O GOLPE NA EDUCAÇÃO

103
O GOLPE NA EDUCAÇÃO LUIZ ANTONIO CUNHA E MOACYR DE GOÉS

Transcript of O GOLPE NA EDUCAÇÃO

Page 1: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

O GOLPE NA EDUCAÇÃO

LUIZ ANTONIO CUNHA E MOACYR DE GOÉS

Page 2: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

O GOLPE NA EDUCAÇÃO

BRASIL OS ANOS DE AUTORITARISMO

ANÁLISE - BALANÇO - PERSPECTIVAS

LUIZ ANTONIO CUNHA E MOACYR DE GOÉS

SÉTIMA EDIÇÃO

EDITORA JORGE ZAHAR EDITOR.

RIO DE JANEIRO

1991

Page 3: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

POLÍTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA

I. Por Dentro do Contexto

Nos anos 60 a crise brasileira é econômica, é social e é política. Desde o Movimento de 1930 -

resposta tupiniquim à crise de 1929 do capitalismo internacional - que o Brasil procurava saídas face à

ruptura da República agro-exportadora, à crescente urbanização e à influência dos militares que

desejavam construir as próprias armas (ver os discursos do ditador do Estado Novo). 0 primeiro

patamar do novo modelo foi construído por Vargas, com Volta Redonda, negociando com os

americanos o apoio do Brasil aos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Direcionou-se o país para a

industrialização.

Na reordenação que se processou, após a crise do Estado liberaloligárquico, a sociedade política (o

Estado) incorporou setores da classe dominante com interesses voltadas para o setor industrial e, a

partir daí, procurou conciliar capital e trabalho. Instalou-se, posteriormente, o chamado "modelo de

substituição das importações" que possibilitou a emergência do setor industrial como hegemônico nos

anos 60.

Já no final dos anos 50 este processo parecia estar em vias de conclusão e o seu desdobramento

implicaria abrir um mais amplo mercado interno. Este foi o desafio ao governo João Goulart e ao seu

programa de "Reformas de Base".

A situação, todavia, não era tão fácil e esquemática: O Brasil era e é um

país terceiro-mundista, dependente. Aqui se confrontavam interesses

econômicos das mais diversas ordens:

- o latifúndio, impenetrável às mudanças sociais;

- os grupos ligados à internacionalização do capital que buscavam o poder

político, indispensável à segurança de sua reprodução;

- a chamada "burguesia nacional" que preferia aliar-se ao capital internacional

a fazer concessões à força de trabalho, apesar dos ideólogos do , ISEB Instituto Superior de Estudos

Brasileiros) teorizarem a aliança de classes.

Page 4: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

02

Esta luta de foice no escuro se processava numa sociedade:

- em que o movimento operário era vulnerável, pela sua dependência

de Estado interventor de sindicatos;

- em que o campo estava no início da organização de seus trabalhadores em Ligas Camponesas e

sindicatos rurais;

- em que as camadas médias eram atravessadas pela "indústria do anticomunismo

- em que a Aliança para o Progresso constituía-se na grande ideóloga contra a Revolução Cubana

e financiava "ilhas de sanidade" hostis ao governo reformista de Jango;

- em que os intelectuais orgânicos da classe dominante atuavam no Congresso Nacional,

formavam opinião pública através dos meios de comunicação de massas, da escola, de parte das

Igrejas, de organizações tipo IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e IBAD (Instituto

Brasileiro de Ação Democrática), instrumentalizando conceitos ideológicos de "civilização ocidental e

cristã", corrompendo com o dinheiro da embaixada americana (eleições de 1962) com o objetivo

político de conservação das estruturas, contra as reformas ou qualquer

mudança, escamoteando a discussão da luta de classes.

Nesta conjuntura, ó confronto "abertura de mercado interno" versus "exportar é a solução" foi

decidido pela força em 1964. O segmento industrial, financiado pelo chamado "capital associado",

cresce-não com a demanda externa, e o Brasil rumou em direção a Belindia, isto é, a construção de

uma Bélgica (a-minoria rica e industrializada) em cima de uma Índia (a massa de despossuídos e

miseráveis), como já se disse tantas vezes.

Na sociedade civil, o discurso_ político progressista dos anos 60 remeteu, freqüentemente, às

figurações de "povo e antì-povo" e de ações e anti-nação fluindo para a denúncia do latifúndio e do

imperialismo. Não percebeu, todavia, com maior clareza, que a sociedade é dividida em classes,

que a crise social existente era também interna e que só com uma análise de

apropriação/expropriação do trabalho a questão poderia ser discutida. Assim, apesar da relativa

liberdade assegurada pelo populoso aos movimentos sociais, a discussão da luta de classes ficou

restrita aos setores marxistas e não alcançou o palanque político dos comícios. A crise social

continuou latente e latejasse, sem um canal efetivo de comunicação com as massas.

Page 5: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

03

Na sociedade civil no Nordeste, este discurso remeteu, também, à preocupação com as tendências para

a consolidação do capitalismo monopolista e à modernização da produção industrial do Centro-Sul e

seu avanço sobre o mercado nordestino. A criação da Sudene em 1958 foi precedida de urna

discussão, que se prolongou pelo período, na qual o perfil do novo órgão e seus objetivos foram

questionados. A discussão da colonização brasileira pelas forças do capital internacional foi

decodificada para questionar a possível colonização do Nordeste pelas forças econômicas do Centro-

Sul: o chamado "imperialismo .interno". Apesar de tudo, a Sudene deflagrou grandes esperanças para

a região.

Diante de uma situação que se tomava cada vez mais complexa, a : aliança PSD-PTB, voto rural e

voto urbano, não resistiu aos interesses divergentes entre cidade e campo, entre grupos nacionalistas e

outros ligados ao capital externo.A crise, política se revela, principalmente, pelo esgotamento do

modelo populista (1930-1964). Com a ruptura da República agroexportadora; em 1930, o Brasil

conheceria a experiência latino-americana populista, tão como a Argentina de Perón, o México de

Cárdenas, o Peru da APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana), etc. No Brasil o populoso

foi "revolucionário" em 1930; "bonapartista" em 1937; nacionalista e antimperialista de 1950 a J 954 ;

desenvolvimentista no final dos anos 50; moralista em 1961 ; nacionalista e sindicalista até a sua

queda em 1964.

O populoso esgotou-se pelo avanço das camadas urbanas e dos setores

ligados ao campo que escaparam do controle dos grupos dirigentes. Nesta situação excepcional deu-se

uma crise orgânica na classe dirigente, que se sentiu ameaçada na sociedade civil e na própria

estrutura econômica, visualizando riscos para a acumulação de capital.. Assim, quando se armou o

confronto - como desdobrar o modelo de substituição das incorporações no bojo de uma crise social? -

o populoso já não teve coelhos para tirar de sua cartola mágica.

Sem condições políticas para se transformar no popular, o populoso em 1964, deixou a cena para o

novo estado tecnocrata-civil-militar. Os novos tempos serão comandadas pela internacionalização do

capital, que se aprofundará, e dirigidos pela tradicional classe dominante, agora com mais uma

proposta de modernização.

Face às novas condições, o novo Estado definiu-se pela coerção para manter a dominação, no sentido,

gramsciano do termo.Na crise de 1964, onde estavam os educadores? Que faziam? Qual a visão de

mundo de suas vanguardas? Qual o papel do Estado na educação nacional? E o povo?

04

II. JK-Jânio-Jango: Caminhos e Descaminhos da Educação Nacional

Page 6: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

A crise faz crescer. Ou, em outras palavras, a contradição move a História. Apesar de um forte

conservadorismo e do medo das mudanças (que tem sido a tônica em educação), alguns educadores

começaram a perceber que os problemas de sua sala de aula não se resolveriam, apenas, dentro dela.

Era preciso espiar o que se passava no campo social como um todo e voltar à sala de aula com a visão

da realidade do processo que estava sendo vivido.

Nos anos 20 e 30, Pascoal Leme fora pioneiro desta prática. Esta preocupação, todavia, ficou soterra a

pela repressão do Estado novo (1937-1945). Com a crise dos anos 50-60, maior número de educadores

começou a botar a cabeça para fora da sala de aula para olhar e estudar o mundo.

O "TRÂNSITO"

É possível que um marco dessa nova postura tenha sido Paulo Freire, quando relatou o tema

"Educação dos adultos e as populações marginais: o problema dos mocambos", vinculando

analfabetismo e pauperismo (Seminário Regional de Pernambuco, preparatório ao II Congresso

Nacional de Educação de Adultos). Neste Congresso (Rio, 1958), o educador nordestino

defendeu a educação com o homem, denunciando a então vigente educação para o homem. E

ainda: a substituição da aula expositiva pela discussão, a utilização de modernas técnicas de

educação de grupos com a ajuda de recursos áudio-visuais,etc.

Demonstrou preocupação com metodologias e, principalmente, com o lugar (social, político,

educacional, de autoridade) a ser assumido por educador e educandos. Com a defesa da tese

"Educação e atualidade brasileira" (Recife, 1959) Paulo Freire voltou ao tema e discutiu o seu

carismático conceito de "transito" nós anos 60 o povo viveria o "trânsito" de uma sociedade fechada

para uma sociedade que se abria, e o cidadão ultrapassaria uma consciência mágica/intransitiva para

uma consciência transitiva critica.

Page 7: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

05

O II Congresso, onde se discutiram 210 teses, foi um momento de esperanças, mesmo que os seus

andaimes estivessem fincados num chão de fracassos e de destroços de experiências passadas : a da

Alfalit (Agência Alfabetizadora Confessional), a Cruzada Nacional de Educação (1932), a Bandeira

Paulista de Alfabetização (1933), a Cruzada de Educação de Adultos (1947), o Serviço de Educação

de Adultos (1947), o I Congresso Nacional de Educação de Adultos (1947), o Sistema Radioeducativo

Nacional - Sirena (1957), a Campanha de Educação de Adultos e Adolescentes (1947-1954), a

Campanha de Educaç3o Rural (1952-1959), a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo

(1958).

0 final do governo JK foi marcado pela discussão sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional (LDB) no Congresso Nacional, nos órgãos educacionais, sindicais, estudantis, na imprensa e

nos comícios da campanha eleitoral de 1960.

Jânio Quadros governou sete meses e assinou um convênio com a Igreja

Católica criando o MEB - Movimento de Educação de Base (decreto 50370, de 21 de março de 1961).

A história é conhecida: a renúncia de Jânio, a tentativa de golpe dos ministros militares, a conciliação

do parlamentarismo "para evitar o derramamento de sangue" e a posse de Jango.

0 governo parlamentarista também teve o seu programa de educação (outubro de 1961). 0 programa do

premier Tancredo Neves foi identificado por Robert Dannemann como tendo os seguintes objetivos, a

serem alcançados em cinco anos: a expansão e o aprimoramento da rede escolar comum; a

recuperação dos analfabetos e insuficientemente alfabetizados para a Nação; a extensão dos benefícios

da cultura a todos os brasileiros; o incentivo à criação artística, intelectual e científica. Pretendia o

governo, em termos de ensino primário, atingir os objetivos estabelecidos em Ponta del Leste e, se

possível, antecipar-se a eles. Tais objetivos, fixados na Conferência da OEA (Organização dos Estados

Americanos) realizada naquela cidade, eram: a eliminação do analfabetismo, a escolarização mínima

de seis anos para todas as crianças em idade escolar, etc.

Page 8: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

06

Em 1962, quando a crise institucional se aprofundou, o parlamentarismo, nos seus exteriores, ainda

assumiu duas medidas de ordem educacional: a Mobilização Nacional contra o Analfabetismo (decreto

51470, de maio) e o Programa de Emergência para o Ensino Primário e Médio (decreto 51552, de

setembro). No primeiro decreto falou-se, expressamente, de um entrosamento de propósitos de

alfabetização e educação de base com o problema do desenvolvimento social e econômico. 0 decreto,

todavia, não passou de uma carta de intenções. Para o Ministro Darcy Ribeiro o Programa de

Emergência redescobria o município como "núcleo operativo em que se processa a ação

educacional".São os tempos de descentralização da LDB, e ao MEC cumpre o repasse dos recursos

para sua aplicação nos Estados.

A LEI DE DIRETRIZES E BASES

A mais longa discussão da questão da educação em nível nacional que já ocorreu neste país foi o

debate sobre a Lei de Diretrizes e Bases. Começou em 1948, quando já se discutia o Projeto Mariani;

incendiou-se a que o com o Sübstutivo Lacerda; não se concluiu a polêmica com a promulgação da lei

4.024 em dezembro de 1961. O debate assumiu um papel questionador até 1964, quando ocorreu, com

o golpe de Estado, o verdadeiro "cala a boca" nacional.

A grande confrontação, na discussão da LDB, estabeleceu-se entre os privatistas do ensino e os

educadores que defendiam a escola públicam gratuita e laica. Os privatistas combateram o Projeto

Mariani, e fizeram do Substitutivo Lacerda a sua bandeira. Nesta trincheira ficaram os católicos sob a

liderança da AEC (Associação de Educação Católica),que deflagrou a Campanha de Defesa da

Liberdade de Ensino em oposição à Campanha de Defesa da Escola Pública. A AEC mobilizou os

colégios católicos, os Círculos Operários, a opinião pública conservadora e pressionou o Congresso

Nacional. Esta militância católica começou a "rachar" na JEC (juventude Estudantil Católica) e JUC

(Juventude Universitária Católica) face à posição do movimento estudantil em favor da escola pública.

A Campanha de Defesa Escola Pública retomou o pensamento liberal norte-americano e europeu do

final do século XIX ao qual se somaram marxistas), mobilizou a opinião pública progressista, o

movimento estudantil, e obteve o apoio operário (I e II Convenções Operárias em Defesa da Escola

Pública, Sindicato dos Metalúrgicos, São Paulo, 1961). Nos anos 50-60, a defesa da escola pública, no

contexto da discussão da LDB, deu continuidade ao pensamento de educadores como Anísio Teixeira;

Pascoal Leme e outros e se converteu em estuário do rio cujos tributários foram: a criação da

Associação Brasileira de Educação (1924), a IV Conferência Nacional de Educação (1931), o

Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), o I Congresso Brasileiro de Escritores (1945), o

IX Congresso Brasileiro de Educação (1945), a Universidade do Povo e os Comitês Democráticos,

criados no então Distrito Federal pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro) quarto de seu período de

vida legal (1945-1947)

Page 9: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

07

A LDB terminou sendo uma conciliação dos projetos Mariani e Lacerda. Assim o ensino no Brasil é

direito tanto do poder público quanto da iniciativa privada (art. 2°). A gratuidade do ensino, conquista

constitucional fica sem explicitaçâo. Abre-se a porta para o Estado financiar a escola privada (art. 9S).

Do Projeto Mariani, permanece a proposta de equiparação dos cursos de nível médio dentro de uma

articulação flexível.

Anísio Teixeira, no seu incurável otimismo, disse que a LDB é uma meia vitória. mas uma vitória..

Finalmente, Bárbara Freitas fala do caráter "tardio" da LDB,. em face das novas tendências da

"internacionalização do mercado", do caráter de seletividade que ela consagra, da proclamação vazia

da educação como direito e dever de todos, omitindo uma "realidade social em ' que a desigualdade

está profundamente arraigada". E nos diz que a LDB traduz no seu texto a estratégia típica da classe

dominante que ao mesmo tempo que institucionaliza a desigualdade social, ao nível da ideologia,

postula a sua inexistência; [assim, o sistema educacional além de contribuir para reproduzir a

estrutura de classes e as relações de trabalho, também reproduz essa ideologia da igualdade.

A LDB consagrou a descentralização, reservando ao governo federal a fixação de metas e a ação

supletiva, financeira e técnica.

Enquanto a União se debatia em sua crise institucional de parlamentarismo versus presidencialismo, os

fatos importantes em educação se deslocavam da área do governo federal para emergirem em âmbitos

regionais e/ou institucionais. A teoria do II Congresso Nacional de Educação de Adultos buscava a sua

práxis nos movimentos de cultura popular.

No ocaso a República presidencialista de Jango, iniciada em 1963 por força do plebiscito, apesar do

clima de conspiração, ainda teve tempo de propor à nação:

Page 10: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

08

a) O Plano Nacional de Educação (PNE), oriundo do Conselho Federal de Educação;

b) 0 Plano Trienal de Celso Furtado, que encampou o PNE;

c) A Comissão de Cultura Popular, criada junto ao gabinete do ministro, com atribuição de implantar o

Sistema Paulo Freire, em Brasília (junho);

d) O Plano Nacional de Alfabetização-PNA (decreto 5346S, de janeiro de 1964) que oficializou, a

nível nacional, o Sistema Paulo Freire; este,

chegou a operacionalizar-se em Brasília, projeto-piloto nordeste (Sergipe)

e projeto-piloto sul (Baixada Fluminense, Rio). O PNA foi extinto em abril de 1964, 14 dias após o

golpe de Estado (decreto 53886).

