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O APRENDIZADO DA POESIA E A CONSTRUÇÃO DO LEITOR POETA HELOANA CARDOSO (CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JUIZ DE FORA), HELOANA CARDOSO (CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JUIZ DE FORA). Resumo Este trabalho discute uma proposta metodológica inovadora sobre o gênero poético, destinados aos alunos da rede pública com histórico de repetência escolar. Os alunos são atendidos no Laboratório de Alfabetização – FACED /UFJF, em grupos constituídos por até seis crianças, na faixa etária dos 09 aos 13 anos. Os acompanhamentos pedagógicos são realizados em 2 encontros semanais de 90 minutos, por uma professora–bolsista dos cursos de Letras ou Pedagogia. Os procedimentos de coleta dos dados foram: anotações em diário de campo, fotos e gravações em vídeos do momento de elaboração textual e produções escritas dos alunos. A proposta metodológica priorizou tanto a exploração das características formais do gênero, formato do texto, a sonoridade das palavras, as rimas e o ritmo, quanto a reflexão sobre o significado e as emoções sugeridas pelo texto lírico. As atividades em torno da poesia foram sistematizadas de forma gradual: (i) identificação do conhecimento prévio sobre o gênero; (ii) leitura e escuta de textos poéticos; (iii) produção textual dos alunos por meio de exercícios variados que possibilitassem a construção poética de forma independente. O êxito da proposta está relacionado ao repertório de poemas a que os alunos tiveram acesso, cuidadosamente escolhidos, aos materiais que compõem a seqüência didática, ao envolvimento dos alunos com a proposta e às mediações realizadas pelas professoras–bolsistas. Os resultados do trabalho revelam que a sistematização construída em torno do gênero poético contribuiu para que os alunos se sentissem livres na busca de associações incomuns entre as idéias e desenvolvessem a capacidade de transformar em versos a observação do mundo e de suas próprias emoções. Palavras-chave: Ensino de gênero, Poesia, Leitura e produção escrita. 1. Introdução O objetivo desta comunicação é relatar uma proposta metodológica bem sucedida para o ensino do gênero poético desenvolvida no Laboratório de Alfabetização/ FACED[1]/UFJF[2]. Os sujeitos do trabalho foram nove alunos na faixa etária entre 10 e 13 anos, que possuem histórico de repetência escolar e foram encaminhados pelas escolas municipais situadas no entorno do campus, para participar de dois encontros semanais de 90 min cada um, sob a orientação de uma professora- bolsista dos cursos de Letras ou Pedagogia. O trabalho foi desenvolvido durante seis meses, envolvendo revisão bibliográfica, planejamento da sequência de atividades, confecção dos materiais e aplicação. Para análise dos dados foram selecionadas, de um lado, as treze atividades da sequência e, de outro lado, as hipóteses e as generalizações dos alunos diante das atividades propostas. Os procedimentos de coleta de dados são: diário de campo, fotos, gravações em vídeo e produções escritas dos alunos. Adotamos como método investigativo o paradigma indiciário, estruturado por Ginzburg e reelaborado no estudo da construção da escrita por Abaurre (1999). Por

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O APRENDIZADO DA POESIA E A CONSTRUÇÃO DO LEITOR POETA HELOANA CARDOSO (CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JUIZ DE FORA), HELOANA CARDOSO (CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JUIZ DE FORA). Resumo Este trabalho discute uma proposta metodológica inovadora sobre o gênero poético, destinados aos alunos da rede pública com histórico de repetência escolar. Os alunos são atendidos no Laboratório de Alfabetização – FACED /UFJF, em grupos constituídos por até seis crianças, na faixa etária dos 09 aos 13 anos. Os acompanhamentos pedagógicos são realizados em 2 encontros semanais de 90 minutos, por uma professora–bolsista dos cursos de Letras ou Pedagogia. Os procedimentos de coleta dos dados foram: anotações em diário de campo, fotos e gravações em vídeos do momento de elaboração textual e produções escritas dos alunos. A proposta metodológica priorizou tanto a exploração das características formais do gênero, formato do texto, a sonoridade das palavras, as rimas e o ritmo, quanto a reflexão sobre o significado e as emoções sugeridas pelo texto lírico. As atividades em torno da poesia foram sistematizadas de forma gradual: (i) identificação do conhecimento prévio sobre o gênero; (ii) leitura e escuta de textos poéticos; (iii) produção textual dos alunos por meio de exercícios variados que possibilitassem a construção poética de forma independente. O êxito da proposta está relacionado ao repertório de poemas a que os alunos tiveram acesso, cuidadosamente escolhidos, aos materiais que compõem a seqüência didática, ao envolvimento dos alunos com a proposta e às mediações realizadas pelas professoras–bolsistas. Os resultados do trabalho revelam que a sistematização construída em torno do gênero poético contribuiu para que os alunos se sentissem livres na busca de associações incomuns entre as idéias e desenvolvessem a capacidade de transformar em versos a observação do mundo e de suas próprias emoções. Palavras-chave: Ensino de gênero, Poesia, Leitura e produção escrita.

