O mal-estar da civilização

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Pesquisa FAPESP - Ed. 107

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No Século XIX, um monge brincava com ervilhas

nos jardins de um monastério. Cento e cinqüenta

anos depois, o genoma humano é decodificado.

Em uma simples experiência que apresentaria

a genética para o mundo, uma única pergunta

motivava Gregor Mendel: O que determina o

resultado quando duas variantes se misturam?

Da mesma maneira, o que determina o sucesso

quando uma empresa é introduzida a outra?

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PESQUISA FAPESP 107 • JANEIRO DE 2005 • 3

A IMAGEM DO MÊS

o CORPO DE DIONE

Dione, uma das luas de Saturno, foi descoberta em 1684pelo genovês Giovanni Cassini. Em 14 de dezembro de 2004, a sondaespacial Cassini, homenagem ao astrônomo, registrou a imagemmais próxima do satélite, visto a 603 mil quilômetrosde distância. Revelou um corpo gélido, com variações de brilhomas ausência de cor, em contraste com os matizes quentesda atmosfera de Saturno, ao fundo.

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PeiqeT~nüisaFAPESP

38 CAPAFalta de tratamento, estigmase exclusão social marcam o quadroda saúde mental no mundo

www.revístanesculsa.tapesp.br

12 ENTREVISTA 31 PARCERIAEduardo Campos, ministroda Ciência e Tecnologia,prevê maiorinvestimento em 2005

José Fernando Perezfaz um pequenobalanço de seus11 anos à frenteda Diretoria Científicada FAPESP

32 AMBIENTEInventário de emissõescoloca o Brasil entre osmaiores poluidores mundiais

CIÊNCIAI

44 ARQUEOLOGIA

REPORTAGENS

POLÍTICA CIENTÍFICAE TECNOLÓGICA

24 BIOTECNOLOGIAAcordo com o InstitutoPasteur e artigo em revistacientífica mostram o vigorda pesquisa nacional

28 FOMENTOComissão Internacionalinicia avaliação dos Centros dePesquisa, Inovação e Difusão

29INFORMATIZAÇÃOMudam os procedimentosde apresentação, análise ejulgamento de propostas debolsas e auxílio na FAPESP

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Dez crânios da Pré-histórianacional reforçam teoriade que os mongolóidesnão foram os primeiros apisar na América

52 FÍSICACaos às vezes beneficia seresvivos e reações químicas

58 Computador substituineurônio de siris e lagostas

TECNOLOGIA

84 INOVAÇÃOEm um ano, agência daUnicamp fecha com empresascontratos de licenciarnentode 26 patentes

70 ENGENHARIA CIVILSistema de coleta projetadona USP utiliza águade chuva pararegar plantas e lavar carros

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48 GENÉTICAEstudos em Minas Geraise no Sul revelam descendentesde índios desaparecidos

78 NOVOS MATERIAISNanotecnologiae fotônica são base desensores para áreasde saúde e ambientecriados em Pernambuco

HUMANIDADES

84 CULTURAEstudo analisa trajetóriade Carmen M irandano Brasil enos Estados Unidos

88 URBANISMOLivro mostra a trajetóriada orla carioca, das tangasindígenas às tanguinhasde Ipanema

72 OFTALMOLOGIAEquipamento permiteexames rigorosos dacurvatura da córnea

rFOHl~

Carmem: "embaixadora do samba"

80 HISTÓRIAExposição reúneinstrumentos científicosdo século 18 e 19da Universidade de Coimbra

SEÇÕES

A IMAGEM DO MÊS 3CARTAS 6CARTA DO EDITOR 7MEMÓRIA 8ESTRATÉGIAS .............•... 18LABORATÓRIO 34SCIELO NOTÍCIAS 58LINHA DE PRODUÇÃO 60LIVROS ....................... 92

....................... 94FICÇÃO

Capa: Hélio de Almeida

Ilustração: Laurabeatriz

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[email protected]

Pesquisa Brasil

Grande iniciativa o programa derádio Pesquisa Brasil, na rádio Eldo-rado AM. Gostei muito de ver que ointeresse pela ciência está se espa-lhando. Já era hora de mostrar queciência não écoisa de malu-co, mas algo ló-gico, muito in-teressante e quepode acomo-dar a todos. Sealgum dia vo-cês precisaremde alguém pa-ra ajudar comperguntas ca-beludas na áreade imunologia,não hesitem emcontatar-me.Terei prazer emajudar. Que es-ta seja a minhacontribuiçãopara o avançoda ciência no

nv 106) estou convencido de que, des-ta vez, o Brasil abocanha o Ig Nobel.Há três chances: ou o pesquisador,pela pesquisa, ou a revista, pela re-portagem, ou eu, pela crítica. É triste.

VANDERLEI MARCOS DO NASCIMENTO

Unesp-Rio ClaroRio Claro, SP

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Pulmão

Parabéns pe-lo excelente arti-go "O alívio dosal" (edição nv104) que teve umimpacto muitogrande. Nossotrabalho clínicode nitrato deprata já está emvia de ser publi-cado.

FRANCISCO VAR-

GAS, LISETE TEI-

XEIRA E EVALDO

MARCHI VARGAS

país.

EDUARDO FINGER

Boston, MassachusettsEstados Unidos

Parabéns pela iniciativa de divul-gação da pesquisa por meio do rádio,um excelente órgão de comunicação,por sua praticidade, pois independede termos que parar para ouvir. Eu,por exemplo, ouço rádio tanto emcasa (preparando jantar) como noescritório. Que bom que agora todospodem ter acesso, numa linguagemacessível, às pesquisas científicas.

ELIANE C. DA SILVA

São Paulo, SP

Física e futebol

Depois de ler a reportagem "Ape-quena pátria em chuteiras" (edição

Correções

Na edição 106, a foto do papa-gaio-de-ouvido-amarelo, na página38, é da Fundación Proaves, e o autorda foto sapo-arlequim, na página 39,é de Robert Puschendorf.

O filósofo francês Iacques Derri-da morreu no dia 9 de outubro de2004, e não no dia 11 de agosto,como foi publicado na página 22 daedição nO105.

Cartas para esta revista devem ser enviadas parao e-mau [email protected], pelo fax (l l) 3838-4181ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP,CEP 05468-901. As cartas poderão serresumidas por motivo de espaço e clareza.

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Pesquisa CARLOSVOGT

PRESIDENTE

MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER,

HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI,

NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTÍFICO

PESUUISA FAPESP

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTIFICO),

EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER,

JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO,

PAULA MONTE RO, WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÉNCÍA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES),

CLAUDIA IZIQUE (HllTICAClT), HEITOR SHIMIZU (VERSÃOONLINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA!

EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA

EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO

CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS

DIAGRAMAÇÂO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAVUMI OKUYAMA

FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN

COLABORADORES ANA LIMA.ANDRÉ SERRADAS, BRAZ, CAROL LEFÈVRE,

DANIELA MACIEL PINTO, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FRANCISCO BICUDO, JOÃO FILHO, JOCA REINERS TERRON, LAURABEATRIZ, MARCELO HONÓRIO (ON-LINE), MARCELO LEITE, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGO NEGRO,

SAMUEL ANTENOR,THIAGOROMERO (ON-LINE)

ASSINATURAS TELETARGET

TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: [email protected]

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TEL: (11) 3865-4949 [email protected]

GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP

FAPESP

RUA PIO XI, N' 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181

http://www.revistapesquisa.fapesp.br [email protected]

NÚMEROS ATRASADOS TEL. (11) 3038-1438

CARTA DO EDITOR

O poder, luminoso ou sombrio, da imaginação

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL

DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÉNCIAJECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO

GOVERNO DO ESTADO DE SAO PAULO

Esta primeira edição de 2005 ofe- rece um brinde aos leitores: dois belos contos, para ler na primeira

vez de um fôlego só, e para reler depois com infinita calma, curtindo a delicade- za da relação entrevista no diálogo refi- nado que constitui o primeiro, deixan- do-se arrastar, no segundo, pelo denso mar de palavras que constrói uma fan- tasia poderosa em torno de um inven- tor real movido por convicções socia- listas no século 19. Trata-se de ficção de alto nível, que a nosso ver agrega valor e uma sutil elegância à revista, fundada no equilíbrio entre múltiplas abordagens da nossa produção intelec- tual. Ciência, tecnologia, humanidades e - por que não? - um pouco de cria- ção literária em primeira mão, em suma, conhecimento produzido sob muitas formas neste país, assim é Pes- quisa FAPESP.

Passo à reportagem de capa desta edição e me dou conta de que, se a fic- ção é narrativa que reinventa, violenta a realidade, descola-se dela ou a ultra- passa, de uma certa maneira permane- cemos em seus arredores no texto que começa na página 38, embora de for- ma sombria em vez de luminosa, mais perto do pesadelo que do sonho. Nas seis páginas dedicadas a um levanta- mento mundial sobre os distúrbios psi- quiátricos que vem sendo feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o editor de ciência, Carlos Fioravanti, informa que seus primeiros resulta- dos revelam que mesmo nas cidades mais isoladas do mundo os transtor- nos mentais começam ainda na infân- cia e geralmente apresentam os mes- mos estágios de desenvolvimento, independentemente dos estilos de vida ou das condições econômicas em que vivem as populações, para criar, na vida adulta, o que ela chama de prisio- neiros da própria imaginação descon- trolada. Quer dizer, nos piores trans- tornos psiquiátricos, não há mais adesão à realidade e a mente cria suas trágicas ficções. Mas o que o estudo da OMS abre é a perspectiva de se de- tectar precocemente o processo de per-

da do controle emocional e assim evi- tar o surgimento de problemas mais graves. Notícia promissora no quadro desalentador da saúde mental no mundo.

A boa imaginação do leitor, de todo modo, está agora convocada para acompanhar os novos resultados de uma pesquisa arqueológica, ou seja, o estudo de nove crânios na região de La- goa Santa, Minas Gerais, e um de Caa- tinga do Moura, Bahia, que sugerem com grande força que os primeiros habitantes da América não eram mes- mo mongolóides. E que Luzia - perso- nagem criada nos anos 1990 por cien- tistas brasileiros a partir do achado em 1975 do crânio de uma jovem que te- ria vivido há cerca de 11 mil anos na região -, com suas feições que lembram negros africanos e aborígines austra- lianos, não seria exceção nem aberra- ção, mas a regra. Esse novo e fascinan- te capítulo da Pré-história brasileira está relatado pelo editor especial Mar- cos Pivetta, a partir da página 44.

E, para encerrar os destaques, reco- mendamos atenção especial à reporta- gem que abre a seção de Tecnologia, na página 64, em que a editora assistente Dinorah Ereno detalha como a Agência de Inovação da Unicamp, a Inova, em apenas um ano de atividade conseguiu fechar 13 contratos de licenciamento com empresas para a exploração de 26 patentes - todas relativas, aliás, a pro- dutos de alta relevância social.

No mais, toda a equipe de Pesquisa FAPESP deseja aos leitores um novo ano fecundo e prazeroso e promete tam- bém se esforçar por isso. O ano de 2004 viu alguns eventos importantes para a vida da publicação - a edição especial número 100, o lançamento do livro Prazer em conhecer, coletânea de entre- vistas originalmente publicadas na re- vista, o lançamento do programa Pes- quisa Brasil, resultado de parceria com a Rádio Eldorado, prêmios... Nossa ex- pectativa é poder constatar no final de 2005 que continuamos fecundos.

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAçãO

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Rara foto de Lutz (primeiro plano) quando à frente do Instituto Bacteriológico de São Paulo

MEMóRIA

Enfim, preto no

branco Depois de décadas de tentativas são lançados os primeiros volumes da obra completa de Adolpho Lutz

NELDSON MARCOLIN

Sessenta e quatro anos de planos e tentativas frustradas terminaram no final do ano passado em grande estilo. Os principais trabalhos, estudos, artigos e cartas de Adolpho Lutz

(1855-1940), um dos mais talentosos e produtivos cientistas brasileiros, começaram a ser publicados na íntegra numa obra sem igual no Brasil. Em novembro foi lançada uma caixa com quatro volumes - Primeiros trabalhos: Alemanha, Suíça e Brasil (1878-1885); Hanseníase; Dermatologia e micologia; e um suplemento com glossário, índices e resumos. Até o final deste ano estão previstas mais quatro caixas, formando assim a Obra completa de Adolpho Lutz (Editora Fiocruz, R$ 150,00 a primeira caixa). Cada uma terá de três a cinco livros com resumos em português e inglês dos trabalhos reunidos, índices remissivos específicos para os três idiomas principais em que são apresentados (alemão, português e inglês) e glossário bilíngüe de termos técnicos e de nomes citados por Lutz. Os livros trazem a produção do cientista carioca relativa a um ou mais temas, com textos de apoio de especialistas das áreas em questão, que comentam a relevância dos trabalhos para a ciência moderna (muitos têm mais de cem anos). Estima-se que as cinco caixas terão em torno de 10 mil páginas impressas em um projeto que envolve pelo menos 50 pessoas, coordenadas desde 2000 pelo historiador Jaime Benchimol e pela bióloga

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Adolpho Lutz e visitante observam insetos coletados no laboratório do pesquisador, em Manguinhos

e historiadora da ciência Magali Romero de Sá, ambos da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Os participantes dessa obra poderiam ser multiplicados se os desejos de Bertha Lutz, filha do cientista, tivessem começado a se realizar logo depois de outubro de 1940, quando Lutz morreu. Em janeiro de 1941, ela já manifestara a clara intenção de não deixar disperso ou engavetado o saber gerado pelo pai. Conhecida internacionalmente como líder feminista e zoóloga - do Museu Nacional -, de 1941 até 1965 Bertha foi incansável na tarefa de coletar e organizar o material disponível em poder da família, de amigos e de cientistas que se relacionavam com o pai.

No início da carreira em Limeira, na década de 1880

Também se empenhava em criar e manter vínculos com instituições, políticos e intelectuais que pudessem ajudar a expor e publicar toda a produção reunida de Lutz. Durante esse período,

obteve alguns pequenos êxitos e grandes fracassos, sem conseguir a publicação da biografia nem a reimpressão dos estudos mais significativos. A pesquisadora ainda lutou por algum tempo, mas parece ter se cansado em 1965, quando contava 71 anos. "Seu arquivo pára por aí e não contém mais registro que indique se fez novas incursões nesse terreno", diz Magali Romero de Sá. Bertha morreu em 1976, mas cuidou de deixar todo o acervo reunido por ela depositado no Museu Nacional. Finalmente, em 2000, os pesquisadores da COC conseguiram unir recursos de várias fontes para financiar a publicação da obra e outros projetos. A Biblioteca Virtual Adolfo Lutz está em

desenvolvimento num trabalho conjunto com a Bireme (Centro Latino- Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde). "Além de terminar a publicação da obra completa, estão nos nossos planos fazer documentário, exposição, seminário e o que for necessário para divulgar o trabalho desse extraordinário cientista", diz Benchimol. O fascínio exercido por Lutz sobre outros pesquisadores e historiadores se explica, em boa parte, pela versatilidade como cientista. "Um dos traços característicos de sua personalidade é a combinação da cultura médica com a vocação de naturalista e o papel pioneiro que desempenhou ao aplicar os saberes dessas

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áreas diferentes à medicina tropical", explica Benchimol. Quais teriam sido os caminhos que o levaram a esse patamar como cientista? Adolpho Lutz nasceu no Rio em 1855, filho de pais suíços. Seu pai, Gustav, casou-se com Mathilde Oberteuffer em 1849 e imigrou para o Brasil logo depois da viagem de núpcias. No Rio, em sociedade com outro suíço, Gustav fundou uma loja para importação de "fazendas secas" e exportação de gêneros agrícolas, mas em 1857 deixou o negócio nas mãos do sócio e voltou com a família para Berna, talvez motivado pela insalubridade da capital imperial - além da febre amarela, o cólera explodiu na cidade em 1855, ano de nascimento de Adolpho, um dos dez filhos do casal. Em 1864, a família retornou ao Brasil, mas deixou na Basiléia os três filhos maiores para cursarem a escola, Adolpho entre eles. Mathilde, tão empreendedora quanto Gustav, criou no Rio o Colégio Suisso-Brazileiro. Enquanto isso, Adolpho mergulhou nos estudos interessado em história natural. Em carta enviada à mãe em fevereiro de 1871, quando tinha 15 anos, ele expunha seus planos: "O que sempre desejei em criança e, sem refletir devidamente, ainda o desejo agora, é ser pesquisador em ciências naturais. (...) Vou acumulando todos os conhecimentos de história natural que consigo adquirir, faço observações próprias, assisto a preleções públicas e, durante as férias, estudo todos os livros de biologia ao meu alcance". Aos 19 anos, em 1874,

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ingressou na Universidade de Berna para cursar medicina. Três anos depois mudou para a Universidade de Leipzig e fez cursos rápidos em Praga e Estrasburgo em diversas especialidades médicas. Ainda assim continuou trabalhando com história natural. Em março de 1878 foi apresentado seu primeiro trabalho na área sobre a descrição de uma nova espécie de microcrustáceo (Alona verrucosa) na Sociedade de Ciências Naturais de Berna. Um ano depois trabalhou em um hospital suíço, onde escreveu sua tese sobre os efeitos terapêuticos de um vegetal, o quebracho, e publicou um estudo clínico sobre um caso de bronquite fibrinosa aguda, hoje conhecida como pseudomembranosa. Aos 25 anos, formado, Lutz decidiu reencontrar a família no Brasil. Antes, deu mais um giro pela Europa - fez cursos rápidos em Viena, assistiu a preleções e

cirurgias em Londres e, segundo alguns biógrafos, conheceu Louis Pasteur em Paris. Em 1881 o jovem Adolpho chegava ao Rio. Em seus relatos, ele diz estranhar o "protecionismo e nepotismo" entranhado no povo brasileiro e a tremenda penetração da língua e cultura francesa na elite local. Depois de uma curta estada em Petrópolis estabeleceu-se em Limeira, interior de São Paulo, para onde havia mudado sua irmã Helena, recém-casada, e lá ficou de 1882 a 1885. Nos intervalos do trabalho como clínico, pesquisava e escrevia. Em 1885 publicou um estudo decisivo sobre a ancilostomíase numa série de artigos que saíram na coleção de lições de clínica médica de Volkman, editada em Leipzig. "Essa pesquisa representou contribuição tão importante que foi publicada na íntegra em português em O Bnml-Medko (1888, 1887) e na Gazeta Médica da Bahia", conta

Bilhete da rainha do Havaí a Lutz, em abril de 1890: "Caro doutor Lutz. Senhor. Faria o grande obséquio de examinar Hahünaib Kaauwai para ver se apresenta sinais da lepra, e se algo puder ser feito pela pobre menina, por favor informe-me por intermédio do portador. S.M. Rainha Kapiolani. Palácio Iolani"

Benchimol. Em março de 1885 foi trabalhar por um ano na clínica do renomado dermatologista alemão Paul Gerson Unna, em Hamburgo, Alemanha, e enveredou pela bacteriologia, relacionada a várias doenças dermatológicas, principalmente a hanseníase. Quando voltou ao Brasil, o cientista mudou-se para São Paulo, mas, em seguida, foi indicado por Unna para o leprosário da ilha de Molokai, no Havaí, onde chegou em novembro de 1889. Foi naquelas ilhas da Polinésia que conheceu a enfermeira inglesa Amy

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Lutz com Bertha, no centro, em frente à Câmara dos Deputados, quando ela tomou posse como deputada (1936)

Lutz (centro) no rio Paraná, em 1918

Marie Gertrude Fowler, com quem veio a se casar pouco depois. Ficaram por lá até meados de 1892 e, depois de uma passagem pelos Estados Unidos, regressaram ao Brasil em janeiro do ano seguinte. Em São Paulo, onde fixaram residência, nasceram os dois filhos do casal: Bertha, em 1894, e Gualter Adolpho, em 1903, futuro professor de medicina legal. Também em 1893, em março, Lutz foi nomeado subdiretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo e, em outubro, diretor interino - a

efetivação se deu somente em 1895. Lutz exerceu o cargo por 15 anos. Com seus auxiliares, realizou investigações relevantes sobre as doenças infecciosas endêmicas e epidêmicas no estado e enfrentou controvérsias com parcela majoritária do campo médico e de outros setores da sociedade. A bacteriologia adquiria importância na saúde pública com os freqüentes surtos de cólera, febre tifóide, disenterias, febre amarela e outras doenças. Os diagnósticos de Lutz e de outros profissionais

mars jovens que começavam a se destacar como bacteriologistas no Rio estavam calçados em provas laboratoriais inacessíveis à maioria dos médicos. Lutz era o quadro tecnicamente mais qualificado entre os bacteriologistas brasileiros, com maior experiência, trabalhos publicados e relações com a comunidade científica internacional. Em 1908 transferiu-se para o Instituto Oswaldo Cruz (IOC), no Rio, a convite do próprio Cruz. Ambos já haviam combatido uma epidemia de cólera no Vale

do Paraíba, anos antes. Lutz tinha grande autoridade e prestígio como cientista e exercia forte influência - até intimidatória - sobre aqueles que conviviam com ele. "Não é por acaso que as histórias do doutor Lutz continuam a ser contadas até hoje pelos corredores da Fiocruz. Ele continua fascinando", escreveu no primeiro livro da Obra completa Luiz Fernando Rocha Ferreira da Silva, professor titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. "Mas não era um timoneiro do porte de Oswaldo Cruz, não tinha as mesmas qualidades de chefe, de aglutinador e formador de discípulos, e parecia abominar a publicidade inerente à condição de homem público", analisa Benchimol. Quando chefiou o Instituto Bacteriológico, rebatizado de Adolfo Lutz depois de sua morte, deixou sempre para Emílio Ribas os encargos e louros das grandes ações públicas. Sua ida para o IOC parece estar relacionada à possibilidade de retomar as pesquisas em zoologia e botânica que haviam permanecido em segundo plano durante o tempo em que esteve imerso na bacteriologia e na linha de frente da saúde pública. Durante o período final de sua vida, teve produção relacionada a temas de interesse médico ou de importância puramente biológica, alheio aos conflitos da instituição. "A densidade da trajetória científica permitiu a Lutz que chegasse mais perto do que ninguém daquela miragem da torre de marfim onde tantos cientistas sonham em viver reclusos", conclui Benchimol.

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ENTREVISTA: JOSÉ FERNANDO PEREZ

Um roteiro de abertura à sociedade MARILUCE MOURA E NELDSON MARCOLIN

O físico e engenheiro José Fernando Pe- rez, 60 anos, casado, pai de dois filhos e avô orgulhoso de duas netas, uma na faixa de 1 ano e ou-

tra próxima dos 3, cujas fotos ele, entre enlevado e enternecido, costuma dis- tribuir regularmente pela internet aos mais próximos, passou os últimos 11 anos à frente de um dos cargos execu- tivos mais importantes na política de ciência e tecnologia de São Paulo: di- retor científico da FAPESP. Nessa con- dição, desde dezembro de 1993 ele imantou a Fundação com seu estilo ex- pansivo, seu entusiasmo e, principal- mente, uma enorme capacidade de propor, acolher e realizar projetos no- vos. Tal competência entrou em cena impulsionada ao mesmo tempo por sonhos, quase visões particulares de fu- turo - não exatamente individuais, e sim comuns ao grupo de pesquisadores com o qual ele desde estudante mais se afinava - e por idéias, bem fundamen- tadas e bem discutidas no âmbito do Conselho Superior da FAPESP e mes- mo da comunidade científica paulista - polêmicas à parte.

No percurso, Perez colheu, como seria de esperar, críticas, algumas acer- bas, de setores tradicionalistas, mas amealhou em quantidade bem maior testemunhos valiosos - e públicos -, dentro e fora do país, de reconheci- mento à qualidade de seu trabalho como dirigente da FAPESP e a seu pa- pel de liderança no fortalecimento de

áreas-chave para o desenvolvimento científico e tecnológico nacional. Uma liderança que, ele fez questão de enfati- zar nesta entrevista em que examina o que mudou na FAPESP nesses 11 anos, só pôde ser exercida com o concurso de seus assessores diretos, os adjuntos da Diretoria Científica que ele sempre cha- mou carinhosamente de sua "armatta Brancaleone", numa referência ao deli- cioso filme de Mario Monicelli. Aliás, o professor Perez, que continuará a dar aulas no Instituto de Física, embora te- nha se aposentado da Universidade de São Paulo (USP) como titular de física matemática, simultaneamente à colo- cação de seu cargo à disposição na FA- PESP para enveredar por um novo e desafiante caminho, chega a ser engra- çado em seu esforço por explicitar o re- conhecimento à sua equipe em justa medida. Ele, por exemplo, insistiu para que nas páginas desta entrevista esti- vessem, em paralelo às suas fotos, as de seus assessores diretos. Por razões edi- toriais, não pudemos atendê-lo, mas fica o registro e, num destaque na pági- na 17, sua citação aos adjuntos.

■ Em sua avaliação, qual a diferença es- sencial entre a FAPESP de dezembro de 1993 ea de hoje? — Há duas diferenças fundamentais. A primeira tem a ver com a questão da inovação tecnológica. A FAPESP trans- formou-se numa agência também de fomento à inovação tecnológica, e isso em atendimento ao que a Constituição paulista determinou na reforma de 1989, que definiu a missão da instituição. Até

esse ano prevalecia o enunciado de 1947, segundo o qual a FAPESP só era responsável pela pesquisa científica - em 1989, a Fundação passou a ser respon- sável pelo desenvolvimento científico e tecnológico. A partir de 1993 a FAPESP inseriu a inovação tecnológica como uma de suas prioridades. E outra carac- terística importante, que diferencia a instituição de antes de 1993 em relação ao que ela é atualmente, é o fato de nós termos esse papel articulador de agên- cia na geração de programas novos, dentro da linha que foi criada com o Genoma, Biota, Tidia, Cinapce...

■ Em vez de ouvir e receber propostas da comunidade a Fundação passou também a articular e propor novos programas. — Eu diria menos propor... Cada um desses projetos nasceu dentro da co- munidade científica. É claro que numa interação com a Diretoria Científica, mas são propostas que vieram da co- munidade. A FAPESP teve um papel de ajudar na organização em torno dessas metas. Essa é a famosa metáfora for- mulada no livro A catedral e o bazar-pe- los antropólogos americanos Eric Ray- mond e Bob Young, que identificaram essa estratégia de bazar, possível de ser adotada como forma de organização. A FAPESP já era uma agência muito orga- nizada, tinha uma imagem muito sólida, muito consolidada dentro da comuni- dade científica nacional e internacional, mas com uma característica de perfei- ção, de catedral. Uma coisa perfeita, mas ao mesmo tempo muito estática e pouco afinada, pouco sensível a identi-

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ficar oportunidades e desafios. Quem me apresentou essa metáfora foi o Imre Simon (coordenador da Incubadora Virtual e do programa Tidia). Hoje, em paralelo à catedral, temos também uma característica de bazar, no sentido de que ficamos mais atentos ao tempo, às necessidades e oportunidades. Acho que isso caracteriza a nova FAPESP nesses últimos 11 anos. O livro de Ray- mond e Young contava a história do sis- tema operacional Linux, por isso o Imre Simon tinha conhecimento disso. Ele imaginava que um software só po- dia ser desenvolvido com uma estraté- gia de catedral, cada pedra sendo usada com uma idéia muito clara de onde se- ria colocada. Era um processo essencial- mente solitário, mas com uma visão de perfeição: algo que, uma vez pronto, não há o que mexer. E ele ficou surpre- so com o Linux, que foi feito com uma estratégia aberta, digamos, de bazar.

■ Quando o senhor assumiu, a idéia de inovação tecnológica já estava presente? — Já estava presente no processo de es- colha do diretor científico há 11 anos. A questão já polarizava o nosso Conselho Superior. É preciso lembrar como foi o processo de indicação: em 1993, com a saída do professor Flávio Fava de Mo- raes, o conselho, depois de várias discus- sões, reuniões e propostas de listas que vieram de várias fontes, optou por con- vidar dez pesquisadores para entrevistas.

■ Quase sabatinas. — Exatamente. A questão de como fi- nanciar a inovação tecnológica na em- presa preocupava o conselho. E acho que uma das razões pelas quais eu fui escolhido é porque levei uma proposta operacional, compatível com a missão institucional de financiamento à pes- quisa, isto é, de geração de conheci- mento. Essa proposta era algo que eu e o professor Coutinho (Francisco Antô- nio Bezerra Coutinho) já havíamos for- mulado quatro anos antes. O Coutinho dava uma assessoria periódica ao então secretário de Ciência e Tecnologia, Dé- cio Leal de Zagottis, do governo fede- ral, que tinha status de ministro. E sem- pre trazia essa preocupação: "Como é que nós vamos resolver essa questão de projetos com empresas?". Depois de vá- rias conversas chegamos a esse conceito

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de que se poderia financiar, desde que houvesse uma contrapartida real da empresa nesses projetos de pesquisa. É o conceito de machting fund, tão en- raizado na sociedade norte-americana onde até a TV pública funciona com fi- nanciamento parcial do governo e tem, teoricamente, atividades de fund raising com a sociedade: para cada US$ 1 que a população dá resulta na colocação de US$ 1 do governo federal.

■ Isso então foi determinante para sua escolha. — Acho que foi um dos fatores deter- minantes. Foi no momento da discus- são desse assunto que senti que havia uma chance real de ser indicado. Não sei como os outros responderam, mas tenho certeza de que o conselho perce- beu que havia uma oportunidade ali, que havia uma resposta clara e operacio- nalmente viável. Embora estivesse na lei, havia um certo desconforto da co- munidade científica, que até hoje per- siste um pouco, de achar que a FAPESP ia acabar perdendo seus recursos para as empresas. Mas o fato de eu ser tam- bém um pesquisador da área básica, com uma proposta dessa natureza, eli- minava qualquer percepção de conflito de interesses. Tinha outra questão que também polarizava o conselho - acho que era menos grave, mas estava pre- sente. Era sobre como deveria se dar o processo de avaliação quando entrásse- mos no financiamento da inovação tec- nológica. Em particular havia um ques- tionamento sobre nossas coordenações de área ("qual é o papel delas?") e se era uma forma de organização adequada para ter a melhor avaliação. E também nisso minha resposta foi bastante ope- racional porque propus analisar como é que era feito esse processo de avalia- ção dentro da National Science Foun- dation (NSF).

■ A avaliação deles é um pouco mais complicada do que a da FAPESP, não é? — Em certos aspectos a nossa é melhor porque na NSF eles têm um diretor de programa para cada área e subárea. Ou seja, têm muitos diretores de programa e acho que tomam as decisões de forma isolada. Nas nossas coordenações de área é como se tivéssemos um conselho gestor de programas. Isso permite uma discussão maior.

■ Houve mudança entre o sistema que existia e o sistema de assessoria e de coor- denações de áreas depois da sua entrada? — Não. Nós fizemos melhorias pon- tuais, aperfeiçoamos em muitos aspec- tos o sistema, mas a sistemática perma- neceu a mesma. Às vezes aumentamos o número de coordenadores de área, mudamos o perfil de cada uma das coor- denações. Acho que o papel dos assesso- res adjuntos da Diretoria Científica se diferenciou em relação ao papel que ti- nham anteriormente. Por exemplo: os adjuntos, no momento, têm um espaço de discussão maior com as coordena- ções de área. Anteriormente funciona- vam mais como uma instância superior e, atualmente, quando há uma discre- pância da coordenação de área com os adjuntos, existe uma discussão maior. Isso é bom porque permite que, às ve- zes, a riqueza da reflexão que foi feita dentro da coordenação possa ser com- partilhada com as instâncias posterio- res ao processo. Também modificamos muito os formulários para avaliação dos projetos apresentados aos assessores. Por exemplo: introduzimos esse conceito de conflito de interesses na avaliação. Exi- gimos do assessor que identifique se ele se enquadra nas circunstâncias de po- tencial conflito de interesses com o projeto que está analisando. Trabalhei na coordenação de área muitos anos e às vezes descobria, a posteriori, que ti- nha feito um erro na escolha do asses- sor porque havia um potencial conflito de interesses. Não era conhecido como tal, nós não sabíamos, o próprio asses- sor não sabia se ele iria considerar aqui- lo como impeditivo ou não. Formalizar isso foi um passo importante.

■ O senhor renovou todos os assessores? — Não. Alguns eu mantive, como o Luiz Henrique (Lopes dos Santos), em humanidades, e o Rogério Meneghini, em ciências biológicas. Os outros foram substituídos. Saíram Hugo Armelin, que virou pró-reitor de pesquisa da USP, e Fernando Galembek, da Unicamp. O Sylvio Ferraz Mello saiu e para a área de engenharia eu trouxe o Alcir Monti- celli (morto em agosto de 2001). Con- videi o Antônio Paiva para a área de saúde, o Coutinho para a de exatas (mas também preocupado com a ques- tão tecnológica) junto com o Luiz Nu- nes de Oliveira. Na verdade, Alcir, Cou-

tinho e Luiz Nunes cuidavam de exatas. O Luiz Henrique continuou em huma- nidades, mas antes tinha também o Franklin Leopoldo, que saiu. Mais tar- de eu trouxe a Paula Montero, no mo- mento em que o Luiz Henrique viajou para o exterior. Quando ele voltou, man- tive os dois. O Edgar Dutra Zanotto entrou mais tarde, quando o Alcir saiu para ir para o Conselho Superior. Mais recentemente saiu o Paiva e eu trouxe o Walter Colli, em 2002. Quando o Ro- gério também saiu veio o Luiz Eugênio de Moraes Mello, no mesmo período. Costumo brincar dizendo que eles for- mam a Incrível Armada de Brancaleo- ne da Diretoria Científica.

■ A vinda de Coutinho teve influência na criação do Programa de Parceria para Inovação Tecnológica (PITE)? — O conceito do PITE já estava presen- te nas conversas com ele. Havia um do- cumento sobre o assunto aqui na Direto- ria Científica que tinha sido elaborado anteriormente, mas ainda não havia sido colocado em prática. Estudamos o do- cumento e decidimos repensar aquilo. Era uma boa base de reflexão, mas falta- vam duas palavras mágicas. Tinha que ser financiamento a atividade de pesqui- sa, tinha que ter parceria com a univer- sidade - ou seja, tinha que ter um pes- quisador da universidade apresentando a proposta, além da contrapartida real. Esses foram os três ingredientes que via- bilizaram o PITE. Quem deu uma con- tribuição importante foi o Carmine Ta- ralli, diretor de tecnologia da Pirelli e um entusiasta desses programas de parceria. Fiquei muito contente quando ele viu o projeto e disse: "Essa é a fórmula corre- ta". Na realidade os projetos anteriores de parceria universidade-empresa não ti- nham esse compromisso da empresa com o risco. Essa contrapartida e a participa- ção no risco do projeto e nos custos, é claro, dão o grande testemunho do com- prometimento da empresa com o pro- cesso de transferência de conhecimento. O que havia antes disso eram declarações vagas de interesse, sem nenhum signifi- cado. Começamos a trabalhar no proje- to em 1994 e em 1995 o aprovamos. A FAPESP manteve claro que o que a ins- tituição financia na inovação tecnoló- gica é a atividade de pesquisa. Esse é o negócio da FAPESP. Essa abertura para a inovação tecnológica foi feita, mas com

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um rigor muito grande, porque isso é o que permite estabelecer um recorte da atuação da agência. Se você tira a pala- vra "pesquisa", passa a financiar tudo o que seja relevante para o desenvolvi- mento científico, tecnológico e univer- sitário, você não tem limite entre o que é e o que não é financiável.

■ Havia desconfiança da parte da empre- sa para com a universidade e vice-versa? — Sim, havia muita desconfiança, que continua, ainda que em escala menor. Muitas das coisas feitas aqui na Dire- toria Científica foram para tentar con- tribuir em uma mudança cultural. Tan- to do ponto de vista acadêmico, como dizer para o pesquisador que quer fazer tecnologia que ele precisa da empresa, quanto no campo empresarial, alertar a empresa sobre o grande potencial que existe para eles se desenvolverem, do ponto de vista tecnológico, numa rela- ção com a universidade. Tudo foi mui- to devagar. No primeiro ano foram oito projetos, muitos com problemas, por- que não havia essa cultura de apresen- tação de projetos dessa natureza. E as empresas relutavam muito em dar con- trapartida. Nós também tivemos que aprender. No começo não julgávamos adequado que fosse considerada con- trapartida qualquer forma de comple- mentação salarial que as empresas des- sem para os pesquisadores. Foi um purismo da nossa parte e depois revisa- mos isso. Não que fôssemos contra essa complementação, mas era uma questão de que isso não devia ser, digamos, o cerne da contrapartida da empresa. Atualmente estamos conscientes de que essa forma de contrapartida é reconhe- cida não só como legítima, mas tam- bém essencial para viabilizar o processo.

■ Veja se a coisa funciona assim: o pes- quisador vai desenvolver um projeto, di- gamos, um pigmento para tinta para a empresa. Ele faz uma parte do projeto na universidade, mas está junto com a empresa. E aí ele pode, como está de cer- ta maneira trabalhando para algo que vai beneficiar a empresa, além do salário da universidade, receber um pagamento extra enquanto estiver fazendo aquele projeto. — É, como um pró-labore. É um estímu- lo muito bom; nós sabemos muito bem como são os salários da universidade.