Page 11: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

09

III. Os Movimentos de Cultura/Educação Popular

Quem não se lembra da universidade brasileira dos anos 50-60? A "torre de marfim". A mansão dos

eleitos onde pontificava o catedrático vitalício, voto soberano numa congregação formada quase

exclusivamente de catedráticos vitalícios.

A jovem docência recrutada por cooperação do catedrático para ser seu instrutor ou assistente. O

vínculo da cooperação criava os laços pessoais de fidelidade. A renovação era barrada à porta dessa

universidade, mesmo que o movimento estudantil protestasse em greve por participação de 1/3 nas

decisões.

Quem fala para o próprio umbigo está condenado ao isolamento. Pior: a não perceber o que se passa

ao redor. Assim aconteceu com essa universidade. Não percebeu a formação de um movimento

popular crescente e que, em algumas regiões, ameaçava ser hegemônico.

Vitorioso em algumas eleições locais e urbanas, o movimento popular abriu espaço para o pensamento

renovador em educação e absorveu alguns intelectuais com experiência de lutas políticas das classes

subordinadas. Estes vão se transformar em intelectuais orgânicos de uma política voltada para a

cultura popular.

Onde o movimento popular venceu pelo voto (Recife e Natal) ou em

instituições que estavam atentas às mudanças sociais (Igreja Católica e

União Nacional dos Estudantes - UNE), ocorreram oportunidades de práticas de cultura popular que

conflitaram com a educação conservadora, encastelada na cátedra universitária vitalícia.

Assim foi no Recife (Movimento de Cultura Popular - MCP), em Natal

(Campanha De Pé No Chão Também Se Aprende A Ler); no âmbito da Igreja Católica (Movimento de

Educação de Base - MEB); na UNE (Centro Popular de Cultura - CPC). Estes foram os movimentos

que emergiram em 1960-1961 e, pelo estudo de suas propostas e práticas, é possível acompanhar um

tempo de alvorada - curta alvorada.

Page 12: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

10

MOVIMENTO DE CULTURA POPULAR

O MCP estruturou-se como uma sociedade civil, no âmbito da administração do Prefeito Miguel

Arraes, no Recife, Pernambuco, em maio de 1960, com sede no Sítio da Trindade, o antigo Arraial do

Bom Jesus das lutas holandesas. sDe acordo com o art. 1° de seus Estatutos, eram seus objetivos:

a) promover e incentivar, com a ajuda de particulares e poderes públicos, a educação de crianças e

adultos; b) atender ao objetivo fundamental da educação que é o de desenvolver plenamente todas as

virtualidade do ser humano, através da educação integral de base comunitária, que assegure, também,

de acordo com a Constituição, o ensino religioso facultativo;

c) proporcionar a elevação do nível cultural do povo, perpassando-o pata a vida e para o trabalho;

d) colaborar para a melhoria do nível material do povo, através da educação especializada;

e) formar quadros destinados a interpretar, sistematizar e transmitir os múltiplos aspectos da cultura

popular.

O MCP organizou-se em três departamentos: o de Formação da Cultura (DFC) o de Documentação e

Informação (DDI) e o da Difusão da Cultura (DDC). Destes, o que parece ter tido um crescimento

maior foi o Departamento da Formação da Cultura, integrado por dez divisões: Pesquisa (Diretor:

Paulo Freire); Ensino (AnitaPaes Barreto);Artes Plásticas e Artesanato (Abelardo da Hora); Música,

Dança e Canto (Mário Càncio) Cinema, Rádio Televisão e Imprensa (...); Teatro (Luiz Mendonça);

Cultura Brasileira (...); Bem-Estar Coletivo (Geraldo Vieira); Saúde (Arnaldo Marques); Esportes

(Reinaldo Pessoa).

O principal ideólogo do MCP foi Germano Coelho, um intelectual bastante marcado pela influência do

pensamento francês: Boimondeau, Peuple et Culture, Lebret; Dumazedier, Mounier, Freinet, Maritain,

etc. Na 32 Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC (1980), o professor

Paulo Rosas, criador das Praças de Cultura do MCP, relatou as realizações da organização até

setembro de 1962: 201 escolas, com 626 turmas; 646 alunos;rede de escolas radio-fonicas; um centro

de artes plásticas e artesanato; 452 professores e 174 monitores ministrando o ensino correspondente a

19 grau, supletivo, educação de base e edacação artística; uma escola para motoristas- mecânicos;

cinco praças de cultura (estas praças levavam ao povo local: biblioteca, teatro, cinema, teleclube,

música, orientação pedagógica, jogos infantis, educação física); Centro de Cultura Dona Olegarinha;

círculos de cultura; galeria de arte; conjunto teatral, etc.

A visão de mundo do MCP não era a da produção de bens culturais para

Posterior doação ao povo. Pelo contrário, a participação do povo no processo de elaboração da cultura

foi fundamental para os pernambucanos.

Page 13: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

11

Por isso, em 1963, o MCP recomendou uma estratégia que privilegiasse

atividades que se caracterizassem:

a) pela oferta de assessoramento a esforços criadores de cultura

desenvolvidos pelos núcleos de cultura das próprias organizações populares;

b) pela aplicação das várias modalidades de incentivos ao surgimento, ao

crescimento e à multiplicação de tais fontes produtoras de cultura

popular;

c) pela criação de mecanismos de estímulo e de coordenação capazes

de criar interdependências e ajudas mútuas entre as diversas organizações

nos seus diversos níveis de existência social, facilitando desse modo que

as deficiências de umas sejam completadas pelas potencialidades de outras è permitindo, em última

análise, que as mais atrasadas encontrem condições favoráveis pata ascender ao nível das mais

adiantadas.

É um erro grosseiro interpretar os tempos do populoso como todo mundo calçando do mesmo modelo

populista. No tecido do populoso emergiram algumas propostas marcadamente populares e de

pensamento coletivo construído em termos sérios; Não propostas paternalistas e eleitoreiras. Basta

uma reflexão maior sobre esta última letra c, por exemplo. Seu alcance é o de um caminhar coletivo,

solidário, de todos, sem cultos a personalidades políticas. Sem caudilhismos. Democrático.

- Mas, por que MCP? O melhor é dar a palavra ao próprio MCP que abriu o seu Plano de Ação para

1963 com o seguinte diagnóstico: Um movimento de cultura popular só surge quando o balanço das

relações

de poder começa a ser favorável aos setores populares da comunidade e

desfavorável aos seus setores de elite . Esta nova situação caracteriza, de

modo genérico, o quadro atua a vida brasileira.

No caso particular de Pernambuco, primeiramente em Recife, logo depois em todo o Estado, aquele

assenso democrático assumiu proporções inéditas, daí resultando um elemento qualitativamente novo

na configuração do movimento de cultura popular. Em Recife, e a seguir em Pernambuco, as forças

populares e democráticas lograram se fazer representar nos postos-chave do governo e da

administração. A ocorrência dessa conquista, alcançada através do esforço organizado das massas

populares, criou novas condições que se traduzem na possibilidade de movimento de cultura popular

ser financiado por recursos públicos e ser apoiado pelos poderes públicos. Tal fato é praticamente

inexistente no resto do país, onde, via de regra, os movimentos de cultura popular encontram, como

condições adversas a sua existência e ao seu funcionamento, a hostilidade do poder público

e a ausência de dotações orçamentárias para fins de cultura popular.

Page 14: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

12

O movimento popular gera o movimento de cultura popular. O movimento popular, ao atingir

determinada etapa de seu processo de desenvolvimento, experimenta a necessidade de liquidar certos

entraves de ordem cultural que se apresentam como barreiras características daquela etapa

obstaculizando a passagem para a etapa seguinte. A superação de tais dificuldades se apresenta assim

como condição para o prosseguimento do processo.

O movimento popular não gera um movimento cultural qualquer. Gera, precisamente um movimento

de cultura popular . Os interesses culturais do movimento popular portanto, tem caráter especifico

exprimem a necessidade e uma produção cultural a um só tempo voltada para as massas e destinada-a

elevar ó nível de consciência social das forças que integram, ou podem vir a integrar o movimento

popular.

A demanda por uma consciência popular-adequada ao real e possuída do projeto de transformá-lo é

característica do movimento popular porque esse se assenta nas três seguintes pressuposições:

a) só o povo pode resolver os problemas populares

b) tais problemas sé apresentam como tuna totalidade de efeitos que não

pode ser corrigida senão pela supressão de suas causas radicadas nas estruturas sociais vigentes;

c) o instrumento que efetua a transformação projetada é a luta política guiada por idéias que

representam adequadamente a realidade objetiva

Nas palavras do MCP percebe-se a forte congruência política/ cultura

popular. O segmento político; aqui identificado como um assenso democrático de proporções inéditas

em Pernambuco, é conseqüência das vitórias eleitorais da Frente do Recife, competentemente

costuradas por Pelópidas Silveira, Miguel Arraes e outras lideranças populares. A Frente do Recife,

congregando as forças progressistas e alguns segmentos liberais e conservadores modernos, permitiu

um programa de democratização do poder decisório em Pernambuco, a principal "Casa-Grande" do

Nordeste oligárquico. E, na medida em que se criava um canal efetivo de comunicações-decisões

massa/poder político, foi possível a prática de uma política de cultura popular/educação alternativa à

fechada universidade e, de um modo geral, à escola elitista, formal, tradicional. Assim, a educação

popular vai se concretizar num instrumento em favor da transformação social, pois o seu

compromisso remete às forças-políticas que se apóiam, no movimento popular. Por isso diz o

documento do mcp que o movimento popular gera o movimento de cultura popular.

Page 15: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

13

Há um esforço de síntese, de caminhar juntos, movimento popular/movimento de cultura popular. Nos

limites deste trabalho seria impossível relacionar todas as experiências e todos os instrumentos de

trabalho criados pelo MCP, mas também seria impossível deixar de mencionar a edição de uma

cartilha (Livro de leitura) produzida por Norma Porto Carreiro Coelho e Josina Maria Lopes Godoy

com o objetivo de alfabetizar adultos, respeitando o seu universo cultural e, também, que é no âmbito

do MCP que vai ocorrer a primeira gestação do Sistema Paulo Freire (janeiro de 1962).

O SISTEMA PAULO FREIRE

O Centro de Cultura Dona Olegarinha é, para a esquerda cristã, um dos

"santuários" mais caros ("santuário" na concepção da Guerra do Vietnam). Ali nasceu o Método Paulo

Freire, uma das armas mais utilizadas pelos jovens católicos radicais" (Kadt) dos anos 60.

O Centro Dona Olegarinha, do MCP, fundado no Poço da Panela (outro local histórico do Recife,

onde, no século XIX, funcionou um dos núcleos de luta pela Abolição), organizou-se em colaboração

com a paróquia de Casa Forte, que lhe cedeu uma casa para sua instalação.

Na proposta de criação do Centro, encaminhada ao MCP, afirmou Paulo Freire: O Centro de Cultura é

uma unidade educativa enfeixando um conjunto de motivos que agregam grupos, que os levam a

atividades de objetivos semelhantes. Estas atividades variadas, resposta a variações de núcleos

diferentes de motivação, se acham porém, entrelaçadas e sistematizadas, possibilitando assim um

trabalho organicamente educativo. A televisão, a leitura, a costura e o arranjo de casa, o recreio e a

educação dos filhos são motivos geradores de atividades, a congregar grupos, a se alongarem em

clubes, que compõem o "Centro de Cultura". Assim haverá tantos clubes no Centro de Cultura quantos

sejam os núcleos motivadores de atividades específicas. (...) Os Clubes dentro do Centro são

dimensões próprias do Centro. Em janeiro de 1962 foi feita a primeira tentativa de alfabetização de

adultos (quatro homens e uma mulher), empregando um método eclético e com ajuda de meios visuais

- uma proposta de Paulo Freire. "Em dois meses, com aproximadamente trinta horas, um dos alunos

estava lendo trechos relativamente difíceis (...). Em março formou-se nova turma, para repetir a

experiência, obtendo-se resultados semelhantes" - como informa, em dissertação para o Curso de

Serviço Social de Pernambuco, Zaira Ary, coordenadora do Centro de Cultura Dona Olegarinha até

novembro de 1962.

Page 16: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

14

É importante visualizar no Sistema Paulo Freire (evolução do Método): a

História, a Antropologia Cultural e a Metodologia. Em termos de História, já antecipamos, no capítulo

anterior, a sua visão, que é a da ocorrência de um trânsito do povo brasileiro, nos anos 60. Nesse

processo econômico, emergiria o fenômeno que Mannhein chama de "democratização fundamental",

que implica uma crescente e irreversível ativação do povo no seu próprio processo histórico, abrindo

leques de participação interdependentes de ordem econômico-social-político-cultural. O povo deixa de

ser objeto para ser sujeito. Naturalmente, passava por esta postura uma forte influência de Álvaro

Vieira Pinto, do desenvolvimento nacionalista, do ISEB, do pensamento da época, enfim.

Em termos "de Antropologia Cultural, é o próprio Freire que afirma:

Pareceu-nos (...) que o caminho seria levarmos ao analfabeto, através de seduções, o

conceito antropológico de cultura. A distinção entre os dois mundos: o mundo da natureza e

o da cultura. O papel ativo do homem em sua e com a sua realidade. O sentido de mediação

que tem a natureza passa as relações e comunicações dos homens. A cultura como

acrescentamento que o homem faz ao mundo que ele não fez.

A Metodologia do Sistema Paulo Freire implica o cumprimento das conhecidas etapas que devem ser

executadas na seguinte ordem: levantamento do universo vocabular do grupo que se vai alfabetizar;

seleção neste universo dos vocábulos geradores, sob um duplo critério da riqueza fonêmica e o da

pluralidade do engajamento na realidade local, regional, nacional; criação de situações existenciais

típicas do grupo que se vai alfabetizar; criação de fichas-roteiros, que auxiliam os coordenadores de

debates no trabalho; feitura de fichas com a decomposição das famílias fonémicas correspondentes aos

vocábulos geradores.

No clima das Reformas de Base do Governo de Jango, o Sistema Paulo Freire foi um verdadeiro

achado. Através dele seria possível - era a ,previsão - acrescentar cinco milhões de eleitores ao corpo

eleitoral em 1965 e assim desequilibrar o poder da oligarquia em favor do movimento popular. De

janeiro de 1962 (Dona Olegarinha) até final de 1963 e início de 1964, a proposta Paulo Freire de

alfabetização em 30 horas saiu dos limites de uma quase anônima experiência com cinco analfabetos

para ser adotada nacional e oficialmente como proposta do governo federal.

Page 17: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

15

0 seu grande teste ocorreu em Angicos, no interior do Rio Grande do Norte, quando o presidente da

República, acompanhado do governador do Estado, presenciou a sua aula de encerramento, em 2 de

abril de 1963 e afirmou:

“Hoje, minhas senhoras e meus senhores, nestas classes, aprende a população pobre e

analfabeta de Angicos as primeiras letras (...), mas, acima de todo, alunos e alunas, jovens

e adultos, todos estarão capacitados para ler também a grande Cartilha da República: a

Constituição de nossa Pátria, que lhes fez cidadãos e que tem o dever de lhes proporcionar

este mínimo de alfabetização”.

Quebrando o protocolo falou, então, um dos alunos alfabetizados, o Sr.

Antônio Ferreira que, entre outras coisas, afirmou:

Naquele tempo anterior veio o presidente Getúlio Vargas matar a "fome da barriga" - que é

uma doença fácil de ,curar. Agora, na época atual, veio 0 nosso presidente João Goulart

matar a precisão da cabeça que o pessoal todo tem necessidade de aprende. Temos muita

necessidade das coisas que nós não sabia e que hoje estamos sabendo. Em outra hora nós

era massa, e hoje já não somos massa, estamos sendo povo.

Essa distinção entre massa e povo havia sido incorporada ao discurso da

esquerda cristã dos anos 60 como sua marca registrada..: “A Campanha De Pé No Chão Também Se

Aprende A Ler”

Em ordem cronológica o segundo movimento de cultura popular a emergir foi a Campanha De Pé No

Chão Também Se Aprende A Ler. desenvolvida diretamente pela Secretaria Municipal de Natal (Rio

Grande do Norte) na administração do prefeito Djalma Maranhão: fevereiro de 1961.

Aqui também a congruência movimento popular educação popular é indissolúvel. De Pé No Chão foi

fruto dos compromissos eleitorais do candidato Djalma Maranhão, quando concorreu à Prefeitura de

Natal em 1960. Então, as forças progressistas, nacionalistas, de esquerda, estruturaram a campanha de

seu candidato em organizações suprapartidárias chamadas "Comitês Nacionalistas" ou "Comitês

Populares" ou "de Rua", face a uma conjuntura política confusa, dividida em 13 legendas partidárias.

A exemplo da Frente do Recife, em Natal formou-se um arco político muito amplo: de conservadores

modernos aos jovens custos radicais e aos comunistas.