1. Introdução

O objetivo desta comunicação é relatar uma proposta metodológica bem sucedida para o ensino do gênero poético desenvolvida no Laboratório de Alfabetização/ FACED[1]/UFJF[2]. Os sujeitos do trabalho foram nove alunos na faixa etária entre 10 e 13 anos, que possuem histórico de repetência escolar e foram encaminhados pelas escolas municipais situadas no entorno do campus, para participar de dois encontros semanais de 90 min cada um, sob a orientação de uma professora-bolsista dos cursos de Letras ou Pedagogia.

O trabalho foi desenvolvido durante seis meses, envolvendo revisão bibliográfica, planejamento da sequência de atividades, confecção dos materiais e aplicação. Para análise dos dados foram selecionadas, de um lado, as treze atividades da sequência e, de outro lado, as hipóteses e as generalizações dos alunos diante das atividades propostas. Os procedimentos de coleta de dados são: diário de campo, fotos, gravações em vídeo e produções escritas dos alunos.

Adotamos como método investigativo o paradigma indiciário, estruturado por Ginzburg e reelaborado no estudo da construção da escrita por Abaurre (1999). Por

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meio desse método, inferimos a movimentação do aluno na construção do conhecimento a partir de índices aparentemente simples, mas profundamente significativos.

A perspectiva teórica adotada é a contextual, considerando a relação de interdependência entre características das situações de produção e características do texto, mais especificamente baseada no modelo interacionista sócio-discursivo desenvolvido por Bronckart (1999), principalmente no tocante à acepção de gênero como entidade profundamente vaga, conceito que se aplica, sobretudo ao gênero poético. Somado a isso, ressaltamos a noção de texto singular (Bronckart, 1999):

"[...] uma unidade concreta de produção de linguagem, que pertence necessariamente a um gênero, composta por vários tipos de discurso, e que também apresenta os traços das decisões tomadas pelo produtor individual em função da sua situação de comunicação particular."(p.77).

Para elaboração da sequência, tomamos como ponto de partida uma série de princípios da teoria literária, principalmente, no que diz respeito à análise da função poética da linguagem. Decidimos por incorporar algumas características formais - o ritmo, a rima e o formato do texto - as quais não são objeto principal deste trabalho. Inspiramo-nos na poética moderna e isso se deu pela maior liberdade na produção textual orientada nessa época literária. Se "(...) o estilo moderno abandonou a impostação soteriológica do processo artístico por um amor "barroco" à arte-jogo - e isso, tanto no plano do conteúdo quanto no da forma (Merquior, 1976: 84)", temos aí uma teoria capaz de situar essa nossa proposta. Todos esses princípios corroboram com o movimento de (re) apropriação de auto-estima do sujeito no tocante à escrita devido à dessacralização do autor. Infelizmente, o curto espaço deste trabalho nos limita a apenas iniciar essa discussão.

Não obstante, para desenvolver as diretrizes norteadoras da proposta, foi preciso levantar alguns questionamentos sobre esse gênero: quem escreve poema, para que serve, como é veiculado e ainda o perfil dos interlocutores. Para nós, não serão apenas os poetas os emissores, mas qualquer pessoa que se permita observar o mundo e a si mesmo de forma diversa. Segundo Oswald de Andrade "Aprendi com meu filho de dez anos que a poesia é a descoberta das coisas que eu nunca vi". A poesia serviria então, para exteriorizar sensações e impressões, por meio de uma nova lógica de observação. E pode ser veiculada em diversos impressos.