■ Mas isso pegou mal, na comunidade científica? — Não, não pegou mal não. Não hou- ve nenhuma reclamação nesse sentido. Agora, nesses projetos nós queríamos que ocorresse um ciclo virtuoso, em que houvesse geração de conhecimento - que fosse transferido para a empresa -, mas que a universidade se enriquecesse nesse processo. Não queríamos criar um espaço para meras consultorias. Ouvi um depoimento muito interes- sante de um grupo da Unicamp, justa- mente sobre pigmentos de tinta, da Serrana. No fim do projeto os pesqui- sadores me disseram: "Aprendemos boa química". Eles geraram um pigmen- to, transferiram o conhecimento para a empresa, a empresa pagou royalties por isso - o que ajuda a financiar o labora- tório - e foram taxativos em dizer que evoluíram com o projeto. Nesse caso, houve um ciclo virtuoso. Embora essas parcerias sejam importantes para a universidade e para a empresa, elas não resolvem nem o problema da universi- dade, de fontes alternativas de financia- mento, nem o problema das empresas,

digamos, de dar saltos de desenvolvi- mento tecnológico. Porque a universi- dade tem o seu próprio ritmo de traba- lho. O tempo acadêmico é diferente do tempo da empresa.

■ Quantos projetos foram financiados dentro do PITE? — Até 2004,87 projetos. Curiosamente, em vários momentos, o Coutinho acha- va que o programa iria terminar por- que havia hiatos de demanda. Mas de vez em quando vinha um lote. E aí co- meçaram a vir projetos em escala maior, empresas que começaram a buscar de forma mais sistemática essa parceria com a universidade, como a Embraer, a Rhodia e a Natura. É interessante que algumas dessas empresas, como a Natu- ra, não querem transferir para a univer- sidade o ônus de fazer inovação tecno- lógica. Eles sabem que essa relação com a universidade é enriquecedora para mantê-los informados com a fronteira do conhecimento na área deles.

■ Logo depois do PITE veio o PIPE, o Pro- grama de Inovação Tecnológica em Pe- quenas Empresas. — O PIPE veio como uma conseqüên- cia natural dessa reflexão. O programa foi pensado pela primeira vez quando o Alcir Monticelli entrou nesta sala com dois projetos da NSF que tinham sido enviados a ele para que desse um pare- cer. Isso porque ele era a principal refe- rência bibliográfica apresentada dentro desses projetos, que tinham sido apre- sentados à NSF dentro da linha do SBIR (Small Business Inovation Research), um programa americano. Quando vi- mos aquilo ficamos fascinados e desco- brimos que era objeto de uma lei apro- vada pelo Congresso americano, que obrigava todas as agências federais de fomento com orçamento superior a US$ 100 milhões - e a Fapesp estaria no caso - a ter um programa que inves- tisse cerca de 2,5% do seu orçamento nessa modalidade.

■ Foi a descoberta de um novo caminho. — Aquilo foi um novo mundo que se abriu. Era totalmente complementar ao PITE. Não tinha contrapartida - porque a contrapartida era um dos fa- tores limitantes, pequenas empresas não tinham condições de dar. O Alcir preparou a nossa versão, discutimos,

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aperfeiçoamos e lançamos em 1997, com o então governador Mário Covas aqui na FAPESP. Agora, havia dois ti- pos de objeção aqui dentro. A primei- ra era de natureza ideológica: pela pri- meira vez uma agência de fomento à pesquisa brasileira ia colocar dinhei- ro diretamente na empresa, no que se chama, na gíria, na área de investi- mento com retorno social ou de fundo perdido.

■ Como é que foram vencidas as resistên- cias no conselho? — Explicamos que esse era um progra- ma que é lei nos Estados Unidos e na França há programas similares. Essa resposta, digamos, que é até neolibe- ral, que o público não deve dar dinhei- ro para o privado, é do campeão do li- beralismo econômico - teoricamente - que são os Estados Unidos. Em 2002, houve um investimento de mais de US$ 2 bilhões no SBIR, uma coisa bru- tal. Essa objeção ideológica acaba tam- bém de ser superada no governo fede- ral, com a Finep adotando o PAPPE (Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas). É uma política de desenvol- vimento tecnológico. A pequena em- presa tem um papel importante nesse processo por causa desse caráter de fle- xibilidade, de agilidade... Bem, a outra objeção levantada no conselho da FA- PESP é de que esse era um programa só para país desenvolvido, que exigir da pe- quena empresa um projeto de pesquisa que redunde numa inovação tecnológi- ca de valor comercial e que ainda por ci- ma tenha uma equipe competente para executar é uma equação que teria como universo-solução só o conjunto vazio. As apostas eram que teríamos meia dú- zia de projetos apresentados. Qual não foi nossa surpresa quando recebemos 80 projetos no primeiro edital. Desses 80, 20 não tinham pesquisa, eram do tipo "me dá o dinheiro aí". Mas 60 fo- ram mandados para dois assessores, que analisavam pesquisa tecnológica, mas em ambiente acadêmico. E, para nossa surpresa, 30 projetos tiveram dois pareceres favoráveis ou pelo menos um francamente favorável e outro com res- salvas que não seriam excludentes a um apoio, nessa estratégia de fases. O PIPE é genial como concepção. Eu posso di- zer isso tranqüilamente porque nós co- piamos, não foi inventado aqui.

■ Dividir o projeto em fases parece ter sido uma boa solução. — A concepção em fases é sábia, por- que permite arriscar um pouco mais na fase 1, de estudo de viabilidade, com duração de seis meses, e depois ser mais rigoroso na fase 2, de execução do projeto. A fase 3 é a de produção - e aí já não é financiada pela FAPESP. Em 2004 conseguimos essa parceria com a Finep com 20 empresas para a fase 3, por meio do PAPPE. Acho que foi um ato de sabedoria da Finep en- tender que o projeto aqui em São Pau- lo teria que ter características diferentes das que seriam utilizadas em outros es- tados, porque neles não havia o PIPE. Em São Paulo o PAPPE já é o PIPE 3, que é engenharia de produto e as em- presas vão ser selecionadas com crité- rios com base em seu plano de negó- cios. É totalmente inovador. Outra coisa que também deu certo, sete anos de- pois, foi a parceria com o Sebrae e o Ins- tituto Empreender Endeavor, porque permitiu o PIPE Empreendedor. Foi um passo importante dentro do PIPE essa idéia de as empresas, que são mu- ito boas do ponto de vista tecnológico, mas muito carentes do ponto de vista de estratégia empresarial, terem um apoio de outra natureza. O PIPE Em- preendedor é um programa notável no sentido de propiciar a capacitação das empresas, uma imersão numa re- flexão bem prática de como ter suces- so como empresa.

■ Como se deu a reestruturação física nas universidades do estado com o Programa de Infra-Estrutura?. — O Infra-Estrutura começou em 1994. Reformamos bancadas que esta- vam totalmente sucateadas, assim co- mo bibliotecas, infra-estrutura de rede e telecomunicações, a parte de equi- pamentos novos, equipamentos mul- tiusuários... O sistema do Estado de São Paulo ficou muito bem equipado. O programa foi interessante porque, primeiro, fizemos um investimento emergencial pesado. Num segundo momento, passamos a entender esse problema da infra-estrutura no finan- ciamento da pesquisa, por medidas que tratassem de se antecipar à repeti- ção do problema. A partir daí criamos as reservas técnicas. A idéia é de garan- tir recursos - ao mesmo tempo que se

dá o apoio ao projeto de pesquisa - que viabilizem a implantação, opera- ção, manutenção dos equipamentos, coisas que tradicionalmente a FAPESP não financiava. A Fundação financiava o equipamento e dizia "virem-se para instalar, virem-se para manter". E sa- bemos muitc bem que, na realidade, não há sempre condições de fazer isso. Então passamos a ter esse investimen- to adicional. Logo, criamos condições para que o nosso investimento fosse mais fértil. Esse foi um conceito novo na história da FAPESP.

■ Como nasceu o Programa de Políticas Públicas? — Ele teve um precursor, que foi o pro- grama de Ensino Público. A preocupa- ção de fazer alguma coisa com ensino público começou muito cedo na ges- tão, quando fui provocado por algumas pessoas ligadas à questão do ensino de física no ensino médio: me pergunta- vam o que a FAPESP poderia fazer pelo ensino público. Aí nasceu essa idéia de fazer o programa de Ensino Público, que foi interessante porque começamos a ter essa experiência de como fazer pro- grama junto com a comunidade.

■ Quem formulou o programa? — Luiz Henrique teve uma participa- ção importante. A Maria Malta Campos, da Fundação Carlos Chagas, ajudou na discussão do programa e a Marília Spó- sito, que entrou depois, teve uma parti- cipação ativa na sua implantação.

■ E como se evoluiu daí para o Programa de Políticas Públicas? — O Programa de Apoio ao Ensino Público começou em 1996. Na verdade, a primeira pessoa que me falou de um projeto de políticas públicas foi Landi (Francisco Romeu Landi, então diretor presidente), depois de uma conversa com o secretário do Trabalho de Covas, Wal- ter Barelli. Barelli, disse-me Landi, que- ria fazer um programa sobre emprega- bilidade e em razão disso eu recebi um grupo da secretaria. Depois, quem con- versou muito com eles foi a Paula Mon- tero, pessoa-chave nesse processo, já em 1998. Eu achei que não tinha sentido lançarmos um programa apenas sobre empregabilidade, era muito restrito. Decidimos então ampliar e aí nasceu o Políticas Públicas.

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■ Quais os avanços que Programa Geno- ma trouxe? — Temos que cotejar objetivos com re- sultados, para fazer a avaliação. Os ob- jetivos eram: primeiro, fazer ciência na fronteira do conhecimento. Segundo, formar recursos humanos altamente qualificados, em grande escala e em curto intervalo de tempo. Terceiro, mo- bilizar a comunidade científica do Esta- do de São Paulo para o estudo de pro- blemas relevantes em termos socioeco- nômicos. Ora, todos esses objetivos fo- ram alcançandos, é indubitável. Do ponto de vista científico, o volume, a qualidade e o impacto das publicações decorrentes do programa dão o teste- munho de sua excelência. Além disso, temos mais de 60 laboratórios de pes- quisa que trabalham com a técnica de genômica e de seqüenciamento gené- tico no estado. Virou rotina. Todos se beneficiaram da incorporação dessas técnicas ao seu arsenal de ferramentas metodológicas. Parte dos recursos hu- manos formados se espraiou depois pa- ra a iniciativa privada, com a criação de pelo menos três empresas. Isso mostra que formar gente para depois gerar inovação tecnológica em empresa é um mecanismo usado no mundo inteiro que também funciona aqui. Por fim, a comunidade científica do Estado de São Paulo se preocupou em estudar os pro- blemas socioeconômicos. Se olharmos todos os projetos genoma que fizemos, veremos que eles têm relevância para a agricultura, para a pecuária, para a saú- de pública...

■ O Programa Genoma então demons- trou o vigor da capacidade de pesquisa quando mobilizada em torno de objeti- vos claros e definidos. — Sem dúvida. Os objetivos que eu mencionei estão claramente enuncia- dos na proposta submetida ao Conse- lho Superior em 1997. Agora tivemos outros efeitos que, naquele momento, não se imaginava que fossem ocorrer. A visibilidade que o projeto adquiriu na mídia nacional e internacional é algo sem precedentes na história científica do país. Isso foi muito bom porque deixou claro que temos competência para fazer coisas muito ousadas, que conseguem chegar na capa da Nature. Muita gente, quando conheceu o proje- to, achava que ia dar errado. Isso afãs-

Acho muito importante citar os pesquisadores que trabalharam como adjuntos na Diretoria Científica, cuja colaboração foi fundamental nesta minha passagem pela FAPESR São eles: Rogério Meneghini, Aicir Monticelli {in memoriam), Antônio Cechelli de Mattos Paiva, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Luiz Nunes de Oliveira, Paula Montero, Edgar Dutra Zanotto, Walter Colli, Luiz Eugênio de Moraes Mello e Luiz Henrique Lopes dos Santos

tou alguns setores da comunidade do projeto, por causa do risco de fracasso, o que traria conseqüências na imagem dos participantes. Esse Programa Ge- noma rompeu de forma definitiva a barreira que separava o sistema de pes- quisa do Estado de São Paulo da socie- dade por meio da imprensa.

■ O senhor está deixando a FAPESP e se preparando para trabalhar na iniciativa privada. Qual é seu primeiro interesse nes- se setor? — Essa empresa que criei, a PP&D Tec- nologia, vai buscar mobilizar investido- res para o desenvolvimento de inovação tecnológica decorrente da vitalidade do nosso sistema de pesquisa. Este é o prin- cipal foco.

■ Qual é a diferença entre uma empresa dessa e um fundo de capital de risco como a Votorantim Ventures, por exemplo?

— A atuação da PP&D é complemen- tar. É diferente da empresa de capital de risco. Nós vamos identificar e oferecer oportunidades ao investidor. A PP&D pretende usar a minha experiência, e a de toda uma equipe aqui da FAPESP, o entendimento de todo o processo de inovação, as suas dificuldades e as oportunidades.

■ O senhor vai continuar dando aulas? — Vou sim, no Instituto de Física da USP, embora eu tenha me aposentado justamente no momento em que colo- quei meu cargo à disposição na FAPESP.

■ Há pessoas que gostaria de citar, impor- tantes no seu percurso aqui na FAPESP? — Há alguns que não posso deixar de mencionar. Na parte de genoma, tenho de agradecer ao Fernando Reinach, em especial, e ao Andrew Simpson. O Joly (Carlos Alfredo Joly) e o Vanderlei Ca- nhos foram essenciais para o Biota. O Brito (Carlos Henrique de Brito Cruz) teve papel central em todas as nossas iniciativas da FAPESP, no período, por- que era presidente da Fundação e do Conselho Superior na época. Outro in- tegrante que deu um apoio importante no conselho foi o Jobson (José Jobson de Andrade Arruda), que ficou por dez anos como conselheiro e acompanhou toda minha trajetória na Diretoria Ci- entífica. Essa parceria com o conselho é fundamental porque muitas coisas ou- sadas foram feitas, que exigiam respaldo. E, mais do que isso, pediam estímulo.

■ Qual é a sua visão da FAPESP pensan- do no âmbito das instituições brasileiras? — A FAPESP tem uma responsabili- dade muito grande porque é uma refe- rência. Os nossos programas acabam virando paradigmas. Se tomarmos os projetos temáticos, eles se tornaram, no âmbito federal, o Pronex. Se tomarmos os nossos Cepids, eles viraram, no âm- bito federal, os Institutos do Milênio. O genoma paulista inspirou um grande projeto genoma nacional. O nosso PIPE foi a referência para o PAPPE, da Finep. O fato de ser uma agência re- gional, com essas características de au- tonomia e com garantia de recursos, confere à instituição um papel muito importante. Permite explorar novos mo- delos, ter uma ousadia maior. A FAPESP vai ter importância crescente. •

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I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

■ Um novo debate sobre patentes

A multinacional GlaxoSmith- Kline (GSK), maior compa- nhia farmacêutica da Europa, quer que o governo do Reino Unido encampe sua idéia de promover uma mudança glo- bal nas normas sobre paten- tes - aproveitando a ascensão do primeiro-ministro britâ- nico, Tony Blair, à presidência do G-8 (o grupo dos sete paí- ses mais industrializados do planeta mais a Rússia). A proposta da GSK é criar um sistema compensatório, pelo qual o desenvolvimento de remédios contra doenças do Terceiro Mundo seja premia- do com a extensão das paten- tes de medicamentos de in- teresse do Primeiro Mundo. Em resumo: drogas contra o câncer custariam caro por mais tempo e esse dinheiro subsidiaria a pesquisa de remédios contra moléstias tropicais. Michael Bailey, con- selheiro da organização não- governamental Oxfam, con- denou a proposta da GSK e defendeu a manutenção das normas sobre patentes que, segundo ele, guardam con-

0 virtual une o Sudeste Asiático

A Associação dos Países do Sudeste Asiático (Asean) saiu em busca de dinhei- ro privado para fortalecer o recém-criado Instituto Virtual de Ciência e Tecno- logia. Trata-se de um cen- tro voltado para fortalecer a formação de pesquisado- res, que vai integrar pela internet universidades dos países-membros da Asean (Brunei, Camboja, Indo- nésia, Laos, Malásia, Mian-

mar, Cingapura, Tailândia, Filipinas e Vietnã). A idéia é promover cursos on-line, em que estudantes e pro- fessores reúnam-se em clas- ses virtuais e interajam por meio de softwares de voz e de vídeo. O instituto foi fundado em maio com ver- bas da Asean e da ONU, mas ainda engatinha. Em reunião realizada em no- vembro, ministros dos paí- ses-membros decidiram

alocar mais recursos no pro- jeto. Com isso, os primei- ros cursos serão ministra- dos neste mês, abordando temas como bioinformáti- ca, ecoturismo e inovação tecnológica. "É um projeto excitante, mas ainda preci- sa encontrar meios de se tornar sustentável", diz o ministro da Ciência da In- donésia, Kusmayanto Ka- diman. (SáDev.Net, 6 de dezembro) •

quistas importantes. Em 2001, a Organização Mundial do Comércio (OMC) autorizou países a quebrar temporaria- mente patentes em situações de emergência. A decisão da

OMC encerrou uma guerra entre laboratórios e governos que, num de seus rounãs, opôs o Brasil e multinacionais co- mo a Glaxo. (The Independent, 29 de novembro) •

• • ^ .

Laboratórios

&k~. 1K* ..jtjfi ^m quase nao investem em remédios contra

*j;M ' doenças

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■ Na cadeia, acusado de traição

O físico russo Valentin Dani- lov, de 53 anos, foi sentencia- do em novembro a 14 anos de prisão, acusado de passar segredos tecnológicos para a China. Em 2001, o FSB (Ser- viço Federal de Segurança), órgão de inteligência que su- cedeu a extinta KGB, acusou- o de vender o projeto de um equipamento capaz de medir os efeitos de ondas eletromag- néticas em satélites. O apa- relho, diz a FSB, pode ajudar a China a desenvolver armas ameaçadoras para a Rússia. Ex-membro da Academia Russa de Ciências, afastado do comando do Instituto de

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Termodinâmica de Krasno- yarsk, Danilov tornou-se um símbolo da ofensiva da FSB contra pesquisadores e eco- logistas acusados de traição. É certo que a decadência do país na década passada de- sarticulou a infra-estrutura científica, abrindo espaço pa- ra a venda de segredos. Mas, para entidades de defesa dos direitos humanos, Danilov é um bode expiatório. Ele sem- pre admitiu que vendeu a tec- nologia, mas argumenta que não se tratava de segredo. Em 1992, sua pesquisa chegou a ser publicada em jornais cien- tíficos. Ele foi absolvido em primeira instância, mas pro- motores recorreram e, agora, ele foi condenado. (Nature, 2 de dezembro) •

■ Veredas do sertão africano

Uma parceria entre a Agên- cia Espacial Européia (ESA) e a organização não-governa- mental Médicos sem Fron- teiras produz mapas talhados para orientar voluntários de entidades humanitárias que atuam em regiões paupérri- mas ou conflagradas. Trata-se do projeto Human (Medicai Humanitarian Disaster Map- ping Service), que desde 2003 fornece sob encomenda ma- pas construídos com base em imagens de satélite. A novi- dade é que as próprias orga- nizações não-governamentais agora podem produzir seus mapas, utilizando um banco de dados on-line da ESA. A princípio, a experiência se li- mita ao território africano, mas a idéia é estender a co- bertura para a Ásia e as Amé- ricas Central e do Sul. Além das funções convencionais de navegação, como ampliação em detalhes, o usuário pode fazer buscas e identificar es-

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tradas, rios, cidades e aeropor- tos. Também pode personali- zar o mapa, incluindo logo- tipos, anotações e pontos de interesse. Por um período de teste, o banco de dados oferece gratuitamente as informações para entidades humanitárias. No futuro, os custos deverão ser divididos entre todos os clientes do serviço. {ESA News, 30 de novembro) •

■ Encontro nas águas

Vem aí a Escola de Oceano- grafia da Europa e da Amé- rica Latina, uma iniciativa de universidades dos dois conti- nentes. A coordenação caberá à Universidade de Concep- ción, no Chile. "Vamos pro- mover cooperação internacio- nal tanto em educação como

em pesquisa", diz Tarsicio An- tezana, professor da universi- dade chilena. Fazem parte do projeto universidades da Cos- ta Rica, Colômbia, Peru, Equa- dor, Chile. Alemanha, Espa- nha, Suécia e Reino Unido. Enquanto os sócios europeus concentrarão suas investiga- ções na Antártida e nas mu- danças climáticas, os latino- americanos investirão em temas como a pesca sustentá- vel, a poluição marinha e a corrente de Humboldt, que traz nutrientes de águas pro- fundas. O esforço internacio- nal também é impulsionado por razões econômicas. "Ire- mos nos beneficiar da estru- tura dos europeus, que têm dezenas de navios oceanográ- ficos, enquanto nós, aqui no Chile, só dispomos de dois", afirma Antezana. (SciDev.Net, 22 de novembro) •

Um pioneiro se aposenta Aos 74 anos de idade e 42 de carreira, o astronauta norte-americano John Young anunciou sua apo- sentadoria, encerrando uma trajetória que se con- funde com a aventura da conquista espacial. Mem- bro da segunda turma de astronautas formados pela Nasa, o ex-piloto e enge- nheiro aeronáutico encon- trou sua vocação ao ouvir o discurso do então presi- dente John Kennedy, pro- pondo a ida à Lua e o re- torno em segurança para a Terra. "Achei uma ótima idéia aquela parte de voltar em segurança para a Terra", disse Young. Tripulou as missões Gemini 3 e 10, participou de duas missões Apollo - numa delas, em

Young nos anos 1960 e hoje: 835 horas no espaço

1972, passou três noites na Lua. Em 1981 comandou o vôo inaugural dos ônibus espaciais, a bordo do Co- lumbia, que voltaria a pilo- tar em 1983. Ao todo, fo- ram 835 horas no espaço. Depois seguiu carreira exe- cutiva na Nasa. Sua apo-

sentadoria ganhou um ar nostálgico num momento em que o programa espa- cial está suspenso, em virtu- de da explosão do Colum- bia em 2003, e centenas de astronautas treinados pa- cientemente aguardar vez de ir ao espaço.

PES0UISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 19

Page 20: O mal-estar da civilização

ESTRATéGIAS MUNDO

Operação resgate

A índia vai ressuscitar uma antiga estratégia para conter a fuga de cérebros e fortalecer a pesquisa nas universidades. Trata-se da reedição de um programa, criado em 1984 pela então primeira-ministra Indira Gandhi e desativado em 1992, cujo objetivo é atrair pa- ra o país jovens pós-doutores indianos em atividade no ex- terior. Eles terão a chance de escolher as universidades e laboratórios em que desejam trabalhar. E receberão salários equivalentes aos de docentes veteranos. Perto de cem cien- tistas de diversas disciplinas foram repatriados na expe- riência dos anos 1980, inter- rompida quando o partido de Indira perdeu a maioria no Parlamento. A iniciativa foi boicotada pelo governo seguinte. Com o fim do pro- grama, boa parte dos cientis- tas recrutados perdeu regalias e vários acabaram demiti- dos. Processos por indeniza- ções e recondução arrastam- se na Justiça. Daksh Lohiya, um dos repatriados demiti- dos, faz um alerta: "Será difí- cil convencer pesquisadores

a voltar sem que antes se faça justiça aos cientistas que fica- ram à míngua". (SciDev.Net, 29 de novembro) •

■ Impulso para a agricultura no golfo

O Catar lançou duas iniciati- vas para aumentar a coopera- ção com pesquisadores de outras cinco nações do gol- fo Pérsico: Bahrain, Kuwait, Oman, Arábia Saudita, Emi- rados Árabes. Um dos proje- tos é a Rede de Pesquisa Agrí- cola do Golfo, um centro de informações on-line que vai divulgar dados sobre pes- quisas e estratégias levadas a cabo nos países. Os pesquisa- dores poderão disponibilizar a íntegra de seus trabalhos no site e consultar a produção dos colegas. O segundo pro- jeto é o Centro Agro-Biotec- nológico do Catar, que vai criar um banco de variedades genéticas de plantas da região e promover pesquisas sobre resistência de cultivares à ter- ra seca, alta salinidade e tem- peraturas elevadas. (SciDev. Net, 24 de novembro) •

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico

para [email protected]

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http://www.laciencia.org 0 portal vinculado ao Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências de Saúde (Bireme) reúne notícias de sites científicos selecionados.

http://www.ib.usp.br/limnologia/index/ Página sobre limnologia, o estudo científico das extensões de água doce, coordenado por um grupo de pesquisa do Instituto de Biociências da USP.

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http://gaiileo.rice.edu/ 0 site reúne dados sobre a vida e as descobertas do matemático, astrônomo e físico italiano Galileo Galilei (1564-1642), silenciado pela Inquisição.

20 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

Page 21: O mal-estar da civilização

ESTRATéGIAS BRASIL

Competência para testar os satélites No mais tardar em outubro de 2006 entrará em órbita o novo Satélite Sino-Brasilei- ro de Recursos Terrestres (CBERS), fruto de uma par- ceria de 16 anos entre o Bra- sil e a China para realizar monitoramentos ambien- tais, urbanos e agrícolas. Uma novidade no CBERS 2B (os precursores são o CBERS 1 e o CBERS 2) é que ele será montado e tes- tado integralmente no Bra- sil. O anterior, que entrou em órbita em 2003, teve de realizar testes acústicos na China. E a falta de uma gran- de câmara para ensaios tér- micos fez com que o satélite tivesse de ser desmontado e testado em dois pedaços, procedimento não ideal. O problema dos testes acústi- cos foi resolvido em 2002, quando o Laboratório de Integração e Testes do Insti-

Laboratório de Integração e Testes do Inpe: reequipado para testar o CBERS 2B

tuto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos, passou a contar com uma câmara re- verberante. E, até 2006, de- verá dispor de uma grande câmara para ensaios térmi- cos no vácuo. O satélite co- meçará a ser construído no

segundo semestre de 2005. Depois será levado ao Cen- tro de Lançamento TSLC, na China. A construção do CBERS 2B não estava pre- vista no cronograma origi- nal. A idéia era substituir o CBERS 2, que ainda tem dois anos de vida útil, pelo

CBERS 3, de tecnologia mais avançada. "Como o CBERS 3 só virá em 2008, optou-se por montar um satélite si- milar aos anteriores para dar continuidade ao programa", diz Carlos Lino, gerente de montagem, integração e tes- tes do CBERS. •

■ Macari vence eleição da Unesp

Marcos Macari, professor da Faculdade de Ciências Agrá- rias e Veterinárias (FCAV), campus de Jaboticabal, e Her- man Voorwald, da Faculdade de Engenharia, campus de Guaratinguetá, foram os preferidos da comunidade universitária para ocupar os cargos de reitor e vice-reitor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (Unesp), no mandato de 2005 a 2008. A chapa vencedora teve 37,8% dos votos na elei- ção realizada em novembro,

ante 28,7% da chapa Amilton Ferreira (Instituto de Biociên- cias, campus de Rio Claro) e Neivo Zorzetto (Faculdade de Filosofia e Ciências de Marí- lia). A lista tríplice encabeça- da por Macari foi enviada no dia 15 de dezembro ao gover- nador de São Paulo, Geraldo Alckmin, a quem cabe fazer a nomeação. Professor titular do Departamento de Morfo- logia e Fisiologia Animal da FCAV, Macari, de 54 anos, era pró-reitor de pós-graduação e pesquisa da Unesp. Em no- vembro, foi nomeado vice- presidente do Conselho Su- perior da FAPESP. Graduado

em Ciências Biológicas Mo- dalidade Médica pela Univer- sidade de São Paulo (USP) e doutor em fisiologia humana

Macari: 37,8% dos votos

pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, também da USP, fez pós-doutorado no Agricultural Research Council de Cambridge, Inglaterra, na Universidade de Yamagushi, Japão, e na Universidade de Lavai, em Quebec, Canadá. A Unesp, universidade estadual com maior presença em cida- des paulistas, 23 ao todo, for- ma cerca de 4 mil estudantes todos os anos. Reúne 25.145 alunos de graduação e 9.621 alunos de pós. Seus 3.303 professores ministram um to- tal de 166 cursos de gradua- ção, 102 de mestrado e 88 de doutorado. •

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 21

Page 22: O mal-estar da civilização

■ Provocações intelectuais

A Editora Unesp está lançan- do a Coleção Paradidáticos, com livros que abordam te- mas científicos e culturais, como reforma agrária, nano- tecnologia, biodiversidade, energias de fissão e de fusão, planejamento urbano e bio- logia evolucionária, entre ou- tros. A coleção é voltada a alunos do ensino médio, pro- fessores do ensino funda- mental e ao público leigo em geral. Os assuntos foram es- colhidos com base nos pro- gramas de ensino previstos no Ministério da Educação. A intenção é atingir to- das as áreas do conheci- mento. Numa primeira etapa, até setembro de 2005, serão publicados 49 títulos, escritos por profes- sores de algumas das prin- cipais universidades e insti- tuto de pesquisa do país. Os livros têm pouco mais de 100 páginas, oferecem sugestões de leitura e um glossário com os conceitos envolvidos na obra. Também propõem "questões para reflexão e de- bate" para provocar intelec-

0 expresso da arqueologia Paulo Zanettini, dono de uma empresa de pesquisas arqueológicas que trabalha para governos e prefeituras, encontrou uma forma inu- sitada de envolver em seus projetos as comunidades dos locais onde trabalha. Um ônibus, que faz as vezes de museu e centro de expo- sições ambulante, acompa- nha os arqueólogos, divul- ga os achados e realiza atividades educativas. Nos últimos seis meses, o Ar- queobus, como o ônibus é chamado, percorreu 15 mil quilômetros e aportou em quatro lugares: Campinas, no interior paulista, Vila Bela da Santíssima Trinda- de, no Mato Grosso, Alto Horizonte, em Goiás - cida- des em que a empresa rea- liza projetos de resgate do patrimônio arqueológico - e, por fim, Brasília, onde foi apresentado para auto-

ridades e a população. No périplo, 75 mil pessoas visi- taram o ônibus. O veículo dispõe de computadores dis- poníveis para a realização de cursos gratuitos. Tam- bém é usado como suporte para escavações em lugares distantes - aliás, sua função

0 ônibus (ao lado) e seu público (acima): divulgação científica

original. "O Arqueobus nas- ceu da idéia de disponibili- zar tecnologia às equipes, mas logo ganhou uma outra dimensão", diz Paulo Za- nettini. Em 2005 há viagens programadas para o Mato Grosso e a região do Arraial de Canudos, na Bahia. •

tualmente o leitor. As seis primeiras obras já estão dis- poníveis: A persistência dos deuses: religião, cultura e na- tureza, A luta pela terra, Edu-

Livros da coleção:

público jovem

cação e letramento, Imprensa escrita e telejornal, O verbal e o não verbal e Planejamento urbano e ativismos sociais. Custam R$ 15 cada um E po- dem ser comprados na Edi- tora Unesp (http://www. edi- toraunesp.com.br) •

■ Premiado na Itália o reitor da USP

O reitor da Universi- dade de São Paulo, o professor de geologia Adolpho José Melfi, foi agraciado com o Prêmio da Academia de Ciências do Terceiro Mundo, ca- tegoria Ciências da Terra, por suas contribuições em campos do conhecimento

como o estudo de solos tro- picais e a geoquímica da su- perfície. O anúncio foi feito em Trieste, na Itália, no dia 23 de novembro, na reunião anual da academia. Também foi agraciado, na categoria Bio- logia, o médico Jorge Kalil, diretor da Faculdade de Me- dicina da USP e do Labora- tório de Imunologia do Ins- tituto do Coração. Ao todo foram três os premiados na América Latina. Além de Melfi e Kalil, o argentino Mi- guel Angel Blesa, da Universi- dade Nacional General San Martin, foi agraciado na cate- goria Química. Os prêmios serão entregues na próxima reunião da academia, no final de 2005. .

22 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

Page 23: O mal-estar da civilização

■ Pólo aerospacial de empresas

Foi lançada no dia 31 de no- vembro a Incubadora Aeroes- pacial (IncubAero), pólo de micros e pequenas empresas de base tecnológica em São José dos Campos, Vale do Pa- raíba, vinculado ao Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), o Centro Técnico Aero- espacial (CTA) e a Fundação Casimiro Montenegro Filho, ligada ao ITA. Com um espa- ço de 900 metros quadrados, poderá abrigar, numa pri- meira etapa, até dez empre- sas de áreas consideradas prioritárias, como instru- mentação, nanotecnologia

aeroespacial, eletrônica, la- ser, materiais especiais, mecâ- nica/mecatrônica, meio am- biente e telecomunicações. O objetivo é aproveitar o po- tencial do conhecimento aca- dêmico gerado pelo ITA para a formação de novos empre- endedores em áreas de alta tecnologia. A idéia é ambicio- sa. O modelo em que a incu- badora se inspira é o da Nasa, a agência espacial norte-ame- ricana, cujos fornecedores são, na maioria (80%), pequenos empresários. As inscrições de empresas interessadas para participar do projeto foram abertas no dia 6 de dezembro. Está definido que, após o pe- ríodo de incubação, as em-

presas receberão incentivos da prefeitura de São José dos Campos para permanecer na cidade. •

■ Centenário de uma revolução

Os trabalhos de Albert Eins- tein no prolífico ano de 1905 e suas conseqüências para a ciência dos séculos 20 e 21 serão o mote do Convite à Física 2005, programa de co- lóquios promovido pelo De- partamento de Física Mate- mática do Instituto de Física da Universidade de São Pau- lo. Os colóquios são abertos ao público em geral, mas vol- tados aos estudantes de gra-

duação da USP em particular. A meta é apresentar a física e suas aplicações em linguagem acessível. A programação co- meça no dia 9 de março, com o colóquio "Einstein 100", do professor Moysés Nussenz- veig, da Universidade Fede- ral do Rio de Janeiro, e segue até 30 de novembro, com "Um sonho de Einstein: a unificação das leis da física", do professor Victor Rivelles, do Instituto de Física. Os co- lóquios serão realizados às quartas-feiras, às 18 horas, no Auditório Abrahão de Mo- raes, no Instituto de Física. A entrada é livre e não é ne- cessário se inscrever previa- mente. •

Governador nomeia Engler; Brentani toma posse O governador Geraldo Al- ckmin nomeou Joaquim José de Camargo Engler para ser diretor administra- tivo do Conselho Técnico- Administrativo da FAPESP no período de 2005 a 2008. Será o quinto mandato con- secutivo de Engler à frente da diretoria. Engenheiro agrônomo formado pela Escola Superior de Agricul- tura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), na qual é pro- fessor titular, Engler era o primeiro nome da lista trí- plice elaborada pelo Con- selho Superior da Fundação,

Engler: novo mandato

no dia 8 de dezembro, e en- caminhada ao governador. O diretor administrativo da FAPESP é doutor em agro- nomia pela Esalq, Master of

Brentani: empossado

Science (MS) e Doctor of Philosophy (Ph.D.) em Eco- nomia Agrícola pela The Ohio State University, nos EUA. No dia 16 de dezem-

bro tomou posse o novo diretor-presidente do Con- selho Técnico-Admistrativo (CTA) da FAPESP, o médi- co Ricardo Renzo Brentani. Professor titular da Facul- dade de Medicina da USP, Brentani assumiu o cargo que estava vago desde o fa- lecimento de Francisco Ro- meu Landi, em abril. "É uma felicidade muito grande passar a integrar a família da FAPESP. Espero corres- ponder à confiança que foi em mim depositada", disse Brentani, após assinar o contrato correspondente ao mandato de três anos. •

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Page 24: O mal-estar da civilização

POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

BIOTECNOLOGIA

Sinais de

vigor Acordo com Instituto Pasteur e artigo em revista internacional evidenciam os avanços brasileiros

FABRíCIO MARQUES

Page 25: O mal-estar da civilização

A competência que o Brasil acumu- ã^L lou em biotecnologia aplicada

ÉmJL à saúde pôde ser vislumbrada ã M em dois acontecimentos re-

^L M> centes e sem aparente liga- ção. Um deles foi a assinatura de um acor- do entre o Instituto Pasteur, de Paris, e a FAPESP, por meio do qual um grupo de pesquisadores brasileiros vai participar do esforço internacional para seqüenciar o genoma do mosquito Aedes aegypti, vetor de moléstias como a dengue e a febre amarela. Ao grupo brasileiro, encabeçado por Sérgio Verjovski-Almeida, do Institu- to de Química da Universidade de São Paulo, caberá a tarefa de identificar frag- mentos de genes ativos do mosquito, cha- mados tecnicamente de ESTs (etiquetas de seqüência expressa). Esses pedaços de ge- nes, que carregam a receita a ser usada pe- las células para fabricar suas proteínas, podem ser de grande utilidade para o de-

senvolvimento de formas de prevenção das doenças transmitidas pelo Aedes ae- gypti. "Ainda é raro o Brasil ser convocado a participar de uma iniciativa como essa", diz Verjovski, que em 2002 liderou um es- forço semelhante para mapear os fragmen- tos de genes ativos do Schistosoma manso- ni, parasita causador da esquistossomose. O convite ao grupo brasileiro é impor- tante porque reconhece a contribuição ao mapeamento do Schistosoma e parte de uma instituição, fundada na França em 1887, que é referência planetária em pes- quisa de saúde.

