O ENSINO DA LEITURA E DA ESCRITA NOS ANOS DE 1960...

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O ENSINO DA LEITURA E DA ESCRITA NOS ANOS DE 1960 NO MUNICÍPIO DE LINHARES/ES NEUSA BALBINA DE SOUZA. Resumo Este artigo apresenta as práticas de ensino de leitura e de escrita desenvolvidas em turmas de alfabetização, com uso dos métodos sintéticos de soletração e de silabação e do método Global de Contos, ambos difundidos pela cartilha ’Caminho Suave’, pelo método ’Dom Bosco’ de base e pela série ’As mais Belas histórias’ nos anos de 1960, no município de Linhares/ES. O recorte foi feito da pesquisa de mestrado que objetivou investigar as práticas de alfabetização na fase inicial da escolarização, desenvolvidas, na década de 1960, no Município de Linhares/ES. Pautada na concepção bakhtiniana de linguagem, sobretudo em sua noção de texto, a análise documental possibilita constatar que as políticas educacionais, engendradas na esfera do ensino primário, sobretudo na primeira série, visava atender as exigências do setor econômico de base industrial em desenvolvimento no Estado, pautada na concepção produtivista da escola. Com relação ao ensino da leitura e da escrita verifica–se ter se sustentado nos tradicionais métodos sintético e analítico–sintético propagados nas cartilhas, livros de leitura e pré–livros utilizados nas escolas. Em função disso a linguagem é tomada como sistema fechado de normas imutáveis a ser adquirida pelos sujeitos do processo ensino– aprendizagem (professor e aluno) num processo mecânico de assimilação, decifração e decodificação. Considera a alfabetização, a leitura e a escrita, como resultado da atividade de linguagem humana desenvolvida sócio e historicamente em contextos reais de produção e de interação verbal. Palavras-chave: Linguagem escrita, Métodos de ensino, Alfabetização. INTRODUÇÃO As práticas de ensino da leitura e da escrita desenvolvidas nos contextos escolares têm sido um tema de muito interesse no campo da linguagem. Esse interesse evidencia preocupação em buscar supostas causas das problemáticas enfrentadas, sobretudo no cotidiano escolar, sobre as dificuldades ou insucesso das crianças, jovens e adultos na aprendizagem da leitura e da escrita. Nessa perspectiva, consideramos que os estudos de abordagem histórica no campo da alfabetização são imprescindíveis para a compreensão dos problemas vivenciados na atualidade, pois apontam a historicidade do desenvolvimento do ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, possibilitando buscar alternativas para a superação dos problemas que ainda permanecem. Assim, este artigo tem como objetivo discutir as práticas de ensino da leitura e da escrita desenvolvidas no município de Linhares/ES[1], na década de 1960. Tomaremos, neste trabalho, as práticas que foram orientadas pelo método sintético de soletração e de silabação e pelo Método Global de Contos difundidos pela cartilha Caminho suave e também o Método Dom Bosco e a série As Mais Belas Histórias.

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O ENSINO DA LEITURA E DA ESCRITA NOS ANOS DE 1960 NO MUNICÍPIO DE LINHARES/ES NEUSA BALBINA DE SOUZA. Resumo Este artigo apresenta as práticas de ensino de leitura e de escrita desenvolvidas em turmas de alfabetização, com uso dos métodos sintéticos de soletração e de silabação e do método Global de Contos, ambos difundidos pela cartilha ’Caminho Suave’, pelo método ’Dom Bosco’ de base e pela série ’As mais Belas histórias’ nos anos de 1960, no município de Linhares/ES. O recorte foi feito da pesquisa de mestrado que objetivou investigar as práticas de alfabetização na fase inicial da escolarização, desenvolvidas, na década de 1960, no Município de Linhares/ES. Pautada na concepção bakhtiniana de linguagem, sobretudo em sua noção de texto, a análise documental possibilita constatar que as políticas educacionais, engendradas na esfera do ensino primário, sobretudo na primeira série, visava atender as exigências do setor econômico de base industrial em desenvolvimento no Estado, pautada na concepção produtivista da escola. Com relação ao ensino da leitura e da escrita verifica–se ter se sustentado nos tradicionais métodos sintético e analítico–sintético propagados nas cartilhas, livros de leitura e pré–livros utilizados nas escolas. Em função disso a linguagem é tomada como sistema fechado de normas imutáveis a ser adquirida pelos sujeitos do processo ensino–aprendizagem (professor e aluno) num processo mecânico de assimilação, decifração e decodificação. Considera a alfabetização, a leitura e a escrita, como resultado da atividade de linguagem humana desenvolvida sócio e historicamente em contextos reais de produção e de interação verbal. Palavras-chave: Linguagem escrita, Métodos de ensino, Alfabetização.

