Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas. FCGP, Belo Horizonte, ano 10,...

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64 ARTIGOS Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas Amauri Feres Saad Mestrando em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogado em São Paulo. Resumo: O presente trabalho aborda os parâmetros jurídicos para a precificação de contratações administrativas. Tendo em vista que a legislação determina apenas que as contratações administrativas obedecerão aos preços de mercado, procura-se identificar, com base no regime jurídico-administrativo, um complexo de princípios que sirva de baliza para a análise jurídica dos preços contratados pela Administração Pública (princípios da identidade, globalidade, uniformidade, primazia da realidade, intencionalidade e valor formal das contratações administrativas). Palavras-chave: Contratos administrativos. Preços de mercado. Orçamento. Licitação. Sumário: 1 Introdução – 2 Panorama da precificação das contratações administrativas na Lei nº 8.666/93 3 Das limitações ao valor das contratações administrativas nas leis orçamentárias – 3.1 Considerações gerais – 3.2 Da imposição das cotações referenciais de preços e do regime jurídico-administrativo – 3.2.1 Da aplicação concreta dos princípios relativos à precificação das contratações administrativas – 4 Das diferenças entre as formas de raciocínio acerca da precificação de obras públicas – 5 Conclusões – Referências 1 Introdução As contratações administrativas obedecem, como não poderia deixar de ser, entre outros, aos princípios vetores da moralidade e da impessoali- dade, pertencentes, na expressão feliz de Almiro do Couto e Silva, à “mesma constelação de valo- res” 1 que compõem, no Estado Democrático de Direito, o chamado princípio republicano. Impõe- se, na esteira de tais princípios, a busca do inte- resse público, consubstanciado na contratação da melhor proposta, sem favorecer ou desconsi- derar o cidadão-interessado, ao longo do proce- dimento, sem razão constitucionalmente apoia- da que o justifique. Não é por outro motivo que a doutrina — a vozes uníssonas — asserta ser a licitação procedimento competitivo destinado a selecionar, segundo critérios isonômicos, preexis- tentes e públicos, o licitante apto e que tenha apre- sentado a proposta mais vantajosa à Administração Pública, como condição, de regra, para que esta contrate com terceiros. 2 O procedimento licitatório, conforme salien- ta Enrique Sayagués Laso, busca evitar a colusão de particulares entre si ou com agentes públicos na realização das contratações necessárias à exe- cução dos cometimentos administrativos, haja vista que, com tal procedimento, se reduz drasti- camente a margem de liberdade do administrador público no que tange à escolha do contratante privado. 3 4 Mediante licitação, consoante o mestre uruguaio, se procura estimular a concorrência entre os particulares, com a consequente obtenção de propostas mais vantajosas aos cofres públicos. Além de se criar, tendo em vista que aos licitantes é lícito impugnar qualquer ato do procedimento (decorrência da natureza competitiva do proce- dimento), um ambiente de permanente fiscali- zação dos interessados, entre si e com relação aos atos da Administração. 5 Ainda, o caráter público da licitação permite o escrutínio quer dos órgãos de controle externo (v.g., tribunais de contas, 1 SILVA, Almiro do Couto e. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul RPGE, Porto Alegre, v. 27, n. 57, p. 35, dez. 2004. Suplemento. 2 Cf., por todos, Celso Antônio Bandeira de Mello, que pontifica: “Licitação, pois, é um procedimento competitivo — obrigatório como regra — pelo qual o Estado e demais entidades governamentais, para constituírem relações jurídicas as mais obsequiosas aos interesses a que devem servir, buscam selecionar sua contraparte mediante disputa constituída e desenvolvida isonomicamente entre os interessados, na conformidade de parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados. Fácil é ver-se que a licitação não é um fim em si mesmo, mas um meio pelo qual se busca a obtenção do negócio mais conveniente para o atendimento dos interesses e necessidades públicas a serem supridos, tanto como assegurar, neste desiderato, pleno respeito ao princípio da isonomia, isto é: o dever de ensejar iguais oportunidades aos que pretendem e podem disputar o travamento das relações jurídicas em que o Poder Público esteja empenhado” (Pressupostos da licitação. In: VERRI JR., Armando; TAVOLARO, Luiz Antônio; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Licitações e contratos administrativos: temas atuais e controvertidos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 123). 3 SAYAGUÉS LASO, Enrique. La licitación pública. Montevidéu: Editorial BDEF, 2005. p. 2. (Reedição da obra publicada em 1940). 4 Cf., a propósito, a lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: “A escolha, salvo exceções legais, não deve ser feita livremente, como ocorre, na maior das vezes, nas aquisições e negócios dos particulares, mas através de competição dos interessados devidamente convocados. Isso com o objetivo de resguardo do interesse público, a fim de impedir abusos possíveis, por parte dos agentes públicos, que agem em nome e por conta da entidade pública, como pessoa jurídica, ser real, mas acidental, formado de relações de pessoas naturais, para alcançar dado fim em comum, cuja vontade se manifesta por intermédio de agentes públicos” (Da licitação. São Paulo: José Bushatsky, 1980. p. 16-17). 5 SAYAGUÉS LASO. La licitación pública, p. 2.

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Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas

Amauri Feres SaadMestrando em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogado em São Paulo.

Resumo: O presente trabalho aborda os parâmetros jurídicos para a precificação de contratações administrativas. Tendo em vista que a legislação determina apenas que as contratações administrativas obedecerão aos preços de mercado, procura-se identificar, com base no regime jurídico-administrativo, um complexo de princípios que sirva de baliza para a análise jurídica dos preços contratados pela Administração Pública (princípios da identidade, globalidade, uniformidade, primazia da realidade, intencionalidade e valor formal das contratações administrativas).

Palavras-chave: Contratos administrativos. Preços de mercado. Orçamento. Licitação.

Sumário: 1 Introdução – 2 Panorama da precificação das contratações administrativas na Lei nº 8.666/93 – 3 Das limitações ao valor das contratações administrativas nas leis orçamentárias – 3.1 Considerações gerais – 3.2 Da imposição das cotações referenciais de preços e do regime jurídico-administrativo – 3.2.1 Da aplicação concreta dos princípios relativos à precificação das contratações administrativas – 4 Das diferenças entre as formas de raciocínio acerca da precificação de obras públicas – 5 Conclusões – Referências

1 Introdução

As contratações administrativas obedecem,

como não poderia deixar de ser, entre outros, aos

princípios vetores da moralidade e da impessoali­

dade, pertencentes, na expressão feliz de Almiro

do Couto e Silva, à “mesma constelação de valo-

res”1 que compõem, no Estado Democrático de

Direito, o chamado princípio republicano. Impõe-

se, na esteira de tais princípios, a busca do inte-

resse público, consubstanciado na contratação

da melhor proposta, sem favorecer ou desconsi-

derar o cidadão-interessado, ao longo do proce-

dimento, sem razão constitucionalmente apoia-

da que o justifique. Não é por outro motivo que

a doutrina — a vozes uníssonas — asserta ser a

licitação procedimento competitivo destinado a

selecionar, segundo critérios isonômicos, preexis­

tentes e públicos, o licitante apto e que tenha apre­

sen tado a proposta mais vantajosa à Administração

Pública, como condição, de regra, para que esta

contrate com terceiros.2

O procedimento licitatório, conforme salien-

ta Enrique Sayagués Laso, busca evitar a colu são

de particulares entre si ou com agentes públicos

na realização das contratações necessárias à exe-

cução dos cometimentos administrativos, haja

vista que, com tal procedimento, se reduz drasti-

camente a margem de liberdade do administrador

público no que tange à escolha do contratante

privado.3 4 Mediante licitação, consoante o mestre

uruguaio, se procura estimular a concorrência

entre os particulares, com a consequente obtenção

de propostas mais vantajosas aos cofres públicos.

Além de se criar, tendo em vista que aos licitantes

é lícito impugnar qualquer ato do procedimento

(decorrência da natureza competitiva do proce-

di mento), um ambiente de permanente fiscali-

zação dos interessados, entre si e com relação aos

atos da Administração.5 Ainda, o caráter público

da licitação permite o escrutínio quer dos órgãos

de controle externo (v.g., tribunais de contas,

1 SILVA, Almiro do Couto e. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul – RPGE, Porto Alegre, v. 27, n. 57, p. 35, dez. 2004. Suplemento.

2 Cf., por todos, Celso Antônio Bandeira de Mello, que pontifica: “Licitação, pois, é um procedimento competitivo — obrigatório como regra — pelo qual o Estado e demais entidades governamentais, para constituírem relações jurídicas as mais obsequiosas aos interesses a que devem servir, buscam selecionar sua contraparte mediante disputa constituída e desenvolvida isonomicamente entre os interessados, na conformidade de parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados. Fácil é ver-se que a licitação não é um fim em si mesmo, mas um meio pelo qual se busca a obtenção do negócio mais conveniente para o atendimento dos interesses e necessidades públicas a serem supridos, tanto como assegurar, neste desiderato, pleno respeito ao princípio da isonomia, isto é: o dever de ensejar iguais oportunidades aos que pretendem e podem disputar o travamento das relações jurídicas em que o Poder Público esteja empenhado” (Pressupostos da licitação. In: VERRI JR., Armando; TAVOLARO, Luiz Antônio; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Licitações e contratos administrativos: temas atuais e controvertidos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 123).

3 SAYAGUÉS LASO, Enrique. La licitación pública. Montevidéu: Editorial BDEF, 2005. p. 2. (Reedição da obra publicada em 1940). 4 Cf., a propósito, a lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: “A escolha, salvo exceções legais, não deve ser feita livremente, como ocorre, na

maior das vezes, nas aquisições e negócios dos particulares, mas através de competição dos interessados devidamente convocados. Isso com o objetivo de resguardo do interesse público, a fim de impedir abusos possíveis, por parte dos agentes públicos, que agem em nome e por conta da entidade pública, como pessoa jurídica, ser real, mas acidental, formado de relações de pessoas naturais, para alcançar dado fim em comum, cuja vontade se manifesta por intermédio de agentes públicos” (Da licitação. São Paulo: José Bushatsky, 1980. p. 16-17).

5 SAYAGUÉS LASO. La licitación pública, p. 2.

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ministério público), quer de qualquer cidadão

(via direito de petição à Administração Pública e

aos órgãos de controle, legitimação para ajuiza-

mento de ação popular etc.).

Em decorrência do caráter competitivo das

licitações públicas, poder-se-ia pretender exis-

tente uma presunção de vantajosidade das con-

tratações assim mediadas, mas não é o que ocorre.

Particulares, ainda que em um ambiente supos-

tamente competitivo, podem concertar-se, combi-

nar entre si (ou mesmo com a ajuda de agentes

públicos) preços e condições das propostas, dis-

tribuindo entre si licitações e contratos adminis-

trativos. Ressalte-se que isto não é particularidade

das contratações administrativas: nas relações

entre pessoas privadas podem ocorrer também

con dutas destinadas à dominação ou manipula-

ção de segmentos do mercado, verificando-se a

chamada “cartelização” de setores da economia

ou mesmo a formação de monopólios ou oligo-

pólios. Neste caso, incidem as regras de proteção

à concorrência, que vedam condutas tendentes à

manipulação ou domínio de mercados,6 partindo-

se da premissa econômica de que o oligopólio e

o monopólio são nocivos aos consumidores. No

caso das contratações administrativas, incidem

regras específicas — cuja finalidade informadora

consiste justamente na garantia de que os preços

contratados correspondam, efetivamente, às con-

dições de mercado. Num caso, como visto, pro-

tege-se o consumidor privado. No outro, mutatis

mutandis, pretende-se proteger a Administração

Pública-consumidora de bens ou serviços produ-

zidos ou prestados pelos particulares.

A questão da precificação em contratos

administrativos — e notadamente nos contratos

de obras públicas, que apresentam a maior com-

plexidade — surge assim como um tema central

para a compreensão da legitimidade das contra-

tações públicas. Compreender o regime jurídi-

co da precificação dos contratos administrativos

(e em especial dos contratos de obras públicas)

possibilita ao analista (seja ele agente público, seja

pessoa privada) identificar se o preço pago pelo

serviço tomado, pelo bem fornecido ou pela obra

executada é legítimo e encontra amparo no direito.

Uma premissa deve ser fixada neste ponto,

para que não haja controvérsias quanto à abran-

gência do presente trabalho: um preço praticado

em um contrato administrativo somente é legítimo

quando compatível com condições encontráveis

no mercado por qualquer indivíduo, em circuns­

tâncias semelhantes. Esta premissa, conquanto

óbvia, dado que o fato de a contratação ser admi-

nistrativa (isto é, envolver em alguma intensidade

a função administrativa, o interesse público pri-

mário que lhe subjaz) não tem o condão de afas-

tar um outro aspecto, igualmente verdadeiro, que

é o de que essa contratação se realiza no merca­

do, tendo no outro polo agentes econômicos, que

atuam segundo a lógica econômica privada, com

persecução de lucro. Ainda que assim não fos-

se, conforme se verificará em seguida, o próprio

direito positivo trata de sufragar este entendi-

mento, na medida em que são encontradas várias

referências normativas no sentido da necessidade

de que as contratações administrativas se pro-

cessem segundo critérios e preços de mercado.

