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1 O DIREITO DAS GENTES E OS DISCURSOS DE SUPRESSÃO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS: UMA ABORDAGEM JURÍDICA Gustavo Pinto de Sousa (UFRJ) Resumo: O presente trabalho constitui parte do projeto de doutorado intitulado “No tribunal das contendas: uma análise comparativa do direito das gentes no Brasil e Portugal 1839-1852”, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ. Para essa comunicação pretende-se analisar o debate brasileiro sobre o tráfico de escravos e sua posição em relação ao cenário internacional. Em linhas gerais, o fio condutor do texto é refletir como o Governo Imperial embasou-se no direito das gentes como uma forma de defesa da continuação do tráfico e em desdobramento da promoção da nação. Como definição de direito das gentes usamos a definição do político português Silvestre Pinheiro, quando esclarece que o direito das gentes “é o complexo dos princípios por que se devem regular os agentes dos diversos poderes políticos de cada nação, para que nenhum dano seja feito pelos seus membros aos direitos das outras nações. Chama-se também direito público externo ou direito das nações, e divide-se em direito das gentes positivo, e direito das gentes filosófico, natural ou universal” (PINHEIRO, 1834:312). Palavras-chave: Direito das Gentes; Tráfico de escravos; Nação. Abstract: This paper forms part of the doutorate project entitled "In the court of strife: a comparative analysis of international law in Brazil and Portugal 1839-1852" developed in the Doutorate course in Comparative History of UFRJ. For this communication is intended to analyze the Brazilian debate on the slave trade and its position on the international scene. In general, the thread of the text is a reflection of how the Imperial Government embasou on the law of nations as a way of defending the continued unfolding of trafficking and promoting the nation. How definition of the law of nations use the definition of the Portuguese political Silvestre Pinheiro, when clarifying the law of nations "is the complex of principles which should regulate the agents of the various political powers of each nation, so that no damage is done by its members the rights of other nations. Called also external public law or the law of

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O DIREITO DAS GENTES E OS DISCURSOS DE SUPRESSÃO DO

TRÁFICO DE ESCRAVOS: UMA ABORDAGEM JURÍDICA

Gustavo Pinto de Sousa (UFRJ)

Resumo:

O presente trabalho constitui parte do projeto de doutorado intitulado “No tribunal das

contendas: uma análise comparativa do direito das gentes no Brasil e Portugal 1839-1852”,

desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ. Para essa

comunicação pretende-se analisar o debate brasileiro sobre o tráfico de escravos e sua posição

em relação ao cenário internacional. Em linhas gerais, o fio condutor do texto é refletir como

o Governo Imperial embasou-se no direito das gentes como uma forma de defesa da

continuação do tráfico e em desdobramento da promoção da nação. Como definição de direito

das gentes usamos a definição do político português Silvestre Pinheiro, quando esclarece que

o direito das gentes “é o complexo dos princípios por que se devem regular os agentes dos

diversos poderes políticos de cada nação, para que nenhum dano seja feito pelos seus

membros aos direitos das outras nações. Chama-se também direito público externo ou direito

das nações, e divide-se em direito das gentes positivo, e direito das gentes filosófico, natural

ou universal” (PINHEIRO, 1834:312).

Palavras-chave: Direito das Gentes; Tráfico de escravos; Nação.

Abstract:

This paper forms part of the doutorate project entitled "In the court of strife: a comparative

analysis of international law in Brazil and Portugal 1839-1852" developed in the Doutorate

course in Comparative History of UFRJ. For this communication is intended to analyze the

Brazilian debate on the slave trade and its position on the international scene. In general, the

thread of the text is a reflection of how the Imperial Government embasou on the law of

nations as a way of defending the continued unfolding of trafficking and promoting the

nation. How definition of the law of nations use the definition of the Portuguese political

Silvestre Pinheiro, when clarifying the law of nations "is the complex of principles which

should regulate the agents of the various political powers of each nation, so that no damage is

done by its members the rights of other nations. Called also external public law or the law of

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nations, and is divided into positive law of nations, and of the philosophical right, natural or

universal gentes "(Pinheiro, 1834:312)

Keywords: Public International Law; The slave trade; Nation.

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Toda a mercadoria de Nação amiga he confiscável

sendo achada em hum navio inimigo.