Page 18: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

16

Durante a campanha foram organizados 160 comitês, numa população de 16G mil habitantes. Nesses

comitês eram discutidas as questões sob uma ótica municipal estadual/nacional/internacional,

objetivando o fortalecimento do movimento popular. Além da mobilização política os problemas mais

urgentes dos bairros e as reivindicações mais veementes da população. Após convenções de bairros os

comitês promoveram a Convenção Municipal, e esta, ao consolidar as listas das reivindicações das

bases, encontrou a "escola para todos" e a "erradicação do analfabetismo" como a prioridade de

número um. Ali estava escrita, então, a plataforma do candidato e o programa do futuro prefeito.

Djalma Maranhão foi vitorioso nas urnas com 66% dos votos.

A administração de Djalma Maranhão, que se iniciou em novembro de 1960, começou repetindo a

experiência educacional de sua gestão anterior (1956-1959), instalando o que se chamava na época de

"escolinhas", isto é, a utilização de salas disponíveis, adequadas ao funcionamento de uma classe de

aula. Os custos assumidos pela prefeitura se restringiam ao pagamento de um pro-labore a um

monitor, instalações de carteiras escolares, distribuição de material didático e merenda. As demais

despesas eram custeadas pela comunidade: igrejas de todos os credos, sindicatos, cinemas, teatros,

cooperativas, albergues noturnos; clubes de futebol, de folclore, etc.

Apesar do grande esforço desenvolvido (em meados de 1963 estavam em funcionamento 271

"escolinhas"), era impossível dirigir a ação educativa para os bolsões de analfabetismo e miséria que

se localizavam na periferia da cidade, pois a abertura dessas classes se fazia de forma aleatória, de

acordo com as possibilidades da comunidade e não da vontade do poder público.

Em janeiro de 1961, o Secretário Municipal de Educação, Moacyr de Góes, se reuniu com o Comitê

Nacionalista do l3airro das Rocas e recolocou a questão: o povo e o prefeito querem erradicar o

analfabetismo; mas, como construir escolas se não há dinheiro? Após 'mais de duas horas de discussão

com 40 ou 50 homens e mulheres, veio uma sugestão do grupo: - "Se não tem dinheiro para fazer uma

escola de alvenaria, faça uma escola de palha, mas faça a escola"!

A partir daí, a discussão se direcionou em detalhar a sugestão, votar aprovar a proposta, que foi,

posteriormente, encampada pelo prefeito. Em 23 de fevereiro de 1961, Djalma Maranhão,

pessoalmente, recrutava os alunos para as aulas que se iniciavam. no conjunto de classes cobertas de

palha de coqueiro sobre chão de barro batido que veio a ser chamado de Acampamento Escolar das

Rocas.

Page 19: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

17

Um acampamento escolar era integrado de vários galpões de 30 m x 8m. Cada um era dividido em

quatro partes (classes) através de pranchas de madeira, utilizadas como quadro-de-giz e quadro-mural..

Em 1961 construíram-se dois acampamentos, nos bairros de Rocas e Carrasco. Em 1962, o número

cresceu para nove: Quintas, Conceição, Granja, Nova Descoberta, Aparecida e Igapó: Com os dois

anteriores, cobriam-se os limites da cidade. 0 funcionamento se fazia em três turnos.

Resolvido o problema do espaço físico para o funcionamento das classes de alfabetização e

primeiras séries primárias (pelo menos em termos de emergência), De Pé No Chão se desdobrou em

uma série de projetos que sinalizaram etapas, as quais, em síntese, foram as seguintes:

a) Ensino Mutuo. Em face da reação de alguns adultos a comparecer à escola para a alfabetização

(ainda não surgira o Método Paulo Freire e De Pé No Chão ainda não editara o seu Livro de

leitura para adultos), os secundarias alfabetizavam esses adultos nas próprias residências destes,

em pequenos grupos.

b) Praças de Cultura. Urbanização de uma área em torno de um parque infantil, quadra de

esportes e posto de empréstimo de livros (biblioteca). Em 1962 funcionavam 10 destas "praças",

experiência aprendida no MCP.

c) Centro de Formação de Professores. Etapa preparatória à superação da fase de emergência.

Funcionamento em três níveis: Cursos de Emergência, treinando monitores para a campanha em três

meses; Ginásio Normal, em quatro anos; Colégio Pedagógico, em mais três anos com Escola de

Demonstração. Prédio construído em alvenaria e devidamente instalado em moldes acadêmicos.

d) Campanha De Pé No Chão Também Se Aprende Cima Profissão. Em 1963, funcionavam cerca de

10 cursos de iniciação profissional, como extensão da primeira campanha.

e)Interiorizarão da Campanha. Convênios de assessoramento técnico-pedagógico com sete prefeituras

do interior do Rio Grande do Norte em 1963. Previsão para 1964:40 convênios.f) Aplicação do

Método Paulo Freire. Funcionamento de cinco círculos de cultura, com dez classes.

g)Escola Brasileira Construída com Dinheiro Brasileiro, Primeira ajuda

financeira do governo federal (Ministro Paulo de Tarso), que possibilitou a construção de pequenas

salas de aula de alvenaria, partindo de estruturas metálicas pré-fabricadas. Estas classes

acrescentavam-se aosacampamentos, que continuavam funcionando. 0 seu nome revela o conflito

ideológico do governo da prefeitura com o governo do Estado, que ampliava a sua rede escolar com

financiamento norte-americano da Aliança para o Progresso.

Page 20: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

18

Em termos estatísticos, De Pé No Chão registrou os seguintes dados

quantitativos:

Discentes: 1961: 2.000 alunos em março e 8.000 alunos em dezembro;

1962: I 5.000 alunos , 1963: 17.000 alunos só em Natal (não há dados do

interior).

Docentes qualificados: 1961 : 243 monitores;

1962: 410 monitores e 26 orientadores¡ supervisores.

1963: 500 monitores e 32 orientadores/ supervisores.

Índices de aprovação: 1961 : 60% 1962: 74% 1963: 85%

0 custo-aluno médio anual de Pé No Chão era de menos de dois dólares.

Ao longo de seu processo, De Pé No Chão enfrentou três desafios básicos,

aos quais respondeu com soluções que estavam ao seu alcance de movimento

pobre que se desdobrava, com as próprias forças, no meio de uma sociedade

terceiro-mundista, consequentemente, pobre: a~ 0 espaço físico;

b ) A qualificação de seu pessoal docente ;

c) A criação de seu próprio material didático.

A primeira resposta, como já foi visto, ocorreu com a solução do acampamento,

proposta pelo movimento popular.

A qualificação docente foi uma questão mais difícil. Em Natal só havia uma

Escola Normal, fundada 50 anos atrás. A universidade estava em processo de

implantação. A solução foi a criação de cursos de emergência para qualificar

docentes leigos, através de formação intensiva.

Page 21: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

19

A criatividade se manifestou no esquema de acompanhamento do desempenho profissional desses

docentes: 20 monitores trabalhavam sob a orientação/supervisão de um docente diplomado por Escola

Normal ou Faculdade de Filosofia. Aliou-se, então, o pensamento acadêmico à prática popular, isto é,

somou-se a técnica dos docentes diplomados à criatividade dos monitores, estes verdadeiros

"doutores" em superar dificuldades sociais pela própria vivência, sabendo "dar o pulo do gato" e "tirar

leite de

pedra". . 0 conhecimento passou a ser construído como resultante de duas

vertentes, a acadêmica e a popular, e cada nascente oferecia uma contribuição

valiosa para o processo de educação.

A criação do material didático foi o terceiro grande desafio. No início, De

Pé No Chão distribuía, criticamente, as cartilhas tradicionais. Assim,

crianças que não tinham em casa feijão nem arroz alfabetizavam-se na escola

com a silabação de "ovos de páscoa". Evidentemente este conteúdo não tinha

nada a ver com a proposta. Então, no final de 1962 e início de 1963,DE Pé No

Chão passou a produzir o seu próprio material didático, através da

metodologia conhecida como "unidades de trabalho".

Semanalmente a orientadora/supervisora reunia-se com os seus vinte

monitores. Mas, essa reunião não seria mais apenas de revisão e correção

do trabalho docente dos monitores. Sua pauta ganhava mais um item : coletar

e discutir sugestões para os conteúdos que deveriam ser ministrados.

Quinzenalmente as orientadoras supervisoras reuniam-se com a direç3o e a

equipe técnica do Centro de Formação de Professores. Em um dia de trabalho,

as sugestões dos monitores eram estudadas, compatibilizadas; definia-se uma

direção de aprendizagem e esta "matéria-prima" transformava-se nos conteúdos

propedêuticos definidos em níveis de alfabetização, 1ª, 2ª, 3ª séries primárias,

os quais, mimeografados, voltavam às salas de aula dos monitores.

Na esteira do tempo, De Pé No Chão deixou, possivelmente, algumas heranças,

em função de seus processos de rupturas:

a) Ruptura com o pensamento colonizador, na tentativa de pensar por si

próprio;

b) Ruptura do círculo pauperismo-analfabetismo-pauperismo;

c) Ruptura com o autoritarismo oligárquico no processo de decisões; d)

Page 22: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

Ruptura com a hierarquia acadêmica, ao gerar seus próprios quadros docentes

e) Ruptura com a "ditadura" do prédio escolar (não confundir escola com

prédio escolar);

f) Ruptura com a teoria e a prática da classe dominante de que ela

é a única depositária da cultura e doadora de conteúdos e formas de

educação; isto é, demonstrou a capacidade das classes subordinadas

para propor e executar uma política e uma prática de educação.

Page 23: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

20

Na primeira parte dos anos 60, em função da crise sócio-político-ecònômica e dá

busca de soluções alternativas, houve uma geral expectativa em relação ao novo.

Assim, os movimentos de cultura popular foram permeados também por uma forte

influência de dois importantes acontecimentos de ordem internacional : a

revolução cubana e o Concilio Vaticano II. No Brasil, no clima das Reformas de

Base os comunistas trouxeram o PCB para uma semi-clandestinidade e os católicos

concluíram um caminho de lutas da JUC de contestação ao capitalismo, criando a

Ação Popular - AP, que optou pelo socialismo.

Em l96l , a nova diretoria da UNE foi eleita, integrando em "frente única"

cristãos e marxistas. De Pé No Chão criou um espaço para a prática dessa

proposta: lado a lado, sem perda de suas identidades ideológicas,

comunistas e cristãos de esquerda, junto a liberais e conservadores

modernos, construíam uma política de cultura popular, expressão

educacional do movimento popular no Rio Grande do Norte.

Isto é visível no documento que De Pé No Chão apresentou ao I Encontro

Nacional de Alfabetização e Cultura Popular (Recife, 1963), documento esse

que deve ter sido o seu limite ideológico, permeado pelas influências da

AP e do PCB e que terminava com a legenda de José Marli, o herói

histórico do mais antigo processo de libertação de Cuba:

Há (. . .) um entrelaçamento dialético entre cultura popular e libertação

nacional - socialismo e luta anti-imperialista. Por conseguinte, embora

pareça em princípio paradoxal, a cultura popular tem papel de instrumento

de revolução econômico-social, mas, em última instância, a afirmação e

vitória dessa revolução é que irá possibilitar o surgimento das mais

autênticas criações populares, livres das alienações que se processam no

plano político e econômico. Fica claro, portanto, o mais profundo sentido

dialético da , revolução popular que não é um fim, porém um meio de

conseguir a libertação total do povo, fazendo-o construtor do seu destino.

"NENHUM POVO DONO DO SEU Destino SE ANTES NÃO DONO DE SUA CULTURA".

Page 24: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

21

Movimento de Educação de Base Em 21 de março de 1961, o governo

federal (Jânio Quadros) institucionalizou os entendimentos com a

Igreja Católica (decreto 50370), e criou-se o MEB, em ordem cronológica a

terceira organização de cultura popular do período. O principal veículo

utilizado pelo MEB foi o rádio fruto de experiências acumuladas pela Igreja,

principalmente no SAR (Serviço de Assistência Rural) no Rio Grande do Norte.

A área inicial de atuação do MEB foi a do subdesenvolvimento brasileiro -

Norte, Nordeste e Centro-Oeste -, expandindo-se posteriormente para outras

regiões (decreto 52267/63).

0 MEB estruturou-se através de um conselho diretor nacional, comissão

executiva nacional, equipe estadual e equipes locais. O seu êxito maior foi

registrado quando as equipes locais assumiram papéis mais decisórios no

processo e a intervenção dos leigos no seio da hierarquia manifestou-se

através de iniciativas mais adequadas às realidades onde atuavam.

Assim, o I Encontro de Coordenadores (dezembro, 1962) tomou como base "a

idéia de que a educação deveria ser considerada como comunicação a serviço

da transformação do mundo" e que o MEB seria um movimento "engajado com o

povo neste trabalho de mudança social, comprometido com este povo e nunca

com qualquer tipo de estrutura social ou qualquer instituição que pretenda

substituir o povo".

Para o MEB, a conscientização era intrínseca à própria educação,ela ajudava

alguém a tomar consciência do que são os outros (comunicação entre sujeitos) e

do que é o mundo (coisa intencionada), como informa José Pereira Peixoto.

A tendência católica radical produziu alguns documentos importantes no

período, dos quais destacaram-se o texto Algumas diretrizes de um ideal

histórico cristão para o povo brasileiro (congresso comemorativo dos dez

anos da 1UC) e o Documento Básico da Ação Popular.

O MEB foi o único movimento de educação e de cultura popular que sobreviveu ao

golpe de Estado de 1964, por força do convênio com a União que fixara as

datas-base de 1961 /65 o recuo da hierarquia da Igreja face novas condições

Page 25: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

políticas, em 1966, o MEB "perdeu as suas características de Movimento de

Educação Popular e tornou-se uma forma tardia de Educação Fundamental",

como analisa Carlos Rodrigues Brandão. A estatística de 1964 é indicativa

da perda do impulso já registrado: em dezembro restam 4.554 das 6.218

escolas radiofônicas atuantes em março do mesmo ano...

Que o MEB fale por eles mesmo num dos seus momentos mais altos (1963),

através do documento Cultura popular: notas para estudo elaborado pela sua

Equipe Nacional, resgatado e publicado por Osmar Fávero:

Page 26: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

22

No Brasil, há reconhecimento da situação por parte dos grupos culturalmente

marginalizados. Não há, no entanto, plena consciência de todas as

implicações dessa marginalizarão, no plano da pessoa humana. Há; por outro

lado, grupos de pessoas - operários sindicalizados, camponeses politicamente

organizados, estudantes, militantes políticos - para os quais o

desnível se tornou consciente, obrigando-os a optar por uma ação

transformadora dos padrões culturais, políticos, econômicos e sociais que o

determinam. Dessa ação, resulta um conflito ideológico, já que os grupos

dominantes (social, econômica, política e culturalmente) a ela opuseram seus

interesses.

Daí resulta que qualquer atitude frente à cultura popular, é necessariamente

situada no conflito ideológico . Cultura popular no Brasil não é

um fenômeno neutro, indiferente; ao contrário, nasce do conflito e nele

desemboca necessariamente.

Centro Popular de Cultura

0 Arena era o porta-voz das massas populares num teatro de cento e cinqüenta

lugares.

Esta irônica e sofrida constatação da realidade, diagnosticada por Oduvaldo

Viana Filho - o Vianinha - foi o ponto de partida para a criação do Centro

Popular de Cultura, órgão cultural da UNE, com regimento interno próprio e

autonomia administrativa e financeira, cronologicamente o quarto grande

movimento de cultura popular dos anos 60.

Agora, o teatro não tinha apenas 150 lugares: a platéia era todo 0

território nacional, ocupado pela UNE volante. O sonho de Vianinha ocupava

um maior espaço:

É preciso produzir conscientização em massa, em escala industrial. Só assim

é possível fazer frente ao poder econômico que produz alienação em massa.

Nos primeiros momentos do CPC, ao lado de Vaninha, estavam

Page 27: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

Leon Hirzman e Carlos Estevam Martins, que foi o seu primeiro diretor,

seguindo-se Carlos Diegues e Ferreira Gullar.

O referencial teórico do CPC está explicitado em dois textos básicos para a

compreensão do período e da proposta: A questão da cultura popular, de

Carlos Estevam, e A cultura posta em questão, de Ferreira Gullar. 0

primeiro afirma que é necessário distinguir a arte do povo da arte popular

e, ambas, da arte praticada pelo CPC a que ele chama de ,

"arte popular revolucionária ".

Page 28: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

23

O CPC alcançou uma produção variada em teatro (montagem de cerca de vinte

peças), cinema (um filme e um documentário), música (além de shows, a

gravação de dois discos), literatura (vinte e seis títulos editados na

coleção Cadernos do Povo, além de outras publicações), cursos de extensão,

etc. 0 teatro de rua, de "caixotinho", foi o forte do CPC; mas o filme

Cinco vezes favela e o disco O povo canta alcançaram, também, grande

repercussão.

A partir de setembro de 1963 (I Encontro Nacional de Alfabetização e

Cultura Popular), o CPC reviu a sua diretriz política e começou a abrir

maior espaço para trabalhos mais permanentes e sistemáticos junto às

classes subordinadas, a partir da alfabetização.