INTRODUÇÃO

As práticas de ensino da leitura e da escrita desenvolvidas nos contextos escolares têm sido um tema de muito interesse no campo da linguagem. Esse interesse evidencia preocupação em buscar supostas causas das problemáticas enfrentadas, sobretudo no cotidiano escolar, sobre as dificuldades ou insucesso das crianças, jovens e adultos na aprendizagem da leitura e da escrita. Nessa perspectiva, consideramos que os estudos de abordagem histórica no campo da alfabetização são imprescindíveis para a compreensão dos problemas vivenciados na atualidade, pois apontam a historicidade do desenvolvimento do ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, possibilitando buscar alternativas para a superação dos problemas que ainda permanecem.

Assim, este artigo tem como objetivo discutir as práticas de ensino da leitura e da escrita desenvolvidas no município de Linhares/ES[1], na década de 1960. Tomaremos, neste trabalho, as práticas que foram orientadas pelo método sintético de soletração e de silabação e pelo Método Global de Contos difundidos pela cartilha Caminho suave e também o Método Dom Bosco e a série As Mais Belas Histórias.

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Elegemos, para esta investigação, a pesquisa do tipo documental. Para constituição do corpus, reunimos um conjunto de documentos (textos) escritos e orais de fontes primárias e secundárias. O trabalho de coleta comportou três etapas. Na primeira, reunimos as fontes documentais impressas, compostas por textos produzidos na esfera da administração pública, ou seja, textos normativos, principalmente, relacionados com o ensino primário e com a alfabetização, elaborados na década de 1960. Esses documentos foram recuperados nos acervos do Arquivo Público Estadual do Espírito Santo, na Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo e na Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo.

A segunda etapa consistiu na coleta dos relatos de seis professoras que atuaram em classes de alfabetização em escolas desse município, na década de 1960, concedidos por meio de entrevistas semiestruturadas, com a finalidade de sabermos como foram desenvolvidas as práticas de ensino da leitura e da escrita. Das professoras, quatro possuíam, no início de sua carreira, formação específica para o exercício do magistério (antigo Curso Normal) e duas haviam concluído a quarta série do ensino primário. Cinco delas iniciaram em escolas localizadas na zona rural. O tempo de atuação de cada uma em classes de alfabetização variou de dez a vinte anos.

Na terceira etapa, reunimos, de acordo com os depoimentos das professoras, os métodos, os materiais, as cartilhas e os livros utilizados por elas em suas práticas de alfabetização. Esses materiais foram recuperados em acervos particulares de professoras, sebo virtual (internet) e na biblioteca da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

Tendo em vista que a nossa investigação visou a apreender, no entrecruzamento de vozes sociais (políticas e ideológicas), os discursos que sustentaram as práticas de alfabetização em Linhares/ES, nos anos de 1960, tomamos o ser humano, numa perspectiva bakhtiniana, como produtor de texto. Nessa condição, ou seja, como produtor de texto, o ser humano não pode ser compreendido desintegradamente da sociedade. Sendo assim, a busca de compreensão de um dado fenômeno é sempre dialógica. Na situação específica deste trabalho, a análise dos textos que circularam na década de 1960 implicou, inevitavelmente, o diálogo com a realidade em que foram produzidos, pois, para Bakhtin (1997), o diálogo é uma das formas mais importantes de interação verbal, que não se caracteriza apenas na comunicação em voz alta, mas, também, por todo e qualquer tipo de comunicação humana.

