolantes que depositam ora na

natureza, ora na cultura, ora no inatismo, buscando aquelas razões

pelas quais julgariam uma música razoável ou não para a escuta

humana. Não bastasse encontrar alguns traços de restrições

perceptivas humanas – as quais justificariam uma música mais

simplória –, acabam pedindo aos bois e vacas para ouvirem

Beethoven e Mozart e nos “dizerem” se ficaram mais calmos ou

agitados, se darão mais ou menos leite. Depois ainda se debruçam

sobre outras formas de vida, afinal de contas bois e vacas sãomamíferos e podem resultar em falsas análises, daí recorrem ao

crescimento das plantas. Talvez seus próximos passos digam respeito

a fazer ouvir músicas às pedras, para ver o quanto se desgastam.

A música que procuro pensar aqui é aquela música improvável, ou

mesmo uma escuta improvável, a qual uma escuta moldada se

restringiria a dizê-la inimaginável e impossível. Daí contrapor a idéia

de improvável e não a de impossível.44 Nenhuma música atual –

música que nasce no momento da escuta – é impossível, mas

improvável, não dedutível pelo espaço constituído do passado e do

presente. Ficam assim distantes aquelas visões que atribuem poderes

metafísicos às notas musicais: polarizações, harmonias naturais. A

necessidade de deduzir tudo a um ou dois temas; a necessidade de

resolver dissonâncias; as teorias naturais da proporção numérica; as

 bases “científicas” da obra de arte. No plano de imanência, um temanão precisa obrigatoriamente retornar, uma forma não precisa ser

satisfeita, uma harmonia não é pré-constituída e nem tem uma

progressão única, sequer tem progressão. No plano de imanência, a

 44 Um estudo aprofundado das noções de possível, impossível, provável, improvável podeser realizado com base em  Le pli: Leibniz et le barroque (op. cit.), pp.66 seq, de GillesDeleuze ou em L’entretien infinie [ A conversa infinita. S. Paulo: Escuta, 2001, pp.85 seq.]de Maurice Blanchot. A idéia que Blanchot formula com a noção de improvável aproxima-se muito da noção de virtual de Deleuze.

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harmonia está o tempo todo em estado de nascimento; as notas se

aproximam pelas estratégias criadas na fabulação dos compositores e

não pela determinação de uma teoria analítica. As leis de atração, de

menor-esforço, da teoria mais simplória dos dons às mais complexa

do caos, são pequenas proposições de leis que não existem na forma

de compreender a escuta e a escritura tal qual estou pensando aqui.

E engana-se quem pense que basta um sistema. Até mesmo um

sistema é necessário que se torne sonoro. Brahms sabia disto,

Schumman também, Chopin, Beethoven, Vivaldi, Bach. É preciso

trazer o sistema para a escuta, realizá-lo passo a passo como se asrelações de imagem que propõe fossem ser ouvidas pela primeira

vez.

58.

Mas como dar alguma garantia a um compositor de que seu plano

vingará, como determinar de antemão tal êxito de escritura? Ao

mesmo tempo, como não depositar a solução desta questão, seja à

simples experimentação ou à abstração de um sistema? Todo

compositor quando escreve sobre seus processos de criação fala de

um mínimo possível frente ao qual todo o improvável poderá se

abrir. O que dá consistência a um plano, a um bloco, o que dá esta

consistência ao mesmo tempo em que se mantêm abertas as conexões

com o futuro, com o improvável?

59.Falando um pouco do improvável, ele é aquilo que nos deu a obra de

Van Gogh. Van Gogh é improvável quando se pensa na arte

acadêmica da primeira metade do séc. XIX. No entanto, ao mesmo

tempo em que seria improvável, existe em Van Gogh aquele mínimo,

aquela dose de fixos que o ligam e o diferenciam de seus

antecessores. Do mesmo modo falaria da música de Giacinto Scelsi

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na segunda metade do séc. XX: ali, era improvável uma música de

duas ou três notas apenas, sem forma definida, sem

desenvolvimento, apenas a viagem solta de uma nuvem sonora que

o vento transforma. Algo permite que em Van Gogh, em Scelsi, em

Beckett, os elementos se repitam, que a pintura, a música, o teatro se

repitam como aquilo que torna sensível as variáveis, as diferenças.

