O Maravilhoso em Calderón de La Barca - Lygia Rodrigues Vianna Peres

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O MARAVILHOSO EM CALDERÓN DE LA BARCA LYGIA RODRIGUES VIANNA PERES Teatro da Memória EDITORA ÁGORA DA ILHA

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O MARAVILHOSO EM

CALDERÓN DE LA BARCA

LYGIA RODRIGUES VIANNA PERES

Teatro da Memória

EDITORA

ÁGORA DA ILHA

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LYGIA RODRIGUES VIANNA PERES2

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O maravilhoso em Calderón de la Barca - LITERATURA BRASILEIRA

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NOLASCO. TELA DE ZURBARÁN

RIO DE JANEIRO, ABRIL DE 2001

EDITORA ÁGORA DA ILHA

TEL.: 0 XX 21 - [email protected]

PERES, Lygia Rodrigues Vianna

O maravilhoso em Calderón de la Barca / Lygia RodriguesVianna Peres

Rio de Janeiro, abril de 2001

176 páginas

Editora Ágora da Ilha ISBN 86854Literatura espanhola CDD-860E

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In memoriam

Brasil Figueira Rodrigues eLêda Vieira Rodrigues,

meus pais sempre presentes.

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...Y perdonad nuestras faltas(...), advirtiendoque nunca alcanzan las obrasdonde llegan los deseos.

Calderón de la Barca, P. Lacena del rey Baltasar, p. 177, 2

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Introdução ............................................................................9

I O maravilhoso no século XVII.........................................171. O maravilhoso cristão .........................................................182. O maravilhoso pagão .........................................................233. A arte da memória ...........................................................32

II A Cenografia do Maravilhoso no Teatro de Calderón dela Barca ..................................................................................431. No cenário ...................................................................482. Os sonhos, as visões, as aparições ............................. 532.1 O sonho profético.......................................................... 542.2 Os sonhos paralelos...................................................... 652.3 O sonho especular..........................................................752.4 O sonho como conhecimento do passado..................... 842.5 Visão subjetiva ............................................................. 962.6 Visão através do espelho ............................................. 1022.7 Visão e aparição através do espelho..............................1092.8 Visão e aparição à distância .........................................1222.9 Visão e aparição do futuro............................................1362.10 Visão e aparição do passado........................................162

III Conclusões......................................................................167

IV Referências bibliográficas ..........................................171

Sumário

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Apresentação

Não é grande o número de estudiosos que, em nossos dias eem nosso país, se dedicam às questões culturais e artístico-lite-rárias da época clássica, geralmente compreendida como o pe-ríodo anterior ao século XIX. Apesar do ressurgimento do inte-resse pela estética barroca na pós-modernidade, quando algunsde seus princípios ganham outra configuração e novo contexto,como é o caso da espetacularidade, são relativamente poucosos trabalhos dedicados a obras e autores do século XVII, mor-mente ao teatro desse tempo, de fundamental importância paraa história das artes cênicas.

Por isso deve-se ressaltar a importância deste livro – Omaravilhoso em Calderón de la Barca. Teatro da memória, daautoria de Lygia Rodrigues Vianna Peres. Resultado de amplapesquisa sobre o profícuo dramaturgo do barroco espanhol, aobra analisa a estética dessa dramaturgia, pondo em relevo osprocessos de reduplicação objetivados pela função do espelhoque dão lugar ao maravilhoso e ao mágico. Nas palavras daautora “o grande mago calderoniano propõe fingir a condensaçãodo tempo e, atuando na memória imaginativa de todos os per-sonagens, envolve-os com encantamentos, através de músicas ecantos.” Nesse teatro sensorialista os efeitos visuais são leva-dos a extremos, com o objetivo de criar efeitos espetaculares eassim envolver o espectador, incorporando-o à obra de arte.

O trabalho ora publicado tem origem na tese de doutora-do, defendida pela autora na Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas, da Universidade de São Paulo. Lygia é pro-fessora e pertence ao Departamento de Línguas EstrangeirasModernas, do Instituto de Letras da Universidade FederalFluminense (UFF), onde se dedica ao ensino da língua e litera-

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tura espanholas.O maravilhoso em Calderón de la Barca resgata a tradi-

ção da arte da memória ao dar relevo aos aspectos ligados aomundo dos sentidos, como formas de representação cênica dequestões universais. Ao mesmo tempo nos reporta ao gosto pelaespetacularidade que marcou o Século de Ouro e reaviva o pa-norama cultural daquele tempo. O livro contribui desse modopara a compreensão não apenas da cenografia barroca, mas tam-bém dos recursos, como o maravilhoso, o mágico e os efeitosde especularidade, que atravessam a arte de diferentes épocas.