Toda mercadoria inimiga achada em hum navio amigo

he confiscável igualmente, mas não em particular:

he necessário neste caso consultar

os tratados ou leis de represália,

conforme a determinação Directoria.1

No catálogo sobre Direito das Gentes, durante pesquisa na Biblioteca Nacional,

encontramos uma regra básica na relação de "busca e apreensão" entre navios de "nações

amigas e inimigas". Pelo princípio acima "toda mercadoria" encontrada em navios, sejam eles

amigos ou inimigos, são passíveis de confisco. A diferença na arte de interdição refere-se as

leis ou tratados estabelecidos entre as nações signatárias. Se há entre elas tratados ou

convenções as "mercadorias confiscáveis" são objeto de reclamações, petições e

reconsiderações, entretanto, quando inimigas era muito comum tratar a carga como objeto de

pirataria e com aparo na legislação do país que apreendeu.

Assim, uma das formas de interrelação entre as nações é o reconhecimento da lei

como uma forma de arbitragem de seus interesses. A existência do instrumento jurídico é o

que garante, na medida do possível, o arranjo de forças entre as nações na defesa de sua

soberania. Nesse sentido, o fio condutor desse trabalho é analisar o debate brasileiro sobre a

supressão do tráfico de escravos, principalmente, após o Bill Aberdeen e como o Direito das

Gentes pode ser um meio questionador, por parte dos políticos brasileiros, em reclamar sobre

as ferramentas de apreensão da Inglaterra aos navios brasileiros. Afinal, ambas nações

encontravam-se no regime da "amizade", todavia uma transportava, ilicitamente, os africanos

1 Biblioteca Nacional, Catálogo sobre Direito das Gentes - Loc 06, 2, 012

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em detrimento de uma legislação antitráfico de escravos, enquanto, a outra respaldava-se nos

"tratados ou leis de represálias."

Como pressuposto teórico-metodológico experimentaremos a noção de discurso de

Michel Foucault. Para ele “Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida

em que se apóiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou

formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e

explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para

os quais podemos definir um conjunto de condições de existência.” (FOUCAULT, 2009: 132)

Assim, tal noção será aplicada como uma possibilidade de compreender que a produção desse

discurso sobre o tráfico de escravos desenvolveu técnicas e ferramentas que contemplavam

relações de poder.

Por fim, as fontes apresentadas nesse trabalho se constituíram das obras acerca do

Direito das Gentes no século XIX e como elas tem relação com dos discursos de supressão do

tráfico de escravos. Ademais, a estrutura do texto encontra-se em dois alicerces: o estado atual

da pesquisa e seus questionamentos; e como a historiografia tem problematizado os discursos

de supressão do "ilícito comércio".

O direito das gentes e os discursos sobre o tráfico de escravos

Esse texto propõe-se analisar a perspectiva jurídica do direito das gentes, a partir dos

debates de interrupção do tráfico intercontinental de escravos, no Brasil. Nesse sentido,

traçou-se como fio condutor o impacto que a aprovação do bill2 Aberdeen, tive no jogo

político brasileiro após 1845. Ademais, levaremos em consideração o contexto português a

partir da querela iniciada com o bill Palmerston como horizonte de comparação.

2 A expressão bill de origem inglesa quer dizer projeto de lei, que passa pela aprovação do legislativo antes de

tornar-se um ato, ou seja, uma lei de fato sancionada pelo Executivo.

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Os projetos de leis favoráveis à abolição do tráfico de escravos promovida pela

Inglaterra instaurou uma questão contenciosa 3 entre Brasil, Inglaterra e Portugal. Com o

objetivo de resolver essa querela, Brasil e Portugal procuraram resolver via o debate do

direito das gentes à contenda internacional estabelecida a partir dos bills. Ademais, esse

projeto de pesquisa só possui sentido se compreendido a partir dos debates de supressão do

tráfico de escravos.

Portanto, excluem-se desse estudo os exames sobre a possibilidade de aquisição de

direitos para os africanos, ilicitamente, apreendidos durante o período. Assim, o fio condutor

é ativar como as querelas internacionais sobre o tráfico de escravos, materializados aqui, pelo

projeto de lei Palmerston e Aberdeen levaram os políticos brasileiros e portugueses a

defenderem suas nações tendo em vista o campo do saber do Direito Internacional.

Dessa forma, cabe uma indagação: o que esses homens entendiam por direito das

gentes? A partir dessa indagação, a noção de ius gentium de Cícero torna-se importante para a

construção do trabalho. A partir do contencioso estabelecido com o trafico intercontinental de

escravos, países como Brasil, Inglaterra e Portugal procurar solucionar do ponto de vista

jurídico seus problemas jurídicos e diplomáticos de relacionamento.