Neles, pontos improváveis se conectaram. A tinta conecta o

movimento da mão antes escondido pelo olho; o som aparece pela

primeira vez como tema, como lugar de viagem (Viaggio al centro del

suono); o vazio e o silêncio, antes apenas pontos de articulação,ganham lugar de drama. Conexões improváveis dando nascimento a

novas imagens sem que nenhuma nova matéria formada se anexasse

ao plano.45 Este é o segredo do jogo, compreender o plano como

infinito, mas sem que se acrescente nada nele, apenas novas

conexões, como propõe Deleuze ao falar sobre a arte do filósofo:

“importante ter em mente que a lei da filosofia e dos conceitos é a de

evitar-se toda operação de prestidigitação na qual se esconde algo

que não se podia fazer”.46

60.

Fica assim que uma música pode ser vista como uma sopa de

sonoridades e que estes sons se mantêm juntos não por uma razão

que lhes é externa, por um sistema ou idéia, mas por seus fixos e

transientes – elementos do plano. Cabe ao compositor tornar sensível

um código (uma permanência): forças imanentes da consistência quese fazem sensíveis em um material composicional, ou material de

escuta. Não estou assim creditando à matéria formada a consistência,

mas à máquina que torna sensível um material. A matéria formada

diz respeito à coesão, a uma relação sonora regulada, pré-definida, e

 45 Mantenho esta nota de redação: pensar mais sobre esta idéia...46 Deleuze, Gilles, Les cours Gilles Deleuze, 02/11/1983. Arquivo disponível no sitehttp://www.webdeleuze.com - acessado no ano de 2007.

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em tal situação seria difícil pensar-se o emergir de novas músicas.

Penso assim no que estou chamando de códigos, os fixos, uma

textura contínua sob ou sobre a qual gravitam os transientes como

poeira cósmica. Os fixos desenham ciclos, como em Circles de Berio, e

cada ciclo envelopa outros pequenos ciclos e elementos transientes.

A consistência de um bloco está assim ligada à presença de ciclos de

fixos: um espaço freqüencial, uma textura, uma sonoridade, um

espectro; panos de fundo da paisagem que criam sulcos no espaço de

escuta de modo que todas as forças se modulam por tais sulcos.

61.

Cortar é interromper um espaço de fixos, é quebrar a tranqüilidade

do plano e instabilizar todas as tendências. Stravinsky brinca com

isto em sua Symphony in three mouvements , de 1945. A peça é uma

sucessão alternada não direta de doze blocos (numerados aqui de a a

l)– alguns blocos podendo ainda ser subdivididos internamente em

primeira e segunda parte. O aparecimento dos blocos segue em vais

e vens, 2a/4b/2a/1a/1a/2b/1a/5c/11d/23e/ etc.47 O ciclo começa

com uma proporção quase que racional entre os blocos (2:4:1), mas

logo Stravinsky se vale de números primos como recurso para

manter a irregularidade das proporções irracionais. Os elementos

deste primeiro grande ciclo só retornarão na última parte da peça, o

primeiro reencontro se dará na cifra de ensaio 88   da partitura,

quando o bloco “e” retorna por vinte e dois compassos, seguido de

4 j/3h/2+2 j/etc.. E finalmente o reencontro com “a” , bem maisadiante, na cifra 105. O reencontro imediatamente realimenta o

hábito (sulco) da primeira escuta: “a/b” , mas Stravinsky sabe brincar

com tais reencontros e propõe uma nova fórmula improvável 3a/8l e

novamente 3a  seguido dos derradeiros 15l. Alguém poderia dizer

que o uso de números primos e série de Fibonacci são dados externos

 47 Legenda: 2a = 2 compassos do bloco a, etc..

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ao plano de composição. Mas o interessante é justamente que tais

números, Stravinsky os torna sensíveis e eles sobressaem na

irracionalidade das proporções, nos ciclos que se fecham uma

primeira vez e que não se fecham na segunda etc.

62.