Resulta claro que inúmeros questiona-

mentos são suscitados quando se estabelece que

o preço adequado para um bem é aquele que

cor responda às condições de mercado. O que

signi fica, afinal, a locução preços de mercado? O

direito positivo, que a ele faz referência em vários

dispositivos legais, oferece algum critério segu-

ro para a sua definição no caso das contratações

administrativas? Quem é competente para es-

tabelecer os preços de mercado em um contrato

administrativo? A definição do justo preço em

um contrato administrativo comporta algum tipo

de discricionariedade ou, ao contrário, é vincu-

lada? Finalmente, quais são os limites da fisca li-

zação exercida pelos órgãos de controle relativa-

mente a tais contratos?

6 Veja-se o art. 20 da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, transcrito: “Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III – aumentar arbitrariamente os lucros; IV – exercer de forma abusiva posição dominante. §1º A conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no inciso II. §2º Ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto, serviço ou tecnologia a ele relativa. §3º A posição dominante a que se refere o parágrafo anterior é presumida quando a empresa ou grupo de empresas controla 20% (vinte por cento) de mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia.” Do mesmo modo, traga-se o que dispõe o art. 21, inc. XXIV, parágrafo único, da mesma lei, que estabelece como infração à ordem econômica “impor preços excessivos, ou aumentar sem justa causa o preço de bem ou serviço”.

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Amauri Feres Saad

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O presente trabalho pretende responder

ou ao menos lançar as bases para a resolução das

questões acima propostas.

2 Panorama da precificação das contratações

administrativas na Lei nº 8.666/93

A Lei Federal nº 8.666, de 23 de junho de

1993 (Lei nº 8.666/93) é pródiga em disposições

acerca do preço nos contratos administrativos.

Didaticamente, podem-se dividir tais disposições

em duas categorias básicas: (i) as normas que pre-

tendem coibir a contratação a preços vis, ou, na

terminologia legal, inexequíveis, impondo limites

mínimos para os preços; e (ii) as normas que cui-

dam justamente do seu oposto, a saber, dos preços

máximos a serem obedecidos nas contratações

administrativas.

A disciplina da exequibilidade dos pre-

ços contratados encontra sua matriz imediata no

artigo 48 da Lei nº 8.666/93, que dispõe que deve-

rão ser desclassificadas as propostas “manifesta-

mente inexequíveis”, assim entendidas aquelas

que não tenham a sua viabilidade demonstrada

(inciso II). Interessante notar que a lei remete o

juízo de exequibilidade à comparação com os

custos de mercado: somente será exequível o preço

que, comparado com o mercado, se mostre coe-

rente. Impõe, também, em privilégio da realidade,

que os coeficientes de produtividade da proposta

deverão ser compatíveis com a execução do objeto

contratual (cujas especificações deverão estar sufi-

cientemente detalhadas no instrumento convoca-

tório). E, na falta de outros critérios, apostos no

ato convocatório, os parágrafos 1º e 2º do artigo 48

estabelecem regra objetiva para a aferição da exe-

quibilidade das propostas especificamente para o

caso das licitações de menor preço para serviços

e obras de engenharia: serão inexequíveis aquelas

cujos valores globais sejam inferiores a setenta por

cento do menor dos seguintes valores: (i) média

aritmética dos valores das propostas superiores

a cinquenta por cento do valor orçado pela admi-

nistração, ou (ii) valor orçado pela administração.

Os licitantes classificados de acordo com tais regras

e que tenham apresentado proposta com valor

global inferior a 80% do menor valor descrito

acima deverão apresentar garantia adicional no

valor da diferença entre o dito menor valor e o da

respectiva proposta.

No que tange a imposição de preços máximos

para as contratações administrativas, o art. 15 da

Lei nº 8.666/93 determina, no caso de licitações

para compras, que estas deverão “balizar-se pelos

preços praticados no âmbito dos órgãos e enti dades

da Administração Pública” (inc. V) e que o registro

de preços “será precedido de ampla pesquisa de

mercado” (§1º), sendo qualquer cidadão “parte

legítima para impugnar preço constante do quadro

geral em razão de incompatibilidade desse com

o preço vigente no mercado”. Do mesmo modo,

para a realização de obras, o art. 40 determina

que os editais deverão conter obrigatoriamente

“o critério de aceitabilidade dos preços unitário

e global, conforme o caso, permitida a fixação de

preços máximos e vedados a fixação de preços

mínimos, critérios estatísticos ou faixas de varia-

ção em relação a preços de referência, ressalvado

o disposto nos parágrafos 1º e 2º do art. 48” (inc.

X). No art. 44, §3º, estabelece-se que não será

admitida “proposta que apresente preços global

ou unitários simbólicos, irrisórios ou de valor

zero, incompatíveis com os preços dos insumos

e salários de mercado, acrescidos dos respectivos

encargos, ainda que o ato convocatório da licita ção

não tenha estabelecido limites mínimos, exceto

quando se referirem a materiais e instalações de

propriedade do próprio licitante, para os quais

ele renuncie a parcela ou à totalidade da remune-

ração”. Por fim, o art. 48, inc. II, determina que

deverão ser desclassificadas as propostas “com

valor global superior ao limite estabelecido ou

com preços manifestamente inexequíveis, assim

con si derados aqueles que não venham a ter

demonstrada sua viabilidade através de docu-

mentação que comprove que os custos dos insu-

mos são coerentes com os de mercado e que os

coeficientes de produtividade são compatíveis

com a execução do objeto do contrato, condições

estas necessariamente especificadas no ato con-

vocatório da licitação”.

No caso das obras contratadas com dis-

pensa ou inexigibilidade de licitação, prevalece,

como não poderia deixar de ser, a exemplo do que

ocorre nas contratações mediadas por licitação,

a obrigação de contratar a preços de mercado,

como se depreende, em interpretação a contrario

sensu, do inc. VII do art. 24 da Lei nº 8.666/93, que

relaciona, como uma das hipóteses de dispensa

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de licitação, a ocorrência de situação em que

“as propostas apresentadas consignarem preços

manifestamente superiores aos praticados no

mercado nacional”.

E este atrelamento da contratação com dis-

pensa de licitação aos preços de mercado ressume

em várias das hipóteses do referido art. 24 da Lei

nº 8.666/93, ex vi do inc. VIII do mesmo artigo,

na hipótese de aquisição, por pessoa jurídica de

direito público interno, de bens produzidos ou

serviços prestados por órgão ou entidade que in-

tegre a Administração Pública e que tenha sido

criado para esse fim específico em data anterior

à vigência da Lei “desde que o preço contratado

seja compatível com o praticado no mercado”.

Do mesmo modo, nos termos do inc. XXIII, “na

contratação realizada por empresa pública ou

sociedade de economia mista com suas subsidiá-

rias e controladas, para a aquisição ou alienação

de bens, prestação ou obtenção de serviços, des-

de que o preço contratado seja compatível com o

praticado no mercado”.

Deve-se ressaltar que o art. 24 da Lei nº

8.666/93 admite, inclusive, dispensa de licitação

na hipótese de contratação a preços superiores

aos de mercado, quando (inc. VI) “a União tiver

que intervir no domínio econômico para regular

preços ou normalizar o abastecimento”. Em tal

situação, obviamente, o pressuposto para a atua-

ção estatal será a existência de preços “desequi-

librados”, “excessivos”, acima do que seria espe-

rável numa situação de mercado.

Importante destacar que a recente Medida

Provisória nº 495, de 19 de julho de 2010, que

alterou artigos da Lei nº 8.666/93, introduziu

mudanças de relevo na disciplina dos preços

aceitáveis em licitações. Ao alterar o próprio

conceito da licitação, que antes era destinada à

“seleção da proposta mais vantajosa para a admi-

nistração” (art. 3º da lei) e passou a ser destinada

também à “promoção do desenvolvimento nacio-

nal”, tal medida provisória — cuja constitucio-

nalidade é absolutamente discutível — introduziu

a possibilidade do estabelecimento de uma mar-

gem de tolerância para a aceitabilidade de preços

de até 25% para bens ou serviços produzidos no

País. Dito de outro modo: um licitante poderá

oferecer em sua proposta produto (bem ou ser-

viço) nacional (segundo os critérios fixados na

sobredita medida provisória) com preço até 25%

mais alto do que o de outra proposta que não

atenda a tais critérios de nacionalização, sagran-

do-se ainda assim vencedor do certame.

Naturalmente que se devem interpretar os

enunciados da referida medida provisória cum

grano salis. As normas construídas a partir de

tais enunciados devem possuir sentido que não

divirja de todo o sistema de direito administrativo

e de seus princípios constitucionalmente consa-

grados, sob pena de invalidade. Tudo isto é óbvio,

mas, por sua importância, deve ser reiterado.

A regra geral, e que deve permear todo o

nosso raciocínio no assunto da precificação de

contratações públicas (em especial de obras de

engenharia), é a de que devem ser considerados

os preços de mercado como critério de legitimi-

dade de tais contratações. Esta conclusão funda-se

em razões de pelo menos três ordens.

A primeira é lógica: não se pode cogitar

de contratações que não correspondam ao real

valor dos objetos conteúdo de tais relações jurí-

dicas. Não é preciso descer às minúcias da teoria

econômica (em especial da sua vertente da teoria

do valor)7 a fim de explicar os componentes da

formação dos preços dos bens no mercado. O

que é preciso ficar consignado é que a incidên-

cia das normas sobre precificação de obra pública

pressupõe uma relação diádica de equivalência

entre os preços contratados e os preços enten-

didos como de mercado. Trata-se de uma condi-

ção de concepção dos contratos administrativos,

de um postulado de sua compreensão; não há

pensá-los de forma diversa.

A segunda ordem de razões é jurídica: caso

não se obedecesse aos preços de mercado como

padrão para as contratações administrativas, estar-

se-ia ou admitindo o enriquecimento sem causa

da Administração Pública, com violação de prin-

cípios republicanos basilares, como os da pro-

prie dade (art. 5º, caput, XXII, XXIX, e art. 170,

II, CF), ou se estaria diante de enriqueci mento

sem causa do particular, que seria remunerado

7 Cf. CHAMBERLIN, E. H. The Theory of Monopolistic Competition. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1933; NASH JR., John F. Non-Cooperative Games. Annals of Mathematics, 54(1951), 289-95; ROBINSON, J. The Economics of Imperfect Competition. London: Macmillan, 1933; GILIBERT, G. La teoria oggettiva dei prezzi. Economia Politica I, 1984; e GEHRKE, C. Dmitriev, Vladimir Karpovich. In: SCAZZIERI; KURZ; SALVADORI (Ed.). The Elgar Companion to Classical Economics A-K. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 1998.

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de forma privilegiada, violando-se, deste lado, os

princípios-vetores da isonomia e da moralidade

admi nistrativa (art. 37, caput, CF). Num sistema

republicano, que é, como bem pontuou Geraldo

Ataliba, marcado fortemente pelo respeito ao inte-

resse da coletividade, tais princípios não podem

ser menoscabados.8

A terceira razão é de ordem prática: acaso

a Administração pretendesse contratar por preços

abaixo dos de mercado, fixando um tal padrão

como limite de aceitabilidade de preços nos edi-

tais das licitações que realizasse, estas inevitavel-

mente resultariam desertas, pelo total desinte resse

que suscitariam no mercado. Com efeito, a fim de

que consiga ultimar as contratações necessárias

à satisfação da utilidade pública, é fundamental

que a remuneração oferecida pela Adminis tração

Pública seja condizente com o que se pratica nas

relações entre particulares. Se um sujeito pode

transacionar no ambiente privado por preço su-

perior àquele que lhe oferece a Administração

Pública, é irrazoável supor que ele prefira, nestas

circunstâncias, contratar com o Poder Público.

Em realidade, como se sabe, o que ocorre é justa-

mente o contrário.

3 Das limitações ao valor das contratações

administrativas nas leis orçamentárias

3.1 Considerações gerais

Como visto acima, no sistema instituído

pela legislação diretamente atinente às licitações

públicas, não há exigências específicas quanto à

metodologia de precificação de obras contratadas

sob regime de dispensa de licitação, ex vi da Lei

nº 8.666/93, exigindo-se somente que os preços

globais contratados sejam compatíveis com os de

mercado.

Há, contudo, nas leis de diretrizes orçamen-

tárias anuais editadas desde 1999, disposições

impositivas de índices referenciais a serem uti-

lizados como “teto” ou limite para obras finan-

ciadas por recursos federais.

Nas Leis nº 9.811, de 28 de julho de 1999,

nº 9.995, de 25 de julho de 2000, nº 10.266, de 24

de julho de 2001, válidas, respectivamente, para

os exercícios dos anos 2000, 2001 e 2002, ado-

tou-se o índice de Custo Unitário Básico (CUB),

acrescido de até 30% (trinta por cento) para cobrir

custos não previstos. A partir de 25 de julho de

2002, com a edição da Lei nº 10.524, relativa ao

exercício de 2003, foi adotado o Sistema Nacio-

nal de Pesquisa de Custos e Índices da Construção

Civil (SINAPI), mantido pela Caixa Econômica

Federal.

Na Lei nº 12.017, de 12 de agosto de 2009,

em seu art. 112, foi incluído, além do SINAPI, o

Sistema de Custos de Obras Rodoviárias (SICRO)

como cotação referencial para obras rodoviárias.