Lúcia Helena Vianna é Doutora em Letras, pes-quisadora do CNPq e autora do livro Cenas deamor e morte na ficção brasileira, Prêmio Casade las Américas, por ensaio, em 1996.

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O teatro de Calderón de la Barca formaliza a coexistênciado maravilhoso cristão e do maravilhoso pagão em representaçõesno teatro da memória. Em conseqüência, apreendemos na obra dodramaturgo, texto poético, dramático, a expressão do maravilho-so, observando-se a etimologia latina mirabilia, ium, no pluralmaravilhas, prodígios, coisas admiráveis. Metáforas visivas proce-dentes de mir (miror, mirari), miroir e speculum, specchio, espe-lho, expressam-se em sonhos, visões e aparições, como decorrên-cia do pensamento escolástico, medieval e renascentista,neoplatônico, modalizando a cenografia do maravilhoso cristão edo maravilhoso pagão.

Os sonhos, visões e aparições são compreendidos comorepresentação do teatro da memória, decorrência da arte da me-mória, tradição que perdura da antigüidade ao século XVII. Essaarte tem como manifestação significativa os Exercícios Espirituaisde Ignácio de Loyola, escritos em 1522, dentro do pensamentoescolástico, determinando o maravilhoso cristão.

O neoplatonismo renascentista é desvelado como realizaçãoda magia resultante das traduções de Marsilio Ficino, em 1463, doAsclépio (livro da religião egípcia) e do Corpus hermeticum. A influ-ência e seguimento dessas traduções estão patentes em todo oRenascimento, quando os prisci theologi eram também prisci magici.Com Pico della Mirandola, a magia é enriquecida pela cabala práticaou magia cabalística. A significação de Cornelio Agripa é assinaladapelo seu livro De occulta philosophia, com grande expansão portoda Europa e a de León Hebreo com os Diálogos de Amor. A im-portância do teatro da memória de Giulio Camillo, com forte influên-cia hermética, cumpre uma etapa na formalização da arte da memó-ria no Renascimento; e os livros de Giordano Bruno, entre eles Sobrela composición de imágenes, publicados entre 1582 e 1591 sobre a

Introdução

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arte da memória, confluência da escolástica e do hermetismo, tor-nam a memória mágica. Toda essa manifestação de magia encontrafundamentos em Plotino, nas Enéades IV e se concretiza nateatralização do maravilhoso pagão no teatro calderoniano.

O maravilhoso pagão também é apreciado em suaespecificidade mitológica, cujos temas advindos da cultura greco-latina formalizam essa expressão de mirabilia.

Apreendemos a arte da representação, virtualmente expres-sa e fixada no texto poético, literário, e de extrema complexidade: otexto teatral de Calderón de la Barca. E nesse caso específico, aconstituição em dois níveis, o do texto e da representação, permiteinferir como o efeito poético-descritivo é intenso sobre o leitor dehoje, como o foi sobre o espectador do século XVII. Ese pintar paralos oídos dos espectadores da época é pintar para a imaginação doleitor. A expressão pictórica do texto calderoniano, tão intensa namente do leitor de hoje, decorre do aspecto descritivo depreendidonas réplicas dos personagens, didascálias implícitas. Pois, como afir-ma Alfredo Hermenegildo la noción de didascalia es más ampliaque la de acotación escénica. Abarca las marcas presentes en todoslos extratos textuales, em seu artigo Los signos de la representación:la comedia Medora de Lope de Rueda. In El mundo del teatro españolen su Siglo de Oro: ensayos dedicados a John E. Varey (1989). Esseefeito poético-descritivo leva a considerar a relação entre o textodramático e os Exercícios Espirituais de Ignácio de Loyola. Elesinduzem à criação de espaços mentais, através da composição delugar, onde cenas do Evangelho vão sendo elaboradas; pouco a pou-co, aumentam em complexidade formal, passando antes, pelarememoração do quotidiano com os pecados e o arrependimentopara o alívio e a busca do exemplo de vida cristã.