Ressaltamos que a construção do leitor poeta, mencionada no título deste trabalho, tem por objetivo auxiliar algumas percepções nos alunos que os façam compreender melhor o texto poético e produzi-lo. Não temos aqui a pretensão de formar poetas, mas sim de desenvolver nos alunos habilidades várias que servirão para elaboração de sua autonomia, não só poética, mas também, na produção textual.

E essa é a grande contribuição desse trabalho. As atividades não têm por objetivo principal produzir poemas, mas exercitar a imaginação e, por meio dela, fazer cada criança encontrar o seu "eu poético", movimento esse que poderá levá-lo a uma produção satisfatória, logo o poema será escrito como devir e não como dever.

Esse procedimento orientou a observação de nossas hipóteses: se estão sabendo aplicar o princípio da observação e do "olhar poético"; se são capazes de reconhecer um poema e algumas características formais; se conseguem se concentrar quando ouvem um poema recitado; se fazem inferências; se conseguem

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utilizar a linguagem metafórica, enfim, se sua percepção e impressão do mundo foram tocadas e os instrumentos para escrita instituídos e se a manipulação desse conhecimento auxilia no processo de auto-estima aplicada à escrita.

Essa concepção nos afastou, nesse trabalho da análise do corpus produzido, interessa-nos aqui o processo. Desse modo, pretendemos compartilhar essa seqüência de atividades com outros professores e pesquisadores, que poderão questioná-la e aperfeiçoá-la.

Uma última orientação, e que deve estar em primeiro lugar para o êxito dessa proposta, destacamos que o professor-mediador necessita conhecer princípios da teoria literária o suficiente para aguçar sua sensibilidade com o poema, "um mediador sensível ao texto poético tornar-se-á o grande iluminador do encontro texto-leitor. Ele é a peça importante na formação do gosto pela poesia". (Sorrenti, 2007: 19). Se esses princípios não forem devidamente observados, a sequência pode parecer pueril e ineficaz.

2. Proposta Metodológica

Passaremos agora a descrever as atividades, algumas delas foram retiradas do livro de Neusa Sorrenti (2007) "A poesia vai à escola" e readaptadas para atender às influências montessorianas que recebemos, tais como a organização do ambiente e o trabalho com os materiais concretos confeccionados por nós. Por esse mesmo motivo, as atividades receberam denominação específica e foram dispostas em bandejas situadas em uma estante do gênero poesia, sendo trocadas a cada aula. Neste artigo, elas apresentar-se-ão em caixa alta e em negrito.

Primeiramente investigamos o CONHECIMENTO PRÉVIO por meio de uma pergunta: "Para você, o que é poesia?". As respostas foram dadas por escrito. No momento da aplicação, pudemos constatar que alguns alunos já haviam tido contato com esse tipo de texto na escola e trouxeram para os atendimentos conceitos formulados, como musicalidade: "Todo poema vem de uma música" e rima:"Poesia é palavras que rima uma com a outra". Em alguns casos, os alunos apresentaram características formais: "É que a poesia tem estrofe." Em um caso específico, uma aluna apresentou um dos recursos utilizados na construção do poema, a sinestesia: "(...) poesia é um texto de arco-íris." (os textos poéticos são coloridos, explicou a aluna). Outros se voltaram também para a temática: "A poesia fala sobre amor (...) Poesia fala sobre paixão." Tais depoimentos comprovaram a importância de levantar os conhecimentos prévios desde o primeiro momento das atividades e dialogar a esse respeito..

A partir daí iniciamos o trabalho com o BAÚ POÉTICO (ANEXO 1), uma grande caixa de madeira bem decorada, para aguçar o gosto estético nos alunos e chamar a sua atenção para sempre manuseá-la, familiarizando-as com o gênero. O BAÚ POÉTICO foi um instrumento importante para o desenvolvimento dessa proposta, ele tem o objetivo de proporcionar à criança o contato com um rico repertório de textos poéticos, que foram cuidadosamente selecionados para estimular e valorizar a leitura. Sua apresentação deu-se da seguinte forma: o professor perguntou aos alunos se sabiam o que havia ali dentro e informou o nome do material. Em seguida questionou: (i) "Porque vocês acham que se chama BAÚ POÉTICO?" "Porque só tem poesia". (ii) "Vocês gostaram?" "Sim, porque é muito bonito e arrumadinho"; "porque chama a atenção". (iii) "Porque vocês acham que quem enfeitou esse baú colocou todas essas coisas bonitas do lado de fora?" "Porque de tudo isso pode falar a poesia". O baú ficou disponível às crianças em todas as aulas e isso foi combinado com elas.