O projeto, mais ambicioso do CPC terá sido, possivelmente, a construção do

seu próprio teatro no prédio da UNE, situado na'Praia do Flamengo, no Rio,

que foi inaugurado no dia 30 de março de 1964. No dia seguinte, este teatro

foi incendiado pelos lacerdinhas, no clima de "caça às bruxas" gerado pelo

golpe de Estado.

Revisitando o Manifesto do CPC (março, 1962), no texto A questão da

cultura popular encontra-se uma visão de mundo jovem e otimista:

Pela investigação, pela análise e o devassamento do mundo objetivo, nossa

arte está em condições de transformar a consciência de nosso público e de

fazer nascer no espírito do povo uma evidência radicalmente nova: a compreensão

concreta do processo pelo qual a exterioridade se descoisifica,

a naturalidade das coisas se dissolve e se transmuda. (...) A arte popular

revolucionária aí encontra o seu eixo mestre: a transmissão do conceito de

inversão da práxis, o conceito do movimento dialético segundo o qual o homem

aparece como o próprio autor das condições históricas de sua existência. (...)

Nenhuma arte poderia se propor finalidade mais alta que esta de

se alinhar lado a lado com as forças que atuam no sentido da passagem do

reino da necessidade para o reino da liberdade.

Completando a moldura ,

Page 29: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

Os quatro movimentos pioneiros de educação e cultura popular dos anos 60 e

mais o Sistema Paulo Freire fazem parte de uma História na qual o país

buscava caminhos alternativos às propostas tradicionais e conservadoras.

Todos foram filhos da crise sócio-político-econômicá dos anos 50-60`e

terminaram por ser peças da estratégia política maior: as propostas de reformas

de Base que sepultaram o parlamentarismo e reintroduziram Jango no

presidencialismo. Todos caminharam na mesma direção.

Page 30: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

24

Todos receberam recursos públicos, mas o modo e os objetivos de sua

aplicação foram diferenciados. O MCP, cuja meta era assegurar educação

gratuita para todos, por ser uma sociedade civil, constituiu-se numa rede

paralela a do ensino público então existente. O MEB teve e tem os

seus objetivos confessionais e catequéticós, mesmo que às vezes não estejam

explicitados. 0 CPC tentou organizar-se como empresa prestadora de

serviços, mas teve de depender da União, pelo menos para dois de seus

projetos principais: a construção do teatro no prédio da UNE e a campanha

de alfabetização (1963). único movimento que aplicou recursos públicos

dentro da rede de escolas públicas foi a Campanha de Pé no chão também se

aprende a ler. por isso em natal, a defesa da escola pública não foi somente um

discurso : a prática ocorreu na Secretaria Municipal de Educação com a

implantação e implementação de uma rede escolar que assegurou matrícula para

todos numa política de ensino gratuito e laico. Por outro lado, o único

movimento que penetrou eficientemente na área rural foi o MEB.

Finalmente, para completar a moldura histórica do período, registre-se o

impulso de proliferação dos movimentos de cultura popular no Brasil : se em

1960-1961 surgiram as quatro organizações já referidas, no I Encontro Nacional

de Alfabetização e Cultura Popular, realizado em setembro de 1963 no Recife,

estiveram presente 77 movimentos, dos quais desenvolviam atividades de

alfabetização de adultos.

Ó plenário de 158 delegados, 69 observadores e 22 convidados promoveu o

intercâmbio de experiências e estudou a viabilidade de se criar uma

coordenação nacional dessas organizações. 0 primeiro objetivo foi

alcançado; o segundo, todavia, frustrou-se, apesar de uma segunda tentativa

ter sido feita, quando da realização do Seminário Nacional de Cultura

Popular (janeiro de 1964, Rio).

Page 31: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

25

IV. 1964 - Os Acordos MEC-USAID: Em Direção aos "Anos de Chumbo"

A tomada do poder no Brasil em 1964 não foi um simples golpe latino-

americano nem mais um pronunciamento, e sim uma articulação política de

profundas raízes internas e externas, vinculada a interesses econômicos

sólidos e com respaldas sociais expressivos. Não foi coisa de amadores.

Tanto é assim que, passados os primeiros momentos de perplexidade, o novo

Estado emergiu do figurino do IPES com objetivos programados, metas

estabelecidas e, naturalmente, com os homens que se apossaram do poder.

Como resultado da força, o Estado que se reorganizava optou pela coerção

(no sentido usado por Gramsci) como caminho para difundir a sua concepção

de mundo. A chamada "limpeza de área" - na linguagem dos eMs (Inquérito

Policial Militar) - foi dirigida contra os setores Enais progressistas que,

no governo anterior, tentaram alcançar a hegemonia em Sintonia com as classes

populares subordinadas, no bojo das campanhas das reformas de base

Os intelectuais comprometidos com a revolução, com o reformismo, ou mesmo

com o liberalismo já não serviam, não eram confiáveis.

No campo da educação houve um corte profundo, pois, aos olhos do novo

sistema, a educação com só poderia ser "subversão".

Como fazer o controle do sistema educacional, através de técnicas que

facilitassem a divulgação da nova ideologia condizente com os interesses do

capitalismo?

Novos mecanismos foram desencadeados: a repressão se abateu sobre os

intelectuais comprometidos com as reformas, e o Estado foi buscar meios de

criar novos quadros. Não precisou procurar muito. A mão estava a sua fonte

de poder: a Aliança para o Progresso. A USAID, agência confiável,

desincumbiu-se da missão.

Assumiu esta, assim, a tarefa da reordenação da educação nacional,

sigilosamente, nas gestões de três ministros de Educação (Suplicy de

Page 32: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

Lacerda, Raymundo Moniz de Aragão e Tarso Dutra) até que, ameaçado de

processo de crime de responsabilidade pelo deputado Márcio Moreira Alves, o

sr. Tarso Dutra prestou informações ao Congresso Nacional e o véu do segredo

começou a ser dissipado.

Page 33: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

26

1964 é o oposto de 1958, mas, a bem da verdade, diga-se que a interferência

norte-americana nas coisas da educação nacional, camuflada de assistência

técnica já vinha de longe e não era um fenômeno exclusivamente brasileiro

Esses interesses se manifestam desde a Guerra Fria e cresceram no final

dos governos Dutra e JK : Todavia, foi no governo Castelo Branco que a

desnacionalização do campo educacional tomou formas nunca vistas.

Os Acordos MEC-USAID cobriram todo o espectro da educação nacional , isto é, o

ensino primário, médio e superior a articulação entre os diversos

níveis, o treinamento de professores e a produção e veicularão de livros

didáticos. A proposta da USAID não deixava brecha. ó mesmo a

reação estudantil, o amadurecimento do professorado e a denúncia de

políticos nacionalistas com acesso à opinião pública evitaram a total

demissão brasileira no processo decisório da educação nacional.

Melhor do que falar é demonstrar. Daí a transcrição da lista das ementas

dos acordos MEC-USAID e suas respectivas datas, compilada por Otaíza de

Oliveira Romanelli: a) 26 de junho de 1964: Acordo MEC-USAID para

Aperfeiçoamento do Ensino Primário; b) 31 de março de 1965: Acordo MEC-

Contap (Conselho de Cooperação Técnica da Aliança para o Progresso)-USAID

para melhoria do ensino médio; c) 29 de dezembro, de 1965 : Acordo MEC-

USAID para dar continuidade e suplementar com recursos e pessoal o primeiro

acordo para o ensino primário; d) S de maio de 1966: Acordo do Ministério

da AgriculturaContap-USAID, para treinamento de técnicos ruxais; e) 24 de

junho de 1966: Acordo MEC-Contap-USAID, de assessoria para a expansão e

aperfeiçoamento do quadro de professores de ensino médio e proposta de

reformulação das faculdades de Filosofia do Brasil; f) 30 de junho de 1966:

Acordo MEC-USAID, de assessoria para a modernização da administração

universitária; g) 30 de dezembro de 1966: Acordo MEC-INEP CONtaP-USAID. SOB a

forma de termo aditivo dos acordos para aperfeiçoamento do ensino primária com

a secundária e a superior"; h) 30 de dezembro de 1966: Acordo MEC-Sudene-Contap-

USAID,ypaia criação do Centro de Treinamento Educacional de Pernambuco; i) 6 de

janeiro de 1967: Acordo MEC-SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros)-

USAID, de cooperação para publicações técnicas, científicas e educacionais (por,

esse acordo, seriam colocados, no prazo de três anos, a contar de 1967, 51

Page 34: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

milhões de livros nas escolas; ao MEC e ao SNEL

Page 35: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

27

caberiam apenas responsabilidades de execução, mas aos técnicos da USAID

todo o controle, desde os detalhes técnicos de fabricação do livro até os

detalhes de maior importância como: elaboração, ilustração, editoração e

distribuição de livros, além da orientação das editoras brasileiras no

processo de compra de, direitos autorais de editores não-brasileiros, vale

dizer, norte-americanos);

j) Acordo MEC-USAá de reformulação do primeiro acordo de assessoria a

modernização das universidades, então substituído pôr assessoria do

planejamento do ensino superior, vigente até 30 de junho de 1969; k) 2? de

novembro de Ï9b7: Acordo MEC-Contap-Usaid de cooperação para a continuidade do

primeiro acordo relativo à orientação vocacional e treinamento de técnicos

rurais; 1) 1 7 de janeiro de 1968: Acordo MEC-USAID para dar continuidade e

complementar o primeiro acordo para desenvolvimento do ensino médio.

0s acordos MEC-USAID encerraram essa fase dos movimentos de ' educação e

cultura popular, dos quais outras formas surgiram no final dos anos 60 e

seguem vigorosas até hoje, como por exemplo as CEBs (Comunidades Eclesìais

de Base).

Aqueles movimentos tiveram os seus equívocos e debilidade, próprios e uma

época de fortes tendências culturalistas e de otimismo pedagógico além das

limitações do nacionalismo que privilegiava a luta âmbito da sociedade. Mesmo

assim tiveram a capacidade de se transformar, impulsiona os por uma prática

junto as classes subordinadas.

Assim, a crítica feita por José Willington Germano a um desses movimentos,

parece falar a todos eles quando afirma:

De um movimento que, de início, pretendia, simplesmente oferecer educação

para todos, De Pé No Chão Também Se Aprender A Ler avança conceptualmente e

passa a encarar a educação e a cultura como instrumentos de libertação. Não

se tratava, pois, de um projeto que tivesse em vista integrar os

marginalizados à sociedade, fornecendo aos indivíduos escolarizados a

possibilidade de ascensão social. Tratava-se, isto sim, de transformar essa

mesma sociedade, e a educação e a cultura exerceriam um papel preponderante

Page 36: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

nesse processo.

Os movimentos de educação e cultura popular foram destruídos e os seus

educadores e aliados cassados, presos e exilados. Para eles, como para as

lidera as dos trabalhadores, começa o caminho em direção aos anos de chumbo

expressão que é título do belo filme de Margaréthe Von Trotta.

Terminam os tempos da "Voz Ativa" e começa a girar a roda viva.

Page 37: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

28

O golpe na educação

I. "Educação" pela Repressão

No dia seguinte ao da posse do primeiro Presidente da

República civil depois de 20 anos de generais-presidentes, a imprensa

trouxe um balanço sintético da ditadura: 17 atos institucionais, 130

atos complementares (todos contra a Constituição, mesmo a da Junta

Militar), 11 decretos secretos e 2.260 decretos-lei. Para não

atrapalhar essa fúria legiferante do regime militar, o Congresso

Nacional, mesmo mutilado por sucessivas casacões de mandatos de

parlamentares, foi posto em recesso forçado por três vezes. Foram

banidos do território nacional, por razões políticas, 80 brasileiros.

Cerca de 400 pessoas foram mortas ou se encontram desaparecidas,

devido à onda repressiva mais forte de nossa história. Uma dezena de

milhar de brasileiros deixaram seu país em virtude de ameaças e

perseguiç8es de caráter político-ideológico. A repressão foi a primeira

medida tomada pelo governo imposto pelo golpe de 1964. Repress3o a tudo e

a todos considerados suspeitos de práticas ou mesmo idéias

subversivas. A mera acusação de que uma pessoa, um programa educativo ou

um livro tivesse inspiração "comunista" era suficiente para demissão,

suspensão ou apreensão. Assim, reitores foram demitidos, programas

educacionais e sistemas educativos foram atingidos. Alguns casos

dramáticos exemplificarão isso. Anísio Teixeira, que ocupava a

reitoria da Universidade de Brasília, foi sumariamente demitido, logo nos

primeiros dias do golpe. O Programa Nacional de Alfabetização, que

utilizava o Método Paulo Freire, que o dirigia, foi liquidado, até

mesmo em termos financeiros. Milhares de projetores de dia filmes,

importados da Polônia (o local de fabricação trazia a marca do

"comunismo") foram vendidos a particulares a preço de liquidação. O

Movimento de Educação de Base, desenvolvido pela igreja Católica,

principalmente no Nordeste, foi contido por todos os lados, tendo seu

material educativo apreendido, monitores persegui- dos e verbas cortadas.

Os integrantes da equipe dirigente da Campanha De Pé .No Chão Também de

Aprender A Ler foram presos por seis meses, no mínimo. Um oficial da

Page 38: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

Marinha de Guerra assumiu o "comando" da

Page 39: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

29

Secretaria de Educação do Município de Natal, ordenou o abandono dos

acampamentos e a incineração dos acervos das bibliotecas.

Interventores foram nomeados para a Universidade de Brasília, cada um deles

dando sua contribuição pessoal para a descaracterização daquele

empreendimento arrojado; a Cruzada ABC, com sede em Recife, dirigida por

missionários norte-americanos e funcionando com generosas verbas do governo

de seu país, procurava substituir o PNA e o MEB na educação das massas para

incorporá-las ao desenvolvimento do capitalismo moderno.

Na direção do sistema educacional, os defensores do ensino público e

gratuito foram sendo substituídos pela aliança dos que lutavam pela

hegemonia da escola particular subsidiada pelo Estado, com os militares empenhados na repressão às

atividades por eles julgadas subversivas. Tomando mais uma vez

o caso exemplar de Anísio Teixeira, além de ter sido

demitido da reitoria da Universidade de Brasília, já em abril de 1964 não

teve seu mandato renovado no Conselho Federal de Educação, de onde saiu,

em princípios de 1968, com o silêncio cúmplice de seus colegas. Durmeval

Trigueiro, outro ativo combatente pelo ensino público e gratuito, foi

também retirado daquele conselho, além de ser compulsoriamente aposentado

do cargo de professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Enquanto

isso, os conselheiros que concordavam com as novas orientações da política

educacional tinham seus mandatos sucessivamente renovados. Quebrava-se,

assim, a resistência, remanescente no CFE, à colocação dos recursos

governamentais a serviço dos interesses de agências internacionais e à

submissão da política educacional brasileira aos seus ditames.

Professores e estudantes universitários foram expulsos das instituições

onde lecionavam ou estudavam. A denúncia de professores às comissões de

investigação passou a ser um instrumento a mais de política universitária.

A Universidade de São Paulo, das mais antigas, a maior e a mais conceituada

das universidades brasileiras, foi palco dessa tenebrosa prática. O reitor

Luís Antônio da Gama e Silva, ministro da Justiça e da Educação nos

primeiros dias do governo golpista, aproveitou o período de caça às bruxas

para demitir professores que lhe faziam oposição e consolidar seu poder na

universidade. Mais tarde, como ministro da Justiça do general-presidente

Costa e Silva, o professor Gama e Silva notabilizou-se por trazer sempre à

Page 40: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

mão o rascunho de um elenco de medidas de endurecimento da repressão

política, o que acabou vingando em 13 de dezembro de 1968, com a edição do

Ato Institucional número 5.

Page 41: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

30

Até mesmo a competição propriamente acadêmica passou a ter a mediação da

repressão política. Em 1964, Florestan Fernandes, o grande sociólogo da

USP, preparava-se para disputar uma cátedra de sociologia naquela

universidade. Para isso, tinha uma brilhante tese sobre a integração do

negro na sociedade de classes, que veio a receber, posteriormente,

importante prêmio internacional. Seu oponente, ao contrário, era uma pessoa

cuja bibliografia a história da universidade brasileira não registra.

Tinha, entretanto, o cacife de ser amigo do governador golpista Ademar de

Barros. Pois bem, por interferência do governador, Florestan Fernandes foi

preso às vésperas do concurso, o que deixava sem competidor o obscuro

pretendente. Mas, como nos primeiros tempos do período de governo

autoritário ainda havia algumas áreas de liberdade, a opinião pública

reivindicou a imediata libertação de Florestan Fernandes. Solto a tempo,

frustrou-se a conspiração policia-acadêmica, e Florestan Fernandes

conquistou a merecida cátedra.

Pouco tempo; porém, nela permaneceu, pois a onda repressiva acionada pelo

Ato Institucional número 5 aposentou-o , retirando da USP e do meio

universitário brasileiro um dos mais férteis de seus cientistas sociais.

Beneficiaram-se, com isso, as universidades estrangeiras, que passaram a

disputar o privilégio de ter Florestan Fernandes como professor visitante.