A segunda boa notícia foi um artigo de cinco páginas a respeito do Brasil, publi- cado num suplemento especial da revis- ta Nature Biotechnology sobre sete países em desenvolvimento (África do Sul, Bra- sil, China, Coréia do Sul, Cuba, Egito e índia) que vêm obtendo avanços na bio- tecnologia aplicada à saúde. A inclusão do

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 25

Page 26: O mal-estar da civilização

Precursor do salto

O artigo sobre os avanços da bio- tecnologia no Brasil, publicado na Nature Biotechnology, resgatou a con- tribuição do pesquisador e empre- sário Marcos Luiz dos Mares Guia (1935-2002). Professor da Universida- de Federal de Minas Gerais (UFMG), ele criou no final dos anos 1960 a Bio- brás, fábrica de enzimas na cidade de Montes Claros, norte do estado, er- guida com apoio financeiro da Sude- ne. O tino para os negócios surgira dois anos antes. Em parceria com o irmão, o atual ministro do Turismo, Walfrido dos Mares Guia, o pesquisa- dor criou em 1966 o curso pré-vesti- bular Pitágoras, em Belo Horizonte. A Biobrás foi crescendo graças à inte- gração com a universidade e o apro- veitamento de estudantes de pós-gra- duação. Nos anos 1980 começou a

roduzir insulina por meio de um

acordo de trans- ferência tecnoló- gica com a mul- tinacional Lilly. Quando o acordo foi rompido, Ma- res Guia saiu em busca de uma no- va tecnologia de produção, que cul- minou com a obtenção de uma das quatro patentes do mundo de insuli- na humana recombinante. "Em 1990, quando transformamos a insulina de porco em humana por via química, ganhamos o prêmio IBM de Desen- volvimento Tecnológico", lembrou o cientista e empresário em depoimen- to registrado pelo site Galeria dos In- ventores Brasileiros (http://inventa brasilnet.t5.com.br) "Conseguimos desenvolver a tecnologia por via enzi- mática com muita eficiência e a par-

Mares Guia: insulina recombinante

.... nnante.

tir daí fazer < tica recombii Quem atuou foi a equipe da Biobrás, eu fui o general.' Entre 1991 e 1993, Mares Guia presi- diu o Conselho

Nacional do Desenvolvimento Ci- entífico e Tecnológico (CNPq). De- pois mudou-se para Miami para cui- dar dos negócios internacionais da empresa, que, em 2001, acabou sen- do vendida para o grupo dinamar- quês Novo Nordisk. Até o fim da vida manteve o vínculo com a academia, como chefe do Laboratório de Enzi- mologia e Físico-Química de Proteí- nas da UFMG. Mares Guia morreu em agosto de 2002 em Belo Horizon- te, aos 67 anos, em conseqüência de complicações no pâncreas.

Brasil nesse time não chega a ser uma novidade. Em meados da 2002, um re- latório da Organização Mundial da Saúde sobre os benefícios da pesquisa genética na saúde pública já apontava a contribuição de quatro países (Cuba, índia, China e Brasil) como exceções à supremacia do Primeiro Mundo. O su- plemento da Nature Biotechnology foi adiante e deu nome aos bois.

Destacou, entre outros, o sucesso na índia na pro- dução de remédios bara- tos, a proeza cubana de desenvolver uma vacina

contra meningite B, a capacidade do Egito de produzir insulina recombi- nante e o êxito da Coréia de Sul na transferência de tecnologia para o setor privado. África do Sul e Brasil chama- ram a atenção também por publicar os resultados de suas pesquisas em revistas científicas de grande impacto, compa- rados a outros países do estudo. Algu- mas contradições foram identificadas. No Brasil, o acesso da população pobre a medicamentos é relativamente baixo,

ao contrário do que ocorre na China, no Egito, na África do Sul, em Cuba e na Coréia do Sul.

O artigo sobre o Brasil foi escrito por um grupo de pesquisadores do Chile e do Canadá que entrevistou 33 pessoas no Brasil ao longo dos últimos três anos. O texto faz um inventário das contribuições a partir dos anos 1970, quando o Conselho Nacional de De- senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançou programas pioneiros em biotecnologia, até a recente criação de um banco de DNA de espécies ameaça- das no Jardim Botânico do Rio de Ja- neiro. Entre um feito e outro são re- lembrados êxitos de empresas como a mineira Biobrás, que nos anos 1990 passou a produzir insulina humana re- combinante, e a FK Biotecnologia, de Porto Alegre, na área de imunodiag- nóstico. Ou a excelência na fabrica- ção de vacinas colecionadas por ins- tituições públicas, como o Instituto Butantan, em São Paulo, e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Ja- neiro. O artigo destaca, apesar das mu- danças de governo, o investimento con-

sistente em biotecnologia, mas pondera que, embora tenha se traduzido num notável aumento da publicação de arti- gos científicos, o esforço não se mate- rializou numa quantidade equivalente de patentes.

Pioneiros - Nenhum dos avanços, afir- ma o texto da Nature Biotechnology, foi tão notável no Brasil quanto o seqüen- ciamento da bactéria Xylella fastidiosa, um programa coordenado pela FA- PESP. "Atuando como plataforma de lançamento, essa iniciativa pública ins- tilou a confiança nacional e trouxe re- conhecimento internacional à compe- tência da genômica brasileira. Mais importante, está catalisando a pesquisa pós-genômica em males como a doen- ça de Chagas e o câncer, com vacinas e células-tronco", diz o texto. Nos pará- grafos finais, o artigo faz referência a dois pioneiros que, segundo os entre- vistados, tiveram papel fundamental no desenvolvimento do setor. Um deles é Marcos Luiz dos Mares Guia (1935- 2002), professor da Universidade Fe- deral de Minas Gerais e fundador, nos

26 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

Page 27: O mal-estar da civilização

anos 1990, da Biobrás (leia quadro). O outro é o diretor científico da FAPESP, José Fernando Perez, pela coor- denação de esforços no pro- jeto da Xylella fastidiosa. "Estamos num momento de grande ebulição da bio- tecnologia e a musculatura brasileira nesse campo não pode ser considerada episó- dica", afirma Perez. "O papel da FAPESP foi central e a instituição sempre será re- conhecida como grande ca- talisadora."

E nesse ponto que o artigo da Na- ture e o acordo FAPESP-Insti- tutoPasteur con-

vergem e se misturam. Para mapear o genoma da Xylel- la fastidiosa, a FAPESP or- ganizou a rede ONSA, na sigla em inglês, consórcio virtual de laboratórios ge- nômicos do Estado de São Paulo formado inicialmente por 30 instituições. Foi no âmbito desse consórcio que, nos últimos anos, diversos programas foram deflagrados, entre eles a identificação dos fragmentos de genes expressos do Schistosoma manso- ni, sob a liderança de Sérgio Verjovski- Almeida. O grupo gerou 163 mil se- qüências parciais de genes ativos nos seis principais estágios do ciclo de vida do parasita da esquistossomose, desde as formas que vivem livremente na água doce até as que habitam seu hos- pedeiro intermediário, o caramujo, e as que infestam o homem. Antes da publi- cação dos resultados da rede ONSA, havia só 16 mil fragmentos de genes, ou etiquetas de seqüência expressa (ESTs), do verme da esquistossomose nas bases públicas de dados, 75% delas derivadas do estágio adulto do parasita. "Antes eram conhecidas as seqüências com- pletas de apenas 163 genes do verme. Elevamos esse número para 510 genes completos e 14 mil com seqüências par- ciais", diz Verjovski.

Esse trabalho, publicado em setem- bro de 2003 na revista Nature Genetics,

0 Schistosoma, causador da esquistossomose, e o Aedes, transmissor da dengue: em busca dos genes ativos

credenciou o grupo de Verjovski a par- ticipar do mapeamento do Aedes aegyp- ti, no âmbito de um programa do Ins- tituto Pasteur para a América do Sul, o Amsud-Pasteur. O objetivo geral é o mesmo do estudo do Schistosoma: identificar fragmentos de genes do Ae- des aegypti que tenham papel na disse- minação da dengue e da febre amarela. O grupo terá a tarefa de gerar 100 mil ESTs, que se somarão a outras 170 mil etiquetas geradas por outros grupos. O processo gera uma infinidade de se- qüências repetidas - mas, quanto maior o número de etiquetas geradas, maior a chance de encontrar fragmentos de ge- nes ainda desconhecidos. O Instituto Pasteur fornecerá a matéria-prima para a pesquisa: bibliotecas de cDNA - ban- cos de seqüências estáveis de DNA ob- tidas do RNA mensageiro, correspon- dentes aos genes em atividade.

Para ter uma idéia do ineditismo dessa iniciativa, pode-se lembrar de um raríssimo precedente que foi a cola-

boração entre brasileiros e norte-americanos no estu- do da Xylella fastidiosa. O patógeno que ataca os citros no Brasil tem linhagens que causam prejuízos em videi- ras, espirradeiras e amen- doeiras nos Estados Unidos. "Esses grupos são extre- mamente fechados, daí a importância de nos inte- grarmos ao esforço inter- nacional do Aedes aegypti) diz a pesquisadora Ana Lú- cia Tabet Oller Nascimento, do Centro de Biotecnologia do Instituto Butantan, que participa do projeto. Além dela e de Verjovski, o gru- po é composto por Carlos Menck, geneticista do Ins- tituto de Ciências Biomé- dicas da USP, Suely Lopes Gomes e Hamza El Dorry, ambos do Instituto de Quí- mica. Verjovski, Ana Lúcia e Menck trabalharam juntos no projeto do Schistosoma mansoni.

Bioterrorismo - O seqüen- ciamento dos fragmentos gênicos do Aedes aegypti de-

ve começar em janeiro e promete estar concluído no ano que vem. A parceria entre o Brasil e a França fará parte do projeto internacional do genoma do mosquito, coordenado pelo The Insti- tute for Genomic Research (TIGR), dos Estados Unidos. Esse estudo teve início em 2004, sob a liderança de Da- vid Severson, da Universidade Notre Dame, Indiana, que participou do ma- peamento do mosquito Anopheles gam- biae, transmissor da malária. O projeto recebeu financiamento do governo norte-americano porque integra a rede Microbial Sequencing Center, força-ta- refa científica incumbida de pesquisar patógenos e vetores potencialmente uti- lizáveis como armas de bioterrorismo. Nem é preciso recorrer a teorias cons- piratórias para perceber a ameaça que o Aedes aegypti encarna. As cíclicas epi- demias de dengue no Brasil e a amea- ça de retorno da febre amarela aos grandes centros urbanos já são evidên- cias contundentes. •

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 27

Page 28: O mal-estar da civilização

I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

FOMENTO

O desafio de ousar Comissão internacional avalia os dez Cepids

Os dez Centros de Pesqui- sa, Inovação e Difusão (Cepids), criados pela FAPESP em 2000 com a missão de desenvolver

pesquisas multidisciplinares na frontei- ra do conhecimento, transferir conheci- mento para os setores público e privado e promover atividades educacionais, passam por um importante processo de avaliação.

A primeira fase do programa se en- cerra em 2005. Ao longo dos últimos quatro anos, os centros apresentaram relatórios anuais de atividades, mas a renovação dos contratos, por um perío- do de três anos, depende dos resulta- dos de avaliação realizada por uma co- missão internacional formada por especialistas em cada uma das áreas de atuação dos centros.

No segundo semestre de 2004 essas comissões realizaram várias visitas a ca- da um dos centros, entrevistaram pes- quisadores e alunos, conforme a praxe internacional, e formularam uma série de recomendações, inclusive à própria FAPESP, que deverão ser contempladas nas propostas para a fase II do progra- ma a ser apresentadas à FAPESP até o dia 31 de março. Os projetos aprovados serão novamente reavaliados em 2008 antes de renovação contratual por um período de mais três anos.

O rigor se justifica especialmente nesta fase de implantação. "O progra- ma foi a primeira linha de financia- mento de pesquisa de longo prazo ado- tada pela Fundação. Envolve um volume expressivo de recursos e exige contrapartidas das instituições às quais os Cepids estão vinculados", afirma José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP.

Centro Antônio Prudente para Pesquisa e Tratamento do Câncer

Centro de Biotecnologia Molecular Estrutural

Centro de Estudos da Metrópole

Centro de Estudos da Violência

Centro de Estudos do Genoma Humano

Centro de Estudos do Sono

Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica

Centro de Terapia Celular

Centro de Toxina Aplicada

Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos

Os pareceres expressaram entusias- mo com as propostas desenvolvidas nos Cepids e houve unanimidade no julga- mento de manter e até ampliar o pro- grama. "Os integrantes das comissões ficaram encantados com o sistema de avaliação e com a dedicação dos pesqui- sadores com as atividades de transfe- rência de conhecimento. Temiam que esses fossem aspectos superficiais", re- vela Perez. "Surpreenderam-se também com a disposição dos pesquisadores de dedicar parte substancial de seu tempo para as atividades de ensino."

Para os avaliadores internacionais, o grande desafio para os Cepids está em conferir mais ambição aos projetos e uma maior focalização das atividades de pesquisa. "Isso, naturalmente, impli- ca desenvolver projetos de maior ris- co", salienta Perez.

Proposta ampliada - O programa Ce- pids inspirou-se no modelo norte- americano adotado por 11 Centros de Ciência e Tecnologia da National Scien- ce Foundation. O programa da FAPESP estabeleceu um novo paradigma para a atividade científica, já que integra a pes-

quisa, a transferência do conhecimento para a sociedade e a educação. É coro- lário de vários programas: congrega um perfil multidisciplinar, representado pelos projetos temáticos; a transferên- cia de conhecimento, que caracteriza os programas de Políticas Públicas, Parce- ria para a Inovação Tecnológica (PITE) e Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) - e programas de edu- cação, como o de Ensino Público. Por tudo isso os Cepids são mais complexos e se constituem num desafio para todos os atores envolvidos.

Para conferir mais ousadia aos pro- jetos, consolidar a equipe e atender à de- manda dos coordenadores, a Fundação criou comissões de supervisão que in- cluem, além das lideranças dos centros, pesquisadores externos. Adotou tam- bém uma série de medidas "facilitado- ras", como a concessão de uma cota de bolsas de pós-doutoramento e de trei- namento técnico e de dois auxílios em nível de pós-doutoramento - no âmbi- to do Programa Jovens Pesquisadores - para cada centro. Essa medida poderá se estender também para os projetos te- máticos, adianta Perez. •

28 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

Page 29: O mal-estar da civilização

I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

INFORMATIZAÇÃO

Processos eletrônicos SAGe agiliza a apresentação, análise e julgamento de pedidos de bolsas e auxílios a pesquisa

Este ano de 2005 é um ano de mudanças significativas na FAPESP. Entra em fun- cionamento o Sistema de Apoio à Gestão de Fomen-

to (SAGe), que irá informatizar os pro- cedimentos de apresentação, análise e julgamento de propostas de financia- mento, gestão de contratos, acompa- nhamento e avaliação dos programas da Fundação. Em outras palavras, isso significa que, a partir deste ano, a FA- PESP só receberá solicitações de bolsas e auxílios a pesquisa se apresentadas eletronicamente.

Na opinião do presidente da FA- PESP, Carlos Vogt, o programa de in- formatização da Fundação, o SAGe, vem ao encontro de duas necessidades reconhecidas amplamente pela comu- nidade de usuários da Fundação e pela comunidade interna de servidores. "Ele atende, de um lado, à agilização e à vi- sibilidade, facilitando o acesso aos dife- rentes programas que a instituição ofe- rece para a comunidade científica e, ao mesmo tempo, cria condições para um atendimento cada vez melhor por par- te dos servidores que fazem a interface com esses usuários."

A data de deflagração desse proces- so foi o dia 3 deste mês de janeiro. Nesse dia teve início o processo de ca- dastramento pessoal de todo pesqui- sador, no endereço do SAGe: www.fa- pesp.br/sage. Ao longo deste mês, quando a FAPESP estará em férias coletivas, o cadastramento poderá ser feito, havendo, inclusive, um plantão para atendimento de dúvidas (pelo www.fapesp.br/converse ou pelo tele- fone 3838-4000). E, a partir de Io de fe- vereiro, quando é retomado o aten- dimento ao público, as solicitações já

poderão ser encaminhadas eletronica- mente. Essas novas solicitações serão avaliadas também eletronicamente, as- sim como todas as demais etapas dos processos: pareceres, relatórios, presta- ção de contas etc. A administração dos processos vigentes antes da informati- zação seguirá da forma tradicional até a sua conclusão.

"A FAPESP tem uma circulação anual de 17 mil processos de bolsas e auxílios a pesquisa. Não poderia conti- nuar na dependência da circulação físi- ca e material de papéis", assinala Vogt, para justificar a adoção da informati-

zação como forma de redu- zir custos e tempo de trami- tação dos processos. "A vir- tualidade estará totalmente a serviço das finalidades maiores da Fundação, que é atender bem a ampla comu- nidade acadêmica e científi- ca do Estado de São Paulo."

A informatização da gestão de programas e pro- cessos vem sendo conduzi- da desde 1993 pela FAPESP em conjunto com o Centro de Estudos e Sistemas Avan- çados do Recife (César). Dentro desse processo, em julho de 2004, a Fundação passou a aceitar, de forma opcional, a súmula curricu- lar solicitada em pedidos iniciais de auxílios e bolsas a partir da base de dados da Plataforma Lattes, do Con- selho Nacional de Desen- volvimento Científico e Tec- nológico (CNPq).

Avaliação interna - A FA- PESP concluiu ainda no mês passado o primeiro processo avaliatório inter- no, um importante instrumento de política de recursos humanos que, jun- to com outros instrumentos como o estímulo à educação e à capacitação interna, visa qualificar a estrutura de apoio ao sistema de fomento. No pro- cesso de avaliação foram feitas ade- quações de funções e as avaliações de mérito, beneficiando 70% dos servi- dores. Ressalte-se que o gasto da FA- PESP com pessoal é de 3,4% do seu orçamento, pagos com recursos pró- prios da Fundação. •

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 29

Page 30: O mal-estar da civilização

AS PESQUISAS NO BRASILACABAM DE GANHARUM MERECIDOLUGAR DE DESTAQUE.

Novidades na área de pesquisa, ciência e tecnologia.

Entrevistas com pesquisadores, fatos científicos da semana,

notas sobre estudos recentes e o quadro Memória,

relembrando momentos históricos da ciência. Eo que não

poderia faltar: sua participação na seção Pesquisa-

responde, através do site www.radioeldoradoam.com.br

LIOERANOO TENotNCIAS

Apresentação:Tatiana Ferraz.Comentários: Mariluce Moura,diretora de redação da revista Pesquisa Fapesp.Sábados, às 12h30. Reprise aos domingos, às 20h30.

Page 31: O mal-estar da civilização

I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

PARCERIA

Incentivo para a inovação Ministro Eduardo Campos prevê maior investimento em 2005

O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) pre- tende enviar ao Congres- so Nacional - provavel- mente na terceira semana

de fevereiro, quando termina o recesso do Legislativo - o projeto de lei de in- centivos fiscais para estimular investi- mentos em inovação no país. "Estamos colhendo subsídios com várias entida- des e negociando com os ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento, In- dústria e Comércio Exterior", adiantou o ministro Eduardo Campos. Ele acre- dita que, a exemplo do que aconteceu ao longo da votação da Lei de Inovação, o Congresso será "um grande parceiro" e deverá "melhorar" a proposta apre- sentada pelo Executivo. "Antes disso, a Lei de Inovação, promulgada pelo pre- sidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 2 de dezembro, será regulamentada por decreto", afirmou.

O ministro acredita que 2005 será um "bom ano" para a ciência e tecnolo- gia no país. A proposta orçamentária para o MCT, encaminhada pelo gover- no para aprovação do Congresso, era 20% maior que a de 2004. Além disso, as emendas apresentadas por parla- mentares e pelas comissões ao longo da

votação do orçamento, no final do ano passado, se aprovadas, somariam mais R$ 3 bilhões aos recursos previstos pe- lo Executivo. "O orçamento da ciência e tecnologia deverá ser melhorado e re- ceberá uma contribuição importante do Parlamento brasileiro, o que não acontecia antes", acreditava o ministro antes da votação da proposta. Essas modificações favoráveis, ele analisou, foram resultado da articulação de insti- tutos de pesquisas, fundações, secreta- rias estaduais de ciência e tecnologia e do próprio MCT. "Conseguimos cha- mar a atenção dos parlamentares para esse tipo de investimento."

Outra boa notícia, ele adiantou, é que sete dos 15 fundos setoriais não sofrerão nenhum tipo de contingencia- mento no próximo ano: os de Biotec- nologia, Amazônia, Espacial, Hídricos, Informática, Mineral e Transportes. "Nós conseguimos que o volume de re- cursos liberados crescesse 19,9% e os valores contingenciados aumentaram apenas 6%", contabilizou o ministro.

Os fundos setorias foram criados em 1999 para financiar projetos de pes- quisa e inovação no país. São formados pelas contribuições incidentes sobre o faturamento de empresas dos diversos

setores envolvidos e por meios oriun- dos de taxas de exploração de recursos naturais pertencentes à União. Em 2005 deverão aportar cerca de R$ 720 milhões no mercado de pesquisas. Ou- tros R$ 729 milhões, de acordo com proposta orçamentária, deverão per- manecer contingenciados por decisão do Ministério da Fazenda.

Prêmio Conrado Wessel - Campos par- ticipou da cerimônia de lançamento da edição 2004 do Prêmio Conrado Wessel de Ciência e Cultura, no dia 14 de de- zembro, na FAPESP. "É preciso animar outros empreendedores a tomar inicia- tivas como essa", disse o ministro. O prê- mio foi criado em 2002 com o objetivo de incentivar atividades relacionadas a arte, ciência e cultura. Os vencedores em cada categoria recebem um prêmio no valor de R$ 100 mil. No evento, o mi- nistro assinou com a FAPESP protoco- lo de intenções para a criação do pro- grama Ciência Nossa de Cada Dia, que prevê a utilização de material de divul- gação científica produzido pela revista Pesquisa FAPESP no ensino médio e na formação continuada dos professores na área de ciências da natureza e suas tecnologias. •

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 31

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• POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

AMBIENTE

opreço doInventário coloca o Brasilentre os maiorespoluidores mundiais

CLAUDIA IZIQUE

OBrasil estava entre os cinco maioresemissores de gases de efeito estufa en-tre 1990 e 1994, segundo o inventáriodivulgado no final do ano passado pe-lo governo federal. Nesse período, a

emissão de gás carbônico aumentou de 976 milhõesde toneladas para 1,03 bilhão. Mais de 70% dessasemissões estão relacionadas a mudanças no uso daterra e à conversão de florestas para uso agrícola. Asemissões de dióxido de carbono por consumo decombustíveis fósseis, especialmente no setor de trans-portes e na indústria, vêm em segundo lugar, já que aparticipação de energia renovável na matriz energéti-ca brasileira é elevada. As emissões de gás metano sãotambém significativas, sobretudo na agropecuária,que, em 1994, somavam 13,2 milhões de toneladas. E,por último, as emissões de óxido nitroso que são cau-' ,sadas pelo uso de fertilizantes em solos agrícolas.

O primeiro inventário brasileiro foi divulgado noBrasil e apresentado na 10· Conferência das Partes daConvenção - Quadro da Organização das NaçõesUnidas sobre Mudanças Climáticas (COP-lO), emdezembro, em Buenos Aires.

Seus resultados não surpreenderam os especialis-tas. O problema está no futuro que eles projetam.«Sabemos que o número de focos de queimadasaumentou bastante nos últimos dez anos e é possívelque o país ocupe hoje uma posição ainda pior entre

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os emissores globais de gases de efeito estufa", calcu-la Paulo Artaxo, coordenador do Instituto do Milêniodo experimento Large Scale Biosphere - AtmosphereExperiment in Amazonia (LBA). Os Estados Unidos,responsáveis por 36,1 % das emissões de gases de efei-to estufa, são o campeão entre os países poluidores,seguidos pela China, com 18%, e a Rússia, com 17%.

Apesar da posição desconfortável do Brasil nesseranking, a maior parte das emissões de gás carbônicono país não resulta da queima de combustível fóssilpela indústria, que, perversamente, é um fator de ge-ração de riqueza e bem-estar da população. «Ao con-trário, as emissões de dióxido de carbono são resul-tado da destruição da Amazônia", compara Artaxo.

Vantagens relativas - O Protocolo de Kyoto, que en-tra em vigor no dia 16 de fevereiro, prevê redução de5,2%, até 2012, das emissões de gases de efeito estu-fa registradas em 1990. As nações industrializadassão as principais responsáveis pelo cumprimentodessa meta. O Brasil, assim como outras nações emdesenvolvimento, não faz parte desse grupo, mas osresultados do inventário colocam o país numa posi-ção delicada a partir de 2013, quando entrará em vi-gor um segundo período de reduções que será nego-ciado nos próximos anos.

O fato de ser o desmatamento o principal respon-sável pela emissão do dióxido de carbono confere ao

--~-

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Mais de 70%das emissõesde dióxidode carbono estãorelacionadasa queimadas ea mudanças nouso do solo

Brasil uma "vantagem relativa",afinal ocontrole de emissões de queimadas nãorequer altos investimentos e traz enor-mes benefícios ambientais ao país."NosEstados Unidos ou na Europa, a reduçãode emissões tem que ser obtida por meiode cortes no consumo e na produção,em geral com custos significativos':ob-serva Artaxo.

Junto com o relatório de emissões,o governo brasileiro publicou umconjunto de medidas mitigadoras. Deacordo com a ministra do Meio Am-biente, Marina Silva,o Brasil vem con-seguindo reduzir, por exemplo, o ritmode destruição das florestas.Em 2003,elaafirmou, o ritmo de crescimento dodesmatamento recuou 2% e em 2004ela projeta um cenário de estabilidadee, em seguida, redução. O lançamentodo programa de uso comercial do bio-diesel e o uso do etanol como combus-tível nos automóveis, de acordo com aministra de Minas e Energia, DilmaRoussef, também deverão contribuirpara a redução das emissões no Brasil."O Brasil tem que explorar de modoadequado todas as possibilidades deredução das emissões, e o jogo está nasmãos do governo, que tem ferramentasestratégicas para rapidamente reduziras emissões de gases de efeito estufa':enfatiza Artaxo.

Desenvolvimento limpo - O Protocolode Kyoto prevê que os países desenvol-vidos podem trocar a redução das emis-sões de gases em seus territórios porinvestimentos em projetos de absor-ção de carbono em países em desen-volvimento, por meio dos Mecanismosde Desenvolvimento Limpo (MDL).Podem, ainda, financiar projetos deenergia renovável, para mitigar efeitospoluidores. A medida beneficiará paí-ses como o Brasil que, segundo Artaxo,tem grande potencial de exploração deseqüestro de dióxido de carbono. •

PESQUISA FAPESP 107 • JANEIRO DE 2005 • 33

Page 34: O mal-estar da civilização

1 CIÊNCIA

Crianças estrangeiras na ilha de Ellis, Nova York, em 1908: adaptação difícil, mas vínculo maior com os pais

■ Ameaça à fertilidade masculina

Esta é para os homens: é me- lhor não deixar o laptop esquentando sobre o colo. Especialistas da Universidade Estadual de Nova York, Esta- dos Unidos, aconselham a li- mitar o uso de laptops, cujo uso prolongado pode afetar a fertilidade: a elevação da temperatura escrotal causada pelo contato com o compu- tador pode alterar a produ- ção de espermatozóides. Se- gundo esse estudo, feito com 29 voluntários de 21 a 35 anos e publicado na Human Reprodution, o uso contínuo de laptop pode aumentar em 2,6°C a temperatura do es- croto esquerdo e em 2,8°C a do direito. Outros estudos já haviam associado danos na formação dos espermatozói- des e na fertilidade com au- mentos de temperatura de 1°C a 2,9°C. Dessa vez, a equipe de Yefim Sheynkin ve-

rificou que após quinze mi- nutos de uso do computador a temperatura escrotal au- menta 1°C, o suficiente para danificar os espermatozóides, já que o organismo precisa manter uma temperatura tes- ticular adequada para man- ter o desenvolvimento nor- mal das células reprodutoras masculinas. Com esse au- mento de temperatura, esti- ma-se que a concentração de espermatozóides possa cair em 40%. •

■ 0 impacto da raiva sobre o cérebro

Raiva, medo, irritabilidade, nervosismo e mudanças brus- cas na posição do corpo po- dem provocar os coágulos que reduzem o fluxo de san- gue ao cérebro - o derrame. Quase um terço das 200 pes- soas que participaram de um estudo realizado por uma equipe da Universidade Tel- Aviv, em Israel, havia sentido emoções negativas duas ho-

Conselho para quem planeja herdeiros: pôr sobre a mesa

34 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

Page 35: O mal-estar da civilização

Imigração fortalece laços de família Os filhos de imigrantes so- frem tanto quanto seus pais os problemas de adaptação aos costumes e ao novo esti- lo de vida do país para onde se mudaram. De acordo com um estudo recente da Uni- versidade Estadual de Sara- tov, na Rússia, é difícil para essas crianças e adolescentes lidar com os novos espaços e vizinhos, mas suas relações com os pais tornam-se me- lhores que as estabelecidas nas famílias que permane- cem em seus países nativos. A despeito do estresse psico- lógico gerado pela perda do antigo modo de viver e dos amigos da terra natal, os fi-

lhos dos imigrantes se adap- tam mais facilmente às novas regras. Podem, porém, de- senvolver um complexo de inferioridade que se expres- sa na forma de agressivida- de e conflitos com os novos amigos. Nesse estudo, um grupo de psicólogos entre- vistou 300 crianças e adoles- centes de 10 a 17 anos de Sa- ratov. Metade eram filhos de imigrantes russos e outra metade de moradores nati- vos. Os filhos de imigrantes se mostram menos felizes com suas vidas que os nati- vos da mesma idade. Esta- vam também menos satis- feitos com sua situação na

escola e com suas casas, mas tinham relações mais tran- qüilas e próximas com os pais - resultado que pode ser explicado por meio da necessidade de dividir pro- blemas comuns relacionados à adaptação social. Indaga- dos sobre o futuro, os dois grupos se mostraram bas- tante semelhantes. Dos filhos de imigrantes, 63% vêem o futuro como promissor e fa- vorável, enquanto 37% espe- ram problemas previsíveis, mas superáveis. No outro grupo, 70,9% nutrem senti- mentos positivos sobre o fu- turo e 36,7% esperam pro- blemas. •

ras antes do derrame ou rea- gido rapidamente a situações que as surpreenderam, como levantar-se da cama em um instante ao ouvir o neto cair e chorar no quarto ao lado. De acordo com esse estudo, publicado em dezembro na Neurology, qualquer um des- ses fatores pode aumentar 14 vezes o risco de derrame, em- bora os pesquisadores ainda não saibam ao certo como es- sas emoções podem interferir no funcionamento do orga- nismo. "É possível que episó- dios breves de estresse men- tal alterem temporariamente a capacidade de coagulação do sangue e o funcionamen- to das células que revestem os vasos sangüíneos", comen- tou Silvia Koton, coordena- dora da pesquisa. Reações bruscas poderiam também causar uma resposta exagera- da do sistema nervoso sim- pático, que regula os bati- mentos cardíacos e a pressão sangüínea. •

■ Plante árvores e evite inundações

Era intuitivo, mas faltava pro- var. Os primeiros resultados de um estudo realizado por pesquisadores britânicos in- dicam que áreas plantadas com árvores são bastante efi- cazes para controlar a drena- gem de água e conseguem re- duzir bastante o impacto das inundações (The Economist, 23 de outubro). Trabalhando

em uma área de criação de ovelhas, Howard Wheater, do Imperial College, de Londres, verificou que nas pastagens intensamente pisadas pelos animais a taxa de absorção era nula: toda a água da chuva que caía seguia adiante. Até aí, nada de novo. Mas Whea- ter constatou também que em pastagens menos pisoteadas - mais permeáveis - a taxa de absorção era de 10 centíme- tros por hora. Melhor ainda:

Niederwerth, Alemanha: luta contra as águas do rio Reno

áreas com arvores jovens, com poucos anos de idade, sem que o solo tenha sido amassado pelas patas dos ani- mais, apresentaram uma im- pressionante taxa de 80 centí- metros por hora. O Reino Unido gasta cerca de U$ 700 milhões por ano para defen- der as cidades das águas dos rios e do mar. •

■ As marcas profundas do envelhecimento

O estresse psicológico pode agir sob a pele e promover o envelhecimento celular. Mu- lheres submetidas a estresse contínuo têm telômeros - as estruturas que recobrem o fi- nal dos cromossomos - mais curtos que os das que experi- mentam menos estresse, con- clui estudo da Universidade da Califórnia, Estados Uni- dos, publicado no Procee- dings ofthe National Academy of Sciences (PNAS). Mulheres sob estresse prolongado apre- sentam também menos telo- merase, enzima que protege os telômeros. Elissa Epel, res- ponsável por esse trabalho, avaliou o estresse em dois grupos de mulheres saudá- veis: um com 19 mães de fi- lhos saudáveis e outro com 39 mães de filhos com doen- ças crônicas, dos quais ti- nham de cuidar continua- mente. O encurtamento dos telômeros foi maior quanto mais anos foram dispensados aos cuidados com os filhos com problemas de saúde. Fo- ram medidos os telômeros de células mononucleares do sangue, que exibiram o equi- valente a dez anos de envelhe- cimento adicional, explican- do por que, no nível celular, o estresse pode promover a instalação precoce de doen- ças relacionadas com o enve- lhecimento. •

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 35

Page 36: O mal-estar da civilização

■ As cores da morte

Homens e mulheres brancos morrem geralmente de doen- ças crônicas como câncer ou das que acometem os apare- lhos circulatório, respirató- rio, digestivo ou endócrino, além das congênitas ou rela- cionadas à nutrição, aos ossos ou à pele. Já a morte dos ne- gros está associada a causas externas, como doenças infec- ciosas, problemas na gravidez ou no parto, além de trans- tornos mentais, de acordo com um estudo conduzido por Luís Eduardo Batista, do Instituto de Saúde, de São Paulo, e publicado na Revista de Saúde Pública. Esse traba- lho, feito em conjunto com Maria Mercedes Escuder e Jú- lio César Pereira, da Universi- dade de São Paulo, mostrou também que o risco de uma mulher negra morrer em conseqüência de doença in- fecciosa ou parasitária é 1,6 vez maior que o das mulheres brancas, enquanto a mortali- dade na gravidez, no parto e no puerpério é 6,4 vezes maior entre as mulheres negras que entre as brancas. Já entre os homens negros, a mortalida-

Uma proteína com duplo papel

Sementes de pau-brasil: ação antiinflamatória e anticoagulante

Primeiro os portugueses extraíram do tronco do pau-brasil um pigmento vermelho-vivo usado para tingir roupas dos nobres europeus. Agora, cinco sé- culos depois, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo encontraram na semente dessa árvore uma proteína que interfere na coagulação do sangue e também em processos in- flamatórios. É a CeKI, sigla de proteína inibidora de ca- licreína, extraída das semen- tes de Caesalpinia echinata por uma equipe da Univer- sidade Federal de São Pau-

lo (Unifesp) e Universidade de São Paulo (USP). Nos testes feitos em laborató- rio, eles constataram que a CeKI impede a ação de duas das 13 proteínas en- volvidas na coagulação san- güínea: a calicreína e o fa- tor XII. Quando inibe a atividade do fator XII e da calicreína, essa proteína im- pede a formação do coá- gulo. Desse modo, poderia exercer um controle fino so- bre a coagulação e auxiliar no diagnóstico e no trata- mento de doenças hema- tológicas, segundo Mariana Araújo, pesquisadora da

Uniesp e integrante da equi- pe responsável pelo traba- lho publicado na Biological Chemistry. Indiretamente, a CeKI inibe também a ação da bradicinina, uma importante proteína que participa do processo in- flamatório. Se tudo der cer- to, podem sair daí alterna- tivas aos antiinflamatórios e anticoagulantes atuais. Não se sabe ao certo a função da CeKI nas sementes do pau- brasil. Provavelmente ela auxilie a germinação e a maturação das sementes ou exerça um papel protetor contra insetos predadores. •

de por causas externas - aci- dentes, atropelamentos, ho- micídios e suicídios - é duas vezes maior que entre os ho- mens brancos. As conclusões se baseiam na análise das causas básicas de mortalida- de em 647.321 registros de óbitos no Estado de São Pau- lo entre 1999 a 2001 nos quais

o item raça ou cor estava pre- enchido (77,7% eram bran- cos, 5,4% pretos e 14,3% par- dos). "As principais razões dessa situação", diz Batista, "talvez sejam a falta de acesso a serviços de saúde, a forma como os médicos tratam os pacientes ou a própria exclu- são social". •

■ A primavera dos besouros

Após um inverno mais quen- te e seco que o de anos an- teriores, cidades como Ara- çatuba, Ribeirão Preto e São Carlos, no interior paulista, foram tomadas em setembro por nuvens de besouros pre-

36 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

Page 37: O mal-estar da civilização

tos ou marrom-escuro, de 2,5 centímetros de comprimen- to. Chegavam aos milhares e cobriam os terraços das casas, formando um tapete de bo- linhas pretas como jabutica- bas - só que andavam. "A seca prolongada no inverno retar- dou a eclosão dos ovos, que se deu com as primeiras chu- vas", explica Odo Primavesi, pesquisador da Embrapa em São Carlos. Segundo ele, os besouros dessas revoadas - de espécies originárias da região, como Dichotomius anaglipti- cus, Eurystemus ssp., Ataenius sculptor e Isocropis ssp. - se reproduzem o ano todo, com menor intensidade nos meses de seca. Marcado pela volta das chuvas, o início da pri- mavera representou um mo- mento de concentração dos insetos, inofensivos à saúde. "Não houve mais besouros que em anos anteriores", diz Primavesi. "A eclosão dos ovos é que se concentrou em um período curto." •

Adolescentes com excesso de peso Quando o Brasil decidir conter a obesidade com campanhas públicas, a Re- gião Sudeste deverá ser tra- tada com ênfase. É a mais populosa e a que abriga a maior porcentagem de jo- vens com excesso de peso, comparada à Região Nor- deste, segundo estudo de Gloria Veiga, da UFRJ, pu- blicado no American Journal of Public Health. Na Região Nordeste, a mais pobre do país, o sobrepeso triplicou: atingiu 5% entre os garo- tos e 12% entre as meninas. Na Sudeste, a mais rica, 17% dos adolescentes dos dois sexos estão com o pe- so superior ao recomenda- do para a idade e a altura. "São resultados alarman- tes", diz Gloria. Com base em pesquisas nacionais de

Surpresa: sobrepeso entre as garotas triplicou

1975,1989 e 1997 e em uma amostra de 50 mil adoles- centes, ela constatou que a prevalência de sobrepeso passou de 2,6% para 11,8% entre os meninos e subiu de 5,8% para 15,3% entre as garotas. "As políticas de combate à obesidade no Brasil ainda são tímidas,

mas alguns passos já fo- ram dados", afirma Glo- ria. No Rio, em Curitiba e em Florianópolis há leis proibindo a venda de ali- mentos considerados ina- dequados em cantinas de escolas. Há 40 milhões de adultos com excesso de pe- so no país. •

Os suspeitos do desaparecimento dos caranguejos

Acredita-se agora que possa ser um fungo ou um pro- tozoário o responsável pela morte em massa dos caran- guejos-uçá, que começou em 1998 no Ceará e se espa- lhou até a Bahia. Dois estu- dos independentes - um feito no Paraná e outro em São Paulo - indicam que uma infecção pode estar causando a morte dos ca- ranguejos Ucides cordatus. Sérgio Bueno, da USP, de- tectou no coração e em ou- tros órgãos de caranguejos doentes um microorganis- mo semelhante ao protozoá- rio Hematodinium sp., que

0 uçá: vítima de infecção ou da degradação ambiental

ataca caranguejos no he- misfério Norte. Já o Grupo Integrado de Aquicultura e Estudos Ambientais da

Universidade Federal do Paraná encontrou um fun- go do filo Ascomicota (sub- filo Pezizomycotina) no co-

ração e na hemolinfa - flui- do que faz o papel de san- gue - dos crustáceos afeta- dos. Mas não é possível apontar qual deles provoca a morte dos caranguejos até que seja verificado em la- boratório se esses microor- ganismos realmente deixam os animais doentes. Não está descartada uma causa ambiental. Já havia se falado que a morte dos caranguejos poderia resultar de trans- formações do mangue cau- sadas por cultivo de cana, criação de camarões ou ex- tração de petróleo. Mas também faltam provas. •

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 37

Page 38: O mal-estar da civilização

São Paulo: uma em cada quatro pessoas sofre de depressão ou

iedade intensa os uma vez na vida

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I

Levantamento mundial mostra que os distúrbios psiquiátricos são freqüentes e pouco tratados

CARLOS FIORAV

ADE DO l'AN

esmo nas cidades mais isoladas do mundo os transtornos mentais começam cedo, ainda na infância, e geralmente apresentam os mesmos estágios de desenvolvimento, independente-

ta. mente dos estilos de vida ou das condições econômicas em que vivem as populações, de acordo com os pri- meiros resultados do mais amplo estudo já feito nessa área.