É comum associar-se parte da vasta produção de Stravinsky ao

neoclassicismo, porém dizer apenas o vínculo desta peça com esta

tendência poética seria no mínimo perder todo o detalhamento de

construção do plano, de encadeamento de blocos e cortes que ocompositor promove. Quais os fixos? Diversos, os fixos são os

acordes (geralmente na posição 3-4-6 – acordes de sétima em

segunda inversão), este é o espaço de ressonância do colorido

freqüencial da peça, é o lugar da diferença entre os blocos. Outro

elemento constante é o arpejo completo ou incompleto, valendo-se o

compositor também de uma pequena fórmula recorrente da frase de

três ou quatro notas em linha ascendente (sol-sib-sol , ou lá-mib-fá, ou

ainda o sol-si-ré ). São poucos gestos recorrentes, que se compõem

como fixos que determinam ciclos de nascimento e morte dos

elementos transientes ou mesmo das pequenas permanências que

acabam dando consistência a cada bloco.

63.

Este modo de composição por blocos pode ser encontrado também, e

talvez este seja o modelo tomado por Stravinsky, no barroco, deforma bastante clara em Le quattro estagioni  de Vivaldi. Ali não só

encontramos os blocos como também uma interessante forma de

alterná-los notando a proporcionalidade ligeiramente irregular de

um em relação ao outro. Como exemplo, tomo aqui o Allegro do

“Verão”. Os blocos podem ser divididos conforme a textura

resultante da relação acompanhamento/vozes principais, tendo com

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isto:

11a/10b/3a/2+2c/2+3d/2transição/4b/8e/11 f /3+4a/3 g/4h/8i/11a.

Vivaldi separa os blocos distinguindo passagens sobre nota pedal,

passagens sobre progressão harmônica (distinguindo ainda as

progressões: cromática, ciclo de 4as), jogos de pergunta e resposta

entre grave e agudo, passagens sobre notas repetidas. Se o

comparamos com Stravinsky, o segundo apenas acelera este processo

e dá maior contraste entre os componentes de um e outro bloco,

fazendo com que a escuta torne-se como que cubista. Em Trois pièces ,para clarinete solo, de 1919, mais precisamente na segunda peça,

Stravinksy emprega uma alternância rápida de gestos do clarinete,

praticamente sem uma conexão explícita a não ser o fato de cada

 bloco estar lado a lado, de haver um fixo sobre o palco (um

clarinetista e seu instrumento), de praticamente não haver figuras

recorrentes. Em “Style ou idée: éloge da l’amnésie”, Pierre Boulez

especifica esta forma composicional: “a ironia conduzirá stravinsky a

usar abertamente da parodia e, assim como picasso o fazia quase na

mesma época, ao introduzir os objetos encontrados [objets trouvés]

num complexo estilístico onde eles funcionam por distorção. a

 bizarria da citação, sua ingenuidade, a diferença de nível das

linguagens, a heterogeneidade dos elementos serão partes

integrantes da composição. ele não procurará reduzir as divergências

e unificar os disparates pela síntese gramatical – como uma

personalidade da surenchère , berg, o fará mais tarde em wozzeck”.

48

64.

Uma hiper-aceleração dos blocos sucessivos e uma redução dos

 blocos a um gesto. Isto levaria ao nascimento constante do tempo,

 48 Boulez, Pierre, “Style ou Idée? Éloge de l’amnésie; sur Stravinsky”, in:  Musique en jeux,

nº4, Paris: Seuil, 1971, trad.port. Gustavo Penha (inédita) – Sic.: as minúsculas nos nomespróprios e inícios de frases são do texto original.

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nascer e renascer intenso. Talvez seja tal aceleração dos nascimentos

de tempo, realizados pelos cortes em blocos que quase nem se

completam, que resulte no que Brian Ferneyhough chamou de

tactilidade do tempo, mais do que uma relação com o espaço hiper-

estriado.

