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O ESPELHODE ALICE 

Hideraldo Montenegro

Recife2007

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Dedico atodos que

me serviramde espelho

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Agradeço aAlfredo Horácio Montenegro

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“Penso, logo existo“.René Descartes

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OS SAPATOS

o tempo em que o homem vive r e c o s t a d oem seus pensamentos, veio-me uma lem-

 brança curiosa.

Talvez devêssemos classificar o fato recordado co-mo vulgar, banal. O acontecimento lembrado, talvez seenquadrasse mais como uma mera fofoca se não fosse

 por um detalhe. Ele se revestiu com um peso poético

cômico como o humor chapliniano e marcou a minhamente observadora e obrigou a todos presente a ele a

 profundas reflexões.

O que valeu nele foi sua força surda, que calou emnosso peito alguma coisa indefinida, mas que merecia anossa atenção.

 No velório de um parente, uma senhora, próxima àfamília, toda vestida de preto, adentrou na sala onde seencontrava o corpo do falecido e toda atenção dos pre-sentes se voltou para os seus sapatos.

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Os sapatos que ela calçava eram feitos de tricô, comsapatilhas formato bico fino e com um pequeno salto.

Eles lembravam uma bota de bruxas, dessas que a gen-te vê em desenhos. Eles não causaram, nos presentes,nenhuma idéia de gozação com a senhora, ao contrário,muitos evitavam olhar para eles, embora fosse umatarefa extremamente difícil, como observei.

O detalhe, que chamava a atenção para os sapatos

daquela senhora, era que eles destoavam de toda situa-ção. Pareciam fazer parte de uma fantasia, revelando-nos o nosso falso sofrimento.

Como sabemos, é muito comum nessas situações,aonde reina um pesar geral, acontecer um incidenteengraçado, constrangendo a todos para não parecer que

não estão sentindo a dor da perda de um ente querido.

O pior é que, ao reprimir-se algum sentimento, poracharmos contraditório e impróprio  para um dado mo-mento, fazemo-lo crescer como uma avalanche e, numdado nível, é impossível segurá-lo. O que ocorre é quehá uma explosão geral. Não é incomum, portanto, escu-

tar-se gargalhadas num velório.

Os sapatos, presentes naquele velório, não nos pro-vocavam nenhuma vontade de rir, mas eles estavam ali,silenciosos e era impossível desviar os olhos deles.

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Parecia que a coisa mais viva, mais autêntica e maissincera naquele velório eram aqueles sapatos. Eles

eram um desafio para todos nós. E, mais do que o si-lêncio que se faz nestas ocasiões, pontilhados por co-chichos aos ouvidos, como se não devêssemos incomo-dar o defunto e despertá-lo, a presença daqueles sapatoscriou um silêncio verdadeiramente sepulcral, aterrador.

O que eles estavam despertando em nós? O que eles

estavam provocando em nós?

 Nunca, num velório, o silêncio foi tão cumprido, ca-lando em nós a força de uma idéia. É aí que reside avida?

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O AMANTEandar lento, cuidadoso faz parte da minhanatureza. Sei que sou charmoso nesta minhaleveza e altivez.

Alguns me detestam por conta disso, outros têmrespeito e medo pelo mistério do meu ser. Sou seguro emanhoso. Sei conquistar. Chego devagarzinho, mas souefetivo em meus objetivos.

Talvez, a coisa mais surpreendente em mim sejam

os meus olhos. Eles são hipnóticos, fortes, claros.Quando quero alguma coisa, sou persistente e meusolhos se transformam em armas. Ninguém consegueescapar dos seus brilhos. Se bobearem serão presas fá-ceis.

Também sou meio farsante. Às vezes, fico quieto,

como quem nada quer. De repente, ataco aquilo queestou pretendendo ter. Uma vez em minhas garras, nãohá mais jeito.

Foi num dia ensolarado, que não me oferecia alter-nativa senão permanecer em meu passatempo predileto,ficar deitado pensando, que ela apareceu.

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Ela me olhou de soslaio, como não quisesse de-

monstrar que me havia notado e passou por mim fin-gindo ignorar-me. Era puro charme.

Mas, aquele seu cheiro me subiu à cabeça e me per-turbou. A posição em que me encontrava, naquele ins-tante, era confortável, mas fui obrigado a desfazer-medela. Dei uma espreguiçada, fingindo também não estar

nem aí com a sua presença.

Dei uma volta no ambiente para esticar as pernas e,enfim, lancei o meu olhar em sua direção. Quando ela

 percebeu, ficou sem saber como agir. Eram claras assuas intenções também.

Fui aproximando-me devagar, mas firme. Ela fingiadecidir para onde, supostamente, estaria indo e, quandose deu conta, já estava ao seu lado.

Dei uma volta em torno dela e, então, ela já sabiaque era inevitável. Estava em minhas garras. Seu cheirome despertava desejos incontroláveis.

Fizemos amor ali mesmo, pois, quando dois gatosestão no cio, não ficam com desculpas, nem com eti-quetas.

Quem não gostou muito foi a minha dona. Até hojesinto a dor da vassourada em minhas costas.

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Seria pavor? Não. Não era pavor. Talvez,...rancor?

 Não. Concentrou-se mais. Saudade! Isso! Era saudade,mas com um pouco de tristeza. Melancolia?

Aquela sensação o envolveu e o tornou vago, dis-tante mais uma vez.

O que era que estava sentindo há pouco tempo atrás

mesmo? Percebeu que não estava alegre nem triste.Apenas estava ali, presente. Mas, algo lhe incomodava.O que era? Ah, precisava lembrar-se de alguma coisa!Era imprescindível lembrar-se, mas do quê?

 Não. Não iria perder-se de novo. Precisava esforçar-se para lembrar. O que devo lembrar e que é tão impor-

tante?- Pensou.

“Isso! Enquanto estou pensando alguma coisa, nãome perco! Vou continuar pensando em algo”.

“Bom, primeiro preciso lembrar-me de alguma coi-sa.” 

“Será...será que é...? Será que é de alguma coisa ou

de alguém? Alguém! Existe alguém. Onde? Por quê? E,daí que exista alguém?!” 