) nos países ricos quanto nos menos afortunados os desa- ,~o.es emocionais persistentes podem emergir a partir dos 15 anos, por meio de medos intensos - de espaços abertos ou fe- chados, de altura ou de escuro -, de uma ansiedade sem razão concreta ou de uma depressão leve, às quais geralmente se dá pouca importância. Progridem lentamente e, lá pelos 20 anos, x)dem se expressar na forma de dependência de álcool, de nico- ina ou de drogas ou ainda como uma depressão grave, que de-

jilita a ponto de superar a vontade de comer ou mesmo de viver. Ao revelar essa seqüência, essa etapa inicial do World Men-

al Health Survey (Levantamento Mundial sobre Saúde Mental), coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), abre a perspectiva de detectar e conter o processo de perda contínua de controle emocional ainda no início, durante a vida escolar, e assim evitar o surgimento de problemas mais graves - o Brasil integra esse estudo, mas o levantamento, aqui, ainda se encontra na fase inicial de coleta de informações. A delimitação dessas fases é também uma notícia promissora no desalentador quadro da saúde mental no mundo: parcelas vari- áveis de 4,3% a 26% da população nos 14 países já avaliados

;sentam algum tipo de transtorno psiquiátrico.

* CARLOS FIORAVANTI esteve na Cidade do Panamá a convite dos Institutos Nacionais de Saúde (N1H) e do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ).

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Além do impacto social, com a ero- são das relações familiares e sociais, os problemas psiquiátricos repercutem também economicamente. Estudos an- teriores da OMS demonstraram que os transtornos psiquiátricos estão entre as principais causas de perda de dias de trabalho. De acordo com esse novo es- tudo, na Itália, o país em que essas per- das se mostraram maiores, os porta- dores de distúrbios leves perdem em média quatro dias de trabalho por ano, enquanto os acometidos por formas graves ficam 200 dias sem trabalhar a cada ano. Os transtornos mentais colo- cam em risco a própria vida: estão asso- ciados a cerca de 870 mil suicídios regis- trados todo ano no mundo, uma média de três mortes a cada dois minutos.

A análise das 60.463 entrevistas f^L realizadas nessa primeira L^^ parte do estudo mostra que

È ^k os distúrbios mentais ain- ^L. JL. da são subdiagnosticados, pouco tratados e negligenciados pelos planejadores das políticas públicas de saúde, mesmo que geralmente possam ser controlados. Sutis no início, mas corrosivos ao longo do tempo, criam prisioneiros da própria imaginação descontrolada. É o caso - extremo e bas- tante raro - de Dom Quixote, o cavalei- ro criado pelo escritor espanhol Mi- guel de Cervantes há quatro séculos. No final de uma vida tranqüila, Dom Quixote começou a sofrer delírios e alucinações, a ponto de ver formosas donzelas em pobres camponesas e pa- lácios em humildes hospedarias.

Mundo afora, os transtornos men- tais ainda estão associados a estigmas e à exclusão econômica e social. Tais pre- conceitos aproximam o século 21 da Idade Média, quando a loucura, então um termo usado para explicar o com- portamento de qualquer pessoa que não se encaixasse nos modelos social- mente aceitos, era vista como uma ma- nifestação do demônio. Loucura é hoje uma palavra de uso restrito, aplicada apenas aos extremos das psicoses, os es- tados mais graves de perda da capaci- dade de julgamento. Mesmo assim, em qualquer um persiste o medo atávico da perda definitiva da razão e do con- trole emocional, talvez por serem des- conhecidos os limites entre o equilíbrio mental e a insanidade.

Contrastes - O fato é que, como esse estudo da OMS demonstrou, ainda per- sistem contrastes tremendos no acesso ao tratamento. Em países como Bélgi- ca, Estados Unidos e França, pelo me- nos metade dos portadores de proble- mas sérios é tratada - na Espanha, que desponta em primeiro lugar, a taxa de atendimento é de 65%.

A situação é mais alarmante nos países menos desenvolvidos, onde a maior parte das pessoas que sofrem al- guma forma grave de doença mental não tem acesso a medicamentos ou a tratamentos adequados. Na Colômbia, no Líbano, no México e na Ucrânia apenas um em cada quatro indivíduos com transtorno obsessivo-compulsivo ou depressão avançada são medicados e acompanhados pelos serviços de saú- de. O cenário mais desalentador é o do Líbano: apenas 14,6% das pessoas com casos graves de problemas mentais re- cebem algum tipo de atendimento e acompanhamento médicos.

"As desordens mentais são um pro- blema de saúde pública que não pode mais ser ignorado", comenta Sérgio Aguilar-Gaxiola, professor da Universi- dade Estadual da Califórnia e um dos coordenadores desse trabalho, apre- sentado em um seminário promovido em outubro pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos na Cidade do Panamá. Segundo ele, uma das razões mais fortes para se dar mais atenção às doenças mentais é sua eleva- da prevalência, como é chamado o per- centual de pessoas atingidas.

De acordo com esse estudo, publi- cado em junho do ano passado no Jour- nal of American Medicai Association, o país com maior prevalência de proble- mas mentais são os Estados Unidos. Quase 80 milhões de norte-americanos - ou 26,4% da população - apresenta- ram algum tipo de distúrbio psiquiá- trico. Desse total, 7,7% são considera- das formas graves, como o transtorno obsessivo-compulsivo ou depressão in-

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Ucrânia: maior taxa de dependência de álcool, de nicotina ou de drogas entre os 14 países já avaliados

tensa. Com a segunda maior prevalên- cia está a Ucrânia, o segundo maior país da Europa, atrás apenas da porção européia da Federação Russa. Quase 9 milhões de pessoas, o equivalente a 20% da população, exibiram desordens mentais leves, moderadas ou graves - e 3 milhões, ou 6,4% desse total, a mais alta taxa nessa amostra inicial de países, sofrem de dependência química.

Entre os dois países latino- americanos já avaliados, a Colômbia tem a prevalên- cia mais alta: 17,8% dos co- lombianos, ou cerca de 8

milhões de pessoas, têm algum tipo de distúrbio mental. O México vem em seguida com 12,2%, quase 12 milhões de pessoas. "Um dos maiores proble- mas da América Latina", diz Aguilar- Gaxiola, "é que as pessoas não têm acesso a medicamentos nem a trata- mentos". Eis o mais dramático: a falta de tratamento, mais do que a prevalên-

cia elevada, já que qualquer um pode passar por um problema psiquiátrico em algum momento da vida, do mes- mo modo que corre o risco de contrair uma gripe ou quebrar um braço. Mas o que poderia ter uma solução simples continua causando sofrimento.

No extremo oposto destaca-se Xan- gai, cidade da China com 15 milhões de habitantes, dos quais apenas 4,3% com distúrbios mentais. O segundo país com a menor prevalência é a Nigé- ria (4,7%), ex-colônia britânica do cen- tro-oeste da África, com 100 milhões de habitantes agrupados em cerca de 250 etnias. A Itália aparece em terceiro, com 8,2% dos 56 milhões de habitantes com distúrbios mentais.

Estigmas - Os dados sobre o Brasil ainda não estão prontos, mas já se pode ter uma idéia do que será encontrado. Sob a coordenação de Laura Andrade, do Instituto de Psiquiatria da Univer- sidade de São Paulo (USP), e de Maria

Carmen Viana, da Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de Vitó- ria, Espírito Santo, devem começar em fevereiro deste ano as entrevistas com 5.500 moradores da Região Metropoli- tana de São Paulo, onde vivem 18 mi- lhões de pessoas, quase 10% da popu- lação do país. A coleta e análise de dados devem tomar dois anos de traba- lho, mas estudos anteriores sugerem que a prevalência de problemas psi- quiátricos no país deve situar-se mais próxima dos 26% dos Estados Unidos do que dos 8,8% do Japão.

Laura Andrade faz essa aproxima- ção com base em um levantamento que ela própria coordenou em 1998. Foram entrevistados 1.464 moradores de dois bairros de São Paulo - a Vila Madalena, uma espécie de Ipanema paulistana, com um barzinho em cada esquina, e o Jardim América, mais aquietado, com seus casarões ajardinados. Dos cerca de 100 mil habitantes dessas duas regiões, quase metade (45,9%) apresentou al- gum tipo de distúrbio psiquiátrico, in- cluindo a dependência de nicotina - quando uma pessoa não consegue ficar sem fumar mesmo dentro do cinema porque precisa manter estável o nível de nicotina no organismo.

Excluindo o tabagismo, o percentual cai, mas não muito: um em cada três moradores desses dois bairros apresen- tou algum tipo de transtorno mental em algum momento de suas vidas. Isolada- mente, o episódio depressivo, caracteri- zado por uma tristeza sem razão que se prolonga por duas semanas ou mais, foi o problema mais comum, cujos sin- tomas foram relatados por 17% dos en- trevistados. A depressão, somada à dis- timia, uma de suas formas mais leves, porém crônica, atinge um em cada quatro habitantes desses dois bairros da maior cidade do país.

"Começamos a ter consciência des- ses problemas também no Brasil", diz Laura. Os resultados a que chegou im- pressionam também porque se trata de bairros com escolaridade e renda mé- dia altas, próximos a serviços de saúde ou hospitais públicos de referência. Mesmo assim, seus habitantes procu- ram pouco os médicos ou os serviços de saúde. Nessa região, como o grupo da USP verificou em outro estudo, menos da metade dos acometidos por depres- são procura ajuda médica.

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Os preconceitos ajudam a entender essa distância dos médicos. Há estigmas sobre os próprios transtornos mentais, já que as pessoas temem ser rotuladas como mentalmente debilitadas - nem acham que esses problemas possam ser tão comuns quanto uma gripe. Persis- tem também idéias equivocadas a res- peito do tratamento: os portadores desses distúrbios temem se tornar de- pendentes da medicação, algo que nem sempre acontece. Por fim, sobrevive uma visão arcaica sobre os próprios psiquiatras, ainda vistos como médicos de loucos, não como profissionais ge- ralmente aptos a tratar desequilíbrios emocionais comuns e persistentes.

Esses estigmas foram dimen- sionados em um estudo coordenado por Gregory Simon, do Centro de Es- tudos da Saúde do Group

Health Cooperative, de Seattle, Estados Unidos, com a participação de Marcelo Fleck, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foram acom- panhados 968 portadores de depressão atendidos em 34 centros de saúde de seis cidades - do Brasil, Canadá, Espa- nha, Estados Unidos, Israel e Rússia. Pouco menos da metade (42%) dos moradores da cidade norte-americana de Seattle, 37% dos residentes em Mel- bourne, no Canadá, e um em cada três habitantes de Porto Alegre contaram que temem os efeitos colaterais dos me- dicamentos. Em Seattle e na capital gaúcha, na mesma proporção, um em cada cinco entrevistados teme também que a procura por tratamento possa comprometer as novas oportunidades de emprego. Outras vezes, são os pró- prios amigos que desencorajam o iní- cio do tratamento.

Mas, de acordo com esse mesmo es- tudo, publicado em setembro no Ame- rican Journal ofPsychiatry, a maior bar- reira ao tratamento não é a perspectiva de discriminação, mas sim os custos dos medicamentos ou da locomoção até os centros de atendimento médico. Em São Petersburgo, a segunda maior cidade da Rússia, 75% dos entrevista- dos se queixaram dos gastos que têm de fazer para se cuidarem. Porto Alegre aparece em segundo lugar, com duas em cada cinco pessoas relatando o mes- mo problema. Béatrice Alinka Lépine

mostrou exatamente o quanto se gasta em um estudo que fez na Faculdade de Saúde Pública da USP: em média R$ 4.300,00 por ano em consultas, exames e medicamentos no caso das depressões comuns e R$ 6.100,00 com as formas de depressão resistentes, para as quais nem os medicamentos nem as psicote- rapias habituais são eficazes.

No Brasil, com uma renda per capi- ta de quase R$ 7 mil e um terço da po- pulação em estado de pobreza, certa- mente não será fácil enfrentar os distúrbios mentais persistentes, em es- pecial sua forma mais comum, a de- pressão. Para complicar, aproximada- mente metade dos casos de depressão detectados na população em geral é crônica, segundo estudo publicado em 2003 no International Journal of Me- thods in Psychiatric Research, compa- rando os dados de dez países, com uma amostra de 37 mil pessoas. Nesse trabalho, a porcentagem da população brasileira com depressão crônica em re- lação ao total de deprimidos é próxima à do Japão (42%), mas inferior à da Turquia (72%) ou do Chile (62,6%).

Esse levantamento mostrou que a depressão é mais comum nas mulheres do que nos homens em todos os países avaliados - ou, como os próprios pes- quisadores se perguntam, não seriam os homens que demoram mais para re- conhecer essa fragilidade e buscar aju- da? Até agora, a depressão se mostrou mais freqüente em jovens que em ve- lhos, nos não-casados que nos casados, nas camadas de rendas mais baixas da população que nas mais altas e entre os moradores de países de clima frio que nos de clima quente.

0 PROJETO

Estudo epidemiológico dos transtornos psiquiátricos na Região Metropolitana de São Paulo: prevalência, fatores de risco e sobrecarga social e econômica

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADORA LAURA HELENA SILVEIRA GUERRA

DE ANDRADE - USP

INVESTIMENTO R$ 810.624,00 (FAPESP)

Mas por que há no mundo tanta gente com problemas mentais, especial- mente depressão? Segundo Laura An- drade, a primeira razão é que existem hoje mecanismos precisos de diagnos- ticar essa enfermidade, que há meio sé- culo não contava com uma definição exata nem com medicamentos com que pudesse ser tratada. "A elevada pre- valência é também uma conseqüência da falta de suporte emocional das pes- soas, que pode levar à desesperança e à falta de vontade de viver", comenta a médica da USP. Segundo ela, pelo me- nos uma parte dos casos de depressão pode ser entendida por meio da Teoria do Apego, criada há 50 anos pelo psica- nalista inglês John Bowlby. "Nas pessoas que sofrem de falta de amparo", diz ela, "as conexões neuronais são diferentes e os centros ligados ao prazer e à afetivi- dade positiva podem não estar inteira- mente acionados, como se o cérebro ti- vesse poucos recursos para evitar os quadros depressivos".

Pobreza - Já se sabia que os transtornos mentais podem ser gerados por altera- ções genéticas, pressões ambientais, de- sequilíbrios bioquímicos ou geralmente por combinação desses fatores. O le- vantamento da OMS acentua o peso da pobreza, expressa por meio do desem- prego, do baixo nível de educação e de privações de toda ordem que criam um abismo entre os cidadãos de alguns paí- ses e os medicamentos que os alivia- riam das angústias da vida.

"Qualquer estresse externo intenso pode ter um impacto na prevalência das doenças mentais", diz Aguilar-Ga- xiola. Segundo ele, as guerras internas que atormentam os colombianos há dé- cadas, motivadas sobretudo pelo inte- resse de grupos guerrilheiros no con- trole do comércio de drogas, roubam a tranqüilidade da população e ajudam a explicar por que esse país detém a quarta maior prevalência de problemas mentais. Há também razões mais sutis, ligadas às condições de trabalho. "A ten- são, a angústia, a competitividade ou a rejeição, quando excessivas e duradou- ras, favorecem o surgimento dos dis- túrbios mentais", comenta Aguilar-Ga- xiola. Seria uma forma de entender por que um em cada quatro norte-ameri- canos convive com uma ansiedade que parece que nunca vai passar.

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"1 lost interest in doing things with the kids...going to the

movies, things that families do."

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com as crianças... ir ao cinema,

coisas que as famílias fazem

Anúncios de campanha nos Estados Unidos: para os homens reconhecerem que também podem ter depressão

Quando for concluído, em alguns anos, esse trabalho da OMS vai expor a prevalência, a gravidade, o acesso ao tratamento, os impactos sociais e eco- nômicos e os fatores de risco ou de pro- teção da saúde mental em 28 países. Desde já, porém, emergem algumas for- mas de aplacar esse problema. Já que agora se sabe como os transtornos mentais podem progredir, poderiam ser realizadas ações preventivas, princi- palmente junto às crianças mais vulne- ráveis e às suas famílias para amenizar o impacto das fontes de estresse. "Não é preciso necessariamente tratar com medicamentos nem considerar como doença as manifestações precoces dos distúrbios psiquiátricos", sugere Laura.

Campanhas - A primeira parte do estu- do da OMS acentua a importância de preparar melhor os clínicos-gerais dos centros de saúde para diagnosticar os distúrbios psiquiátricos, já que eles são os primeiros a ser procurados por quem suspeita que uma tristeza ou uma ansiedade persistentes possam re- presentar algo mais grave. Mas não bas-

ta apurar o olhar desses médicos, alerta Aguilar-Gaxiola: "O público em geral tem de se conscientizar, por meio de campanhas, de que os distúrbios men- tais são comuns e debilitantes, reconhe- cer os sintomas dos problemas mais freqüentes e saber que há tratamentos e serviços com que pode contar".

Ele cita como exemplo uma campa- nha que o Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH), uma das unidades dos NIH, lançou em 2003. Intitulada Real men, real áepression (Homens reais, de- pressão real), a campanha motivou a busca de tratamentos por meio de in- formações médicas apresentadas em lin- guagem simples e de anúncios como os reproduzidos nesta página, com resul- tados considerados positivos. Mas é pre- ciso pensar sempre em ações integra- das. "Seria uma atitude irresponsável apenas buscar os portadores de distúr- bios mentais e não os tratar adequada- mente", diz Aguilar-Gaxiola.

No mundo inteiro, busca-se a rein- clusão social dos portadores de trans- tornos mentais. O Brasil segue nessa linha por meio da desativação progres-

siva dos asilos para doentes mentais, os antigos hospícios, e da criação de hos- pitais-dia ou dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), nos quais os porta- dores de distúrbios mentais, que mo- ram com suas famílias, são tratados e medicados. Casos mais graves tendem a ser atendidos nos hospitais gerais.

Ocorre, assim, uma revisão da his- tória. Até o final da Idade Média, os indivíduos mentalmente desajustados andavam livremente pelas cidades - as alucinações eram até mesmo valoriza- das como fontes de inspiração artística. Só no final do século 16, com a separa- ção entre corpo e mente, é que o louco foi considerado como um ser desprovi- do de razão e surgiram os primeiros asilos. É também dessa época a nau dos insensatos, como eram chamados os barcos que circulavam pelos portos europeus recolhendo loucos, prostitu- tas, vagabundos e criminosos, que de- pois ficavam à deriva até morrerem e serem jogados ao mar. O que já se descobriu indica que é possível reduzir esse persistente abandono sem medidas tão radicais. •

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■ CIÊNCIA

ARQUEOLOGIA

o Novo Mundo Dez ossadas da Pré-história brasileira sugerem que os primeiros habitantes das Américas não eram mongolóides

MARCOS PIVETTA

Boa parte dos arqueólogos norte-americanos costuma dizer que Luzia é uma aberração. Uma exceção, e não a regra en- tre os primeiros habitantes das Américas, os chamados pa- leoíndios, normalmente descritos como mongolóides, com traços orientais, semelhantes aos asiáticos e aos indígenas

de hoje. Luzia é o nome dado ao crânio de uma jovem que viveu (e mor- reu) há cerca de 11 mil anos na região de Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte, rica em sítios pré-históricos. A polêmica ossada mineira choca os tradicionalistas por não apresentar características cranianas compatíveis com populações mongolóides. Suas feições lembram as dos atuais aborígines australianos e negros africanos. Essa discrepância levou os pesquisadores Walter Neves, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo (USP), e Hector Pucciarelli, da Universidade de La Plata, Argentina, a proporem ainda no final da década de 1980 uma teoria alternativa para explicar a colonização das Américas. Segundo Neves e Pucciarelli, há pelo me- nos 12 mil anos teriam posto pé no Novo Mundo as primeiras levas de indivíduos semelhantes a Luzia, vindas da Ásia. Os mongolóides, tam- bém oriundos da Ásia, dos quais descendem todas as tribos indígenas ainda hoje encontradas entre a Patagônia e o Alasca, só teriam atingi- do o continente algum tempo depois. Ambas as populações utilizaram a mesma via de entrada para as Américas, o estreito de Bering.

Carregando nas tintas, os críticos desse modelo dizem que os sul- americanos construíram uma tese a partir de um só crânio. Mas novos estudos publicados por Neves e colaboradores a partir de 1999 vêm demonstrando que populações humanas pré-históricas similares a Lu- zia não eram raridades nas Américas e sua distribuição geográfica não estava restrita às cercanias da capital mineira. Agora acabam de sair dois trabalhos que dão amparo à teoria alternativa sobre a coloniza- ção das Américas. Num artigo impresso na última edição da revista britânica World Archaeology, uma equipe de pesquisadores coordena-

Page 45: O mal-estar da civilização

Crânio de Cerca Grande: como Luzia, tem anatomia

similar à dos atuais africanos e aborígines australianos

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Vista externa e interna do complexo de sítios

funerários de Cerca Grande: ossadas de 9 mil anos

da por Neves apresenta nove crânios encontrados em Cerca Grande, um complexo de sete sí- tios pré-históricos situado na re- gião de Lagoa Santa. Todas as ossadas ostentam características afro-aborígines e idade estimada em cerca de 9 mil anos. "Luzia não é uma anomalia", afirma Ne- ves, cujos estudos são financiados por um Projeto Temático da FA- PESP. Em outro trabalho, publi- cado em dezembro no periódico norte-americano Current Resear- ch in the Pleistocene, o arqueólogo da USP analisa um crânio, tam- bém de aproximadamente 9 mil anos e traços negróides, oriundo da Toca das Onças, um sítio rico em mate- rial pré-histórico localizado em Caatin- ga do Moura, na Bahia. Em oposição à anatomia típica dos povos mongolói- des, os crânios dos paleoíndios brasilei- ros são mais estreitos e longos, com os maxilares projetados para a frente, e as faces baixas e não muito largas.

A existência de uma ossada tão g^L antiga associada a populações ÍJ^ não-mongolóides originá-

m ^ rias de uma região distan- ^L. A. te de Lagoa Santa sugere que esse tipo físico esteve disseminado por outras partes do país durante algum momento da Pré-história. "Sua distri- buição geográfica era mais ampla do que se pensava", comenta Castor Car- telle, do Museu de Ciências Naturais da Pontifícia Universidade Católica de Mi- nas Gerais (PUC/MG), co-autor do ar- tigo sobre o crânio de Toca das Onças. "Talvez a presença de indivíduos do tipo negróide tenha ocorrido ao longo de toda a bacia do rio Francisco, che- gando até o Piauí." Cartelle, aliás, coor- denou a equipe que encontrou o crânio humano de Toca das Onças numa ex- pedição à região baiana no fim dos anos f970. Hoje esse material arqueo- lógico faz parte do acervo do museu da PUC/MG. Os nove crânios de Cerca Grande foram coletados há ainda mais

tempo, numa viagem a Lagoa Santa realizada em 1956 pelo norte-america- no Wesley Hurt e o brasileiro Oldemar Blasi, ambos arqueólogos. Esses frag- mentos de esqueletos integram atual- mente as coleções do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Ja- neiro (UFRJ). "O sítio de Cerca Grande está todo destruído devido à retirada de calcário e calcita da região", comenta Bla- si, hoje com 86 anos, que retornou ao local com a equipe de Neves em 2001.

Neves resolveu estudar em detalhes os crânios de Cerca Grande e da Toca das Onças na esperança de obter mais subsídios para sua tese sobre a coloni- zação das Américas. Conseguiu. "Como enfrento muitas críticas de colegas, em especial dos Estados Unidos, resolvi pu- blicar análises sobre o maior número

0 PROJETO

Origens e microevolução do homem na América

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR WALTER NEVES - Instituto de Biociências da USP

INVESTIMENTO

R$ 538.172,80 e US$ 76.000,00

possível de crânios pré-históricos de di- ferentes sítios de Lagoa Santa, de outros lugares do Brasil e até do exterior", diz o arqueólogo da USP. A rigor, ele iniciou pra valer essa cruzada acadêmica em prol de suas idéias em 2003, com um artigo no Journal ofHuman Evolution em que analisa seis crânios paleoíndios (também de cerca de 9 mil anos) pro- venientes de Santana do Riacho, na ser- ra do Cipó, região não muito distante de Belo Horizonte. E pretende prosse- guir durante todo o ano de 2005 nessa estratégia de salientar que Luzia não es- tava sozinha. Neves promete publicar em breve evidências de que também havia paleoíndios similares aos aborígi- nes australianos no Estado de São Pau- lo e até mesmo no México.

Não é fácil encontrar evidências pa- ra a controversa tese de que os primei- ros habitantes das Américas não eram mongolóides. Um esqueleto humano, ou parte dele, precisa preencher dois requisitos para ser classificado como pertencente a um paleoíndio de traços negróides: ser alvo de alguma forma de datação minimamente confiável (o que custa muito caro) e passar por uma análise estatística rigorosa a respeito de sua conformação anatômica. Neves acredita ter vencido essas duas etapas de maneira satisfatória em seus traba- lhos recentes com as ossadas humanas de Lagoa Santa.

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Page 47: O mal-estar da civilização

Reconstituição de homem de Lagoa Santa:

sem traços orientais

Dos nove crânios de Cerca Grande analisados no ar- tigo científico da World Archaeology, dois tiveram sua idade determinada

de forma direta, pelo método do carbo- no 14. Esse tipo de medição, mais con- fiável e alvo de menos críticas, só é pos- sível de ser feito quando existe colágeno preservado no esqueleto, algo difícil de acontecer na região de Lagoa Santa. Luzia, por exemplo, não tinha esse ele- mento indispensável para o teste de carbono 14. Sua antigüidade foi estabe- lecida de forma indireta, abordagem que também foi empregada para situar no tempo os outros sete crânios de Cerca Grande. Por esse método, os pes- quisadores associam o seu objeto de es- tudo - um esqueleto humano ou de animal - a algum elemento do sítio pré- histórico cuja idade seja conhecida ou estimada, como rochas, artefatos ou ca- madas sedimentares. "Não é o ideal, mas muitas vezes temos de recorrer às datações indiretas", comenta Neves.

Para dizer se um crânio pré-históri- co é similar a um determinado grupo biológico, os pesquisadores recorrem à

anatomia comparativa. Neves faz ques- tão de ele mesmo realizar as medições nos crânios que são alvo de seus artigos científicos. Assim garante a padroniza- ção de procedimentos na execução da tarefa. As medidas dos ossos são sub- metidas a modelos computacionais que as confrontam com dezenas de parâ- metros físicos - no caso de Cerca Gran- de, 27 variáveis para os crânios de mu- lheres e 43 para os de homens - exibidos pelos principais grupos biológicos exis-

tentes hoje em dia no mundo. Terminada a comparação, o pro- grama posiciona o material ana- lisado em relação aos padrões fí- sicos contemporâneos. Segundo Neves, os modelos computacio- nais colocam os nove crânios de Cerca Grande, a exemplo de Lu- zia e do material baiano da Toca das Onças, ao lado dos africanos do Subsaara e dos aborígines da Austrália - e longe dos mongo- lóides (asiáticos e ameríndios atuais). Isso não quer dizer neces- sariamente que o povo de Luzia tinha a pele escura, como as pes- soas tendem a pensar ao olhar para as reconstituições artísticas dos antigos habitantes de Lagoa Santa. Como as figuras são feitas de argila escura, e seus traços re- metem a populações que hoje são negras, essa impressão, talvez errônea, se difundiu. "A cor da

pele é uma característica que pode mu- dar rapidamente, em poucas gerações", comenta Neves.

Há alguns pontos de difícil com- preensão na tese alternativa advogada por Neves e seus colaboradores sobre a chegada dos primeiros Homo sapiens no Novo Mundo. O principal deles é por que não sobrou aqui nenhum des- cendente desses pioneiros não-mongo- lóides. Ninguém tem uma resposta to- talmente satisfatória a essa pergunta, mas talvez o tempo e novas evidências arqueológicas se encarreguem de resol- ver a controvérsia. Em setembro do ano passado, por exemplo, correu a notícia de que um crânio de cerca de 11 mil anos, do México, conhecido como a Mulher de Penon, também exibe traços físicos semelhantes aos do povo de La- goa Santa. Em 2003 saiu um artigo na revista Nature em que são descritos 33 esqueletos, também oriundos do Méxi- co, que exibem características anatômi- cas não-mongolóides, similares às de Luzia. Não são crânios de povos pré- históricos, mas de uma tribo mexicana, a pericu, que viveu isolada até o século 16 na Baixa Califórnia, quando se ex- tinguiu após o desembarque dos espa- nhóis. Se a teoria de Neves estiver cor- reta, talvez os pericus tenham sido os últimos remanescentes das primeiras linhagens não-mongolóides que ocu- param as Américas. •

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 47

Page 48: O mal-estar da civilização

I CIÊNCIA

GENÉTICA

O resgate dos botocudos Estudos em vila de Minas Gerais e no pampa gaúcho revelam descendentes de índios desaparecidos, como aimorés e charruas

MARCELO LEITE

JA genética nacional, ao garimpar tes- /^L temunhos no sangue de brasileiros / m de hoje, está contribuindo para

I ^k rastrear as conseqüências popula- -i— M cionais de uma injustiça antiga, consagrada numa carta regia de d. João VI, em 13 de maio de 1808, que não deixava dúvidas sobre as intenções da Coroa quanto ao destino dos índios pejorativamente alcunhados de bo- tocudos, que na realidade seriam bravos aimo- rés do nordeste mineiro:

"[...] Sendo-me presente as graves quei- xas que da Capitania de Minas Geraes tèm subido á minha real presença, sobre as inva- sões que diariamente estão praticando os Ín- dios Botocudos, antropophagos, em diversas e muito distantes partes da mesma Capita- nia [...] sou servido por estes e outros justos motivos que ora fazem suspender os effeitos de humanidade que com elles tinha manda- do praticar, ordenar-vos, em primeiro logar: Que desde o momento, em que receberdes esta minha Carta Regia, deveis considerar como principiada contra estes índios antro- pophagos uma guerra offensiva que conti- nuareis sempre em todos os annos nas esta- ções seccas e que não terá fim".

Não é de espantar, diante de tanta prontidão para o genocídio, que hoje os aimorés de Minas sejam dados por exterminados. Seus parentes sobreviventes mais próximos - além dos mo- radores da localidade de Queixadinha, no nordeste pobre de Minas Gerais, cujo parentesco

com os trucidados vem agora à luz no estudo de geneticistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - são os krenaks, um contin- gente de cerca de 500 índios que nem querem ouvir falar da extinção dos botocudos. "Uma vez mencionei em uma entrevista que os boto- cudos estavam extintos e os krenaks ficaram muito irritados", conta Sérgio Danilo Pena, que liderou a pesquisa. "A identificação como des- cendentes dos botocudos, que eles efetivamente são, é politicamente muito importante para eles, principalmente quanto a terras, e aprendi a respeitar isso."

Mesmo aimorés, ou gueréns, eram deno- minações dadas pelos brancos no período co- lonial, ensina Pena. Quando ainda habitavam os vales dos rios Jequitinhonha, Mucuri e Do- ce, área hoje dividida pelos estados da Bahia, Minas e Espírito Santo, esses índios se referiam a si mesmos pelos nomes de suas tribos: enge- reckmoung, cracmun, nak-nanuk, pejaurum e djioporoca. Além da suposta ferocidade, ti- nham em comum o apreço pelos apliques de discos de madeira - os botoques, palavra que originariamente designava os tampões de to- neis de vinho - no lábio inferior ou nos lóbu- los das orelhas.

O resgate dos botocudos ao qual Pena se de- dica é derivado de um de seus trabalhos mais conhecidos, a constatação de que a população atual do Brasil, ao menos no que se refere às li- nhagens maternas, é uma das mais miscigena- das do mundo: 39% de contribuição européia, 33% índia e 28% africana. O trabalho, publica- do em 2000 no American Journal ofHuman Ge-

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Botocudos do rio Doce, Minas Gerais, 1920:

descendentes reencontrados

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netics, se baseava na análise de DNA das mitocôndrias (mtDNA), organela celu- lar que se transmite só da mãe para os filhos e filhas (cujos padrões e muta- ções permitem, assim, reconstituir as chamadas matrilinhagens).

A o estudo de 2000 se seguiu i^L outro, publicado em 2003 / m no Proceedings of the Nati-

I ^k onal Academy of Sciences. 1 » Pena demonstrava a to-

tal desvinculação entre a atribuição de raça com base em características físi- cas, de um lado, e marcadores genéti- cos de ancestralidade africana, de ou- tro (nesse caso foram usados trechos de DNA nuclear autossômico, que não se envolvem na determinação do sexo). Dito de outro modo, uma pessoa iden- tificada como negra não tem necessaria- mente genes típicos de ancestrais afri- canos e tampouco a presença desses marcadores garante a classificação so- cial como integrante da raça negra. O estudo deu o que falar, pois viera a pú- blico logo depois de o então candidato a presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmar em debate na TV que a ciência tinha instrumentos para distinguir ne- gros de brancos.

Um dos grupos de amostras usados nesse trabalho provinha de Queixa- dinha, distrito de Caraí, cidade com 20 mil habitantes, localizado na mesma região dos botocudos. Trata-se de uma vila esquecida, com poucas centenas de moradores e acesso difícil por estradas de terra. Pena viu nesse isolamento a oportunidade de pôr em prática o que chama de garimpagem homopátrica, ou seja, a busca de pistas genéticas dos botocudos entre os habitantes atuais da mesma área que eles ocupavam.