Para Bakhtin (1997), a responsividade é a principal característica da interação pela linguagem. Entendida como compreensão ativa, apresenta-se como uma evidente posição dos sujeitos em frente ao discurso do(s) outro(s). "Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra" (BAKHTIN, 2004, p. 132, grifo do autor), ação essa praticada por todo ouvinte (leitor) que se depara com um enunciado de outrem. Para o autor (1997, p. 355), "A compreensão do todo do enunciado e da relação dialógica que se estabelece é necessariamente dialógica". Assim sendo, no

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campo da pesquisa das ciências humanas, o trabalho do pesquisador é buscar compreender o ato humano. A compreensão, no entanto, só será possível numa relação dialógica, quando se considera o encontro entre duas consciências dos sujeitos de linguagem. O entendimento dos textos passa pela inevitável compreensão das condições de sua produção, ou seja, do contexto em que foram produzidos. E isso só é possível, de acordo com Bakhtin (1997, p. 404), a partir do cotejamento com outros textos, pois "O texto só vive em contato com outro texto [...]" e com a realidade em que foi produzido ─ o contexto.

Pensar a leitura na perspectiva bakhtiniana é considerá-la como atividade de interlocução, de interação entre autor e leitor, é considerá-la como prática social, ação de sujeitos. Desse modo, a leitura implica a produção de sentidos que se concretiza pela atitude responsiva. A responsividade é o próprio ato de compreensão e todo ato de compreensão é de natureza dialógica, implica ouvir a palavra do outro e oferecer uma contrapalavra. "[...] A palavra quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por sua vez, responder à resposta [...]" (BAKHTIN, 2000, p. 357).

Nessa perspectiva, ler é dialogar com o texto e, para que se efetive o diálogo, é necessário haver compreensão, essa, no entanto, é considerada um processo ativo e criativo da interação verbal, é ponto de encontro dos interlocutores do texto.

Nesse sentido, buscamos analisar o processo de ensino da leitura e da escrita desenvolvido com as crianças de turmas de alfabetização, considerando a realidade e o contexto social, político, cultural e econômico em que os sujeitos desse processo estiveram inseridos.

Vale ressaltar que os ideais ou os objetivos do ensino da leitura e da escrita nos anos de 1960, no Espírito Santo, estavam atrelados às concepções das teorias do capital humano e do caráter reprodutivista da escola expressas nos programas de ensino e nas políticas públicas educacionais do Estado e do País. Desse modo, a educação foi desenvolvida, no Estado, com vistas a atender às necessidades da sociedade capitalista mediante as alterações na base econômica, ou seja, na intensificação do desenvolvimento do setor industrial como vinha ocorrendo no País. Nesse contexto, a leitura era ensinada pelas professoras, tendo como base os tradicionais métodos de alfabetização: o de marcha sintética (soletração, silabação), o de marcha analítico-sintética (historieta, palavração), reproduzidos nos livros, pré-livros e cartilhas usados.

O ENSINO DA LEITURA E DA ESCRITA, OS MÉTODOS E AS CARTILHAS

Do recorte adotado para este artigo, selecionamos depoimentos de três professoras que atuaram em turmas de alfabetização nos anos de 1960. Pudemos observar que suas práticas de alfabetização, desenvolvidas nas salas de aula, não se diferenciavam muito umas das outras a não ser por alguns aspectos estratégicos,

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ou seja, eram, de certo modo, homogêneas, obedeciam aos mesmos princípios, técnicas e concepções, como podemos constatar nos depoimentos dessas professoras.

[...] ensinava primeiro passando letrinhas... começava pelas letras [...] então eu passava pra eles no quadro-negro... enquanto eles faziam o deverzinho eu ensinava os outros que não sabiam... assim não tinha grandes métodos [...] eu ensinava a soletrar era o B A BA. [...] quando eles aprendiam já liam... dava aula... por exemplo a criança começava... um começava ler... aí parava no parágrafo a outra continuava [...] (ALVES, 2007, informação verbal).

