O Doador de Memórias 2 - A Escolhida - Lois Lowry

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continuação de o doador

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  • Nora, uma rf de perna torta, vive em um mundo onde os fracos so deixados delado. A partir do momento da morte de sua me, ela teme por seu futuro at que perdoada pelo Conselho de Guardies. A razo q ue Nora tem um dom: seus dedospossuem a habilidade de bordar de forma extraordinria. Ela supera a habilidade de suame, e lhe cabe a tarefa que nenhum outro membro da comunidade pode fazer.Enquanto seu talento a mantm viva e traz certos privilgios, ela percebe que estrodeada de misterios e segredos, mas ningum deve saber sua inteno de descobrir averdade sobre o mundo.

  • 1 Me?No houve resposta. Ela no esperava que houvesse. Fazia quatro dias que sua me

    estava morta e Kira percebia que os ltimos resqucios do seu esprito j se dissipavam. Me? repetiu ela, baixinho, para o que quer que estivesse partindo.Achava que conseguia senti-lo ir, como possvel sentir o leve sussurrar de uma brisa

    noturna.Agora ela estava completamente sozinha. Kira experimentou a solido, a incerteza e

    um grande pesar.Aquela tinha sido sua me, a mulher afetuosa e cheia de vida que se chamava Katrina.

    Ento, aps uma doena breve e inesperada, se tornara o corpo de Katrina, aindacontendo o esprito relutante. Depois de quatro crepsculos e quatro alvoradas, o espritotambm partiu. Agora, restava apenas a carne. Coveiros viriam para jogar uma camadade terra sobre o cadver, mas ainda assim ele seria devorado pelas criaturas escavadorase famintas que apareciam noite. Os ossos se espalhariam, apodreceriam e seesfacelariam, tornando-se parte da terra.

    Kira enxugou rapidamente os olhos, que haviam se enchido de lgrimas de repente.Amava a me e sentiria muita falta dela, mas precisava ir embora. Fincou o cajado nosolo macio, apoiou-se nele e se levantou.

    Olhou ao redor, indecisa. Ainda era jovem e no tivera nenhuma experincia com amorte, no em sua pequena famlia composta apenas de me e lha. claro que j viraoutros cumprirem os rituais. Podia ver alguns agora, no amplo e malcheiroso Campo daPartida, reunidos em volta dos entes queridos, cuidando dos espritos relutantes. Elasabia que uma mulher chamada Helena estava ali, velando o esprito do seu beb, quehavia nascido prematuro. Helena tinha chegado ao Campo apenas no dia anterior. Noera necessria uma viglia de quatro dias para os bebs; seus espritos frgeis, recm-chegados, dissipavam-se rapidamente. Assim, Helena logo voltaria para junto da famliano vilarejo.

    J Kira no tinha mais famlia nem lar. O casebre que dividia com a me foraqueimado. Era o que sempre acontecia em caso de doena. A habitao humilde, o nicolugar que Kira j havia chamado de lar, no existia mais.

    De onde estivera sentada junto ao corpo, ela pde ver a fumaa ao longe.Enquanto observava o esprito da me partir, tambm vira as cinzas de sua infncia

    subirem, rodopiantes, em direo ao cu.Tremeu levemente de medo. O temor sempre zera parte da vida das pessoas. Por

    causa do medo, elas construam abrigos, buscavam comida e plantavam hortas. Pelo

  • mesmo motivo, armazenavam armas, precavidas.Havia o medo do frio, da doena, da fome, das feras.E foi o medo que a impulsionou naquele momento, apoiada em seu cajado. Ela lanou

    um ltimo olhar para o corpo sem vida que um dia abrigara sua me e perguntou-seaonde poderia ir.

    Kira pensou em reconstruir a casa. Se conseguisse ajuda, por mais improvvel queisso fosse, no demoraria muito para erguer um casebre, especialmente naquela poca doano, incio do vero, em que os galhos das rvores estavam moles e a lama era grossa eabundante margem do rio. J tinha visto muitas vezes outras pessoas construrem casase achava que conseguiria edicar algum tipo de abrigo para si mesma. As quinas e achamin talvez no cassem retas. O telhado seria difcil, pois sua perna ruimpraticamente a impedia de subir aonde quer que fosse. Mas ela daria um jeito.Encontraria uma forma de construir um casebre. Depois, arranjaria um modo de ganhara vida.

    O irmo de sua me passara dois dias junto dela no Campo, no velando Katrina, massentado em silncio ao lado do corpo da prpria mulher, a geniosa Solora, e dobebezinho deles, que era novo demais at para ter um nome. Ela e o tio trocaram ummeneio de cabea. Porm, ele foi embora logo aps cumprir seu tempo no Campo daPartida. Precisava cuidar de seus outros dois pequenos. Eles ainda eram novos, seusnomes ainda tinham apenas uma slaba: Dan e Mar. Talvez eu possa cuidar deles , pensouKira por um instante, tentando encontrar o prprio futuro dentro do vilarejo. Contudo,mesmo enquanto o pensamento ainda surgia, ela j sabia que no lhe dariam permisso.Os pequenos de Solora seriam dados, distribudos entre aqueles que no tivessemnenhum. Pequenos saudveis e fortes eram valiosos; se bem treinados, poderiamcontribuir para as necessidades da famlia e seriam muito desejveis.

    Ningum desejaria Kira. Ningum jamais a havia desejado, a no ser sua me.Katrina contara vrias vezes a Kira a histria do seu parto o nascimento de uma meninasem pai e com uma perna torta e de como lutara para mant-la viva.

    Eles vieram buscar voc sussurrou a me para ela certa noite, no casebre ondemoravam, com o fogo bem alimentado e brilhante. Voc tinha um dia de idade, aindanem havia recebido o nome infantil de uma slaba s...

    Kir. Isso mesmo: Kir. Eles me trouxeram comida e pretendiam lev-la embora para o

    Campo...Kira estremeceu. Era a lei, a tradio e um gesto de misericrdia devolver uma criana

    sem nome e imperfeita terra antes de seu esprito poder preench-la e torn-la humana.Mas a ideia a enchia de pavor.

    Katrina acariciou os cabelos da filha.

  • Eles no fizeram por mal lembrou-lhe a me.Kira assentiu. No sabiam que era eu. No era voc, no ainda. Conte de novo por que no deixou que eles me levassem sussurrou Kira.A me suspirou, lembrando-se daquele dia. Eu sabia que no teria outra criana. Seu pai fora levado pelas feras.Fazia vrios meses que ele havia sado para caar e nunca mais voltara.Ento eu no daria luz novamente.Ela fez uma pausa e prosseguiu: Bem, talvez eles tivessem me dado outra criana

    um dia, um rfo para eu criar. Mas quando segurei voc nos meus braos... mesmo queseu esprito ainda no tivesse chegado e sua perna fosse to torcida para o lado erradoque voc obviamente nunca conseguiria correr... seus olhos brilhavam. Eu pude ver oincio de algo extraordinrio neles. E seus dedos eram longos...

    E fortes. Minhas mos eram fortes acrescentou Kira, satisfeita.J tinha ouvido a histria vrias vezes; sempre que tornava a escut-la, olhava para as

    prprias mos fortes com orgulho.A me riu.

    To fortes que agarraram meu polegar e no queriam soltar mais.Depois de sentir a gana com que voc puxava meu dedo, no pude deixar que a

    levassem embora. Simplesmente me neguei. Eles ficaram irritados. Ficaram. Mas eu fui rme. E meu pai ainda estava vivo, claro. Ele j era velho,

    tinha quatro slabas, e fora o lder do nosso povo, o guardio-chefe, durante muitotempo. E o seu pai tambm teria sido um lder muito respeitado se no tivesse morridodurante a longa caada. J o haviam escolhido para ser guardio.

    Diga o nome do meu pai para mim pediu Kira.Katrina sorriu luz do fogo. Christopher. Voc sabe. Mas gosto de ouvi-lo. Gosto de ouvir voc falar o nome dele. Quer que eu continue?Kira fez que sim. Voc foi firme. Insistiu relembrou a menina. Mesmo assim, eles me fizeram prometer que voc no se tornaria um fardo. Eu no me tornei, certo? Claro que no. Suas mos fortes e sua inteligncia compensam a perna defeituosa.

    Voc uma ajudante robusta e convel no galpo de tecelagem; todas as mulheres que

  • trabalham l dizem isso. E a perna torta no tem nenhuma importncia se levarmos emconta sua sagacidade. As histrias que voc conta aos pequenos, as imagens que cria compalavras... e com as linhas! Os bordados que faz! Ningum nunca viu nada parecido.

    So muito melhores do que qualquer coisa que eu poderia fazer! Sua me riu. Chega. No me faa bajul-la. Lembre-se de que voc ainda uma menina, comtendncia a ser teimosa. Esta manh mesmo, Kira, voc se esqueceu de arrumar a casa,embora tenha me prometido que faria isso.

    No me esquecerei amanh garantiu Kira, sonolenta, aconchegando-se junto me na esteira de dormir suspensa. Ela acomodou a perna torta em uma posio maisconfortvel. Prometo.

    Mas agora no havia ningum para ajud-la. No lhe restava nenhuma famlia e elano era uma pessoa especialmente til para o vilarejo. Seu trabalho dirio era ajudar nogalpo de tecelagem, catando os retalhos e sobras, mas a perna deformada diminua seuvalor como trabalhadora e, futuramente, at como parceira.

    Sim, as mulheres gostavam das histrias fantsticas que ela contava para entreter ospequenos irrequietos e admiravam seus pequenos bordados. Mas essas coisas eramdistraes, no trabalho.

    O sol no estava mais a pino e projetava no Campo da Partida as sombras das rvorese arbustos de espinhos que o cercavam. Passava, e muito, do meio-dia. Sua incerteza azera car mais tempo do que devia por ali. Com cuidado, reuniu as peles sobre as quaisdormira durante aquelas quatro noites em que velara o esprito da me. Sua fogueira,agora uma mancha escura no cho, reduzira-se a cinzas frias. Seu cantil estava vazio eno havia comida alguma.

    Devagar, usando o cajado, mancou em direo trilha que conduzia de volta aovilarejo, agarrando-se tnue esperana de que talvez ainda fosse bem-vinda l.

    Pequenos brincavam nos limites da clareira, correndo pelo cho coberto de limo.Agulhas de pinheiros estavam presas aos seus corpos nus e aos seus cabelos. Ela sorriu.Reconheceu cada um deles. L se encontrava o lho de cabelos loiros da amiga de suame; ela recordava seu nascimento, havia dois solstcios de vero. E a menina cuja irmgmea tinha morrido, mais nova do que o loirinho, que mal sabia andar, mas ria e soltavagritinhos com os outros, brincando de pique-pega. Todos brigavam, trocando tapas epontaps, apanhando gravetos que usavam como armas de brinquedo, brandindo ospequenos punhos. Kira lembrou-se de quando observava os amigos de infnciabrincarem daquele jeito, preparando-se para as lutas reais da vida adulta. Incapaz departicipar por conta da perna defeituosa, ela olhava com inveja.

    Uma criana mais velha, um menino de rosto sujo de 8 ou 9 anos, ainda jovem demaispara a puberdade e o nome de duas slabas que receberia, a encarou. Ele estava ocupadoarrancando a vegetao rasteira e juntando feixes de galhos para uma fogueira. Kira

  • sorriu. Era Ma, que sempre tinha sido seu amigo. Ele vivia no Brejo, um lugarpantanoso e desagradvel, talvez lho de um apanhador ou coveiro. Mas andavalivremente pelo vilarejo com os colegas desordeiros, sempre seguido pelo co. Estavasempre parando, como agora, para fazer alguma tarefa ou pequeno servio em troca dealgumas moedas ou um doce. Kira gritou um cumprimento para o garoto. O coencurvou o rabo, enroscou-se nos galhos e folhas, pisoteou o cho, e o menino sorriu emresposta.

    Ento oc j voltou do Campo disse ele. Como que l? Oc cou assustada?Apareceu alguma criatura de noite?