Em um manual sobre Direito Internacional Público, publicado em 1957, Gerson de

Britto Mello Boson aponta que, normalmente, entre os juristas e filósofos a definição para

Direito das Gentes e Direito Internacional são sinônimos. No entanto, ele destaca que alguns

estudiosos buscaram dar outras acepções para esse campo da ciência jurídica. Por exemplo,

Immanuel Kant qualificava essa disciplina como “Staatenrecht” (Direito dos Estados), Scelle

Bourquin entendia a área como um Direito plurinacional ou multinacional, e por fim, Jeremy

3 Contencioso em sentido jurídico está relacionado a ações que são passíveis de contestação ou litígio. Fonte:

http://www.jusbrasil.com.br/topicos/297374/contencioso

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Bentham em seu campo utilitarista da filosofia compreendia tal definição por Direito

Internacional (International Law). 4

Para conceituar o Direito das gentes ou Internacional nesse cenário histórico, parto da

definição do político português Silvestre Pinheiro 5 , que publicou em Paris em 1834, o

trabalho Manual do Cidadão em um governo representativo ou Princípios de Direito

Constitucional, Administrativo e das Gentes, no qual ele abre a vigésima quinta conferência

de seu livro com a questão: O que é direito das gentes? A resposta de Pinheiro:

“É o complexo dos princípios por que se devem regular os agentes dos diversos poderes políticos de

cada nação, para que nenhum dano seja feito pelos seus membros aos direitos das outras nações.

Chama-se também direito público externo ou direito das nações, e divide-se em direito das gentes

positivo, e direito das gentes filosófico, natural ou universal.”6 (FERREIRA, 1834, p312)

Assim, o Direito das Gentes ou Internacional regido é um direito das gentes de caráter

positivo, no qual seu campo de interesse “é o complexo dos princípios sobremencionados que

as diversas nações sem quebra de sua independência têm reconhecido, ou expressadamente

pelos tratados e convenções ou tacitamente pelos usos e costumes.”7 Dessa maneira, esse

projeto utiliza a noção de Direito das Gentes como uma solução, inicialmente, dialógica e

diplomática das nações resolverem atos contenciosos ou suas querelas jurídicas. Nesse

tribunal das contendas Brasil e Portugal perseguiram via as matrizes do Direito Internacional

Público questionar os projetos de leis contra a supressão do tráfico de escravos capitaneada

4 Apesar da variedade de nomenclatura, Gerson Boson aponta que os vocábulos só diferem em sua grafia, mas

que o sentido é o mesmo. Em suas palavras: “Assim, as confusões só podem surgir à base da forma e não do

fundo, à base dos vocábulos e não do conceito ou conteúdo significativo, de sorte que podemos utilizar

indistintamente todas as expressões, como sinônimas que são.” (BOSON, 1957: 76) 5 Silvestre Pinheiro é um filósofo português. Sua orientação filosófica política orienta-se pelo princípio do

constitucionalismo. Em seu trajetória de vida veio para o Brasil junto com a família real, onde estabeleceu

debates sobre as ideias de liberalismo e constitucionalismo. 6 FERREIRA, Silvestre. Manual do cidadão em um governo representativo, ou principios de direito

constitucional, administrativo e das gentes. Paris : Rey e Gravier - J. P. Aillaud, 1834. Vol 2 p 312 7 Ibidem p. 312-313.

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pela Grã-Bretanha. Para isso, faço uma breve contextualização do problema e da

problemática.

Dessa maneira, o problema central da pesquisa é: como o debate jurídico do Direito

das Gentes auxiliou nas relações e no jogo político da supressão do tráfico de escravos?

Decorrente da questão é pertinente indagar a partir do cruzamento da documentação de que

forma o Direito Internacional, como um campo do discurso jurídico, buscou ordenar e

direcionar o contencioso estabelecido? E, por fim, como o corpo político brasileiro e

português utilizou o saber acerca do direito das gentes para normatizar e se defender das

investidas britânicas? E quais alternativas ou projetos jurídicos a contenda sobre o tráfico de

escravos procurou incentivar, no Brasil e em Portugal? Como uma experimentação do

problema, faço abaixo uma pequena contextualização para melhor compreender a constituição

do tribunal das contendas.

No início do século XIX, a questão escravista foi colocada na pauta política de

diferentes nações. O Parlamento britânico apresentou, em 1807, a extinção do tráfico de

escravos para suas colônias. Esse cenário político foi propício para que alguns abolicionistas

britânicos não tardassem na criação de um grupo de oposição à escravidão, a intitulada Anti-

slavery Society. Segundo Leslie Bethell e José Murilo de Carvalho “esse grupo de

abolicionista projetou-se sob a plataforma dos quakers8, que entendiam a redução de outros

homens à escravidão como uma prática não cristã”9. A Anti-Slavery Society nascia com o

objetivo de promover uma abolição gradual e ampliar os debates para a extinção da

escravidão.