Mas não foi apenas a alta administração do sistema educacional, os membros

dos conselhos universitários e os grandes nomes da ciência que foram

atingidos pela sanha repressiva. Funcionários do MEC, das secretarias

estaduais e municipais de educação, e simples professores também foram

demitidos ou, se mantidos em seus cargos, ameaçados constantemente; na

tentativa de se obter, pelo medo, seu consentimento ao novo regime.

O famigerado decreto-lei 477, de fevereiro de 1969, representou a expressão

mais acabada das ameaças da repressão política e ideológica à universidade

brasileira.

Essa norma repressiva dizia que cometeria "infração disciplinar" o

professor, o aluno ou o funcionário de estabelecimento de ensino público ou

privado que se enquadrasse em diversos casos, entre os quais os seguintes:

aliciar ou incitar à deflagração de movimento que tenha por finalidade a

paralisação de atividade escolar ou participar nesse movimento; praticar

Page 42: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

atos destinados à organização de movimentos subversivos, passeatas,

desfiles ou comícios não autorizados ou deles participar; conduzir ou

realizar, confeccionar, imprimir, ter em depósito, distribuir material

subversivo de qualquer natureza.

Page 43: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

31

Se o infrator fosse professor ou funcionário, seria demitido ( ou

dispensado), e proibido de ser nomeado (ou admitido ou contratado) por

qualquer outro estabelecimento de ensino pelo prazo de cinco anos. Se fosse

estudante, seria desligado do curso, e proibido de se matricular em

qualquer outro estabelecimento de ensino por três anos.

A apuração das acusações de infração deveria ser feita por processo

sumário, tudo correndo muito rápido, tendo o acusado apenas 48 horas para

apresentar sua defesa. O processo seria conduzido por funcionário do

estabelecimento de ensino, por iniciativa do dirigente do estabelecimento,

da Divisão de Segurança e Informação do MEC ou "de qualquer outra

autoridade ou pessoa". O mais incrível é que, embora o dirigente do

estabelecimento fosse reconhecido agente da repressão, era, ao mesmo tempo,

visado por ela. A simples remessa de auto de prisão em flagrante ou a mera

comunicação do recebimento da denúncia criminal, feita por "autoridade

competente", obrigava o diretor de colégio ou faculdade e reitor de

universidade a instaurar o processo sumário. Se não fizesse isso, e não

proferisse decisão em 48 horas depois de recebido o processo, o dirigente

ficaria sujeito às penalidades do próprio decreto-lei, perdendo o cargo,

sendo expulso do estabelecimento e proibido de lecionar, como um professor

"subversivo" comum.

Houve universidades que incluíram a maior parte dos dispositivos desse

decreto-lei em seus estatutos, não podendo, é claro, impedir que outras

contratassem os professores ou matriculassem os estudantes expulsos. A

Universidade de Brasília, por exemplo, lançou mão desse expediente repetidas

vezes. Em julho de 1976, o reitor capitão-de-mar-e-guerra José Carlos de

Azevedo expulsou sete estudantes e suspendeu 12 por 18 meses; em julho de

1977, expulsou 30 e suspendeu 34 por períodos diversos, sem invocar o

decreto-lei 477, pois o regimento da universidade era bastante para a

aplicação dessas pesadas penas.

Impossível é avaliar, com certeza, a eficácia dessa norma repressiva sobre

os professores, mesmo sabendo-se que poucos foram expulsos com base nela ou

na versão assimilada pelos estatutos de universidades e de faculdades. Seu

"bom comportamento", a aceitação amarga da autocensura, foi a face

escondida do tenebroso sucesso desse ato arbitrário.

Page 44: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

Foi só em 1979, após muitos anos de lutas contra o decreto-lei 477 e as

outras medidas repressivas do governo autoritário, que um projeto de lei

tratando da representação estudantil foi aprovado pelo Congresso Nacional.

Entre outras providências, revogava o decreto-lei 477, no que dizia

respeito, também, aos professores e funcionários. Com isso, abriu-se espaço

para a mudança dos estatutos e regimentos

Page 45: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

32

das universidades e faculdades naquilo em que procuravam se valer do

draconiano decreto-lei.

Mesmo antes de baixado o Ato Institucional n4 5 e seu descendente direto,

o decreto-lei 477, todos os professores ou candidatos ao magistério eram

considerados suspeitos de subversão, até que mostrassem o contrário.

Tinham de provar que sobre eles não recaía culpa de subversão. As

universidades passaram a exigir dos candidatos ao magistério, mesmo à

precária categoria de colaborador, a apresentação do "atestado de

ideologia", emitido pelas delegacias de ordem política e social das secretarias estaduais de segurança

pública.

As universidades enxertaram nas suas estruturas as assessorias de segurança

e informação, ligadas à divisão correspondente do Ministério da Educação e

às agências locais do Serviço Nacional de Informação. Com base nos

pareceres dessas assessorias, professores tinham negados pedidos de bolsa

de estudos e licenças para comparecer a congressos técnicos, professores

visitantes eram vetados, e outras arbitrariedades do gênero foram

abundantemente cometidas.

Ainda não foi feito o balanço quantitativo dessa onda repressiva, de modo a

se saber quantos professores e quantos estudantes tiveram seu trabalho ou

seus estudos prejudicados pela perseguição política. Em geral, a imprensa

dava mais destaque aos efeitos do decreto-lei 477 nas universidades

públicas, pois seus atos eram divulgados em boletim, quando não no próprio

Diário Oficial. No entanto, universidades e faculdades particulares

lançavam mão desse instrumento repressivo para demitir professores que

reclamavam de salários atrasados ou da pressão para aprovar certos

estudantes e também para expulsar estudantes, como os de um curso de

medicina que rejeitavam o "ensino" de anatomia por um professor que se

resumia a ler o conhecido e antigo (antiquado?) compêndio de anatomia

humana de Testut e Latarjet.

No entanto, é possível fazer uma segura avaliação qualitativa. Desespero e

a apatia foram os componentes do efeito da repressão nas escolas e nas

Page 46: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

universidades. 0 desespero de uns levou ao abandono do magistério e do estudo e até mesmo aos

equívocos da luta armada. A apatia de

outros resultou no desleixo para com o ensino, no cinismo docente, tendo

como contrapartida o desinteresse para com o estudo, expresso pela atitude

estudantil de repetir o que o professor espera, mesmo o absurdo e o

injusto, desde que a promoção estivesse assegurada.

Entre o desespero e a apatia, caminhavam com dificuldade professores e

estudantes que buscavam resguardar a dignidade de sua situação,

Page 47: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

33

só possível num ambiente de liberdades democráticas. A história

mostrou que esses resistentes tinham raz5o, e, progressivamente,

os desesperados e os apáticos voltam a reunir-se a eles nas

lutas pela democratização do ensino em nosso país.

Page 48: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

34

II. Educação: Grande Negócio

Vitorioso o golpe de 1964, subiram ao poder os defensores do privativo na

educação, aqueles que defendiam a desmontagem ou, pelo menos, a

desaceleração do crescimento da rede pública de ensino. Em compensação, as

verbas públicas destinadas ao ensino deveriam ser transferidas às escolas

particulares que, ermitão, se encarregariam da escolarização das crianças e

dos jovens. Só a iniciativa particular não tivesse interesse em abrir

escolas é que a escola pública seria bem-vinda.

Foi sintomática a participação de um dos mais ardilosos conspiradores e

mais duros oponentes do presidente João Goulart, o governador do Estado da

Guanabara, Carlos Lacerda, na elaboração de um projeto de lei de diretrizes

e bases da educação nacional que nem mesmo procurava dissimular os

interesses dos que usavam a escola como meio de acumulação de capital e/ou

de influência ideológica.

0 governo golpista, e privatista em matéria de educação, não precisou mudar

a lei. Foi só aplicá-la em proveito das escolas particulares. A ocupação

dos postos-chave do Ministério da Educarão pelos

privatistas foi facilitada pelo trabalho de sapa da propaganda ideológica

da trama golpista, que teve sucesso em veicular a associação da imagem dos

defensores da prioridade do ensino público (verbas públicas para o ensino

público e gratuito) com a imagem, que os militares abominavam, de um regime

"socialista", no qual o Estado teria o controle de toda a vida social. Para

os militares desinformados, alvo principal da propaganda direitista, os que

defendiam a destinação dos recursos públicos para a rede pública de ensino

eram as mesmas pessoas que defendiam a desapropriação das terras, o

estreitamento das relações comerciais, culturais e políticas com a União

Soviética, com a China Popular e com Cuba, o "materialismo ateu" contra as

"tradições cristãs" de nosso povo, e outros "pecados" parecidos.

0 Plano Nacional de Educação elaborado pelo Conselho Federal de Educação,

em 1962, foi revisto em 1965, pelo mesmo conselho, já reorientado em função

do peso dos privatistas no governo golpista.

Page 49: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

35

Na revisão, além de deslocar para mais adiante as metas originais - como a

de matricar a população de 7 a 11 anos de idade em escolas primárias -, o

CFE aumentou os recursos a serem transferidos para o setor privado. A

versão de 1962 daquele plano previa que 3% dos recursos do Fundo Nacional

do Ensino Primário fossem destinados a bolsas de estudo em escolas

particulares; a revisão de 1965 aumentou essa proporção para 5%. Da mesma

forma, o Fundo Nacional do Ensino Médio, de 14,5% para 20%, e o Fundo

Nacional do Ensino. Superior, de zero para 5%. ,

O aumento das transferências de verbas públicas para as escolas privadas no

ensino médio estava "adoçado" com a inclusão, na mesma rubrica, mas sem

definir quantitativos, da "educação de excepcionais". No ensino superior,

esse disfarce também existia: a mesma rubrica juntava as bolsas de estudo,

as residências de estudantes e as subvenções às universidades e

estabelecimentos isolados particulares.

Estava declarada a posição do CFE e do governo golpista de apoio à tremenda

expansão do ensino superior particular, ao mesmo tempo em que se continha

o setor público.

A história do salário-educação é um exemplo dramático de como uma boa idéia

pode ser distorcida pela corrupção institucionalizada pela ditadura .

Sálario-educação foi o nome que teve, no Brasil, a forma de contribuição a

presas para com a escolarização de seus empregados e os filhos destes, aliás, utilizada e muitos países.

Em 1955, 23 dos 55 países

participantes da conferência Internacional de instrução Pública em Genebra,

adotavam formas de participação das empresas no financiamento do ensino

proporcional ao montante dos investimentos das empresas ou dos salários

pagos por elas aos seus empregados.

Em termos legais, essa idéia vingou, no Brasil, pela primeira vez, na

Constituição de 1934, que obrigava as empresas industriais e a escolas

situadas fora dos "centros escoares" a proporcionarem ensino primário

gratuito, desde que, tem o mais e 50 empregados houvesse dentre eles e

seus filhos, pelo menos dez analfabetos. O golpe de 1937 outorgou outra

Constituição, com outras prioridades, e aquele dispositivo foi esquecido.

A Constituição de 1946 retomou a idéia, estipulando que as empresas

industriais, comerciais e agrícolas onde trabalhassem mais de 100 pessoas

ficavam obrigadas a manter ensino primário gratuito para seus empregados e

Page 50: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

os filhos destes.

Page 51: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

36

Várias tentativas foram feitas para regulamentar esse dispositivo

constitucional, o que só veio a acontecer com a lei 4.440, de outubro de

1964.

Essa lei determinava que, se uma dada empresa oferecesse ensino primário

gratuito aos seus empregados a aos filhos destes, estaria de acordo com a

Constituição. Mas "considerando que a maioria esmagadora das empresas não

teria condições ou mesmo interesse em montar uma escola para esses

propósito, a lei estabelecia que as empresas

com 1,4 % da folha de pagamento, alíquota aumentada, posteriormente, para 2,5%

(fundindo-se as cobranças estaduais e federais). Pelo fato de ser uma

contribuição devida pelas empresas, calculada com base nos salários pagos

por elas, a denominação passou a ser a de salário educação. Pç Estaria tudo muito bem se não

houvesse a previsão da "escada" I

pela via privatizante, já na lei 4.440, de 1964. Esta previa que ficariam

isentas do salários educação as empresas (com mais de 100 empregados, '

claro) que instituíssem mediante convênio "sistema de bolsas de estudo" com

escolas particulares. No texto da lei, havia a ressalva de que o convênio

com o "sistema de bolsas" deveria ser julgado satisfatório por ato da

administração estadual do ensino, aprovado pelo respectivo conselho Estadual

de Educação.

Ora, ocorre que foi justamente nessa época que as secretarias e os

conselhos estaduais de educação passaram a ser ostensivamente ocupados

pelos donos de colégios particulares e seus propostos, que tinham todo o

interesse em aprovar convênios que beneficiavam, antes de tudo, as empresas

de ensino de sua propriedade ou às quais prestavam seus "serviços".

A armação era a seguinte: considerando que as empresas preferiam recorrer o

educação do que abrir suas próprias escolas, organizaram-se firmas de

agenciamento entre as empresas e as escolas particulares. Uma dada empresa

recebia a visita de um agente que a convencia a deixar de recolher a

quantia devida do salário educação, transferindo parte dessa quantia a uma

escola, a título de bolsa de estudo, em troca de um recibo, emitido pela

escola, com o valor total do salário-educação. A diferença ia para o "caixa

Page 52: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

2" da empresa ou para o bolso de um de seus dirigentes. Já a escola,

"arranjava" uma lista de alunos "beneficiados" por essas bolsas. Em muitos

casos, os bolsistas já tinham sido contemplados com outras bolsas e deles

sé pedia, freqüentemente, que, ainda assim, pagassem à escola uma certa quantia, a título de

"complementação".

Page 53: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

37

Segundo dados do próprio Ministério da Educação, esse agenciamento empresa-escola foi responsável

pelo desvio de cerca de 40% dos recursos devidos por conta do salário-educação.

Em 1983, no Estado do Rio de Janeiro - os dados são ainda do ministério - a econcedidas 150 mil

"bolsas-fantasma", representando um roubo de cerca de 4 bilhões de

cruzeiros, feito por 210 escolas. A corrida para repartir os despojos do salário-educação fez com

que algumas prefeituras resolvessem privatizar sua rede

de escolas. JáDas direções dessas fundações participavam o prefeito e o

secretário de educação, é claro, mas, isso que é o mais

importante, participavam também os grandes industriais e

comerciantes, justamente os proprietários e gerentes das

empresas devedoras do salário-educação. Esses prósperos senhores transferiam, então, o dinheiro

devido por suas empresas para as fundações educacionais que eles

próprios dirigiam! Foi a forma mais ousada de submeter o ensino público ao controle

do capifundações instituídas pelo poder público, mesmo

as de direito poder privado; obrigaram as escolas a manterem escrituração dos recursos recebidos;

impediram a cobrança aos alunos de contribuição complementar; encarregaram

as secretarias estaduais de educaçcontribuição do salário-educação a empresa que mantiver escola de

19

grau para seus empregados e os filhos destes ou, então que se

preste a indenizar a escolarização em estabelecimento privado

desses beneficiários.

Page 54: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

38

Mas o salário-educação não é a única fonte de bolsas de estudo que serve

para manter, artificialmente o segmento mais atrasa o setor privado. No

Município de Rio de Janeiro, pois outros tipos de balsas de estudo destinadas a estudantes de 14 grau.

As bolsas de "obrigatoriedade escolar" são dadas a crianças de sete a 14

anos de idade que não conseguem vaga em escola pública nas proximidades de

sua residência. Essas bolsas são distribuídas na periferia do município,

justamente onde reside a população mais miserável e onde a rede pública é

diminuta. Em seu lugar, proliferam escolas privadas que subsistem às custas

das bolsas de estudo, conferidas, tradicionalmente, por intermediação

político partidária.

As bolsas de "compensação" resultam da transformação em bolsas do imposto

sobre serviços e do imposto predial e territorial urbano devidos pelas

escolas. Estas comunicam à secretaria de educação o número de bolsas de

"compensação" que oferecerão, em lugar de pagar o ISS e o IPTU, e a

secretaria indica os alunos que serão beneficiados, conforme critério de

carência econômica. Até 1983, as escolas podiam converter todo o imposto

devido em bolsas de estudo. Desde 1984, só podem fazer isso com metade do

imposto a pagar.

Esse sistema de multiplicidade de bolsas tem permitido que, durante anos e

anos, muitas escolas somassem as bolsas municipais, recebidas da

prefeitura, com as bolsas federais, do salário educação. Num levantamento

realizado em I983, pela Secretaria de Educação do Município do Rio de

Janeiro, cerca de 50% das escolas apresentavam casos de duplicidade de

bolsas. E somavam, também, as contribuições mais ou menos espontâneas

recebidas dos alunos a título de complementarão.

Quando denunciamos esse verdadeiro assalto aos recursos governamentais,

estamos preocupados com uma questão muito concreta: a distribuição

dos recursos disponíveis para a expansão e a melhoria da

qualidade da rede pública de ensino. É tenebrosa a solidariedade existente entre os privatistas na

direção dos sistemas de ensino - empenha dos na contenção da

escola pública, de modo a abrir espaço para a escola particular - e esse

sistema de transferencia de recursos públicos para o setor privado

de ensino, sob a forma de bolsas de estudo. 0 resultado é a feição

antidemocrática do sistema educacional, onde, ao lado de uma rede pública menor do que deveria e

poderia ser, de gualdida insatisfatória,

Page 55: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

subsiste um setor de escolas particulares parasitárias

mantidas vivas às custas das insuficiências artificiais do setor público.