    Kira fez que no com a cabea e sorriu. Pequenos de uma slaba s no podiam ir aoCampo, ento era natural que Matt estivesse curioso e um pouco impressionado.

    No vi nenhuma criatura. Fiz uma fogueira, que as manteve longe. Quer dizer que Katrina j deu o fora do corpo dela? perguntou o menino em seu

    dialeto.As pessoas de Fen eram estranhas, diferentes. Facilmente identicadas pelo jeito

    esquisito de falar e pelos maus modos, eram desprezadas por quase todos. Mas no porKira, que gostava muito de Matt.

    O esprito da minha me j se foi. Eu o vi deixar o corpo dela. Foi soprado paralonge como uma nvoa.

    Ma se aproximou dela, ainda carregando galhos em seus braos arranhados e sujos.Estreitou os olhos, fazendo cara de triste, e enrugou o nariz.

    Seu barraco t todo queimado.Kira sabia que sua casa tinha sido destruda, embora no fundo nutrisse esperanas de

    que estivesse enganada. Sim falou ela com um suspiro. E as coisas que estavam dentro? Meu quadro?

    Queimaram meu quadro de tear?Matt franziu a testa. Tentei salvar as coisas, mas queimou quase tudo. S o seu barraco, Kira. No foi

    igual quando tem doena braba. Desta vez, foi s a sua me mesmo. Eu sei.Kira tornou a suspirar. No passado, doenas haviam se alastrado de um casebre para

    outro, causando muitas mortes. Quando isso acontecia, fazia-se uma grande queimada,seguida de uma reconstruo que se tornava quase festiva, com o barulho dostrabalhadores espalhando barro mido sobre as novas estruturas de madeira e alisando-o metodicamente. O

    cheiro de queimado continuava no ar mesmo depois de os novos casebres j estaremde p.

    Mas naquele dia no havia festividade. Apenas os sons habituais. A morte de Katrina

  • no trouxera nenhuma mudana para as vidas dos habitantes do vilarejo. Ela costumavaestar ali. Agora no estava mais. Vida que segue.

    Ainda acompanhada de Ma, Kira parou diante do poo e encheu de gua seu cantil.Ela ouvia discusses por toda parte. A cadncia dos bate-bocas era uma trilha sonoraconstante no vilarejo: as declaraes rspidas de homens lutando por poder; as bravatas eprovocaes estridentes de mulheres invejosas e irritadas com os pequenos que chiavame choramingavam aos seus ps e geralmente eram chutados para longe.

    Ela protegeu os olhos com a mo para no ser ofuscada pelo sol da tarde, procurandoo espao que o prprio casebre costumava ocupar.

    Respirou fundo. No seria nada fcil juntar madeira, e mais trabalhoso ainda escavara lama da margem do rio. Alm disso, as vigas eram pesadas, tornando complicada atarefa de arrast-las.

    Preciso comear a reconstruir minha casa. Quer me ajudar? Pode ser divertido seformos ns dois. Aps uma pausa, Kira acrescentou: No posso lhe pagar, masprometo contar histrias novas.

    O menino balanou a cabea. Vou levar uma coa se num terminar de catar esses gravetos pra fogueira. Ma se

    virou para ir embora. Aps uma hesitao, voltou-se outra vez para Kira e falou baixinho: Eu ouvi as pessoas falando. Elas no querem que oc continue aqui. To planejando teexpulsar agora que a sua me morreu. Querem te largar no Campo pras feras pegarem.Vo mandar os apanhadores te levarem pra l.

    Kira sentiu um n no estmago, apavorada, mas tentou manter a voz calma. Precisavaextrair informaes de Ma, que caria desconado se soubesse que ela estava commedo.

    Quem so essas pessoas? perguntou ela em um tom de voz contrariado, altivo. As mulheres. Ouvi elas falando l no poo. Eu tava catando umas lascas de madeira

    no lixo e nem notaram que eu tava ouvindo. Mas elas querem o seu lugar. L onde era oseu barraco. Querem construir um cercado ali, pra deixar os pequenos e as galinhaspresos e no precisar ficar correndo atrs deles o tempo todo.

    Kira o encarou com um olhar rme. A tranquilidade com que aquelas mulherespodiam ser to cruis era aterrorizante, quase inacreditvel. Por um motivo banal, iamjog-la s feras que ficavam espreita na floresta para suprir o Campo.

    Qual delas parecia estar mais contra mim? perguntou ela aps alguns instantes.Ma ps-se a reetir, revirando os galhos nas mos. Kira notou que ele relutava em se

    envolver com aqueles problemas, por medo do que poderia lhe acontecer. Mas Masempre fora seu amigo. Por m, olhando ao redor para se assegurar de que ningum oouvia, ele lhe sussurrou o nome da pessoa que Kira precisaria enfrentar: Vandara.

    No era nenhuma surpresa. Mesmo assim, Kira sentiu um n no estmago.

  • 2Primeiro, decidiu Kira, seria melhor ngir que no sabia de nada. Ela voltaria ao

    antigo local do casebre em que vivia com a me e comearia a reconstru-lo. Talvez osimples fato de v-la ali trabalhando dissuadisse as mulheres que esperavam expuls-la.

    Apoiando-se no cajado, ela atravessou o vilarejo apinhado de gente.Aqui e ali, as pessoas a cumprimentavam com um breve aceno de cabea, mas

    estavam todos ocupados, encarregando-se de suas tarefas dirias, e amenidades nofaziam parte de seus costumes.

    Ela viu o tio trabalhando com o lho, Dan, no jardim ao lado do casebre onde viveracom Solora e os pequenos. O mato tinha crescido vontade enquanto sua esposa chegavaao fim da gravidez, dava luz e morria.

    Ento, mais dias se passaram e mais mato surgiu durante o tempo em que ele cousentado no Campo com a mulher e o filho morto.

    As varas que sustentavam os fees-trepadores haviam tombado e ele as endireitavacom irritao, sendo ajudado por Dan; a caula, uma pequena chamada Mar, estavasentada por perto, brincando com a terra.

    Kira viu o homem estapear Dan no ombro com fora, ralhando com ele por no tersegurado a vara direito.

    Ela passou por eles, ncando o cajado com fora no cho a cada passo, planejandomenear a cabea em resposta se a cumprimentassem. Mas a menininha que brincava coma terra apenas resmungou e cuspiu; vinha provando algumas pedrinhas, do jeito que aspequenas costumavam fazer, e acabou por colocar um punhado de cascalhos asquerososna boca. Dan fitou Kira, mas no fez meno de cumpriment-la nem pareceu reconhec-

    la, encolhido por conta do tapa do pai. O nico irmo de Katrina no desviou o olhardo que fazia.

    Kira suspirou. Pelo menos ele tinha ajuda. A no ser que conseguisse convencer Mae alguns de seus colegas, precisaria executar sozinha todo o trabalho de reconstruo ejardinagem isso se a deixassem ficar ali.

    Sua barriga roncou e ela percebeu como estava faminta. Contornando a trilha quepassava por uma leira de casebres pequenos, chegou ao prprio lote e se viu diante domonte de cinzas negras que um dia tinha sido sua casa. No restava nada do que havia ldentro. Mas ela cou feliz ao ver que o pequeno espao de jardim e horta resistira. Asores de sua me ainda estavam abertas e os legumes de incio de vero amadureciamsob o sol.

    Pelo menos por ora ela ainda teria comida.De repente, uma mulher saiu correndo das rvores prximas, olhou de relance para

    Kira e ps-se a arrancar descaradamente as cenouras da horta que a menina e sua me

  • haviam plantado juntas. Pare! Isso meu! Kira lanou-se para a frente o mais rpido que pde, arrastando

    a perna deformada.Rindo com desdm, a mulher se afastou sem pressa com as mos cheias de cenouras

    encrostadas de terra.Kira correu at o que restava da horta. Largou o cantil no cho, desenterrou alguns

    tubrculos, limpou a terra com as mos e comeou a com-los. Como no havia nenhumcaador em sua famlia, ela e a me comiam carne esporadicamente, quando conseguiamapanhar algum animal pequeno dentro dos limites do vilarejo. No podiam seembrenhar na oresta para caar como faziam os homens. O rio era abundante empeixes, fceis de pegar, logo no sentiam necessidade de outros alimentos.

    Porm, os legumes eram fundamentais. Ela tivera sorte, percebeu, porque a horta nofora totalmente saqueada durante os quatro dias no Campo.

    Depois de matar a fome, sentou-se para descansar a perna e olhou ao redor. Umapilha de ramos arrancados havia sido depositada beira do seu terreno, perto das cinzas,como se algum se preparasse para ajud-la a reconstruir o casebre.

    Mas Kira sabia que no era o caso. Ela se levantou e apanhou um dos ramos nos emaleveis.

    Vandara surgiu imediatamente da clareira perto dali; havia estado espreita o tempotodo. Kira no sabia onde ela vivia ou quem poderiam ser seu marido ou lhos. Nomorava em nenhum dos casebres mais prximos.

    Mas as pessoas sussurravam boatos a seu respeito. Ela era famosa e respeitada. Outemida.

    A mulher era alta e musculosa, com cabelos longos e enrolados, puxadosgrosseiramente para trs e amarrados com uma tira de couro na nuca. Seus olhos escurose rmes dilaceravam qualquer calma que Kira pudesse sentir. Dizia-se que a cicatrizirregular que se destacava em seu queixo e prosseguia pelo pescoo at o ombro largo erao vestgio de uma batalha travada tempos antes contra uma das criaturas da oresta.Nenhuma outra pessoa jamais sobrevivera a um ferimento como aquele e a marca era umlembrete a todos da coragem e da fora de Vandara, assim como da sua maldade. Ascrianas falavam que a me de uma criatura a havia atacado e ferido com suas garras aover que ela tentava roubar um filhote do seu covil.

    Agora, diante de Kira, ela novamente se preparava para destruir o lhote de outrame.

    Ao contrrio da criatura da oresta, Kira no tinha garras para lutar. Ela agarrou ocajado de madeira com fora e tentou retribuir o olhar da mulher sem demonstrar medo.

    Eu voltei para reconstruir minha casa. J no h espao para voc aqui. Este local pertence a mim agora.

  • Estes ramos so meus. Cortarei outros para mim retrucou Kira. Mas irei reconstruir minha casa neste

    espao, que era do meu pai antes de eu nascer, e da minha me depois que ele morreu.Agora que ela est morta, ele meu.

    Outras mulheres saram dos casebres ao redor. Ns precisamos dele gritou uma delas. Vamos usar os ramos para construir um

    cercado para os pequenos. Foi Vandara quem teve a ideia.Kira encarou a mulher, que segurava com fora o brao de uma pequena. Talvez seja uma boa ideia. Mas no neste terreno. Podem construir um cercado em

    qualquer outro lugar.Vandara se agachou e apanhou uma pedra do tamanho do punho de um pequeno. No queremos voc aqui. Seu lugar no mais no vilarejo. Voc intil com essa

    perna. Sua me sempre a protegeu, mas agora ela est morta.Voc tambm deveria partir. Por que simplesmente no ficou no Campo?Kira notou que estava cercada de mulheres hostis, que observavam Vandara espera

    de instrues e liderana. Vrias delas seguravam pedras.Sabia que, se uma s atirasse, seria imitada pelas outras. Todas esperavam pela

    primeira pedra.O que minha me teria feito? , pensou, apavorada, tentando evocar a sabedoria do

    pouquinho do esprito de sua me que vivia nela agora.Ou meu pai, que nunca soube que eu nasci? O esprito dele est em mim tambm.Kira empertigou os ombros e comeou a falar, mantendo a voz firme. Vocs sabem que, quando surge um conito no vilarejo com potencial de morte, ns

    devemos ir ao Conselho dos Guardies.Tentou olhar nos olhos de todas as mulheres, uma por uma. Algumas baixaram a

    vista para o cho. Isso era bom. Significava que eram fracas.Houve um burburinho de concordncia. Vandara continuava com a pedra na mo, os

    ombros tensos, preparados para lan-la.Kira olhou diretamente para Vandara, mas, ao prosseguir, tambm se dirigia s

    outras mulheres, pois necessitava de seu apoio. Apelava no compaixo delas, poissabia que no tinham nenhuma, mas ao seu medo.