Se existissem vestígios de DNA bo- tocudo na população atual, é certo que estariam no mtDNA - e não nos cro- mossomos Y, que passam de geração a geração apenas entre homens (e são por isso úteis para reconstituir patrili- nhagens). Afinal, o padrão consagrado de genocídio e limpeza étnica impli- ca exterminar os homens e absorver as mulheres. Nas linhagens masculinas brasileiras, a contribuição é quase ex- clusivamente do colonizador europeu (98% do total): a pesquisa no cromos- somo Y de brasileiros de hoje vai reve- lar sobretudo marcadores herdados dos

senhores portugueses, enquanto no mtDNA é possível encontrar a herança genéticas, das mulheres índias e negras que os colonizadores tomavam para seu desfrute.

Foram analisadas amostras de 274 pessoas sem parentesco materno por três gerações, divididas em três grupos: 74 de Queixadinha, 100 de outras cida- des dos vales do Jequitinhonha, do Mu- curi e do Doce, e 100 de cidades da Zo- na da Mata mineira, região mais ao sul onde não há registro de aimorés, só das etnias puri e coroado, também elas de- saparecidas. Participaram desse traba- lho Flávia Parra, também da UFMG, hoje fazendo pós-doutorado na South- west Foundation for Biomedical Re- search, nos Estados Unidos, e Hans- Jürgen Bandelt, matemático alemão da Universidade de Hamburgo que come- çou a lidar por hobby com questões es- tatísticas de análise de DNA e se tornou um colaborador assíduo de Pena e de outros geneticistas.

Resultados inesperados - A análise to- mou por base a seqüência de trechos específicos dos cerca de 16 mil nucleo- tídeos que compõem o mtDNA, assim como mutações características adqui- ridas por populações ameríndias após a principal entrada de seres humanos no Novo Mundo, vindos da Ásia, em algum momento (ou mais de um) en- tre 12 mil e 18 mil anos atrás. A análise do número e do tipo de diferenças en- contradas permite aglomerar as amos- tras em grupos chamados de hapló- tipos. Entre índios das Américas, os haplótipos mais comuns são designa- dos como A, B, C e D.

Pena, Flávia e Bandelt encontraram coisas intrigantes em Queixadinha. Em primeiro lugar, a predominância do ha- plótipo C, quando o mais comum no mtDNA de origem ameríndia de Minas Gerais são os haplótipos A e B. Além disso, duas linhagens encontradas na vi- la, uma em três indivíduos e outra em cinco, nunca haviam sido descritas em populações atuais de índios das Améri- cas. A alta freqüência sugere que essas matrilinhagens sejam características dos botocudos que habitavam a região.

O interesse na história dos botocu- dos tem um componente adicional. Re- latos históricos e restos preservados no Museu Nacional (RJ) indicam que essa

etnia possuía a morfologia craniana mais similar à dos esqueletos conhecidos co- mo homens de Lagoa Santa, grupo do sítio em Minas Gerais que inclui os res- tos de Luzia, os mais antigos de um ser humano nas Américas. Essa morfolo- gia, de tipo negróide, destoa da predo- minante entre ameríndios de origem inequivocamente asiática, um dos enig- mas por solucionar sobre o povoamen- to das Américas. "Com sorte, essa es- tratégia poderia nos levar a algumas inferências genéticas sobre o Homem de Lagoa Santa, mas isso ainda é alta- mente especulativo", ressalva Pena.

"Nosso objetivo primordial era tes- tar uma estratégia do uso de popula- ções modernas como repositório de seqüências mitocondriais de grupos conquistados e extintos", afirma o ge- neticista da UFMG. "A primeira etapa é o uso de populações modernas com localização geográfica apropriada para identificar seqüências mitocondriais candidatas. A segunda etapa, que esta- mos fazendo, é de tentativa de valida- ção dos resultados da primeira."

Em outras palavras, os geneticistas ainda pretendem obter uma confir- mação direta de que as matrilinhagens identificadas em Queixadinha são de fato fósseis de genes botocudos soter- rados nas células de descendentes vi- vos. Para consegui-la, estão preparando a análise de DNA de duas dezenas de dentes de botocudos cedidos pelo Mu- seu Nacional.

No pampa gaúcho - "Trata-se de um enfoque histórico muito interessante. É o mesmo que estamos fazendo aqui no Sul com os charruas", afirma Francisco Mauro Salzano, da Universidade Fe- deral do Rio Grande do Sul (UFRGS), pioneiro no estudo genético de popu- lações indígenas. Salzano se refere ao trabalho de sua colaboradora Maria Cá- tira Bortolini, que coordena um mapea- mento similar do mtDNA no pampa gaúcho com a colaboração de Andréa Marrero.

A região foi escolhida por Salzano e Maria Cátira por ser a origem do ele- mento étnico-cultural gaúcho (ponchos e boleadeiras, por exemplo), que muito deve a povos indígenas extintos como os minuanos e os charruas. Falantes de dialetos compreensíveis para uns e ou- tros, esses povos são enfeixados no que

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Família de botocudos: vítima de genocídio autorizado pelo rei

Maria Cátira chama de grande etnia charrua. Ela acredita que essa assimi- lação foi mais do que cultural, por ter encontrado sua marca genética distin- tiva entre os sul-rio-grandenses que hoje habitam o pampa. Mais uma vez, na forma de haplótipos C do mtDNA - muito raros entre os outros povos indí- genas do Sul do Brasil, como os guara- nis, mas abundantes entre índios da Pa- tagônia e da Terra do Fogo, no extremo sul do continente.

Maria Cátira, como Pe- na, também está em busca de uma com- provação direta de que seus haplótipos

C são testemunhos genéticos de anti- gos charruas. Para isso, ela conta com a ajuda de um padre e arqueólogo, Pedro Ignacio Schmitz, do Instituto Anchietano de Pesquisas da Univer- sidade do Valde do Rio dos Sinos (Uni- sinos), em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, de uma geneticista uruguaia, Monica Sans, da Universidade Na- cional de Montevidéu, e de um chefe

charrua morto há mais de um século e meio de inanição e depressão, Vai- macá Peru.

De Schmitz, Maria Cátira obteve partes da mandíbula e do crânio de um enterramento arqueologicamente carac- terizado como charrua. Sua maior ex- pectativa está na colaboração com Mo- nica, porém. A colega uruguaia obteve amostras de ossos de Peru depois que eles foram repatriados da França para o Uruguai em 1998, mas antes que fos- se aprovada no vizinho austral legisla- ção proibindo o estudo dos restos de Vaimacá Peru. "É uma história extraor- dinária", diz ela sobre a vida de Peru, reconstituída num livro do antropólo- go francês Paul Rivet, Les derniers char- ruas (Os últimos charruas).

O chefe Vaimacá Peru se encontra- va preso em Montevidéu, no ano de 1832, depois de seu povo participar de várias escaramuças regionais, ora no lado brasileiro, ora na banda uruguaia. Um cidadão francês conhecido somen- te como Monsieur de Curei pediu au- torização para levar espécimes char- ruas para exposição pública na França

e foi presenteado com Peru, o guerreiro Tacuabé e sua mulher Guyunusa e o xa- mã Senaqué. Levados em 1833 para Pa- ris, não duraram muito. O casal teve uma filha, Michaela, mas não se sabe o que foi feito dela nem do pai. Os outros três morreram em menos de um ano de cativeiro e seus restos foram manti- dos no Museu de História Natural de Paris até 1998, quando gestões do go- verno uruguaio conduziram o seu re- patriamento.

Segundo Maria Cátira, Monica já teria feito a análise do DNA e confir- mado preliminarmente os mesmos ha- plótipos C similares aos do pampa brasileiro. O ideal, diz a brasileira, seria que os resultados pudessem ser repli- cados em um laboratório independen- te fora do Uruguai. Entretanto, devido a leis proibindo estudos com os restos de Peru, essa parte do trabalho pode ser prejudicada. A geneticista gaúcha lamenta esse tipo de restrição à pesqui- sa. "A maior homenagem que se pode- ria fazer a Vaimacá Peru", diz Maria Cátira, "é resgatar a memória e a his- tória de seu povo". •

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I CIÊNCIA

O caos amigável Comportamentos aparentemente desorganizados podem beneficiar seres vivos e reações químicas

FRANCISCO BICUDO

A camada mais superficial dos oceanos abriga #M uma elevada variedade de organismos mi- / ^ croscópicos, continuamente transportados

J^^L pelas correntes marítimas. Em seu cami- M. _^^ nho pelos mares, essa rica mistura que

compõe o plâncton - algas, bactérias, protozoários, crustáceos e moluscos - depara com obstáculos como ilhas, montanhas submersas ou mesmo barcos. Homo- gêneas a olho nu, essas extensas manchas de plâncton obrigatoriamente se dividem e contornam a barreira em um abraço envolvente, reencontrando-se em seguida. Mas, superado o obstáculo, a mancha antes compacta so- fre distorções e se transforma em uma complexa rede de

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Engenho e arte: formas sinuosas resultam de rigor matemático e

solucionam antigos desafios da biologia

filamentos muito delgados. É que próximo a essas barreiras existem turbilhões na água que forçam es- ses organismos a percorrer trajetórias complicadas e aparentemente irregulares, num movimento classifi- cado pelos físicos como caótico, repetido a cada novo obstáculo.

Uma equipe de físicos da Universidade de São Paulo (USP) estudou em deta- lhe a estrutura dos filamentos que se formam após o obstáculo e constatou que suas formas aparentemente irre-

gulares podem ser descritas com precisão por fór- mulas matemáticas da Teoria de Sistemas Dinâ- micos - mais conhecida como Teoria do Caos, já aplicada no estudo de fenômenos tão distintos quanto o sobe-e-desce do mercado financeiro, as in- certezas da meteorologia e até mesmo o ritmo dos batimentos cardíacos. Ao empregar a Teoria do Caos para prever a dispersão das espécies de plâncton, os físicos da USP encontraram uma possível solução para um dilema que inquieta os biólogos há quase meio século, o chamado Paradoxo de Hutchinson: por que o plâncton é formado por cerca de 8 mil es- pécies de organismos? Segundo teorias clássicas da biologia, esse número não deveria superar uma de- zena por causa da competição por recursos naturais como oxigênio, luz e nutrientes.

Casos como esse mostram que nem sempre o caos é sinônimo de confusão e desordem, portanto, indesejável. "Em situações como a da mancha de plâncton se dispersando no mar", explica o físico Celso Grebogi, "o caos aparece como algo benéfico, favorecendo a sobrevivência de um número maior

de espécies". Pesquisador do Instituto de Física da USP, Grebogi é o principal autor de uma teoria que ajuda a entender - e prever - não só a proliferação de espécies de plâncton. Fundamentado na Teoria do Caos, esse modelo pode auxiliar também na explica- ção de outros fenômenos biológicos e químicos, como a formação do buraco na camada de ozônio que envolve a Terra.

Grebogi e sua equipe na USP desenvolveram essa nova teoria, chamada de Caos Ativo, em parceria com especialistas da Universidade de Eõtvõs, na Hungria. Nela, os pesquisadores lançaram uma idéia inovadora: em situações específicas o caos pode re- presentar mais que um conjunto de expressões ma- temáticas capaz de descrever o comportamento de um sistema que se modifica com o tempo - por exemplo, o gotejamento de uma torneira que se fe- cha aos poucos. No caso de partículas sólidas diluí- das em um fluido, sejam plânctons no oceano, sejam moléculas de poluentes no ar, o caos pode desempe- nhar um papel ativo e funcionar como catalisador, acelerando reações químicas ou interações biológi- cas, revelaram os pesquisadores no primeiro artigo sobre o assunto, publicado em 1998 na Physical Re- view Letters. O caos atuaria assim de modo análogo às enzimas produzidas pelo estômago ou pelo intes- tino, que aumentam a velocidade das reações que quebram os alimentos em partículas menores.

Aqui novamente o exemplo dos plânctons, res- ponsáveis pela produção de cerca de metade do oxi- gênio do planeta, ajuda a compreender essa ativi- dade catalisadora do caos. Há organização por trás dos filamentos sinuosos, formados por esses organis- mos marinhos após superar o obstáculo. A estrutura

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Ao sabor das correntes marinhas: microorganismos do plâncton (linha preta) encontram um obstáculo (em vermelho), se dispersam em movimentos turbulentos e se reorganizam em filamentos que permitem a coexistência de milhares de espécies

desses filamentos é regida por leis ma- temáticas muito precisas: cada um de- les apresenta uma forma complexa que se repete em escalas menores. Amplia- dos, esses filamentos se revelam forma- dos por outros mais finos, que, por sua vez, são compostos por outros ainda mais finos - a mesma organização que se observa na pena de uma ave. É o que os físicos chamam de estrutura fractal. Nesse como em outros casos essa estrutura fractal surge em conseqüên- cia do afastamento rápido e intenso de partículas antes muito próximas, pro- vocado pelo movimento caótico do flui- do que as arrasta.

Extinção amenizada - Em sua sala no Instituto de Física, Grebogi ilustra sua teoria com uma seqüência de imagens de computador e explica como tantas espécies distintas de plâncton conse- guem conviver, em vez de as mais aptas levarem as outras à extinção. Ao se for- marem, os filamentos segregam as dife- rentes espécies. Naturalmente, espaços vazios - sem plâncton - surgem entre esses filamentos e tornam a competição entre as espécies menos direta: as re- giões sem plâncton funcionam como uma área de escape para as espécies menos adaptadas. "Essa forma de or- ganização permite a todas as espécies conseguirem alimento, luz e oxigênio, ainda que algumas predominem sobre outras", diz Grebogi.

Quando a população de um deter- minado tipo de plâncton torna-se mui- to reduzida, a área de escape torna-se

proporcionalmente maior e essa espé- cie ganha mais espaço para se expandir, explica o físico, neto de poloneses nas- cido há 57 anos em Curitiba, Paraná. "Assim ela consegue se reproduzir e vol- tar aos níveis normais", afirma. "Ao ace- lerar a reprodução dessas espécies, o caos evita a extinção das menos eficien- tes e a conservação da diversidade", diz o físico Alessandra Moura, do Instituto de Física da USP e integrante da equipe de Grebogi nesse projeto.

Os artigos mais recentes do grupo sobre o caos ativo foram publicados em 2004, na edição de março da revista Chãos e na de abril da Physical Review Letters. Mas a idéia de relacionar plânc- ton e Teoria do Caos havia surgido muito antes, cerca de dez anos atrás, quando Grebogi e seus colaboradores, conversando com amigos biólogos, descobriram que havia mais dúvidas do que explicações a respeito da exis- tência das cerca de 8 mil espécies de animais e plantas do plâncton, com ci- clos de vida que variam de dois minu-

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Dinâmica caótica

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR CELSO GREBOGI -IF/USP

INVESTIMENTO R$ 682.179,67

tos a dois dias. Na década de 1960, o in- glês George Evelyn Hutchinson tentou compreender o paradoxo que depois receberia seu nome. Especialista em ecossistemas aquáticos, ele pensou, evi- dentemente, como biólogo, destacando as variações anuais de temperatura e o ciclo verão-inverno como argumentos para justificar a sobrevivência de tantas espécies. Embora válidos, esses argu- mentos parecem ser insuficientes.

Grebogi começou então a conside- rar a ação do caos como uma possibili- dade de explicação, com base em al- guns indícios. O oceano, afinal, é um fluido repleto de partículas carregadas por correntes marítimas, com muitos obstáculos - em vez disso, as teorias biológicas supunham que o plâncton se distribuísse de modo homogêneo pela superfície dos mares, o que não ocorre de fato. O primeiro artigo com os fundamentos dinâmicos que leva- riam a uma solução para o Paradoxo de Hutchinson saiu em janeiro de 1998 na Physical Review Letters, assinado por Grebogi e seus colaboradores. O físico paranaense trabalhava então na Uni- versidade de Maryland, nos Estados Unidos, e já era reconhecido como uma autoridade internacional nessa área. Foi também em 1998 que ele se tornou diretor científico externo vitalício do Instituto Max Planck para a Física de Sistemas Complexos em Dresden, Ale- manha, onde passa dois meses por ano. Só três anos depois, em 2001, é que o físico elegante e de hábitos refina- dos, apaixonado por óperas - Mozart

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Curvas da fertilidade: após vencerem a barreira, microorganismos de espécies distintas (vermelho e verde) se misturam em filamentos (detalhe ampliado ao lado). Os espaços livres favorecem a reprodução das espécies menos abundantes

ou Verdi para se distrair, Wagner ou Strauss quando deseja algo estimulante -, foi contratado pela USP. Este ano, de acordo com a Academia Brasileira de Ciências, ele se tornou o primeiro bra- sileiro cujos artigos científicos recebe- ram mais de 10 mil citações, acompa- nhadas pelo Science Citation Index.

CFC e ozônio - Grebogi separa de uma pasta-arquivo outra figura - uma ima- gem de satélite -, com a qual demons- tra que seu modelo pode também ajudar a compreender o processo de destrui-

ção da camada de ozônio na alta atmos- fera terrestre, a cerca de 20 quilômetros da superfície. Gás composto de molé- culas formadas pela união de três áto- mos de oxigênio, o ozônio funciona como um escudo que impede a pas- sagem dos raios ultravioleta do Sol, apontados como um dos principais res- ponsáveis por queimaduras e pelo cân- cer de pele. Em 1985, pesquisadores da British Antarctic Survey constataram pela primeira vez uma redução de 30% na camada de ozônio sobre a Antártida. Em agosto de 2003, o buraco se esten-

dia por 17,4 milhões de quilômetros quadrados - mais de duas vezes a área ocupada pelo Brasil.

As moléculas de ozônio se desfazem em contato com o cloro de gases co- nhecidos como clorofluorcarbonetos (CFC), os mesmos usados em alguns refrigeradores para esfriar o ar. Na alta atmosfera, sob a ação dos raios ultravio- leta, o CFC se quebra e os átomos de cloro se soltam: cada cloro pode desfa- zer mais de 100 mil moléculas de ozô- nio. É nesse momento que a Teoria do Caos surge como aliada para explicar a

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destruição irregular da camada de ozô- nio. Caso a distribuição do CFC fosse homogênea e regular, os átomos de clo- ro que se desprenderiam na alta atmos- fera provavelmente atuariam sobre uma área específica e determinada da camada - e o buraco corresponderia a uma pequena região aproximadamente circular. Mas as moléculas de CFC des- crevem trajetórias caóticas e formam filamentos fractais, semelhantes aos que se observam no plâncton.

A dispersão do gás em filamentos amplia a área de contato entre as molé- culas de CFC e as de ozônio e acelera a destruição do gás que protege os seres vivos contra a radiação ultravioleta do Sol. Como regra geral, quanto maior a superfície de contato entre dois com- postos químicos, maior será a velocida- de de reação - basta comparar a rapi- dez com que se dissolve uma pedra de sal em um copo de água com o mesmo volume de sal em pó. "Essa constatação nos permite direcionar melhor os es- forços para compreender a destruição da camada de ozônio", comenta Moura. É uma amostra de que o mesmo caos visto como fonte de vida ou como ele- mento imprescindível para a compreen- são de cenários até então confusos pode ser, às vezes, indesejado.

Em aplicações industriais como a produção de tintas, os pigmentos de- vem ser misturados da forma mais ho- mogênea possível. O problema surge quando os movimentos caóticos dos misturadores de pigmentos resultam na formação de filamentos indesejáveis por não serem homogêneos. "Se formos capazes de eliminar o caos", pondera Grebogi, "essa teoria poderia ter aplica- ções industriais". Sua equipe estuda também os fluidos turbulentos, defi- nidos pelo comportamento aleatório e extremamente complexo, a exemplo dos torvelinhos que se formam em um ria- cho ou do movimento do ar causado pela decolagem de um avião. Por ocor- rer na atmosfera, nos mares e em outras situações nas quais os fluidos se movi- mentem com alta velocidade, a turbu- lência é um fenômeno de extrema im- portância prática, em especial para a aviação e a navegação. "Para fluidos com turbulência", diz Moura, "suspei- tamos que o efeito catalisador do caos talvez seja até mais poderoso". •

Neurônios artificiais

Computador substitui células nervosas de siris e lagostas

Durante meia hora o siri- azul permanece coberto por gelo em uma caixa de isopor no laboratório do físico Reynaldo Da-

niel Pinto, da Universidade de São Pau- lo (USP). Quando é retirado de lá, já es- tá anestesiado pela temperatura baixa. Sobre a bancada, o pesquisador abre a carapaça desse crustáceo chamado de Callinectes sapidus e o examina por den- tro. Entre os olhos está o cérebro e, logo abaixo, o estômago.

Daniel Pinto identifica os 30 neu- rônios que controlam o sistema de di- gestão e de mastigação do siri, isola-os cuidadosamente e inicia uma operação delicada: com o auxílio de um micros- cópio, implanta em uma dessas células nervosas um eletrodo de vidro preen- chido com uma solução de cloreto de potássio, cuja ponta é mais fina que um fio de cabelo. Fios de cobre conectam es- se eletrodo a um circuito eletrônico que converte os impulsos nervosos em nú- meros digitais, que podem ser entendi- dos por um computador comum, que agora cumpre um papel especial: subs- titui uma das células extraídas e atua como um neurônio artificial. Eis um siri biônico.

Nesse experimento, o físico avalia a capacidade do computador de executar a mesma função de um neurônio cha- mado disparador anterior, uma das 14 células nervosas que compõem o circui-

to pilórico, que comanda o transporte de alimento do estômago para o intes- tino. Se um desses neurônios é destruí- do ou se interrompe a comunicação com os centros nervosos no cérebro, os de- mais passam a emitir sinais elétricos de- sordenados e a digestão pára. É aí que o computador entra no jogo: devidamen- te programado, transforma-se em um neurônio virtual que se comporta co- mo seu similar biológico, de modo se- melhante a um marca-passo.

Outro eletrodo espetado no neurô- nio injeta uma corrente com íons - partículas atômicas carregadas eletro- nicamente - de potássio e de cloro que migram para a célula. Recria-se assim na célula o ambiente químico necessá- rio à transmissão do impulso nervoso. Tão logo recebe o estímulo, a célula nervosa do siri reage e transmite a in- formação para os neurônios seguintes.

0 PROJETO

Dinâmica não-linear

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR IBERê LUIZ CALDAS - Instituto de Física da USP

INVESTIMENTO R$ 476.477,50

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Page 57: O mal-estar da civilização

Siri-azul: mastigação auxiliada por eletrodos

Em menos de dois segundos, uma men- sagem chega ao estômago e os movi- mentos da musculatura voltam a em- purrar o alimento rumo ao intestino.

Com essa mesma técnica é possível estudar como diferentes tipos de sinap- ses, as conexões entre os neurônios, atuam no processamento de informa- ção, como relatado em um artigo pu- blicado em junho na Neuroscience. "É um jogo de perguntas e respostas em que tentamos compreender a lingua- gem usada pelos neurônios", diz Daniel Pinto. O desenvolvimento desses neu- rônios artificiais é um desdobramento do Projeto Temático coordenado pelo físico Iberê Luiz Caldas, que já resultou em um modelo de previsão do com- portamento das bolsas de valores (veja Pesquisa FAPESP n° 65).

Se ainda não compreendem a lingua- gem dos neurônios, os físicos conse- guem ao menos decifrar algumas de suas respostas. Em outro experimento, a equipe da USP simulou o funciona- mento de um grupo de neurônios que integra o conjunto de 30 células nervo- sas do circuito nervoso ligado à masti- gação e digestão do siri-azul, espécie encontrada no litoral brasileiro e apre- ciada por sua carne saborosa. Associa- dos ao controle da mastigação, 11 desses 30 neurônios transmitem as informa- ções em um ritmo muito mais lento que os do circuito pilórico. Quando se interrompe a comunicação entre essas

células e o gânglio central, o grupo to- do de neurônios pára de funcionar: os músculos que movimentam os dentes, localizados no estômago do siri, ficam paralisados. Dessa vez o computador não age apenas como um marca-passo que dispara sinais elétricos num ritmo constante: também recebe e interpreta sinais emitidos pelas células nervosas antes de enviar outro pulso elétrico.

As quatro equações - Devidamente programado, o computador envia estí- mulos elétricos para um neurônio es- pecífico do circuito desligado - o gás- trico lateral - e volta a ficar silencioso. Ao ser provocado, o gástrico lateral re- age com um rebote e devolve o impul- so elétrico ao neurônio artificial, antes de ficar novamente inativo. Cria-se um ciclo de estímulos, rebotes e silêncios que afeta os demais neurônios do gru- po. O resultado final é que o ritmo de funcionamento do circuito é recupera- do - e a mastigação volta a se mani- festar. "A simples presença do rebote e o ciclo de respostas e ausências de ati- vidade que ele acaba criando pare- cem ser suficientes para que o circuito volte à normalidade, sem a necessi- dade de um neurônio marca-passo", diz Daniel Pinto.

Ele não imaginava que teria de es- tudar o comportamento dos neurônios. Durante o doutorado, trabalhou com a Teoria do Caos e explicou os compor-

tamentos de gotas d'água que pingam de uma torneira semi-aberta. A con- vivência com equações que procu-

ram prever o desdobramento de fenômenos complexos foi fun- damental para a guinada em sua carreira. Durante seu pós- doutoramento na Universi- dade da Califórnia, em San Diego, Estados Unidos, Daniel

Pinto aplicou a física ao estudo da atividade dos neurônios de ou-

tro crustáceo, as lagostas espinhosas californianas (Panulirus interruptus), que medem até 40 centímetros. Foi quando desenvolveu o programa que faz um computador comum atuar como um neurônio.

Daniel Pinto resgatou um modelo matemático de neurônio que trabalha com três equações da Teoria do Caos e acrescentou uma quarta equação. Pôde assim construir um circuito eletrônico capaz de emitir sinais elétricos e atuar como um neurônio artificial. Mas havia limitações. Quando queria mu- dar a mensagem enviada às células bio- lógicas, tinha de recomeçar do zero e construir outro circuito. Com o aumen- to da velocidade e da capacidade de memória dos computadores, criou um programa baseado naquelas quatro equações que permite à máquina atuar como um neurônio digital. Agora ele consegue alterar as variáveis das equa- ções e fazer uma mesma máquina en- viar ordens diferentes para os neurônios verdadeiros.

Esse programa poderia levar à pro- dução de próteses anatômicas conten- do neurônios artificiais. Aprimorado, poderia também auxiliar no trata- mento de pessoas com paralisia nos braços e nas pernas. Mas ainda é futu- rologia. O físico Antônio Carlos Ro- que da Silva Filho, da USP de Ribeirão Preto, mistura otimismo e cautela ao explicar o estágio atual das pesquisas nessa área. "Nas últimas três décadas produziu-se grande quantidade de in- formações sobre o funcionamento do cérebro humano", diz ele. O desafio ainda é construir modelos matemáti- cos e computacionais que interpretem os dados gerados. "Fenômenos ligados à percepção e às emoções, como a me- mória e a consciência", afirma Silva Filho, "ainda permanecem ilustres desconhecidos". •

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

O site SciELO Brasil disponibiliza dados que permitem a análise das revistas da coleção. As informações podem ser consultadas a partir do módulo Relatório na página principal do site. Estão disponíveis as opções "Uso do site, Citações de revista, Co-autoria".

■ Fruticultura

Goiaba sustentável

O Brasil é um dos maiores produtores de goiaba do mundo, com um volume estimado de 390 mil toneladas em 2002. A produção concentra-se nas re- giões Sudeste e Nordes- te do país e o Estado de São Paulo é responsável por mais de 60% do total. A partir desse contexto, o artigo "Uso ferti- lizante de resíduo da indústria processadora de goiabas", de pesquisadores da Faculdade de Ciên- cias Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista, oferece uma avaliação dos efeitos da aplicação do resíduo da indústria processadora de goiabas na fertilidade do solo. O estudo é de José Mantovani, Márcio Corrêa, Mara Cristina da Cruz, Manoel Ferreira e Wil- liam Natale. Além do consumo in natura, pro- dutos industrializados são a principal forma de consumo da fruta no Brasil. Durante o proces- samento da goiaba, após o despolpamento e a lavagem com água clorada, o resíduo que sobra do processo é composto principalmente por se- mentes. Como apenas no Estado de São Paulo são produzidas 230 mil toneladas por ano da fruta, a produção anual de resíduo é de 10 mil toneladas. "Este resíduo tem sido descartado pela indústria a céu aberto ou, raramente, em aterros sanitários, e, com isso, grande quantida- de de nutrientes, que poderiam ser reciclados, não é aproveitada", acreditam os pesquisadores. Os experimentos, que tiveram como planta- teste o milho, combinaram cinco doses do resí- duo da indústria de goiabas. Os resultados são promissores: a adição de resíduo da indústria processadora de goiabas propiciou aumento nos teores de fósforo (P) e potássio (K) do solo, tanto na ausência quanto na presença do adubo mineral.

REVISTA BRASILEIRA DE FRUTICULTURA ■ - N° 2 - JABOTICABAL - AGO. 2004

VOL. 26

www.scielo.br/scielo.prip?script=sci_art- text&pid=S0100-29452004000200037&lng=pt&nrm= iso&tlng=pt

■ Violência

As causas do crime

"Entender o que leva as pessoas a cometer crimes é uma tarefa árdua. Afinal, não há con- senso sobre uma verdade universal, mesmo que esta se refira a uma determinada cultura, em um dado momento histórico." Esta frase no início do artigo "Determinantes da criminalida- de: arcabouços teóricos e resultados empíricos" mostra o desafio proposto por Daniel Cerquei- ra e Waldir Lobão, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Se- gundo o estudo, vários autores procuraram até hoje elaborar um modelo integrado para expli- car a violência, com enfoques nos níveis estru- tural, institucional, interpessoal e individual. "Tais anseios decorreram da percepção empíri- ca de que a violência e a sua tolerância variam significativamente entre as sociedades, entre as comunidades e entre os vários indivíduos." Principalmente a partir do início do século 20, os criminólogos começaram a estudar o assunto e identificaram uma série de fatores que, combi- nados em proporções e situações específicas, po- deriam explicar a causa dos crimes. Por conta disso, o objetivo do estudo foi investigar, com base na literatura, as várias teorias que explica- riam o comportamento criminoso. O apanha- do de algumas das mais substantivas contribui- ções, com orientações metodológicas retiradas das ciências sociais e da antropologia, passando pela economia e psicologia, está reunido no trabalho dos pesquisadores do Ipea. O estudo conta com uma descrição da lógica por trás de dez conjuntos distintos de teorias que, por cer- to, não esgotam o universo das teorias de cau- sação do crime. "Fica evidente, a partir da ex- posição dos vários modelos que explicam os determinantes da criminalidade, tratar-se de um fenômeno complexo e multifacetado, mas que possui determinadas regularidades estatís- ticas que variam conforme a região e a dinâmi- ca criminal, em particular", avaliam os autores do estudo.

DADOS- VOL. 47 - N° 2 - Rio DE JANEIRO - 2004

www.scielo.br/scielo.php?script=scLart- text&pid=S0011 -52582004000200002&lng=pt&nrm= iso&tlng=pt

58 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

Page 59: O mal-estar da civilização

■ Nutrição

A genética dos obesos

De acordo com o artigo "Aspectos genéticos da obe- sidade", de Iva Marques Lopes, Amélia Marti, Maria Aliaga e Alfredo Martínez, todos do Departamento de Fisiologia e Nutrição, da Universidade de Navarra, na Espanha, o componente genético constitui um fator de- terminante e um elemento de risco para diversas doen- ças crônicas como diabetes, osteoporose, hipertensão, câncer e obesidade. A partir de modelos animais os pesquisadores conseguiram identificar o comporta- mento de vários genes implicados no excesso de peso. Seguindo o princípio de que os genes intervém na ma- nutenção de peso e gordura corporal estáveis ao longo do tempo, os autores descobriram que "o balanço ener- gético, do qual participam a energia ingerida e a ener- gia gasta, parece depender cerca de 40% da herança ge- nética". A pesquisa revela a existência confirmada de pelo menos 30 genes envolvidos na obesidade. Os ge- nes que atraíram maior atenção nos últimos tempos foram: o da leptina (LEP) e seu receptor (LEPR), as proteínas desacoplantes (UCP2 e 3) e moléculas impli- cadas na diferenciação de adipócitos e transporte de li- pídios (PPAR, aP2). A análise também ratificou a hi- pótese de que filhos de pais obesos têm de 50% a 80% de chance de apresentar o mesmo problema.

REVISTA DE NUTRIçãO - VOL. 17 - N° 3 - CAMPINAS - JUL./SET. - 2004

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415- 52732004000300006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Indicadores

Mercado de trabalho

Analisar a evolução do mercado de trabalho na cida- de de São Paulo utilizando indicadores gerados a par- tir da base de dados da Pesquisa de Emprego e Desem- prego (PED). Esta é a proposta do artigo "O mercado de trabalho na Região Metropolitana de São Paulo", de Sérgio Mendonça, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômi- cos (Dieese), e Marise Hoffmann, analista técnica do mesmo órgão e consultora da Fundação Sistema Esta- dual de Análise de Dados (Seade). A PED, realizada pelo Dieese e pela Seade, é uma pesquisa domiciliar que produz indicadores estatísticos sobre a inserção da população no mercado de trabalho. Trata-se de um le- vantamento que identifica a situação de desemprego e as formas de trabalho geralmente consideradas como mais vulneráveis. As evidências estatísticas apresentadas no artigo indicam que, na década de 1990 e no início da atual, "o mercado de trabalho na Região Metropolitana de São Paulo vem sofrendo um processo acentuado de deterioração, tanto na capacidade de atender às de- mandas da população como nas características dos pos-

tos de trabalho gerados e nos valores dos rendimentos auferidos". Segundo o estudo, a indústria foi a princi- pal responsável pela perda de dinamismo do mercado de trabalho na região. "Coube aos setores de serviços e comércio compensar, em parte, a queda absoluta do ní- vel de ocupação industrial", dizem os autores. "Acom- panhando esta situação, cresceu o número de traba- lhadores ocupados como autônomos e empregados domésticos, bem como o de assalariados sem carteira de trabalho assinada."

ESTUDOS AVANçADOS - VOL. 17 - N° 47 - SãO PAULO - 2003

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 40142003000100003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Saúde

Lixo e trabalho

"O cotidiano dos sujeitos que vivem da reciclagem do lixo ainda é pouco trabalha- do pela saúde pública bra- sileira." Esta foi a justifica- tiva para a elaboração do artigo "Lixo, trabalho e saúde: um estudo de caso com catadores em um ater- ro metropolitano no Rio de Janeiro", que apresenta os resultados de uma investigação sobre as condições de vida de 218 catadores de materiais recicláveis da ca- pital carioca. O texto é de autoria de Marcelo Porto, da Escola Nacional de Saúde Pública, Denise Juncá, da Universidade Federal Fluminense, Raquel Gonçalves, da Secretaria Municipal do Bem-Estar Social da Prefei- tura de Rio das Ostras (RJ), e Maria Filhote, da Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro. Com base em um inquérito semi-estruturado, os pesquisadores ouviram os catadores no que diz respeito às percepções de suas condições de trabalho e saúde. A proposta do questio- nário foi construir um perfil geral dessas pessoas e, dessa forma, possibilitar maior aproximação com o "mundo do lixo". "Os trabalhadores entrevistados percebem o lixo como fonte de sobrevivência, a saú- de como capacidade para o trabalho e, portanto, ten- dem a negar a relação direta entre trabalho e proble- mas de saúde", revela o estudo. Os riscos levantados pelos pesquisadores apontam para a elevada pericu- losidade dessa atividade, agravada pelas condições de vida que apresenta, inclusive no que se refere aos lo- cais de moradia.