8 A designação para concepção de quakers vincula-se aos grupos de matriz do protestantismo britânico no século

XVII. Suas orientações religiosas tinham como base o pacifismo, o modo de vida simples e a luta pela igualdade,

onde inclui-se os horizontes do abolicionismo britânico no século XIX. 9

BETHELL, Leslie; CARVALHO, José Murilo de. Joaquim Nabuco e os abolicionistas britânicos:

correspondência, 1880-1905. Estud. Av. [on-line], v. 23, n. 65, p. 207-229, 2009.

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Essa movimentação civil10 e política na Inglaterra contribuíram de certa forma para

disseminar e fortalecer os preceitos de filantropia, humanidade e progresso pelas demais

nações. Em White dreams, Black Africa, Howard Temperley analisou a criação da Sociedade

de Civilização Africana, em 1840. Para ele, essa Sociedade divulgava o ideal de filantropia a

partir das instituições religiosas como uma forma de promover a humanidade e o progresso

entre os povos. De acordo com o político britânico Thomas Fowell Buxton “o cristianismo, o

comércio e a energia a vapor podiam fazer milagres”11 na condução do continente africano

aos horizontes do progresso.12

Sobre a direção britânica na supressão ao tráfico de escravos, Tâmis Parron em

diálogo com o trabalho de Temperley, observa:

“a Society for the Extinction of the Slave Trade and for the Civilization of

Africa fundada por Thomas Follow Buxton, e a British and Foreign

Antislavery Society, de Joseph Sturge. O método da primeira consistia na

introdução do cristianismo e do comércio lícito no continente negro; o da

segunda, no banimento do cativeiro na América.”13(PARRON, 2011, p197)

Assim, tanto a organização de Buxton e Sturge ambicionavam formas de supressão do

tráfico negreeiro para América, seja através de incentivos locais na África ou no refinamento

da fiscalização marítima ou na promoção de campanhas abolicionistas no continente

americano.

10

Esse projeto leva em consideração de direito civis expostas por José Murilo de Carvalho, no qual “direitos

civis são os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade perante a lei. Eles se desdobram na garantia de

ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se [...] e a própria existência da

sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo. (CARVALHO, 2010:9) Nesse sentido, essas

organizações partiram antes da sociedade para o mundo político. (Grifos) 11

TEMPERLEY, Howard. White dreams, Black Africa. The Antislavery Expedition to the Niger 1841-1842,

Yale University Press, New Haven e London, 1991. P. 23 (tradução livre) 12

No livro “White dreams, Black Africa”, Temperley estuda a organização política e as expedições no Delta do

Rio Niger no século XIX. O autor destaca os projetos britânicos de promoção do humanitarismo e da filantropia

britânica no continente africano. 13 PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2011. p 197.

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Por outro lado, os historiadores como Alberto da Costa e Silva e Jaime Rodrigues

questionam o sentimento abolicionista britânico alegando, que tal nação tinha interesses

econômicos desfavoráveis à continuação do tráfico. Como observou o embaixador Costa e

Silva “a Inglaterra que havia extinguido o tráfico, em 1807, viu o preço de seu açúcar, nas

Antilhas, disparar no mercado, enquanto, o açúcar brasileiro ainda era produzido por uma

mão-de-obra escrava e muito mais acessível em termos de valor.” 14 Nesse sentido, a

prioridade da Inglaterra era defender seus interesses econômicos ante as ações humanitárias e

abolicionistas.

Costa e Silva compreende com muito cuidado os ideias de “humanidade” e

“filantropia” utilizado pelos britânicos e sua historiografia. Em suas palavras:

“A Grã-Bretanha havia praticado, de modo intensivo e sistemático, todas as

formas que tomou, nas Américas, o regime escravista – todas aquelas formas

que Eric Williams [em seu clássico Capitalism and Slavery] descreve com

indignada precisão. Mas as novas formas de capitalismo condenavam o

sistema colonial de até então e começavam a substitui-lo por novos tipos de

domínio.[...] As mesmas forças que haviam encorajado o tráfico negreeiro

começaram a condená-lo”15 (ALMEIDA, 2005, p.310)

As palavras do embaixador Alberto da Costa e Silva atestam o “lugar de fala”16 que

esse trabalho compartilha. Para ele ante das questões humanitárias e filantrópicas, as políticas

de extraterritorialidade britânica foram motivadas pela defesa de seus interesses econômicos.

Como descreveu o embaixador o “oitocentos é também o século em que o Reino Unido

procura fazer do Atlântico um mar inglês17; o século em que se destrói o tráfico triangular

14

SILVA, Alberto da Costa e, Um rio Chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira: Ed.UFRJ, 2003. p. 53. 15 Apud: ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações

internacionais no império. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Brasília: Funag, 2005. p 310. 16

Designação utilizada pelo historiador Michel de Certeau. Cf: CERTEAU, Michel de. A escrita da história.

Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982 17

Grifos meus

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entre a Europa, a América e a África e em que se desfazem as ligações bilaterais entre os dois

últimos continentes.”18 Assim, antes de questionar a desumanização provocada pelo tráfico de

escravos, a Inglaterra operou uma direção imperialista em diferentes partes do mundo.19

Apesar dessa ressalva historiográfica, a Anti-slavery Society conseguiu compartilhar

seus interesses contrários ao tráfico de escravos para o plano internacional. No caso das

relações internacionais entre a Inglaterra e o Império Luso-brasileiro, tivemos a assinatura de

diferentes acordos ou tratados, tais como 1810, 1815 e 181720 com vistas a combater o

comércio de escravos, oriundos da África. Ainda no âmbito das relações internacionais, o

alvorecer do Foreign Anti-slavery Society, em 17 de abril de 1839, trouxe às nações

brasileiras e portuguesas tensões políticas, tanto externas como internas, no que tange a

perpetuação ilícita do tráfico de escravos.

Para Bethell e Carvalho, o Foreign Anti-Slavery Society tinha como escopo a

intensificação, ou melhor, a internacionalização da luta contra a escravidão. Para divulgar

essas ideias foram organizadas convenções abolicionistas para discutir e traçar medidas que

desarticulassem o tráfico de escravos. Para o grupo do Foreing Anti-slavery Society o

emprego da Marinha Britânica era estratégico no combate ao infame comércio, e um dos seus

maiores defensores era o whig21 lord Palmerston. No cenário político britânico Palmerston,

ministro do exterior, ia além dos debates promovidos pelo Foreign Anti-slavery Society. Para

respaldar e organizar as ações contrárias ao transporte ilícito de escravos, ele preparava 18

Apud:ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações

internacionais no império. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Brasília: Funag, 2005. p 61 19

Após 1815, a Inglaterra tinha grande influência nas políticas internacionais, principalmente, na formulação de

seu império, desde a Ásia, África e na América. Para caracterizar a simbologia do Império Britânico a

historiadora portuguesa Ana Cristina Fonseca Nogueira da Silva descreve: “O Império britânico, de inspiração

helênica, descentralizado [...]” (SILVA, 2009:70) Assim, a autora indica a multiplicidade de culturas presentes

sobre dominação britânica. 20

Tendo em vista os três tratados assinados durante a existência do Império luso-brasileiro, destacamos suas

competências: Tratado Anglo-português de 1810 prometia a futura extinção do tráfico e limitava o tráfico luso-

brasileiro à costa da Mina e às zonas da África sobre que Portugal reivindicava soberania. Tratado de 1815,

negociado no Congresso de Viena, declarava o tráfico de escravos ilegal ao norte do Equador; e o Adicional de

1817, por convenção adicional, concedia à Marinha de guerra britânica o direito de visita sobre os navios

portugueses suspeitos de transportarem ou exportarem africanos de zonas proibidas. Cf Valentim Alexandre,

Chichelli Pires e Katia Mattoso 21

Facção política dentro do Parlamento inglês, vinculado ao liberalismo e ao constitucionalismo.

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instrumentos jurídicos para policiar embarcações suspeitas de carregar, ilicitamente, negros de

diferentes “nações” africanas.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que os dois projetos de leis causaram,

paulatinamente, um isolamento político do Brasil e de Portugal perante as demais nações.

Acuados pelas Inglaterra, as nações acusadas de promoção do tráfico foram buscar apoio para

sua causa em países como França, Estados Unidos e Espanha. Todavia, essas nações já

integravam as conferências abolicionistas lideradas pela Inglaterra, além de promoveram

patrulhas na costa da África22 para apreensão de tumbeiros23.

Em julho de 1839, a Câmara dos Lordes recebeu o projeto de lord Palmerston para a

aprovação de um projeto de lei ou bill, que concedia jurisprudência à Inglaterra para fiscalizar

embarcações com indícios de transportar escravos. Em sua primeira leitura na Câmara, o

projeto foi barrado com alegação de que tal proposta era danosa aos princípios de soberania

das outras nações. Alguns políticos como o duque Wellington qualificavam a medida como

um precedente para uma “guerra universal.”24 Entretanto, a resistência política na Câmara dos

Lordes não foi suficiente para conter a aprovação do bill de lord Palmerston, em 24 de agosto

de 1839. Nas palavras de Leslie Bethell “os oficiais da Marinha Britânica estavam instruídos

para capturar navios portugueses e outros navios sem nacionalidade para mais próximo vice-

almirantado britânico.”25 Assim, a partir dessa medida a Inglaterra se dava ao direito de julgar

os navios com bandeira portuguesa em seus tribunais e de acordo com a legislação britânica.