Tal disciplina se mantém, com algumas altera-

ções, na lei de diretrizes orçamentárias aplicável

ao exercício de 2011. Com efeito, a Lei nº 12.301,

de 09 de agosto de 2010, assim determina, em

seu art. 127:

Art. 127. O custo global de obras e serviços de en-genharia contratados e executados com recursos dos orçamentos da União será obtido a partir de composições de custos unitários, previstas no pro-jeto, menores ou iguais à mediana de seus corres-pondentes no Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil – SINAPI, man tido e divulgado, na internet, pela Caixa Econô-mica Federal, e, no caso de obras e serviços rodo-viários, à tabela do Sistema de Custos de Obras Rodoviá rias – SICRO, excetuados os itens carac-terizados como montagem industrial ou que não possam ser considerados como de construção civil.§1º O disposto neste artigo não impede que a Administração Federal desenvolva sistemas de refe-rência de preços, aplicáveis no caso de incompa-tibilidade de adoção daqueles de que trata o caput, devendo sua necessidade ser demonstrada por jus-tificação técnica elaborada pelo órgão mantenedor do novo sistema, o qual deve ser aprovado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e divulgado pela internet.§2º Nos casos de itens não constantes dos sistemas de referência mencionados neste artigo, o custo será apurado por meio de pesquisa de mercado e justificado pela Administração.§3º Na elaboração dos orçamentos de referência, serão adotadas variações locais dos custos, desde que constantes do sistema de referência utilizado.§4º Deverá constar do projeto básico a que se re-fere o art. 6º, inciso IX, da Lei nº 8.666, de 1993, inclusive de suas eventuais alterações, a anotação de responsabilidade técnica pelas planilhas orça-mentárias, as quais deverão ser compatíveis com o projeto e os custos do sistema de referência, nos termos deste artigo.§5º Ressalvado o regime de empreitada por preço global de que trata o art. 6º, inciso VIII, alínea “a”, da Lei nº 8.666, de 1993:I – a diferença percentual entre o valor global do contrato e o obtido a partir dos custos unitários

8 “Não teria sentido que os cidadãos se reunissem em república, erigissem um Estado, outorgassem a si mesmos uma Constituição, em termos republicanos, para consagrar instituições que tolerassem ou permitissem — seja de modo direto, seja indireto — a violação da igualdade fundamental, que foi o próprio postulado básico, condicional da ereção do regime. Que dessem ao Estado — que criaram em rigorosa isonomia cidadã — poderes para serem usados criando privilégios, engendrando desigualações, favorecendo grupos ou pessoas, atuando em detrimento de quem quer que seja. A res publica é de todos e para todos. Os poderes que de todos recebe devem traduzir-se em benefícios e encargos iguais para todos os cidadãos. De nada valeria a legalidade se não fosse marcada pela igualdade” (ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 160).

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Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas

69artigosFórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011

do sistema de referência utilizado não poderá ser reduzida, em favor do contratado, em decorrência de aditamentos que modifiquem a planilha orça-mentária;II – o licitante vencedor não está obrigado a adotar os custos unitários ofertados pelo licitante vencido; eIII – somente em condições especiais, devidamente justificadas em relatório técnico circunstanciado, elaborado por profissional habilitado e aprovado pelo órgão gestor dos recursos ou seu mandatário, poderão os custos unitários do orçamento-base da licitação exceder o limite fixado no caput e §1º des-te artigo, sem prejuízo da avaliação dos órgãos de controle interno e externo.

(omissis). (grifos em negrito aditados)

A primeira observação a ser feita com rela-

ção a tal dispositivo tem a ver com a sua natureza

jurídica. Não se trata, aqui, de remontar à velha

discussão entre a compreensão das leis orçamen-

tárias como leis em sentido material ou leis em

sentido formal. Tal distinção, sobre ser muito

pouco produtiva do ponto de vista da apreensão

do objeto (afinal não importam grandes diferen ças

no plano da validade ou eficácia de tais leis), já

foi resolvida de forma mais ou menos pacífica

pela doutrina, na medida em que se considere que

as leis orçamentárias possuem imperatividade

pelo simples fato de serem leis editadas segundo

as competências e procedimento constitucional-

mente previstos.9

Isto posto, o que importa verificar, no to-

cante à implicação dos dispositivos da lei orça-

mentária sobre contratações administrativas, é,

em primeiro lugar, o seu campo de aplicação. Caso

se entenda que as disposições de uma lei orça-

mentária possuem como destinatário exclusivo o

administrador público, as consequências para as

contratações administrativas realizadas em desa-

cordo com o seu conteúdo serão diversas daquelas

que adviriam da compreensão da lei orçamentária

como uma lei geral e abstrata, portadora de dispo-

sições de ordem pública, condicionadoras de atos

jurídicos envolvendo (pelo menos num dos polos)

particulares. Dito de outro modo: trata-se de saber

se eventual contratação realizada em desacordo

com tais disposições é válida ou inválida.

A resposta a tais indagações já se adianta:

os efeitos da lei de diretrizes orçamentárias não

afetam os contratos administrativos no campo de

sua validade ou eficácia.

José Afonso da Silva, em monografia até

hoje não superada em nosso direito financeiro,

amparado na lição de Manoel Gonçalves Ferreira

Filho, diferencia entre normas de arbitragem e

normas de impulsão.10 As primeiras seriam as

normas postas pelo Poder Legislativo destinadas

a pautar as condutas individuais, ao passo que

as segundas seriam aquelas destinadas a discipli-

nar a direção da economia. Assim, a admitir-se tal

dicotomia, as normas relativas ao orçamento não

seriam normas de arbitragem, mas de impulsão,

dado que destinadas à imposição dos limites de

ação governamental, prevendo receitas e impon-

do programas de execução. José Afonso não apre-

senta em sua obra esta conclusão, mas tais limites

por óbvio têm por destinatário o agente público,

uma vez que é este por excelência o gestor dos

recursos públicos.

Deve-se, no entanto, destacar que o regime

jurídico vigente à época em que tais considera-

ções foram feitas (1973) era diverso do atual: vigia

a constituição ditatorial de 1969, que previa a

existência de duas leis orçamentárias vigentes

simultaneamente — a lei orçamentária anual e a

lei do orçamento plurianual de investimentos.

A previsão de dois instrumentos: um com-

preendendo o planejamento de médio e longo

prazos, personificado no orçamento plurianual,

e outro compreendendo a execução orçamen tá-

ria do exercício subsequente, consubstanciada na

lei orçamentária anual, devendo tais diplomas

ser compatíveis entre si,11 de certa forma evitava

as dificuldades do regime atual. Afinal, o campo

material entre ambas as leis era diverso: uma

regu lava o orçamento do próximo exercício; a

outra regulava os exercícios seguintes, coorde-

nando o planejamento estatal (embora pudesse,

em cada exercício, ser modificada pela lei orça-

mentária anual).

9 Cf. VIDIGAL, Geraldo. Elementos do direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 232-252; BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971. p. 423-428; e SILVA, José Afonso da. Orçamento-programa no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 261-275.

10 SILVA. Orçamento-programa no Brasil, p. 261-275.11 Cf. arts. 60, parágrafo único, e 62, §3º, da Constituição de 1969: “Art. 60. A despesa pública obedecerá à lei orçamentária anual, que não

conterá dispositivo estranho à fixação da despesa e à previsão da receita. Não se incluem na proibição: (...) Parágrafo único. As despesas de capital obedecerão ainda a orçamentos plurianuais de investimento, na forma prevista em lei complementar.” e “ Art. 62. O orçamento anual compreenderá obrigatoriamente as despesas e receitas relativas a todos os Podêres, órgãos e fundos, tanto da administração direta quanto da indireta, excluídas apenas as entidades que não recebam subvenções ou transferências à conta do orçamento. (...) §3º Nenhum investimento, cuja execução ultrapasse um exercício financeiro, poderá ser iniciado sem prévia inclusão no orçamento plurianual de investimento ou sem prévia lei que o autorize e fixe o montante das dotações que anualmente constarão do orçamento, durante o prazo de sua execução. (...)”.

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Amauri Feres Saad

70artigos Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011

O regime orçamentário inaugurado pela

Constituição de 1988 previu além da lei orça men-

tária anual e da lei que veicula o plano plurianual

a chamada lei de diretrizes orçamentárias.

Ocorre que tanto a lei de diretrizes orça-

mentárias, quanto o plano plurianual, e, ainda,

a lei orçamentária anual, são, do ponto de vista

estritamente formal, leis ordinárias. Este fato é da

maior relevância, na medida em que os conflitos

entre as disposições de tais leis — abstraindo-

se de qualquer critério material de resolução de

conflitos instituído por norma superior, consti-

tucional ou complementar — se resolvem pelos

critérios clássicos: lei especial derroga lei geral

e lei posterior revoga lei anterior. Então, é de se

perguntar, em face do texto constitucional: há um

critério para a resolução de conflitos nas disposi-

ções das leis orçamentárias? A resposta é positi-

va, mas os critérios existentes não resolvem todos

os problemas possíveis. Senão vejamos.

A Constituição Federal determina que a

lei orçamentária anual será compatível com o

plano plurianual e as despesas nela contidas

que excedam o período do exercício a que ela se

refira deverão constar do referido plano (é este o

sentido dos enunciados contidos nos arts. 165,

§5º, I e II, e §7º, e 166, §4º).

No tocante à relação entre a lei que estabe-

lece o plano plurianual e a do orçamento anual, a

Constituição Federal estabelece que não é possível

a realização de despesa cuja execução ultrapasse

o exercício em curso sem que esta esteja também

refletida no plano plurianual (art. 167, §1º) e não

se permite a aprovação de emendas ao projeto

de orçamento anual que sejam contraditórias com

o plano plurianual (art. 166, §3º, I). Interes sante

que esta vedação incide apenas no tocante às

emendas ao projeto de orçamento anual e não

ao próprio projeto. O que equivale a dizer que o

Poder Executivo não conta com vedação constitu-

cional para elaborar o projeto de orçamento anual

em desconformidade com o plano plurianual.

A relação entre a lei de diretrizes orça-

mentárias e a lei orçamentária anual é diversa. A

função da lei de diretrizes orçamentárias consiste

em estabelecer “as metas e prioridades da admi-

nistração pública federal, incluindo as despesas

de capital para o exercício financeiro subsequente,

orientará a elaboração da lei orçamentária anual,

disporá sobre as alterações na legislação tributária

e estabelecerá a política de aplicação das agências

financeiras oficiais de fomento” (art. 165, §2º).

Tendo isto em vista e considerando também o

disposto no art. 166, §3º, I, da Constituição Fede-

ral (que determina a impossibilidade de discus são

de emendas ao projeto da lei orçamentária anual

que sejam incompatíveis com a lei de diretrizes

orçamentárias), deve-se concluir que a relação

entre ambos os diplomas é de identidade. Mas

se trata, considerando a cronologia do processo or-

çamentário, de uma identidade nunca atuali zável

(isto é, nunca aferível pela comparação de dois

objetos simultaneamente existentes), porquanto,

pelo simples fato de ambos os diplomas serem

leis infraconstitucionais, o conflito entre eles

nunca será possível, em razão da incidência dos

já referidos critérios do lex posterior derogat legi

priori e lex specialis derogat legi generali. Quando

uma norma surgir, a outra já deixará o mundo

jurídico no que com a primeira conflitar. Trata-

se, por tanto, de uma quase-identidade, de uma

iden tidade em vir-a-ser.

Nessa ordem de ideias, imagine-se a edi-

ção de lei de diretrizes orçamentária que estabe-

leça obrigação, para a Administração Pública, de

contratar por um preço-limite de 100. Sem entrar

no mérito da correspondência ou não de tal

preço-limite com o mercado (isto faremos em

seguida), imagine-se que a administração contra-

te por um preço de 110, tendo sido os recursos

para tal contratação inscritos na lei orçamen tária

anual. A pergunta que se faz é: o fato de a lei

orça mentária anual consagrar recursos para pagar o

preço de 110 derroga a determinação de preço-te-

to de 100 constante da lei de diretrizes orçamen-

tárias? Pelo simples conflito material das hipó-

teses de cada lei, a resposta deve ser afirmativa.

Pontes de Miranda, comentando o relacio-

namento dinâmico entre a lei orçamentária anual

e leis posteriores, que alteravam as disposições da

primeira, assim se manifestava, com a agudeza

que lhe é peculiar:

Nada mais absurdo do que se dizer que o fato de não se achar no orçamento a menção da despesa importa nulidade da lei, que a criou ou a aumen-tou. A lei — inclusive as chamadas resoluções, ou decretos legislativos — existe, vale e é eficaz a des-peito do que se passou na lei orçamentária, que é como jarrão em que põem folhas e flores. A folha ou flor, de que o legislador do orçamento se olvidou,

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Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas

71artigosFórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011

ou, conscientemente, deixou de por, fica lá fora, existente como as outras folhas e flores.12

Nesse contexto, a lei de diretrizes orçamen-

tárias, tal como configurada no texto constitucio-

nal de 1988, seria um sem sentido constitucional?

Nem tanto. Segundo nos parece, a função consti-

tucional da lei de diretrizes orçamentárias é per-

mitir (e mais do que isso, obrigar) a enunciação

dos objetivos do Estado para o exercício subse-

quente, objetivos estes que se concretizarão por

meio da execução da lei orçamentária anual.