 Neste instante notou de novo aquela presença.

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“-Meu Deus, é Marina”! - disse para si mesmo.

“O que ela está fazendo? Parece tão triste, tão dis-tante. Por que ela está triste? O que foi que aconteceu?Por que ela não me disse nada?” 

Repentinamente se deu conta do que estava sentin-do naquele instante por Marina.

Estava um pouco magoado. Por quê? Ah, era umasensação de abandono! “Será que Marina me abando-nou?”. Não. Ele estava ali e ela também.

“Preciso lembrar-me de alguma coisa. Talvez istoesteja ligado a esta sensação de abandono”. 

Olhou para o lado e para o outro. Fixou fortementeo olhar em Marina e descobriu.

“-Meu Deus, eu morri há três anos! “ 

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1+1*

ra uma vez um homem e um homem. Não,

não há nenhum engano. Eram dois homensmesmo. Eles viviam num planeta distante.

Só que um deles era tão grande, tão grande e, o ou-tro, tão pequeno, tão pequeno, que nenhum deles, ape-sar de viverem lado a lado, sabia da existência do ou-tro.

Assim, embora vivendo no mesmo mundo, estavamsolitários. Em virtude dessa forma de viver, eles, diría-mos, tinham, de vez em quando, algumas inquietaçõesfilosóficas. Pensavam: seria bom que houvesse alguémaqui para compartilhar comigo deste mundo. Podería-mos trocar idéias, informações, divertir-nos, etc.

O pequeno, por exemplo, em algum lugar distante,encontrou um de sua altura que afirmava acreditar queexistiam outros seres diferentes deles. Mas o pequeno,em seu firme ceticismo, não acreditava em tal boba-gem.

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Ora, ele nunca, jamais, em tempo algum viu outracriatura senão as do seu tamanho. E, isso, quando via-

 java para lugares distantes!

Ele já estava conformado. Sabia que iria passar oresto de sua existência naquele lugar sozinho mesmo.Fazer o quê?

Agora - dizia ele - vem cá, como alguém pode acre-

ditar que existam outros seres diferentes? Ele não era bobo. Não iria acreditar numa besteira dessas.

Aquele outro pequeno, que ele conheceu numa via-gem a um outro lugar, só podia ser um lunático, umfantasioso. Ora, aonde já se viu...!

O mais engraçado, e talvez vocês não acreditem, éque o grandão pensava também a mesma coisa.

É lógico que vocês devem está pensando que essesdois eram uns tolos. Puro engano. Eles eram muitosespertos, inteligentes e sensíveis.

Como assim, perguntarão vocês? Os caras viviamlado a lado e sequer percebiam a presença um do outro,como podiam ser espertos?!

Ah, mas nada fica oculto. E foi isso que aconteceu.Embora, tenha passado muito tempo para eles filosofa-

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rem, questionarem e, enfim, só aumentarem as suasdúvidas, aconteceu um fato que mudou toda a estória.

Um belo dia, uma lupa que o grandão usava, caiuno chão e quebrou. Em mil pedaços esta lupa se trans-formou. Para o pequenininho, esses pedaços de lenteeram como estrelas e o barulho de sua queda foi tãoalto, mas tão alto que o pequenininho não escutou,

 pois, como todos sabem, um ultra-som - que era o caso

 para o baixinho - não é audível.

O fato é que o grandão, ao vê sua lupa em mil peda-ços, agachou-se para apanhar os cacos, como se pudes-se depois, num reflexo de ingenuidade, juntá-los nova-mente.

O grandão (quer dizer, grandão para o pequenini-nho) tomou um susto quando foi pegar um dos cacos enotou que alguma coisa se mexia. Claro, ele percebeuisso através da lente.

Era alguma coisa minúscula. Ele aproximou a lentedos olhos e tentou vê o que era aquilo. Ah, quase ele

cai para trás ao perceber que aquela coisa era um ho-mem igualzinho a ele, só que infinitamente menor!

Caramba! - disse ele - essa coisinha pequena estáfalando! A conclusão do grandão foi que, quem fala,

 pensa. Não sei se concordo com ele, pois, conheçomuita gente daqui que fala sem pensar.

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Bom, o grandão improvisou um ampliador de sons.

 Não importa como ele conseguiu isso. O importante éque o fez. Mas, ele pensou também em fazer uma lenteinvertida para que aquele homenzinho o visse também.E, assim, foi feito o contato entre eles.

O pequenininho tomou um susto danado. Temeulogo que aquela coisa monstruosa o devorasse. Enfim,

ele pensava igualzinho a gente diante dessas situaçõesnovas. Também não era para menos. Imaginem vocêsse depararem com uma coisa enorme, incomensurável!Também não iriam tremer nas bases até se acostuma-rem?

Bom, depois de tudo acalmar-se e ter havido expli-

cações de lá e de cá, o pequenininho exclamou: comovocê é tão grande! O grandão disse a mesma coisa, sóque invertendo o adjetivo: como você é pequenini-nho! E, assim, foram apresentados.

Para o grandão, o pequenininho não era normal, era pequenininho. A mesma coisa pensava o pequenininho

do grandão.

Mas, em pouco tempo eles estavam trocando ideias,contando piadas (claro, de preferência sobre a condiçãodo outro) e filosofando. No final, eles chegaram àmesma conclusão.

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Disseram eles: pôxa, nossas consciências sãoiguais! Não há, apesar dos nossos tamanhos, diferenças

entre nós!

Mas, é óbvio que isso vocês já tinham adivinhadoque eles iam concluir, não é?

*Inspirado num conto de Voltaire

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EU

la me olhou desconfiada, indecisa. Tentei de

novo, agora acompanhado de gestos. Maisuma vez ela pediu para eu repetir.

Aquilo estava me desesperando. Comecei a ficar ir-ritado. Ela percebeu meu nervosismo e fez uma caríciaem minha cabeça. Sempre que ela me tocava, eu meacalmava. Aquele toque era como um tranqüilizante.

 Na verdade, ela era a única que eu percebia que meolhava como entendesse minha importância, minhaexistência.

Muitas vezes, olhava as pessoas e as achava estra-nhas, tensas e em eterno conflito umas com as outras.