Page 56: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

39

Um bom exemplo disso é o Estado do Rio de Janeiro, que disputa

há muito com o de Minas Gerais, a primazia em termos do controle privatista

sobre o ensino público.

0 Município do Rio de Janeiro é herdeiro da mais ampla rede escolar pública

do país, resultado do privilégio de ter sido capital do Império e na

República, até 1960.

Apesar disso, desrespeito do grande crescimento da população , a rede pública de 1º grau "encolheu"

de 1975 a 1980 , diminuindo o efetivo discente em 98 mil alunos,

uma perda relativa de 14%. Enquanto isso - ou melhor, por causa disso - a rede particular universalizar

o ensino de 14 grau. Situação ainda mais grave ocorreu nos

municípios que formam a região metropolitana do Grande Rio, onde estão os

tristemente afamados municípios da baixada fluminense: Caxias, Nova

Iguaçu, Nilópolis

e São João de Meriti. 0 conjunto da região metropolitana decresceu menos,

em tempos de número de alunos (2,5%) do que o município da capital, embora

o crescimento da população tenha feito as exigências . de escolarização

mais graves naquela do que neste. Persiste, assim, na região metropolitana,

uma taxa de analfabetismo muito elevada para sua situação geral: 20°ó do

milhão e meio de jovens de sete a 14 anos, dos quais 50 mil nunca tiveram,

por tempo algum, escolarização regular.

De todo modo, esses dados, referentes à situação média do crescimento ou

decréscimo numa dada área sócio-geográfica, dissolvem realidades ainda mais

terríveis do que a que os números permitem ver. É o caso, por exemplo, da

desativação do segundo segmento do ensino de 19 grau (5ª a 8ª série),

transferindo-se os alunos para escola particular situada nas proximidades,

com suas anuidades pagas pelo poder público mediante bolsas de estudo,

evitando-se, com tal providência, a falência do negócio do ensino que

enriquece um "benemérito da educação", em troca de apoio político.

Escândalo como esse, que não é privilégio, aliás, do Rio de Janeiro, só é

ultrapassado no Estado de Minas Gerais, onde os grupos privados, dos mais

fortes e organizados do país, conseguiram do governador Francelino Pereira

um decreto condicionando a extensão das quatro primeiras séries de escola

pública de 19 grau à concordância do representante das entidades

Page 57: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

mantenedoras. Cercaram, assim, o ensino de 2º grau como uma reserva de caça

para o capital, colocando um freio, com amparo legal, ao crescimento da

escola pública.

Page 58: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

40

Quando a crise econômica levou milhares e milhares de crianças e jovens a

se transferirem da escola particular para a escola pública de 1º e 2º

graus, encontrou-a com poucas vagas; "encolhida", como no Rio de Janeiro;

submetida legalmente, em sua expansão, como em Minas Gerais; ou estagnada,

como em todo o país.

O ensino profissional não escapou da voragem do capital em multiplicar-se

com o álibi de promover a educação.

Por iniciativa do general-ministro da Educação Ney Braga, o Congresso

Nacional aprovou, em 1975, uma lei (n.º 6.297) que concedia incentivos

fiscais às empresas que tivessem projetos de formação profissional. Para

fins do imposto de renda, as empresas poderiam deduzir o dobro das despesas

com projetos que objetivassem "a preparação imediata para o trabalho de

indivíduos, menores ou maiores, através da aprendizagem metódica da

qualificação profissional e do aperfeiçoamento e especialização técnica em

todos os níveis". Mesmo que o abatimento ficasse limitado a 10% do lucro

tributado, passou a valer a pena para as empresas, principalmente as de

grande porte, justamente as que usam técnicas do tipo capital-intensivo,

comprar formação profissional, nem que fosse exclusivamente para efeito de

aumentar seu lucro líquido. Paia responder à nova procura por comprovantes

de gastos, surgiram empresas de treinamento profissional ligadas aos

grandes grupos econômicos e também as que se dedicavam à mera corretagem de

cursos ou, apenas, de recibos.

Assim, mais do que a qualificação profissional, o objetivo desse incentivo

fiscal é aumentar os lucros das empresas, não só pela retenção de recursos,

como também pela possibilidade que abre para o aumento do capital de giro

e/ou para especulação financeira com recursos que, de outra forma, seriam

pagos como imposto sobre a renda.

Não queremos dizer que as empresas não tenham usado pelo menos parte dos

recursos comprovados como despesa de efetiva formação profissional. Mas o

que acontece é que, quando o treinamento existe de fato, tem contemplado,

principalmente, as pessoas que ocupam cargos de comando : gerentes,

administradores, supervisores. A maior parte dos trabalhadores, os que

estão diretamente ligados à produção, deixa de se beneficiar de projetos de

Page 59: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

melhoria de sua qualificação profissional.

Em suma, esses incentivos fiscais resultam em um pagamento (pelo não

recebimento do imposto devido) de toda a sociedade para as empresas,

principalmente as grandes, reforçam a sua estrutura de poder e permitem que

elas obtenham ganhos financeiros imediatos.

Page 60: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

41

Mas foi no ensino superior que a acumulação de capital no campo do ensino se fez de forma mais

intensa e escandalosa.

Que grande ou média cidade brasileira não conhece o caso de um

colégio particular de 1° ou 2~ graus que começou abrigando um curso

superior nos horários e salas disponíveis e viu esse curso crescer e se

multiplicar até virar uma grande faculdade, com vários cursos? Ou

mesmo uma universidade? Fato semelhante ocorreu com cursivos pré-vestibulares, que, movidos pelos

lucros que tiveram, cresceram "para cima , instalando faculdades,

e para baixo , abranda cursos regulares de 1° e 2º graus. Existem

"organizações educacionais", nascidas de cursivos pré-vestibulares, que já anunciam a integração

vertical" de sua mercadoria: do pré-escolar à faculdade.

Chegarão à pós-graduação? Na Cidade do Rio de Janeiro encontramos mais de um caso exemplar

da acumusuperiores oferecidos, incorporando os imóveis vizinhos,

construindo

grandes prédios, e chegando hoje a ser uma das maiores universidades do país - a

Universidade Gama Filho. O aumento da procura de ensino superior

nos anos 60, ao tempo em que o governo federal fretava o crescimento das universidades públicas (e

gratuita

Page 61: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

42

Em primeiro lugar, voltaram à carga sobre a questão do pagamento do ensino superior público a

"preços de mercado" onde esse pagamento ainda não atingia esses níveis.

Retomaram antigos argumentos sobre a justiça dos ricos pagarem a educação dos pobres comoEm

segundo lugar, não bastassem os subsídios governamentais ao setor privado,

que permitiram a algumas instituições construírem verdadeiros compus universitários, os empresários

do ensino inventaram outro mecanismo para sustentar a lucratividade

de seus eCulpa do desemprego? Em parte. Da desonestidade de alguns? Talvez. Mas, certamente, todo

esse problema não poderá ter solução se o empenho da política educacional

não for o abandono da política privatista.

Aliás, essa política dos grupos mais conservadores do país não escapou da crítica de um dos mais fiéis

aliados do regime autoritário, desde os tempos da conspiração

anti-Goulart : a USAID.

Em 1976, a USAID se preparava para diminuir muito ou até mesmo para deixar de financiar projetos

educacionais no Brasil. Para justificar a mudança, pediu ao General

Accounting Office (Escritório de Contadoria Geral) do governo norte-americano um parecer s

Page 62: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

43

O parecer foi pelo fim da ajuda externa, alegando que o crescimento econômico (era

justamente a época do fim do milagre econômico", só que o consultor

ainda não sabia. . .) geraria os recursos necessários para fazer frente às grandes necessidades educa

O governo brasileiro estaria, para o consultor norte-americano; aumentando a seletividade da escola,

pois usava os recursos externos justamente para diminuir os

gastos públicos com educação. Além do mais , agravando a seletividade, estaria havendo

uma d

Da Constituição de 1967, que o regime autoritário fez o Congresso aprovar, foi retirada a vincularão

automática de verbas para o ensino, no plano da União:

podia-se gastar 10%, como 10% como 15% , como 5% . Assim, a participação do MEC no

orçamento da

Page 63: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

44

no período 1960-1965, desabou para a metade desses níveis nos anos 70, chegando a 4,3% em 1 975.

0 descaso do Estado para com a educação, acentuado pela ditadura, fez com que o Brasil se

convertesse num dos países que relativamente menos aplicam nesse setor,

Para se ter uma idéia, em 1974 - ano limite do tão badalado "milagre econômico brasileiro" -, o Brasil

tinha o 9° lugar do mundo em termos de produto nacional bruto

(PNB). No entanto, em termos de despesas públicas com educação, em cifras absolutas, estavO PNB,

nesses anos todos, cresceu mais rapidamente do que as despesas públicas

com educação. Em 1976, por exemplo, o PNB cresceu 11,6% enquanto a despesa pública com

educação aumentou de apenas 1,3%.

Voltando a 1 974, ano para o qual temos dados gerais, as despesas públicas com educação

representavam, no Brasil, apenas 2,8%, o que deixava o país, em termos relativos,

em 779 lugar no mundo. Concluindo: este é um dos países em que, relativamente ao PNB,Os

municípios continuavam obrigados a gastar 20°/a Em 1 971 , a lei 5.692 ampliou

a obrigação, fazendo incidir aquela proporção também sobre o Fundo de Participação dos Municípios.

No entanto, a centralização promovida pelo regime autoritário

fazia com quA desobrigação do Estado para com a educação teve no ensino superior diretamente

mantido pelo Ministério da Educação seu efeito mais danoso. As verbas

mandadas às universidades foram drasticamente cortadas, á ponto de muitas delas terem de paralisar

impo

Page 64: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

45

Com isso, muito se regozijaram os arautos do privativo, que aproveitaram esse fato para apoiar suas

pretensões de aumento dos subsídios para seus empreendimentos.

Assim se fecha esse círculo viciado e vicioso de mútuo reforço entre forças solidárias a desobrigação

do Estado para com a manutenção do ensino público e gratuito

e o subsídio governamental aos empreendimentos privados que buscam, no campo de ensino, a ac

Esse subsídio nem sempre é direto, na forma de recursos que saem dos cofres públicos para os das

empresas de ensino. Ele aparece até de forma indireta, através dos

abatimentos permitidos pelo imposto de renda.

E há pelo menos uma instituição que, movida por esses incentivos fiscais e pelo ardor cívico-religioso,

pretende ocupar o vácuo deixado pelo Estado em sua desobrigação

para com a manutenção do ensino público e gratuito. Não é uma sociedade civil, de carátEm 1984, a

Fundação Bradesco gastou 20 bilhões de cruzeiros na manutenção

de escolas, situadas em 11 Estados, que recebiam 26 mil alunos. Esses recursos provieram de doações

das empresas do grupo capitaneado pelo banco. Como várias dessas

escolas ministrEm 1985, a Fundação Bradesco prepara-se para gastar 107 bilhões de cruzeiros em

projetos educacionais, metade do que o Estado do Rio de Janeiro gastou

em educação no ano de 1984. 0 número de escolas sobe para 29 e o número de alunos para 33 mil.

São escolas de 1º grau situadas nas mais diversas regiões: em capitais de Estado e no pantanal mato-

grossense. Nelas se oferece o ensino que o governo nega ao povo

brasileiro e cobra-se a adesão a um autoritário código de conduta que os funcionários do gr

Page 65: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

46

da ditadura, as escolas da Fundação Bradesco exigem dos alunos adesão a uma moral

ultraconservadora, pedindo-lhes que prometam não fumar, não beber, não praticar

nenhum ato "contra a moral e os bons costumes".

A muito custo, tem havido algumas vitórias parciais contra esse círculo viciado/vicioso e mu o

reforço entre a, desobrigação dó Estado para

com a manutenção do ensino gratuito e o apoio governamental aos empreendimentos privados.

As lutas pela democratização do ensino, especialmente pelo ensino público e gratuito, atingiram o

Congresso Nacional, renovado pelas eleições de 1982. Na nova correlação

de forças que se formou, foi possível a aprovação, na Câmara dos Deputados como no SeAssim, desde

dezembro de 1983, a Constituição determina que o governo federal

deve gastar pelo menos l3% e os Estados e municípios pelo menos 25% da receita resultante de

impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino. Foi uma vitória

das forças polítVemos, assim, o quanto tem sido difícil a luta pela democratização do ensino em nosso

país: como a solidariedade entre o capital (especialmente o

interessado na "mercadoria" educação) e a burocracia civil-militar pôde encontrar meios e modos de

diluir as

Page 66: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

47

III. A Exclusão pela Base

Quando os resultados do Censo Demográfico de 1970 foram divulgados, ainda no governo Médici, os

dados foram mais eloqüentes do que a frase de efeito do general de

plantão: "a economia vai bem, mas o povo vai mal". Ele não disse qual economia estava indo bComo

poderia uma parte da economia ir bem, enquanto a outra ia mal? Para

os arautos da política econômica da ditadura, ó que havia eram diferenças no ritmo da melhoria geral.

Para os críticos, no entanto, uns estavam se beneficiando da

miséria dos outros.Mas, os argumentadores do regime autoritário não se fizeram de rogados. Foram

buscar "explicações" fora do campo econômico para justificar a exploração

das massas. O que os religiosos faziam antes (e alguns ainda teimam em fazer), procurando na

maldição dSe a renda está mal distribuída, se os dados mostram que,

no período 1960-1 970, os ricos estavam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, não é

porque aqueles são os capitalistas e seus funcionários mais próximos

e estes os trabalhadores exp

Page 67: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

47

massas essa crença no papel milagroso da educação.

Para o governo e seus argumentadores, então, a distribuição da renda mais igualitária viria,

automaticamente, como resultado da mais ampla distribuição de oportunidades

educacionais para todos.

Para buscar credibilidade para sua política _"distributivista", os governos autoritários organizaram o

Movimento Brasileiro de Alfabetização - Mobral, que, em uma

década, deveria reduzir a proporção de analfabetos para menos de 1 0%. Montou toda uma rede E a

realidade, como andava?

A taxa de escolaridade das crianças de sete a l0 anos, faixa etária que correspondia ao antigo curso

primário, baixou de 1970 a 1980: de 66,3% para 65,5%. Isto quer

dizer que, em 1980, mais de um terço das crianças que deveriam estar cursando a escola priEsses

dados eloqüentes mostram que ás condições de escolarização pioraram

justamente na base escolar: na escola primária, englobada Agora num fantasioso ensino de 1° grau,

obrigatório em suas oito séries para as crianças e adolescentes,

de sete a 14 anos

Page 68: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

48

O resultado dessa incompetência, ou melhor, dessa política educacional lesiva aos interesses mais

fundamentais do povo brasileiro continua a ser uma eficiente máquina

produtora de analfabetos. Aos 14 anos de idade, os jovens brasileiros, já deveriam ter oeste panorama

desolador é bastante para denunciar o fracasso da política

educacional , fracasso ainda a maior se levarmos em conta que durante todos esses anos, os generais e

coronéis do Ministério da Educação tiveram meios excepcionais

postos a sua dispotaxa de evasão e repetência na 1ª série do ensino de 1º grau, da ordem de 40% como

média nacional. Ao invés de: enfrentá-la pela diminuição do

número de alunos por sala; do aumento do número de horas de aula por dia e do número de dias de

aula por ano; daNão tenha dúvida, leitor, desse paradoxo perverso

mesmo tendo aumentado a presença o povo brasileiro na escola, o resultado da escolarização tem sido

absolutamente insuficiente e insatisfatório .

Page 69: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

49

De fato, o número de anos de escolaridade o anula não aumentou entre 1 aquele ano, os dados do

Censo mostravam que a escolaridade mediana da população de dez anos

e mais era de apenas I ,5 ano. Isso quer dizer que metade da população maior de dez anos nãoPosto o

problema de outro ângulo, quando se vê o número de analfabetos

de 14 anos de idade reduzir-se tão pouco, só 5% ao longo de toda uma década em que a educação foi

alardeada como a panacéia para todos os males do povo brasileiro,

só podemos entender Pois bem, até aqui falamos da escola regular de 1° grau. Qual teria sido,

entretanto, o desempenho do Mobral, grande esperança política educacional

do milagre brasileiro".

O Movimento Brasileiro de Alfabetização foi criado em 1967, mas só revisto mesmo em 1970. Sua

inspiração provinha das numerosas campanhas e cruzadas que se promoveram

para livrar o país da "sujeira" do analfabetismo, como se a falta do conhecimento da lei

Page 70: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

50

ou precedida por significativas melhorias do padrão de vida das classes populares; ou, então, 2) de

campanhas maciças de educação popular durante ou logo após uma

revolução, como na União Soviética na China, em. Cuba, no Vietnã e, mais recentemente, na

NiDinheiro para o Mobral não faltou, pois a Loteria Esportiva e os incentivos

fiscais foram boas fontes de receita. Recursos humanos também, pois milhares e milhares de pessoas

ofereceram-se como voluntários para alfabetizar os adultos, mesmo

sem remuneraçãQual o resultado de todo esse aparato?