Trata-se, em suma, de uma exigência constituin-

te de que o tema orçamentário seja uma preo cu-

pação constante dos governantes e dos parlamen-

tares, com prazos fixos para o seu debate, e, por

isto mesmo, um dos aspectos protagonistas da

arena política. A elaboração dos três instrumentos

orçamentários previstos pela Constituição Federal

impõe necessariamente um mínimo de raciona-

lidade e transparência na programação das ativi-

dades estatais. É este o sentido extraível do texto

constitucional.

O tema é tratado por Ricardo Lobo Torres,

em trecho que se destaca abaixo:

A lei de diretrizes orçamentárias tem, como o pró-prio orçamento anual, natureza formal. É simples orientação ou sinalização, de caráter anual, para a feitura do orçamento, devendo ser elaborada no pri-meiro semestre (art. 35, II, do Ato das Disposições Transitórias). Não cria direitos subjetivos para terceiros nem tem eficácia fora da relação entre os poderes do Estado. Da mesma forma que o pla­no plurianual, não vincula o Congresso Nacional, quanto à elaboração da lei orçamentária, nem o obriga, se contiver dispositivos sobre alterações da lei tributária, a alterá-la efetivamente, nem o impede, no caso contrário, de instituir novas inci­dências fiscais, que isso significaria o retorno da reserva de iniciativa das leis que criam tributos ao Poder Executivo e conflitaria com o princípio da anterioridade definido no art. 150, III. Não sendo lei material, não revoga nem retira a eficácia das leis tributárias ou das que concedem incentivos. A lei de diretrizes é, em suma, um plano prévio, fun-dado em considerações econômicas e sociais, para a ulterior elaboração da proposta orçamentária do Executivo, do Legislativo (arts. 51, IV e 52, XIII), do Judiciário (art. 99, §1º) e do Ministério Público (art. 127, §3º).13 (grifos em negrito aditados)

Embora corretas as conclusões alcançadas,

discordamos do posicionamento do autor, quando

defende a classificação das leis orçamentárias

como leis em sentido formal (e não em sentido

material), donde decorreriam as limitações à

impera tividade daquelas. É perfeitamente com-

pre ensível que defenda, garantisticamente, a

impossibilidade de alterações de regras tributárias

por meio da legislação orçamentária; mas as limi-

tações que aponta são derivadas das próprias

garantias conferidas aos contribuintes pela Cons-

tituição Federal e não decorrentes da eventual

natureza jurídica da legislação orçamentária. Saber

se se trata de lei em sentido formal ou material

é recorrer a uma construção desnecessária: as

limitações da legislação orçamentária — que são,

repita-se, leis, com a força imperativa própria de

tais veículos — advêm da própria conforma ção

jurídico-constitucional: a dinâmica de incidência

e o emprego do mesmo veículo, a lei, para intro-

duzir tais normas, é o que acaba por condicionar

a validade e a eficácia de tais leis. Ademais, a

distinção entre leis em sentido formal e leis em

sentido material, para ter qualquer operatividade

jurídica (intrassistêmica) deveria vir contemplada

no próprio texto constitucional, o que não ocorre,

em absoluto, no nosso ordenamento.

É por estas razões — ainda que sob um

ângulo ligeiramente diverso — que Luis Solano

Cabral de Moncada, o maior dos publicistas por-

tugueses, leciona, a propósito do regime orça-

mentário de seu país (lições estas que aplicam-se

com perfeição à hipótese brasileira):

A capacidade (governamental) de propor altera-ções ao conteúdo orçamental nunca faria da lei orçamental fonte bastante da legalidade à face do princípio do Estado-de-Direito. A vinculatividade do orçamento e do plano que nele está incorporado para o executivo é muito mais de natureza política do que jurídica; basta uma maioria parlamentar de apoio ao governo para que vá por água abaixo a pre-tensa “legalidade” orçamental. A legalidade orça-mental só quer dizer que a política financeira deve obedecer a uma norma jurídica que é o orçamento, mas esse não tem que ser necessariamente aquele que foi aprovado pelo parlamento, pois está sempre a tempo de ser alterado ou complementado.14

Sendo assim, pode-se fixar a premissa: a

lei de diretrizes orçamentárias possui um caráter

indicativo do orçamento a ser votado para o exer-

cício seguinte, mas não vinculante. O Congresso

Nacional pode, sempre que as circunstâncias o

12 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967 (com a Emenda nº 1 de 1969). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 212. (t. III, arts. 32-117).

13 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 85-86. (O orçamento na Constituição, v. 5).

14 MONCADA, Luís Solano Cabral de. Lei e regulamento. Coimbra: Coimbra Ed., 2002. p. 337.

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Amauri Feres Saad

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exigirem, modificar aspectos da lei de diretrizes

orçamentárias, quando da votação do projeto

de orçamento anual, não estando condicionado

neste aspecto. Trazendo tal premissa para o pre-

sente trabalho, verifica-se que, uma vez inserida

determinada previsão de despesa no orçamento

anual, esta, do ponto de vista do direito finan ceiro,

legitima-se pelo simples fato de estar autorizada

pelo Legislativo. Constante da lei orça mentária,

não há cogitar-se determinada despesa estar em

conflito com a lei de diretrizes orçamentárias,

uma vez que esta não mais estará vigente.

Ademais, sendo tais normas obrigatórias

apenas aos agentes públicos ordenadores de des-

pesas, acaso se verifique a realização de contrato

em desconformidade com tais normas, tal con-

trato não será inválido em razão das limitações

orçamentárias, sendo plenamente resguardados

os direitos patrimoniais daquele que, confiando

em licitação realizada nos estritos termos da lega-

lidade, apresentou a proposta mais vantajosa e

sagrou-se vencedor, sem ter dado causa a eventual

ilegalidade. A questão, aqui, deve resolver-se com

a responsabilização do agente público que deixou

de observar o conteúdo da lei orçamentária anual

(note-se que falamos em lei orçamentária anual,

ao invés de na lei de diretrizes orçamentárias) e

não com a extinção unilateral de vínculo regu-

larmente formado.

É com base nas considerações preceden-

tes — que identificam os limites de vigência da

lei de diretrizes orçamentárias — que devem ser

interpretados os dispositivos que impõem preços

máximos para as contratações federais.

3.2 Da imposição das cotações referenciais de

preços e do regime jurídico-administrativo

Voltando à análise do artigo, acima trans-

crito, da lei de diretrizes orçamentárias aprovada

para o ano de 2011, verifica-se que tal disposi tivo:

(i) impõe como limite de preços globais para as

contratações de obras e serviços de engenharia

financiados com recursos federais as cotações

constantes do SINAPI e, no caso de obras rodovi-

árias, as constantes do SICRO; (ii) podendo, tais

limites, no entanto, ser afastados justificadamente

pela autoridade competente. Neste último caso,

a Administração federal poderá elaborar pesqui-

sa de mercado ou, com autorização do Ministério

do Planejamento, passar a desenvolver cotação

referencial própria.

No tocante aos referenciais de preços (sejam

eles os do SINAPI, do SICRO ou outros impostos

legalmente), deve-se ressaltar que a sua aplicação

deve obedecer a princípios específicos, derivados

do regime jurídico-administrativo.

O primeiro deles é o da identidade. A utili-

zação de tais cotações impõe-se somente àquelas

contratações que contenham correspondência

ou identidade (considerados os bens e serviços

empregados nas composições de custos unitários

correspondentes) com relação aos itens cotados

pelas primeiras. E isto por uma razão lógica da

maior simplicidade: somente se podem compa rar

aspectos quantitativos (preços) de entes entre si

qualitativamente idênticos. Afinal, resultaria um

cabal absurdo pretender, v.g., que a Administração

fosse obrigada a adquirir um sofá pelo preço de

uma cadeira, somente porque, hipoteticamente,

aquele não encontrasse previsão no SINAPI/

SICRO e esta, sim, e se identificasse, como ele-

mento aglutinador e justificador da aplicação do

referencial, a característica de servirem, ambos,

de assento ao ser humano.

O exemplo pode parecer jocoso àqueles que

não estão familiarizados com o padrão de audi-

torias realizados por alguns órgãos de controle,

mas é o que se verifica na prática: são consideradas

nas comparações de preços itens de tais referen-

ciais muitas vezes completamente disparatados

da realidade de determinada obra de engenharia.

Isto ocorre não somente às escâncaras (com-

parando-se laranjas com maçãs), mas amiúde de

modo disfarçado: quando, por exemplo, se con-

sideram produtividades absolutamente “ideais”

para determinadas composições de preços, em

confronto com o possível para determinada obra.

Apenas para que se tenha ideia, já pudemos obser-

var, em nosso quotidiano profissional, a utiliza ção

de coeficientes de produtividade para um item

relacionado ao transporte de materiais, quando

da análise de um determinado empreendimento

por órgão de controle externo, que resultava, em

termos práticos, na suposição de que o descarre-

gamento de materiais num determinado canteiro

de obras deveria acontecer com a frequência de

1 (um) caminhão descarregado por minuto. Isto,

que, mesmo intuitivamente, é um absurdo, teria

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Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas

73artigosFórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011

de se verificar num canteiro localizado numa

área urbana de grande metrópole, com condições

logísticas e de interferências com serviços públi-

cos e tráfego completamente diversas daquelas

empregadas na confecção das cotações referen-

ciais (em cujas composições de custos unitários se

incluem determinados coeficientes de produtivi-

dade, considerados ideais em face da natureza de

cada serviço, insumo ou equipamento utilizado).

É óbvio que, neste caso, ao se adotar tal referencial

o princípio da identidade não é observado.

Mas o princípio da identidade na precifica-

ção de obras públicas não se resume somente na

comparação pura e simples do objeto contratado

(decomposto em composições de custos unitários

envolvendo custos indiretos, mão de obra, equi-

pamentos, insumos etc.). Há outra dimensão deste

princípio que não pode ser menosprezada: trata-

se da análise do próprio contexto da contratação.

Isto equivale a dizer que deverão ser considerados

os elementos contextuais da contratação, como a

divisão dos riscos entre as partes, a conjuntura

econômica, o regime da contratação, a qualidade

e detalhamento dos projetos, a própria reputação

do ente contratante, entre outros. Os exemplos

neste caso podem esclarecer mais que conceitos.

Imagine-se a contratação por preço global para

a construção de determinada obra, em que há

apenas a disponibilização de projeto básico. O

pro ponente privado não conhece com profun-

didade o perfil geológico do terreno, embora pos-

sa dele fazer uma ideia. Todavia, o próprio regi-

me de contratação (preço global) transfere para o

futuro contratado uma série de riscos (constru ti-

vos, de quantitativos, de interferências etc.) que

em princípio não existiriam na contratação por

preços unitários. Em resumo, a percepção do risco

pelo proponente — derivada de sua experiência

empresarial — pode ser de tal modo negativa que

este decida embutir na sua estrutura de custos

o montante que considera adequado para cobrir

as contingências que entenda possam acometer

o negócio. Decorrência disto, o seu preço será

maior do que aquele formulado na ausência de tal

percepção. Mas nem por isto deixará de ser um

preço de mercado, na estrita acepção do termo.

Do mesmo modo, imagine-se o Estado em

que seja governador, no primeiro ano de mandato,

político conhecido por seu desrespeito aos con tra-

tos firmados em suas administrações ou em presa

estatal que seja notadamente uma inadim plente

contumaz ou esteja em dificuldades financeiras.

Qualquer proponente, em sã cons ciência, consi-

derando indutivamente a probabilidade (mais

alta) de vir a ser penalizado por condutas ilí citas

da outra parte ao longo da execução do contrato,

incorporará, caso decida participar da licitação,

em seu preço, alguma compensação pelo risco

que espera correr. A percepção do risco e sua in-

fluência na formação dos preços privados (isto é,

em situação de mercado) é absolutamente normal,

não havendo como eliminá-la das contratações

administrativas.

Tais nuanças do comportamento dos agentes

econômicos são mais comuns do que se pensa.

Aliás, derivam também (e muitas vezes princi­

palmente) do próprio despreparo da Adminis-

tração Pública, que raramente propicia ambientes

de confiança para a realização de suas contrata-

ções, com a consequente redução dos riscos assim

ditos contextuais, porque circundantes do objeto

da contratação. É rigorosamente por isto que o

princípio da identidade, nesta dimensão, impõe

ao analista a consideração de todas as circuns-

tâncias capazes de influir da formação do pre-

ço praticado. Pretender ignorar tais aspectos é

o mesmo que quebrar o espelho quando não se

gosta da imagem refletida; as contratações admi-

nistrativas terão preços tanto mais baixos quanto

menores forem os riscos envolvidos na contra-

tação, quanto melhor preparados forem os admi-

nistradores.

O segundo princípio é o da globalidade

da avaliação. Isto quer dizer que os preços uni-

tários que compõem a planilha orçamentária de

cada obra pública devem ser considerados em sua

globalidade, como um todo. Ou seja: não basta

que um ou alguns itens da planilha orçamentária

apresentem preços superiores aos dos referenciais

(SINAPI, SICRO ou qualquer outro considerado)

empregados: a existência ou não de preços exces-

sivos somente é aferível em termos globais. Ou

seja, desde que realizada a imprescindível com-

paração entre os itens da planilha orçamentária

que são inferiores aos dos referenciais com o

preço daqueles que são superiores.15

15 É nesse sentido que, acertadamente, decidiu esta Corte de Contas, conforme se verifica Acórdão nº 170/2000, Plenário, Ministro Relator Guilherme Palmeira, julgado em 22.03.2000: “Em segundo lugar, considero necessário o recálculo dos débitos apurados pela equipe de

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Muitas auditorias realizadas por órgãos de controle interno e externo se utilizam do método

da curva ABC, segundo o qual são selecionados os

itens financeiramente mais representativos da pla-

nilha orçamentária (normalmente represen tando

80% do valor global do contrato), realizando-se

a comparação apenas relativamente a tais itens.