CADERNOS DE SAúDE PUBLICA - VOL. 20 - N° 6 - Rio DE

JANEIRO - NOV./DEZ. - 2004

www.scielo.br/scielo.php?script=scLarttext&pid=S0102- 311 X2004000600007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 59

Page 60: O mal-estar da civilização

I TECNOLOGIA

LINHA DE PRODUçãO MUNDO

A fotografia entre a ciência e a arte Um grupo de artistas e pes- quisadores reuniu-se na Universidade de Nova York para trabalhar no desenvol- vimento de um sistema fo- tográfico capaz de capturar e exibir um gigapixel - um bilhão de pixels - de infor- mação visual em uma única imagem. O evento, realiza- do no início de dezembro nos Estados Unidos, foi or- ganizado pelo artista foto- gráfico Clifford Ross e teve como parceiros os laborató- rios Sandia, corporação do grupo Lockheed Martin, e o Programa Interativo de Te- lecomunicações da Tisch School of the Arts, da uni- versidade nova-iorquina. O projeto de Ross, que recen- temente patenteou a câme- ra RI, que atinge uma das mais altas resoluções já al-

Imagens de altíssima resolução produzidas nos laboratórios Sandia

cançadas, está dividido em duas partes. A primeira consiste em projetar e cons- truir uma nova câmera, ex- pandindo o conceito incor- porado na RI, de modo a capturar um gigapixel de

informação digital na velo- cidade de 1/15 de segundo ou mais rapidamente. A se- gunda parte tem como obje- tivo criar um sistema de ví- deo capaz de dispor de uma visão de imagens em larga

escala enquanto o visor capta pequenos detalhes. O projeto poderá ser aplicado em várias áreas, entre as quais ciência ambiental, ex- ploração espacial, telecomu- nicações e segurança. •

■ Minúsculas esculturas

A tecnologia para produzir curiosas miniaturas esculpi- das em silício é a mesma que está sendo usada para desen- volver minúsculas antenas das próximas gerações de te- lefones celulares. A fabricação de micropeças é um desafio atual da atividade industrial, como provam os estudos da organização ligada à Universi- dade de Newcastle, na Ingla- terra, chamada de Utilização da Inovação na Nanotecnolo- gia, ou Innovation in Nanote- chnology Exploitation (Inex). Fundada em outubro 2002 como braço de negócio do

Instituto para a Ciência e Tec- nologia de Nanoescala da universidade, a Inex transfor- mou-se em uma organização independente de pesquisa e desenvolvimento, em junho

de 2004, fornecendo soluções integradas para microssiste- mas e em aplicações de nano- tecnologia para empresas. Para demonstrar o que é pos- sível fazer no âmbito dos mí-

Micropeças: de miniaturas a antenas de celulares

crons (1 mícron eqüivale a 0,001 milímetro), uma área que antecede em escala a na- notecnologia, os pesquisado- res do instituto fizeram mi- cropeças com imagens bem conhecidas na Inglaterra: a estátua do Anjo do Norte e da ponte Tyne, ambas no nordes- te daquele país. Cada imagem tem 400 mícrons de largura e os detalhes só podem ser vis- tos com microscópio. •

■ Sensor mede a glicose com luz

Retirar sangue para medir a taxa de glicose é um procedi- mento que está com os dias contados se depender de um

60 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

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grupo de pesquisadores da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, liderados por Micheal Strano. Eles inventa- ram um sensor formado por um nanotubo de carbono que contém uma proteína encap- sulada em seu interior e pode ser implantado, por sua vez, dentro de uma fina agulha sob a pele. A monitoração dos níveis de glicose é feita por meio de um aparelho de laser simples que detecta a radia-

ção infravermelha do nano- tubo de carbono. Isso é pos- sível porque a molécula de proteína junto com outros componentes químicos rea- ge com a glicose e altera a fluorescência dos nanotubos. Os pesquisadores receberam financiamento da Fundação Nacional de Ciência, NSF na sigla em inglês. O trabalho foi publicado na versão on-line da revista Nature Materials, em 13 de dezembro. •

Escada abaixo Uma cadeira de rodas ca- por três rodas maiores, paz de descer escadas po- que permite a descida de de salvar pessoas com cada degrau sem necessi- problemas de mobilida- dade de ajuda, a cadeira de em situações de emer- foi criada por Simon Kin- gência, já que nessas cir- gston, que a apresentou cunstâncias a primeira em seu projeto de con- providência recomenda- clusão do curso de dese- da é evitar os elevadores nho industrial na Univer- (London Press Service). sidade Northumbria, em Dotada de um sistema de Newcastle, Inglaterra. 0 esteira rolante na parte braço trabalha de forma dianteira, utilizado para semelhante a uma peque- controlar o deslocamen- na alavanca que aciona o to escada abaixo, e uma mecanismo de funciona- rotação tripla, composta mento. •

Esteira rolante

na parte dianteira

da cadeira controla

a descida

y^ ^^ A T

BRASIL

Uva para suco adaptada aos trópicos

BRS Cora: 30 toneladas de uva por hectare a cada safra

Se depender dos esforços da Embrapa Uva e Vinho, as ter- ras do Brasil central, onde a soja e a pecuária avançam, poderão abrigar também ex- tensos vinhedos. A unidade da Embrapa, situada em Ben- to Gonçalves, Rio Grande de Sul, lançou recentemente uma variedade de uva para suco, a BRS Cora, adaptada para as regiões tropicais, onde a viti- cultura é uma atividade agrí- cola emergente. A nova cepa é fruto de 12 anos de pesquisas com melhoramento genético clássico e foi obtida a partir do cruzamento de duas varie- dades, a Muscat Belly A e a H 65.9.14. Além de ser rica em açúcar, é muito produtiva em zonas quentes. A cada safra, seu rendimento chega a 30 toneladas por hectare, um terço a mais do que o desem- penho da Bordo, uma das principais cepas cultivadas no Sul para fazer suco. "A BRS Cora já começou a ser planta- da em áreas comerciais de Goiás, do Vale do São Francis-

co e do Mato Grosso, onde fi- zemos a sua validação", afir- ma o pesquisador Umberto Almeida Camargo, da Em- brapa, coordenador da equi- pe que desenvolveu a varie- dade. "Essas regiões são novas fronteiras na produção de uva para suco." Hoje o Rio Grande do Sul, estado de cli- ma semitemperado, é o prin- cipal fornecedor desse tipo de uva. Em geral, esse produto é uma mistura do sumo das va- riedades Isabel, Condord e Bordo. A Isabel responde pelo maior volume do blend, sen- do a sua base. A Concord me- lhora o aroma e o sabor da mistura, e a Bordo lhe dá mais cor. Também rica em pigmen- tos, a BRS Cora, cujo plantio também é recomendado em áreas da Serra Gaúcha e do noroeste paulista, foi criada para substituir a Bordo no blend de suco de uva originá- rio de zonas quentes. A Bor- do e a Concord não se adap- tam ao cultivo em regiões tropicais. •

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Page 62: O mal-estar da civilização

grupo de pesquisadores da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, liderados por Micheal Strano. Eles inventa- ram um sensor formado por um nanotubo de carbono que contém uma proteína encap- sulada em seu interior e pode ser implantado, por sua vez, dentro de uma fina agulha sob a pele. A monitoração dos níveis de glicose é feita por meio de um aparelho de laser simples que detecta a radia-

ção infravermelha do nano- tubo de carbono. Isso é pos- sível porque a molécula de proteína junto com outros componentes químicos rea- ge com a glicose e altera a fluorescência dos nanotubos. Os pesquisadores receberam financiamento da Fundação Nacional de Ciência, NSF na sigla em inglês. O trabalho foi publicado na versão on-line da revista Nature Materials, em 13 de dezembro. •

Escada abaixo Uma cadeira de rodas ca- por três rodas maiores, paz de descer escadas po- que permite a descida de de salvar pessoas com cada degrau sem necessi- problemas de mobilida- dade de ajuda, a cadeira de em situações de emer- foi criada por Simon Kin- gência, já que nessas cir- gston, que a apresentou cunstâncias a primeira em seu projeto de con- providência recomenda- clusão do curso de dese- da é evitar os elevadores nho industrial na Univer- (London Press Service). sidade Northumbria, em Dotada de um sistema de Newcastle, Inglaterra. 0 esteira rolante na parte braço trabalha de forma dianteira, utilizado para semelhante a uma peque- controlar o deslocamen- na alavanca que aciona o to escada abaixo, e uma mecanismo de funciona- rotação tripla, composta mento. •

Esteira rolante

na parte dianteira

da cadeira controla

a descida

y^ ^^ A T

BRASIL

Uva para suco adaptada aos trópicos

BRS Cora: 30 toneladas de uva por hectare a cada safra

Se depender dos esforços da Embrapa Uva e Vinho, as ter- ras do Brasil central, onde a soja e a pecuária avançam, poderão abrigar também ex- tensos vinhedos. A unidade da Embrapa, situada em Ben- to Gonçalves, Rio Grande de Sul, lançou recentemente uma variedade de uva para suco, a BRS Cora, adaptada para as regiões tropicais, onde a viti- cultura é uma atividade agrí- cola emergente. A nova cepa é fruto de 12 anos de pesquisas com melhoramento genético clássico e foi obtida a partir do cruzamento de duas varie- dades, a Muscat Belly A e a H 65.9.14. Além de ser rica em açúcar, é muito produtiva em zonas quentes. A cada safra, seu rendimento chega a 30 toneladas por hectare, um terço a mais do que o desem- penho da Bordo, uma das principais cepas cultivadas no Sul para fazer suco. "A BRS Cora já começou a ser planta- da em áreas comerciais de Goiás, do Vale do São Francis-

co e do Mato Grosso, onde fi- zemos a sua validação", afir- ma o pesquisador Umberto Almeida Camargo, da Em- brapa, coordenador da equi- pe que desenvolveu a varie- dade. "Essas regiões são novas fronteiras na produção de uva para suco." Hoje o Rio Grande do Sul, estado de cli- ma semitemperado, é o prin- cipal fornecedor desse tipo de uva. Em geral, esse produto é uma mistura do sumo das va- riedades Isabel, Condord e Bordo. A Isabel responde pelo maior volume do blend, sen- do a sua base. A Concord me- lhora o aroma e o sabor da mistura, e a Bordo lhe dá mais cor. Também rica em pigmen- tos, a BRS Cora, cujo plantio também é recomendado em áreas da Serra Gaúcha e do noroeste paulista, foi criada para substituir a Bordo no blend de suco de uva originá- rio de zonas quentes. A Bor- do e a Concord não se adap- tam ao cultivo em regiões tropicais. •

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Page 63: O mal-estar da civilização

■ O primeiro vôo do maior avião

O quarto e último represen- tante da nova geração de jatos da Embraer decolou pela pri- meira vez no dia 7 de dezem-

Matemática com madeira e rebites

' Multiplano: método simples que auxilia deficientes visuais

Com materiais bem sim- ples, como placas de ma- deira compensada, rebites, elásticos e varetas metálicas, deficientes visuais podem aprender desde simples operações matemáticas, co- mo somar, subtrair, divi- dir e multiplicar, além de reconhecer formas geo- métricas, entender concei- tos aplicados à trigonome- tria e ainda fazer cálculos de gastos mensais. Para os cálculos são utilizados re-

achatada,

percepção com o tato de números escritos em alga- rismos arábicos e em brai- lle. Batizado de Multiplano, o método começou a ser desenvolvido pelo professor de matemática Rubens Fer- ronato em 2000, ao perce- ber que um aluno cego do primeiro ano do curso de Ciência da Computação da Faculdade União Pan-Ame- ricana de Ensino, de Cas-

cavel, no Paraná, perdeu o interesse pelas aulas por não compreender certos conteúdos dados em sala de aula. Como parte do projeto, foi criado por Ro- naldo Fernandes, ex-aluno de Ferronato, um progra- ma de computador, cha- mado de Multiplano Vir- tual, com interface de voz que possibilita ao deficien- te visual criar figuras ou mesmo gráficos de estatís- tica. Um sistema de voz in- forma ao usuário a posição em que ele se encontra. •

bro da pista da empresa em São José dos Campos. O Em- braer 195 é o maior avião construído no país com 10,52 metros de altura e 38,52 m de comprimento. Ele poderá le- var até 110 passageiros, com- pletando assim a família 170- 190 projetada para oferecer aviões de 70 a 110 passagei- ros. A certificação da nova aeronave deve acontecer no segundo semestre de 2006. •

■ Programa organiza projetos de pesquisa

Um novo software, desenvol- vido na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), tem como proposta ajudar os pesquisa-

195: 38 metros de comprimento e 110 passageiros

dores a organizar e sistemati- zar seus estudos. O programa, chamado de Qualiquantsof, foi baseado no Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), uma técnica de pesquisa qualitati- va em que a matéria-prima

são depoimentos, de onde se extraem as idéias centrais e as correspondentes expressões- chave. A metodologia preten- de fazer uma coletividade falar como se fosse um só indiví- duo. O programa foi desen- volvido por Fernando Lefevre e Ana Maria Lefevre, ambos do Departamento de Prática de Saúde Pública da universi- dade, em parceria com a em- presa Sales e Paschoal Infor- mática. O programa pode ser aplicado em várias áreas, co- mo pesquisa social, de opi- nião e de mercado. •

62 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

Page 64: O mal-estar da civilização

■ Inovação distribui prêmios de categoria

Entre os prêmios destinados a empresas e instituições de base tecnológica em 2004, um dos destaques foi a pre- miação na categoria ecologia, para a modalidade micro e pequena indústria da Confe- deração Nacional da Indús- tria (CNI). A ganhadora foi a Electrocell, incubada no Cen- tro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec), de São Paulo. A empresa produz cé- lulas a combustível que ge- ram energia elétrica a partir do hidrogênio com poluição zero. Outra empresa, a Ades- pec, também do Cietec, ga-

gre, que congrega 27 empre- sas, uma incubadora e oito centros de pesquisa e desen- volvimento. A empresa incu- bada do ano é a Natupol, da incubadora da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), em São José dos Campos, que produz polímeros com óleo de mamona. Na categoria projeto inovador, o Instituto Gênesis, da PUC do Rio de Janeiro, ganhou com o proje- to "Atração de recursos hu- manos para as empresas resi- dentes da incubadora". Em outro prêmio, o de Inovação Tecnológica da Financiadora de Estudos e Projetos (Fi- nep), na categoria produto, a vencedora foi a Mecat, em-

Célula a combustível da Electrocell: prêmio da CNI

nhou na categoria graduada (que deixou a incubadora) no prêmio da Associação Nacio- nal de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inova- dores (Anprotec). A empresa criou uma série de adesivos industriais. A incubadora de empresa de base tecnológica do ano foi a Biominas, de Belo Horizonte, Minas Gerais. As empresas incubadas fatura- ram, em 2003, R$ 7 milhões, enquanto as graduadas, R$ 42,6 milhões. A categoria de melhor parque tecnológico é da Tecnopuc, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Ale-

presa da cidade de Abadia de Goiás, que desenvolveu um filtro industrial. Na categoria processo, a empresa Endo- view, de Recife, Pernambu- co, produziu um endoscópio mais barato. A Bematech, de Curitiba, Paraná, ganhou na categoria média-grande em- presa pela produção de im- pressoras para pontos-de- venda. A pequena empresa vencedora foi a Pipeway, do Rio de Janeiro, que faz inspe- ção de oleodutos. O título da instituição de pesquisa do ano ficou com o Centro de Estudo e Sistemas Avançados do Recife (César). •

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento

e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: [email protected]

Feijão sem caruncho com a ajuda da pata-de-vaca

Ganhos das plantas e do homem

Um pesticida natural que pode ser aplicado em se- mentes e plantações de feijão para eliminar bac- térias, fungos e, principal- mente, inibir o apareci- mento do caruncho que traz sérios prejuízos a essa cultura agrícola. Inerte aos humanos e ao ambiente natural, o princípio ativo desse pesticida foi desen- volvido pela equipe da professora Maria Luiza Vilela Oliva, da Universi- dade Federal de São Pau- lo (Unifesp), a partir da extração de um peptídeo (proteína pequena) da árvore pata-de-vaca {Bau- hinia sp.), da flora brasi- leira. Essa proteína, além de eliminar os insetos e microorganismos por meio tradicional (pela respiração), aciona me- canismos que inibem a atividade de enzimas di- gestivas dos carunchos. Ela induz também a uma resistência orgânica da

planta contra os predado- res. Outra reivindicação da patente é a eficiência do peptídeo no bloqueio da adesão celular, carac- terística que o leva a ser indicado para uma pos- sível composição farma- cêutica para prevenir e tratar doenças que en- volvem inflamação e crescimento de células tumorais, inclusive me- lanomas. A aplicação dessa patente depende agora de licenciamento para empresas dispostas a investir em novos testes e no desenvolvimento fi- nal dos produtos agríco- las e farmacêuticos.

Título: Peptídeo YLEPVARGDGGLA e seus derivados Inventores: Maria Luiza Vilela Oliva, Cláudio Sampaio e Misako Sampaio Titularidade: FAPESP/Unifesp

PESOUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 63

Page 65: O mal-estar da civilização

TECNOLOGIA

INOVAÇÃO

Garantia de origem Em um ano, Unicamp fecha com empresas contratos de licenciamento de 26 patentes

DlNORAH ERENO

Crianças transportadas com mais segurança em auto- móveis e um novo método para testar a surdez con- gênita em recém-nascidos são alguns dos novos pro- dutos prontos para entrar no mercado originados de projetos de pesquisa da Universidade Estadual de

Campinas (Unicamp). Para sair dos laboratórios, as descobertas passaram pelo crivo da Agência de Inovação (Inova) da universi- dade, que, em apenas um ano de atividade, conseguiu fechar 13 contratos de licenciamento com empresas para exploração comer- cial de 26 patentes. Além dos contratos já assinados, alguns por um período de mais de dez anos de duração, outros 17 estão em nego- ciação. Cada um deles deve gerar, em média, R$ 200 mil por ano para a universidade assim que as empresas começarem a vender os produtos, segundo projeção feita pela Inova. Os resultados obtidos pela agência em tão curto período de tempo ultrapassam, e mui- to, a meta inicial de licenciar dez patentes por ano. Para ter idéia do que esses números representam, basta fazer uma retrospectiva. Antes da criação da agência, apenas quatro contratos de licencia- mento, referentes a seis patentes, haviam sido fechados pela Uni- camp em dez anos (veja Pesquisa Fapesp n° 97).

Criada em julho de 2003, a agência começou a funcionar efe- tivamente em outubro do ano passado. "Inicialmente organiza- mos as patentes em um banco de dados na internet para as empre- sas poderem ter acesso a essas inovações tecnológicas", conta

| Rosana Di Ceron Giorgio, diretora de Propriedade Intelectual da | Inova. "Apenas em janeiro começamos a abordar as empresas." A i resposta a essas visitas foi quase imediata. De janeiro a julho de I 2004 foram assinados nove contratos de licenciamento de paten-

tes. Um deles refere-se ao novo método Formulações aplicadas para diagnosticar a surdez genética, de- no revestimento senvolvido pela professora Edi Lúcia de stents impedem Sartorato, do Centro de Biologia Mole- nova obstrução do cular e Engenharia Genética (CBMEG) vaso sangüíneo da Unicamp, e financiado pela FAPESP.

Page 66: O mal-estar da civilização

No início de novembro, o teste foi lançado comercialmente pela empresa DLE - Diagnósticos Laboratoriais Especializados, do Rio de Janeiro, especializada em exames para recém-nascidos. "O grande diferencial dessa metodologia é que o teste foi adaptado para a técnica de coleta de amostra de sangue em papel de filtro, onde é feito o teste do pezinho. Essa é a grande revolução do pro- cesso", diz o patologista clínico Armando Fonseca, diretor-geral da empresa. Até agora, o diagnóstico da doença era feito por um exame de sangue comum. "Como se trata de uma amostra seca, ela pode ser transportada sem refrigeração", diz Fonseca.

O teste pode ser associado ao do pezinho, obrigatório no Brasil para identificar pelo menos três tipos de doenças (hipotireoidismo, anemia falciforme e fe- nilcetonúria), ou aplicado sozinho em recém-nasci- dos e também em crianças e adultos com surdez

sem causa definida. "A surdez congênita não tem cura, mas existe um consenso mundial de que o diagnóstico deve ser feito até os 3 meses de idade, com intervenção até os 6 meses, para garantir me- lhor qualidade de vida para a criança", diz Edi. O teste de surdez genética adaptado ao do pezinho custa em torno de R$ 65,00 para o consumidor, enquanto o tradicional fica em cerca de R$ 300,00. O projeto também resultou em uma segunda patente - um kit de diagnóstico molecular para surdez congênita -, negociada pela Inova com a empresa Feldmann Wild Leitz, da Amazônia.

Outra inovação tecnológica gerada na universidade, prevista para chegar ao mercado ainda neste mês de janeiro, é um assento para carros com cinto de segurança destinado a transportar crian- ças acima de 3 anos, fabricado pela empresa Safe Kid, de Senador Canedo, em Goiás. A idéia é simples e funcional. A cadeirinha, chamada pelos pesquisadores de placa de retenção, é afixada no banco traseiro do veículo pelo próprio cinto de segurança. Para chegar ao novo assento, que se adapta à estrutura anatômica das crianças, o professor Antônio Celso Arruda, da Faculdade de En- genharia Mecânica (FEM), da Unicamp, e coordenador da pes- quisa, contou com a colaboração de engenheiros, pediatra, orto- pedista e psicólogo. "O assento atende a todos os requisitos da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)", relata Peixo- to Bueno de Camargo, diretor comercial da empresa. "Resiste a chamas e é também antialérgico." Quando ainda na fase de pro- tótipo, o produto foi testado e aprovado em dois testes: em coli- são de automóvel com um caminhão a 50 quilômetros por hora e contra barreira rígida em condições de impacto superiores às exigidas pela norma brasileira de trânsito. Peixoto ressalta que a fivela do equipamento permanece sempre no mesmo lugar, mes- mo que a criança se movimente, porque foram colocadas fitas tensoras tanto nas faixas de proteção que descem pelos ombros como no cinto que passa pela região pélvica. Além da questão da segurança, o preço do assento, em torno de R$ 150,00, é um gran- de atrativo para o produto, que, além de ser lançado no mercado nacional, deverá ser exportado inicialmente para Argentina, Ca- nadá e Europa.

Em outro segmento, o de fitoterápicos, outra patente gerou um produto que também está pronto para disputar o mercado. São cápsulas de iso- Cápsulas de isoflavona flavonas de soja, obtidas por uma nova de soja, fabricadas pela técnica, para tratamento de reposição empresa Steviafarma, hormonal em mulheres, fabricadas pela usadas para reposição empresa Steviafarma, de Maringá, no hormonal

Page 67: O mal-estar da civilização

Paraná. A pesquisa que resultou na pa- tente, a primeira licenciada pela Inova, foi conduzida pelo professor Yong Kun Park, do Laboratório de Bioquímica de Alimentos, da Faculdade de Engenha- ria de Alimentos (FEA), e financiada pela FAPESP. O processo de extração converte as isoflavonas glicosiladas de soja em agliconas. Esse processo ocor- re normalmente no aparelho digestivo, quando enzimas digestivas produzidas pela microflora intestinal transfor- mam as isoflavonas glicosiladas em agliconas, absorvidas pelo organismo. "O fitoterápico de isoflavona aglicona já está na concentração ideal para ser absorvido pelo organismo", diz Fer- nando Meneguetti, diretor da empresa que tem como carro-chefe um adoçan- te natural extraído da planta estévia.

Na mesma área da saúde, duas novas formulações para princípios ativos consagrados usados em anestésicos, desenvolvi-

das no Instituto de Biologia, estão sen- do testadas pela Cristália Produtos Químicos e Farmacêuticos, laborató- rio brasileiro com unidades de produ- ção na capital paulista e na cidade de Itapira, em São Paulo. "Mudanças na tecnologia farmacêutica utilizada re- sultaram em formulações com caracte- rísticas inovadoras, como menor toxi- cidade, maior segurança e efeito mais duradouro em comparação com os produtos disponíveis atualmente", diz Roberto Debom Moreira, gerente de Pesquisa e Desenvolvimento de Novos Produtos da empresa, que tem em seu portfólio mais de 150 produtos. Como se trata de uma nova tecnologia, o ca- minho a percorrer até chegar ao merca- do é mais demorado. "A fase de desen- volvimento e registro pode se estender de três a cinco anos", relata Debom. A parceria da empresa com a universida- de começou assim que a pesquisa, co- ordenada pela professora Eneida de Paula e com financiamento da FAPE- SP, teve início. Ao ser procurada pelos pesquisadores da Unicamp, que bus- cavam obter o princípio ativo do me- dicamento para começar um novo projeto, a Cristália vislumbrou a pos- sibilidade de associação para transfor- mar a pesquisa em produto, o que aca- bou se concretizando.

Ainda na área de novas formulações, dessa vez aplicadas a biomateriais para revestir stents, um dispositivo inserido em veias ou artérias em cirurgias de an- gioplastia para desobstruí-las, foram li- cenciadas seis patentes pela Scitech, de São Paulo. Os novos compostos, que têm como matéria-prima o oxido nítri- co (NO), uma das menores moléculas produzidas pelo organismo, possuem propriedades antitrombóticas, antiin- flamatórias e antiproliferativas, ativida- de que impede o crescimento celular. As pesquisas, coordenadas pelo profes- sor Marcelo Ganzarolli de Oliveira, do Instituto de Química, receberam apoio financeiro da FAPESP.

Fase embrionária - Rosana destaca que mais de 90% das tecnologias paten- teadas pela universidade precisam ser desenvolvidas dentro das empresas, porque elas ainda estão em uma fase embrionária da pesquisa. Por isso todos os contratos assinados pela Inova são compostos por três documentos: um convênio de cessão de propriedade inte- lectual, um aditivo visando ao desenvol- vimento do produto (fase que será to- talmente custeada pela empresa) e um

contrato de licenciamento. Se durante a fase de desenvolvimento for gerada uma nova patente, a propriedade inte- lectual é dividida em partes iguais entre a Unicamp e a empresa. No aditivo está previsto que, se no final do desenvolvi- mento ficar evidente que a tecnologia não é viável de ser produzida em larga escala, por motivos técnicos ou econô- micos, a empresa pode rescindir o con- trato. "Mas se for concluído que a tec- nologia vai ser bem-sucedida em escala industrial o contrato de licenciamento já começa a vigorar", relata Rosana. Nes- se contrato está previsto um prazo para que a empresa comece a fabricar o pro- duto quando terminar a fase de desen- volvimento. E também como serão pa- gos os royalties para a Unicamp, que variam de 2% a 10% sobre as vendas. "Trabalhamos sempre para viabilizar o negócio", diz a diretora. Por isso a por- centagem é estudada caso a caso. Todos os instrumentos jurídicos são assinados no mesmo dia. "Não adianta esperar para ver se a tecnologia é bem-sucedi- da para negociar os royalties, porque aí não se consegue negociar mais."

Os últimos contratos assinados tra- tam de quatro inovações, duas delas saí-

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Assento para transportar crianças com mais de 3 anos foi aprovado em testes de colisão de carro

das dos laboratórios do Departamen- to de Tecnologia de Alimentos da FEA. Uma refere-se a um cereal matinal al- tamente nutritivo, baseado na dobra- dinha castanha-do-brasil, nome oficial da castanha-do-pará, e mandioca, de- senvolvido pela professora Hilary Cas- tle de Menezes e financiado pela FA- PESP. O produto, com baixo teor de gordura porque não utiliza o óleo da castanha, é rico em fibras, selênio, ele- mento essencial para o funcionamento do cérebro, e proteínas vegetais. A em- presa escolhida para fabricar o cereal foi a Ipixuna, de Porto Velho, Rondô- nia. A escolha das empresas que vão as- sinar os contratos de licenciamento leva em conta vários critérios. No caso do cereal, a localização, perto das cas-

tanheiras, contou pontos na hora da seleção. O fato de a empresa ter uma extrusora, equipamento necessário pa- ra o processo de produção, também. "Quando o negócio dá certo, todos ga- nham", diz Rosana. Essa é a meta da Inova ao analisar as empresas candida- tas. O processo de seleção ocorre de vá- rias maneiras. No início a equipe da agência saía a campo para fazer os con- tatos. "Chegamos a contatar umas 500 empresas", diz Rosana. "Atualmente, a demanda está tão alta, até em função dos resultados, que quase não conse- guimos mais sair daqui."

Outra patente negociada recente- mente, também fruto de pesquisa desen- volvida na FEA, é uma bebida fermenta- da a partir de extrato hidrossolúvel de

soja composta por agentes probióticos, que são microorganismos vivos, como as bactérias do gênero Lactobacillus, e prebióticos (substrato para os agentes probióticos, como as fibras solúveis ali- mentares). "O produto é um alimento funcional, que tem o benefício multipli- cado por conta da simbiose entre os mi- croorganismos e o componente prebió- tico", diz o professor Francisco Maugeri Filho, coordenador da pesquisa. "O efei- to é mais imediato e eficaz para manter o equilíbrio da flora intestinal." Assim, o organismo se beneficia com a redução do colesterol e dos triglicérides, além das demais vantagens obtidas com os mi- crorganismos. O desenvolvimento da bebida, conduzido pela empresa Proce- edings, de São Paulo, e pelo Laborató- rio de Engenharia de Bioprocessos, da FEA, está na fase final.

A s duas outras inovações tec- g^L nológicas negociadas são JL^M um novo processo de fabri-

È M cação de nanocompósitos <JL* «^^ de termoplásticos com ar- gilas intercaladas, criado no Instituto de Química sob a coordenação do profes- sor Fernando Galembeck, e um sistema de identificação por radiofreqüência, conhecido pela sigla em inglês RFID, de Radio Frequency Identification, desen- volvido pelo professor Hugo Figueroa, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (Feec), e utilizado para monitorar o armazenamento e o tráfe- go de produtos. A aplicação do proces- so na fabricação de nanocompósitos, li- cenciado pela empresa EF Engenharia, de São Paulo, modifica várias proprie- dades dos polímeros e permite sua uti- lização em plásticos destinados à in- dústria de calçados, construção civil e de luvas cirúrgicas. As etiquetas RFID incorporam um minúsculo microchip e uma antena de rádio a produtos com- pactos. Depois cada código é digitali- zado por um equipamento de leitura automática. Eles servem para rastrear embalagens, equipamentos de produ- ção e até gado. A patente foi licenciada pela STP Teleinformática, de São Paulo.

Além dos contratos de licenciamen- to, a agência também trabalha com contratos baseados em demandas. São desenvolvimentos novos, em que as empresas querem um fármaco ou ali- mento e, para isso, procuram a univer-

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 67

Page 69: O mal-estar da civilização

sidade. Muitos desses contratos envol- vem novas tecnologias que geram pro- priedade intelectual. "Quando isso ocorre, a patente é dividida entre em- presa e universidade", relata Rosana. Até o início de dezembro de 2004 a Inova já havia fechado 61 contratos baseados em demandas e outros 77 estavam em negociação. A equipe comandada por Rosana, engenheira eletrônica que es- colheu a área de negócios como campo de trabalho, é formada por seis pessoas denominadas agentes de parcerias.

A Inova tem sido bastante procura- da por universidades, centros de pes- quisa e instituições, interessados em conhecer o modelo adotado. O Exérci- to brasileiro, por exemplo, procurou a agência porque queria ajuda para co- mercializar seus produtos, já que muitas tecnologias desenvolvidas para a área militar podem ter aplicação na área ci- vil. A forma encontrada para atender ao pleito foi colocar duas pessoas remune- radas pela instituição para trabalhar junto com a equipe da agência durante

Kit de diagnóstico molecular para testar surdez congênita

um ano. Depois desse período, elas es- tarão capacitadas a prospectar os ni- chos de mercado em que se encaixam as inovações e negociar o licenciamen- to das patentes.

Atualmente a Unicamp tem cerca de 340 patentes depositadas, o que sig- nifica que ainda há muito a fazer. Co- mo não há recursos disponíveis para contratar novos agentes de parcerias, para continuar a crescer a Inova preten- de contratar bolsistas que serão trazidos do mercado. Com mais colaboradores, a agência vai setorizar seus agentes de parcerias. Cada um ficará encarregado de uma área, como por exemplo fárma- cos e alimentos, mobilidade que englo- ba os setores automotivo, naval e aero- espacial, Lei de Informática, instituições públicas e leis de incentivo para a área cultural. Rosana diz que a setorização vai permitir que os agentes conheçam as medidas de governo relacionadas a cada setor, além das necessidades e de- mandas específicas. "Vamos poder ge- rar soluções que serão multiplicadas. E os resultados deverão ser melhores ain- da", acredita. •

r i Patentes licenciadas

Produto Empresa Origem na Unicamp

Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG)

Teste de surdez congênita DLE - Diagnósticos Laboratoriais Especializados, Rio de Janeiro, RJ

Kit de diagnóstico de surdez congênita Feldmann Wild Leitz, de Manaus, AM CBMEG

Assento de segurança para crianças Safe Kid, de Senador Canedo, GO Faculdade de Engenharia Mecânica

Cápsulas de isoflavona de soja Steviafarma, de Maringá, PR Faculdade de Engenharia de Alimentos

Anestésicos (duas patentes) Cristália, São Paulo, SP Instituto de Biologia

Revestimento de stents (seis patentes) Scitech, São Paulo, SP Instituto de Química

Cera de cana-de-açúcar Usina São Francisco, Sertãozinho, SP Faculdade de Engenharia de Alimentos

Sistema para tratar efluentes (oito patentes) TechFilter, Indaiatuba, SP Faculdade de Engenharia Mecânica

Automação de análises químicas TechChrom, Campinas, SP Instituto de Química

Cereal matinal Ipixuna, Porto Velho, RO Faculdade de Engenharia de Alimentos

Bebida fermentada de soja Proceedings, São Paulo, SP Faculdade de Engenharia de Alimentos

Nanocompósitos de termoplásticos EF Engenharia, São Paulo, SP Instituto de Química

Identificação por radiofreqüência (RFID) STP Telefinformática, São Paulo, SP Faculdade de Engenharia Elétrica

68 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

Page 70: O mal-estar da civilização

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Page 71: O mal-estar da civilização

I TECNOLOGIA

ENGENHARIA CIVIL

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Economia nas torneiras Água de chuva aproveitada em sistema de coleta serve para regar plantas e lavar carros

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DlNORAH ERENO

A CCllí

A cena é bastante conhecida dos

paulistanos. As chuvas de ve- rão provocam alagamentos

em vários pontos da cida- de, mas muitos bairros

não têm água nas torneiras por conta da escassez nos reservatórios. Se parte desse líquido, em vez de escorrer para as galerias pluviais, for coletada, arma- zenada e utilizada para regar plantas, lavar calçadas, pátios e veículos ou ain- da como descarga em vasos sanitários, o fluxo de água para os córregos e rios vai diminuir, contribuindo para redu- zir as enchentes e os alagamentos. Par- tindo desse princípio, pesquisadores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), coordenados pelo professor Racine Tadeu Araújo Prado, sentiram-se motivados a projetar e montar um sistema de coleta e apro- veitamento de água de chuva no Cen- tro de Técnicas de Construção Civil da universidade que pode ser usado em vários tipos de construção, com poucos investimentos.

Um dos sistemas recomendados para eliminar a primeira água de lava- gem do telhado possui dois reservató- rios, um pequeno, que coleta e despre- za automaticamente a chuva que cai

nos primeiros minutos por ser muito suja, e um grande, utilizado para arma- zenar efetivamente o líquido. Assim que o pequeno fica cheio é fechado por uma bóia, semelhante às utilizadas em caixas-d'água residenciais, e o maior começa a receber a água. Um filtro co- locado nas calhas retém folhas, galhos e outras sujeiras e impede o entupi- mento das tubulações. Se não for possí- vel colocar os reservatórios diretamente no forro do edifício, é necessário a ins- talação de um reservatório no térreo, que fica enterrado, e outro no forro, para bombear a água. O emprego de dois reservatórios aumenta a capacida- de de suprimento ao longo da estação seca. E a energia despendida para o bombeamento é muito pequena e não onera o sistema.

Para analisar a qualidade da água da chuva, foi instalado um coletor auto- mático de amostras seqüenciais que mantém o líquido a 5°C para facilitar a avaliação. Esse coletor foi desenvolvido especialmente para o projeto financia- do pela FAPESP com o objetivo de ob- ter parâmetros físicos, químicos e bio- lógicos do líquido coletado. Para avaliar as condições da água, de novembro de 2003 a março de 2004, os pesquisadores

coletaram amostras enviadas posterior- mente para análise no Instituto Adolfo Lutz. Uma das descobertas feitas é que antes de passar por áreas impermeá- veis, como o telhado, a água de chuva é ácida, com um pH de 4,9. Mas à medi- da que vai incorporando os sais e ou- tras substâncias que estão no telhado ela vai se tornando mais alcalina e fica com o pH em torno de 7, portanto dentro das recomendações de potabili- dade de água do Ministério da Saúde, que vai de 6 a 9,5. "Mas constatamos al- guns problemas", relata o professor Ra- cine Prado. "Além de todo o material particulado emitido pelos veículos e in- dústrias que está no ar e se deposita nos telhados, também encontramos folhas de árvores, galhos, fezes de pássaros e pequenos animais mortos." Toda essa sujeira acumulada, principalmente de- pois de um longo período de seca, des- ce com a água. Por isso uma das reco- mendações dos pesquisadores para a coleta, baseada nos resultados das aná- lises das amostras, é descartar a água proveniente dos primeiros quinze mi- nutos de chuva, tempo necessário para que seja feita a limpeza do telhado. Por isso é importante que o sistema seja composto por dois reservatórios.

%

«

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as análises realizadas, o parâmetro odor esteve ausente em todas as amos- tras. Na avaliação de Racine Prado, os dados coletados e analisados mostram que dá para aproveitar a água de chuva, mas é necessário ter alguns cuidados. "Encontramos coliformes fecais, pro- venientes de animais de sangue quente, como pássaros, gatos e ratos, em 50% das amostras, além de outras bactérias que impedem sua utilização para higie- ne pessoal ou lavagem de roupas." Para esses usos, é necessário que ela seja tra- tada. Já para as plantas, quintais, calça- das e carros, não há maiores problemas, ressalta o pesquisador, porque normal- mente eles recebem essa água.

s postos de gasolina po- dem também utilizar T) I essa água, porque o con- tato humano é muito pequeno e os carros não

têm grandes exigências", cüz Racine Pra- do. Nesse caso, é mais fácil colocar o re- servatório enterrado no chão do posto, porque não ocupa área de terreno. De qualquer forma, o pesquisador alerta que é necessário primeiro fazer o cálcu- lo da necessidade de consumo antes de iniciar qualquer obra. Para um posto,

por exemplo, esse cálculo deve conside- rar o período do ano em que a água será usada. Também é preciso levar em con- ta que um reservatório enterrado, ou não, exige uma obra de construção civil. Por isso ele ressalta que a viabilidade do sistema coletor depende basicamente de três fatores: precipitação, área de coleta e demanda. Se os três forem altos, o pra- zo de recuperação do investimento para algumas finalidades, como postos, la- vanderias e indústrias, é reduzido.