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Dando sequência a essa primeira atividade, abrimos o baú para explorá-lo. Com o auxílio do livro "Poemas para brincar", de José Paulo Paes (1990), pedimos para os alunos fecharem os olhos enquanto ouviam o poema "Convite". Justificamos a escolha desse poema, por se tratar de um texto convidativo, que envolve as crianças no sentido de brincar com as palavras.

"Convite", de cunho metalingüístico, expõe o fazer poético como brincadeira que se estabelece entre o poeta e a matéria de que se vale: as palavras. O leitor pode participar do jogo, identificando as etapas que o constituem. Ele está no meio das ocorrências e, ao fim do texto, é convidado a se envolver com outras brincadeiras. (ELVIRA, 2002: 95-96).

Em seguida, incluímos uma atividade sensorial com papel e tinta guache. Pedimos aos alunos que fizessem um desenho que representasse um momento vivido. Para reproduzir essa sensação no papel, eles deveriam escolher apenas uma cor. O objetivo dessa atividade é levá-los a uma primeira mostra de que é possível simbolizar momentos e sensações, e o uso de uma só cor justifica-se pelo fato de o aluno ser obrigado a fazer uma reflexão prévia. É uma construção "poética" "inconsciente" e em estado embrionário.

Na aula seguinte, cada um dos desenhos elaborados foi tematizado previamente com uma música. Fizemos o seguinte: apagamos as luzes da sala e com a ajuda de uma lanterna, que o autor do desenho segurava, os outros alunos observavam o desenho e o assimilavam com a música[3]; eles ficaram motivados com o efeito causado nos colegas. Chegaram a relatar que "parece que o desenho tá dançando". Iniciamos assim, o trabalho de observação mais apurada da realidade, os alunos opinaram sobre os desenhos dos companheiros e disseram se concordavam ou não com a música escolhida. Um fato interessante ocorreu quando um aluno comentou sobre o desenho do colega. "Parece que ele ta impinano a bicicleta". O autor refutou a opinião dizendo que não foi isso que ele pensou. Foi uma excelente oportunidade para colocar em evidência uma conceituação da função poética. Discutimos que valia o desenho em si, que aquela era a interpretação dele e que quando produzimos uma mensagem, pensamos na mensagem, o outro tem a possibilidade de viajar no sentido, desde que não esteja falando nada absurdo.

Na sequência utilizamos o LIVRO DE IMAGENS (ANEXO 2). O material consta de várias imagens sugestivas que foram selecionadas com o objetivo de instigar o aluno à observação. Cada aluno escolhe uma página do livro, que é solta para facilitar a atividade. Com a imagem na mão o professor sugeriu que fizessem uma lista com substantivos observados e, feito isso, que qualificassem esses substantivos de acordo com a figura. Durante a atividade, sem o professor pedir, os alunos foram sentindo a necessidade de utilizar conectivos, porque já traziam uma idéia pronta de texto. Todos se surpreenderam, pois, "sem querer" tinham produzido o inesperado, nas palavras de um dos alunos: "Ô, tia, o meu formou uma história, te juro!".

As características formais começaram a ser trabalhadas, o próprio formato de lista incentivou a formação de frases curtas e foi um esboço de versos. Na aula seguinte, algumas características como estrofes e versos foram trabalhadas, porque precisávamos utilizar essa terminologia e os alunos quiseram reescrever seus textos utilizando o novo conhecimento.

O livro A caligrafia de dona Sofia, de André Neves (2006) nos auxiliou a mostrar que a observação de objetos também se aplica a pessoas. No enredo, o carteiro,

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entusiasmado com a bondade de Dona Sofia em espalhar poesias pela cidade por meio de cartas, acaba se inspirando e escrevendo para ela uma poesia. Os alunos compreenderam bem o princípio da observação e conversamos um pouco sobre os poemas líricos amorosos. Em seguida, alguns poemas do livro foram selecionados pelos alunos e eles confeccionaram um cartão poético para uma pessoa especial.