Ferneyhough realiza uma transição interessante de gestos completos

para proto-gestos que são ciclos que não se fecham. É isto que o

compositor realiza em  Mnemosyne. Outra peça, a quarta peça de

Études Transcendentales, apresenta este mesmo processo, porém numcrescendo gradual: ele começa com gestos completos e conduz a peça

ao extremo dos micro-gestos quase transientes: o caos se definindo

não pela desordem, mas pela transiência de toda forma que nele se

esboça, lembrando aqui esta formulação de Deleuze a partir de

Prigogine.49 Os gestos são os pacotes de fixos encadeados numa certa

tendência, dando a entender certo sentido no movimento. Mas seu

extremo, os micro-gestos, são quase que atravessados por parcelas

ínfimas de fixos, e se mantêm juntos pela pressão temporal mais do

que pela ressonância de um espaço comum entre um e outro.

 49 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix, Qu’est-ce que la phlilosophie?,  Paris: Minuit, 1991[trad. bras: Bento Prado Jr. e A.Muñoz. S.Paulo: Ed.34, 1992, p.153].

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Excerto da parte de flauta da peça 4 de Études Transcendentales de Ferneyhough.

65.

O primeiro gesto que se vê na partitura da peça 4 dos Études , na

parte de flauta, é um gesto ascendente. Este gesto envelopa uma

seqüência intervalar com onze notas, o envelope seguinte é composto

dos mesmo intervalos melódicos, porém em ordem diferente.

Auditivamente é como se as escalas se reconstituíssem transpostas

(um reencontro com variável), agora com uma das notas separadas

do todo. Segue ainda uma nova frase, porém ziguezagueante, com osmesmo intervalos, agora de doze notas; por fim, três fragmentos com

um total de cinco notas. Não cabe procurar o dado transcendente que

uniria onze, doze e cinco, mas sim o fato de que há um gesto que

envelopa um hábito e este hábito vai sendo deformado juntamente

ao gesto.

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Ferneyhough não trabalha passo a passo, embora deixe as marcas do

passo a passo em seus grandes saltos. Ele logo faz a peça saltar do

gesto claro a outro que parece seu inverso, ou seja: dos micro-ciclos

envelopados de intervalos, passamos aos ciclos de gestos depois aos

ciclos de transformação do gesto.

Agora o que temos? Novos fixos? Não. Ao longo da primeira linha o

compositor nos ensinou a envelopar os intervalos melódicos que

emprega, ensinou-nos também a relacioná-los às suas oitavações

(aprendemos os saltos e aprendemos que as notas podem ser as

mesmas mesmo à distância de uma oitava ou duas). Aprendemos

também a construir outros envelopes. Assim, relacionamos as notas,

estejam ou não próximas no campo de tessitura (dó-si-dó#), estejam

ou não intercalados por outras notas (dó-si-[fá-fá#]dó#) ou ainda

distanciadas por pausas breves (dó-si-[fá-fá#]dó#-pausa- ré-[si-<sol#>-

si]-mi -pausa- [lá< sol#>] - do) etc..

Se uma primeira permanência é dada pelo pacote de fixos, um outro

também participa deste jogo, talvez mais barroco: a compressão

textural dada pela alta velocidade do encadeamento de fusas e

semicolcheias, de valores sempre cambiantes, mas sempre rápido e

irregularmente fluido. Cada pequeno gesto é aqui um pequeno bloco

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de espaço-tempo, interrompido, retomado, deformado. É o mesmo

que dissemos de Circles de Berio.

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66.

A primeira linha da partitura de Circles encerra três ciclos de valores

(durações) do tipo longa- grupeto de breves-longa. O mesmo ciclo é

realçado pelo canto que distingue com voz normal e bocca chiusa

longas e  grupeti. Mas ainda se sobressai mais um ciclo, o ciclo das

figuras intervalares: 1-2-4 (dó-réb-mib-sol; sol#-lá-si-sol; lá-fá-mi-fá#;

réb-do-ré ).50 São assim três ciclos sobrepostos: ciclo de valores, ciclo de

sonoridades, ciclo de intervalos. Três ciclos enredados por um ciclo

maior: a peça começa sobre o ré  , vai para o lá  , “sobe” mais uma vez

para sib e chega no sí natural. Se ainda cabe distinguir mais ciclos,neste pequeno trecho de música, falaria então do ciclo de notas

individuais em posições privilegiadas, como a nota ré natural. O

trecho possui as doze notas da escala cromática, mas não se

caracteriza por uma sonoridade cromática e sim pelos jogos

recorrentes de intervalos 1-2 que estão mesmo na base das escalas

diatônicas e octatônicas.