Na USP, a água captada pelo sistema coletor foi distribuída para dois peque- nos reservatórios de 2 mil litros e uti-

0 PROJETO

Estudo da viabilidade técnica e econômica do aproveitamento de água de chuva para consumo não potável em edificações

MODALIDADE Linha Regular de Auxílio à Pesquisa

COORDENADOR RACINE TADEU ARAúJO PRADO - Politécnica/U SP

INVESTIMENTO R$ 119.650,00 (FAPESP)

lizada em duas bacias sanitárias insta- ladas no prédio do Centro de Técnicas de Construção Civil. Quando acaba a água de chuva, automaticamente é acio- nada a rede de abastecimento. "As pes- soas nem percebem quando é uma ou outra, já que no nosso caso a cor da água é idêntica", diz Racine Prado. A compo- sição da água de chuva, inclusive parâ- metros como a cor e o odor, varia de acordo com a localização geográfica do ponto de amostragem, as condições me- teorológicas, a presença ou não de vege- f tação e também de poluentes.

Racine Prado diz que a legislação precisa ser aprimorada para incentivar a utilização da água de chuva para usos não tão nobres, já que a proveniente do abastecimento público é tratada e tem alto custo. A cidade de São Paulo já tem uma lei municipal, aprovada pela Câ- mara dós Vereadores em janeiro de 2002, que torna obrigatória a constru- ção de reservatórios para coletar água em novas edificações com mais de 500 m2 de área impermeabilizada. São ini- ciativas como essa e a desenvolvida na Poli-USP que contribuem para dimi- nuir o fluxo que congestiona os bueiros e os rios, alagando a cidade a cada tem- porada de chuvas mais intensas. •

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 • 71

Page 73: O mal-estar da civilização

Ceratômetro automático: aparelho mais barato e mais rápido para fazer medições oculares

Page 74: O mal-estar da civilização

OFTALMOLOGIA

Precisão no olhar Equipamento desenvolvido pela US P e por pequena empresa permite exames rigorosos da curvatura da córnea

tes de contato e para verificação de cicatrização c de distorções após cirurgias de catarata e de trans- plantes de córnea ganharam um

mentos médicos mais fáceis, precisos e com cus- to menor em relação aos aparelhos atuais. Cha- mado de ceratômetro, ele foi desenvolvido numa cooperação entre pesquisadores da Escola de En- genharia de São Carlos (EESC), da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), ambas da Universidade de São Paulo (USP), e da empresa Calmed, de São Carlos. O aparelho que mede os raios de curvatura da córnea já teve seu pedido de patente requerido no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa e no Japão. A previsão de lançamento comercial é para o primeiro semestre de 2005. Para isso, a Calmed acaba de firmar um acordo de licenciamento da patente e de produção com a Apramed Aparelhos Médicos, empresa de São Carlos especializada na fabricação, importação e exportação de aparelhos oftalmológicos. A parce- ria garante uma maior infra-estrutura industrial e uma rede de distribuição adequada para a co- mercialização do equipamento, tanto no Brasil quanto no exterior.

A física Liliane Ventura está à frente do proje- to na EESC, onde é professora, e na FMRP, como a coordenadora do Laboratório de Física Oftálmi- ca (LFO). Na Calmed, empresa da qual foi funda-

ciamento do Proara

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 73

Page 75: O mal-estar da civilização

senvolvimcnto comercial do produto. Ela diz que entre as vantagens do novo equipamento está a projeção de um anel luminoso com 72 pontos de luz na córnea do paciente, na região de 3 mi- límetros (mm) da pupila. Os ceratôme-

anel contínuo de luz no olho, com gran- de precisão, porém a medida é limita- da, geralmente até 26 dioptrias, ou 26 graus de astigmatismo, enquanto o equipamento nacional mede até 60 graus de astigmatismo, um problema oriundo da córnea ovalada que pode surgir como conseqüência de cirurgias de catarata, impedindo a percepção de contrastes e dificultando a leitura, por gerar imagens sem nitidez, tanto para

suírem a automação, as medidas reali-

demoradas. )á os automatizados, que fazem parte dos auto-refratores (me- dem miopia, astigmatismo e hiperme-

2 graus de astigmatismo.

ceratômetro brasileiro tem também suas parti-

a outros equipamentos desse tino. Ele surgiu a

criado para ser adaptado a uma Lâm- pada de Fenda, aparelho comum nos consultórios oltalmológicos, utilizado durante vários tipos de exame ocular ante vários para projetar luz nos olhos dos pacien- tes e ampliar seu reflexo por meio de um microscópio. A maioria das clíni- cas utiliza esse aparelho e um ceratô- metro manual, separadamente. Um

da de Fenda e lazer a integração desse equipamento a um computador para os cálculos das medidas do olho que antes eram feitas por aparelhos dife- rentes. Um software específico desen-

cálculos, medindo a curvatura da cór- nea com grande velocidade. "A parte óptica da Lâmpada de Fenda é muito eficiente. Buscamos associar a esse aparelho algumas peças que permitis- sem ampliar seu uso, transformando-o em um ceratômetro automático, adap-

tando peças desenvolvidas especifica- mente durante as pesquisas, obtendo um aparelho preciso e de baixo custo", explica Liliane.

A opção para o mesmo grau de ra- pidez e precisão do ceratômetro, que será fabricado pela Apramed, só existe nos equipamentos chamados de topó- grafo de córnea. Fies são mais caros e medem os raios de curvatura de Ioda a

pontos diferentes. Esse volume de in- formações é bem maior, porém desne- cessário para ações pontuais, como a

medidas suficientemente realizadas por um ceratômetro. O equipamento na- cional foi desenvolvido especificamen- te para medir o raio de curvatura da córnea para a adaptação de lentes de contato, embora tenha emprego tam- bém em exames pós-operatórios.

Função objetiva - O funcionamento do ceratômetro nacional é relativamente simples. O sistema aproveita a própria

tindo uma luminosidade homogênea do olho. Durante o exame, duas super- fícies cônicas são espelhadas por meio

nho bastante reduzido que perpassam o anel. Essa peça funciona como um

partir do desenvolvimento de um anel dispositivo c topografia de superfície que remia luz. podendo ser utilizado também em mi- croscópios cirúrgicos.

Ao projetar o anel de luz, na super- fície ocular do paciente, a Lâmpada de

ca a imagem em 25 vezes. Dessa forma,

de, em função da irregularidade dos pontos de luz. refletidos. Em seguida, essa imagem ampliada e capturada e um software desenvolvido no projeto realiza todos os cálculos. A imagem também é mostrada em um monitor, com mapas e gráficos, disponibilizados em apenas três segundos. A tela infor- ma o quanto a córnea é esférica, seu raio de curvatura, eixo e grau de astig- matismo.

C) sucesso no desenvolvimento do equipamento é creditado por um dos pesquisadores envolvidos no projeto, o médico oftalmologista Sidney Julio de Faria e Sousa, coordenador da parte médica do LFO, ao caráter multidisci- plinar do projeto que envolveu profis- sionais de áreas diferentes como física, medicina e engenharia. "As discussões foram feitas entre pesquisadores nas duas faculdades. Com isso, criamos algo inédito, eficiente, extremamente necessário do ponto de vista clínico, com aplicação garantida e acessível em

bém é diretor clínico do Banco de Olhos do Hospital das Clínicas de Ri- beirão Preto (HCRP-USP), onde coor- denou os testes do aparelho durante dois anos e meio.

Até chegar ao modelo final foram desenvolvidos quatro protótipos. A ver- são atual foi testada durante um ano e meio. Ao todo, 420 pacientes foram se- lecionados e submetidos ao sistema, in- cluindo casos pós-operatórios, de astig- matismos altos, médios e baixos, entre idosos, crianças c pacientes com catara- ta e ceratocone, doença caracterizada por Lima córnea em formato de cone

(■ OS PROJETOS 1

Sistema de medidas automáticas de raios de curvatura da córnea em Lâmpada de Fenda - ceratômetro automático em Lâmpada de Fenda

MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE)

COORDENADORA

LILIANE VENTURA SCHIABEL - USP/Calmed

INVESTIMENTO R$ 215.878,00 (FAPESP)

Mira luminosa anelar para medidas de precisão de topografia de superfície refletoras esféricas e não-esféricas

MODALIDADE Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (PAPI)

COORDENADORA

LILIANE VENTURA SCHIABEL - USP/Calmed

INVESTIMENTO R$12.500,00 (FAPESP)

74 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

Page 76: O mal-estar da civilização

dade de visão, podendo levar à ceguei- ra. Os resultados apontaram 98% de concordância entre o equipamento e os demais atualmente em uso. A diferença de medida de 2% deve-se ao fato da di- ficuldade de alinhamento ao centro óp- tico do olho do paciente, apresentada por alguns equipamentos comerciais. Para evitar esse problema, os pesquisa- dores desenvolveram um dispositivo para fixação do olhar do paciente. O lo- cal da mira no olho é mostrado na tela do computador, em tamanho amplia- do, o que facilita a exatidão do posicio- namento da mira de luz durante o exa- me. Um dispositivo para calibração, posicionado no local de aferição do foco da Lâmpada de Fenda, é acionado ao se capturar a imagem, para manter o equipamento sempre bem aferido. Tam- bém um sensor que indica o olho do paciente (direito ou esquerdo) que está sendo medido foi desenvolvido no pro- jeto. Outra inovação é um sistema de geração de voz que emite, em portu- guês ou inglês, as medidas captadas pelo equipamento.

De acordo com Wilson Marcos Ma- zari, diretor da Apramed, o ceratôme- tro, apresentado em setembro durante o XVI Congresso Brasileiro de Preven- ção à Cegueira, no Rio de Janeiro, deve- rá ter boa aceitação tanto no mercado

Anel luminoso com 72 pontos para projeção na córnea do paciente

brasileiro quanto fora do país. "O custo de produção ainda não foi definido, mas pretende-se fazer com que o preço final do produto seja bastante acessível. Para se ter uma idéia do quanto o custo é menor, basta mencionar o anel de mi- ra, que pode ser produzido a R$ 150,00 a unidade, algo impensável até há pou- co tempo", revela.

ora do Brasil, duas grandes empresas desse segmento já se mostraram interessadas na

no mercado brasileiro e, em seguida, no internacional, a começar por países la- tino-americanos. Outra grande vanta- gem é que este ceratômetro é de fácil montagem e operação", conta. Embora o equipamento nacional ainda não te- nha um valor definido para venda, a es- timativa é que ele deva ser comerciali-

mil, algo próximo do custo dos ceratô- metros manuais. Os equipamentos au- tomáticos importados custam cerca de US$ 10 mil.

O equipamento, que ainda não tem um nome comercial definido, está ago- ra em fase final de design e sua produ-

sa). Ainda que destinado a mercados menores, países que detêm tecnologia na área também deverão receber o pro- duto. "Como este ceratômetro é um

rio oftalmológico e também para a adaptação de lentes de contato, as pos- sibilidades de ganhar projeção para o produto são grandes. Vale lembrar que, apesar do aumento no número de ci- rurgias que dispensam as lentes de con- tato, o custo desse tipo de operação ainda é considerado alto, além de as in- tervenções não se aplicarem a todos os casos", avalia Liliane.

A trajetória do ceratômetro nacio- nal começou quando a pesquisadora recebeu financiamento, na época que fazia pós-doutorado na FMRP, em 1997, para um projeto do Programa Jo- vens Pesquisadores em Centros Emer- gentes da FAPESP. "Depois, o PIPE tor- nou possível tanto o financiamento para que a Calmed desenvolvesse o aparelho quanto o envolvimento de

balharam no projeto, viabilizando a co- locação da tecnologia no mercado. Com o apoio, conseguimos fazer tudo mais rapidamente e gerar um produto brasi- leiro de alta performance. Mais que isso, criamos também uma sintonia em pes- quisas e desenvolvimento de tecnolo- gia, importantíssima na área oftalmo- lógica, na qual o Brasil conta com cerca de 10% dos profissionais de todo o mundo", explica.

Além dos dois laboratórios da USP, uma outra instituição também está co-

quisas, por meio dos pesquisadores Lui- mar Cavalcanti de Oliveira e Orlando Di Lorenzo Filho, da Universidade Fe- deral da Paraíba (UFPB), com a finali- dade de ampliar a aplicação imediata dos conhecimentos obtidos também no Nordeste do país. É o Laboratório de Instrumentação Oftálmica da UFPB, em João Pessoa, que está incentivando a produção de equipamentos oftalmoló- gicos por empresas já estabelecidas na

pendem de autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvi-

to e médios prazos. "Os resultados al- cançados motivaram a parceria com a UFPB para formarmos uma nova uni- dade de instrumentação oftálmica no país. O objetivo é desenvolver pesquisas locais que se apliquem à realidade eco- nômica do Nordeste", explica Liliane. •

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 75

Page 77: O mal-estar da civilização

I TECNOLOGIA

NOVOS MATERIAIS

Pequenas soluções Em Pernambuco, nanotecnologia e fotônica são a base de sensores nas áreas ambiental e de saúde

MARCOS DE OLIVEIRA

U m dos primeiros pro- dutos desenvolvidos no Brasil com tecno- logia nanométrica está pronto para dei-

xar o laboratório e se incorporar ao dia-a-dia. É uma molécula que tem a função de dosar a intensidade dos raios solares de acordo com a sensi- bilidade da pele humana. Ela é ins- talada em um crachá, por exemplo, e ajuda os trabalhadores que têm o sol como companheiro, como os guardas de trânsito, a não se expo- rem em demasia à radiação solar. Um problema a ser evitado porque o excesso pode resultar em câncer de pele, uma doença causada pelos raios ultravioleta (UV), que che- gam à Terra junto com a luz solar, e provoca mais de 100 mil casos por ano no país, segundo o Instituto Nacional do Câncer. Chamada de n-Domp (nanodosímetro molecu- lar de uso pessoal), a molécula é um dos muitos projetos na área de na- notecnologia liderados por Petrus D'Amorim Santa-Cruz, coordena- dor do Laboratório de Nanodispo- sitivos Fotônicos da Universidade Fe- deral de Pernambuco (UFPE). Para o desenvolvimento e o formato final do n-Domp e de outros futuros produtos, Santa-Cruz formou com mais sete alu- nos, responsáveis pelas pesquisas, a empresa Ponto Quântico, que está ins- talada na incubadora da UFPE. Tanto o laboratório como a empresa fazem parte da Rede de Nanotecnologia Mo- lecular e de Interfaces (Renami), uma

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II

No centro do crachá, nanossensor de luz solar

das redes de nanotecnologia do Minis- tério da Ciência e Tecnologia (MCT).

Avalia riscos - O nanodosímetro insta- lado em um crachá é o primeiro nano- dispositivo da empresa. Ele foi mostrado na Brasiltec 2004, a feira de inovação tecnológica realizada em novembro em São Paulo no estande da empresa. O público-alvo do n-Domp são empresas que contratam guardas de trânsito, tra-

balhadores da construção civil e das plataformas de petróleo, e mesmo para funcionários de indústrias de polímeros usuárias de UV artificial na preparação de superfícies de em- balagens e outros produtos. "Ele ser- ve para avaliar os riscos dos usuá- rios", diz Santa-Cruz. O dispositivo funcional é instalado em um crachá de plástico na forma de uma pelícu- la (filme) que mede entre 40 e 50 nanômetros de espessura (l nanô- metro corresponde a l milímetro dividido por 1 milhão). A molécula é "nanomontada" em três partes. A primeira mimetiza (imita) a pele humana e se degrada sob ação dos raios UV, guardando a informação da dose. A segunda, que inclui o ele- mento químico európio na forma de íon (átomo que perdeu um ou mais elétrons), permite a leitura da dose por emissão de luz, e a última parte bloqueia interações com mo- léculas de água, que poderiam in- terferir no funcionamento do dis- positivo. "A própria molécula é o dispositivo", diz Santa-Cruz. O cra- chá serve como um suporte, que fa-

cilita a leitura posterior da dose, com o auxílio de um leitor ligado a um com- putador, que armazena em um banco de dados o quanto de UV a que cada pessoa foi exposta.

Santa-Cruz e seus alunos já possuem cinco protótipos na área de nanotecno- logia com patentes depositadas no Ins- tituto Nacional de Propriedade Intelec- tual (INPI). Um deles é uma evolução do n-Domp. Trata-se de um sensor pro-

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duzido com Oled, sigla de Organic Light Emit- ting Diodes, ou diodos orgânicos emissores de luz. Ao contrário dos LEDs comuns, produ- zidos com semicondu- tores inorgânicos, co- mo silício e gálio, eles são fabricados com moléculas com pro- priedades elétricas que geram luz própria, quando da passagem de corrente elétrica. Cha- mado de n-Domoled, o dispositivo é produzi- do como um sanduíche de nanofilmes. A parte ativa desse produto é constituída da mesma molécula projetada pa- ra o dispositivo anterior, que se degrada com a radiação UV. Como o sensor emite luz quan- do recebe pulso elétrico, o acúmulo de ultravio- leta diminui pouco a pouco a intensidade do efeito luminoso do dis- positivo. "Essa é a pró- xima geração de dosí- metros pessoais que estamos desenvolven- do", conta Santa-Cruz.

Outra patente do grupo de pesquisadores serve ao campo da saú- de. É uma contribui- ção para a produção de vitrocerâmicas, um material que se origina do vidro em um pro- cesso de cristalização controlado sob altas temperaturas e se tor- na bem resistente, servindo para uso em próteses de ossos e dentes, por exemplo. "O que fizemos foi induzir a formação de uma nanoestrutura de prata nesse material, possuidor de pro- priedades bactericida e antiinflamató- ria, para diminuir a possibilidade de infecções no local do implante." A pra- ta é milenarmente conhecida pelas propriedades bactericidas e só foi to- talmente abandonada para esse fim após o aparecimento dos antibióticos.

Vitrocerâmicas para uso em próteses: ação bactericida com prata

No processo de pro- dução do material na- noestruturado, íons de prata ganham elétrons e em seguida formam nanoesferas metálicas que migram para a su- perfície do implante. No meio biológico, a liberação da prata, na forma iônica (com per- da ou ganho de elé- trons), acontece de for- ma lenta e gradual.

Luz rara - A utilização de materiais nanoes- truturados também resultou em um dis- positivo para mapear a temperatura em am- bientes biológicos como no interior do corpo humano ou na água. Utilizando um nanopó à base de túlio e térbio, duas terras-raras (do grupo dos lantanídeos na Tabela Periódica), os pesquisadores con- seguem fazer o mapea- mento da temperatura por meio fotônico, com precisão nanométrica. Além da forma de na- nopó, o mesmo mate- rial foi desenvolvido em fibras ópticas bio- compatíveis, para con- trole de temperatura ao longo da fibra. O sistema também pode ser utilizado em locais que não podem rece- ber os termômetros usuais, como nos trans- formadores e áreas com

altos campos magnéticos. A intensidade da luz emitida por esse dispositivo é co- letada por um sensor portátil que mede a intensidade relativa de luz azul pro- duzida pelo túlio em relação à luz verde do térbio. A razão entre a intensidade das luzes desses elementos é que resulta na temperatura. Essa relação de intensi- dades varia de forma linear com as tem- peraturas, na faixa de -210°C até 720°C.

Na área ambiental, os pesquisado- res do Departamento de Química Fun-

damental da UFPE desenvolveram um inovador sensor de poluentes metálicos em água. Um produto que agora está em fase de automação na Ponto Quân- tico. Chamado de SPA-Foton, o sensor é composto de um polímero superab- sorvedor, da mesma família dos usados em fraldas, dotado de uma sonda fotô- nica. Colocado na água que se quer analisar, o polímero absorve o líquido em até 200 vezes o seu peso e concentra o poluente. A análise, que pode ser fei- ta no local da medição com palmtop, é feita pela medição da radiação lumino- sa da sonda num software. O resultado aparece conforme o espectro de luz é modificado pelo tipo de metal. "Não medimos o espectro do poluente, mas sim o espectro da luz da sonda." Além disso, o aumento da concentração de metal no polímero é que faz a amostra- sensor detectar quantidades muito pe- quenas do poluente. "Sabemos que esse sensor é viável economicamente, mas precisamos automatizá-lo, por isso es- tamos desenvolvendo um software mais avançado que fará a interpretação auto- maticamente."

Resíduo poluente - A equipe de Petrus mostrou na Brasiltec 2004 que é capaz de formular novos materiais que fogem ao alvo principal do trabalho em fotô- nica e nanotecnologia. Em um trabalho de doutorado no Programa de Ciência de Materiais da UFPE, um resíduo po- luente oriundo do polimento do porce- lanato, denominação de um tipo espe- cial de piso cerâmico polido, foi usado para o desenvolvimento de compósitos para tornar o gesso mais compacto e resistente. O experimento resultou em uma vitrocerâmica e um vidro que es- tão em fase de testes para recobrir a ce- râmica. Tudo com a vantagem de reti- rar o resíduo do ambiente, agregando valor ao subproduto. Como todos esses trabalhos e outros que estão em forma- tação, Santa-Cruz tem um firme pro- pósito na universidade. "Nossa idéia é formar alunos, mas também desenvol- ver o espírito de empreendedorismo na área de nanotecnologia", diz. Ele faz isso com a mesma disposição que dá aulas de nanotecnologia na pós-graduação pela manhã, e duas vezes por semana, à noite, na licenciatura, para profes- sores da rede pública pernambucana de ensino. •

PESQUISA FAPESP 107 ■ JANEIRO DE 2005 ■ 77

Page 79: O mal-estar da civilização

MUNDO

RGs, que serão:007 e tomados012. Prevaleciatradição de queama visão cole-dos cidadãos.n os defensoresele terá instru-.antar mecanis-dividual.a a grudar umna pele de cadaark Littlewood,reitos civis.l-VOZ dos con-estar claro quexío ao terroris-uinho por partesesperado".de Blair sinali-ar o foco na se-o governo diluiides no lraque,anhar-de-aqui-balhista.

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as pessoas percebem qUMria.pouquinho de reservas n pquerem estourar". Defenpelo sponsabilidade fiscal: "O ~ bilhõpode contrair as dívidas paraEstado, tiver condições demtía

Lula, que estuda altenl!merc'sua equipe com uma refaeses dnisterial que vai aumentarnão acipação do PMDB e do P1) paísque o seu governo está de) maiabertas, receptivo à convlto 0'''

das forças democráticassadas em construir ,-próspera e justa".

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loco, não faltaram críticvemos passados. "Em rncruciais, em que o goveria tomar decisões muiduras, vacilou. Ou porqvelmente tivesse uma eleixima, ou porque a seusrios não interessava dovista n " complet

Page 80: O mal-estar da civilização

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I HUMANIDADES

HISTORIA

O saber em cena Exposição reúne instrumentos científicos do século 18 e 19 da Universidade de Coimbra

NELDSON MARCOLIN

Na Europa do século 18, as demonstrações de física experimental se faziam não só nas universidades,

mas também em clubes e sociedades, sa- las alugadas pelos chamados físicos de- monstradores - que viajavam com sua coleção de instrumentos - e nas resi- dências. Não por acaso, essas experiên- cias ganhavam ares cênicos e o termo teatro era freqüentemente associado a eventos do tipo. Havia o Teatro das Ex- periências, o Teatro das Máquinas, o Teatro da Phisica Experimental e o Teatro de Poleni, entre outros. "Já em meados do século 17 a prática experi- mental, como meio de descoberta e de validação do conhecimento, começara a criar raízes firmes", diz Ermelinda An- tunes, pesquisadora do Departamento de Física da Universidade de Coimbra (Portugal).

Com esse forte componente de en- tretenimento na física da época, a Pi- nacoteca do Estado de São Paulo tor- nou-se o lugar ideal para a exposição Laboratório do mundo - idéias e saberes do século XVIII, que vai até o dia 13 de março e da qual Ermelinda é a cura- dora. Trata-se de uma reunião de 212

Quadrante móvel usado para medir a distância entre o ponto de partida e o lugar onde está a embarcação

80 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

Page 82: O mal-estar da civilização

Modelo didático de pára-raios: proteção aos armazéns de pólvora

peças: instrumentos científicos e livros do século 18 e 19 - cerca de 110 deles pertencen- tes ao Museu de Física e ao Observatório Astronômico da Universidade de Coimbra -, mapas, quadros, gravuras e pinturas do acervo da Bibliote- ca Nacional do Rio de Janeiro. O evento integra as comemora- ções dos 450 anos de São Paulo e resulta de uma parceria entre o Gabinete das Relações Cultu- rais Internacionais do Ministé- rio da Cultura de Portugal e a Pinacoteca. A mostra é o cen- tro de várias atividades sobre história do século 18. No co- meço de dezembro ocorreu o seminá- rio internacional Luzes nos trópicos: a capitania de São Paulo no século XVIII, coordenado por professores da Cáte- dra Jaime Cortesão, órgão da Faculda- de de Filosofia, Letras e Ciências Hu- manas da Universidade de São Paulo (USP), associada ao Instituto Camões do Ministério dos Negócios Estrangei- ros português. E em 25 de janeiro será aberta a exposição Cartografia de uma história, em conjunto com o Museu

Trono acústico de d. João VI, de 1819: o som entra pelos braços e sai por um tubo levado ao ouvido

Paulista da USP, sobre os mapas rela- tivos ao território da Capitania de São Paulo.

De todos os eventos, Laboratório do mundo é o que mais expressa a mudan- ça de paradigmas e a adoção de novas idéias numa época em que se começava muito lentamente a abandonar as anti- gas teorias sobre o mundo natural, ba- seadas em Aristóteles. "A valorização da

Primeiro livro em português a divulgar as idéias de Newton, em 1737

experiência tinha sido defen- dida por Francis Bacon na sua obra Novum Organum, publi- cada em 1620, em que ele afir- mava que 'o progresso só po- deria advir de uma união próxima e estrita das faculda- des racionais e experimentais, que até ali nunca se uniram'", conta Ermelinda. No século 18 os fenômenos naturais passa- ram a ser vistos como um mis- to de matéria e forças e a ser descritos em linguagem mate- mática. Os instrumentos ganha- ram grande importância na ta- refa de interrogar a natureza, e não apenas como uma amos-

tra da capacidade criadora dos ho- mens. "Utensílios como bombas de ar, vasos comunicantes ou aparelhos de elevação de água, usados desde a Anti- güidade, foram aperfeiçoados e vira- ram instrumentos científicos, articu- lados com a resolução de problemas fundamentais." É no século 17 que apa- recem os gabinetes de curiosidades e os teatros das máquinas. Foram eles que deram origem, no século seguinte, aos gabinetes de física dentro das universi-

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Page 83: O mal-estar da civilização

Corte do laboratório de química da Universidade de Coimbra:

novidades trazidas pela reforma pombalina

dades. Há, então, um desenvolvimento natural da construção dos chamados instrumentos filosóficos, feitos com a finalidade de produzir e demonstrar os vários efeitos da física.

A exposição da Pinacoteca con- /% ta parte dessa história. Há L^^ instrumentos simples, co-

È % mo a alavanca de Muss- ^L. JL. chenbroek, usada para erguer fardos pesados, e outros mais sofisticados, como a luneta paralática, destinada a seguir o paralelo de astro ou o seu movimento diurno de orien- te para ocidente, descrevendo o mes- mo paralelo deste. Há peças que, de tão prosaicas, arrancam um sorriso do vi- sitante. É o caso de um modelo didáti- co de parafuso com porca enrascada, que podia ser dividida em duas partes, ou uma prensa usada para verificar a compressibilidade da água. Aquela era a época de estudar o movimento simples e o composto, a trajetória dos projéteis, as diferentes forças e seus efeitos. Na coleção da Universidade de Coimbra há também curiosidades fa- mosas, como o "poderoso magneto oculto numa coroa". Trata-se simples- mente de um grande ímã - no caso, "vestido" com uma coroa real - com o qual se demonstrava a força das pedras magnéticas. Esse, especialmente, era ca- paz de sustentar 93,7 quilos. Na ex- posição há um móvel que não pertence à Universidade de Coimbra, mas chama muito a atenção: o trono acústico feito para mitigar a surdez de d. João VI, em 1819, uma das peças mais engenhosas já construídas para esse fim.

Algumas demonstrações feitas den- tro ou fora da universidade encanta- vam o público. As que envolviam a eletricidade, com as experiências ele- trostáticas luminosas e barulhentas, eram as mais apreciadas. Ou a bomba que retirava o ar e criava o vácuo den- tro de duas semi-esferas de cobre, in- ventada por Otto de Guericke no sécu- lo 17. A famosa experiência feita por ele com esses dois hemisférios em 1657,

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que só conseguiram ser separados pela força de oito parelhas de cavalos, teve grande difusão por toda a Europa (a ré- plica dos chamados hemisférios de Magdeburgo estão na exposição). De outro tipo de experiência conseguia- se tirar proveito prático imediato, como o modelo de pára-raios, fei- to entre 1790 e 1824. Num livro explicativo cujo autor é o pro- fessor italiano Giannantonio dalla Bella, Notícias históricas e praticas acerca do modo de defender os edifícios dos estragos dos raios, mostra-se como pro-

teger armazéns de pólvora e a melhor maneira de fazer a instalação da peça.

Dos 110 instrumentos que vieram de Portugal, Ermelinda Antunes arris- ca um palpite sobre a que considera mais valiosa do ponto de vista da his-

tória da ciência: a pilha de Volta, de 1800, o primeiro gerador de cor- rente elétrica. Mas há outras im- portantes. "O esforço do ho- mem na elaboração do saber envolve gerações", diz a pesqui- sadora portuguesa. "Note três peças presentes na mostra: a eolípila, a máquina rotativa de

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Modelo didático de parafuso com porca desmontável: estudo detalhado de peças e instrumentos

Page 84: O mal-estar da civilização

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. *T">% 12 #7 o movimento do astro

Luneta paralática: inovação para o astrônomo seguir

Botelho Lacerda e a locomotiva", exem- plifica. A eolípila é uma bola oca de me- tal com água montada em um carrinho. Aquecida, a água vaporiza e faz mover o carro. A máquina rotativa de Botelho Lacerda demonstra a ação dos vapores ser usada como força mecânica. E a lo- comotiva é conhecida. "Todas fazem parte da história do aproveitamento dos efeitos motrizes do jato de vapor, já conhecidos na Grécia Antiga. Não dá para dizer qual é a mais importante."

Esses instrumentos começaram a ser mais estudados em Portugal na segunda metade do século 18. An-

tes, a ciência se encontrava em situação precária no país. É certo que havia inte- lectuais portugueses esclarecidos e co- nhecedores dos recentes avanços cientí- ficos. O médico de origem judaica Jacob de Castro Sarmento, por exemplo, radi- cado em Londres, publicou Teórica ver- dadeira das marés, o primeiro livro em português a divulgar as idéias de New- ton, em 1737. Mas Ermelinda Antunes conta que dentro da universidade, do- minada por jesuítas, as obras e idéias de Galileu Galilei, Isaac Newton e Pierre

Gassendi tinham sido proibidas de circular em 1746 por edital do rei-

Prensa destinada a comprimir a água: pesquisas nas diversas áreas do conhecimento

tor do Colégio das Artes de Coimbra, padre José Veloso. Quando Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro mar- quês de Pombal, foi nomeado ministro do rei d. José I em 1750 já estava cons- ciente do atraso português. A contro- versa administração de Pombal tocou em todos os setores da vida nacional - e a educação não ficou de fora. Uma de suas iniciativas foi a criação do Real Co- légio de Nobres da Corte e Cidade de Lisboa, em 1761, que admitia estudan- tes da nobreza portuguesa entre 7 e 13 anos. Lá foram ensinadas pela primeira vez disciplinas científicas, como mate- mática, astronomia e física experimen- tal. E foi para lá que Pombal convidou Dalla Bella, então professor da Univer- sidade de Pádua, na Itália, a dar aulas e o encarregou de adquirir os necessários instrumentos científicos - a maioria construída por artesãos portugueses entre 1766 e 1768 e alguns comprados dos ingleses. "O Colégio dos Nobres acabou não dando certo quanto ao es- tudo das ciências devido, principal- mente, a pouca idade dos estudantes e à falta de base necessária para entender as matérias", observa Ermelinda.

Todos os instrumentos usados nas aulas e experiências de física do Colégio dos Nobres foram transferidos para o Gabinete de Física da Universidade de Coimbra em 1773 (um ano antes co- meçara a grande reforma da universi- dade), onde ganharam organização e uso sistemático em aulas e experiências também comandadas por Dalla Bella, convidado a assumir a cadeira de física experimental. Parte desse material está presente na exposição Laboratório do mundo. "O Gabinete de Física usado nas aulas em Coimbra, a partir de 1773, estava perfeitamente equipado para de- monstrar a física que era, na época, en- sinada na França, Inglaterra ou Itália", afirma Ermelinda. Com a reforma da universidade e a introdução do debate sobre as novas teorias científicas e filo- sóficas, Portugal ganhou novo status. E penetrou no mundo de idéias e sabe- resdo século 18. •

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Page 85: O mal-estar da civilização

I HUMANIDADES

CULTURA

Mais notável do que pequena

Estudo analisa trajetória de Carmen Miranda no Brasil e nos Estados Unidos

CARLOS HAAG

Como a ressaltar que ela era mais notável do que peque- na, num artigo que escreveu para o jornal norte-america- no The New York Times so-

bre a cantora e atriz Carmen Miranda (1909-1955), Caetano Veloso analisou-a como um ícone do dilema de toda uma geração quando o assunto era a imagem que o Brasil tinha lá fora: "Ela foi, primei- ro, motivo de orgulho e vergonha, depois símbolo da violência intelectual com que queríamos encarar a nossa realidade, do olhar implacável que queríamos lançar sobre nós mesmos. Tínhamos descoberto que ela era nossa caricatura e nossa radio- grafia". Até hoje a "embaixadora do sam- ba" habita, como as calçadas em ondas de Copacabana, o imaginário ianque sobre o país. A trajetória da portuguesinha que virou baiana estilizada, conquistou o Bra- sil de Vargas e depois a América é o tema de O Ht verde e amarelo áe Carmen Miran- da, tese de doutorado de Tânia da Costa Garcia, agora transformada em livro com apoio da FAPESP.

"A polêmica sobre a baiana estilizada é reveladora da crise que temos com nossa identidade. Carmen é uma caricatura, mas é, ao mesmo tempo, o que somos: sub- desenvolvidos, tropicais, mestiços, dio- nisíacos", explica. Segundo Tânia, apesar do tamanho diminuto, ela foi, desde o iní- cio de sua carreira, uma "arma cultural"

usada tanto pelo Estado Novo varguista como pelo pan-americanismo de cunho expansionista dos norte-americanos, cuja pílula foi dourada com a política de boa vizinhança. Com razão Hollywood a cha- mava de "brazilian bombshell", tamanho o seu poder de fogo em servir, mesmo que de forma inconsciente, a interesses ideo- lógicos. De início, no Brasil, ela foi a cata- lisadora do movimento oficial de nossa transformação em "terra do samba". Ar- rancado do morro, o samba, antes "coisa de marginal", foi entronizado, em meio ao debate sobre a identidade brasileira dos anos 1930, como símbolo da nacionalida- de em oposição à crescente influência da cultura estrangeira trazida, se acreditava, com a chegada do cinema falado (basta lembrar do samba Canção para inglês ver, de Noel Rosa, com suas alusões a "I love you/ To via steven Via-Catumbi" etc). A própria Carmen cantava em Eu gosto da minha terra que "sou brasileira/ e o meu sabor denuncia/ que sou filha desse país/ o fox-trot/ não se compara/ com o nosso samba, que é coisa rara".

"A carreira de Carmen se estrutura num período em que os meios de comu- nicação passam a ter um papel significati- vo na capital da República. Isso coincide com a política nacionalista do governo Vargas, que, atento ao poder dos veículos de comunicação, fez questão de se aproxi- mar do universo simbólico das camadas

84 ■ JANEIRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 107

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FON FON

Page 87: O mal-estar da civilização

menos favorecidas para se tornar o go- vernante das massas", analisa Tânia. O samba vira assunto de Estado, ou me- lhor, o samba carioca, difundido como o samba brasileiro pelas ondas do rá- dio. "O samba, eleito como símbolo do 'povo novo', tornava transparente as fronteiras sociais que a política popu- lista insistia em esconder atrás da uni- dade nacional", observa a autora. Ge- túlio chega mesmo a intercalar seus discursos oficiais na Hora do Brasil com números de compositores e intérpretes populares. Houve mesmo o caso de um programa transmitido para a Alema- nha de Hitler diretamente da Estação Primeira de Mangueira. Claro que não se queria o samba "de morro, com seus ritmos negróides", como anotou um jornal da época. A batucada tinha a ca- dência da política cultural estado-no- vista, idealizando a "democracia social e racial" do Brasil e o trabalho. Até mes- mo o "malandro" Wilson Batista escre- ve sambas que exaltavam o trabalho. Apesar disso, mais de 300 canções foram censuradas pelo regime e mesmo Car- men, com suas interpretações marotas e brejeiras (plenas de duplos significa- dos que desafiavam a moral vigente), foi patrulhada ideologicamente.