Ainda que admitamos a razoabilidade de tal méto-

do, principalmente do ponto de vista da eficiência

e celeridade dos trabalhos, deve-se ressaltar que

é permitido às partes contratantes (Administração

Pública ou particular) fazer prova contra os apon-

tamentos de sobrepreço, mediante a avaliação dos

itens que não foram considerados pela auditoria,

caso isto repercuta de alguma forma nos resul-

tados alcançados.16

O terceiro princípio é o da uniformidade ou

coerência da aplicação das cotações referenciais.

Tal princípio consiste em que, uma vez esco lhido

um referencial, este deve ser utilizado preferen-

cialmente sobre outros; somente nos casos de

limitações ou omissões do mencionado referen-

cial, é que se permite a utilização (subsidiária)

de outras cotações referenciais. Isto porque cada

cotação, oficial ou não, segue parâmetros pró-

prios e muitas vezes diversos entre si, que resul-

tarão em preços maiores ou menores para cada

insumo ou item de serviço, muito embora pos-

sa acontecer que, considerados os preços de um

grupo abrangente de itens, os seus resultados

sejam equi valentes. A coerência de cada cotação

— e por tanto a sua utilidade para a orçamentação

de obras públicas e para a avaliação jurídica de

tal ação — reside não na sua capacidade imedia-

ta de identificar os preços mais baixos para cada

insumo, mas sim na sua aptidão para refletir,

com certo grau de confiabilidade, os valores

médios encontrados no mercado, em determina-

das circunstâncias dadas, para uma gama variada

de itens.

A realização de obras públicas envolve um

enorme esforço empresarial, com a mobilização

de grande quantidade de pessoas e a inversão de

recursos vultosos. A sua orçamentação, portan-

to, não pode ser conduzida de forma irrefletida,

como se se tratasse de verdadeira “caça ao preço

mais baixo”, bastando para tanto a busca meticu-

losa dos itens mais convenientes nas tabelas dis-

poníveis. O princípio da coerência ou da unifor-

midade da utilização das cotações referenciais

veda tal prática: as cotações referenciais não estão

à disposição do arbítrio do analista; seu emprego

deve ser minimamente consistente.

E por consistente designe-se também o

ônus, que cabe inelutavelmente ao analista, de

expor, didaticamente — e tornar acessíveis ao

público — todas as premissas e métodos por ele

utilizados na análise de determinada planilha

con tratual de preços, bem como os respectivos

cál culos. Impõem-no não somente o princípio da

coerência da aplicação das cotações referenciais,

mas também os princípios da motivação e da

publicidade, regentes dos atos administrativos

(Constituição Federal, art. 37, caput). A audito-

ria realizada sem que se respeitem tais diretrizes

padecerá de vício insanável, se dela decorrerem

efeitos que afetem o plexo de direitos e obriga-

ções representado pela licitação ou pelo contrato.

Muito menos se poderá decidir (e isto especial-

mente no caso dos órgãos de controle externo)

no sentido da existência de sobrepreço, sem que

o iter (cálculos, premissas e métodos) que levou

a tal conclusão esteja plenamente disponível e

demonstrado aos interessados.

inspeção. Isso porque tais valores foram levantados unicamente entre os itens de serviço que apresentaram sobrepreço, desprezando-se aqueles com preços inferiores aos de mercado. O entendimento prevalecente nesta Corte é no sentido de que eventuais débitos decorrentes de superfaturamento devem ser apurados pela diferença entre o preço global efetivamente pago pelo objeto contratado, tomado em sua plenitude, e o preço do mesmo objeto normalmente praticado no mercado, e não em função de parcelas específicas do objeto (itens de serviço tomados isoladamente). Tal foi o entendimento esposado pelo TCU, por exemplo, na Decisão nº 469/1999 – Plenário (sessão de 29/07/1999, ata nº 32).” No mesmo sentido são o Acórdão nº 2885/2008 – Plenário – Sessão de 03.12.2008 – Ministro Relator Ubiratan Aguiar – Processo nº 008.795/2007-6; e o Acórdão nº 469/1999 – Plenário – Sessão de 28.07.1999 – Ministro Relator Adhemar Ghisi – Processo nº 001.025/1998-8.

16 Outra dimensão apresenta este princípio. Celso Antonio Bandeira de Mello, com a costumeira perspicácia, em estudo em que defende a possibilidade de contratação de licitante segundo colocado em contratação em que houve desistência do primeiro colocado, pelo mesmo preço global apresentado por este e com proposta com preços unitários diversos, acaba por sustentar (ainda que sem identificar este princípio de forma autônoma) a incidência do princípio da globalidade. Para o autor, “No caso vertente, a licitação foi julgada pelo critério (“tipo” na expressão da lei) do menor preço. Menor preço, como se sabe, é o menor preço global e não o menor preço cotado para tal ou qual item da planilha, nada importando quanto a isto que se trate de empreitada por preço unitário. Sejam quais forem os preços unitários propostos, o contratado terá de manter-se [na hipótese de convocação do segundo colocado para assumir a posição do primeiro] dentro do menor preço global dentre os oferecidos pelos licitantes — e, por isto mesmo, reputado merecedor da vitória no certame disputado. Ocorre que entre as ofertas dos vários licitantes para obras de engenharia de algum porte (excluída alguma fantástica e inacreditável coincidência) haverá não apenas diferença quanto ao preço global, final, a que aportem, mas também inevitáveis e irremovíveis diferenças reais quanto aos preços unitários” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Contrato de obra pública: convocação do segundo colocado: contrato pelo mesmo valor global com valores unitários distintos dos originários: viabilidade. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 35, p. 113-114, 2001).

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Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas

75artigosFórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011

O quarto princípio — e talvez seja o mais

importante — é o da primazia da realidade. Para

a aplicação da regra contida nas leis orçamen-

tárias, é obrigatória a observância do seguinte:

os referenciais impostos por lei (SINAPI, SICRO

ou qualquer outro) só são válidos como critérios

de limitação de preços se, e somente se, os custos

unitários neles detalhados corresponderem “in

concretu” aos preços de mercado ao tempo, região

e escala considerados para a contratação e execu­

ção contratual, em condições de risco semelhantes.

Em nome de tal pressuposto, que deriva,

como é óbvio, do princípio da boa-fé nas contra-

tações públicas, no caso de divergência entre o va­

lor de um item (bem ou serviço) cotado no SINAPI

ou SICRO e o seu valor de mercado, deve prevale­

cer este, sem que se apresente qualquer ilegalidade.

Afinal, não é razoável supor que uma co-

tação referencial — que constitui uma abstração

sobre uma dada realidade — não possa, eventual-

mente, seja por anomalias de mercado (que podem

fazer a cotação de um bem subir ou cair brusca

ou vertiginosamente), seja em razão de discre-

pâncias técnico-metodológicas na atualização ou

aferição de preços (como sói acontecer com tais

índices, conforme já foi admitido pelo Tribunal

de Contas da União),17 seja, enfim, pelas peculia-

ridades de estrutura organizacional do particular

contratado, apresentar divergências com relação

a preços reais praticados em determinada região

e época. Do mesmo modo, as peculiaridades de

cada obra ou serviço devem ser levadas em conta

quando da análise dos seus preços em compa-

ração com os mencionados referenciais: fatores

como condições geográficas, topográficas, geoló-

gicas, de produtividade, entre outros, devem ser

considerados.

Outro princípio aplicável ao caso é a da

intencionalidade da conduta dos contraentes

(ou culpabilidade). Com efeito, além do âmbito

obje tivo da relação jurídica, é imperioso que o

ana lista perquira este aspecto das partes contra-

entes, a fim de comprovar a presença de má-fé

ou dolo capazes de macular a legitimidade dos

preços contratados. A consideração deste aspecto

deriva da necessidade de se separar as hipóteses

de simples erro de avaliação, em que não há ile-

galidade, daquelas em que se configura o ilícito,

pois se verifica a fraude. Em tal raciocínio não há

novidade alguma, pois, de há muito, a doutrina

admite que a culpabilidade é pressuposto para a

aplicação de decisões administrativas restritivas

da esfera jurídica do particular.18

Por fim, cite-se um sexto princípio aplicá-

vel a esta dimensão da precificação das contrata-

ções administrativas, que vem a ser o princípio do

valor formal das contratações administrativas.

Este princípio, derivado dos princípios da pre-

sunção de legalidade dos atos administrativos, da

segurança jurídica e da razoabilidade, significa,

de forma sintética, que a presunção de legitimi­

dade das contratações administrativas somen­

te pode ser afastada se se verificar razão de fato

consistente e grave para tanto. Reflete a máxima

pontuada por Carlos Maximiliano, segundo a qual

as normas devem ser interpretadas inteligente-

mente, devendo-se preferir “a exegese de que

resulte eficiente a providência legal ou válido o

ato, à que tome aquela sem efeito, inócua, ou este,

juridicamente nulo”.19

Incide da seguinte forma: caso, ao final da

avaliação, se verifique nos preços contratados

uma discrepância pequena, a maior, equivalente

a percentual ínfimo do valor global da contra-

tação, em comparação com os preços tidos por

de mercado, sem que haja concomitantemente

qualquer indício de má-fé quer da Administração

Pública, quer do particular contratado, é impera-

tivo, por uma questão de razoabilidade, o respeito

às condições efetivas da proposta vencedora.

A engenharia de orçamentos, área do conhe-

cimento mais afim à matéria ora estudada, não é

uma ciência exata, passível de verificabilidade

nos termos destas. O direito positivo, lembre-se,

em face dos dispositivos já colados no presente

trabalho, adotou a locução “preço de mercado”

para identificar o summum bonum na precifica-

ção de obras públicas, sem a decompor em porme-

nores. Este ideal nem sempre pode ser conhecido

em sua plenitude ou em caráter insofismável, com

17 Cf. Acórdão TCU nº 1736/2007, Plenário, Relator Ministro Ubiratan Aguiar, publicado no DOU, 31 ago. 2007.18 Cf. VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 55; OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo

sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 311-349; e, em posição um pouco atenuada, admitindo tão somente a ausência de voluntariedade como excludente da punibilidade, BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 855-856.

19 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 135-136.

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precisão matemática. Casos há em que se pode

ter apenas uma ideia aproximada do que seria

enquadrável na locução “preços de mercado” e,

por conseguinte, o que nela não se enquadraria.

Reconhecendo a falibilidade da orçamenta-

ção de obras de engenharia, o art. 3º da Resolução

nº 361, de 10 de dezembro de 1991, do Conselho

Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia

(CONFEA), em sua alínea “f”, define como uma

das características do projeto básico “definir as

quantidades e os custos de serviços e forneci-

mentos com precisão compatível com o tipo e por-

te da obra, de tal forma a ensejar a determinação

do custo global da obra com precisão de mais ou

menos 15% (quinze por cento)” (grifou-se). O pró-

prio Tribunal de Contas da União já decidiu, em

alguns casos, acertadamente, que discrepâncias

de pequena monta entre os preços tidos por de

mercado e os contratados não significam a ocor-

rência de “sobrepreço” ou “superfaturamento”,20

devendo por isto ser aceitos.21

Ao lado do princípio do valor formal das

contratações administrativas, importante mencio-

nar, também, o princípio da proteção ao equilíbrio

econômico-financeiro dos contratos administra-

tivos, consagrado constitucionalmente (art. 37,

inc. XXI). Por força desse princípio, que, por as-

sim dizer, incide em bloco com o primeiro — por

uma afinidade semântica — não se pode impor

ao contratado a execução do contrato por preço

abaixo do constante de sua proposta. Isto impõe,

inevitavelmente, um maior ônus argumentativo

quando se pretende sustar os efeitos de um con-

trato admi nistrativo. A eventual desconformidade

com os preços de mercado deve se constituir num

argumento que possa suplantar os dois primeiros.

Este ônus — suportado pelo analista — é natural-

mente uma imposição do Estado democrático de

Direito instaurado pela Constituição Federal.

Em diferente dimensão, o princípio do valor

formal das contratações administrativas também

deve ser considerado: muitas vezes, em auditorias,

os órgãos de controle pretendem substituir opções

técnicas realizadas em determinada contratação.

Assim, substitui-se uma determinada técnica por

outra, que o órgão de controle considera equiva-

lente para o mesmo serviço ou um equipamento,

realmente empregado na obra, ou ainda se pre-

tende eliminar horas de trabalho ou reduzir o

número de profissionais que trabalhariam na

obra, por se considerar que o mesmo trabalho

poderia ser feito com menos profissionais ou

menos horas de trabalho. A justificativa da tota-

lidade dos casos (pois do contrário os órgãos de

controle não se dariam ao trabalho de realizar esta

verificação) é a de que a nova solução proposta

pelos órgãos de controle é mais barata, e, portan-

to, o simples fato de ter-se adotado solução téc-

nica diversa (com preços diversos) significaria o

ocorrência de sobrepreço no contrato, cabendo,

portanto, a glosa unilateral dos valores correspon-

dentes no contrato.