67.

A segunda linha da mesma partitura continua os ciclos iniciados na

primeira: o ciclo de intervalos, o ciclo de valores. Nasce ainda mais

um ciclo, o das distâncias entre as notas (saltos melódicos) que

aumenta lentamente; a voz começa a saltar mais do que na primeira

linha, e o ciclo que se iniciara alcançando a nota sí3 , agora se amplia

uma vez mais – na terceira linha ele chegará ao  fá4 e na quarta linha

retornará às notas ré3 e fá#3. Este é o desenho de um grande ciclo queenvelopa todos os outros que mencionei até agora: intervalos 1-2-4,

graus-conjuntos e saltos, longa- grupeto-longa, ordinario-bocca chiusa.

Berio não interrompe seu móbile de ciclos, um novo ciclo inicia-se na

quarta linha, aquele que ampliará a linha agora para o grave, lá#2.

 50 Utilizo aqui a notação intervalar propostas por Allen Forte em The structures of atonal music , Yale: Yale Univ. Press, 1968.

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68.

Nos exemplos que vimos, a consistência está ligada a estratégias

distintas. Em Berio os ciclos sobrepostos, em Ferneyhough a alta

pressão temporal e a tactilidade do tempo, em Boulez as notas fixas

em regiões específicas da tessitura do instrumento, em Beckett a

mobília fixa. São estratégias distintas, não no sentido de unir as

coisas, como queria uma estética anterior, mas de propor as partes

como disjuntas: de propor partes sem um todo, como diria Alberto

Caeiro.51

 Partes que se intermodulam quando colocadas lado a ladoou sobrepostas, fazendo com que aquelas parcelas fixas mantenham-

se ressonantes, mantenham-se acesas, e com que o restante seja

modulado por estas mesmas parcelas e entre si. Diferentemente do

tempo extensivo que junta suas partes por afinidades do tipo

identidade e semelhança, no tempo intensivo aquilo que se constitui

em imagem e, por conseguinte desenha as partes, contrai-se e se

intermodula por suas diferenças. Os fixos são aquela parcela que não

sofre o corte, pois permanecem. No jogo de modulações entre fixos e

transientes, permanências e cortes, criam-se camadas de um tempo

que nasce e renasce e espaços que permanecem. Os fixos são da

ordem do espaço e os transientes da ordem do tempo, do corte,

daquilo que tem seu ciclo interrompido. Vale assim dizer que a idéia

de consistência não se restringe a um ou outro tipo de música, a uma

ou outra época, mas ela é vislumbrável em qualquer obra, de

qualquer tendência, de qualquer época: é uma escuta, desenhoconstante de materiais tornando sensíveis forças não sensíveis, e não

um fenômeno desenhado nos limites da matéria e da forma.

 51 “Poema XLVII” de O guardador de rebanhos de Alberto Caeiro/Fernando Pessoa:“a Natureza é partes sem um todo”.

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Um espaço arquitetônico exemplificaria facilmente o que chamo aqui

de fixos: um pátio com pilares e objetos pesados, fixos, rodeado por

móveis, pessoas, objetos pequenos que gravitam transientes.

Desenho com dois momentos: fixos – quadrado, ponto, cruz, círculo –e transientes girando ao seu redor e sobreposição dos dois momentos numa espécie

de espaço-tempo.

69.

Aparentemente estou falando aqui da forma musical. Porém valem

algumas ressalvas. Optei desde o início por pensar o tempo intensivo

e não o extensivo, o mesmo adotei quanto à forma. Se posso estar

falando da forma é enquanto uma forma intensiva, ou seja, umaforma que não se desdobra para fora do plano como reguladora de

todo e qualquer acontecimento. Pelo contrário, os acontecimentos

estão no plano e o plano não é nada mais do que seus

acontecimentos. O que é a forma extensiva? A forma extensiva é a

 boa forma da sucessão. A forma Sonata, por exemplo. O que

chamamos de forma é aquilo que se retira do plano de composição

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para regê-lo de fora – quando se sabe historicamente que não foi bem

assim, que a forma Sonata foi uma lenta e livre invenção e

reinvenção. Não é o fato de se ter uma forma perfeita, uma

quadratura perfeita, que garantirá o tempo em uma música. A

quadratura tem de ser estudada no plano como sendo aquele

material que torna sensível forças não sensíveis da lembrança, forças

de sístole e diástole, as forças da gravidade, as forças de atração das

notas. Diria mesmo que a forma Sonata é de certo modo didática.