Outra atividade desenvolvida foi o ENVELOPE SURPRESA (ANEXO 3), cujo conteúdo é formado de retângulos negros com palavras recortadas de jornal, cada envelope contém 20 substantivos selecionados num mesmo campo semântico. O objetivo da atividade é fazer relações entre as palavras e construir um texto, utilizando os princípios já trabalhados até então. Cada aluno recebeu um envelope e escreveu um texto utilizando as palavras. Esse material despertou muito o interesse dos alunos. Enquanto desenvolviam a atividade, eles brincavam e se divertiam com as palavras. É importante ressaltar que nesse momento os alunos produziram textos "forçados", entretanto a nossa preocupação maior estava voltada para a movimentação do aluno na manipulação do material, e em relação a isso, o resultado foi bastante positivo.

Para desenvolver melhor o "olhar poético" dos alunos, nos valemos de um recurso inspirado no livro Poemas para brincar, de José Paulo Paes (1990). A atividade recebeu o nome de MINIDICIONÁRIO POÉTICO (ANEXO 4). No lugar do verbete colocamos uma pequena fotografia seguida de sua explicação em linguagem metafórica. O objetivo da atividade é retomar a estrutura do dicionário, permitindo a exploração da função conotativa da linguagem.

[...] o poeta traz novo significado às palavras pertencentes ao nível coloquial da língua. O poeta desenvolve estratégias para criar os verbetes que ora tratam de contextos incomuns do uso da palavra [...] ora trazem segmentações que não coincidem com as morfológicas, produzindo com elas palavras com novos sentidos [...] (Elvira, 2002: 103)

Observe um exemplo de um verbete desenvolvido pela turma: "Ônibus - viajar com pessoas a cantar pelo espaço vendo de perto a lua e marte, muito cuidado para não cair no sol, porque queima". O sucesso da atividade se deve ao fato de a linguagem humana ser extremamente metafórica, logo, os alunos conseguiram se deliciar quando puderam romper com o comum.

A CAIXA DE RIMAS (ANEXO 5) tem o objetivo de o aluno construir um texto poético com o suporte das fichas de palavras que rimam. O material consta de uma bandeja repartida por ripas que separam os montinhos de palavra que rimam. Para facilitar, as rimas devem ser destacadas com outra cor. Inicialmente, perguntamos aos alunos o que é rima, em seguida entregamos a caixa de rimas para o grupo, cada um deveria escolher um montinho de palavras. Eles leram e observaram as palavras para então escrever seus textos. Ao analisá-las, os alunos fizeram associações e brincadeiras Quando passaram para a fase da escrita, sentiram muita dificuldade.

Não é tarefa fácil produzir frases com rimas, jamais cairíamos no equívoco de exigir dos alunos em fase de aprendizagem a maestria para lidar com essa característica, o objetivo foi descontraí-los, fazê-los lidar com o concreto do que já percebem ouvindo. Com mais propriedade para falar sobre o assunto, abrimos espaço ao poeta Carlos Drummond de Andrade "Lutar com palavras/é a luta mais vã./Entanto lutamos/mal rompe a manhã./São muitas, eu pouco./Algumas, tão fortes/como o javali./Não me julgo louco./Se o fosse, teria/poder de encantá-las." Se a dificuldade

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de compor é comparada a uma luta por quem entende bastante do assunto, então a nós resta compreender as limitações dos alunos e deixá-los bem à vontade com as rimas.

E para as formalidades não afastarem o lado lúdico da poesia, desenvolvemos a atividade BRINCANDO COM AS PALAVRAS: BOLA POÉTICA. A partir do poema Jogo de Bola, de Cecília Meireles, classificamos as palavras que rimavam e as que possuíam sonoridade, observando o ritmo do poema. O trava-língua divertiu os alunos e, as palavras separadas foram escritas com caneta pilot em um pedaço de brim que envolveu alguns retalhos até se transformar em uma bola de meia. Utilizamos a meia calça para que as palavras pudessem ser vistas e depois, é claro, fizemos um jogo no pátio.