Em relação ao Brasil, o Ministro do Exterior o tory26 lord Aberdeen aprovou, em 8 de

agosto de 1845, um projeto de lei semelhante ao ocorrido com Portugal, em 1839. Por esse

ato, a Real Marinha Britânica autorizava os oficiais a fiscalizar os navios brasileiros suspeitos

22

Sobre o patrulhamento na costa da África ver: FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Brasil e Angola no tráfico

ilegal de escravos, 1830-1860. In: PANTOJA, Selma; SARAIVA, José Flávio Sombra (Orgs.). Angola e Brasil

nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 185 23

Designação para os navios que transportavam, ilegalmente, africanos como escravos. 24

BETHELL, Leslie. Britain, Portugal and the suppression of the Brazilian slave trade: the origins of Lord

Palmerston’s Act of 1839. In:English Historical Review, 1965. p.778. (tradução livre) 25

Op. Cit p.781. 26

Facção política dentro do Parlamento inglês, vinculado as matrizes conservadoras.

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de carregar, ilegalmente, escravos e concedia jurisprudência de julgar as embarcações sob

bandeira brasileiras em tribunais britânicos. Diferente do bill Palmerston, o bill Aberdeen

encontrou raras resistências na Câmara dos Lordes. O duque Wellington que teceu

comentários de que o bill Palmerston incitava uma “guerra total” dizia que o bill Aberdeen

era legítimo e amparado legalmente, nas bases do tratado anglo brasileiro de 1826. Conforme

observou Leslie Bethell “do ponto de vista de Aberdeen, o seu bill, embora sob certos

aspectos moldado no ano de 1839, não podia ser alvo da mesma objeção: permitia

simplesmente ao executivo exercer poderes que o Brasil concedera à Inglaterra pelo primeiro

artigo do tratado de 1826.”27

Assim, o artigo determinava a captura de qualquer súdito brasileiro na atividade de

traficar escravos em alto-mar, qualificando essa prática como pirataria.28 Nesse sentido, o

Império do Brasil precisou repensar a situação do tráfico negreiro para que as incursões

britânicas não ferissem o ideal de nação do “jovem” Império do Brasil.29

Em Lisboa, o recebimento da aprovação do bill criou um clima de tensão política entre

Portugal e a Inglaterra. Como caracterizou Valentim Alexandre, o bill Palmerston para

Portugal “tratava-se de um verdadeiro ato de guerra, embora não declarada.”30 Quando houve

a aprovação do bill, a monarquia constitucional portuguesa era dirigida pelo grupo

setembrista.31 Segundo António Martins da Silva “os líderes setembristas como o visconde de

27

BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Edusp, 1976 p.247 28

Op. Cit. p.246. 29

Sobre o processo de consolidação do Estado Nacional brasileiro ver: MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo

Saquarema: formação do. Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1990. CARVALHO, José Murilo de. A

construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: a política imperial. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003. RIBEIRO, G. S. (Org.) . Brasileiros e cidadãos: modernidade política, 1822-1930.

1. ed. São Paulo: Alameda, 2008 30

ALEXANDRE, Valentim. Portugal e a abolição do tráfico de escravos (1834-1851) In: Revista Análise

Social, 1991. p.319. 31

Segundo António Manuel Hespanha no trabalho “O Constitucionalismo Monárquico Português, breve síntese”

o grupo setembrista surgiu da Revolução de 9 de Setembro de 1836. Em consequência dessa Revolução foi

redigida a Carta de 1838. Segundo Hespanha esse texto constitucional era baseado na consagração da soberania

nacional. Sem suas palavras: “os principais traços desta constituição são: (i) declaração expressa do caráter

nacional da soberania; (ii) regresso à divisão dos poderes em três; (iii) adoção do sistema bicameral, sendo a

câmara baixa por deputados eleitos por sufrágio censitário, mas direto; (iv) abolição do Conselho de Estado.

(Hespanha, 2012:508) acertar referencia

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13

Sá Bandeira 32 e Manuel Silva Passos 33 procuraram a via nacional para discutir as

interferências britânicas nas causas portuguesas.”34

Numa sessão na Câmara dos Deputados a respeito do projeto de lei de lord

Palmerston, o deputado português Silva Sanches acusava a Inglaterra de violar o respeito das

relações entre os Estados. Em sua fala no Parlamento:

“Taes são as expressões, que ao Governo Portuguez mandou transmittir ao

Governo da nossa mais antiga alliada. Julguem cada um, se o nosso maior

inimigo se expressaria de modo mais offensivo a independencia da Nação

Portuguesa! E pois que sem escrupulo, e com flagrante abuso, e com a mais

insólita violação do Direito das gentes, se nos nega o direito de discutir, e

estipular, e se ataca por conseguinte a liberdade de Portugal, e as

prerrogativas da Corôa.”35(CAMARA DOS DEPUTADOS, 1840)