O caderno de plano de aula mostra as atividades realizadas pela professora no dia 23 de agosto de 1962:

ANEXO 1 COLE_3265_12079185011.JPG

Figura 1 ─ Plano de aula - uso do método individual e de soletração

Fonte: Arquivo pessoal da professora Nilceia de Freitas Alves, Linhares, 2007

Desse modo, segundo registrado no caderno da professora, primeiro, ela ensinava a lição individualmente e, depois, escrevia palavras no quadro para as crianças lerem conjuntamente.

Com relação ao método de soletração mencionado pela professora, ou método A B C, sua utilização também se efetivou nas salas de aulas regidas pela professora Arlene Campos, conforme apontado por ela: "[...] o método era soletração eu soletrava até quase morrer [risos] eu acho que a crença supera tudo... a gente acreditava no b a bá e largava o b a bá com vontade [...]" (CAMPOS, 2008, informação verbal). Segundo a professora, a utilização desse método no ensino da leitura não garantia aos alunos resultados satisfatórios devido ao modo como era desenvolvido na sala de aula:

[...] a gente pegava esse negócio isolado e fazia uma bolinha... assim... rasgava o papel... escrevia o alfabeto e ficava movendo aquela bolinha ... que letra é essa... que letra é essa... que letra é essa... sem contextualizar... sem quadro... quer dizer o aluno recebia pouca aula [...] (CAMPOS, 2008, informação verbal).

O método da soletração, de acordo com Gontijo (2008, p. 128-129), bastante utilizado nas escolas da Província do Espírito Santo, foi contestado por Silva Jardim, em 1882, por considerá-lo constituído por um sistema abstrato que não contribuía para o desenvolvimento intelectual das crianças. Segundo ela,

Silva Jardim condenava o processo seguido no ensino da leitura pela soletração, que consiste ‘[...] em fazer a criança decorar 50 lettras, 25 do alfhabeto maiusculo e 25 do minusculo, seguindo-se a este trabalho o estudo, por largos meses e às

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vezes até annos, das cartas de syllabas, para poder ella, afinal, iniciar o das palavras'.

Além do método da soletração, a professora Nilceia Alves relatou ter utilizado também o método Dom Bosco de silabação que parte de palavras-chave com ênfase no ensino das famílias silábicas. De autoria de Almeida e Barros (1969), o método baseia-se na associação de sílabas. Sua aplicação se dava a partir do ensino de apenas 27 sílabas básicas apresentadas às crianças, uma a duas por aula. As sílabas e a ordem em que devem ser ensinadas são as seguintes: ta de tatu, fa de faca, pa de panela, va de vaca, ba de banana, la de lata, da de dado, ma de mala, na de navio, ga de gato, ra de rato, ca de casa, cha de chave, sa de sapato, gua de guarda-chuva, já de jarra, qua de quadro, za de zarolho, nha de nhanha, xá de xarope, lha de talha, ça de taça, rra de gangorra, ssa de passarinho, que de queijo, gui de guitarra e ha de harpa.

ANEXO 2 COLE_3265_12079185349.JPG

Figura 2 ─ Página do caderno de atividades do aluno - método Dom Bosco

Fonte: acervo particular de Neusa Balbina de Souza

O método de silabação foi também utilizado pela professora Rosely Pinto: "A gente ensinava através da silabação... quando eu comecei a alfabetizar eu já ensinei assim... já ensinei a sílaba [...] não peguei essa fase não... que era da soletração" [...] (PINTO, 2007, informação verbal). Ao descrever sua prática, Rosely Pinto (2008) pontua que seguia as orientações contidas na cartilha Caminho Suave, de Branca Alves de Lima.

Segundo Mortatti (2000), a autora da cartilha baseou-se no método analítico-sintético para a elaboração de um processo denominado por ela de "alfabetização pela imagem". Esse tipo de "alfabetização" consistia, basicamente, em destacar a sílaba inicial de uma palavra alusiva à determinada figura apresentada à criança. Mortatti (2000) afirma que a autora da cartilha acreditava que a criança, ao ver uma letra ou palavra escrita, associaria os sinais gráficos à imagem do desenho e, assim, suscitaria na memória o som correspondente. Ou seja, as figuras tinham a função mnemônica.