Nela o reencontro se dá não com um elemento, mas com toda uma

família de elementos, e com a manutenção de um modo de relacionaresses elementos – daí que vemos Stravinsky desfazer estes pacotes de

pequenas certezas ao gerar o encontro com fragmentos de elementos,

tornando a música em um terreno de encontros e reencontros

inusitados e fora de lugar; em Stravinsky cada família é quebrada em

personagens.

Ao falar da forma intensiva, vale também notar que várias das

pequenas transcendências da forma extensiva ou de um pensamento

abstrato não cabem. Por exemplo, as notas musicais não se atraem

por si mesmas, não existe força de gravidade das notas, nem mesmo

as idéias de memória e desenvolvimento estão nas notas e nos sons: é

preciso tornar sensíveis tais forças. Daí uma forma intensiva ser o

material composicional, material sonoro que torna sensíveis as forças

não sonoras. Messiaen torna sonoro o tempo. Stravinsky, quando faz

retornar um de seus blocos, realiza uma brincadeira com oesquecimento: é porque alguém esqueceu que vale a pena retomar

um bloco, é porque o ouvinte habituou-se a uma seqüência de blocos,

que vale a pena retomar o bloco e dispô-lo de outra maneira.

Conduzir a escuta a novas conexões: esta seria a fórmula da forma

intensiva. Varèse fala um pouco disto quando imagina a forma

musical como um cristal que cresceria por dentro, a forma sendo

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aquilo que as relações entre notas e sons tornam sensível. Em arte, é

por as coisas não se relacionarem por leis, que podemos relacioná-las

como bem entendemos. É porque a nota dó (no mundo dos sons) não

segue à nota si que posso conectá-las como bem entender ou

distanciá-las para sempre. Como se o compositor explorasse as

conexões livres dos sons. Se b   seguia a a , aparentemente ou

imaginariamente por causa-efeito, b   pode seguir a c , e a  pode ser

seguido de qualquer outra imagem sonora, qualquer outro bloco.

Porque simplesmente os sons se conectam livremente. Esta idéia é

elaborada de modo bem claro por Daniel Charles, quando diz que háuma ausência de ligação entre os sons. Mesmo em uma música que

se queira funcional,52 na qual o compositor sonhou uma hierarquia

de relações para seus sons, mesmo nesta música há uma ausência de

ligação necessária entre os sons, a não ser sua proximidade espaço-

temporal. É tal ausência de ligações que permite justamente que as

ligações se façam em não importa qual das singularidades sonoras.53

Eu retomaria aqui a fórmula do “som humanamente organizado” do

etnomusicólogo John Blacking, porém, propondo-a de outra maneira:

“sons humanamente relacionados”; sem uma hierarquia de relações

pré-estabelecida. Proporia assim, mas com a ressalva de que o

“humanamente” não se diz aqui dos limites do humano, dos limites

cognitivos, dos limites culturais, dos limites sociais, mas

simplesmente dos hábitos e paixões de um coletivo.

70.A forma intensiva é assim um instrumento de composição para

propor percursos de escuta e não um modelo transcendente e

 52 O termo funcional é empregado aqui no sentido adorniano, tal qual exposto em“Vers une musique informelle” (Adorno, T. W., Quasi una fantasia, Paris:Gallimard, 1961).53  Charles, Daniel, “La musique et l’oublie”, in: Le temps de la voix,  Paris:

 J.P.Delarge, 1978, p. 263.