Às vezes, sentia pena.

Algumas faziam uma gracinha besta comigo. Per-cebia o modo como elas me consideravam. Na verdade,

 para elas, eu não tinha a menor importância, não afeta-va nada. Suas vidas prosseguiam, iam encher-se de fa-

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tos, mas sabiam que eu seria o único que não teria par-ticipação neles.

 Não me importava quando me deixavam ausente desuas mesquinhez. De fato, até gostava de estar só, ob-servando, analisando. Elas não percebiam isso e, paramim, até era bom que assim fosse.

Vivia feliz, sem preocupações que pareciam obstru-

ir a vida da maioria das pessoas. Minha alegria por es-tar vivo, por sentir a vida, uma coisa completa e nãorepartida em momentos, fazia-me consciente que, decerta forma, era mais beneficiado do que os outros.

Para o egoísmo da maioria das pessoas, alguém sótinha importância se pesasse em sua história pessoal, se

contribuísse com algum momento que as fizessem feli-zes.

Coitadas, não conseguiam ser felizes simplesmente por viver! A vida estava ali, pulsando em seu viver enão percebiam esta grandeza e, assim, viviam buscandoencontrar o seu significado. Tentavam construir mo-

mentos que justificassem suas vidas, mas eles eramcomo bolhas de sabão, rapidamente se desfaziam e exi-giam mais um, mais outro...

Em minha condição, elas viam apenas um antiviver.Como alguém poderia existir assim? Como alguém

 poderia ser feliz nascendo nessas condições?

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Era verdade que eu tinha algumas dificuldades. Sa-

 bia disto. Mas, no geral sou feliz. Vivo mais tempo rin-do do que o contrário.

Se existia algo que realmente me aborrecia era a fal-ta de comunicação ou a dificuldade dela. Apesar deminha mãe, às vezes, não compreender algumas coisasque pedia, ela era a única que conseguia entrar em meu

mundo e entender-me.

Sentia o seu amor, pois ele dispensa palavras. Eleera verdadeiro, calmante, estimulante e a coisa quemais fazia sentir-me vivo. Para mim, era um absurdoalgumas pessoas não conseguirem vê isso. Por isso,eram tão infelizes.

Para uma pessoa, como eu, que nasceu com Sín-drome de Down, a maioria das pessoas sofria de ce-gueira mental.

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CÁRCERE

azia muitos anos que estava preso. A barba

tinha crescido. Os filhos tinham crescido. Hámuito tempo que não se comunicava comninguém.

 Nem mesmo a sua esposa, sua amada, fazia mais parte de sua vida.

 Não conseguia sonhar, pois nem mesmo conseguiadormir.

Quando tudo começou? Nem mais se lembrava. Se-quer se lembrava do motivo.

Os pensamentos eram muitos, talvez demais. Mas, a

sua vida tinha se paralisado de histórias. Só lembrançasvagas, às vezes, desconexas.

 Não cobrava compreensão de ninguém, pois nemmesmo ele já se compreendia. Agora passava horasnutrindo um único pensamento. Às vezes, um pensa-mento passava semanas sendo carregado por ele.

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Parava, de vez em quando, com os olhos distantes.

Dava impressão que conseguiríamos vê a imagem desua esposa impressa neles.

Ficava calmo, suave. Dava um sorriso e dizia o no-me dela. Mas, não demorava muito e já a tinha esque-cido novamente.

Pensava em dizer uma coisa e dizia outra. Queriafazer uma coisa e fazia outra. Ficava desesperado comaquilo. Às vezes, precisavam de força para controlá-lo.

Tinha sido uma pessoa generosa. Por que aquilo es-tava acontecendo com ele?

Um belo dia, quando o sol apareceu, um sorriso seestampou em sua face. Todo o seu rosto se iluminou.

-Meu Deus - exclamou ele - Como pude passar tan-to tempo agarrado a uma única idéia?!

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BIOGRAFIAlhei fixamente seus lábios e, então, ele repetiuaqueles sons engraçados. O que significavam?

- Pa...pai!

Toda vez que ele me via, repetia aqueles sons. Pen-sei que, talvez, ele desejasse que eu os reproduzissetambém. Para que serviam, não sei. Mas, ele repetiatanto eles, que certamente deviam ser importantes ou,talvez, fizessem parte de uma brincadeira. Tentei.

-Pa...

E le me o lh o u e s p a n t a d o , demonstrando umaenorme alegria. Seja o que for que significassem aque-les sons, eles produziam contentamento em meu pai.

- Querida, ele está falando! Ele está falando!

 Não compreendia aqueles outros sons. Só sei queestava falando com minha mãe.

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Um bebê é como um estrangeiro, tem que aprendernova língua, novos costumes e, infelizmente, alguns

vícios também.

- Pa...pai! - Repetiu ele.

Tentei novamente. Aquilo estava engraçado, seja láo que significava.

-Pa...

-Pa, não! Pa...pai!

Êpa! Peraí, aonde foi que errei?! Ah, será a quanti-dade de sons?! Vamos ver...

-Pa...pa...pa!

-Não! Pa...pai!

Aonde estou errando? Ele está sendo muito exigen-te. Aquilo começou a ficar chato. Comecei a irritar-mee, inevitavelmente, chorei.

-Ah, querido, não exagere! Deixe-o em paz! - Disseminha mãe.

O meu pai era engraçado. Aliás, todos os adultos osão. Eu achava tudo divertido, mas um pouco tolo.

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Depois que meu pai me deixou sozinho, comecei a pensar naqueles sons.

O que significavam? Será que era mais uma palha-çada dos adultos? Eles são incoerentes, variáveis. Nãosei por que eles não estavam sempre sorrindo. Por queeles mudavam tanto?

E, era incrível como eles mudavam quando apareci-

am pessoas estranhas. Às vezes, tinha dificuldade dereconhecer meus pais. Estranhava.

Quem eles eram realmente? Sempre acreditei, fir-memente, que eles eram aqueles que faziam sons e

 brincavam comigo.

Por que eles eram tão esquisitos, tão mutantes?

Havia cansado de pensar. Estava precisando decompanhia. E, se eu produzisse aqueles sons que meu

 pai parecia gostar tanto, será que ele viria aqui?