Cecília Meireles deu-nos uma grande contribuição, os alunos entraram em contato com sua biografia e Lembrança rural também foi utilizado. A escolha desse poema deve-se à proximidade que os alunos têm com características do campo e ao fato de ser um poema descritivo. Uma sensibilização foi introdutória da tarefa, de olhos vendados e um de cada vez, os alunos sentiam um cheiro (laranja, orégano, incenso, pasta de dente, erva doce, aroma de morango etc) e diziam de que se tratava, imaginando uma cor. Em seguida interpretamos o poema e fomos para fora da classe observar uma paisagem. A professora perguntou aos alunos o que estavam vendo e ficou surpreendida com as frases que foram vindo de forma espontânea e bastante poética. A descrição da paisagem exercitava o "eu poético" dos alunos e, principalmente, a segurança na formulação das sentenças.

Entretanto, a descrição é um tipo que pode limitar o gênero e, para que isso não ocorresse, desenvolvemos a atividade ASSOCIAÇÃO INCOMUM ENTRE AS IDÉIAS (ANEXO 6), que são fichas vermelhas, verdes e amarelas contendo nas cores, individualmente: um sujeito, um verbo intransitivo e uma locução adverbial. Os alunos devem fazer associações e todas as combinações de frases devem ser possíveis. Cada aluno pegou uma cor e o grupo de três alunos organizou as frases. O professor perguntou, então o que imaginaram com aquela sequência de palavras. Os alunos não encontraram dificuldade e produziram poesia oral enquanto explicavam as frases construídas.

Como a função poética da linguagem também se encontra nas imagens, desenvolvemos a atividade REFINANDO O OLHAR. Foram selecionadas algumas obras de arte por critérios previamente estabelecidos pelo professor (mitologia, riqueza de detalhes, conhecimento prévio e novidade). Para iniciar a aula fizemos um momento de concentração por meio de músicas que possuíam barulho de água (chuva, rio, cachoeira, mar) e pedimos para os alunos identificarem os sons. Em seguida mostramos as obras de arte, que possibilitaram o aluno a ampliar o conceito de observação. Não bastava dizer o que viam, mas tentar perceber o que o pintor sentiu ao fazer o quadro, e o que as imagens sugeriam. O resultado foi uma concentração absoluta quando foram solicitados a colocar suas impressões no papel e não apenas oralmente. O silêncio em sala de aula e o olhar curioso revelaram que estava construída a autonomia, nenhum aluno pediu ajuda e isso constituiu, nas hipóteses aqui levantadas, a confirmação de que o trabalho gradativo é capaz de desenvolver instrumentos para a produção.

Dando sequência, inserimos a atividade MANCHETES DE JORNAIS E REVISTAS (ANEXO 7). O objetivo é trabalhar a criatividade, a sensibilidade e a imprevisibilidade formando versos a partir de uma informação curta e estimulante. Antes, fizemos uma discussão sobre o que é manchete. Em seguida, fomos mostrando as fichas uma a uma, e o grupo disse as impressões causadas pelas frases. Disponibilizamos todas elas sobre a mesa e foi solicitado que cada aluno

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escolhesse uma. Perguntamos porque o aluno escolheu essa manchete e qual foi a sensação despertada. Logo após, partimos para a produção escrita. A competência para o gênero ainda estava em processo. Embora mostrassem segurança para escrever, a produção não foi satisfatória. Contudo, a primeira fase da atividade revelou uma evolução significativa no tocante à formulação de idéias. Com exceção de uma aluna que sentiu dificuldade para se expressar, todos responderam de acordo com o que foi proposto, revelando suas emoções e sensibilidade.

A atividade seguinte foi denominada: CONSTRUINDO A CASA. A partir do poema A casa de Vinícius de Moraes, fizemos uma discussão e ouvimos a música. O objetivo foi desenvolver a capacidade de inferir. Foi solicitado que eles analisassem o poema e o interpretassem através de um desenho. Segundo Ângela Lago, citada por Sorrenti, (2007), "Desenhar é uma forma de escrever, pois o desenho fala e chega mesmo a ser muito mais uma espécie de escritura, uma caligrafia do que uma arte plástica." (129-130). Escolhemos o poema pela dificuldade que apresentaria de ser ilustrado. As crianças disseram que era difícil desenhar algo que não existe, percebendo o assunto principal do poema. Para concluir a atividade, propusemos uma paráfrase. O resultado foi muito satisfatório, comprovando que esse é um excelente recurso de apoio para a escrita de poemas. Nessa altura, já percebemos com bastante clareza o empirismo e a autoria nos textos. O sucesso dessa atividade fez com que a repetíssemos conjugando a cantiga Se esta rua fosse minha e o poema Paraíso, de José Paulo Paes (1990) - os dois textos estabelecem um diálogo. De acordo com Sorrenti (2007) a criança pode exercer sua imaginação, decompondo textos, armando novos poemas, "recortando" fragmentos de outros textos, descobrindo paralelismos. Uma terceira versão foi produzida com resultados também satisfatórios.