Com essas palavras, Sanches iluminava a memória dos deputados portugueses de que

a Inglaterra que antes fora uma aliada, a partir de agora, passava para o terreno da inimizade

fomentando a animosidade ao rebaixar os interesses de Portugal as determinações de Sua

Majestade Britânica. Além do mais, denunciava a rigidez dos britânicos em negociar um novo

tratado, que fosse respeitoso para as duas nações, logo feriando o conceito básico do Direito

das Gentes como entendido na definição de Silvestre Pinheiro.

No Império do Brasil, a elite política assistia com cautela a política de

extraterritorialidade contra Portugal. Segundo o historiador Ilmar Rohloff de Mattos, os

membros da direção saquarema36 qualificavam as ações britânicas como um instrumento de

32

Nobre político português ocupou a direção do Conselho de Ministros Português entre 1837-1839, durante a

aprovação do projeto de lei de Lord Palmerston. Escreveu também “O Tráfico da Escravatura e o Bill de lord

Palmerston”, que será utilizado como fonte nesse trabalho. 33

Junto com Sá Bandeira, Silva Passos foi um dos articulista da Revolução de 1836 de caráter nacionalista e

liberal. Defensor da Revolução de 1820 ou Vintismo era um dos responsáveis pela sua reedição na redação da

Carta de 1838. 34

Cf. MATTOSO, José. História de Portugal, vol.5, Lisboa: Estampa, s.d. 35 Anais da Camara dos Deputados p 151 36

Grupo político considerado conservador na direção política do Estado Brasileiro. Na historiografia brasileira

autores como Ilmar Mattos e José Murilo de Carvalho, estudaram em “O Tempo Saquarema” e “A construção da

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desarmonia entre os “Povos”. Desse modo, a elite política brasileira “caracterizava a política

britânica de atentatória do Direito das Gentes, da Soberania Nacional e da dignidade da

Nação.”37

O bill Aberdeen tornou as relações diplomáticas entre Brasil e Inglaterra animosas.

Antes disso, as duas nações polarizavam acusações sobre o tráfico de escravos e a respeito das

condições jurídica e social dos africanos livres, como no caso dos comissários John Samo e

Frederick Grigg. “Eles dirigiram um relatório ao Lord Abeerden acusando o Governo

brasileiro em tratar os africanos livres pior do que os escravos e que o tráfico de escravos era

recorrente nos portos brasileiros. Em contrapartida, o curador de africanos livres Luis Alves

de Mascarenhas e o ministro da justiça Antonio Paulino Limpo de Abreu, para comparar o

tratamento dado aos africanos livres criticado por Samo e Grigg, acusavam os britânicos de

tratar a classe operária britânica, tão pior quanto, os brasileiros cuidavam dos africanos

livres.”38

Quando o comunicado de aprovação do bill Aberdeen chegou ao Brasil, uma agitação

política ocorreu dentro do gabinete político de D. Pedro II. O governo reclamava que a

medida era uma ofensa aos princípios da nacionalidade e soberania. “O ministro Limpo de

Abreu, por exemplo, sugeria que o país deveria cobrar da Inglaterra uma indenização por

qualquer dano, que o comércio brasileiro pudesse sofrer com as novas medidas promovidas

pela Inglaterra.”39

ordem” a importância desse grupo político, com laços estabelecidos com os grandes comerciantes do Império,

para a direção nacional. Tâmis Parron em “A política da escravidão no Império do Brasil” examina a relação

desse grupo com as facções escravistas e dos traficantes negreeiros nas redes do tráfico intercontinental de

escravos. 37

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: formação do. Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1990.

P235. 38

Os historiadores Leslie Bethell e Beatriz Gallotti Mamigonian estudam essa caso nos seguintes textos:

BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Edusp, 1976 e MAMIGONIAN,

Beatriz G. . A Grã-Bretanha, o Brasil e as "complicações no estado atual da nossa população": revisitando a

abolição do tráfico atlântico de escravos (1848-1851). In: IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil

Meridional, 2009, Curitiba. IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional - Textos Completos.

Florianópolis : Laboratório de História Social do Trabalho e da Cultura, 2009. 39

BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Edusp, 1976 p.258.