O texto calderoniano exibe a representação de um sentidoteatral que se impõe nas artes e, em geral, em todas as manifesta-ções de vida da época. Assim, é necessário considerar, simultanea-mente, em todas as artes do século XVII, esse sentido de teatro,partindo da apreciação de duplo aspecto: a literatura dramática esua teoria e da técnica cenográfica e seu aparato cênico: tramoyas,apariencias, bastidores, pescantes, carros, por exemplo, criando ailusão teatral. Visão de colectivismo artístico, de acordo com EmilioOrozco Díaz, em seu livro El teatro y la teatralidad del Barroco(1969); a estreita relação entre poesia e pintura formaliza a estética

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horaciana em ut pictura poesis. A teatralidade se manifesta no estí-mulo sensorial – especialmente a visão; no transbordamento para oexterior nos solilóquios e apartes; no desdobramento espacial, abrin-do-se em espaços mentais para a expressão do teatro da memória.Observamos a tendência à fusão de espaços, no sentido de profun-didade dinâmica; inclinação a penetrar no espaço do espectador,aproximando-o ou chamando-o cada vez mais à representação, paraincorporá-lo à obra de arte.

O teatro recorreu, inicialmente, à pintura para seus efeitosde perspectivas e aparências, atingindo recursos cênicos extremosna dramaturgia de Calderón de la Barca. Ao mesmo tempo, a re-presentação teatral deu à representação pictórica a ambientaçãoteatral cenográfica e a cena no teatro se torna um quadro. Oilusionismo criado pelos efeitos de perspectiva, de luz e cores ma-nifesta-se, portanto, na representação do maravilhoso como so-nhos, visões e aparições no teatro calderoniano, como na pintura.

Por outro lado, essa representação do maravilhoso traduzo impulso de todo ser em direção a Deus. Mantém a tradição mís-tica do século XVI, das visões místicas de Ignácio de Loyola, deTereza de Ávila e San Juan de la Cruz, entre outros: grandes santosda Contra-Reforma, representados nos momentos em que entra-vam em relação com o divino.

Evidenciando a metodologia da pesquisa, devemos deter-nos no texto dramático e perceber em seu interior arepresentatividade, em sua especificação: os diálogos, as didascálias,os personagens, o espaço, os signos, formalizando-se em índices,símbolos, ícones. A complexidade da representação desvela-se notexto, leitura presente, revelando a voz do autor, organizando asvozes dos personagens para o espaço da leitura. Na distinção entrediálogos e didascálias se estabelece a diferença entre a fala dospersonagens nos diálogos e o autor que tece a ação, nomeando ospersonagens, indicando o momento da atuação, os gestos, a pala-vra. O autor não se diz no teatro, mas escreve para que outro faleem seu lugar. Sua voz se presentifica nas didascálias.

A representação é constituída por um conjunto de signosverbais aos quais se juntam todos os códigos, onde os signos nãoverbais (os códigos visuais, acústicos ou sonoros) podem serdecodificados. Então, uma relação de equivalência se mostra entreos signos da representação, dentro de pressupostos semiológicos.

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O signo teatral é uma noção complexa que implica não sóem coexistência, como também em uma superposição de signosconforme assinala Anne Ubersfeld em Lire le Théâtre. A análise dosigno considera sua polissemia devida à presença de um mesmosigno em códigos diferentes e ligada, sobretudo, a processos deconstituição de sentido.

Justificamos a escolha do tema pelo interesse e importân-cia da representação do maravilhoso no teatro calderoniano, pre-sente na pintura do século XVII – o maravilhoso cristão – manifes-tação do coletivismo artístico da época.

Desse modo, a presente análise contribui significativamen-te, acrescentando à bibliografia sobre Calderón de la Barca, umaoutra leitura, destacando na expressão barroca a coexistência domaravilhoso cristão e do maravilhoso pagão, em representações noteatro da memória; formalização de uma corrente escolástica, me-dieval, e outra, renascentista, neoplatônica.

Esclarecemos que a filosofia escolástica de Calderón estáanalisada por Alexander A. Parker, em Los autos sacramentales deCalderón de la Barca, II capítulo: “Los autos como dramas”; porEugenio Frutos em La filosofia de Calderón en sus autossacramentales: las potencias del alma y el libre albedrío; em Ma-nuel Durán e Roberto González Echeverría, Calderón y la crítica:historia y antología; por Ciriaco Morón Arroyo em Calderón,pensamiento y teatro, II capítulo: “Poesía y Filosofía: Barroco”.