A inda assim, a atmosfera do I^L momento permitiu que Car-

^^A men, em fins de 1938, se È ^ vestisse pela primeira vez

JL. JL. de baiana no filme Ba- nana da terra, que previa cenários com casarios baianos e coqueiros. O proble- ma é que o produtor não aceitou os pre- ços pedidos por Ary Barroso para as duas canções da película e optou por O que é que a baiana tem, de Dorival Caimmy, mais em conta e adequada aos sets. Carmen se inspirou na letra para criar seu visual, meio-termo entre a cultura nativa e o glamour das estrelas de cinema americanas.

"Durante os anos 1930, a canção po- pular urbana foi eleita pela imprensa e pelo Estado como uma das represen- tações do nacional e Carmen, estando entre as intérpretes mais populares, tornou-se a cantora do 'it verde e amare- lo'", observa Tânia. A mistura do chicle- te com banana deu-se definitivamente um ano depois, quando o empresário Lee Schubert viu Carmen de baiana num show no Cassino da Urca e resol-

A "embaixadora do samba": ida aos EUA foi

motivo de orgulho e, no fim, de preconceito

veu levá-la para os Estados Unidos. "A indústria cinematográfica norte-ame- ricana foi responsável pela difusão da imagem da baiana estilizada que imor- talizou a artista", diz a pesquisadora. Lá e aqui. "Diversa da baiana do nosso can- cioneiro, a de Carmen, híbrida e cos- mopolita, aproximou essa personagem das camadas populares de outros seto- res da sociedade. O exotismo, ao ser veiculado nacional e internacionalmen- te pelos meios de comunicação, deixa- va de ser uma exclusividade da negra do tabuleiro, passando a compor, con- tra a vontade de muitos, a identidade da nação", avalia a pesquisadora.

Boa vizinhança - Mais: ao emigrar para a América, a baiana de Carmen ganhou pedaços característicos de outras cultu- ras latino-americanas, bem ao gosto da política da boa vizinhança ianque. Não se queria uma brasileira (ainda mais

portuguesa), mas um símbolo de todos os povos latinos que, para a maioria dos norte-americanos, não tinham lá gran- des diferenças. "Que justamente uma cantora do único país de língua por- tuguesa da América Latina tinha sido eleita a representante desse conjunto de comunidades de língua espanhola não trouxe poucas dificuldades estilísticas a suas performances", avalia com preci- são o artigo de Caetano Veloso.

A pequena tinha um trabalho notá- vel: se transformar em metáfora fruta- da e sorridente do pan-americanismo pretendido pelo Office of Coordinator of Inter-American Affairs do governo Roosevelt. Eram tempos de guerra e toda a ajuda, mesmo aquela abaixo do Equador, era necessária. Não era uma inovação: já em 1860 Napoleão III ad- vogava uma tradição cultural latina co- mum, embora cheio de más intenções expansionistas. O novo registro se dá

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pela divisão entre uma América do Norte civilizada (apolínea) e outra, La- tina, wild e dionisíaca, com seus pam- pas e seus mestiços irracionais. "Car- men, na pele de suas Rositas, Doritas, Chitas e Chiquitas da 20th. Century Fox, representa exatamente esta Améri- ca Latina difundida pelo cinema ameri- cano. Comporta-se como um animal selvagem, sua libido é descontrolada, é indolente e malandra, prefere os pra- zeres da vida e também é grotesca, na interpretação caricatural de suas per- sonagens, no inglês mal falado, uma outsider frente ao mundo civilizado americano", analisa Tânia. Transfor- mada em "totalidade latino-america- na", Carmen marca a diferença entre o mundo selvagem, o south american way, e o american way oflife. Depois de con- quistarem com violência o far west, es- tava na hora de conseguir, com sutileza, a far América Latina. "O ideal propaga-

do pelo pan-americanismo é interpene- tração desses dois universos (apolíneo e dionisíaco), sob o domínio do primei- ro. Em Hollywood, o pan-americanis- mo reinventado advogava, em última instância, a subordinação de uma Amé- rica Latina inferior à 'superior' nação do Norte", observa a autora. "Ela é o fru- to saboroso que a perfumada e cálida zona tropical do sul enviava para reani- mar os sisudos homens de negócio da Quinta Avenida", escreveu um jornalista norte-americano. Carmen era perfeita para mostrar a subordinação natural à civilização e os aspectos periféricos positivos dos atrasados.

Cassino da Urca - De início, o sucesso de Carmen na América pegou bem por aqui. Quando retornou ao país, em 1940, foi recebida com um banquete por Lourival Fontes, diretor-geral do DIP (Departamento de Imprensa e Pro-

paganda). No entanto, no show que deu no Cassino da Urca, após cumprimen- tar o público em inglês, viu que não era fácil contentar os brasileiros. "Carmen estragou a nossa música impregnando-a de coisas americanas. Ora o brasileiro quer que o samba seja puramente seu, nacional e sem mistura", criticou o jornal carioca A Notícia, e não foi o único nem o pior. O dilema estava posto: a cultura popular era a cultura oficial e desejável e havia que se festejar que os estrangei- ros reconhecessem a nossa riqueza. "O Brasil tropical representado por Carmen não era todo o Brasil, todavia era este o Brasil que se destacava no exterior", ob- serva Tânia. "O que estava em jogo não era a artista, mas as representações em torno da música que interpretava, o samba, e a personagem que inventara, a baiana. Ambos referências da cultura afro-brasileira que não interessava ser propagada como símbolo da nação." A "embaixadora do samba" vira colabo- racionista do imperialismo norte-ame- ricano e, pior, uma artista que dene- gria, literalmente, a imagem da nação junto aos admirados ianques.

"Quando a consagrada cantora do 'it verde e amarelo' foi para a América do Norte, carregava consigo os anseios e os desejos de uma nação. Durante o período em que ficou no Brasil, ela foi motivo de polêmica em virtude da at- mosfera nacionalista da época. Com sua partida para os Estados Unidos di- fundiu-se no exterior uma determina- da imagem do Brasil: assim nos fazía- mos reconhecer frente o outro. E um outro que, por sua vez, se apresentava como a nação mais moderna do Oci- dente", avalia. "Os filmes de Carmen conseguiram um consenso, antes im- possível de ser imaginado, entre aque- les que aprovavam o samba como re- presentação nacional e aqueles que recusavam esta imagem de Brasil pro- pagada pela artista nos Estados Uni- dos." A radiografia da caricatura. •

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HUMANIDADES

URBANISMO

Programa de índio

Banhistas na praia do Flamengo, início do século 20

Livro mostra a trajetória da orla carioca, das tangas indígenas às tanguinhas de Ipanema

No princípio dos tempos nacionais ir à praia era, literalmente, um pro- grama de índio: "Meti- dos nas águas como ca-

niços, às vezes, mais de dozes vezes por dia, os índios andam nus, porque assim se poupam da canseira de tirar a roupa toda a hora", observou o via- jante francês quinhentista, Jean de Léry. "Certo domingo, vimos virar uma canoa com mais de trinta selva- gens. Fomos correndo socorrer os náu- fragos, mas estavam todos rindo e nos perguntaram: para onde ides tão apressados, Mair (como os nativos cha- mavam os franceses)7." O que os da ter- ra aprenderam cedo demorou a virar hábito para os conquistadores euro- peus, que apenas no reinado de d. João VI descobriram o banho do mar. Durante todo esse tempo viveram apertados e insalubres no centro do Rio de Janeiro.

A história de como demorou essa passagem da tanga dos índios para a tanguinha de Ipanema está deliciosa- mente contada em Orla carioca: histó- ria e cultura, de Claudia Braga Gaspar, lançamento da Metalivros. "O carioca original, por longa abstinência, que atravessará dois séculos inteiros de apego à terra firme e resistirá às pri-

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meiras décadas de mudança repentina da cidade oitocentista, nem pensava em banho de mar", explica Claudia. E quando começou a pensar foi em ter- mos medicinais e não para se divertir. Com uma inflamação na perna, pro- vocada pela picada de um carrapato, d. João VI, enfiado dentro de um cai- xote, foi o pioneiro europeu a se arris- car a mergulhar nas águas cariocas. A praia, imitando o que se fazia no exte- rior à colônia, se transforma num "pe- queno hospital" e como tal exigia-se decoro: "As moças devem usavar lon- gos calções presos ao tornozelo e enci- mados por blusões do mesmo tecido, além das toucas à Maria Antonieta. Nos pés, sapatos de lona e por cima de tudo, amplos roupões", conta uma re- vista da época. Para evitar maiores pe- rigos, havia uma equipe de italianos e portugueses que se encarregavam de levar as moçoilas no colo para molha- rem os pezinhos delicados na água. Todo cuidado era pouco. O Dicionário de sciencias eclesiásticas, de 1760, reco- mendava o "uso do banho, desde que não se o tome por volúpia. Permitir- se-há banhos aos doentes todas as ve- zes que se julgar necessário, mas aos de boa saúde, em especial os jovens, tais banhos devem ser concedidos muito raramente".

■■A passagem do uso terapêutico /% da praia para o uso social e L^^ de lazer liga-se às transfor- i M mações urbanas por que

^L JL» passava o Rio na virada do século, com as grandes avenidas e a chegada dos bondes, fazendo nascer uma nova cidade, trazendo moderni- dade e avançando seus limites urbanos à Zona Sul, até então um vasto e deser- to areai."

Mas tudo caminhou, como andar na areia, em passos lentos. De início, ia-se à praia de madrugada, entre 3 e 4 ho- ras. O banhista chegava cedo, trocava- se nas cabines de vestuário, em moldes europeus, e após apenas cinco minutos dentro da água, então o que se julgava recomendado, e um pouco de ar e sol saía da orla às 8 para tomar o café, já que jejum era necessário para se entrar no mar. Surgem, para matar a fome dos banhistas, cafés, logo convertidos nos quiosques atuais. Mas liberdade tem preço e o Estado viu por bem regular a

nova mania. Em 1917 o decreto 1.143 avisava que só se podia ir à praia entre Io de abril e 20 de novembro, das 6 às 18 horas. Além de descrever o tipo de vestuário adequado e outras particula- ridades, a nova lei proibia expressa- mente "quaisquer ruídos e vozerios na praia ou no mar durante todo o perío- do do banho". Um ano depois, para sossego geral, foram construídos, ao longo de Copacabana, seis postos da Sauvatage, com salva-vidas. As pessoas passaram então a tomar seus banhos tendo como referência esses postos, há- bito que permanece até hoje, ainda que por outras razões, ligadas a que "tribo" de praia o banhista pertence. "A Pri- meira Guerra Mundial trouxe mudan- ças comportamentais de peso que irão refletir no vestuário da época. O que se queria era uma vida mais saudável, ao ar livre, onde os esportes fossem mais

Avenida Delphin Moreira, com nova iluminação

pública, c. 1919

Helô Pinheiro, musa inspiradora da música

Garota de Ipanema, de Tom e Vinícius, em anúncio

de bronzeador, praia de Ipanema, década de 1960

Capa da Revista da Semana, 10 de junho de 1916

presentes, como o remo, o salto orna- mental e a natação", observa a autora. "Acompanhando essa evolução, os tra- jes de banho se modernizaram, surgin- do traje de peça única. A praia ganha popularidade. Surgem os hotéis bal- neários da costa francesa e o Rio, apro- veitando a carona, inaugura uma série de balneários na orla: Hotel Glória, Ho- tel Sete de Setembro, Copacabana Pala- ce, entre outros."

"A carioca se adestrou a caminhar na praia com a mesma airosa elegância com que caminha no asfalto. A vida da praia exerce sobre ela uma influência que se faz sentir em suas idéias, senti- mentos, na sua compleição física e mo- ral. A praia, desviando para o convívio da natureza a população da cidade, a está poderosamente vitalizando e in- suflando-lhe alegria", anunciava com precisão a revista O Cruzeiro. E os ba-

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^Éy' ■■ è T

nhistas vão ficando mais ousados, dei- xando a calma das águas da baía de Guanabara para a orla das praias oceâ- nicas. "A praia vai se popularizando e ganhando status de área social. A cida- de em movimento vai conquistando es- paços e ampliando o lazer do carioca na orla da cidade. O culto ao corpo, cada vez mais exacerbado, alia-se aos avan- ços dos materiais usados na confecção dos trajes de banho: o látex, nos anos 1940, a helanca, nos anos 1960 e 70, e a laicra, nos anos 1970 e 80", lembra Claudia. O hábito do banho de mar também se modifica. "Os horários praianos vão se estendendo e se, no início do século, tudo se limitava a uma permanência restrita de poucas horas, a partir dos anos 1930 o gosto pela praia fará com que o desejo seja usufruir desse espaço da melhor forma possível." Com a menor quantidade de

tecido possível. Em 1948 uma alemã, Miriam Etz, exibia-se todos os dias com o recém-criado biquíni na praia do Diabo, juntando multidões para ver o vestuário que era uma bomba atô- mica moral. Em 1960 ele deixa de ser novidade e se consagra como o uni- forme da carioca.

Uma curiosidade: foi o progresso da modernidade que, em boa monta, aju- dou a unir o carioca à sua natureza. Não era fácil chegar até a Zona Sul vindo das regiões centrais, onde morava a população. Daí a forcinha extra dada pelos bondes. Os primeiros trilhos che- garam a Copacabana no fim do século 19 e em 1894 é inaugurada a linha Igre- jinha—Ipanema, ainda que a contra- gosto dos acionistas da empresa, que achavam uma idiotice levar o bonde até "um deserto arenoso, sem habita- ções e cujo progresso será lento".

ais tarde, nos anos 1960, a abertura do túnel Rebouças, li- gando diretamente a Zona Sul com a Nor-

te, acelera a integração da cidade em crescimento, flexibilizando o fluxo de banhistas da Zona Norte para as praias da Sul. Antes as praias oceânicas eram basicamente freqüentadas por mora- dores locais e turistas ou por quem ti- nha um automóvel", explica Claudia. Com o tempo, a praia vira lazer irres- trito de todos os cariocas e os tabus são quebrados: o bonito é ficar bron- zeado. As oportunidades do novo, po- rém, não são gratuitas. Para construir a cidade de seus sonhos, o prefeito Pe- reira Passos inicia a prática dos ater- ros, que engolem e geram novas praias. "Quem anda hoje pelo centro do Rio pisa, sem saber, em praias aterradas", diz a autora. O "bota-abaixo" dizimou as casas balneárias para formar a linha do cais e separou a cidade do seu ocea- no. Hoje entre o Rio e o mar corre a avenida beira-mar. Em 1952 o prefeito Dulcídio Cardoso empurrou as águas para ainda mais longe, estendendo, entre o passeio público e o morro da Viúva, o aterro do Flamengo, construí- do entre 1953 e 1962. Sete praias sumi- ram para dar lugar ao cais do porto; quatro para o Arsenal da Marinha; nove foram aterradas com o desmon- te do morro do Castelo e do Santo An- tônio. Até o mar foi invadido: em 1944, com restos do Castelo, foi criado o ae- roporto Santos Dumont.

Os índios não mais reconheceriam a orla onde se divertiam tanto para hor- ror dos europeus. Ainda assim fica- riam à vontade com as "tribos" nas- centes, que passam a dividir os espaços na areia em função dos comporta- mentos, em geral concentradas no en- torno dos postos de salvamento, como a dos surfistas, no Posto 7; a GLS, no Posto 8; a juventude mais descontraí- da e artística no Posto 9; e os "mauri- cinhos e patricinhas", comportados e abastados do Posto 10. "A expressão 'es- ta não é minha praia' tem, com certe- za, nas tribos nela presentes um status de união e pertencimento, comprome- ter-se com comportamentos específi- cos", nota Claudia. O resto é mar. •

CARLOS HAAG

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LIVROS

A guerra silenciosa

Ligamos a televisão e, com hor- ror, vemos imagens da guerra civil nos Bálcãs ou mesmo a

situação caótica do Iraque sem nos darmos conta de que, ao nosso lado, já há cinco séculos, o Brasil vive uma guerra civil aberta e que atinge a to- dos. Essa é a tese apresentada por Luís Mir nas quase mil páginas de seu novo livro, um impressionante es- tudo sobre o problema da violência cotidiana no país. Os números são atordoantes: aproximadamente 150 mil pessoas morrem violentamente no Brasil por ano e, desses óbitos, cerca de 56 mil são vítimas de assas- sinatos. Com apenas 3% da popula- ção do globo, o país abriga 13% dos homicídios mundiais. E os custos des- sa tragédia não são apenas humanos: o atendimento a essas pessoas conso- me cerca de R$ 21 bilhões anuais,

GUL iA OL Guerra civil:

estado e trauma

Luís Mir

Geração Editorial

962 páginas / R$ 79,00

40% de tudo o que se gasta com saú- de (em torno R$ de 52 bilhões anu- ais). No Rio de Janeiro e e, São Pau- lo, os dados são ainda mais graves: os Governos Estaduais vêem-se obri- gados a usar 60 % do seu já diminu- to orçamento com saúde apenas pa- ra dar conta do atendimento com as vítimas dessa violência cotidiana. "Se

empilhados, a montanha da morte teria uma base e uma altura de muitas centenas de metros", escreve Luís Mir em Guerra civil.

E ele não tira suas con- clusões do acaso. A primei- ra parte do livro é dedicada a analisar as raízes históri- cas dessa violência, iniciada com o genocídio dos índios, passando pela exploração escravagista, a segregação

territorial e econômica da República e acabando no apartheid econômi- co, social e racial da atualidade. Para Mir, o responsável pela manutenção desse estado de coisas é sempre o mesmo: o Estado. "Ele sempre foi o maior promotor de violência e nun- ca funcionou como vetor pacifica- dor" avalia o autor.

0 vizinho muy amigo de Mário de Andrade

Curioso paradoxo o presente neste belo estudo, fruto de uma tese de doutorado de-

fendida na Universidade de São Pau- lo, em 2000, por uma respeitada inte- lectual argentina: como um escritor que pouco deixou a capital paulista poderia ter influenciado, ao longo de quase 20 anos, uma geração de escritores e pensadores argentinos e, no contrapelo, como foi possível que ele tivesse igualmente sido tocado, profundamente, pelo que faziam os seus companheiros portenhos de le- tras? Leitor curioso, Mário de Andra- de sempre estava em busca de novas tendências literárias para conhecer e logo cedo tomou consciência do po- der das letras argentinas, em espe- cial a vanguarda portenha, a que ele chamava de "literatura modernista". Lia sempre que podia as revistas lite-

Mário de Andrade

e a Argentina:

um país e a sua

produção cultural

como espaço

de reflexão

Patrícia Artundo

EDUSP/FAPESP

232 páginas / R$ 39,00

rárias da Argentina e conhecia bem a obra de Guiraldes, Oliverio, Leopol- do Marechal, entre outros. E, pasme, Borges, a quem chamou de "a perso- nalidade mais saliente da geração moderna argentina" e pode mesmo ter sido o pioneiro a reconhecer, em texto, o talento borgiano. Para Má- rio, olhar a produção intelectual ar-

gentina servia, na compa- ração entre os dois mun- dos, brasileiro e portenho, para que ele avaliasse como andava a cultura no Brasil vis-à-vis o vizinho mais de- senvolvido. De início, nos anos 1920, essa referência se resumia a acompanhar os estudos folclóricos dos ar- gentinos para usar por aqui, nos tempos do Modernis- mo nacional em formação.

Depois, nos anos 1940, na maturida- de intelectual de Mário, a influência mudou de rumo e foram os nossos vizinhos que passaram a se apropriar dos pensamentos andradinos, em especial sobre como um intelectual precisa se comprometer com a reali- dade social de seu tempo. Enfim, uma boa rua de mão dupla.

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LIVROS

O Brasil de Rosa: o amor e o poder

Luiz Roncari Editora Unesp / FAPESP 352 páginas / R$ 45,00

O caráter de inovação literária da prosa de João Guimarães Rosa já foi estudado à exaustão pela academia.

Daí o pioneirismo de Roncari ao analisar a literatura rosiana em seus aspectos mais realistas, mostrando de que maneira o escritor conseguiu, em Sagarana, Corpo de baile e Grande sertão: veredas, realizar também um retrato sutil da vida social e política do Brasil da República Velha. E de que forma ele pode ser lido como um dos intérpretes do Brasil.

Editora da Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Antonin Artaud: teatro e ritual

Cassiano Sydow Quilici Annablume/FAPESP 212 páginas / R$ 35,00

O ator, escritor e encenador francês Antonin Artaud é o tema deste estudo que pretende revelar, por meio da análise dos muitos textos escritos pelo

dramaturgo, de que forma ele almejava um teatro que não apenas instigasse a imaginação do público, mas, acima de tudo, que também fosse uma maneira de o ator realizar uma reconstrução radical de si mesmo. A chave do enigma é a retomada do evento teatral como um ritual.

Annablume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Política em pedaços ou política em bits

Gustavo Steinberg Editora UnB 276 páginas / R$ 38,00

Uma análise inovadora da internet, vista e dissecada em seu viés político e nas conexões de poder. Gustavo

Steinberg usa teorias de Foucault e as moderniza para se instrumentalizar e avaliar as conseqüências da construção da internet como um exemplo de uma nova forma de discurso e de pensamento, no qual a grande questão é a interconexão dos pedaços esparsos da rede de computadores e, logo, das pessoas.

Editora UnB (61) 226-6874 www.editora.unb.br

A produção do real em gêneros do jornal impresso

Sheila Vieira de Camargo Grillo Associação Editorial Humanitas/ FAPESP 248 páginas / R$ 25,00

Acreditar em tudo o que está escrito nos jornais: esse é um ditado norte-americano que revela um dilema

a que poucos dão atenção. A partir da avaliação da cobertura jornalística da greve dos petroleiros de 1995 em dois jornais, Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo, a pesquisadora fala da luta ideológica dentro do movimento operário e como a imprensa oscilou entre o respeito pela política do novo governo, de Fernando Henrique Cardoso, e a luta contra a quebra do monopólio do petróleo.

Associação Editorial Humanitas (11) 3091-2920 www.fflch.usp.br/humanitas

Enciclopédia da língua de sinais brasileira: o mundo do surdo em libras

Fernando César Capovilla e Walkiria Duarte Raphael (organizadores) Edusp / 2 volumes 682 páginas / R$ 72,00 (cada volume)

Aprovada pelas comunidades dos surdos e pelos acadêmicos, esta obra é uma contribuição fundamental para o ensino brasileiro, que nem sempre leva em consideração o universo dos surdos na educação. Os livros são um belo produto do Plano Nacional de Educação, que prevê como alvo a generalização do ensino da língua de sinais brasileira para alunos surdos.

Edusp (11) 3091-2911 www.usp.br/edusp

Aplicações ambientais brasileiras dos satélites NOAAeTIROS-N Nelson Jesus Ferreira Oficina de Textos 272 páginas / R$ 45,00

Além do conhecimento científico puro, o sensoriamento remoto,

atualmente, é visto também como de interesse empresarial, por dar um alto valor agregado a produtos e serviços ao municiar os investidores com informações preciosas. A obra traz todos os vetores desse sensoriamento, desde os aspectos técnicos aos materiais.

Oficina de Textos (11) 3085-7933 www.ofitexto.com.br

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Tempoé

JOãO FILHO

A zul amanhece, vamos comprar frutas num feirão aqui perto. Ela acordou virada: ZA — Se a eternidade sempre existiu, então matéria é tempo? E o que não é tempo? — Analee in-

JL \_ daga. — Não sei se o tempo passa, mas que a vida vai, vai. O único real tangível é o corpo presente se ain-

da respira. — Como? — Faça uso da faca, se sangrar... é filosofia crítica. — E se não? — Aí é cética. — Qual o moto-contínuo do eterno? O que se autogera-devora? — O Incriado nos observa e ri, Analee. A física é poesia pura, minha querida. Não foi Pessoa-Cam-

pos que disse que "o Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo? O que há é pouca gente para dar por isso".

— Então o maior poeta do finado século XX foi Einstein? — Talvez.

Os pregões dos hortifrutigranjeiros retinem. Ela apalpa uns tomates, cata uns caquis, xinga o abaca- xi por tê-la espetado pela coroa, lembra e zomba do verso dum contemporâneo ao ver a berinjela. "A berinjela irradia um sol às avessas", puáh - Cita e cospe.

— Assim você limita a imaginação dos poetas e dá corda prós físicos. Ela coca a cuca e volta à carga: — Well, poetas deliram demais, inventam mundos particulares. Idealistas pela causa perdida: dizer

o indizível. Coitados. — E o que fazem físicos, astrofísicos e afins? Buracos negros? Big Bang? Universo que se expande e

se retrai feito cloaca? — Sempre achei que imaginação fértil era a que dava conta de tudo isso. Não entendo o vazio-va-

zio apenas. Mesmo no lugar do oco tem que haver... algo. O que havia antes da tal explosão (poetas e físicos adoram detonar, né)?

— Razão teve seu Zé. — Quem? — Brincadeira. É esta minha falsa intimidade com Aristóteles, que dizia que há algo de irracional

nas ciências da natureza. E também que o infinito quantitativo é só potencial, nunca atual. "Uma esfe- ra cujo centro está por toda parte e cuja circunferência está em parte alguma."

— Isto é Nicolau de Cusa, seu espertinho. — Hãããü Espertinha é você, uma menina de 13 anos e já com essas bizarrices na cachola. Não deve

ter dormido. Passou a noite lendo novamente, né? Olha, olha! Eu tomo os livros, tranco a biblioteca, te sapeco um castigo.

— A biblioteca não, pai, por favor! — Como é que pode? Eu sei, eu sei. Você não é mais um desses cérebros podres aos bilhões que

cabeceiam por aí. Mas não exagera, né, Analee? Metafísica logo de manhã? E ainda nomeia minhas citações?

— Por que nomeamos tanto?

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— Para não nos perdermos. Muito.

Fim de feira, sacola cheia, sol a pino, voltamos pra casa. Almoço no pique, ela calada, mas inquieta. Quem esta menina puxou? A mãe não foi, que era uma fútil. O avô tampouco, um bruto.

— Puxei você, pai. — 'Tá lendo pensamento agora é? — Não. Causa e efeito: conheço este enrugar de testa. Well, é preciso uma impulsão ou combustí-

vel. Grosso modo, nós temos o almoço. Mas e o eterno? — Não sei, minha querida. O que sei é que o homem é apenas incerteza. — Hei! Isto é Heródoto. — Eu já te disse, sapeco um castigo. — Pois para mim a ciência só será perfeita, como dizem, quando inventarem o teletransporte. — Analee, haverá sempre o Grande Mistério. Aquele algo que nem ciência, filosofia e derivados irão

penetrar. — Mas vamos chegando bem perto, né? — Não. Acho que nunca estivemos tão longe. — Quem lavará os pratos? — Causa e efeito, mocinha: eu lavo, você enxuga.

Clima ameno, brisa mansa, ótima pra digestão: — E o depois, do depois, do depois? É o que diz aqui este livro? A hipótese Deus? — Analee, Sir Richard Burton que andou pelo mundo e passou pela Terra dos Glúteos Avantajados. -Hã?! — Digo, pelo Brasil, no século XIX, estudioso das religiões, dizia que quanto mais se aprofundava em

suas pesquisas percebia que o homem só adora a ele mesmo. — É, prefiro ficar com o teletransporte.

Tardinha toda assim, inquirindo o que é ser-estar no mundo, matéria-tempo-espaço o que são etc. etc. Noite avança, Analee, sonolenta no sofá com um livro aberto no colo, enquanto a coloco na cama, cubro com lençol, beijo de boa-noite, entre bocejos ainda indaga:

— Pai? — Que é? — Primeiro foram os dinossauros, depois e até agora somos nós, humanos, será que as baratas vão

dominar a terra depois que tudo explodir? — Amanhã eu respondo. — E se tudo explodir nessa madrugada?

JOãO FILHO é poeta e prosador, nasceu em 1975 em Bom Jesus da Lapa, BA, onde mora até hoje. Foi vendedor de biscoito, de leite, balconista, carregador, oficce-boy. Publicou em 2004 o livro de contos Encarniçado.

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Sonho em forma de peixe

JOCA REINERS TERRON

Não pode ter sido um sonho, não. Porém agora este mar de 1885 me parece um lugarejo ínfimo demais para abarcar ambições

passadas. Terá sido tudo um pesadelo? Não... As águas arrebentam nos troncos do píer como se ameaçassem destruir Barcelona e seus cidadãos enfurnados nos cetins e poltronas de suas casas burgue- sas, como se fosse para ruir toda a mesquinharia dos nobres e os excessos de palacetes de veraneio do rei e de todos os seus automóveis, essas máquinas sem originalidade alguma a trilhar a poeira batida e recor- rente das estradas de sempre e sempre, em direção ao lugar nenhum demarcado por pontos invisíveis nos mapas, latitudes iluminadas por qual estrela senão a escuridão de uma estrela morta?

Transformar Barcelona numa Atlântida, é esse o sonho do Mediterrâneo. Ou não? E o rimbombar de ondas até atingir meus tornozelos, gotas frias deixadas pelo inverno que

se arrasta e se extingue em direção ao final do ano, rumo às bodas otimistas de sempre e sempre. Só eu não estou otimista, mas como poderia estar? Fui o primeiro homem a navegar o fundo do oceano, mas quem se importa com isto? O mar arrasta seus turbilhões prata e soma o horizonte ao final de tudo, uma mistura que não almeje o infinito. Uma explosão muda de finitude e nada, isto sim.

Mas eu não, comigo não. Não. Nada acabará comigo ou me resgatará de sentar aqui nessas tábuas e de gemer com elas, muito

menos minhas lembranças das expressões entusiasmadas de Misse e Oliu ao receberem os respingos dos va- galhões depois de lançarmos o Ictíneo ao Mediterrâneo soçobrarão, não no oceano de minha memória, on- de não alcançam galochas muito menos arpões. Nesse dia nossos olhos devolviam efusivos os reflexos me- tálicos daquele peixe armado máquina, daquela fantasia tornada matéria mecânica e desparafusável e nos abraçamos aqui mesmo, neste píer, e entornamos a champagne em cima da estrutura da nave e eu berrei para os céus de Barcelona, para quem quisesse ouvir: eu, Narcís Monturiol i Estarriol inventei o submarino.

Não pode ter sido um sonho. Eu não, comigo não. E agora estou aqui, à espera do filho do rajá, e deixo as ondas ensoparem a barra de minhas calças e

continuo esperando ele que virá do fundo de um maêlstrom, de uma ilha perdida ou dos mares das índias, estou à espera do príncipe dakkar e de sua pele negra cor de musgo estorricada pelos sete mares. Ele pa- gará pelo meu resgate, pois somos da mesma raça, somos do mesmo sangue, temos a mesma inteligência e a mesma revolta contra os poderosos.

Não, nada dos desprezíveis Fulton e seus afogamentos bisonhos no Sena, nada da água sem luz de Le Havre, a grande glória subaquática refulgiu sob o sol mediterrâneo, sobre as espáduas fulgorosas deste mar, e nem Payerne, Petit, Villeroi e seus embustes ou os rabiscos fraudulentos de Brun e Bourgeois com seus cavalos de Tróia submergidos pelo fracasso e pela ignomínia dos armadores de quinta categoria, não.

Pois tudo aquilo não pode ter sido um sonho. Comigo não. Um sonho. Talvez um pesadelo? Depois de apresentar minha tese científica "Ictíneo, o peixe-barco" em 1858, fui apresentado ao senhor

que seria o meu grande mecenas, Josep Misse, ilustrado armador catalão que compartilhava dos mesmos sonhos de igualdade que eu e Étienne Cabet e que por fim se interessou em financiar minha luta (até en- tão precária e sem escudo ou adaga ou elmo que a protegesse) para ajudar os pescadores de ostras.

E não como Fulton, Bourgeois e os outros, não pelo dinheiro, não pela glória, não. Nossos sapatos com os cromos ensopados em cima do assoalho úmido e balouçante deste cais, diante do mar de Barcelona dia

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e noite, nossos suores mais febris despejados madrugadas adentro e afora, noites sem sono à luz dos lam- piões de gás e depois às conversas animadas nas tavernas, ao som de nossas vozes impregnado de entu- siasmo e vida preenchendo os ares das cantinas pelas manhãs e pelo início de novos dias e novas chances de sucesso. Nelas tomávamos o repasto para logo voltarmos, eu, Oliu e Misse, nossos braços doloridos de esforço e luta, nossos cérebros doentes de sonho. E não por conta de escudos ou a posteridade, não. Tudo pelo esforço da felicidade comum e para diminuir os riscos desnecessários sofridos pelos catadores de conchas na costa de Cadaques, para permitir aos seus filhos que conhecessem os pais com saúde e inte- gridade física, os pais trabalhadores que arriscam suas vidas precárias e descartáveis para levar à mesa da burguesia desta cidade os mariscos com os quais eles se empanturram. Uma irmandade trabalhadora su- baquática, sob as luzes da vida justa e coberta pelas águas do oceano, era isto o que ansiávamos, Misse, Oliu e eu, para fora dos muros opressivos e sombrios desta Barcelona burguesa e enriquecida pelo traba- lho operário sob o jugo de patrões e capatazes. Imaginávamos uma Barcelona futura sob os mares, uma Atlântida socialista livre da pestilência do ar inundado pela luta de classes, nós, um cardume laborioso e harmônico sob o Mediterrâneo, nós em busca da paz.

E não como Payerne ou Villeroi ou Fulton, não nós. Mas teria sido tudo apenas um sonho? Por isto es- pero aqui o príncipe dakkar, ele saberá me entender, ele virá me resgatar da fúria dos capitalistas que des- truíram nosso Ictíneo, que arruinaram meus sonhos e os sonhos de Oliu, Misse e Cabet, que pisaram nos- sa imaginação como se pisa um tonei de uvas, esmagando com os dedos dos pés a vinha e extraindo dela o sumo para destruí-lo, para misturá-lo e assim retirar suas forças e sua identidade, assim destruindo nos- sa imaginada sociedade trabalhista subaquática, assim submergindo nossos sonhos sem nos deixar respi- rar, nos matando por afogamento como se mata um peixe na nascente.

Eu sei que morro, agora em 1885, mas o meu príncipe submarino, meu brônzeo dakkar de mares se- cretos e obscuros, de vinte mil léguas sob os oceanos, sim, o meu capitão virá me resgatar da morte, e eu, Narcís Monturiol i Estarriol, eu que sou seu igual, eu que inventei o submarino, mesmo nesta Catalunha depauperada pelos ricos, nesta Espanha roubada pelos nobres, neste século inglório de lutas, misérias e doenças, mesmo assim, mesmo assim e por tudo isto, ele virá me buscar.

Em 21 de fevereiro eles nos destruíram. Nesse dia Misse, Oliu e eu fomos destruídos pela força abo- minável do capital, por nossos credores, pelos bancos que não nos permitiram mais crédito. Eles, maldi- tos, destruíram a nós e ao Ictíneo, o nosso submarino a vapor, fabricado às custas de tanto suor e tanto sonho, eles o fizeram em pedacinhos, eles, os malditos! Suas dezenove escotilhas de cristal, por ironia, fo- ram enfeitar as paredes do banheiro de um milionário qualquer. As janelas por onde veríamos os homens fortes e válidos colherem ostras em barreiras de corais do fundo do mar para assim sustentarem suas fa- mílias com justiça, saúde e merecimento, foram ornar a banheira de um salafrário! O destino é um palha- ço com cores demasiado fortes pintadas no rosto, por vezes. Embargado, o Ictíneo foi destruído e com ele nossos sonhos socialistas.

É por isto que estou aqui, à espera. Terá sido tudo um sonho? Mas não, e afinal o mar se levanta e então posso vê-lo, não ainda em sua totalidade, não em sua intei-

reza, uma fortaleza ascendente, com seus canos soltando ar e água, com os metais de seus pistons e vapo- res empurrando algas e rochas, subindo em direção à superfície, é ele quem chegou, meu nobre Nemo, meu príncipe dakkar surgido de continentes desaparecidos, Capitão Nemo e o Náutilus em direção ao céu, superando as escarpas para me resgatar deste pesadelo onde aferrei meu desejo criador, onde sacrifi- quei minha imaginação a troco de vê-la destroçada, assim como Misse e Oliu, e então eis que vem a mim o meu capitão, o negro que sai à luz do dia e me cumprimenta, de dentro de sua túnica hindu, sob seu turbante com esmeraldas, é ele, Capitão Nemo e seu Náutilus, que veio me resgatar deste fracasso e me le- var para o fundo mar, deixando o espectro de um submarino e de meus sonhos para trás. Para trás e so- bre a terra, enquanto desaparecerei em meio às ondas e cardumes, dentro de vagas e plânctons, até mem- branas interligarem meus dedos, até Netuno me coroar, fundo em direção ao fim do oceano, meus sonhos transmutados em água, eu, enfim, tornado peixe.

PS. Narcís Monturiol i Estarriol (1819-1885) foi o engenheiro e inventor espanhol que criou o pri- meiro submarino a vapor. Movido por convicções socialistas, Monturiol inventou o aparelho para ser- vir às comunidades pescadoras catalãs que sofriam com as más condições trabalhistas.

JOCA REINERS TERRON mora em Sao Paulo, é editor, poeta, contista e romancista, e publicou, entre outros, Eletro- encefalodrama, Não há nada lá e Curva de rio sujo.

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