    Lembrem que, se um conito no for levado ao Conselho dos Guardies e houvermorte...

    Mais murmrios. Se houve morte..., ouviu uma mulher repetir em um tom de vozincerto, apreensivo.

    Kira esperou. Manteve-se o mais empertigada possvel.Por fim, uma mulher do grupo completou as palavras da lei. O causador-da-morte deve morrer.

  • Sim, o causador-da-morte deve morrer repetiram outras vozes.Uma a uma, elas largaram as pedras. Kira se permitiu relaxar um pouco e cou

    espera. Observando.Apenas Vandara ainda carregava sua arma. Fulminando-a com os olhos, a ameaou,

    exionando o brao como se fosse atirar a pedra. Mas acabou jogando-a de formainofensiva no cho, na direo de Kira.

    Ento eu vou lev-la ao Conselho dos Guardies anunciou para as mulheres. Estou disposta a ser a acusadora. Que eles a expulsem. Ela soltou uma risada perversa. No h necessidade de desperdiarmos uma vida para nos livrarmos dela. Ao pr do solde amanh, este terreno ser nosso e ela no estar mais aqui. Estar no Campo, esperadas feras.

    Todas as mulheres olharam em direo oresta, quela altura j mergulhada nassombras. Kira forou-se a no imit-las.

    Com a mesma mo que havia segurado a pedra, Vandara acariciou a cicatriz nopescoo. Ela abriu um sorriso cruel.

    Ainda me lembro como foi ver meu prprio sangue sendo derramado no cho. Eusobrevivi. Sobrevivi porque sou forte. Ao cair da noite de amanh, quando ela sentir asgarras no seu pescoo, este equvoco de duas slabas em forma de garota ir desejar termorrido doente como a me.

    Assentindo, as mulheres deram as costas para Kira e se afastaram, enchendo debroncas e pontaps os pequenos que as acompanhavam. O sol j estava baixo no cu. Elasiriam cuidar dos afazeres do m do dia, preparando-se para o retorno dos homens dovilarejo, que precisariam de comida, fogo e cuidados com seus ferimentos.

    Uma mulher estava prestes a dar luz, talvez naquela noite mesmo. As outrastratariam dela, abafando seus gritos e estimando o valor da criana.

    Outros acasalariam, gerando pessoas, novos caadores para substituir os mais velhos,que morriam por conta de feridas, doena ou velhice.

    Kira no sabia o que o Conselho dos Guardies iria decidir. Sabia apenas que, secasse ou partisse, se reconstrusse sua morada ou tivesse de ir para o Campo, estariasozinha. Exaurida, sentou-se na terra escurecida pelas cinzas para esperar a noite.

    Apanhou um pedao de madeira e o girou nas mos, avaliando sua solidez e retido.Para erguer um casebre, precisaria de ripas rmes e resistentes. Iria at Martin, omarceneiro, que tinha sido amigo de sua me.

    Poderia negociar com ele, talvez propor decorar um tecido para sua mulher em trocadas madeiras de que precisaria.

    Para o trabalho que acreditava poder fazer para ganhar a vida, tambm precisaria dealguns pedaos de madeira pequenos e retos. Aquele ali era muito exvel, no serviria,por isso o largou no cho. No dia seguinte, se a deciso do Conselho fosse favorvel a ela,

  • Kira iria procurar o tipo de madeira de que precisava: pedaos curtos e lisos cujas pontaspudesse encaixar umas s outras. J planejava construir um novo quadro de tear.

    Kira sempre tinha sido habilidosa com as mos. Quando ainda era pequena, a me lheensinara a usar uma agulha, a pass-la atravs de um tecido e criar um padro com oscoloridos. Mas, nos ltimos tempos, isso havia se tornado mais do que uma merahabilidade. Em um extraordinrio arroubo de criatividade, seu talento fora muito almdos ensinamentos maternos. Agora, sem nenhuma instruo ou prtica, e sem hesitar,seus dedos instintivamente entrelaavam, cerziam e tramavam os os para criardesenhos exuberantes, verdadeiras exploses de cores. Ela no entendia como tinhaadquirido aquele conhecimento. Mas ele estava ali, na ponta dos dedos que agoratremiam um pouco, ansiosos por comear. Se ao menos lhe fosse permitido ficar ali...

  • 3Um mensageiro, entediado e coando uma picada de inseto no pescoo, veio at Kira

    ao raiar do dia e lhe informou que ela deveria se apresentar ao Conselho dos Guardiesno fim da manh. Perto do meio-dia, ela se aprontou e ps-se a caminho.

    O Edifcio do Conselho era surpreendentemente majestoso. Ele era remanescente doperodo anterior Runa, uma poca to remota em que nenhuma das pessoas vivasagora, ou mesmo seus pais ou avs, havia nascido. A Runa era conhecida apenas porconta do Hino entoado durante a Congregao anual.

    Dizia-se que o Cantor, cuja nica funo no vilarejo era realizar a apresentao anualdo Hino, preparava sua voz fazendo um repouso de vrios dias e bebendo certos leos. OHino da Runa era longo e extenuante.

    Comeava com o incio dos tempos, contando toda a histria das pessoas ao longo deincontveis sculos. O passado era assustador, repleto de guerras e calamidades. A partemais aterrorizante era a da Runa, o m da civilizao dos ancestrais. Os versos falavamde gases fumacentos e venenosos, de grandes rachaduras na terra, de desabamentos degrandes edifcios, varridos pelos mares. Todos eram obrigados a ouvi-lo anualmente, mass vezes as mes tapavam, protetoras, os ouvidos de seus pequenos durante a descrioda Runa.

    Muito pouco sobrevivera Runa, mas a estrutura chamada de Edifcio do Conselhopermanecera rme de p. Incalculavelmente antigo, tinha vrias janelas com vitrais empadres vermelho-escuros e dourados, algo impressionante, pois havia muito tempo oconhecimento para fabricar vidros daquele tipo se perdera. Algumas janelas quebradasestavam tapadas com um vidro grosso e comum, que distorcia a vista por conta de suasbolhas e ondulaes. Outras eram fechadas por ripas de madeira, mergulhando certaspartes do interior do prdio em um breu. Mesmo assim, o Edifcio era magnco emcomparao aos barracos e casebres ordinrios do vilarejo.

    Kira apresentou-se ao meio-dia, conforme lhe fora ordenado, e agora atravessavasozinha um longo corredor iluminado de ambos os lados pelas chamas crepitantes decompridos candeeiros a leo. Conseguia ouvir a assembleia reunida mais frente, atrsde uma porta fechada: vozes masculinas abafadas, envolvidas em uma discusso. Seucajado batia contra o cho de madeira e a perna defeituosa raspava as tbuas, soandocomo uma vassoura.

    Orgulhe-se de sua dor, sua me sempre lhe dizia. Voc mais forte do que aquelesque no sentem dor alguma.

    Tentou encontrar o orgulho que sua me lhe ensinara a sentir.Empertigou os ombros magros e alisou as dobras do vestido grosseiro.Havia se lavado meticulosamente nas guas lmpidas do rio e limpado as unhas com

  • um graveto aado. Penteara os cabelos com o pente de madeira talhada que tinhapertencido me, acrescentado ao pequeno saco de utenslios aps a morte dela. Por m,entrelaara suas mechas negras e grossas com destreza, amarrando a ponta da tranacom uma tira de couro.

    Respirando fundo para se acalmar, Kira bateu porta pesada da sala da assembleiado Conselho dos Guardies, que se entreabriu, espalhando uma nesga de luz pelapenumbra do corredor. Um homem olhou para fora, tando-a com desconana. Ento,escancarou a porta e a chamou para entrar com um gesto.

    Kira, a rf acusada, est aqui! anunciou o guarda, fazendo o burburinhodesaparecer.

    Em silncio, todos se viraram para v-la entrar.A cmara era imensa. Kira j havia estado ali antes com a me, durante eventos

    cerimoniais como a Congregao. Na ocasio, elas tinham se sentado com o restante daplateia em leiras de bancos, de frente para o palco contendo apenas um altar quesustentava o Objeto de Adorao: o misterioso artefato de madeira composto de doispaus formando uma cruz.

    Dizia-se que ele fora muito poderoso no passado e que as pessoas sempre faziam umabreve e humilde reverncia diante dele.

    Mas agora ela estava sozinha. No havia plateia ou cidados comuns, apenas oConselho: doze homens que a encaravam sentados ao longo de uma extensa mesa beirado palco. Fileiras de lamparinas a leo iluminavam o recinto e cada um dos guardiestinha uma tocha atrs de si, que lanava luz sobre os papis empilhados e espalhadossobre a mesa.

    Eles a observaram enquanto ela se aproximava, hesitante, pelo corredor central.Rapidamente, lembrando-se do procedimento que vira em todas as cerimnias, Kira

    colocou as mos em uma posio reverente, unindo-as e posicionando as pontas dosdedos debaixo do queixo ao chegar diante da mesa, olhando com uma expressorespeitosa para o Objeto de Adorao.

    Os guardies assentiram, aprovando o gesto. Pelo jeito, tinha sido a coisa certa afazer. Ela relaxou um pouco, esperando, perguntando-se o que aconteceria em seguida.

    O guarda atendeu a uma segunda batida porta. A acusadora, Vandara! anunciou ele.Kira observou Vandara se encaminhar a passos rpidos em direo mesa at as duas

    estarem lado a lado, diante do Conselho. Ficou um pouco satisfeita ao notar que os psda mulher estavam descalos e seu rosto, sujo; ela no havia feito nenhuma preparaoespecial. Talvez no fosse mesmo necessrio. Mas Kira achava que tinha conquistado umpouco de respeito, uma ligeira vantagem, com seu asseio.

    Vandara fez o gesto de adorao com as mos. Quanto a isso, estavam quites. Ento, a

  • mulher fez uma reverncia e Kira viu com uma pontada de preocupao que os guardiesmenearam suas cabeas para ela.

    Eu deveria ter feito uma reverncia. Preciso encontrar uma brecha para fazer isso. Estamos aqui reunidos para julgar um conito falou com uma voz autoritria o

    guardio-chefe, um homem de cabelos brancos com um nome de quatro slabas que Kiranunca conseguiria lembrar.

    No entrei em conflito nenhum. Eu s queria reconstruir minha casa e viver minha vida. Quem a acusadora? indagou o homem.Era bvio que ele sabia a resposta, pensou Kira. Mas a pergunta parecia cerimonial,

    parte dos procedimentos formais, e foi respondida por um guardio corpulento, sentado ponta da mesa diante de vrios livros grossos e uma pilha de papis. Kira tou osvolumes, curiosa. Sempre tivera vontade de ler. Mas no era permitido s mulheres.

    Guardio-chefe, o nome da acusadora Vandara. E da acusada? A acusada a rf Kira.O homem olhou para os papis, mas no pareceu ler nada.Acusada? Do que estou sendo acusada? Kira sentiu-se invadida pelo pnico ao pensar na

    palavra. Mas posso usar esta oportunidade para fazer uma reverncia e demonstrar humildade.Ela inclinou-se ligeiramente, reconhecendo ser a acusada.

    O homem de cabelos brancos olhou para as duas com uma expresso fria. Apoiando-se no cajado, Kira tentou manter-se o mais ereta possvel.

    Era quase to alta quanto a acusadora, porm Vandara era mais velha, mais pesada eperfeita, exceto pela cicatriz o lembrete de que ela havia lutado contra uma fera eescapado. Por mais horrorosa que fosse, a marca rearmava sua fora. O defeito de Kirano remetia a nenhuma histria louvvel e ela sentiu-se fraca, inepta e condenada ao ladoda mulher desfigurada e colrica.