ANEXO 3 COLE_3265_12079185622.JPG

Figura 3 ─ Capa e folha de rosto da Cartilha Caminho Suave

Fonte: Acervo do CEALE/Biblioteca da Faculdade de Educação da UFMG

O ensino da leitura e da escrita tinha início após o período de "prontidão" sugerido na Cartilha, começando pelo ensino das vogais. Com base nas colocações da professora Rosely, constatamos que ela seguia devidamente as orientações da

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cartilha: "[...] primeiro a gente ensinava as vogais... então cada vogal.... ela era associada a um desenho.. a de asa... eu não me lembro mais... então a gente ensinava as vogais primeiro [...]" (PINTO, 2007, informação verbal).

Após a apresentação da vogal, eram aplicadas muitas atividades de fixação. Os exercícios propostos às crianças eram do tipo: ligar as palavras iguais, ler em voz alta, transcrever para o caderno as vogais escritas pela professora no quadro-negro, ditado, etc. A Figura 4, retirada da cartilha Caminho Suave, apresenta atividades presentes na Cartilha.

ANEXO 4 COLE_3265_12079185812.JPG

Figura 4 ─ Atividades sugeridas para fixação das vogais na cartilha

Fonte: Acervo do CEALE/Biblioteca da Faculdade de Educação da UFMG

Desse modo, Rosely também procedia dando sequência às atividades:

[...] depois a gente começava ensinar as sílabas... por exemplo... ba de bala... ele [a criança] não aprendia b com a ba... ele aprendia logo o ba... a gente ensinava o ba e a família do ba ba be bi bo bu porque aí já conheciam as vogais [...] eu tinha os cartazes... por exemplo ba... eu não lembro... vamos que seja ba de bala... aí eu tinha lá o desenho na cartilha com toda aquela leitura... palavras todas com ba com bo com bi etc. e tal e o desenho bala... uma bala grande... e ba... aí eu tinha o cartaz o mesmo cartaz com aquilo entendeu então a gente pendurava o cartaz [...] (PINTO, 2007, informação verbal).

Rosely pontua que, "[...] depois que ensinava essas sílabas... a gente ia juntar as sílabas... o ba... com vamos ver com que... ba sei lá be... com bi bebi... entendeu... Ia juntando e formando palavra [...]" (PINTO, 2007, informação verbal). A lição referente à sílaba ba, na cartilha do aluno, evidencia as colocações da professora.

ANEXO 5 COLE_3265_12079185959.JPG

Figura 5 ─ Atividades com a sílaba ba na cartilha Caminho Suave

Fonte: Acervo do CEALE/Biblioteca da Faculdade de Educação da UFMG

De acordo com Rosely, muitas crianças apresentavam dificuldade na aprendizagem da linguagem escrita. Como recurso didático, para auxiliar essas crianças, a professora utilizava os carimbos da cartilha que faziam parte do seu material de apoio:

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[...] eu tinha a caixa de carimbos ... a gente carimbava no caderninho dele entendeu assim que eu fazia quando a criança tinha muita dificuldade ... porque nem todo mundo pegava você sabe... então você tinha eu tinha o trabalho de fazer assim invés de só botar o ba com um desenho associado ao ba... eu criava um desenho para associar o be o bi o bo e o bu porque a criança tinha muita dificuldade [...] (PINTO, 2007, informação verbal).

E complementa,

[...] eu lembro que às vezes a gente trabalhava dava um ditado a mais no final do ano mandando esse menino fazer ditado de texto... aí eu trabalhava primeiro as palavras difíceis do texto... a gente trabalhava no quadro as palavras difíceis mandava escrever depois a gente dava o ditado [...] outra maneira... você dava o texto a gente usava o texto daquele mimeografo a álcool dava o texto pra eles lerem várias vezes etc depois dava o ditado do texto... dessa maneira assim arcaica na época não mas era a maneira das crianças aprenderem [...] (PINTO, 2007, informação verbal).