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Dessa forma, observou-se que o debate sobre o direito das gentes, de forma

comparativa, aqueceu no cenário político brasileiro e português a discussão jurídica sobre a

possibilidade de projetos de trabalho livre. No caso português, o Visconde de Sá Bandeira

alertava a necessidade de Portugal manter suas possessões ultramarinas na África, pois a

coesão do Império Português era fundamental. Assim, o ilustre visconde observou “tendestes

a supressão do tráfico, e a promoverem o desenvolvimento da indústria, da cultura, do

comércio lícito e da civilização daquelas colônias.”40

No Brasil, a interrupção do tráfico não presumiu o fim da escravidão. Robin

Blackburn no livro – A queda do escravismo colonial – avaliou que a dependência da mão-de-

obra escrava era o argumento utilizado para legitimar o prosseguimento da escravidão. Em

suas palavras:

“a presença de escravos em quantidade grande e talvez crescente e sua

contribuição vital para a economia de exportação continuava a ser um fator

inibidor. Por outro lado, a permanência do comércio negreiro era fonte

latente de controvérsia sob a superfície da vida política.”41 (BLACKBURN,

2002, p.436)

As controvérsias políticas indicadas por Blackburn apontam para um abolicionismo

“moderado e prudente” que enxergava “o fim à importação dos africanos”42 ante a extinção

do comércio de escravos, uma vez que, após a lei de 1850 o tráfico interno se intensificou. É

nesse “contexto das controvérsias” pretende-se mostrar o uso do debate político acerca do

direito das gentes e como seu impacto gerou propostas de projetos de trabalho livre após o

encerramento do tráfico.

40

Visconde de Sá Bandeira. O Tráfico da escravatura e o Bill de lord Palmerston. Tip José Baptista Morando.

Lisboa, 1840. 41 BLACKBURN, Robin. A Queda do Escravismo Colonial: 1776-1848. Tradução de Maria Beatriz de Medina.

São Paulo: Record, 2002. p.436-437. 42

Op.cit. p437.

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Por fim, cabe justificar o recorte temporal do trabalho. A escolha pelo período, entre

1839 e 1850 tem como razão o decreto do projeto de lei de lord Palmerston até a aprovação da

segunda lei contra o tráfico, em 1850, pelo saquarema Eusébio de Queirós. A contenda entre

Portugal e Inglaterra durou, basicamente, quatro anos, sendo encerrada em 03 de julho de

1842, quando o Foreign Office sob responsabilidade de lord Aberdeen resolveu renegociar

um tratado com Portugal, revogando a lei Palmerston.43

Com o Brasil, a questão se arrastou um pouco mais. Segundo Paulo Roberto de

Almeida a questão entre Brasil e Inglaterra se arrolou por trinta anos e somente, em 1869, a

Inglaterra revogava a lei Aberdeen. Conforme seu texto: “A Lei Aberdeen, contudo, foi

revogada pelo Parlamento britânico, apenas em 1869, nunca conjuntura de conciliação de

interesses entre os dois países.”44 Já para Gilberto Guizelin, a contenda havia se encerrado,

em 1852. Nas palavras dele: “em abril de 1852, o governo britânico restringia a vigência do

Bill Aberdeen e emite notas ao Almirantado e seus demais representantes estacionados no

Atlântico Sul de que as perseguições contra os navios brasileiros só continuariam, dali por

diante, em alto-mar.”45 Já os saquaremas acreditavam ter resolvido a situação com a lei de 4

de setembro de 1850, que desarticulava o tráfico de escravos. Em suma, as cortinas dessa

trama encerra-se com o recorte proposto por Guizelin e também pela publicação do manual

jurídico de Pedro de Autran da Malta Albuquerque, em 1851, intitulado Elementos do Direito

das Gentes.

43

Segundo Pedro Manuel Luís de Freitas “a vitória do cartismo levou em 1842 à celebração de um tratado sobre

a abolição do tráfico de escravos entre Portugal e Inglaterra.” Sobre o cartismo, António Manuel Hespanha

qualifica que após o período setembrista, o retorno a Carta pelo grupo cabralista a Carta era uma espécie de meio

termo entre os anseios dos revolucionários vintistas e os defensores de uma restauração absolutista. Nas palavras

de Hespanha: “Contra o absolutismo, a Carta representava-se como um documento que instituía a monarquia,

senão representativa, pelo menos constitucional. Contra o constitucionalismo democrático radical, ela constituía-

se como a salvaguarda da prerrogativa régia, a garantia contra o governo de um só grupo e de uma só câmara,

como o modelo capaz de combinar os diversos interesses presentes no corpo da Nação, sob a égide da religião,

da ordem e da autoridade social estabelecida.” (HESPANHA, 2012: 509) 44

ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações internacionais no

império. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Brasília: Funag, 2005.p 343 45

GUIZELIN, Gilberto. Comércio de almas e política externa. Londrina: Eduel, 2013. p.218.

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