Aqui, deve-se ressaltar que, pela incidência

do princípio do valor formal dos contratos admi­

nistrativos, a mera comparação de técnicas, equi-

pamentos ou profissionais não é suficiente para

sustentar-se a existência de sobrepreço: cabe ao

analista comprovar ou a total incompatibilidade

das técnicas (aí se incluindo equipamentos e mão

de obra) empregadas com o projeto ou a má-fé dos

contratantes. Fora de tais hipóteses, impõe-se a

manutenção das condições contratadas, haja vista

20 Os termos “sobrepreço” e “superfaturamento” têm sido usados pelos órgãos de controle ora como sinônimos, no sentido simples de preço acima dos de mercado (vale dizer, das cotações referenciais), sem o requisito da intencionalidade, que defendemos acima; ora têm sido empregados em acepções diversas. Neste último caso, o termo “sobrepreço” referir-se-ia às hipóteses de dano potencial ao Erário (considerado assim o contrato apenas firmado com preços acima dos de mercado, mas ainda não executado, sem a ocorrência de pagamento efetivo do Poder Público ao particular); e o termo “superfaturamento” referir-se-ia ao sobrepreço atualizado, isto é, tornado existente, verificado na realidade. Para nós, a distinção é de pouca produtividade jurídico-metodológica e mais atrapalha que ajuda. Apenas para que se tenha ideia, tem-se verificado auditorias realizadas por tribunais de contas, em que se constatam, em tal ou qual contratação, quantitativos estimados a maior, o que é relativamente comum em projetos de engenharia. O preço global do contrato que contivesse tal erro, por considerar os preços unitários multiplicados pela sua quantidade, seria naturalmente superior àquele obtenível a partir da consideração das quantidades corretas. Ora, nestes casos, muitas vezes, órgãos de controle têm considerado haver sobrepreço, simplesmente deixando de analisar o regime da contratação. Explica-se: se se tratasse de contratação em regime de empreitada por preço global, na qual o preço final é, ao menos em tese, derivado da soma do preço unitário de todos os itens de planilha multiplicados pela sua quantidade, poder-se-ia entender que o potencial (sobrepreço) vai se tornar, com a execução do contrato, existente (superfaturamento). No caso de contratações em regime de empreitada por preço unitário, em que somente são medidos e pagos os serviços efetivamente executados, o eventual erro de estimativa de quantitativos (identificado inadvertidamente como sobrepreço) nunca seria verificável na realidade. Dito de outra forma: no caso tratado, o sobrepreço nunca se transformaria em superfaturamento, descabendo, portanto, inquinar os responsáveis de causadores de dano ao Erário. Por tais razões preferimos utilizar os termos como sinônimos (entendendo que a carga semântica do termo “superfaturamento” acaba sendo mais negativa, conotadora de corrupção, do que aquela presente no termo “sobrepreço”), tendo-se sempre o cuidado de somente empregá-las quando seja inexorável o dano ao Erário (ou seja: quando houver relação de causalidade entre a potência e a existência).

21 Cf. Tribunal de Contas da União, Acórdão nº 941/2010, Plenário, rel. Min. Augusto Sherman Cavalcanti, julgado em 05.05.2010; Acórdão nº 36/2010, Plenário, rel. Min. Raimundo Carreiro, julgado em 23.01.2008; Acórdão nº 1621/2005, Plenário, rel. Min. Ubiratan Aguiar, julgado em 11.10.2005; e Acórdão nº 394/2003, Plenário, rel. Min. Guilherme Palmeira, julgado em 23.04.2003.

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Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas

77artigosFórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011

que elas refletem, de um lado, as opções discri-

cionárias do administrador público na elaboração

do projeto básico e do projeto executivo, e, de

outro, a concordância do particular contratado

com a técnica licitada. O que ora se afirma deriva

do fato de que — embora, em tese, possa haver

realmente técnicas equivalentes, capazes de pro-

duzir os mesmos resultados — não se pode igno-

rar que uma determinada técnica pode ser mais

confiável que outra, por ser utilizada há mais

tempo ou por produzir resultados mais consis ten tes

ou de qualidade melhor. É perfeitamente normal

que a empresa contratada possa estar capa citada

para a execução de uma técnica e não de outra,

ou que prefira, segundo sua expertise, esta em

detrimento daquela. Tais fatores são mais palpáveis

ainda quando, na licitação, se exija dos proponen-

tes a apresentação de metodologia de execução,

porquanto, neste caso, várias das opções técnicas

ficarão, respeitados os projetos básico e executi-

vo, a cargo do contratado privado. Em tais casos,

com efeito, a análise deverá dotar-se de redobra-

dos cuidados, sob pena de ferir o princípio de

que ora se cuida.

Do mesmo modo, há que se atentar para

casos em que se pretende discutir a estrutura de

custos diretos e indiretos, muitas vezes retirando

deste último (o chamado BDI) rubricas que eram

permitidas ou mesmo impostas pelo edital. É

muito comum, no Tribunal de Contas da União

pelo menos, o questionamento dos custos indi-

retos (BDIs) de determinados contratos, por se

considerar que neles ou foram incluídos custos

indevidos (como nos já famosos casos do Im-

posto de Renda e da Contribuição Social sobre o

Lucro Líquido, que na visão do TCU são tributos

personalíssimos e por isto não podem onerar o

contrato)22 ou que neles encontram-se preços que

deveriam pertencer à parcela de custos diretos.23

Não é objeto do presente estudo analisar a abran-

gência ou validade de tais orientações (mesmo

porque a quantidade de problemas legais e cons-

titucionais que as acometem seria suficiente para

a elaboração não de um, mas de vários estudos);

o que se deve reter, neste passo, é que a incidên-

cia do princípio do valor formal dos contratos

administrativos impede que estes sejam invali-

dados (ainda que parcialmente), quer mediante

a realocação dos preços (de indiretos para dire-

tos ou vice-versa), quer mediante a sua glosa. Se

a proposta foi apresentada de boa-fé nos termos

do edital e aceita pela Administração Pública,

aperfeiçoa-se a equação econômico-financeira,

devendo o vínculo ser mantido e respeitado em

sua integralidade até o término da avença.

A partir de tal raciocínio, surge a pergunta:

seria então a noção de sobrepreço (ou superfatu­

ramento), entendida como a diferença, a maior,

verificada em determinado contrato, compara ti-

vamente com os preços de mercado, e decorrente

de condutas fraudulentas das partes, verificável

empiricamente pelo analista? É de se pensar que

sim. Seguidos os princípios específicos acima

refe ridos, que derivam dos princípios jurídicos

da razoabilidade, segurança jurídica e daqueles

outros consagrados no art. 37, caput, da Consti-

tuição Federal, poder-se-á atingir juridicamente

situações de manifesta lesividade ao Poder Público,

coibindo-se o locupletamento ilícito do particular

contratado.

3.2.1 Da aplicação concreta dos princípios re­

lativos à precificação das contratações

administrativas

O Poder Judiciário, bem como alguns órgãos

de controle (notadamente o Tribunal de Contas

da União), têm decidido ainda de forma incon-

sistente e sem uma formulação teórica adequada

sobre o tema. Não se verifica, com clareza, uma

ordenação coerente das normas aplicáveis. Os

princípios acima relacionados — ou seja, o regi­

me jurídico da precificação dos contratos adminis­

trativos — não são distinguidos com nitidez,

embora se façam notar como fundamento ou ratio

de decidir em alguns julgados. Por esta razão é

que, não obstante não sejam enunciados expres-

samente, pode-se verificar a sua incidência (implí-

cita) em casos específicos.

O TCU, no Acórdão nº 1.736/2007, Plená-

rio, relator o Ministro Ubiratan Aguiar, publica-

do no DOU, 31 ago. 2007, já teve a oportunidade

de analisar em detalhes a composição do SINAPI,

22 Este entendimento gerou a Súmula nº 254/2010 do TCU, que se transcreve: “O IRPJ – Imposto de Renda Pessoa Jurídica e a CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido não se consubstanciam em despesa indireta passível de inclusão na taxa de Bonificações e Despesas Indiretas – BDI do orçamento-base da licitação, haja vista a natureza direta e personalística desses tributos, que oneram pessoalmente o contratado”.

23 No âmbito do TCU, o precedente mais citado é o Acórdão nº 325/2007 (Sessão: 14.03.07, rel. Min. Guilherme Palmeira), em que se determinou que “os itens Administração Local, Instalação de Canteiro e Acampamento e Mobilização e Desmobilização, visando a maior transparência, devem constar na planilha orçamentária e não no LDI”.

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78artigos Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011

constatando as principais impropriedades e limi-

tações deste referencial:

84. Pesquisando as composições do Banco Nacional num relatório sintético de custos gerado por meio do SINAPI-SIPCI(9), foi possível encontrar incon­sistências de diversos tipos, o que corrobora a neces-sidade de aferições. Verificou-se, por exemplo, ocor­rências de composições distintas cujas descrições remetem ao mesmo serviço, não sendo possível perceber algo que justificasse a necessidade de todas elas; composições de uso restrito a determinado pro­jeto; e serviços agrupadores (títulos de grupos de composições) incoerentes com as composições que representam. Essas situações são ilustradas a seguir. (...)

98. Deve-se lembrar que na LDO/2006, art. 112, §2º, consta a exigência de que a Caixa providencie a ampliação do sistema, a fim de que outros tipos de obra sejam contemplados, “com base nas infor-mações prestadas pelos órgãos públicos federais de cada setor”. Atualmente a medida tomada pelos gestores do SINAPI para atendimento ao dispositi-vo legal consiste em assinar convênios com órgãos setoriais da esfera federal para que eles forneçam suas composições de serviços, a exemplo do ajus-te já celebrado com a Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária – INFRAERO (fl.11, Anexo 1). A solução adotada, portanto, inclui esses órgãos no grupo de entes conveniados, cujas composições são armazenadas em bancos próprios (BCs). Bancos desse tipo caracterizam-se por serem inacessíveis a outros usuários e não sofrerem qualquer ingerência da Caixa.

99. Inicialmente já se torna perceptível que a solu­ção adotada é insuficiente por inadequação do tipo de relacionamento atribuído aos órgãos federais fornecedores de composições da forma disposta na LDO. Como seus bancos também devem servir de referência para a contratação de obras a serem pagas com recursos federais, eles precisam ser acessíveis a todos os usuários e conter informações confiá veis. Em outras palavras, os bancos de composições des-ses entes precisam ter caraterísticas semelhantes às do Banco Nacional da Caixa. Para solução dessa demanda, sugere-se a criação de um novo banco de dados, denominado SINAPI-Referencial, consti-tuído pelas atuais informações do BN e as oriundas dos referidos órgãos setoriais federais, com as ori-gens devidamente identificadas. (...)

111. Os custos dos insumos “representados” são atribuídos a partir dos valores obtidos para os “representativos”. Primeiramente, são distribuídos os insumos em grupos homogêneos (“famílias”) quanto à cadeia produtiva e à forma de comercia-lização (fl. 198, Anexo 1). Após, são definidos os itens representativos, como aqueles mais usuais ou de coleta mais fácil (fl. 198, Anexo 1). Para os itens “representativos” é feita a pesquisa de custos, en-quanto que para os “representados” (não coletados) são atribuídos os custos a partir da multiplicação dos valores referentes aos respectivos “representa-tivos” por “coeficientes de representatividade”, obtidos a partir de uma “coleta extensiva”.

112. O agrupamento em “famílias” é feito com base na experiência e nos conhecimentos dos técnicos da Caixa, por critério subjetivo. Disso, observa-se a necessidade do aprimoramento desse critério, com a implementação de avaliação objetiva que o suporte.

113. Ademais, na identificação do insumo repre-sentativo não se utiliza como critério prioritário a significância do seu custo na obra (fls. 194 e 198, Anexo 1). Nesse sentido, o estudo dos insumos

finan ceiramente relevantes, em diferentes obras padrão, será um instrumento para melhor selecio-nar o insumo a ser pesquisado, pois evitará soma-tória de erros decorrentes do fator multiplicador e da coleta, para os itens mais significativos. (...)

160. Diante das situações discriminadas e outras encontradas, é necessária uma análise mais apro-fundada dos resultados, para não permitir falhas na publicação dos custos referenciais, e das justi-ficativas para as grandes diferenças demográficas quanto à evolução dos custos relativos e absolutos. (...)

173. Entretanto os critérios adotados por cada gestor não estão disponíveis para consulta, o que dificulta a avaliação que cada usuário do SINAPI deve fazer ao adotá-lo como referencial de preços. De fato, ao se discutir encargos sociais, devem ser considera-das particularidades regionais que podem afetar sua composição, como as convenções coletivas de trabalho. Porém, sendo essas informações usadas como referência oficial, torna-se desejável a exis-tência de métodos objetivos de obtenção.

174. Verificou-se, porém, que a Caixa não possui normativo interno indicando modo de cálculo e itens que devem compor a taxa (fl. 201, Anexo 1). A falta de metodologia única e bem definida a ser aplicada em todo o país pode acentuar as diferen­ças entre as taxas regionais devido a distorções de cálculo. (...)