Para finalizar a sequência, aplicamos a atividade: TRABALHANDO COM SUBSTANTIVOS. Cada aluno recebeu um substantivo abstrato, discutiu sobre ele com a turma, viu o significado do verbete no dicionário e em seguida produziu um poema sobre a palavra. Durante a atividade, os alunos revelaram suas emoções e sentimentos no papel, num ato de catarse. A partir desse movimento, concluímos o quanto foi produtivo o trabalho com o gênero, pois os alunos escreveram sem a necessidade da intervenção do professor.

O trabalho estava então concluído, entretanto, quando nos propomos a trabalhar com gêneros, partimos do pressuposto de que as características predominantes devem ser apresentadas seguidas de formas diferenciadas. Por esse motivo, acrescentamos poemas concretos na sequência e aplicamos a atividade TIRA-LETRA...VEM PALAVRA, o objetivo é desenvolver a habilidade de manusear o vocabulário de forma descompromissada. Para isso, a partir de uma palavra, o aluno deve construir outras novas suprimindo ou trocando as letras e dispô-las no papel em forma de poema concreto. Com essa atividade, os alunos descobriram e se encantaram com o lado lúdico do texto. O envolvimento foi tanto, que um dos alunos confessou que havia comprado um caderno para fazer poemas.

3. Considerações finais

Após a realização de todas as atividades, constatamos que os alunos foram capazes de reconhecer quando um texto se trata de um poema, identificando algumas características formais; que a leitura constante e o contato com poemas despertou o gosto por esse tipo de texto e aprimorou capacidade de concentração dos alunos, o que os levou a inferir melhor quando convidados à interpretação. Observamos ainda que modificaram sua relação com o signo, utilizando a linguagem metafórica de forma lúdica.

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Finalmente, mostramos a satisfação em ter percebido que os princípios de percepção, observação e criatividade foram aprimorados e os instrumentos para a escrita poética instituídos nos alunos, sinalizando de maneira significativa que a manipulação desse conhecimento contribui para a autonomia do sujeito, formando assim, leitores-poetas. Isso só foi possível pela sensibilidade do mediador que adaptou a sequência inúmeras vezes, atendendo as necessidades do grupo. De acordo com os resultados deste trabalho, podemos dizer que as atividades e a mediação durante o processo pedagógico têm qualidade para despertar no aluno a segurança para poetar.

Referências Bibliográficas

ABAURRE, Maria Bernadete Marques. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto / Maria Bernadete Marques Abaurre, Raquel Salek Fiad, Maria Laura Trindade Mayrink-Sabinson - Campinas, SP: Ed Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil- ALB, 1997

BRONCKART, Jean-Paul. 2ª ed. Atividade de linguagem, textos e discursos. Ed Educ, São Paulo: 2007.

ELVIRA, Ana. A poesia na escola: leitura e análise de poesia para crianças. Ed Cortez. São Paulo: 2002.

SORRENTI, Neusa. A poesia vai à escola: reflexões, comentários e dicas de atividades. Belo Horizonte: Autêntica: 2007.

MERQUIOR, José Guilherme. 2ª ed. Estilo e épocas. In: Teoria literária. Ed Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: 1976.

[1] Faculdade de Educação

[2] Universidade Federal de Juiz de Fora

[3] A música foi escolhida de acordo com os sentimentos relatados na aula anterior, por exemplo, um aluno que havia desenhado uma bicicleta e disse que passeava "com o vento na cara" e que explicou tratar-se de uma sensação boa, teve como música tema os 15s iniciais da música tema do filme "Cantando na Chuva"(Freed/ Brown).

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