-Pa...pa...pa!

Fiquei surpreso como ele apareceu tão rápido. Seusolhos eram pura felicidade.

Isso o faz feliz, que engraçado! Por que será? Nãoimporta, se o faz feliz, então, é importante para ele.

-Pa...pa...pa...

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ERA UMA VEZ... 

homem tem a mania de tentar engessar

acontecimentos e guardá-los em sua memó-ria como um bloco, fechado, pesado, her-mético.

Mas, será o acúmulo desses blocos que irá vergaras suas costas e entorpecer e emparedar a sua mente.

Depois de um tempo, eles serão tantos, para seremcarregados, que o paralisarão.

Assim, o homem chega à velhice cansado, exaustode tantas memórias que precisa carregar. Por isso, eletenta vomitá-las. Descarrega nos ouvidos alheios todosaqueles fantasmas que vivem ocupando seus momen-

tos.

Encharcado, de tanto passado, não consegue maisviver o presente. Não há mais espaço.

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Se, ao contrário, ele tratasse os acontecimentoscomo passarinhos, leves, soltos, livres, ele chegaria à

velhice mais suave.

Mas, o homem é teimoso e solidifica aquilo quedeve ser passageiro: o tempo.

A cadeira agora é uma necessidade. Ele precisarepousar nela a carga de sua história. O tempo estar

aprisionado dentro dele e isso lhe pesa horrores.

 Não é fácil caminhar levando rancores, frustra-ções, arrependimentos e ódios nas costas.

É verdade que não é o fato de estar em pé que de-termina que alguém esteja vivendo plenamente. É a

mente livre, aberta e absorvente que define o aprovei-tamento da vida e, tanto faz se estar-se deitado, sentadoou em pé.

Mas, o que obriga alguns homens, em determina-da idade, sentarem-se é o peso de suas cabeças.

Por isso, como idéias novas podem ser absorvidas por esses homens se eles se emparedaram mentalmen-te?

Sabemos que aquilo que não evolui tende a dege-nerar-se. Aí, era uma vez...

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 Não se lembrava mais quando se sentou naquelacadeira. Nem ao menos sabia por que tinha se sentado

nela. E, embora, seja verdade que ninguém precisa deum motivo para sentar-se numa cadeira, ele sempre ofazia por um, mesmo que fosse para apenas ruminar.

 Na verdade este era o seu único motivo.

Seja lá como for, ele se indagava agora por queestava ali. Há quanto tempo estava ali? Às vezes, no

meio desta pergunta ele mergulhava de novo em algu-ma lembrança e, então, tinha que refazê-la novamente.

O fato é que não conseguiu sair mais daquela ca-deira até quando, finalmente, o levaram para o cemité-rio.

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A CORUJA

noite a cidade pulsava em suas sombras. E de

suas sombras nasciam imaginações fantásti-cas.

O silêncio não era repouso, mas gestação de atos. Acidade era uma usina humana. A cidade era uma usinade emoções e desejos.

E, no seio da noite nasciam homens, bestas, sexo,riso e choro.

De repente, das entranhas das sombras, um ladrão,depois do assalto, corria do seu próprio medo.

Também das sombras surgiam mulheres incríveis,

recheadas de desejos e volúpias. Mas, só os poetas e osloucos as viam.

 Nas sombras da noite as recatadas, as reprimidas eas eternas ocupadas podiam, enfim, deixarem fluir seusdesejos. Elas se transformavam em lúdicas insaciáveis.

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Elas eram despertadas dentro das garrafas de cerve- ja, vinho, aguardente. Os ébrios temiam cair em suas

garras e ficarem prisioneiros da bebida, da abstinência,do amor, do ódio, da fidelidade e da traição.

 Nos bares os ébrios bebiam seus medos. Embriaga-vam-se com suas fantasias. Nos bares eles não se en-contravam, perdiam-se e não conseguiam mais libertar-se das garras encantadoras da noite. Tinham se tornado

mariposas.

Durante o dia os habitantes das sombras perma-neciam ocultos, transparentes. De fato, a claridadenão revelava nada. A cidade sabia maquiar-se. Só ànoite ela mostrava sua face acolhedora, enfeitando-sede luzes. A cidade só existia, essencialmente, nas som-

 bras.

A claridade não a desmascarava e, sim, a mascara-va. Iluminada, aberta, acolhedora, quente, risonha. As-sim, durante o dia ela se preparava, disfarçadamente,

 para estimular nossos desejos, nossos sonhos para oanoitecer.

Assim que caía a noite havia uma agitação, um fre-nesi, um medo latente, um desejo insatisfeito. À noitehavia um despertar. Era à noite que mostrávamos onosso humor, cansaço, disposição, tesão, impotência,coragem, covardia, alegria, tristeza, desesperança, es-

 perança.

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Os sonos a invadiam e a agitavam, igualmente co-

mo os despertares. Eles criavam tensões entre os vivose os mortos da noite. Corriam ruas, becos, avenidas.

A cidade era a tensão do gatilho prestes a disparardesejos. Na luz tudo dormia oculto para ser despertado

 pelas sombras.

Apenas os olhos de uma coruja cravavam a noitecomo espadas reais, desnudando-nos a sua verdadeiraface.

À noite a cidade era um espelho, pura alma, a reve-lar-nos.

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A PEDRA

que é estar aqui, parado, sem comunica-

ção, conta to e compartilhamento?

É estar preenchido de vida.

Como?! Surpreender-se-ão vocês. Uma pedra é uma pedra, um mineral, inerte, sem vida!

É, diria, desde que não tropecem em mim...

Posso fazer jorrar sangue. Posso pousar no pouso pousado da mente, mudo, silencioso.

Mas, não é isso que me faz ser o que sou na vida. O

que sou na vida é porque sou na vida. Não existe vidasem pedra.

 No deserto?!

O

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É, mas continuo aqui, sendo o que sou. E, se sou,existo. Penso sem pensar, falo sem falar, faço sem fa-

zer, mas existo.

 Não acredita? Ande, por onde eu esteja, sem me re-conhecer e verás...

Assim, se estou na vida, então, faço parte dela e, portanto, também tenho vida.