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abstrato de equilíbrio, de boa construção, se bem que passem aqui

alguns hábitos. Nasce-se ouvindo canções com refrãos e ritornelos,

cresce-se cantando e dançando refrãos e ritornelos, e a música das

salas de concerto trazem padrões e mais padrões de

proporcionalidades. E é nesta paisagem que qualquer nova música se

insere, e o espaço permanente do hábito atravessa esta nova música

como uma regra que aproxima ou distancia o campo de escuta. Este é

o campo de batalha de cada compositor, uns indo o mais longe que

podem, outros ficando em solo mais firme.

71.

Falei assim do espaço, da paisagem sonora, passei pela paisagem

musical, desenhando as imagens de permanências, de transiências e

tendências. Depois veio a idéia de cortar a paisagem, de interromper

um ciclo (tendência) ou simplesmente não retomar um ciclo, para ver

nascer o tempo musical. O tempo musical foi por sua vez pensado

em três linhas básicas: a do hábito, a do nascimento da memória e a

do tempo fora dos eixos (das rápidas transições, dos ciclos

incompletos). Para dar corpo a estas três imagens é que se fizeram

necessárias as idéias de textura, figura e gesto. Ao fim de tudo,

abandonei um pouco a primeira idéia de paisagem para pensar não

mais um simples espaço, mas um bloco de espaço-tempo. O bloco de

espaço-tempo passou assim a ser o lugar de composição, lugar em

que os sons não se relacionam por normas, mas por simples

necessidades composicionais ou simplesmente por ressonância.Retomo: fui assim do espaço ao tempo, ao espaço-tempo e por fim à

idéia de que tais blocos de espaço-tempo podem ser completos ou

incompletos, cada espaço-tempo conduzido por um grande ciclo que

envolve outros ciclos e estes, por sua vez, envelopando novos ciclos. .

Por fim, disse que este bloco pode ser cortado ou simplesmente

deixá-lo completar suas voltas sem mais retornar. Faz-se assim uma

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composição do tempo: alternar movimentos cíclicos, interromper os

ciclos, envolver os ciclos em outros ciclos, suspender os ciclos com

falsos e longos ciclos, mas sempre tendo em mente que o ciclo só se

estabelece na escuta, que o ciclo só se nota quando claramente

desenhado. Que o compositor precisa deixar claras as forças que

compõem um ciclo, forças de gravidade, de aproximação e

afastamento, de rarefação e adensamento, de crescimento e

diminuição. E deixando claras tais forças em um material específico,

ele ainda tem de imaginar que seus ciclos giram dentro de outros e

que o plano de composição não é nada além de suas componentes eestas componentes só existem dentro deste plano de composição.

Talvez valesse uma pequena crença apenas: a de que após o

movimento de diástole vem a sístole, que depois da nota breve há

sempre uma nota longa e vice-versa. E que os blocos assim se

 justapõem: bloco longo-curto, curto-mais curto, curto-longo, longo-

longuíssimo. Enredando micro-ciclos que refazem o mesmo jogo

longo-breve, não necessariamente homogêneo ou semelhante ao

grande ciclo, mas sempre ciclos sobre ciclos de longas-breves. Por

fim, diria também que o intensivo se dá sobre sua parcela de

extensivo, que ele se funda na sucessão para dela se lançar no espaço

contínuo de cortes e permanências, sem que necessariamente os

elementos se relacionem por causa-efeito, mas apenas por micro-

tendências, fixos, transientes e grandes cortes. Aliás, seriam as micro-

tendências e os fixos aquele mínimo necessário para não se vagar em

uma rapsódia de devaneios desconexos – Deleuze fala a este respeitoquando expõe a idéia de um “sombrio precursor” em Diferença e

repetição: há algo que permanece, e este algo não é da ordem da idéia

transcendente nem da percepção, mas da ordem da sensação.

Encontraria ainda uma fórmula mais simples: longa-breve, longe-

perto.

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72.

… concluo que talvez devesse retornar ao primeiro livro deste ciclo

de dois e relê-lo, agora atravessado por este segundo…

São Paulo, 14 de julho de 2007

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Van Gogh, Vincent. Cartas a Théo. [trad. bras. Pierre Ruprecht. PortoAlegre: LPM, 1997].

Vianna, Hermano e Villares, Beto. Música do Brasil. S.Paulo: AbrilCultura. s/d.