Apesar de a cartilha Caminho Suave ter sido considerada uma inovação para a época em que começa a ser utilizada, consideramos que o processo de ensino da leitura proposto pela cartilha Caminho Suave se constitui em um processo mecânico de repetição e memorização de palavras e sílabas sem sentido. Os sujeitos do processo de aprendizagem são concebidos como totalmente desprovidos de linguagem e de vivência social. Braggio (1992, p. 3), em sua análise sobre os métodos que embasam os trabalhos de alfabetização, sobretudo o proposto na cartilha Caminho Suave, assinala que o que predomina "[...] é a técnica em detrimento do significado, já que este é deixado em segundo plano, em favor da forma [...]".

Além do método silábico, compôs as práticas de ensino da leitura e da escrita, nas escolas de Linhares, o Método Global de Contos. Esse método, segundo Maciel (2001), elaborado por Lúcia Casasanta e amplamente difundido por suas alunas da Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte/MG, tem como característica o ensino da leitura partindo do todo para as partes, ou seja, privilegia o texto com sentido completo no processo de alfabetização. Os princípios teóricos metodológicos norteadores desse método estão assentados na Psicologia gestaltista, que parte do pressuposto de que o objeto se apresenta para o indivíduo, primeiramente, em sua totalidade, para depois, na consciência, ser decomposto em seus detalhes. É orientado ainda pelo pensamento de Decroly que defende o Método Global e enfatiza que o ensino da leitura deve proceder de textos que possibilitem à criança perceber a imagem completa do objeto, o que se tornaria inviável, se o ensino se iniciasse apenas com letras. De acordo com Maciel (2001, p. 114),

Para os defensores do método global, a leitura não é o ponto de partida no processo de aprendizagem, ela é uma conseqüência, isto é, parte-se de uma situação concreta que faz parte do cotidiano da criança, elabora-se uma frase cujo conteúdo seja representativo e de fácil vocabulário, expressada oralmente para ser, em seguida, escrita, e então se ter o reconhecimento, e finalmente, a leitura.

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Ainda com base na autora, a proposta de Lúcia Casasanta difere-se das dos demais estudiosos do método. Enquanto eles propõem o desenvolvimento do processo decompondo os textos em sentenças, palavras e sílabas, Casasanta o enriquece detalhando estas fases em: a) fase do conto ou historieta; b) fase da sentenciação; c) fase da porção de sentido; d) fase da palavração; e) fase da silabação.

Para garantir a aplicação do método, foi produzida a série As Mais Belas Histórias, organizada "[...] para atender às condições exigidas pela psicologia da leitura para formar os hábitos, atitudes e habilidades do processo de ler da primeira à quarta série do 1º, grau e ao mesmo tempo atender ao princípio da unidade do fenômeno lingüístico [...]" (CASASANTA, [195--?], p. 5). Cada livro da série é acompanhado pelo livro do mestre e pelo bloco de atividades destinado ao aluno. Segundo a autora, a base de organização da série As Mais Belas Histórias foi orientada por dois princípios: o primeiro diz respeito à necessidade de despertar o interesse da criança pela leitura, e o segundo corresponde à reunião, em cada livro, de material adequado "[...] para a formação de um estágio do desenvolvimento normal do processo de ler [...]" (CASASANTA, [195--?], p. 7).

Esse método foi utilizado, em Linhares, pelas professoras Arlene Campos e Dea Simonelli. Conforme constatamos em seus depoimentos, as práticas de leitura e de escrita desenvolvidas por elas eram semelhantes, isto é, ambas partiam da narrativa de histórias contidas nos livros que compunham o material elaborado por Lúcia Casasanta. A professora Dea utilizou o primeiro livro publicado pela autora: As Mais Belas Histórias: pré-livro: Os Três Porquinhos.

[...] eu adorava trabalhar com primeira série só que naquele tempo não tinha orientadora não tinha supervisora não tinha nada então você trabalhava por sua conta... então como as classes eram muito mistas meninos que sabiam ler meninos que não sabiam [...] aí você lançava mão de métodos... misturava... eu trabalhei muito com Os Três Porquinhos [...] (SIMONELLI, 2007, informação verbal).