E, minha vida é mais forte, mais contundente, maissólida. Apesar do tempo, e seu desgaste, ser diferente

 para mim, ele, entretanto, não me é indiferente.

Guardo o acontecido só para mim mesmo. Sou es- ponja muda de acontecimentos e é isso que me faz

crescer. Se não percebes é porque não dispões do mes-mo tempo que eu. Porque não consegues calar comoeu. Porque não consegues penetrar como eu.

Sou uma pedra, está certo, mas faço parte da tua vi-da. Sou uma pedra, mas exijo respeito pelo meu silên-cio.

Queres conhecer-me? Então, calas-te como uma pe-dra. 

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DESTINO 

l ixo permanecia a l i , fe rmentando,

remoendo, esparramado.

Sua es t ru tura desarrumada cr iavaseu corpo. Mas, es tava sempre renovando-se , ves t indo-se de novo. Decoração rebus-cada , barroca .

Em sua diversidade, mantinha, entretanto,sua personalidade.

-Olha lá o lixo! - dizia alguém.

Assim, o lixo tinha existência na vida. Era re-conhecido, respeitado, temido - O que sairá dali?

O lixo não era o fim da vida, mas o seu recomeço.Ele parecia demonstrar que a vida não tem fim. O lixonunca era o fim. Dali a vida recomeçava, organizava-senovamente.

O lixo era uma usina a germinar vida!

O

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Ratos, vermes, pés humanos, todos brotavam do li-

xo. E, o lixo, envaidecido, sorria sarcasticamente paraos homens.

-Eu te aguardo! Eu te aguardo!

 Nele, o que era enterrado era o orgu lho, a pre - potência e o conservadorismo.

Assim, o lixo mostrava sua força viva, seu poder eseu acolhimento. Isso! O lixo nunca era preconceituo-so, discriminador. O lixo era democrático.

Para ele não existia diferença entre o pobre e o rico.Todos eram futuros lixos. Ele estava ali, paciente, mas

voraz.

Tinha uma estética diferente, exótica, livre. O lixoera livre, franco, aberto. Porém, implacável.

Era também sensível, mutante e eclético. Ele nãoconsumia os homens, não destruía a vida, não acabava

com a beleza. Antes, o lixo ressuscitava os homens,aninhava vida, criava nova ética, novas formas.

Sua existência era como um aviso bondoso: a espe-rança existe! Basta ir fundo!

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A MESAentou-se numa mesa de um bar e passou vinteanos. Esqueceu esposa, filhos, gato e cachor-

ro. Voltava para casa, sempre muito tarde,mas a mesa continuava em sua vida.

 Na verdade, foi a mesa que se sentou em sua mente.Por isso, não conseguia escutar nada do que falavam

 para ele. Mesmo quando acordava ainda estava entor- pecido e com a mesa em suas idéias.

O que será que ele encontrou nela?

Uma vida autêntica, onde era forte, rico, poderoso,garanhão e o mais inteligente. Por que as pessoas nãoconseguiam entender isso? Ele não conseguia compre-ender. Ou, de fato compreendia.

“Elas não me vêem. Não conseguem vê o que sourealmente. Talvez elas precisassem beber para conse-guir vê a real essência das pessoas.” 

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Lá, naquela mesa, era feliz, verdadeiro. Todos, diziaquando resolvia fazer discursos inflamados pelo álcool,

são uns hipócritas. São caretas, cegos e imbecis.

Sempre que ele fazia aquele discurso escutavaaplausos. Ás vezes, conseguia até um brinde grátis,

 pago por alguém empolgado com suas palavras.

-É isso aí! Vou lhe pagar uma dose por estas sábias

 palavras! Todos são hipócritas! Até o meu cachorro éum hipócrita! Outro dia, chamei-o para levar um papoe, ele, nem aí. Não deu a mínima! - Disse um compa-nheiro de copo entusiasmado com aquelas palavras

 pronunciadas por ele.

Mas, a conversa predileta ali, naquela mesa, era so-

 bre as suas esposas. Todas eram umas incompreensí-veis. E esta constatação os unia mais.

-Mais uma dose!

 Naquela mesa a vida se revelava mais clara. Todosali eram gênios incompreendidos. Os outros, lá fora,

não conseguiam perceber o valor deles, por isso eles osdesprezavam.

-Um brinde!

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Então, falavam de política, sexo, esporte, religião edo passado. Não tinham mais projetos. Eram, agora,

apenas esponjas.

Para ele, a descoberta da bebida foi como um colí-rio que abriu os seus olhos para a realidade. Antes eraum cidadão pacato, tímido. Tinha vergonha até mesmode falar.

Agora não, era a pessoa mais conhecida naquele bar. Muitos, às vezes, sentavam naquela mesa só paraescutar-lhe.

Tinha parado de trabalhar, de copular e de comer.Há muito que não praticava esporte ou participava dealguma ação comunitária. Entretanto, achava o seu vi-

ver concreto, real, efetivo. Ao menos tinha orgulho doselogios que os outros companheiros de copo faziam àsua eloqüência alcoólica.

Era isso! Ali ele se sentia importante, o tal...

Um belo dia, como de costume, sentou-se à mesa. O

 bar ainda estava vazio, era o primeiro a entrar ali na-quela noite. Olhou para a mesa e começou a conversarcom ela.

O garçom achou aquilo estranho. É verdade que játinha assistido todo tipo de aberrações engraçadas dos

 bêbados, mas falar com uma mesa...!

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-Minha cara, a vida é uma ilusão! Como um homem

 passa tanto tempo vivendo sem existir? Vamos, meresponda? O que acha?

Passou um longo tempo em silêncio. Depois se le-vantou e, para surpresa do garçom, foi embora.

- Será que a mesa falou alguma coisa para ele?!

O garçom pegou uma dose e se sentou naquela me-sa. Até hoje ele está esperando ela falar alguma coisa,embora, tenha perdido o emprego, a esposa e os filhos.

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A RUA

ergulhei na rua como mergulhasse emmim mesmo e a enxergava conforme omeu humor.

Meus pensamentos definiam a realidade. Tudo erauma questão de consciência. Às vezes, ficava pensandocomo as discussões eram inúteis. Não nos levava a lu-

gar algum.