3.1.12. Não há manuais com metodologia e con-ceitos utilizados no SINAPI.

181. Em resposta à última pergunta da Requisição de Informação 763/2006-01 (fl. 24, Anexo 1), a Caixa informou que não dispõe de manual contendo cri térios que possibilitam a elaboração de orçamen­tos de referência, justificando a ausência por ser o SINAPI “destinado a arquitetos e engenheiros, que têm essa matéria contemplada em seus currículos escolares.” A empresa complementa comunicando que está “trabalhando em conjunto com a área de tecnologia da Caixa, na confecção do ‘manual do usuário’ do sistema, contendo todo o passo-a-passo para apoiar a sua navegação/utilização”.

182. Em que pese a importância de um “manual do usuário”, questão comentada noutro tópico deste relatório, ele não pode ser considerado substituto de documentação em que se encontram registrados os conceitos e a metodologia de obtenção dos dados do sistema. Mesmo engenheiros e arquitetos com práti­ca em construção civil necessitam da especificação de todos os elementos de uma obra para que a con­sigam executar corretamente. Da mesma forma, os operadores de um sistema de custos como o SINAPI precisam conhecer suas particularidades a fim de obterem exatamente os resultados desejados.

183. Entende-se por “manual de metodologia e con ceitos” uma publicação que encerre informa-ções sobre a estrutura do sistema, as definições dos termos utilizados, a sistemática para obtenção dos preços de insumos, inclusive explicitando as limi-tações e as considerações adotadas quando não se dispõem de valores em todas as unidades federa-tivas, o caderno de encargos das composições, as especificações dos insumos, a discriminação e as considerações sobre componentes da taxa de encar-gos sociais, dentre outros tópicos que caracterizam plenamente os critérios aplicados na concepção do sistema. Os temas mencionados acima são exempli-ficativos, não constituindo uma lista exaustiva do conteúdo.

184. Uma documentação com essas características é essencial para que o usuário do SINAPI tenha condições de compreender claramente o resultado que obtiver, ciente das considerações e limitações do

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sistema. Isso aprimora a confiabilidade do SINAPI, na medida em que minimiza a possibilidade de erros decorrentes do desconhecimento de particu­laridades dos dados. (...)

3.2.1. Os atuais insumos e serviços constantes no SINAPI não alcançam plenamente obras rodo-viá rias, ferroviárias, hidroviárias, portuárias, aero -por tuárias, barragens, irrigação, de edifícios pú-blicos, de saneamento básico e de infra-estrutura energética.

200. Cabe ainda registrar a informação da GEPAD/RJ na qual, em entrevista à equipe de auditoria (fls. 202 do Anexo 1), esclareceu que, respeitadas as ações em curso de ampliação da base de dados, o atual sistema abrange basicamente obras de drena-gem, saneamento básico, habitação, infra-estrutura urbana e rural (vias), equipamentos comunitários e centros de lazer.

201. Apesar das ações empreendidas desde 2002 pela CAIXA, observa-se que o sistema permanece deficiente quanto aos tipos de empreendimentos atendidos. (...)

208. Das informações colhidas dos gestores e das evidentes limitações verificadas para execução de obras listadas pela Lei de Diretrizes, conclui-se que a atual base de dados de custos do BN do sistema SINAPI atende parcialmente os tipos de empreen-dimentos citados no §2º do Art. 112 da LDO/2006, uma vez que grande parte dos insumos e serviços que compõem essas obras ainda não se encontram nessa base. (...)

275. Com vistas a, principalmente, prevenir gran-des variações, ao longo do tempo, nas relações de custos entre os insumos de uma mesma “família” — representados e representativos —, observou-se, ainda, a necessidade da formalização de norma-tivo que contemple a periodicidade de realização da “coleta extensiva” que viabilize a atualização da citada correlação.

276. Já em relação a coleta e definição dos preços dos insumos por UF, verificou-se a necessidade de se buscar alternativas que eliminem a adoção de preços de insumos coletados noutra UF, ou, na impossibilidade, que se identifiquem custos, como fretes ou diferenças de impostos, que permitam a adequada utilização do preço coletado na UF des­tino. Tal situação decorreu do fato de existirem, atu­almente, preços de insumos de certa UF originados de outro centro de pesquisa ou de valores medianos nacional ou regional, sem consideração acerca de parcelas que necessariamente ajustariam o preço do local coletado ao da UF destino.

277. Ainda, com o intuito de tornar mais precisos os preços dos insumos definidos para cada UF aos valores medianos praticados no mercado, identi-ficou-se a necessidade de se considerar, especifi­camente em relação à parcela “materiais”, o fator “economia de escala”, sabidamente utilizado pelos fornecedores de serviços quando da aquisição de grande quantidade de materiais para execução das obras, assim como de se elaborar, em relação ao insumo “mão-de-obra”, normativo interno que vin-cule a determinação da taxa de encargos sociais a uma metodologia única para o país, na qual deverão estar estabelecidos e disponíveis aos usuários do sistema todos os componentes da taxa e os parâme-tros considerados.

278. Ademais, constatou-se a necessidade de se melhorar a descrição apresentada para alguns insu­mos, eximindo-se de associá-los à marca, modelo ou fabricante, em respeito ao inciso I do §7º do art. 15 da Lei 8.666/1993, e de se atender à variedade mínima de fabricantes por item pesquisado. (...)

283. Em relação aos tipos de empreendimentos atendidos, concluiu-se que o sistema necessita aumentar sua base de informações, uma vez que atualmente as informações de insumos e composi­ções de serviços abrangem parcialmente os tipos de obras estabelecidos no §2º do art. 115 da LDO/2007, quais sejam, obras rodoviárias, ferroviárias, hi-droviárias, portuárias, aeroportuárias, barragens, irriga ção, de edifícios públicos administrativos, de saneamento básico e de infra-estrutura energética. Constatou-se, inclusive, inexistência de previsão para realização do pleito, assim como para a inser-ção no Banco Nacional de insumos e ou compo-sições de serviços suficientes ao atendimento de tecnologias de construção incorporada pelo merca-do em períodos mais recentes. (...)

291. Os atuais insumos e serviços constantes no SINAPI necessitam ser ampliados de forma a atender ao disposto na LDO, ou seja, possuir in-formações suficientes para os principais tipos de obras públicas, em especial as obras rodoviárias, fer roviárias, hidroviárias, portuárias, aeroportuá-rias e de edificações, saneamento, barragens, irriga-ção e linhas de transmissão. Dessa forma, para que essa demanda legal seja atendida tempestivamente, torna-se necessário que a Caixa juntamente com os órgãos setoriais que detêm tais informações, desde já providenciem plano de trabalho com definição de metas e cronogramas para extinção da pendência.

292. E, diferentemente do exigido no dispositivo legal, os custos de serviços ainda não estão disponi­bilizados no SINAPI-WEB, com livre acesso na inter­net, limitando-se a obtenção de tais informações aos órgãos com convênios para uso do sistema SINAPI-SIPCI, sendo necessário que a Caixa permita aos órgãos e às entidades públicas que executem obras com recursos dos orçamentos da União o uso dos dados sem restrição. (...)

294. Por fim, cabe registrar que, como todo sistema em desenvolvimento, o SINAPI necessita de apri-moramentos. Disso, se reconhece que, na eventua­lidade de existir casos de inconsistência de informa­ção nesse sistema, os gestores usuários dos dados poderão proceder aos ajustes devidos, desde que comprovadamente fundamentados em justificativas apropriadas”. (grifos aditados)

Como se verifica no longo e necessário trecho do relatório do Ministro Ubiratan Aguiar, acima trans-crito, o TCU, ao constatar que o referencial SINAPI, a despeito de sua previsão nas sucessivas leis de diretrizes orçamentárias, padece de inúme ras in­consistências, tendo um espectro de aplicação mui­to restrito, em contraste com a amplitude desejada por tais leis, além de não ter uma metodologia pre cisa e acessível àqueles que dele se devem utilizar, privi-legiou, de fato, o princípio da primazia da realida­de: só seria aplicável o referencial legal (à época ape-nas o SINAPI) caso este pudesse corresponder, com um mínimo de con sistência aos preços de mercado verificados nas diversas regiões do País. Privilegiou-se, também, na referida decisão, o princípio da coerên cia, na medida em que considerou inaplicá-vel o referencial, a partir da constatação de suas inconsistências técnicas e da impossibilidade de acesso a todos os interessados à metodologia que preside a sua elaboração e emprego.

O TCU, assim como fez quanto ao SINAPI, reconhe-ceu as limitações do referencial do SICRO, elabo-rado pelo DNER/DNIT, em diversas opor tunidades. Exemplificativamente, o tribunal afastou a aplica-ção do SICRO, que é referencial aplicado para obras rodoviárias, mesmo em se tratando de caso atinente a tal modalidade de obras:

O SICRO é um sistema de custos implementado pelo DNER, tendo como objetivo a confecção de ta-belas de referência de preços que, por sua própria

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natureza, são desvinculadas dos projetos especí-ficos das obras. Trata-se de um referencial, não se constituindo um instrumento único, inflexível.

A estrutura básica das composições dos itens con-tidos no SICRO é, de certa forma, uniforme, como, por exemplo, os equipamentos, mão-de-obra, mate-riais, transporte. De igual forma, na construção de uma rodovia, faz-se necessária a realização de alguns itens, tais como: terraplanagem, pavimen-tação, drenagem, serviços de preservação ambien-tal, urbanização, materiais betuminosos, ilumina-ção, obras complementares etc.

Contudo, cada obra tem características próprias. Conseqüentemente, claro está que o preço também será diferente.

De fato, esse raciocínio é primário, demais até. Porém, é necessário explicitá-lo para dar suporte ao meu entendimento sobre as questões aqui tratadas.

Com efeito, comparar os preços desta rodovia com aqueles contidos no SICRO, sem levar em consi­deração as características da obra, não é uma boa técnica auditorial. Não é um procedimento, tecnica­mente correto, de se buscar evidências suficientes, competentes e pertinentes.

(omissis)

Ora, adotando-se os preços contidos no Sistema de Custo Rodoviário tem-se, aparentemente, um superfaturamento na construção dessa obra. No entanto, é preciso ressaltar que o SICRO é elabora­do pelo próprio DNER, servindo apenas como um referencial. Não é uma tabela. Se o fosse, dever-se-ia partir da premissa de que todas as obras deveriam ser iguais, o que não é verdade.

Assim, como os preços praticados pela empresa vencedora da licitação estão compatíveis com os próprios preços orçados pelo DNER, responsável pela elaboração do SICRO, e pelo DER/ES, fica afas­tada a hipótese de sobrepreço e superfaturamento.24 (grifos aditados)

Aliás, tamanha é a probalidade de impre-

cisão em resultados de cotações utilizando-se o

SICRO, que o TCU, em prestígio aos princípios da

identidade e da coerência na aplicação já decidiu

pela adoção da média de preços de propostas em

dada licitação como padrão de preços de mercado,

em detrimento dos resultados obtidos utilizando-

se a tabela SICRO. Veja trecho de relatório e voto

do Ministro Adylson Motta, in verbis:

a) Relatório:

A Equipe de Auditoria também analisou os preços globais e unitários em confronto com o subitem 8.1.1 da Decisão nº 1.640/2002 – TCU – Plenário, de acordo com o qual foi determinado ao DNIT o seguinte:

‘8.1.1. proceda à alteração do Edital nº 0003/02-00, elaborado com vistas à contratação das obras de duplicação e restauração da BR-101 Sul, no trecho entre o Município de Palhoça/SC e a divisa entre os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, fazendo constar daquela peça regra dispondo que, caso se faça necessária a celebração de termos aditi-vos aos contratos que vierem a ser celebrados, para inclusões ou alterações de quantitativos de itens

das obras, deverão ser observados os preços adota­dos nas tabelas do Sistema de Custos Rodoviários - Sicro, em confronto com os preços de mercado, prevalecendo estes como parâmetro, no caso de distanciamento entre eles;’.

A determinação acima teve como objetivo evi-tar que, nos aditivos, itens de serviço com preços muito acima do mercado tivessem seus quantita-tivos aumentados possibilitando o já conhecido ‘jogo de preços’ ou ‘jogo de planilha’, que permitem que propostas inicialmente vantajosas tornem-se desvantajosas após os aditivos.

Como já exposto acima, a licitação em questão teve uma competitividade tão acentuada que pode-se dizer, sem medo de errar, que as médias dos preços unitários propostos para cada um dos itens de ser-viço constantes das planilhas de cada lote refletem, da melhor maneira possível, a média do preço de mercado daquele item de serviço específico.

Não existe forma melhor de se descobrir o preço médio de mercado de um item de serviço, para uma obra específica, em um momento específico, do que se calculando a média dos preços propostos por um número tão significativo de empresas. Tal aferição de preço é muito mais precisa do que a que o DNIT utiliza para o Sistema SICRO 2. As razões são as seguintes:

a) o SICRO reflete uma pesquisa genérica em Santa Catarina, enquanto as propostas apresentadas refle-tem os exatos locais da obra que ora se analisa;

b) o SICRO reflete alguns preços reajustados via índices, não se pesquisando todos os itens todos os meses, enquanto as propostas apresentadas re-fletem o preço exato no mês de Agosto de 2003 (como todas as empresas validaram suas propostas, pode-se dizer que os preços estão atualizados até Agosto de 2004, quando o primeiro reajuste ocor-rerá, fato este que era do conhecimento de todas as proponentes);

c) o SICRO reflete o serviço como executado de uma forma padronizada, que não leva em conta uma obra específica, enquanto as propostas apre-sentadas refletem exatamente os serviços que serão executados.