Webern Anton e Reich, Willi. The Webern path toa new music. London:Universal Edition. 1960. [trad. bras. Carlos Kater. Caminhos para a músicanovaS. Paulo: Novas Metas. 1984].

Winckel, Fritz. “Musique dans l’espace et musique espatiale” In: Musique en jeu. vol.2. Paris: Seuil. 1971.

Wolf, Christophe. Mozart’s Requiem. Berkeley: Univ. California Press.1991.

Xenakis, Iannis. Musique et originalité . Paris: Séguier. 1996.

Page 181: notas do caderno amarelo a paixão do rascunho Silvio Ferraz

7/23/2019 notas do caderno amarelo a paixão do rascunho Silvio Ferraz

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ii

Zimmerman, B.A.. “Intervale et temps” In: Contrechamps. nº.5.Lausanne: L’Age d”homme. 1985

Partituras das composições do autor, citadas na tese, constantes emCD anexos:

Anel anemic (1978). para viola e violino. 1979. Estréia “I Encontro de jovenscompositores”. S.Paulo:1980. violino: Mayra Lima; viola: Perez Dvoreck.

Arcos para Giacometti (2004). versão para viola e violino. Estréia: Sesc Paulista. S.Paulo:2004. Violino: Eliane Tokeshi; viola: Ricardo Kubala.

Cantilena em Canto (1979). para duas vozes femininas. Estréia: “I encontro decompositores”. S.Paulo: 1980. Vozes: Yara Campos e Katia Guedes.

Cortazar ou quarto com caixa vazia (1999). para piano e live-electronics com uso eMAX/MSP. Estréia: “Festival Música Nova”. S.Paulo: 1999. Piano: Lidia Bazarian.

De um tempo em deserto (1997). para conjunto instrumental. Estréia: “12a. Bienal brasileira de música contemporânea”. Rio: 1997. Ensemble Nord.

Deserto (1998). para conjunto instrumental. Estréia: “Festival música nova”. S.Paulo:1998. Ensemble champs d’ action.

Dna Letícia ou A parede da última casa (2007). para conjunto instrumental. Obracomposta para o Oficina Música Nova de Belo Horizonte. inédita.

Hoje como ontem ao meio dia e Transições para piano solo (2002). para coro misto e piano.Estréia: Sala S.Paulo. SP: 2002. Coral da OSESP sob regência de Samuel Kerr.

Itinerários do Curvelo (2006). para pequena orquestra. Estréia: “Bienal brasileira demúsica contemporânea”. Rio: 2007.

Lamento quase mudo (2004-2006). para violoncelo solo. Estréia: Concerto SESC. S.Paulo:

2006. Violoncelo: Teresa Cristina Rodrigues.Les silences dun étrange jardin (1994). para flauta solo. Estréia: “Festival d’ Automne”.Paris: 1994. Flauta: Félix Renggli.

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7/23/2019 notas do caderno amarelo a paixão do rascunho Silvio Ferraz

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Ninféa Encarcerada (1995). para oboé solo. Estréia: “Festival música nova”. S.Paulo:2005. oboé: Piet von Boekstal.

No encalço do boi (2000). para clarinete e percussão. Estréia: Merz Musik. Colônia: 2001.Clarinete: Luiz Eugênio Montanha; percusssão: Carlos Tarcha.

Ora H  (1979) para quarteto de cordas. Estréia: “I Encontro de compositores”. S.Paulo:1980. Violinos: Maria Vishnia e Mayra Lima; viola: Perez Dvoreck; violoncelo: ZigmuntKubala.

Ritornelo (1998). para flauta e percussão. Estréia: “Festival música nova”. São Paulo:1998. Flauta: Cássia Carrascosa. Percussão: Rodrigo Foti.

Sopro prolongado (2005). para viola, violino e orquestra de cordas. Estréia: Festivalmúsica nova. S.Paulo: 2007. Orquestra de camara da USP. Regência de Gil Jardim.

Tríptico das casas [Casa tomada, Casa vazia e Catedral das 5:45] (2003-2004). para pianosolo. Estréia: “Concerto Sesi Paulista”. 2004. piano: Lidia Bazarian.

T í ti d li h [Li h t t Li h d Li h lt ] (2005 2006)