Quem está com a razão?

Basta estar vivo para alguém estar certo. Ou seja, aúnica realidade era a mente do homem. É ela que faz ascoisas existirem.

Essa diversidade de pensamento, paradoxalmente,unifica. E essa unidade é a mente.

Um vento frio bateu em meu rosto e me refrescouos pensamentos. Para aonde estava indo na vida? Ora, a

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vida não tem espaço. A vida não tem uma direção. Oviver já é algo absoluto, não requer outra condição.

Continuei caminhando. Sem rumo? Estava cami-nhando apenas pelo simples prazer de caminhar. A vidamoderna eliminou esse prazer das pessoas.

 Não procurava um fim, uma saída e um destino paraa minha caminhada. Apenas caminhava. E, isso me

colocava no absoluto. Na rua eu não estava, eu era.

Mas, inevitavelmente, a rua me forçava a uma re-flexão: o que há do outro lado? Da rua? Da vida?

Ora, o absoluto não tem lados. É absoluto. Nãoexiste o outro lado da vida. Só pode existir vida. Em

que plano? Material? Mental? Visível? Invisível?

Todavia, para aonde aquela rua estava me condu-zindo? Como a vida, a rua também não tem fim. Tudo éuma questão de ângulo, de visão. Se comecei por tallado, o fim é aquele e se comecei por tal lado, o fim éaquele outro.

Mas, enfim, a rua apenas nos conduz, como a vidae, às vezes, cruzamos com alguém. Paramos para trocaridéias, saciar desejos e prosseguimos.

Às vezes, ocorria de perder-me. Já não sabia se arua existia ou se, eu mesmo, era a própria rua.

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Sei que, por mim, passaram muitos rostos, desejos,

dúvidas, paisagens, casas, bichos e emoções.

Sendo assim, não tenho fim e também, faço vocêagora, viajar em mim.

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O PREDADOR

le pousou ali com os olhos fixos. A vida seacendia toda nele. Era pura concentração. Atal ponto que a vida resplandecia. Puro pen-samento.

Um vacilo e, zapt, estava em suas garras!

Em sua presença todo cuidado era pouco. Em sua presença havia certo desconforto. Não se podia ficar àvontade.

Mas, contraditoriamente, sua camuflagem era jus-tamente aquela paralisia, aquela aparente indiferença.Era distrair-se, esquecê-lo, ignorá-lo para ele dá o bote.

Quando chegava fazia questão de não demonstrarsua presença, sua intenção. Preferia como presa os maisvelhos, os mais indefesos e os mais desatentos.

Muitos viam maldade nisso, mas apenas era umaquestão de sobrevivência. Não existia maldade. Preci-sava sobreviver e era impulsionado, pela própria estru-

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tura, a fazê-lo. Não tinha moral. Aliás, sequer sabia doque se tratava. Para ele, moral era puder comer.

 Nós tínhamos estabelecido regras, mas quando oinstinto, provocado pela necessidade, coordenava asações, era o que valia, era a regra. E, a regra, para ele,antes de tudo, era sobreviver. Era uma questão de vidaou morte. Precisava sobreviver.

 Não conhecia alternativas. Não lhe foram ensina-das outras. Não lhe foram dadas outras. Para ele, imoralera a nossa conduta, a nossa indiferença com as suasnecessidades.

Mas, havia um jeito de espantá-lo. Bastava olharfixamente para ele, confirmar sua presença para inibir

suas intenções.

 No entanto, no fundo era dócil, frágil. Se o conhe-cêssemos melhor poderíamos compreender as suas ne-cessidades e aprenderíamos a amá-lo.

É inaceitável que o tratemos como um animal.

Afinal, nenhum trombadinha é um bicho de sete cabe-ças.

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IMAGINAÇÃO

hovia. Tudo estava em repouso, calmo. Avida era germinada em silêncio, sutilmente.

Ele caminhava manso, com segurança.Havia uma altivez em seu porte. Entre os homens era oque mais demonstrava certeza. Estava convicto do seuestado. Tudo o que podia acontecer agora, inevitavel-mente, era progredir.

Ele andava como se, em cada passo, progredisse.Tinha, portanto, prazer em caminhar. O quanto já haviaandado na vida? Não conseguia recordar-se da exten-são. Seu prazer em caminhar era tamanho que não viaaquilo como um espaço a ser vencido, percorrido.

 Na chuva ou no sol ele sempre estava ali na estrada.O olhar sempre à frente. Para ele, o passado não existia.Era só o presente, de estar ali, e o futuro que sempre seabria à sua frente.

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Era verdadeiramente um homem de perspectiva.Assim, estava sempre feliz e sorridente. Às vezes, é

certo, havia pedras em seu caminho, mas ele sabia queelas ficariam para trás.

Às vezes, até sorria quando levava um tropeção.Tinha se adiantado mais.

Agora com a chuva estava sentindo-se mais calmo

do que o normal. Estava feliz, satisfeito. Sentia quetinha vivido plenamente.

Para ele não eram os fatos que contavam. Elemesmo não tinha uma história. Nunca viveu uma aven-tura. Nem mesmo quando criança tinha brigado com oscolegas de escola. Não havia nada em sua vida para

contar.

Entretanto, viveu plenamente. Para ele, viver erasentir a vida e, isso, sempre sentiu. Assim, não tinhainveja de ninguém. Aliás, nem sabia o que significavainveja.

 Nunca disputou mulheres, jogos, empregos ouopiniões. Vivia a maior parte do tempo calado. Porém,sua mente era brilhante. Tinha uma lucidez e uma sa-

 bedoria admiráveis.

O seu enterro foi no dia seguinte. Ainda chovia.Todos lamentavam a vida que ele tinha levado e não

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conseguiam entender aquele riso estampado em seurosto.

Afinal, desde que nasceu nunca pôde andar comos seus próprios pés. Na verdade, nunca pôde andarrealmente. Nasceu paraplégico, porém, tinha uma ima-ginação fabulosa. Entretanto, foi um exemplo de ale-gria e bom senso.