    A acusadora ser a primeira a falar instruiu o guardio-chefe.A voz de Vandara soou rme e amarga: A garota deveria ter sido levada para o

    Campo quando nasceu e ainda no tinha nome. a lei. Prossiga. Ela era imperfeita. E tambm rf de pai. No deveria ter sido poupada.Mas eu era forte. E meus olhos eram brilhantes. Foi o que minha me me disse. Ela se

    recusou a me abandonar. Kira apoiou o peso do seu corpo no outro p, dando um descansopara a perna deformada, lembrando-se da histria do seu nascimento e perguntando a simesma se teria chance de cont-la ali. Eu segurei o polegar dela com tanta fora. .

    H anos todos toleramos a presena dela continuou Vandara. Mas ela no feznenhuma contribuio. No pode cavar, plantar ou semear, ou mesmo cuidar dosanimais domsticos, como fazem as outras garotas da sua idade. Arrasta essa perna

  • morta como um fardo intil. lenta e come demais.O Conselho escutava com ateno. O rosto de Kira cou vermelho de vergonha. Era

    verdade, ela comia demais. Era tudo verdade.Posso tentar comer menos. Posso suportar a fome. Kira comeou a preparar sua defesa,

    mas pressentia que ela seria fraca e lamuriosa. Ela foi poupada, contra as regras, porque o av ainda era vivo e tinha poder. Mas ele

    j morreu h tempos e foi substitudo por um novo lder mais poderoso e sbio...A adulao de Vandara tinha o objetivo de fortalecer os argumentos e Kira tou o

    guardio-chefe para ver se aquilo surtira efeito. Mas o rosto do homem continuavaimpassvel.

    O pai foi morto pelas feras antes mesmo de ela nascer. E agora a me tambm estmorta prosseguiu a acusadora. Temos todos os motivos para crer que sua me possater sido portadora de uma doena que colocar em risco os outros habitantes dovilarejo...

    No! Ela foi a nica a car doente! Olhem para mim! Eu estava deitada ao seu lado quandoela morreu e estou saudvel!

    ... e as mulheres precisam do espao do antigo casebre delas. No h lugar para estagarota intil. Ela no pode se casar. Ningum vai querer uma aleada. Ela umdesperdcio de espao e de comida e atrapalha o disciplinamento dos pequenos ao lhescontar histrias e ensinar brincadeiras barulhentas que prejudicam o trabalho...

    O guardio-chefe acenou com a mo. Basta anunciou ele.Vandara fechou a cara e caiu em silncio, fazendo uma leve reverncia.O homem correu os olhos pela mesa, perscrutando os outros onze como se buscasse

    comentrios ou perguntas. Um a um, eles lhe assentiram.Ningum falou nada. Kira falou o guardio-chefe , por ser uma garota de duas slabas, voc no

    obrigada a se defender. No me defender? Mas...Kira tinha planejado se inclinar de novo, mas, de to aita, deixara passar a

    oportunidade adequada. Quando se lembrou, acabou fazendo uma mesura desajeitada eapressada.

    Ele tornou a acenar, mandando-a fazer silncio. Ela se forou a ficar quieta e ouvir. Por ser to jovem, voc tem uma escolha. Pode defender-se por conta prpria... Isso! Eu quero me def... ... ou iremos indicar algum para defend-la. O seu defensor ser um de ns, que

    usaremos nossa maior sabedoria e experincia. Reita um pouco antes de decidir, Kira,pois sua vida pode depender disso.

  • Mas vocs nem me conhecem! Como podem contar a histria do meu nascimento? Comopodem descrever meus olhos brilhantes, a fora da minha mo quando agarrei o polegar daminha me?

    Kira cou ali, desamparada, seu futuro em jogo. Sentia a hostilidade que emanava aoseu lado; a respirao de Vandara estava rpida e irritada. Ela olhou para os homenssentados ao redor da mesa, tentando avaliar qual poderia ser o defensor. Mas no lhepareceu haver inimizade nem sequer muito interesse por parte deles, apenas um ar deexpectativa.

    Angustiada, Kira enou as mos nos bolsos fundos do vestido. Sentiu os contornosfamiliares do pente de madeira da me e o alisou para se tranquilizar. Com o polegar,tateou um pequeno bordado quadrangular.

    Havia se esquecido daquele pedao de tecido em meio confuso dos ltimos dias;agora, ao toc-lo, lembrou como aquele padro tinha se formado espontaneamente, semque suas mos percebessem, enquanto ela estava ao lado da me nos seus ltimos diasde vida.

    Quando Kira era bem mais nova, o conhecimento lhe viera de forma muitoinesperada. Ela se recordava da expresso de espanto no rosto de Katrina ao ver a lhaescolher e tranar os fios com uma segurana repentina.

    Nunca lhe ensinei isso! exclamou a me, rindo com alegria e espanto. Nem saberia como!Kira tambm no sabia como. Havia acontecido de forma quase mgica, como se os

    fios tivessem cantado ou falado com ela. Desde ento, o conhecimento s progredira.A menina segurou o tecido, lembrando-se da conana que antes a inspirava. No

    sentia nem um pingo dela agora. No conseguia encontrar dentro de si um discurso dedefesa. Sabia que precisaria delegar essa funo a um daqueles homens, que lhe eramtodos estranhos.

    Kira os tou, assustada, e viu que um dos guardies lhe retribua o olhar com umaexpresso calma, tranquilizadora. Kira pressentiu como ele podia lhe ser importante. Eainda algo mais: sagacidade, experincia. Ela respirou fundo. O tecido bordado eraquente e familiar ao toque. Estava tremendo, mas sua voz soou resoluta: Peo que meindiquem um defensor.

    O guardio-chefe assentiu. Jamison chamou ele com rmeza, meneando a cabea para o terceiro guardio

    sua esquerda.O homem de olhos serenos e atenciosos levantou-se para defender Kira.Ela aguardou.

  • 4Ento esse era o nome dele: Jamison. No lhe era familiar. Havia muitas pessoas no

    vilarejo e o afastamento entre homens e mulheres era bem grande depois da infncia.Kira o observou se levantar. Ele era alto, com cabelos pretos mais para longos, bem

    penteados e presos na nuca com um ornamento de madeira que ela reconheceu sertrabalho do jovem entalhador... Como era mesmo o nome dele? Thomas. Isso. Eraconhecido como Thomas, o Entalhador.

    Ainda um menino, no mais velho do que a prpria Kira, mas j tinha se destacadopor seu grande talento; as peas entalhadas produzidas por suas mos habilidosas erammuito requisitadas pela elite do vilarejo. Pessoas comuns no se ornamentavam. A mede Kira costumava usar um pingente em uma tira de couro em volta do pescoo, mas omantinha sempre escondido debaixo da gola do vestido.

    Jamison apanhou a pilha de papis sobre a mesa sua frente, onde Kira o observarafazer anotaes meticulosamente enquanto ouvia a acusadora.

    Suas mos eram grandes, de dedos longos, e moviam-se com segurana nenhumahesitao, nenhuma incerteza. Seu defensor usava um bracelete de couro tranado nopunho esquerdo e seu brao era firme e musculoso.

    Ele no era velho: seu nome ainda era formado por apenas trs slabas e seu cabeloainda no cara grisalho. Kira estimava que fosse um homem de meia-idade, talvez coma mesma quantidade de anos de sua me morte.

    Ele baixou o olhos para o papel que encimava a pilha em suas mos e Kira pde ver asanotaes. Como seria bom se soubesse ler!

    Abordarei as acusaes uma a uma falou ele. Olhando para o papel, repetiu aspalavras ditas por Vandara, embora tenha preferido no imitar seu tom raivoso: Agarota deveria ter sido levada para o Campo quando nasceu e ainda no tinha nome. alei.

    Ento era isso que ele tinha anotado! Ele havia escrito as palavras para poder repeti-las! Pormais doloroso que fosse tornar a ouvir as acusaes, Kira percebeu, maravilhada, o valordaquela repetio. Assim, no haveria como refutar o que fora dito. Quantas vezes nohaviam comeado brigas e discusses entre os pequenos por que sicrano dizia que fulanofalou, ou fulano falava que beltrano disse, e todas as innitas variaes da mesma lenga-lenga?

    Jamison largou os papis na mesa e apanhou um volume pesado encadernado emcouro verde. Kira notou que cada um dos guardies possua um tomo idntico.

    Ele abriu em uma pgina que havia marcado durante os procedimentos. A acusadora tem razo ao armar que esta a lei continuou Jamison, dirigindo-se

    aos guardies.

  • Kira sentiu-se trada. Ele no era seu defensor?Jamison apontou para a pgina, para o texto em letra mida, e alguns dos homens

    folhearam seus tomos em busca dela. Outros apenas zeram que sim com a cabea,como se soubessem aquilo de cor e no precisassem reler.

    Ela notou Vandara esboar um sorriso.Derrotada, Kira tateou novamente o pequeno bordado no bolso. J no parecia

    quente. Tampouco tranquilizador. Se consultarmos, no entanto, o terceiro conjunto de emendas... prosseguiu

    Jamison.Todos os guardies viraram as pginas, mesmo aqueles que no tinham mexido antes

    em seus tomos. Est claro que pode haver excees. Pode haver excees repetiu um dos guardies, arrastando os dedos pela pgina

    para ler as palavras. Ento podemos descartar a armao de que esta a lei anunciou Jamison com ar

    determinado. A lei nem sempre se aplica.Ele meu defensor. Talvez encontre uma maneira de salvar minha vida! Tem algo a acrescentar? perguntou Jamison a Kira.Tocando o tecido, ela balanou a cabea negativamente.Ele prosseguiu, consultando suas anotaes: Ela era imperfeita. E tambm rf de

    pai. No deveria ter sido poupada.A segunda repetio lhe doa, porque era verdade. As pernas de Kira tambm doam:

    no estava habituada a car tanto tempo de p, sem se mexer. Tentou redistribuir o pesodo corpo para diminuir a presso sobre o lado defeituoso.

    Essas acusaes so verdadeiras disse Jamison, exprimindo o bvio com sua vozrme. A menina Kira nasceu com uma imperfeio. Ela possua um defeito visvel eincurvel.

    Os guardies a encaravam. Vandara tambm, com desprezo. Kira estava acostumadaa olhares desse tipo. Havia sido ridicularizada a infncia inteira. A me fora sua mestre eguia e a ensinara a manter a cabea erguida. E era isso que ela fazia agora, tando seusjuzes nos olhos.

    E tambm rf de pai continuou Jamison.Em suas lembranas, Kira, ainda muito pequena, podia ouvir a me lhe explicando

    com brandura por que nunca havia tido um pai: Ele no voltou da grande caada. Issofoi antes de voc nascer. Ele foi levado pelas feras.

    Jamison repetiu a histria que ecoava em seus pensamentos como se pudesse ouvi-la: Antes de ela nascer, seu pai foi levado pelas feras.

    O guardio-chefe ergueu os olhos dos papis. Voltando-se para os outros ocupantes

  • da mesa, interveio: O pai dela chamava-se Christopher. Era um excelente caador, umdos melhores. Alguns de vocs devem se lembrar dele.

    Vrios confirmaram com a cabea. Seu defensor fez o mesmo. Eu estava com a equipe de caa naquele dia e o vi ser levado.Voc viu meu pai ser levado? Kira nunca tinha ouvido detalhes da tragdia; sabia apenas

    o que a me lhe contara. Mas aquele homem conhecera seu pai. Ele tinha estado l!Ele sentiu medo? Meu pai sentiu medo? Era uma pergunta estranha, inadequada, e ela

    no a fez em voz alta. Porm, Kira estava com muito medo. Conseguia sentir o dio deVandara como uma presena fsica ao seu lado. Sentia-se como se tambm estivessesendo levada por feras, prestes a morrer. Imaginava como teria sido aquele momentopara o pai.

    A terceira emenda tambm se aplica neste caso anunciou Jamison. Diante daacusao de que ela no deveria ter sido poupada, argumento que, de acordo com aterceira emenda, pode haver excees.