Desta forma, pode-se dizer que o verdadeiro preço médio de mercado de cada item unitário de serviço é a média dos preços unitários propostos, e não o orçado pelo DNIT.

b) Voto do Ministro Relator:

Não obstante partir desse sólido fundamento, de-duz, a nosso ver de maneira insuficiente, que, para a con secução do equilíbrio original de um contrato, é bastante que se leve em conta a diferença percen-tual entre o valor global da proposta e o constan-te do orçamento-base, sem prejuízo da necessária aferição da compatibilidade com preços de merca-do. Ocorre que muitas vezes o orçamento-base não corresponde efetivamente à realidade do mercado local, como é claramente o caso ora examinado, à vista das enormes diferenças entre o que foi orçado com base no sistema SICRO 2 e o que foi efetiva-mente cotado pelas empresas licitantes.

É justamente essa situação que se pretende ver so-lucionada. Caso se adotasse o método proposto pelo Revisor no caso concreto ora examinado, é muito provável que teríamos um desequilíbrio contratu-al, só que agora desfavorável à Administração, tra-zendo o nosso problema de volta ao ponto inicial e sem uma solução plausível. Os preços constantes no SICRO 2, por exemplo, são resultado de pesquisa

24 Tribunal de Contas da União. Decisão nº 1.088/2001, Relator Ministro Iram Saraiva, publicada no DOU, 24 jan. 2002.

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feita em diversos locais e são atualizados por índi­ces gerais criados para serem aplicados a todo o país, sem levar em conta as peculiaridades de cada mercado local, o que inevitavelmente ocasiona as distorções verificadas nos presentes autos. (grifos aditados)

Também no caso acima abordado, o TCU

empregou, na fundamentação de sua decisão, os

princípios da identidade, da coerência e da pri­

mazia da realidade.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região já

decidiu pela impossibilidade de glosas de paga-

mentos em contrato administrativo, cujo objeto

já tinha sido executado, em razão do princípio da

proteção ao equilíbrio econômico-financeiro, o

que, em outras palavras, nada mais é do que afir-

mar o valor formal dos contratos administrativos:

O objeto desta ação é justamente a decretação de nulidade parcial do contrato, para o fim de não ser paga a quantia de R$1.420.642,77 à empresa reque-rida, valor este correspondente aos 20% de des-conto previsto na ordem de serviço nº 02/2006 do DNIT. Nesse diapasão, no caso de procedência da presente ação civil pública e julgamento nos ter mos do TCU no acórdão nº 2071/2007 (fls. 949/957), tem-se que a empresa ré Redram seria a única efe-tivamente atingida por esta demanda, já que estaria impedida de receber, também via comando judicial, todo o valor que fora contratado e gasto com a rea-lização da obra concluída.

Quanto à obrigatoriedade deste desconto, que veio por meio de uma instrução de serviço do próprio DNIT, considero não ser apta a justificar o não pa-gamento de valores contratados por diversas razões.

Primeiro porque a própria instrução tinha previsão de exceção, podendo haver contratos com des contos menores de 20% sobre a tabela SICRO. Segundo porque foge completamente à estipulação contratual, que não dispunha a respeito de limitação de valores ou glosas. Terceiro porque o ato convocatório, datado de um dia antes da instrução de serviço nº 2, fazia referência expressa à apresentação de planilha de itens de serviços referentes à tabela SICRO de se­tembro de 2005.

Se houve ou não manobras por parte do DNIT para adequação da proposta apresentada pela constru-tora já anteriormente aceita, não são justificativas para prejudicar a empresa. Nos autos, bem como no processo administrativo que correu perante o TCU, não restou demonstrada a má-fé ou, ao menos, a culpa da empresa contratada. Muito pelo contrário, constata-se que as irregularidades apontadas, sendo que algumas delas verifiquei nem existir, ocorre ram por violação de deveres por parte dos servidores públicos, não havendo evidências de que a empresa contratada tenha concorrido para as falhas.

Ao que consta, a proposta apresentada pela cons­trutora foi aceita. Quando intimada para diminuir o valor, informou a impossibilidade, mas, mesmo assim, a Administração aceitou e homologou sua proposta.

Após, já estar caracterizado todo o vínculo obriga­cional entre os requeridos, uma vez que assinado

o contrato e realizados todos os serviços, ou seja, prestada a obrigação por parte da contratada, servi­ços que foram fruídos pela União e pela população, não há como decretar a nulidade do contrato, com o não pagamento de valores, sequer de devolução de valores já recebidos, sob pena de acobertar o enriquecimento ilícito.

(...)

Dessa forma, não há como, depois de realizada a obra, pretender a Administração não pagar aquilo que foi acordado, trazendo prejuízo, única e exclu­sivamente para a empresa.

Outrossim, o desconto de 20% ficou estabelecido por mera conveniência da Administração – DNIT, sem qualquer amparo legal ou mesmo pesquisa de mercado e estatísticas que demonstrassem que nos processos licitatórios as propostas vencedoras possuem, em razão da livre concorrência, valores em torno de 20% menores que aqueles praticados no mercado. De fato a livre concorrência acarreta a oferta de preços mais baixos, mas também há de se destacar, que para o caso, havia um valor de refe-rência criado e já utilizado pela Administração – a SICRO – seja ela de qual Estado da federação fosse.

(...)

Por fim, destaco que o pedido feito nesta ação civil pública encontra impedimento na legislação. A Lei nº 8.666/93, que regula as licitações e os contratos administrativos, estabelece no seu art. 59, parágra­fo único, que a nulidade do contrato administrativo não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.

Por tudo isso que foi analisado, entendo pelo im-provimento da presente ação civil pública, devendo ser pago à empresa o valor que foi medido no total de R$8.743.376,78, uma vez que essa medição não foi contestada pelas partes, descontado o que já foi pago no valor de R$7.366.355,83 (conforme memo-rando nº 0412/2006 do DNIT, juntado às fls. 43/46).

2. Apelação a que se nega provimento.25 (grifos aditados)

Outras decisões judiciais e de tribunais de

contas (algumas inclusive referidas em tópico

anterior), no mesmo sentido, podem ser relacio-

nadas, de modo a afirmar a incidência de um

regime jurídico próprio para as contratações

administrativas, conforme explicitado nos itens

precedentes.

4 Das diferenças entre as formas de raciocínio

acerca da precificação de obras públicas

Ressume de todo o sistema legal regente das

contratações públicas que a metodologia utiliza-

da para precificação deve levar em conta os pa-

drões de mercado, em função do que não pode a

Administração descurar do fato de que os resul-

tados obtidos são remissíveis, necessariamente, a

25 TRF4, Apelação Cível nº 0004704-34.2006.404.7005/PR, 3ª Turma, Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Relator, julgado em 25.05.2010.

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tais padrões. A este propósito, cabe trazer à cola-

ção a sensata lição de Gustavo Pimentel Pereira e

Zilda Costa Santos, ambos os autores inspetores

de obras públicas do Tribunal de Contas do Estado

de Pernambuco (TCE/PE):

As Administrações Públicas, em geral, apresentam unanimidade nos procedimentos utilizados para estimar o valor de uma obra; fazem uso de tabelas de preços de várias origens: Órgãos Públicos, Empresas privadas e Publicações especializadas. (omissis)

A metodologia da forma apresentada é objeto de preocupação, pois faz com que as estimativas de preço, elaboradas pelos Órgãos Públicos, descon­siderem que os processos de contratação dão-se dentro de um mercado da construção regido pelas leis da oferta e procura.26 (grifos aditados)

O trecho acima transcrito ilustra bem o que

se encontra por trás das divergências quanto à

precificação de obras públicas. O raciocínio rea-

lizado para a avaliação do preço global de obras

públicas pelos analistas envolve normalmente

uma matriz analógica: adota-se tal ou qual cota-

ção referencial, “a frio”, e se comparam os preços

delas constantes com os preços da planilha orça-

mentária contratual.

Parte-se do pressuposto de que, entre aquilo

que é pago (prestação da Administração Pública)

e aquilo que é recebido (prestação do contra tante

privado), existe uma relação de igualdade. Os

preços de mercado (e, portanto, os preços “justos”)

seriam aqueles que correspondessem ao valor da

coisa posta em comércio. Trata-se de perspectiva

centrada, portanto, no objeto e cujo maior defeito

é justamente perder de vista os fatores determi-

nantes da transação, a saber, os agentes econômi-

cos (aquele que “vende” e aquele que “compra”)

e a assimetria de informações de um com relação

ao outro (e vice-versa).

A outra perspectiva — que certamente

oferece maiores dificuldades teóricas, mas que

ao mesmo tempo oferece maior segurança para a

averiguação de um preço como de mercado —

centra-se não apenas no objeto transacionado,

mas também na percepção dos agentes econô-

micos. Um preço de mercado, portanto, nesta

óptica, seria aquele que um determinado agente

está disposto a pagar por um bem (em sentido

amplo), ao mesmo tempo em que seja também o

preço que o agente detentor do bem (vendedor)

aceite receber para entregá-lo ao primeiro.

Rubens Nunes aborda, de modo didático, as

diferenças entre as concepções objetivistas e sub­

jetivistas da teoria do valor, no âmbito econômico:

Para o economista, o agente aceita ou recusa uma transação comparando o custo total da transação (por simplicidade, o preço pago) com o custo de não realizar a transação. Tomando como exemplo um consumidor, o custo de não realizar a transação seria o custo de ficar sem o bem ou serviço dese-jado, ou de se contentar com um substituto, ou ainda o custo de seguir procurando outro ofer-tante. O padrão empregado para a avaliação de uma transação é a situação do agente, avaliada por ele próprio, caso a transação não se efetivasse.

O agente do outro lado da transação faz uma conta semelhante e decide fazer ou não fazer a transação. O vendedor, por exemplo, compararia duas situa-ções: ter mais dinheiro em caixa e menos estoque, ou menos dinheiro e mais estoque. A transação só ocorreria se, para os dois, comprador e vendedor, transacionar fosse preferível a não transacionar. Se o preço pedido pelo vendedor for “excessivo”, no sentido de que o consumidor prefira reter seu dinheiro, a transação não se dá. Da mesma forma, se o vendedor entender que o preço oferecido pelo bem é “aviltante”, não haverá transação, nem pre-ço. Não se trata da troca de “equivalentes”. Assim, preço excessivo soa, para o ouvido do economista, quase como uma contradição nos termos.

O senso comum, no entanto, parece assumir um padrão distinto para avaliar as transações. O que se dá equivale ao que se recebe. O dinheiro dado pelo comprador tem o mesmo valor do bem dado pelo vendedor. Trata-se de troca de equivalentes. O valor bem é percebido como uma propriedade material dos bens, objetiva, assim como a cor, a textura, o peso, etc.27

Para os operadores do Direito, o ângulo

a ser privilegiado, neste exame, é naturalmente

o nor mativo. Todavia, quando o próprio direito

posi tivo disciplina este aspecto por meio de um

termo vago, como o faz no caso das contratações

administrativas, torna-se necessário um esforço

argumentativo que possa conciliar a racionalida-

de dos agentes econômicos — e que não pode ser

negada, pois integra a própria natureza da tran-

sação — com níveis mínimos de segurança jurí-

dica, o que se dá por meio do respeito ao regime

jurídico aplicável à matéria.

5 Conclusões

Os princípios (identidade, globalidade, uni­

for midade, primazia da realidade, intenciona lidade

e valor formal das contratações administrativas),

26 PEREIRA, Gustavo Pimentel; SANTOS, Zilda Costa. Avaliação de superfaturamento por intervalo de confiança da média: um equívoco. p. 1. Disponível em: <www.ibraop.org.br/site/media/sinaop/08_sinaop/avalia_confi_media.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2009.

27 NUNES, Rubens. Lucro arbitrário e preço excessivo. CADE Informa, n. 4, mar. 2007. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/news/n004/artigo.htm>. Acesso em: 29 out. 2010.

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Notas sobre o regime jurídico da precifi cação de obras públicas

83artigosFórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011

derivados todos do regime jurídico-administrativo,

e que a nosso ver constituem o regime jurídico da

precificação das contratações administrativas, são

propostos para manter a racionalidade econômica

e as exigências de segurança na aplicação do direito

positivo num grau aceitável de consistência.

A tensão entre os dois pontos de vista, con-

forme mencionado no tópico precedente, perma-

necerá. Todavia, será transposta para um plano

secundário quando da análise objetiva de cada

situação fática, segundo o regime jurídico que lhe

é próprio, o que de per se constitui uma vantagem

metodológica inegável.

São Paulo, fevereiro de 2011.

Abstract: The present work approaches the legal parameters for the pricing of administrative contracts. Considering that applicable legislation only determines that administrative contracts shall obey market prices, this study aims to identify, on the basis of the legal-administrative regimen, a complex of principles that serves of guidance for the legal analysis of the prices contracted for the Public Administration (principles of the identity, integrality, uniformity, priority of the reality, intentionality and formal value of the administrative contracts).

Key words: Administrative contracts. Market prices. Budget. Bidding process.

Referências

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BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971.

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