O primeiro sinal do fracasso retumbante do Mobral foi dado pelo resultado das eleições legislativas de

1974. Abandonando a opção equivocada do "voto nulo", as oposições

ao regime militar apresentaram plataformas e candidatos que conseguiram amplo apoio poAs contas

do Censo de 1980 não deram outra. . .

Se a taxa de analfabetismo de 1970 era de 33,6% para a população de 15 anos e mais, dez anos depois

tinha baixado para 25,4%, ou seja, uma diferença de apenas 8,2%.

Para uma barulhenta cravada alfabetizada,

Page 71: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

51

que esperava uma "taxa residual" de analfabetos em 1980 inferior a 10%, era o fracasso proclamado

aos quatro ventos. Ventos que sopravam ainda mais forte quando

se via que o número absoluto de analfabetos de 15 anos e mais aumentou, naquele período, de 54Não

acredite o leitor nas falsas idéias de que taxas tão elevadas de

iletrados são características irremissíveis dos países latino-americanos e subdesenvolvidos. Países

como o Haiti, a Guatemala, Honduras, El Salvador, Bolívia e República

Dominicana têm tMas não é nada fácil acabar com uma estrutura tão grande como a do Mobral, com

suas diretorias e assessorias, suas coordenações estaduais e sua presença

em praticamente todos os municípios do país. Assim, ao invés de ser extinta, a instituição passou a

prVamos agora apresentar ao leitor um panorama do que se convencionou

chamar de "pirâmide escolar" brasileira, embora não utilizemos essa figura geométrica. Os dados

apresentados abaixo mostrarão; de modo eloqüente, a discriminação,

pela base, das oportunidTính

Page 72: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

52

periferia dos grandes centros urbanos, como já foi dito e explicado. Dos 22,7 milhões de alunos do 1Q

grau, a grande maioria (16,J milhões) está nas quatro primeiras

séries, correspondentes ao antigo curso primário, sendo que 4,5 milhões dessas crianças eSe o segundo

segmento de ensino de 1° grau já representa um profundo corte

na promoção dos alunos, quando comparado com o primeiro segmento, o ensino de 2° grau expressa

um corte ainda maior, pois tem apenas 2,8 milhões de estudantes, a

metade dos quais fNo ensino superior encontravam-se, em 1980, cerca de 1,5 milhão de estudantes,

75% deles freqüentando faculdades particulares. Nestas faculdades,

em geral de baixíssimo nível de ensino e altas anuidades, estudam(?) os alunos que já padeceram as

piores conMas, se o ensino superior apresenta, no Brasil, um padrão

altamente discriminatório, o ensino de 1º e de 2° graus já procedeu, antes dele, a uma perversa

exclusão de milhões de crianças e jovens que ficaram privados da

educação sistemática. É a exclusão p

Page 73: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

53

IV. A Profissionalização Fracassada

A política educacional da ditadura teve no "ensino profissionalizante" uma das suas "realizações" mais

ambiciosas.

Tratou de multiplicar os ginásios orientados para o trabalho (GOT) e tornar o 2° ciclo do ensino de 2°

grau (o antigo colegial) compulsoriamente profissional.

Vamos começar pelos ginásios orientados para o trabalho e ver o que eles tinham a ver com o

trabalho.

Nas duas primeiras séries do antigo ginásio predominavam as disciplinas de caráter geral, ao lado de

disciplinas vocacionais, destinadas a sondar aptidões: artes

industriais ou técnicas agrícolas, conforme a economia da região onde o ginásio se localizassPois bem,

cerca de 600 ginásios desse tipo foram construídos no Brasil,

para o que muito contribuíram os assessores norte-americanas e os dólares da USAID. E foram

assimilados pela reforma do ensino de 19 e 29 graus de l971 (lei 5.692)

como se tivessem siHoje, a maioria desses GOT, já sem esse nome, está com as salas ambiente usadas

para outras finalidades, os equipamentos deteriorados ou trancados

a sete chaves, "postos a salvo" dos alunos. A própria idéia da sondagem de aptidões e de iniciação para

o tr

Page 74: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

54

da elite ou para a escolarização a qualquer preço das crianças e jovens que não foram

atendidos pela escola pública, nem mesmo se preocuparam em

vestir a máscara da "orientação para o trabalho" no ensino de 1° grau. Fizeram de conta (ou assumiram

mesmo)

Page 75: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

55

de fabricar todo o produto. Não se trata de fabricar fogões a lenha, mas computadores. Ao capital

interessa que os trabalhadores não tenham de dominar todo um conjunto

complexo de operações, de conhecimento de matérias-primas, de processo de estética etc.Que aptidões

o GOT pretendia sondar? Aptidões para o trabalho cada vez mais

desqualificado, alienado? Que utilidade tinha iniciar os alunos em trabalhos artesanais se eles iriam

inserir-se em linhas de produção que dispensavam qualificações

artesanais?

Além do mais, não tem sentido a prática de atividades artesanais para sondar as aptidões dos alunos

para cursos técnicos a nível de 2° grau. Os técnicos industriais

projetam, desenham, administram, controlam custos e qualidade, supervisionais grupos de peA

educação para o lar reunia outro conjunto de estereótipos acerca da produção.

Só que, agora, tratava-se da produção doméstica, de ensinar as meninas - às vezes os meninos, só que

não se levava isso a sério - a preparar alimentos e roupas,

a conservar a Que "aptidão para o lar" o GOT esperava ensinar? Que ensino técnico a nível de 2° grau

poderia ser recomendado a uma aluna que quisesse prosseguir

seus estudos? Seria algum curso "espera-marido"? Ou esse seria em grau superior?

Todo esse equívoco pedagógico, misturado aos estereótipos conservadores, assumiu ares de

modernidade na política nacional da ditadura

Page 76: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

56

com as bênçãos do imperialismo enviadas pelos acordos MECUSAID.

A profissionalização no ensino de 2° grau, embora situada no mesmo quadro ideológico, teve razões

diferentes para sua generalização, como foi feito pela mesma lei

5.692, de l 971 .

A idéia de acabar com os cursos clássico e científico, que só preparavam para vestibulares, tornando

todo o colégio (o, 2° ciclo do antigo 2° grau) profissionalizante,

nasceu da preocupação de conter a procura de vagas nos cursos superiores.

A procura de cursos superiores vinha crescendo no Brasil desde os anos 40, impulsionada pela

inviabilização dos pequenos negócios ao alcance das camadas médias,

correlativamente ao crescimento das burocracias do setor público e do setor privado. A redefinEssa

demanda se dirigia às instituições públicas, por serem gratuitas

(ou quase), já que os jovens das camadas médias procuravam caminhos para minimizar os custos de

seus projetos de ascensão social. Mas o governo instalado pelo golpe

de Estado não se disPor outro lado, sabiam não ser politicamente conveniente para o regime elevar

ainda mais a visível barreira dos exames vestibulares, pois

Page 77: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

57

o número de "excedentes" crescia a cada ano, assim como suas reivindicações de aumento do número

de vagas nas universidades públicas.

As escolas técnicas industriais eram o festejado modelo do novo ensino de 2° grau profissionalizante.

Elas não eram muitas, no Brasil ,

no fundos anos 60. Apenas algumas dezenas, mas gozavam de alto conceito, muitos dos seus ex-

alunos conseguiam bons empregos ou faziam. bons cursos superiores. Só

que o que dava certo com poucas escolas, com alguns milhares de alunos, e no setor

industrialContrariando, então, as pessoas que conheciam o mundo da produção (fora

dos quartéis e dos gabinetes do Conselho Federal de Educação), o governo enviou ao Congresso um

projeto de lei (que veio a resultar na lei 5.692/71 ), tornando universal

e compulsoriaCom isso, os planejadores educacionais da ditadura imaginavam resolver dois

problemas, ao mesmo tempo. Haveria uma imensa carência de técnicos e auxiliares

técnicos, de todas as especialidades, cujos cargos estariam sendo ocupados por pessoas sem

formaçãoSó que não era nada disso o que acontecia.

Se os planejadores educacionais da ditadura saíssem dos seus gabinetes, iriam ver que os engenheiros

estavam ocupando o lugar dos técnicos

Page 78: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

58

não por causa da falta de técnicos mas porque faltavam empregos para engenheiros, e estes venciam

aqueles na competição. E não era por outra razão que grande parte

dos que concluíam os cursos técnicos industriais acabavam indo para uma escola de engenhariEles

iriam ver, também, que o sistema educacional brasileiro não seria

capaz de implantar, mesmo gradualmente, uma transformação desse tipo, por absoluta falta de

recursos humanos e materiais. Ademais, veriam não ser possível para as

escolas oferecerem haSancionada a lei pelo general-presidente Emílio Médici, com a assinatura de seu

ministro da Educação, o coronel Jarbas Passarinho, passou-se

à sua implantação, alardeada como a tábua de salvação da educação nacional: agora, sim, a

profissionalização dava As escolas particulares, ciosas dos interesses

imediatos de sua clientela, inventaram a profissionalização do faz-de-conta: já que seus alunos

estavam interessados mesmo era no curso superior, fantasiavam de

"curso técnico de análises clínicas" o currícul

Page 79: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

59

ordem. No caso de um caro colégio religioso, que atendia à elite econômica de sua cidade, o curso

"técnico" era de mecânica de automóveis, pois os futuros universitários

já tinham como certo ganhar um carro do pai se fossem vitoriosos nos exames vestibulaMas, para o

CFE, parece que bastava um parecer seu. para mudar o mundo do trabalho.

0 parecer 45/72 relacionou 130 habilitações para técnicos e auxiliares técnicos. Em certos casos,

previam-se várias ocupações "típicas" de um mesmo setor. Para a

indústriaOs estragos na rede pública foram enormes. .

As escolas normais foram desativadas, sendo o curso de formação de professores primários (da 1ª a 4ª

série, na nova e prolixa linguagem) transformado em apenas mais

uma habilitação do elenco oferecido pelas escolas, para onde iam dos alunos que, por suas A quem

interessava a política de profissionalização universal e compulsória

no ensino de 2° grau?

Aos empresários do ensino certamente não, pois elevava seus custos. Aos estudantes também não,

pois, nas condições sociais da sociedade

Page 80: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

60

brasileira, era encarada como uma perda de tempo. Aos administradores educacionais também não,

pois se viam diante da tarefa imensa e impossível de implantar um

projeto inviável, mesmo se houvesse dinheiro sobrando, o que não era o caso. Aos técnicos em fato

conhecido que as pequenas empresas empregam uma quantidade diminuta

de técnicos de nível médio formados em escola - o que não quer dizer que não tenham funcionários

desempenhando funções que poderiam ser desempenhadas por aqueles.

A esperança dos prMas, só mesmo os coronéis do Ministério da Educação, seus letrados conselheiros

e os apressados convertidos a essa pedagogia novidadeira é que

não sabiam da tendência das grandes empresas, principalmente as multinacionais .e as estatais, de

empregarem o mAs resistências que se desenvolveram contra a política

de profissionalização compulsórias ganharam força quando a crise do "milagre econômico" eclodiu

em fins de 1973, forçando-a a mudar sua forma de atuação. Previa-se

como inevitável uma política econômiPara

Page 81: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

61

O general-ministro da Educação Ney Braga deu a ordem de "meia volta, volver", por mensagem ao

Conselho Federal de Educação, na qual incorporava algumas críticas

dos setores mais brandos do próprio Ministério da Educação. 0 CFE, antes um bastião poderoso

nAlém da formação de técnicos e auxiliares técnicos, o ensino profissionalizante

de 2º grau passava a visar, para a maior parte dos alunos, principalmente a educação geral, com

algumas tinturas de informação tecnológica, correspondentes a alguns

setores daNa. nova concepção da profissionalização salvadora, a divisão, antes bem definida, entre a

parte geral e a parte especial do currículo, ficou borrada pelo

reconhecimento de que há disciplinas da parte de educação geral que podem ser consideradas

instrumenMas a meia profissionalização não agradou a ninguém, a não ser

aos membros do CFE, ansiosos por uma retirada sem reconhecer seus

Page 82: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

62

próprios erros. As resistências continuaram, assim como a pressão do movimento de professores, dos

empresários do ensino, dos estudantes e dos técnicos em educação.

Depois de estudos promovidos pelo Ministério da Educação, em associação com universidades, o

governo enviou ao Congresso um curto mas incisivo projeto de lei, logo

aprovado, alterando profundamente a lei 5.692/71. Em 1982, já não era politicamente possívePela lei

7.044/82, a qualificação para o trabalho, antes visada pela lei

5.692/71 , foi substituída pela preparação para o trabalho, um tempo impreciso que mantém, na letra, a

imagem do ensino profissionalizante, mas permite qualquer

coisa. A lei da reforRetirada, gradativamente, a profissionalização universal e compulsória, o que foi

posto em seu lugar? Nada. A preparação para o trabalho pode

se resumir em atividades que difundem uma visão abstrata do trabalho numa sociedade abstrata, com

resultados pedaVoltamos ao ponto de partida piores do que estávamos.

As escolas públicas de 2~ grau foram desorganizadas, seus currículos transformaram-se num

amontoado de disciplinas, onde se misturam as concepções positivistas do

CFE com os penduricalhos dos interesseFrac

Page 83: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

63

conter os candidatos ao ensino superior teve de ser providenciada neste grau mesmo, pela

elevação das barreiras dos exames vestibulares. Ao mesmo

tempo, procurou-se incentivar os cursos superiores de curta duração, em especial os da área

tecnológica (n

Page 84: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

64

1

V. A Educação Moral, Cívica e Física

Os regimes ditatoriais sempre procuraram substituir as instituições livres da sociedade para, na escola,

imporem ao povo a educação moral e cívica que servisse para

consolidar o seu poder.

No Brasil, não foi diferente. A derrubada do Estado Novo, em 1945, e a nova Constituição,

promulgada em 1946, aboliram a educação moral e cívica em nome dos princípios

liberais que reservaram às famílias, às organizações religiosas, às entidades culturaisMas o golpe de

1964 encontrou vivas as idéias autoritárias do Estado Novo

e sobreviventes muitos de seus partidários, formando, é claro, nas fileiras da conspiração

antidemocrática.

Os setores mais brandos do movimento golpista, os que misturavam a ânsia de soluções autoritárias

com algumas pitadas de liberalismo, não eram partidários da reintrodução

da disciplina educação moral e cívica nos currículos escolares. Os setores mais extrNeste sentido, o

homem forte do governo Castelo Branco, o ministro da guerra,

general Costa e Silva, tentou várias vezes que o Conselho Federal de Educação determinasse a

inclusão dessa disciplina nos currículos escolares. Sem sucesso. A resistência

opost

Page 85: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

65

onde podemos ver argumentos muito parecidos com os do positivista Teixeira Mendes em seu livreto

A incorporação do proletariado na sociedade moderna, escrito em

1889. Dizia o general-ministro Costa e Silva: "A família moderna facilita, de certo modo, a imO papel

da nova disciplina seria preencher o `vácuo ideológico" deixado

na mente dos jovens, para que não fosse preenchido pelas "insinuações materialistas e esquerdistas".

A educação moral e cívica seria a maneira da escola suprir essa deficiência da educação familiar. Mas,

ao contrário do que propunham os positivistas fundadores da

República, ela não deveria ser mais uma disciplina dos currículos escolares. Ela deveria serMas, no

início de 1969, aqueles conselheiros democratas já não eram membros

do Conselho Federal de Educação. Anísio Teixeira tinha concluído seu mandato e não fora

reconduzido. Durmeval Trigueiro foi aposentado compulsoriamente do serviço

público e perdeuBaixado o AI-5 em dezembro de 1968 e deposto o vice-presidente Pedro Aleixo, em

setembro do ano seguinte a Junta Militar que ocupou a Presidência

da República deixou um decreto-lei (n° 869) resultante de um grupo de trabalho da Associação dos

Diplomados d

Page 86: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

66

deveria, obrigatoriamente, integrar os currículos escolares de todos os graus e modalidades do

sistema de ensino do país. Essa disciplina,

"apoiando-se nas tradições nacionais", teria por finalidade:

a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso da dignidade da

pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob

a inspiração de Deus;

b) a preservação o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade;

c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana;

d) o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições, e os grandes vultos de sua história

e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade;

f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sócio-

político-econômica do País;

g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas, com fundamento na moral, no

patriotismo e na ação construtiva visando ao bem comum;

h) o culto da obediência à lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade.