    O guardio-chefe assentiu. O pai dela era um excelente caador repetiu.Os outros membros da mesa, aproveitando a deixa, murmuram sua concordncia. Tem algo a acrescentar? perguntaram-lhe os juzes.Kira tornou a balanar a cabea. Sentiu-se outra vez momentaneamente poupada. Mas ela no fez nenhuma contribuio leu Jamison em seguida. No pode

    cavar, plantar ou semear, ou mesmo cuidar dos animais domsticos, como fazem asoutras garotas da sua idade. Arrasta essa perna morta como um fardo intil. lenta prosseguiu ele e esboou um sorriso ao concluir: e come demais.

    Ele cou calado por alguns instantes, ento continuou: Como defensor, souobrigado a aceitar alguns desses argumentos. Est claro que ela no pode cavar, plantar,semear ou cuidar de animais domsticos. Acredito, no entanto, que ela tenha encontradouma maneira de contribuir. No verdade, Kira, que voc trabalha no galpo detecelagem?

    Kira fez que sim, surpresa. Como ele sabia daquilo? Os homens no davam nenhumaateno ao trabalho das mulheres.

    Sim respondeu ela, sua voz fraca por conta do nervosismo. Eu ajudo l. No coma tecelagem propriamente. Mas recolho as sobras de tecido e ajudo a preparar os teares. um trabalho que posso fazer com minhas mos e braos. E sou forte.

    Ela se perguntou se deveria mencionar a habilidade com as linhas, sua esperana deque talvez pudesse us-la como uma maneira de ganhar a vida. Mas no conseguiapensar em uma forma de faz-lo sem parecer presunosa, ento pemaneceu calada.

    Kira, demonstre seu defeito para o Conselho dos Guardies ordenou ele, olhandoem sua direo. Mostre-nos como voc anda. V at a porta e volte.

  • Aquilo era crueldade, pensou ela. Todos sabiam da sua perna deformada. Por que elaprecisava fazer isso na frente deles, submeter-se aos olhares humilhantes? Por uminstante, sentiu-se tentada a recusar ou pelo menos argumentar. Porm, era arriscadodemais. Aquilo no era uma brincadeira de criana, em que costumavam acontecerbrigas e discusses.

    O que estava em jogo era o seu futuro, ou mesmo se teria um futuro. Kira suspirou edeu meia-volta. Apoiou-se no cajado e andou devagar em direo porta. Mordendo olbio, arrastou a perna dolorida passo a passo, sentindo os olhos cheios de desprezo deVandara nas suas costas.

    Quando chegou porta, Kira tornou a se virar e voltou lentamente at o lugar deantes. A dor comeava em seu p e subia queimando pela perna deformada. Precisavadesesperadamente se sentar.

    Ela arrasta a perna e lenta. Jamison apontou, sem necessidade. Isso inegvel.Porm, trabalha com competncia no galpo de tecelagem, todos os dias, em tempointegral, e nunca se atrasa. As mulheres valorizam sua ajuda. Ela come muito? perguntou, dando uma risadinha. No me parece. Vejam como magra. Seu pesorefuta essa acusao. Mas imagino que esteja com fome agora. Eu estou. Sugiro quefaamos uma pausa para uma refeio.

    O guardio-chefe se levantou. Tem algo a acrescentar? perguntou a Kira pela terceira vez.De novo, ela balanou a cabea negativamente. Sentia-se exausta. Podem se sentar ordenou ele a Kira e Vandara. A comida ser trazida at aqui.Agradecida, Kira se deixou cair no banco mais prximo e esfregou a perna latejante

    com uma das mos. Do outro lado do corredor central, viu Vandara fazer uma reverncia esqueci de novo, devia ter feito isso tambm! e sentar-se com o rosto impassvel.

    O guardio-chefe baixou os olhos para a prpria pilha de papis. H mais cinco acusaes. Lidaremos com elas e tomaremos uma deciso aps a

    refeio.A comida apareceu, trazida pelo guarda. Um prato foi entregue a Kira.Ela sentiu o cheiro de galinha assada e de po quente e crocante, salpicado de gros.

    Havia dias vinha comendo apenas legumes crus e fazia meses no provava carne degalinha. Mas a voz de Vandara ainda ecoava em sua cabea, estridente, imputandoacusaes vingativas: Ela come demais.

    Temendo as consequncias se demonstrasse estar faminta, Kira forou-se a apenasbeliscar a refeio tentadora. Ento, arrastou para o lado o prato ainda pela metade ebebericou gua do copo que haviam trazido.

    Cansada, ainda com fome e assustada, acariciou o tecido no bolso enquanto esperavaa prxima rodada de acusaes.

  • Os doze guardies retiraram-se por uma porta lateral, provavelmente dirigindo-se aum refeitrio particular. Depois de um tempo, guardas vieram recolher sua bandeja eanunciaram um perodo de sesta. Disseram-lhe que o julgamento seria retomado quandoo sino repicasse duas vezes.

    Vandara levantou-se e deixou o recinto. Kira aguardou alguns instantes e, por m,encaminhou-se para a porta do Edifcio do Conselho, atravessou o longo saguo e saiu doprdio.

    O mundo continuava igual. Pessoas iam e vinham, fazendo diversos trabalhos,discutindo em voz alta. Kira ouvia vozes estridentes no mercado: mulheres gritando,indignadas com os preos, e vendedores dando justicativas aos berros. Bebs chorando,pequenos brigando, ces vira-latas rosnando e ameaando uns aos outros enquantocompetiam por restos cados no cho.

    Ma apareceu, correndo com alguns colegas. Titubeou ao ver Kira, ento parou e foiem sua direo.

    A gente arranjou uns galhos proc sussurrou ele. Eu e uns pequenos. A gente fezuma pilha. Se quiser, a gente pode comear a fazer seu barraco mais tarde. Ele sedeteve, curioso. Quer dizer, se voc precisar dum barraco. Que que t acontecendoaqui?

    Ento Ma sabia do julgamento. Isso no era surpresa. O menino parecia saber tudoo que acontecia no vilarejo. Kira deu de ombros, ngindo indiferena. No queria que elevisse o quanto estava apavorada.

    Uma falao sem fim. E ela t a dentro? A da cicatriz feia?Kira sabia muito bem de quem ele estava falando. Sim. Ela a acusadora. Ela ruim, essa Vandara. Dizem que matou o pequeno dela mesma, que fez ele

    comer folha de espirradeira. O garoto no queria, mas ela segurou a cabea dele at eleengolir.

    Kira conhecia a histria. Os juzes decidiram que foi um acidente lembrou ela a Ma, embora tivesse suas

    dvidas. Outros pequenos j comeram folhas de espirradeira antes. perigoso ter umaplanta venenosa como essa crescendo por todo lado. Deviam colocar todas em um lugaralto, no deix-las ao alcance dos pequenos.

    Matt balanou a cabea. A gente precisa delas assim pra aprender. Minha me, ela me dava um tapa quando

    eu mexia na folha. Era um tapo to forte na cabea que eu achava que meu pescoo iaquebrar. Foi assim que eu aprendi a no mexer na espirradeira.

    Bem, o Conselho dos Guardies julgou Vandara e chegou concluso de que no foi

  • ela repetiu Kira. Ela ruim de qualquer jeito. Dizem que por causa daquele machucado feio pra

    danar. Que a dor deixou ela m.A dor me deixa orgulhosa, pensou Kira, mas no falou nada. Quando que oc vai estar livre? Hoje mais tarde. A gente vai trabalhar no seu barraco. Alguns dos meus colegas j falaram que vo

    ajudar. Obrigada, Matt. Voc um bom amigo.

    Ele fez uma careta, encabulado. Oc vai precisar de um barraco. Ele se virou para correr atrs dos outros meninos.

    At porque oc quem conta as histrias pra gente. Tem que ter um lugar pra isso.Kira sorriu enquanto o observava sair correndo. O sino no topo do Edifcio do

    Conselho repicou duas vezes. Ela deu meia-volta para retornar ao prdio. Ela foi poupada, contra as regras, porque o av ainda era vivo e tinha poder. Mas

    ele j morreu h tempos leu Jamison.Eles lhe haviam permitido car sentada naquela sesso. E mandaram Vandara se

    sentar tambm. Kira cou grata. Se a acusadora tivesse cado de p, ela teria se forado aignorar a dor na perna para fazer o mesmo.

    Novamente, seu defensor reiterou que podia haver excees. quela altura, por maisassustadoras que as acusaes fossem, a repetio j havia se tornado cansativa. Kiratentou se manter alerta. Com a mo no bolso, tateou o pedacinho de tecido bordado evisualizou as cores dele em sua mente.

    As roupas usadas na comunidade eram sem graa, todas de cor parda; os vestidos ecalas disformes usados pelas pessoas, confeccionados para proteo contra eventuaischuvas repentinas, espinhos cortantes ou heras venenosas. Os tecidos normalmenteusados nos vilarejos no eram decorados.

    Contudo, a me de Kira era versada na arte das tinturas. Eram suas mos manchadasde tinta que produziam os os coloridos usados para os raros ornamentos. A tnicautilizada todos os anos pelo Cantor ao entoar o Hino da Runa era repleta de bordadossuntuosos. Os padres complexos que ela ostentava estavam ali havia sculos e avestimenta havia sido trajada por cada Cantor que j existira. Certa vez, muitos anosatrs, Katrina fora convocada para substituir alguns fios que tinham se soltado.

    Na poca, Kira ainda era muito pequena, mas lembrava-se de ter cado escondida emum canto sombreado do casebre quando um guardio trouxe a fabulosa tnica e esperousua me fazer o pequeno remendo. Observara, fascinada, Katrina usar uma agulha deosso com um o colorido grosso para atravessar o tecido, a cor dourada e viva

  • substituindo aos poucos o pequeno rasgo em uma das mangas. Ento, eles levaram atnica embora.

    Durante a Congregao naquele ano, ela e a me estreitaram os olhos, tentandoencontrar as partes remendadas enquanto o Cantor movia os braos, gesticulandodurante o Hino. Mas elas estavam longe demais e o reparo era muito pequeno.

    Todo ano, eles traziam a tnica antiqussima para sua me fazer pequenos consertos. Um dia, minha lha poder fazer isto armou Katrina em um desses anos para o

    guardio. Veja o que ela fez! A me lhe mostrara o pequeno bordado que Kira acabarade fazer, o que havia se formado de modo to mgico em suas mos. Ela muito maishabilidosa do que eu.

    Kira cou quieta, encabulada mas orgulhosa, enquanto o guardio examinava obordado. Ele no fez nenhum comentrio, apenas assentiu e devolveu o pequenoquadrado. Mas ela notou um brilho de interesse em seus olhos. Depois disso, todos osanos ele pedia para ver seu trabalho.

    Kira sempre cava ao lado da me, sem nunca tocar o tecido velho e frgil,maravilhando-se todas as vezes com as cores vivas que contavam a histria do mundo.Dourados, vermelhos e marrons. E aqui e ali, partes desbotadas, quase reduzidas abranco, que antes tinham sido azuis. Katrina exibia os pontos que ainda guardavam umpouco da cor original.

    Sua me no sabia como fazer o azul. s vezes elas falavam sobre isso, olhando o cuque cobria seu mundo como uma enorme tigela virada do avesso. Quem me dera poderfazer o azul, dizia Katrina. Parece que em algum lugar existe uma planta especial. Elacontemplava o prprio jardim, apinhado de ores e brotos, a partir dos quais conseguiacriar tinturas douradas, verdes e cor-de-rosa, e balanava a cabea, cobiando a nica corque no podia criar.

    Agora a me dela estava morta.Agora a me dela est morta.Kira se forou a acordar do devaneio. Algum estava dizendo essas palavras. Ela

    prestou ateno. ... E agora a me tambm est morta. Temos todos os motivos para crer que sua

    me possa ter sido portadora de uma doena que colocar em risco os outros habitantesdo vilarejo... e as mulheres precisam do espao do antigo casebre delas. No h lugarpara esta garota intil. Ela no pode se casar. Ningum vai querer uma aleada. Ela umdesperdcio de espao e de comida e atrapalha o disciplinamento dos pequenos ao lhescontar histrias e ensinar brincadeiras barulhentas que prejudicam o trabalho...