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O ESPELHO DEALICE

inha as pernas longas, misteriosas. Paisagema desbravar. Acima delas existia uma mulhercom a cabeça nas nuvens e o coração noslábios.

O que queríamos dela? Apenas conhecê-la. Embria-gar-se em seu mundo.

Quando pisava a rua, a rua toda se abria em desejos.Mas, seu sorriso não era egoistamente escondido, aocontrário, era distribuído espontaneamente com todos.

Ficávamos de boca aberta.

Mas, o nosso desejo não era de possuí-la, era de en-tendê-la. Ela era pura embriaguez, pura vida. Franca,aberta, disponível. Ela se repartia fartamente com tudoo que existia. E, tudo só começava a existir quando elaaparecia.

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Entretanto, parecia intocável. Na verdade, parecia

uma aparição, irreal. Será que ela existia mesmo ou erauma ilusão coletiva?

 Não sabemos da existência de seus seios, cintura,nádegas, sexo. Só a víamos por inteiro. E, ela, inteira,era pura luz. Iluminava o dia, o riso, o bom dia.

Mas, Beatriz tinha uns olhos de arregalar. Acendi-am-se na noite. Clareavam o dia. Ela era lua/sol. Cheia,inteira, veia, magia. Beatriz era pura poesia.

Utópica, real, melodia. Beatriz era a vida que a gen-te não vivia. Pulsava firme, meiga, alegria.

Passamos toda a nossa existência a procurá-la. Mas,a procurávamos onde não existia.

Era mágica, deslumbrante, feiticeira. Onde morava?Onde se escondia? Vinha da noite? Vinha do dia? Era

 boa? Era má? Ninguém o sabia, mas era a amante detodos.

 No entanto, Beatriz só aparecia quando Alice seolhava nua no espelho. Beatriz só aparecia quando Ali-ce se refletia. Mas, será mesmo que Beatriz só existianos olhos de Alice? A verdade é que Beatriz era maisreal do que Alice.

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BEATRIZ

lice era muito magra, muito pálida e muito

calada. Caminhava encolhendo-se, tentandoesconder-se. Alice e o seu corpo eram umadificuldade. Ele a limitava, a aprisionava, a

castrava.

Mas, Alice era uma sonhadora. Bastava ficar emfrente ao seu espelho que ela se transformava.

Para ela, a única coisa real na vida era aquele espelho.Ele, sim, é que refletia a sua verdadeira natureza e es-sência. Assim, sua vida era toda desenrolada na frentedele.

 Nele, ela realizava sua história. Despia-se à vonta-

de. Ria, chorava, cantava, gesticulava, fazia amor, se-gredava suas fantasias. Enfim, o espelho era a únicacoisa concreta em sua existência.

 No espelho ela via sua beleza, sua força, seu talen-to, sua bondade, seu destino. Ele era mágico, pois, tudo

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nele era realizável. Nele, ela se reconhecia. Nele, ela secompletava.

Toda vez que ela se via refletida nele Beatriz apare-cia. Suave, encantadora, verdadeira. Beatriz levavaAlice ao céu. Criavam asas e subiam, subiam, subiam...

Era Beatriz que conduzia Alice pelas ruas. E, quan-do Alice estava com Beatriz, abria-se, iluminava-se.

Apossava-se da rua. Andava solta, livre, leve, segura.

Alice só se sentia verdadeira, autêntica, poderosa,quando estava com Beatriz. Quem era Beatriz? Alicesabia que Beatriz era ela mesma, mas as pessoas nãoreconheciam isso.

Um dia Alice foi tão absorvida por Beatriz que nun-ca mais conseguiu ser Alice novamente. Alice sumiudefinitivamente. Foi absorvida pelo espelho. Alice setornou pura luz, como Beatriz.

Sua mãe, ao entrar no quarto à sua procura, só viuum brilho fantástico vindo do espelho. Até hoje procu-

ram Alice, quando deviam, antes, procurar por Beatriz.

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O BIBELÔ

á estava aposentado. Mas, não conseguia ficar parado. Sua vida sempre fora uma atividade

incessante. No princípio passou um tempo an-sioso. Precisava encontrar um passatempo. Al-

go que desse sentido à sua vida. Dentro de casa não parava de vasculhar as coisas. Arrumava, desarrumava.Vivia trocando as coisas de lugar.

 Não se lembrava mais quando começou aquela ma-

nia de colecionar todo tipo de bugiganga. Talvez, fossea diversidade das coisas que chamasse a sua atenção.

Ficava maravilhado com as variações das coisas.Assim, saía a procurar, até no lixo, tudo que fosse dife-rente, exótico.

Sua casa não cabia mais de tanto treco. Sem espaçoela foi diminuindo, diminuindo. Assim, já não recebiavisitas. Não se tinha como entrar ali.

Quanto mais havia coisas, em sua casa, para admi-rar, mais ficava maravilhado. Aquilo retratava a sua

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mente. Ela estava sempre entulhada, variando em pen-samentos diversos.

 Naturalmente que não conseguia mais dormir. Vi-via, como no passado, sempre ocupado, em atividade.E, aquilo justificava o seu viver.

 Nunca tivera filhos. Sequer tivera tempo para na-morar e casar. Nunca parou para pensar se era feliz. Na

verdade, para ele, estar vivendo era o que importava. E, para ele, estar vivendo era estar agindo, e isto ele esta-va.

Só saía de casa para vasculhar a redondeza e ver seencontrava alguma raridade e não se importava se elaestava no lixo ou numa lojinha.

Assim, sua casa foi encolhendo, encolhendo. Quan-do se deu conta, não conseguia mais sair dela. Agoratambém não importava mais. Havia bastante coisa paraarrumar, mexer e desarrumar.

Os vizinhos estranharam porque já fazia muito tem-

 po que não o viam sair de casa. Ficaram preocupados.Bateram na porta e não houve resposta. Tentaram vá-rias e várias vezes, chamando o seu nome e nada.

Ele jamais foi encontrado. O que a polícia conse-guiu encontrar ali, naquela casa, foi apenas um montede cacarecos.

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RECADO

uerida, estou escrevendo esta carta parainformar-lhe que estou bem.