A professora Dea assim descreve sua prática com o método:

[...] então eu lançava mão daquilo começava com as palavras contava história cada dia eu contava um pedaço aí pegava aquilo ali e trabalhava... por exemplo o telhado da casa primeiro porque tinha três tipos de casa então eu pegava o telhado para fixar o lha e o t... o nho e o lha de telhado eram as palavras mais difíceis as outras eu trabalhava no quadro como o po o la o da [...] (SIMONELLI, 2007, informação verbal).

ANEXO 6 COLE_3265_12079190228.JPG

Figura 6 ─ Parte inicial da história Os Três Porquinhos no pré-livro, de Lúcia Casasanta

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Fonte: Acervo particular de Neusa Balbina de Souza

Em seu depoimento, a professora Arlene Campos revelou ter adotado o Método Global no ano de 1964, após tê-lo conhecido em um curso de formação. De acordo com ela, o uso do método lhe resultou pontos positivos que favoreceram e facilitaram sua prática pedagógica que ela assim descreve: "[...] a gente tirava era mais ou menos um Paulo Freire só que ao invés de contextualizar na construção civil não sei o quê... era na história" [...] (CAMPOS, 2008, informação verbal).

O livro utilizado pela professora foi As Mais Belas Histórias: primeiro livro, composto por 45 histórias ilustradas e distribuídas em 118 páginas. Foi publicado pela Editora do Brasil em Minas Gerais, [19--?].

ANEXO 7 COLE_3265_12079190428.JPG

Figura 7 ─ História "Espantada" do primeiro livro de As Mais Belas Histórias, de Lúcia Casasanta

Fonte: Acervo particular da professora Drª Cláudia Maria Mendes Gontijo

Podemos perceber que o Método Global de Contos se configura numa busca de soluções teórico-metodológicas para a superação dos problemas de aprendizagem da linguagem escrita enfrentados pelas crianças e, embora tenha havido esforços empreendidos por Lucia Casasanta, sua base de sustentação é revestida de princípios da Psicologia que percebia o sujeito separado do objeto da aprendizagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Objetivamos, ao longo deste artigo, analisar as práticas de ensino da leitura e da escrita desenvolvidas no município de Linhares/ES, na década de 1960, com uso dos métodos sintético (soletração e de silabação), do Método Global de Contos difundidos pela cartilha Caminho suave, Método Dom Bosco e da série As mais Belas Histórias. Os dados examinados evidenciam que esses métodos se baseiam em concepções mecanicistas sobre o processo de aprendizagem da linguagem escrita. Fundamentam-se em teorias que concebem o sujeito como ser desintegrado de sua prática histórico-cultural.

Embora apresentem diferenças no modo de conceber a aprendizagem da linguagem escrita, esses métodos "[...] reduzem a linguagem e a aquisição do conhecimento ao nível sensorial e fisicamente observável [...]" (GONTIJO, 2002, p. 6). Desse modo, o processo de alfabetização é desenvolvido de maneira mecanicista, pois a

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linguagem é considerada como um sistema abstrato de formas, cujo fim é ela mesma.

Com relação às práticas das professoras, constatamos que elas se diferenciavam uma das outras por alguns aspectos estratégicos, mas, no conjunto, constituíam-se dos mesmos princípios básicos de orientação. Cada uma buscou desenvolver o trabalho a partir das suas expectativas, concepções e experiências sobre a alfabetização adquiridas no decorrer de suas vivências escolares. No entanto, vale ressaltar que elas estavam inseridas no contexto historicocultural em que a educação era entendida -- e difundida -- como requisito fundamental para o desenvolvimento econômico do Estado e, assim, o processo de ensino e de aprendizagem da linguagem escrita era desenvolvido sob a égide da teoria do capital humano e do caráter reprodutivista da escola.

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MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização: (São Paulo / 1876-1994). São Paulo: UNESP: COMPED, 2000.

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[1] SOUZA, Neusa Balbina de. Práticas de alfabetização no município de Linhares nos anos de 1960. 2008. 146 f. Dissertação (Mestrado em Educação) _ Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. Orientadora: Profa Drª. Cláudia Maria Mendes Gontijo, Universidade Federal do Espírito Santo. Programa de Pós-Graduação em Educação.

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