    Era a mesma ladainha. As acusaes de Vandara eram recitadas e o defensor tornavaa reiterar a emenda que aventava a possibilidade de excees.

    Mas Kira notou uma mudana de tom. Era sutil, mas perceptvel. Algo havia ocorrido

  • no Conselho dos Guardies quando os membros se recolheram para o almoo. Ela notouVandara se remexer em seu banco, aita, e teve certeza de que sua acusadora tambmhavia percebido a diferena.

    Agarrando o talism de pano, Kira notou de repente que ele voltara a lhe parecerquente e tranquilizador.

    Durante seus poucos momentos de lazer, ela costumava fazer experincias compequenos bordados coloridos, sentindo o entusiasmo na ponta dos dedos medida queaquela sua habilidade surpreendente se desenvolvia. Usava sobras do galpo detecelagem. No estava violando nenhuma regra: Kira sempre pedia permisso antes delev-las para o seu casebre.

    Se cava satisfeita com o resultado, mostrava o trabalho me e recebia um breve eorgulhoso sorriso de aprovao. Mas muitas vezes suas tentativas eram decepcionantes,bordados irregulares de uma garota que ainda tinha muito a aprender, e geralmente osjogava fora.

    O que segurava agora entre os dedos aitos da mo direita ela havia feito enquanto ame estava acamada por conta da doena. Kira debruava-se o tempo todo sobre amulher moribunda, impotente, para levar um copo dgua aos seus lbios. Alisava oscabelos da me, massageava seus ps frios e segurava-lhe as mos trmulas, sabendo queno havia nada a fazer alm daquilo. Durante o sono agitado dela, Kira recolhia os ostingidos em seu cesto e comeava a bord-los no retalho com uma agulha de osso. Isso aacalmava e servia para passar o tempo.

    Os os comearam a cantar para ela. No era uma msica feita de palavras ou notas,mas uma espcie de latejar, de vibrao nas mos, como se eles tivessem vida. Pelaprimeira vez, seus dedos no direcionavam os os, mas eram conduzidos por eles. Kirapodia fechar os olhos e simplesmente sentir a agulha se mover atravs do tecido, puxadapelos fios impetuosos e vibrantes.

    Quando a me gemia, Kira inclinava-se para a frente com o copo dgua e lheumedecia os lbios secos. S ento ela olhava o pequeno bordado em seu colo. Eraradiante. Apesar da penumbra do casebre j comeava a anoitecer , os tons dourados evermelhos pulsavam como se o prprio sol da manh tivesse entrelaado seus raios notecido. Os os reluzentes se entrecruzavam em um padro complexo de pontos e ns queKira nunca tinha visto na vida, que ela jamais poderia ter criado, que no conhecia ou doqual sequer ouvira falar.

    Quando os olhos da me se abriram pela ltima vez, Kira ergueu o bordado vibrantepara que ela pudesse v-lo. Katrina j no conseguia falar quela altura. Mas ela sorriu.

    Agora, escondido em sua mo, o bordado parecia transmitir uma mensagemsilenciosa e pulsante para Kira. Ele lhe dizia que o perigo ainda no havia passado. Mastambm que ela seria salva.

  • 5Kira notou que uma caixa grande tinha sido colocada no cho atrs dos assentos do

    Conselho dos Guardies.Ela no estava l antes da pausa para o almoo.Em resposta a um meneio de cabea do guardio-chefe, um dos guardas colocou a

    caixa em cima da mesa e levantou a tampa. Jamison removeu e desdobrou algo l dedentro que ela reconheceu imediatamente.

    A tnica do Cantor! exclamou Kira, maravilhada. Isso no tem a menor relevncia murmurou Vandara, embora tambm estivesse se

    inclinando frente para ver.A vestimenta magnca foi estendida sobre a mesa para que todos a contemplassem.

    Normalmente, aparecia apenas uma vez por ano, na Congregao. A maioria doscidados, que se reuniam no auditrio para a ocasio, via a tnica do Cantor apenas delonge; empurravam-se e acotovelavam-se, na esperana de conseguir olh-la mais deperto.

    Porm, Kira a conhecia bem devido ao meticuloso trabalho anual da me, quando umguardio as vigiava com ateno. Orientada a no tocar a vestimenta, Kira limitava-se aobservar, encantada com o talento materno, com sua habilidade de escolher o tomperfeitamente adequado.

    Ali, no ombro esquerdo! Kira lembrava-se daquele pedao, onde, no ano passadomesmo, alguns os tinham se esgarado e a me havia soltado cuidadosamente as linhaspartidas. Em seguida, selecionara tons claros de rosa, alm de outros um pouco maisescuros, cada cor apenas um pouco mais fechada do que a anterior, at chegar aocarmesim. Ento, ps-se a costurar, mesclando os os de forma impecvel s bordas dopadro complexo.

    Enquanto as lembranas lhe vinham, Kira era observada por Jamison. Sua me estava ensinando esta arte a voc.Kira assentiu. Desde que eu era pequena confirmou ela em voz alta. Sua me era habilidosa. As tinturas dela eram de qualidade. Nunca desbotaram. Ela era cuidadosa e meticulosa. J nos disseram que voc ainda mais talentosa do que ela.Ento eles sabiam. Ainda tenho muito a aprender. Alm de bordar, ela tambm a ensinou a tingir?Kira aquiesceu, pois sabia que o defensor esperava isso dela. Mas no era exatamente

    verdade. A me tinha planos de lhe ensinar a arte das tinturas, mas cara doente antes de

  • ter tempo. Ela estava comeando a me ensinar respondeu, tentando ser honesta. Contou-me

    que tinha aprendido com uma mulher chamada Annabel. Annabella agora.Kira ficou surpresa. Ela ainda viva? E tem quatro slabas? J est muito velha. E sua viso j est um tanto comprometida. Mas ainda

    poderamos recorrer a ela.Recorrer a ela para qu? Mas Kira permaneceu calada. Sentia o bordado quente em seu

    bolso.Vandara levantou de repente. Peo que o julgamento seja retomado falou ela de forma abrupta e rspida. Isto

    uma ttica de protelao por parte do defensor.O guardio-chefe se ergueu. Os demais, que vinham conversando em voz baixa,

    calaram-se.O homem de cabelos brancos se dirigiu a Vandara, mas no havia severidade em sua

    voz: Pode se retirar. O julgamento est encerrado. J chegamos nossa deciso.Vandara ficou em silncio, imvel, e o fuzilou com um olhar desafiador.O guardio-chefe meneou a cabea e dois guardas se aproximaram para escolt-la. Tenho o direito de saber qual foi a deciso! gritou Vandara, o rosto transgurado

    de raiva.Ela se desvencilhou dos guardas e encarou firme o Conselho. Na verdade retrucou o guardio-chefe com uma voz calma , voc no tem direito

    algum. Mas vou relat-la para que no haja mal-entendidos: a menina rf Kiracontinuar no vilarejo e ter uma nova atribuio.

    Ele gesticulou para a tnica do Cantor, ainda estendida sobre a mesa. Kira prosseguiu o homem, encarando-a , voc dar continuidade ao trabalho de

    sua me. Far mais do que isso, na verdade, pois seu talento muito maior do que o delajamais foi. Primeiro, voc remendar a tnica como sua me sempre fez. Em seguida, vairestaur-la. Ento, seu verdadeiro trabalho ter incio. Voc concluir a tnica.

    Ele indicou o grande pedao de tecido no decorado que havia ao longo dos ombros.Erguendo uma sobrancelha, olhando-a como se fizesse uma pergunta.

    Nervosa, Kira assentiu e fez uma breve reverncia. Quanto a voc... O guardio-chefe voltou a tar Vandara, que estava emburrada

    entre os dois guardas. Novamente, ele falava de forma educada. No sair perdendo. Voc exigiu o terreno da menina e poder car com ele, voc e

    as outras mulheres. Construam o cercado. uma boa ideia: eles so arruaceiros e talvezseja melhor cont-los. Agora saia.

  • Vandara virou-se para ir embora; seu rosto era uma mscara de fria.Ela se desvencilhou das mos dos guardas, inclinou-se para a frente e sussurrou com

    rispidez para Kira: Voc vai fracassar. E ento eles vo mat-la. Ela abriu um sorrisofrio para Jamison. Muito bem, fiquem vocs com a garota.

    Ela atravessou a passos firmes o corredor e saiu pela porta larga.O guardio-chefe e os demais membros do Conselho ignoraram a exploso de ira de

    Vandara, como se ela no passasse de um inseto irritante que tinha nalmente sidoexpulso. Um funcionrio estava dobrando de novo a tnica do Cantor.

    Kira disse Jamison , v e busque as coisas de que precisa. Tudo o que possaquerer levar consigo. Esteja de volta quando o sino repicar quatro vezes. Ento vamoslev-la aos seus aposentos, o lugar em que viver a partir de agora.

    Confusa, Kira aguardou alguns instantes. Porm, no houve mais nenhuma instruo.Os guardies estavam arrumando os papis e recolhendo os livros e os pertences.Pareciam ter se esquecido da sua presena. Por fim, ela se levantou, apoiou-se no cajado esaiu mancando do recinto.

    Ao sair do Edifcio do Conselho em direo luz do sol forte e confuso habitual dapraa principal do vilarejo, percebeu que mal passava do meio da tarde, ainda um diacomum na existncia daquelas pessoas, e que nenhuma outra vida ali tinha mudado almda sua.

    Era incio de vero e fazia calor. Uma multido havia se reunido perto da escadaria doEdifcio para assistir ao abate de um porco nos fundos do aougue. Aps a venda daspartes nobres, os midos e sobras seriam jogados para a multido. Pessoas e ces seempurrariam e brigariam para apanhar os restos. O cheiro dos montes espessos deestrume debaixo dos porcos aterrorizados e seus guinchos estridentes de horrordeixaram Kira zonza e nauseada. Ela contornou a turba s pressas, abrindo caminhorumo ao galpo de tecelagem.

    Oc j saiu! O que aconteceu? Vai pro Campo? Vo te entregar pras feras?Era Ma, gritando entusiasmado. Kira sorriu. Simpatizava com a curiosidade do

    menino era parecida com a dela mesma e, por trs do seu jeito arisco, ela acreditavaque existia um bom corao. Lembrava-se de como ele tinha arranjado seu animal deestimao, o cozinho que o acompanhava, um vira-lata intil, sempre no meio docaminho, cavoucando por todo lado em busca de comida. Durante uma tarde chuvosa,fora atropelado e jogado longe por uma carroa que passava puxada por um jumento.Gravemente ferido, o animal cou cado na lama, esvaindo-se em sangue, e teria morridoali sem que ningum desse importncia. Mas Ma o escondeu em meio a um monte dearbustos at suas feridas sararem. No galpo de tecelagem, Kira observara todos os diaso menino ir sorrateiramente alimentar o cachorro convalescente. Agora o co, animado esaudvel apesar de um rabo to torto e intil quanto a perna de Kira, nunca saa do lado

  • de Ma. Ele o chamava de Toquinho, por conta do toco de madeira que havia usado comotala para o seu rabo ferido.

    Kira se agachou e fez carinho atrs da orelha do vira-lata feioso. Estou livre disse ela ao menino.Matt arregalou os olhos. Depois sorriu. Ento a gente ainda vai ter histrias, eu e meus colegas falou ele, satisfeito. Eu vi

    Vandara. Ela saiu assim, .Ma subiu correndo a escadaria do Edifcio e, em seguida, desceu-a a passos rmes

    com a cara fechada. A imitao fez Kira sorrir. Agora ela vai te odiar, com certeza acrescentou Matt, risonho. Bem, eles deram meu terreno, para que ela e as outras possam fazer um cercado

    para os seus pequenos, como queriam. Espero que voc no tenha comeado a fazer umnovo casebre para mim acrescentou Kira, lembrando-se que o menino havia seoferecido.