Aqui, não há corpo, rosto, idade, sexo. Não sei sevai conseguir compreender como nos comunicamos sesequer temos bocas. Na verdade, aqui, sentimos as coi-

sas.

Existe inferno, mas não há demônios, caldeirõesescaldantes e outras coisas do gênero, que muitos aíainda, infantilmente, acreditam. O inferno é apenasmental. Ele, basicamente, é remorso, arrependimento eculpa.

Existe céu, mas não há anjos tocando harpas ecoisa do gênero, que muitos aí ainda, infantilmente,acreditam. O céu é também mental.

Muitos, aqui, não sabem que existe um mundo aí. Na verdade, muitos duvidam que exista um mundo

“Q 

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aonde as pessoas têm um corpo, alimentam-se e mor-rem. Como aí, muitos aqui também não acreditam que

vocês existam.

Daqui não podemos fazer contato e interferir navida de vocês. Ou vocês, mentalmente, vêm até aqui ounão descemos aí. Assim, pense em mim que consigosentir o que estar sentindo.

Ah, para não esquecer, não conseguimos fazermal a ninguém daí. Para nós é engraçada a crença devocês em fantasmas. O que vocês enxergam são apenasos seus medos.

Você não sabe como é bom estar aqui. Não nos preocupamos com trabalho, alimentação, doença, ve-

lhice e todos os males que temos que passar quandoestamos aí.

Os que acreditam o contrário estão apenas fantasi-ando a existência neste nosso plano, ou seja, eles estãotransferindo coisas daí que não têm a menor necessida-de e lógica aqui.

Aqui simplesmente existimos. Não temos nome,idade, cor, raça, cultura. Não somos homem, mulher,

 pai, filho, irmão. Aqui somos todos iguais.

Somos uma vibração positiva ou negativa. De- pende de como estava o nosso estado mental no mo-

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mento em que morremos. No geral, aqui é pura paz,alegria, amor, êxtase.

Também, como você agora, quando estava aí, nãoentendia isso. Mas, não se preocupe que, inevitavel-mente, como eu e os demais que estão aqui, quandochegar a hora vai entender também.

Daqui achamos a maior tolice boa parte de suas

 preocupações. Aí, tudo passa. Aqui, nada passa. Tudoaqui é permanente.

Estou feliz porque, mais cedo ou mais tarde, vocêvai estar aqui também.

Lembranças. Aguardo-te.” 

 P.S. Não utilizamos ninguém para escrever por nós. Na verdade, não sabemos escrever. Aqui não existem

línguas. Somos universais. Como escrevi esta carta?

 Não escrevi.

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A MÁSCARA 

avia um homem atrás de um bigode. Haviaum bigode à frente de um homem. Um bi-gode conduzia um homem. Definia suaconduta.

É impressionante como um monte de pêlo podeservir para o homem esconder seu medo e insegurança.

Sem bigode um homem estar correndo risco de nãoassegurar sua condição de macho.

Portanto, é imprescindível usar um bigode. Só as-sim não haverá o risco da dúvida. Dessa forma, as carasdos homens estão repletas de bigodes. Existem até bi-godes duvidosos, bandeirosos, mas eles estão ali para

dissimular e garantir respeito.

O fato é que os bigodes vão à praia, shopping, ci-nema, motel e confessionário. Mas, a função básica do

 bigode não é a afirmação. A função básica dele é es-conder.

H

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Assim, os homens se escondem atrás dos bigodes.Quem poderá desvendar o que há atrás deles? Afinal,

um bigode tem personalidade própria.

Da mesma forma que as mulheres usam certasmaquiagens para disfarçar algumas rugas, assim o bi-gode é usado para disfarçar a verdadeira idade do seuusuário, pois, por trás dele há sempre uma criança.

Ou seja, todo bigodeiro é uma criança indefesa.

É verdade que há bigode e bigodes. E, cada um,tem uma característica peculiar, própria. Todo bigode éum símbolo e, assim, cada formato tem um significadodiferente. Há o bigode conquistador, valentão, gozador,tímido, etc.

Mas, existem bigodes mais inteligentes do que osseus donos. Na verdade, o uso do bigode já denuncia afragilidade mental do seu portador. É como se a falta deuso dos neurônios fizesse crescer, proporcionalmente,os bigodes.

Seja como for, com a lâmina na mão, decidi: ouele ou eu.

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O VÔO

omecei a subir. A princípio meio desajeita-do. Dando cabeçada para lá e para cá. De-

 pois ganhei jeito. Fui tomando gosto e fuisubindo cada vez mais.

Quando cheguei lá em cima, bem no alto, comeceia bailar. Que coisa gostosa! Tudo ali embaixo bem pe-

quenino!

Foi aí que vi um homem passando com seu orgu-lho. Ele ficou menor do que o estava vendo realmente.

Tudo- pensei - depende de ângulo. Basta mudar-mos nossa posição na vida para vermos o quanto certascoisas que valorizamos são tão insignificantes.

Mudamos nossa posição e mudamos a nossa visãoda vida. De onde eu estava agora, tinha uma visão maisampla, mais geral. De onde estava via certos homensrastejando-se no orgulho. Tão pequenos!

C

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Continuei flutuando, meditando e os pensamentosiam abrindo-se, tornando-se leves. Contraditoriamente,

me sentia enorme. Abarcava tudo de uma só vez. Quan-to mais nos distanciamos dos problemas, maiores fica-mos e quanto mais próximos a eles, ficamos menores.

Quanto mais me sentia crescer, mais sentia pieda-de por aquelas vidas lá embaixo. Todos tão cegos! Co-mo podem, ali embaixo, ter uma visão grandiosa, exce-

to que se elevem?

Para isso, é preciso tirar os pés do chão e ergueros pensamentos. Mas, a maioria estar tão colado à terra,com o peso de seus problemas, que não consegue sedecolar mais. Não consegue viajar dentro de si mesmo.

O fato é que os dias vão passando-se e os homensvão ficando pesados, densos e não conseguem erguer-se. Para flutuar eles precisam soltar-se, libertar-se detudo que os puxem para baixo.

Está certo que, para uma pipa como eu, isso é fá-cil, mas aonde estar a imaginação? Não basta, para is-

so, soltar a linha?