As oito finalidades da disciplina incorporavam e ampliavam as da prática educativa pensada três anos

antes. Seria ministrada do curso primário ao superior, inclusive

na pós-graduação. No ensino superior, ela seria mascarada de Estudos de Problemas Brasile

Page 87: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

67

na nova ditadura, A educação cívica e o trabalho, além de Educação cívica das mulheres, uma

consolidação do que havia de mais conservador nos estereótipos machistas

(na versão fascista), celebrando o papel da mulher como silenciosa, modesta, oculta, mas iAs

finalidades da educação moral e cívica representavam uma sólida fusão

do pensamento reacionário, do catolicismo conservador e da doutrina da segurança nacional, conforme

era concebida pela Escola Superior de Guerra. Não foi por acaso

que a Comissão EspMembro do Conselho Federal de Educação, o arcebispo Luciano já era o mais

destacado intelectual da corrente integraste da Igreja Católica, que

tem resistido às mudanças produzidas pelo Concílio Vaticano II e seus desdobramentos teológicos e

pastorais. ComApesar do parecer do arcebispo-conselheiro proclamar

que a educação moral e cívica devesse ser confessional, isto é, não vinculada a nenhuma religião e a

nenhuma igreja, a incorporação das doutrinas tradicionais do

catolicismo e de seus quadros não era se

Page 88: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

68

cantado; em tupi-guarani, por professores e alunos do Curso de Educação Moral e Cívica realizado

pela Sociedade Educativa e Literária Brasileira, no Rio de Janeiro,

em julho de J 970.

Esse caráter dissimulador e anestesiado das contradições que dilaceravam nosso país atravessa todo o

parecer. Aqui está um exemplo disso:

~ preciso afirmar-se claramente que a pessoa humana está acima do Estado, e que este não teve outra

razão de ser nem outra finalidade senão a de por ser a serviço

da Pessoa, do Homem, de sua explicitação, de sua realização, de sua fidelidade. A educação mQue

pessoa humana estava acima do Estado? Não era, certamente, o camponês,

oprimido pelo latifundiário através dos jagunços e da tropa da Polícia Militar; nem o operário da

empresa multinacional, submetido pelo arrocho salarial; nem o funcionário

público,Como as grandes linhas da Constituição Nacional poderiam inspirar a formação de cidadãos

conscientes, solidários, responsáveis e livres? A Constituição em

vigor fora profundamente marcada por uma emenda que a Junta Militar impôs ao Congresso, mutilado

pel

Page 89: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

69

dos atos autoritários e suas conseqüências; pela convocação de eleições livres e da futura Assembléia

Nacional Constituinte.

Ao contrário disso, o parecer do arcebispo Luciano dizia que os cidadãos brasileiros eram chamados a

participar do "imenso esforço de desenvolvimento integral que

nossa Pátria empreende".

Que desenvolvimento?, perguntamos. O dos projetos faraônicos que levaram à geração de uma das

maiores dívidas externas do mundo? Ao aumento dos índices de mortalidade

infantil devido à deterioração das condições de vida? À substituição das plantações destAlém das

diretrizes gerais para a educação moral e cívica (e sua versão mascarada

Estudo de Problemas Brasileiros), o parecer apresenta programas detalhados dessa disciplina para o

curso primário, o curso médio e o curso superior.

No curso primário, o conteúdo do ensino deveria estar centrado na "comunidade", esta categoria

mitológica pela qual a direita celebra a coesão social e condena os

diferentes e os desviantes - mito do qual a esquerda tem sido, também, prisioneira.

No curso médio (ginásio e colégio) o conteúdo da disciplina já era mais explicitamente ideológico: o

trabalho como um direito do homem e um dever social (pelo qual

cada um dá a contribuição de que é capaz para fazer funcionar o conjunto da sociedade, send

Page 90: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

70

Nos cursos superiores, o conteúdo da disciplina educação moral e cívica, travestida em Estudos

de Problemas Brasileiros, deveria contemplar explícita e detalhadamente,

as políticas da ditadura para resolver os "problemas sociais; políticos e econômicos":

Page 91: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

71

Acontecia de tudo, em nome da moral e do civismo. Desde a esperada propaganda acintosa da

ditadura, até o cometimento de violências psicológicas contra as crianças,

como em um caso, noticiado pela imprensa, de um menino de J 1 anos que saiu chorando da auAlguns

professores conseguiam, às custas de artimanhas, contornar os programas

oficiais e desenvolver, com os alunos, atividades produtivas de resistência à ideologia oficial,

desenvolvendo uma atitude crítica. Infelizmente, seu número foi

pequeno, não sóConvergente com essa orientação conservadora da educação moral e cívica, a ditadura

enfatizou também a educação física. As duas disciplinas já formavam

um par coerentemente conservador no Estado Novo e assim foram retomadas após o golpe de l 964.

A idéia-força da ênfase na educação física era a seguinte: o estudante, cansado e enquadrado nas

regras de um esporte, não teria disposição para entrar na política.

Esta idéia era, aliás, adaptada de outra que os militares desenvolveram para. os recrutas A técnica de

controle que os militares estabeleceram fez com que fossem

abrindo caminho nas organizações voltadas para a educação física e os desportos, na burocracia do

Ministério da Educação - a que essa área está afeta - e fora dela.

Em todos esses órgSob os generais Geisel e Ney Braga, as bolsas de estudo deveriam ser concedidas,

de preferência, aos alunos de qualquer nível que se sagrassem

campeões desportistas. Com isso, visava-se uma seleção às avessas: ao invés do desempenho

intelectual e profissiBuscava-se com essa política desportista produzir

a "coesão nacional e social" que a ditadura não havia conseguido com o Mobral nem com a

propaganda via televisão:

Page 92: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

72

VI. A Universidade:

Modernizada, Amordaçada e Privatizada

0 golpe militar foi fatal para a Universidade de Brasília, a mais importante iniciativa

governamental no campo do ensino superior. Em

abril de 7964, começou o segundo ano letivo da mais jovem e mais moderna de nossas

universidades, que reunia profes

Page 93: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

73

de Brasília pelo seu pioneirismo, pelo arrojo de suas concepções e pela demonstração de empenho em

reunir, no seu corpo docente, o que havia de melhor nos diversos

campos do conhecimento, como Maurício Rocha e Silva, na Biologia; Victor Nunes Leal, WaldirA

jovem universidade nem bem estava totalinente implantada quando o golpe

ceifou cabeças de sua direção e dos seus corpos discente e docente. Mais do que isso, alterou seu plano

original, extinguindo unidades inteiras e alterando as remanescentes,

como, pNo entanto, a sobrevivência da estrutura inovadora da Universidade de Brasília foi garantida

pela reforma da Universidade Federal de Minas Gerais, que, então,

se desenvolvia pela liderança do Reitor Aluísio Pimenta. Deposto pelo general Carlos Guedes em

aDepois da Universidade Federal de Minas Gerais, a Universidade Estadual

de Campinas preservou a estrutura da UnB, por iniciativa de Zeferino Vaz, paradoxalmente um dos

reitores-interventores da Universidade de Brasília. Outras também

o fizeram, o que mostComo

Page 94: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

74

das universidades de nosso país. Ela podia mais facilmente evitar os vícios das outras e tirar partido

das inovações:

Por isso, a modernização inovadora, representada pela Universidade de Brasília nos dois primeiros

anos de sua existência, cedeu lugar, por força do golpe, à modernização

conservadora, movida pela legislação autoritária, quase toda feita à base de decretosEsses elementos

de política educacional procuraram fazer com que todas as universidades

federais adaptassem sua estrutura ao figurino da Universidade de Brasília, utilizando, para tanto, um

importante motivo: o princípio da `hão duplicação de meios

para fA organização de departamentos foi a maneira encontrada para juntar no mesmo `9ugar" da

universidade todos os professores, pesquisadores, laboratórios e outros

recursos de um mesmo campo do conhecimento. Por exemplo, todos os físicos num `9ugar", todos os

Page 95: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

75

da mesma disciplina, por mais diferença que houvesse entre seus objetivos, dificuldades e, o pior de

tudo, em turmas grandes e heterogêneas. Imagine o leitor como

ficava bem mais "barato" colocar na mesma sala

, com um só professor, todos os alunos de uma universidade para aprenderem, digamos, estatística

descritiva: os de engenharia, os de matemática e os de física juntos

com os de psicologia, de serviço social e de pedagogia. Seria uma grande turma, ou melhor,

prolongando as angústias do vestibular propriamente dito e acirrando as

disputas entres os estudantes. Tudo isso em nome da recuperação das deficiências do ensino de 29

grau e da pretensão de evitar a especialização precoce. . .

Para viabilizar a transição dos estudantes pelas disciplinas dos diversos" departamentos da

universidade, em busca da integralização dos seus também diversos currículos,

os planejadores educacionais do regime autoritário importaram da universidade norte-aOnde o regime

de créditos (ou de débitos) foi efetivamente implantado, as turmas

se desorganizaram, inviabilizando a antiga solidariedade entre os estudantes, força viva do movimento

estudantil. Essa dissolução das turmas se somou à regulamentação

do movi

Page 96: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

76

promovida, logo em novembro de 1964, pela chamada lei Suplicy, nome do primeiro titular do

Ministério da Educação no governo do marechal-presidente Castelo Branco

(lei 4.464/64).

A "lei Suplicy" obrigava os estudantes a votarem para a eleição dos diretórios acadêmicos, mas, em

contrapartida, limitava o campo de atuação do movimento estudantil,

tornando as entidades presas fáceis da intervenção das direções das faculdades e das rei A cópia

apressada e a generalização opressora da estrutura da Universidade

de Brasília para todas as universidades federais fizeram com que abortassem experiências muito

promissoras de organização de faculdades de filosofia, ciências

e letras. A FFCL da

Page 97: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

77

Mas, a ânsia uniformizadora da política educacional autoritária não parou aí. Em julho de 1968, .em

meio ao crescimento dos protestos de amplos setores sociais contra

a ditadura (estudantes, profissionais liberais, operários), o governo organizou um grupoA chamada Lei

da Reforma Universitária, n9 5.540/68, determinava que todas

as instituições de ensino superior se adaptassem ao modelo, criticado acima, já ensaiado no sistema

federal. Mesmo as universidades estaduais, como a Universidade

de São Paulo, de Não queremos dizer que todas as determinações da Lei da Reforma Universitária

derivavam diretamente da política educacional da ditadura. Procuravam

incorporar algumas demandas de professores e estudantes que, havia décadas, lutavam pelo

aperfeiçoamento doAo invés de propiciar a existência de diversos padrões

de organização da carreira docente, a lei 5.540 simplesmente extinguiu o regime de cátedra. De fato, a

maioria dos catedráticos talvez fosse, em 1968 P '

professores improvisados, estéreis como pesquisadores, hábeis em escolher como assistentes os

candidatos mais dóceis do que questionadores, mais medíocres do que

inteligentes. No entanto; houve instituições e áreas acadêmicas nas quais o regime de cátedra)

de pesquisa e de prestação de serviços. Foi o caso das faculdades de medicina, para falar numa área

acadêmica. Foi o caso, também, da Universidade de São Paulo,

para falar numa instituição específica, que teve em seus quadros professores catedráticos da mEm

contrapartida, o funcionamento do corpo docente em departamentos,

mas de um modo tal que não houvesse uma hierarquia do

Page 98: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

78

tipo acadêmico (apenas ficando a salarial e a de participação no poder dos órgãos colegiados, quando

muito), abriu caminho para o triunfo do individualismo docente,

que dificulta ao máximo a formação dos grupos de trabalho, mas induz a emergência dos meroCom o

padrão universitário do ensino superior deu-se coisa um pouco diferente.

Há muito tempo que olhamos com inveja para nossos vizinhos hispano-americanos que têm a

universidade como padrão para o ensino. superior, com faculdades isoladas

só em casos excepcionais : e isso desde o século XVI. No Brasil, ao contrário, as universidadPor que

aconteceu justamente o contrário?

Antes mesmo que a lei da reforma universitária fosse rascunhada, já tinha começado o crescimento do

setor privado no ensino superior, que corria ansioso ao encontro

da demanda não atendida pelas insuficientes universidades públicas. Como os empresários do

Page 99: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

79

professores-fantasmas. Assim, a idéia de se fazer da universidade a regra do ensino superior, como na

maioria dos países do mundo, foi atropelada pela própria política

educacional implícita da ditadura.

O resultado de tudo isso foi que o ensino superior brasileiro é, hoje, dos mais heterogêneos que

existem.

Temos instituições que podem se equiparar, em certos campos de conhecimento, apesar de tudo, às

melhores do mundo, e outras que não passam de meras máquinas de venda

de diplomas a longo prazo. Infelizmente, estas são muito mais numerosas do que aquelas.

Temos universidades - cerca de 70 - e oito centenas de estabelecimentos isolados, nos quais a

especialização esconde, na maior parte dos casos, a mais restrita concepção

da ciência, da técnica e da cultura.

A progressiva redução dos recursos alocados às universidades públicas, nos últimos dez anos, fez com

que elas diminuíssem o desenvolvimento da pesquisa científica,

tecnológica e artística, atividade pela qual são responsáveis em praticamente 90°1° de tudoNem

mesmo a sustentação do potencial de pesquisa, como também, do ensino,

tem podido ser feita nas universidades públicas. Premidos por uma política salarial malthusiana, os

professores vêem-se obrigados a deixar a universidade ou a estender

a jornada de No grave momento em que vivemos, em, meio a uma crise economico-social que castiga

nosso povo, grandes contingentes de estudantes estão abandonando

os estabelecimentos particulares por não poderem pagar as crescentes mensalidades cobradas pois um

ensino q

Page 100: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

80

são insuficientes para aquelas. Ainda mais, retomam a tese da cobrança do ensino nas

universidades públicas, a "preços de mercado", de modo a eliminar a

"concorrente", fosse a universidade pública uma empresa como eles próprios definem seus

empreendimenFundação sem fundo, como as instituídas pela ditadura,

estarão fadadas ao

fracasso acadêmico e administrativo, só lhes restando, para sobreviver, subordinar o ensino, a pesquisa

e a prestação de serviços à busca do sucesso empresarial.

Page 101: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

81

PARA EVITAR O GOLPE

Numerosas e variadas propostas de reformulação do sistema do país têm sido feitas por entidades do

magistério, por as associações científicas e por partidos políticos.

A análise c tarefa que não cabe neste livro.

Vamos focalizar aqui as propostas - mais do que isso; as bandeiras - que têm sintetizado as mudanças

de maior alcance educação: as mudanças que abrirão caminho para

outras.

1 - A gratuidade do ensino público em todos os níveis fundamental a ser atingido, pois já existem

escolas F grau cobrando mensalidades dos seus alunos; sem falar

dos cursos das universidades federais e estaduais, às vezes; quanto as faculdades particular2 - A

dotação automática de recursos para o ensino como determina a emenda

constitucional no 24 (emenda João Calmon mantida na nova Constituição, nos mesmos termos: 13%

impostos, da União, e 25%, dos Estados e dos município deve reservar

para o ensino, in3 - Os recursos públicos destinados ao ensino devem ser aplicados nas escolas e

universidades públicas. Não podemos com subsídio governamental a

instituições particulares de ensino por mais que sejam, quando falta tanto para que o B~ sistema

público de en

Page 102: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

82

aspirações dos que há tanto tempo lutam pela democratização da educação em nosso país.

4 -A nova Constituição deverá manter o encargo das empresas com o ensino de 19 grau, só que, ao

invés de incidência sobre a folha de pagamento (o salário-educação),

impõe-se encontrar uma fórmula que faça essa contribuição incidir sobre o resultado econôm5 - A

nova Constituição deverá prever, como a de 1 934 e a de 1946, que

o Congresso Nacional aprove uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que substitua a que

foi aprovada em 1961 e sucessivamente retalhada pelas leis, decretos-lei,

decretos e6 - A nova LDB deverá rever as atribuições e a composição do Conselho Federal e dos

Conselhos Estaduais de Educação, de modo a se evitar que continuem

a desempenhar funções executivas e cartoriais que não lhes cabem e a evitar, ainda, que continuem a

ser 7 - A nova LDB deverá dar especial atenção ao atendimento

escolar e para escolar das crianças de zero a seis anos, sem que, entretanto, fique comprometida a

prioridade efetiva da política educacional de universalização

do ensino de 1 p grau pela expansão 8 -

Page 103: O GOLPE NA EDUCAÇÃO

83

as tremendas desigualdades educacionais existentes em nosso país e promover a democratização

do saber e da cultura, sem cair na tentação fácil e antidemocrática de fragmentar a escola

brasileira, confinando-a aos horizontes de cada município, de cada d9 - A nova LDB deverá

determinar a descentralização administrativa dos sistemas educacionais, pois o caráter unitário da

escola s6 adquire pleno sentido a nível local, onde o núcleo comum do currículo articula-se

com o contexto específico de cada escola10 - Essa descentralização administrativa e a plena

construção da escola unitária dependerá de uma reforma tributária

que contemple os municípios e os Estados com uma participação muito maior do que tem

tido, de modo que possam assumir iniciativas e re11 - A nova

LDB deverá estabelecer caminhos para a democratização da gestão do ensino público, tanto a nível de

estabelecimento de ensino quanto a nível de sistema,

evitando a utilização das instituições educacionais para a perpetuação de grupos ou part12 -

#