    Matt sorriu. A gente ainda no comeou. Ia comear daqui a pouco. Mas se oc tivesse sido

    levada pras feras, no ia ter necessidade.Ele fez uma pausa, coando Toquinho com o p descalo. Onde oc vai morar, ento?Kira estapeou um mosquito em seu brao e limpou com a mo a pequena mancha de

    sangue deixada pela picada. No sei. Ele me mandaram voltar ao Edifcio quando o sino repicasse quatro vezes.

    Falaram que eu devia juntar minhas coisas. Ela deu uma risadinha. No que eu tenhamuito para juntar. Est quase tudo queimado.

    Matt tornou a sorrir. Eu salvei umas coisas suas falou ele, alegre. Catei elas do seu barraco antes de

    queimarem ele. No falei antes porque queria ver o que iam fazer contigo.Mais frente, depois do aougue onde o porco estava sendo abatido, os colegas de

    Matt o chamavam para se juntar a eles. A gente tem que ir agora, eu e Toquinho, mas eu trago as suas coisas quando o sino

    bater quatro vezes. Aqui pra escada, t certo? Obrigada, Matt. Espero voc na escada.Sorridente, Kira o observou partir, suas pernas nas e sujas levantando poeira pelo

    caminho enquanto ele corria. Toquinho o seguia, com o coto quebrado que lhe servia derabo balanando torto.

    Kira continuou a atravessar a multido, passando pelas barracas de comida e peloalarido das mulheres que discutiam e pechinchavam. Ces latiam; dois rosnavam umpara o outro, encarando-se com os dentes mostra no meio do caminho, um pedao de

  • comida entre deles. Perto dali, um pequeno de cabelos encaracolados observava aquelescachorros com ateno, ento saltou agilmente entre eles, apanhou o bocado e o enouna prpria boca. Sua me, que negociava em uma barraca logo ao lado, olhou ao redor e oarrastou para longe, puxando seu brao e dando-lhe um tapa violento na cabea. Opequeno se encolheu, mastigando com avidez o que quer que tivesse apanhado do cho.

    O galpo de tecelagem cava mais frente, em uma rea misericordiosamenteprotegida pelas sombras de rvores grandes. Era mais silencioso ali, e mais fresco,embora houvesse mosquitos em maior quantidade. Sentadas diante de seus teares demadeira, as mulheres cumprimentaram Kira com um aceno de cabea quando elachegou.

    Tem um monte de sobras para apanhar avisou uma delas, apontando com acabea, sem parar seu trabalho.

    Limpar a baguna era a funo habitual de Kira. Ainda no tinha permisso paraoperar os teares, embora sempre tivesse observado tudo com ateno e acreditasse sercapaz de fazer o servio se fosse preciso.

    Fazia dias estava afastada do galpo, desde que a me adoecera e morrera. Muita coisahavia acontecido. Muita coisa havia mudado. Ela imaginava que no fosse voltar ali agoraque seu status parecia ser diferente. Mas, como a tinham chamado de modo to amigvel,Kira atravessou o galpo, em meio ao barulho do trabalho ao redor, apanhando as sobrasdo cho. Um dos teares estava parado; no havia ningum nele.

    Era o quarto a partir do ltimo, contou ela. Geralmente era Camilla quem ficava ali.Kira se deteve ali e esperou uma fiandeira reajustar sua lanadeira. Onde est Camilla? perguntou Kira, curiosa.s vezes, as mulheres tiravam pequenas folgas para casar ou dar luz ou

    simplesmente recebiam outra tarefa temporria.A andeira olhou para o lado, com as mos ainda ocupadas e os ps acionando o

    pedal. Ela caiu de mau jeito l no riacho. Enquanto lavava roupa. As pedras so cheias de

    limo. So mesmo; escorregadio ali. Kira s vezes escorregava beira do riacho, onde as

    lavadeiras ficavam.A mulher deu de ombros. Ela quebrou feio o brao. No d para consertar. Nunca mais vai car direito. No

    presta mais para trabalhar no tear. O marido dela tentou de tudo quanto jeitoendireitar o brao, porque precisa dela. Para cuidar dos pequenos e tudo o mais. Mas elavai acabar sendo levada para o Campo.

    Kira se arrepiou, imaginando a dor que Camilla devia ter sentido enquanto o maridotentava colocar o brao quebrado numa posio em que ele pudesse sarar.

  • Ela tem cinco pequenos, a Camilla. Agora no pode cuidar deles ou trabalhar. Elesvo ser dados. No quer um? A mulher sorriu para Kira.

    Tinha poucos dentes.Kira balanou a cabea. Abriu um sorriso sem graa e continuou a avanar pelo

    corredor entre os teares. Quer car com o tear dela? indagou a mulher. Vo precisar que algum trabalhe

    nele. Voc j deve estar pronta.Kira tornou a fazer que no. Ela j tinha desejado trabalhar na tecelagem. As

    fiandeiras sempre haviam sido boas com ela. Mas seu futuro parecia diferente agora.Os teares seguiam fazendo barulho. Das sombras do galpo, Kira notou que o sol

    estava mais baixo no cu. Logo o sino bateria quatro vezes. Ela meneou a cabea para sedespedir das mulheres e se dirigiu para o lugar onde vivera com a me, o lugar em quedurante tanto tempo estivera seu casebre, o lugar do nico lar que ela havia conhecido navida. Sentia necessidade de dizer adeus.

  • 6O enorme sino na torre do Edifcio do Conselho comeou a repicar. Ele governava a

    vida das pessoas. Dizia-lhes quando comear a trabalhar e quando parar; quando sereunir para uma assembleia; quando se preparar para uma caada, celebrar umacontecimento ou armar-se para enfrentar perigos. Quatro batidas a terceira ressoavaagora indicavam o m do dia de trabalho. Para Kira, signicava que era hora de seapresentar ao Conselho dos Guardies. Ela se apressou na direo da praa principal,atravessando a turba que deixava o servio.

    Matt estava esperando nos degraus da escada como havia prometido.Toquinho brincava animadamente com um grande besouro iridescente, bloqueando

    seu caminho com uma pata todas as vezes que o inseto tentava passar. O co olhou paracima e balanou o rabo torto em resposta ao cumprimento de Kira.

    O que que oc trouxe? perguntou Ma, olhando para a pequena trouxa que Kiracarregava nas costas.

    No muita coisa. Ela riu com melancolia. Mas eu tinha levado algumas coisaspara a clareira, ento elas sobreviveram ao incndio. Meu cesto de linhas e algunsretalhos de tecido. E olhe s isto, Ma. Ela enou a mo no bolso e sacou um objetooblongo cheio de caroos. Encontrei meu sabo em cima da rocha onde o tinha deixado.Isso timo, porque no sei como fazer um desses e no tenho moedas para compraroutro.

    Ento ela riu, notando que Matt, apesar de imundo e desgrenhado, no achava til umsabo. Imaginava que o amigo tivesse uma me em algum lugar, e geralmente as mesdavam banho em seus pequenos, mas ela nunca o vira limpo.

    Ei, eu trouxe isto aqui. Ma indicou uma pilha de objetos embrulhados dequalquer jeito em um pano sujo no degrau mais prximo dele. Umas coisas eu pegueiantes da queimada, pro caso deles te deixarem ficar.

    Obrigada, Matt. Kira tentou imaginar o que ele teria escolhido salvar.

    Mas oc no vai poder carregar isso tudo por causa da sua perna troncha. Ento vouser o seu carregador, assim que eles disserem pra onde oc vai. bom que eu cosabendo tambm.

    Kira gostou da ideia de Matt acompanh-la e saber onde ela moraria.Faria aquilo tudo parecer menos estranho. Espere aqui, ento. Preciso entrar. E eles vo me mostrar onde vou morar a partir de

    agora. Depois eu volto para buscar voc. Tenho que me apressar, Ma, porque o sino jparou de tocar e eles me disseram para vir logo que soassem as quatro batidas.

    Eu e Toquinho podemos esperar. Tenho um chupa-chupa que roubei duma barraca

  • aqui. Ma retirou um doce coberto de sujeira do bolso. E Toquinho adora quando temum inseto monstruoso pra cutucar, como ele t fazendo agora.

    O co levantou as orelhas ao ouvir seu nome, mas nem desviou os olhos do besourono degrau.

    Kira entrou s pressas no Edifcio do Conselho.Apenas Jamison estava sua espera no amplo salo. Ela se perguntou se, por ter sido

    designado seu defensor no julgamento, ele agora seria seu supervisor. Kira sentiu-se umpouco irritada, pois era velha o suciente para se virar sozinha. Muitas garotas da suaidade j estavam se preparando para o casamento. Sempre soubera que no iria se casar:sua perna deformada descartava totalmente essa hiptese; ela jamais poderia ser umaboa esposa e tampouco conseguiria executar as muitas tarefas exigidas de uma mulhercasada. Mas certamente conseguiria se virar sozinha. Sua me tinha conseguido e lheensinara como.

    Quando ele a recebeu com um gesto de boas-vindas, sua breve irritao desapareceu efoi logo esquecida.

    A est voc. Jamison se levantou e dobrou os papis que estava lendo. Vou lhemostrar seus aposentos. aqui perto, em uma das alas deste edifcio. Ele tou Kira e apequena trouxa que ela carregava nas costas. Isto tudo o que voc tem?

    Kira ficou feliz com a pergunta, pois lhe deu a oportunidade de mencionar Matt. No exatamente. Mas no posso carregar muita coisa por causa da... Ela indicou a

    prpria perna e Jamison assentiu. Logo, um garoto me ajuda.

    O nome dele Ma. Espero que no se importe, mas ele est esperando nos degrausde entrada com minhas outras coisas. O senhor o deixaria continuar comigo, como meuajudante? Ele um bom menino.

    Jamison franziu um pouco a testa. Ento, virou-se e ordenou a um dos guardas: Traga o menino que est na escadas. Ah interveio Kira. Tanto Jamison quanto o guarda se viraram para ela.

    Constrangida, a menina at se inclinou um pouco, em uma reverncia involuntria, eps-se a falar baixinho, em tom de desculpas: Ele tem um cachorro. No vai para lugarnenhum sem ele. E acrescentou com um sussurro: O cachorro bem pequenininho.

    Jamison a encarou com impacincia, como se tivesse percebido de repente o fardoque ela representaria. Por fim, suspirou.

    Traga o cachorro tambm ordenou ao guarda.Os trs foram conduzidos por um corredor. Eram um trio estranho: Kira frente,

    apoiada no cajado, arrastando a perna com aquele som caracterstico de vassoura; Malogo atrs, calado para variar, os olhos arregalados, assimilando a grandiosidade que ocercava; e por m, com as unhas ressoando contra o piso de ladrilhos, o cachorro de rabo

  • torto carregava alegremente um besouro que se contorcia em sua boca.Ma largou a trouxa com os pertences de Kira no cho em frente porta, mas decidiu

    no entrar no quarto. Assimilou tudo com uma expresso respeitosa e solene nos olhosesbugalhados e anunciou: Eu e Toquinho, a gente vai esperar aqui fora no... Como quechama isto mesmo? Ele contemplou o espao amplo em que estava parado.

    Corredor respondeu Jamison.Matt fez que sim com a cabea. A gente vai esperar aqui no corredor, ento. No vai entrar por causa dos bichinhos

    midos.Kira olhou para baixo, mas o besouro j havia sido devorado. E, pensando bem, o

    inseto no tinha nada de mido e o prprio Matt dissera que era monstruoso. Bichinhos midos? indagou Jamison, com a testa franzida. Toquinho tem pulgas explicou Matt, fitando o cho.Jamison balanou a cabea. Kira viu seus lbios se remexerem, como se estivesse

    achando graa. Ele a conduziu para o quarto.Kira cou pasma. O casebre onde vivera com a me era um simples barraco de cho

    de terra. Suas camas eram prateleiras de madeira suspensas forradas de palha. Utensliosartesanais continham seus pertences e alimentos; as duas sempre comiam juntas mesade madeira que o pai havia feito bem antes de ela nascer. Kira se entristecera ao perderaquela mesa no incndio por conta das lembranas que ela lhe trazia da me. Katrinacostumava descrever as mos fortes do marido lixando a madeira e arredondando asquinas para no colocar em perigo o beb que estava por vir. Agora, tudo se reduzira acinzas: a madeira lisa, os cantos abaulados, a memria das mos dele.

    O quarto em que estava agora tinha vrias mesas, entalhadas e delicadas, feitas pormos habilidosas. E a cama era de madeira, coberta com lenis nos. Kira nunca virauma daquelas e imaginava que seus ps altos servissem para proteger as pessoas deanimais ferozes ou insetos.

    Mas certamente no havia nada parecido ali, no Edifcio do Conselho; at Ma notaraisso e preferira manter as pulgas de seu co no corredor. Pelas janelas envidraadas, Kirapodia ver o topo das rvores; o quarto dava para a floresta atrs do prdio.

    Jamison abriu uma porta dentro do quarto, revelando um aposento menor, semjanelas, repleto de gavetas largas.

    A tnica do Cantor fica guardada aqui.Ele entreabriu uma das gavetas e ela enxergou a tnica dobrada com seus bordados

    de cores fortes l dentro. Ento, fechou-a e gesticulou para outras gavetas menores. Materiais. Tudo o que voc possa precisar.Ele retornou ao quarto e abriu uma porta do outro lado. A princpio, ela teve a

    impresso de vislumbrar apenas pedras lisas, mas era na verdade um cho de ladrilhos

  • verde-claros. Aqui voc tem gua explicou Jamison , para se lavar e para todas as suas demais

    necessidades.gua? Dentro de casa?Jamison voltou porta de entrada e olhou para Ma e Toquinho. O garoto estava

    agachado no cho, chupando seu doce. Se quiser que o menino fique com voc, pode dar um banho nele aqui.No co tambm. H uma banheira para isso.

    Matt o ouviu e ergueu os olhos para Kira, angustiado. No. Eu e Toquinho, a gente tem que ir andando. Com uma expresso preocupada,

    perguntou: Oc no vai ficar presa aqui, vai? No, ela no vai car presa garantiu Jamison. Por que acha que faramos uma

    coisa dessas?Voltando-se para Kira, ele avisou: Sua ceia ser trazida para c. Voc no est

    sozinha: o Entalhador vive mais frente, na outra ponta do corredor. Ele gesticuloupara uma porta fechada.

    O Entalhador? O menino chamado Thomas? Kira cou surpresa. Ele tambmmora aqui?

    Mora. Voc pode visitar o quarto dele. Os dois devem trabalhar durante o dia, maspodem fazer as refeies juntos. Por enquanto, tente se habituar com seus aposentos ecom as ferramentas. Descanse um pouco.

    Amanh conversaremos sobre o seu trabalho. Agora, deixe-me acompanhar o meninoe o cachorro at a sada.

    Ela cou parada no umbral, observando o trio se afastar pelo longo corredor: ohomem liderando o grupo, Ma andando de peito estufado logo atrs e o co seguindo-ode perto. O menino olhou para trs, acenou rapidamente para ela e sorriu com umaexpresso intrigada. Seu rosto, sujo de doce, exibia entusiasmo. Ela sabia que em poucosminutos ele contaria aos colegas que conseguira escapar de um banho. Seu cachorrotambm, assim como todas as pulgas dele. Por um triz.

    Sem fazer barulho, ela fechou a porta e olhou ao redor.Kira teve dificuldade em dormir. Era tudo muito estranho.Apenas a lua lhe parecia familiar. Naquela noite ela estava quase cheia, inundando

    seu novo lar com uma luz prateada. Se fosse uma noite parecida com a de sua outra vida,no antigo casebre sem janelas, ela talvez tivesse se arriscado a aproveitar aquele brilho.Em algumas noites de luar, ela e a me saam de ninho para carem juntas na brisa,matando mosquitos e observando as nuvens deslizarem frente da esfera cintilante nocu noturno.

  • Ali, por uma janela um pouco entreaberta, a brisa noturna e o luar entravam juntosno quarto. A luz escorria pela mesa de canto e derramava-se pelo cho de madeiraencerada. Ela via seu par de sandlias ao lado da cadeira em que se sentara para tir-las.Via o cajado apoiado em uma quina, sua sombra projetada na parede.

    Via as formas dos objetos em cima da mesa, as coisas que Ma havia trazido em umatrouxa para ela. Perguntou-se como ele escolhera o que levar. Provavelmente tinhadecidido s pressas, enquanto o incndio comeava; talvez tivesse apenas apanhado oque foi possvel com suas mos pequenas, impulsivas e generosas.

    Seu quadro de tear estava ali. Ela agradeceu mentalmente a Ma. O amigo havia selembrado de como o objeto era importante para ela.

    Ervas desidratadas em um pequeno cesto. Kira cou feliz por ainda t-las e esperavaconseguir recordar a utilidade de cada uma delas. No que as ervas tivessem servido dealguma coisa contra aquela doena terrvel da me; mas para coisas pequenas, como umador no ombro, uma picada inamada ou inchada, eram teis. E tambm cou contentepelo cesto: lembrava-se de quando a me o tranara usando o mato que crescia beira dorio.

    Algumas batatas massudas. Kira sorriu ao imaginar Ma pegando a comida,provavelmente aproveitando para dar umas mordiscadas. No precisava mais delas. Arefeio que lhe haviam trazido em uma bandeja no m da tarde tinha sido farta: fatiasgrossas de po e uma sopa de carne com cevada e seleta de legumes, fortementecondimentada com especiarias saborosas que ela no conseguiu identicar. Kira acomera em uma tigela de cermica esmaltada com uma colher feita de osso, e entolimpara a boca e as mos com um pano de tecido fino.

    Kira nunca tinha feito uma refeio to elegante. Ou to solitria.Em meio ao pequeno conjunto de itens, havia peas de roupas dobradas de sua me:

    um xale grosso com a ponta franjada e uma saia manchada pelas tinturas que elacostumava usar, dando a impresso de que o pano simples e liso era estampado comlistras coloridas. Pensando sonolenta naquela saia, Kira imaginou como poderia usarsuas linhas para destacar as listras e, com habilidade e com o tempo, pois isso levariatempo , transform-la em uma pea de roupa adequada para algum tipo decomemorao.

    No que ela j houvesse tido motivo para comemorar algo. Exceto talvez os ltimosacontecimentos: seus novos aposentos, seu novo trabalho, o fato de sua vida ter sidopoupada.

    Kira revirava-se de um lado para o outro na cama. Sentiu um objeto em seu pescoo,que tambm tinha vindo no embrulho trazido por Ma; na opinio dela, a coisa maisvaliosa que ele havia salvado. Era o pingente que sua me usava escondido debaixo dasroupas. Kira sabia da existncia dele, o tocara e acariciara vrias vezes quando era uma

  • pequena que ainda mamava. Tratava-se de um pedao de pedra brilhante, cortada demodo a car lisa de um lado, mas cravejada de cristais roxos e reluzentes do outro, comum buraco pelo qual passava uma tira de couro. Era um objeto simples, porm incomum.Fora presente do pai de Kira e era estimado por Katrina como uma espcie de talism.Kira o havia tirado quando a me estava doente, para poder lavar seu corpo febril,colocando-o na prateleira ao lado do cesto de ervas. Matt provavelmente o encontrara ali.

    Usando-o agora em volta do prprio pescoo, Kira o levou sua face, na esperana deevocar de novo a presena da me, talvez de sentir o seu cheiro: ervas, tinturas e oressecas. Mas a pequena pedra era inerte e inodora, sem o menor vestgio de recordaes ouvida.

    Em contraste, o retalho que Kira carregara no bolso, o mesmo que havia tomadoforma de maneira to mgica em seus dedos, se mexeu perto da sua cabea, onde odeixara. Talvez tivesse sido movido pela brisa noturna que entrava pela janela aberta.Concentrada no luar e em seus pensamentos, a princpio Kira nem notou. Ento, viu obordado tremular um pouco sob a luz esbranquiada, como se tivesse vida prpria. Elasorriu e passou-lhe pela cabea que ele era como o cozinho de Ma, olhando para cima,balanando as orelhas, sacudindo seu pobre rabo, louco por ateno.

    Kira estendeu a mo e tocou o bordado. Sentindo seu calor, fechou os olhos.Uma nuvem ocultou a lua e o quarto foi engolido pela escurido. Enm, ela

    adormeceu, sem sonhos. Quando Kira acordou pela manh, o pequeno retalho estavasem vida, nada mais do que a sobra amarrotada de um tecido bonito em cima da suacama.

  • 7Um ovo! Isso era um luxo. Alm do ovo cozido, sua bandeja de caf da manh

    continha mais daquelas fatias grossas de po e uma tigela de cereais quentes nadandoem creme de leite. Kira bocejou e ps-se a comer.

    Ao acordar, ela e a me geralmente andavam at o riacho. Imaginava que o recinto deazulejos verde-claros estivesse ali para substitu-lo. Mas Kira estava aita em relao aele. Tinha entrado ali na noite anterior e aberto as vrias torneiras reluzentes. Para seuespanto, gua quente saiu de algumas delas. Devia ser para cozinhar. Pelo jeito havia umfogo aceso em algum lugar l embaixo. Aquela gua fora levada at ali de algumamaneira, mas o que deveria fazer com ela? No havia necessidade de preparar comida,tornou a pensar Kira, pois recebia refeies quentes.

    Ainda confusa, Kira voltou sua ateno para a banheira longa e baixa.Jamison tinha sugerido que ela desse banho em Ma ali. Havia algo nela que parecia

    e cheirava como sabo. Debruando-se sobre a beirada da banheira, tentou se limpar,mas o processo lhe pareceu complicado e antinatural; era muito mais simples no riacho,onde podia lavar suas roupas e pendur-las nos arbustos. Ali, naquele recinto pequeno esem janelas, no havia lugar para secar nada. Nem brisa. Muito menos sol.

    Era interessante, concluiu Kira, que eles tivessem encontrado uma maneira de trazergua para dentro do edifcio, mas que no fosse algo prtico ou salubre; alm disso, nohavia onde enterrar os dejetos. Ela enxugou o rosto e as mos com a toalha queencontrou no recinto azulejado e decidiu que voltaria ao riacho todos os dias para fazersuas necessidades como deveria ser.

    Vestiu-se depressa, amarrou as sandlias, penteou os cabelos longos com seu pentede madeira, apanhou o cajado e cruzou a passos rpidos o corredor vazio para sair de suanova casa e dar uma caminhada matinal.

    Mas, antes que pudesse chegar muito longe, uma porta se abriu e um rapaz conhecidosaiu.

    Kira, a Bordadora disse ele. Me contaram que voc viria. Voc o Entalhador. Jamison me contou que estava aqui. Sim, sou Thomas.Ele abriu um sorriso.Thomas parecia ser mais ou menos da idade de Kira, tendo recebido havia pouco sua

    segunda slaba. Era um rapaz bonito, de pele clara e olhos vivos. Seus cabelos erambastos e arruivados. Quando sorria, via-se que um dos dentes da frente era lascado.

    aqui que eu moro explicou ele, e abriu mais a porta para que ela pudesse ver ointerior.

    Seu quarto era quase igual ao dela, s que, por estar do outro lado do corredor, sua

  • janela dava para a ampla praa principal. Kira tambm notou que o aposento pareciamais habitado, com as coisas de Thomas espalhadas por todo lado.

    Aqui tambm minha ocina. Ele indicou com um gesto uma mesa grande comsuas ferramentas e pedaos de madeira. E tenho uma despensa, para as coisas de quepreciso. Ele tambm a apontou.

    Sim, o meu igual. Minha despensa tem um monte de gavetas.