Consideramos a extrema importância das pesquisas realiza-das nos arquivos de documentos sobre o teatro do século XVII pe-los professores J. E. Varey e N. D. Shergold, resultando na coletâneaFuentes para la historia del teatro en España: Estudios y Documen-tos. Como também A History of the Spanish Stage from MedievalTime until the end of the Seventeenth century, de N. D. Shergold.

Não podemos deixar de evidenciar a fundamental impor-tância das pesquisas realizadas por Frances A. Yates cujas obrascomo Giordano Bruno e a tradição hermética e El arte de lamemoria são imprescindíveis para a compreensão do hermetismodurante o século XVI, estendendo-se por todo o século XVII.Assinalamos Eugenio Garin em Idade Média e Renascimento, cujoIII capítulo, da segunda parte, aborda a magia e astrologia na cul-tura do Renascimento. E Plotino, Enéades IV, onde está formaliza-da a magia, que atinge sua expressão máxima no Renascimento,

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evidenciando o mago como um sábio.Exemplificamos os sonhos como sonho profético, sonhos

paralelos, sonho especular e sonho como conhecimento do passado.Destacamos a singularidade dessa classificação, permitida pela pró-pria teatralização da temática, presente na dramaturgia de Calderónde la Barca. Observamos a freqüência dos sonhos proféticos, de tra-dição bíblica e presente em obras como El árbol del mejor fruto, Loscabellos de Absalón, Sueños hay que verdad son, por exemplo. En-tretanto, essa modalidade de sonho não é apenas de tradição bíblicano autor; ali estão sonhos proféticos de temática profana – tema nãobíblico, não cristão – como La cisma de Inglaterra, Téagenes yClariclea; como também baseados em temas mitológicos,exemplificados em La púrpura de la rosa – o sonho é narrado e emFieras afemina amor, o sonho profético de Hércules. Mas o exem-plo para análise é o auto sacramental La protestación de la fe, justi-ficado pela oportunidade histórica de sua representação, 1656, poisaborda a conversão da rainha Cristina Adolfo da Suécia, aconteci-mento significativo dentro do contexto da Contra-Reforma.

O sonho de CRISTINA é a teatralização de uma passagemdos Atos dos Apóstolos, 8:27-28, sobre a conversão do ETÍOPEpelo apóstolo FELIPE. O espaço onírico reflete o momento histó-rico, em diferença.

Os sonhos paralelos configuram-se em sincronia: dois per-sonagens sonham ao mesmo tempo, evidenciando a oposição entreeles. Assinalamos somente dois exemplos de sonhos paralelos: emSueños hay que verdad son, auto sacramental de temática bíblica,em que José, filho de Jacó, estando preso no Egito, decifra os so-nhos do padeiro e do copeiro. E em La devoción de la misa, autosacramental, provavelmente de 1637, estão os sonhos deALMANZOR e do CONDE castelhano Garci-Fernández. A refle-xão sobre o segundo auto é determinada pela temática histórica –as lutas entre árabes e cristãos, durante a Reconquista, registradasna Crônica Geral, de Afonso X, O Sábio, atendendo à ideologiacontra-reformista, empenhada em mostrar a superioridade do cristi-anismo e, especificamente, da fé católica frente à seita maometana.

Apreciamos como sonho especular aquele em que o espaçoonírico ilustra uma ação que está sendo representada em um outroespaço identificado pelo leitor/espectador como distante daquele ondese encontra o personagem que sonha; exemplifica essa formalidade

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de sonho a obra. El gran príncipe de Fez, destacada de outros doisexemplos presentes em La niña de Gómez Arias e Ni amor se librade amor. Nessas duas obras a ação do sonho reflete a ação represen-tada no mesmo espaço em que se encontra o personagem que sonha.São exemplos menos significativos pela teatralização do tema e pelateatralidade do espaço onírico, enquanto a primeira apresenta atemática de oportunidade histórica, a conversão do muçulmano MuleyMahomet, filho do imperador de Marrocos, ao catolicismo, manten-do a ideologia da Contra-Reforma.

O sonho como conhecimento do passado está demonstra-do em Fortunas de Andrómeda y Perseo. A temática mitológicadessa obra ilustra a teatralidade do espaço onírico, abrindo-se emnovos espaços contrastantes na ordenação da cena. Essa modali-dade de sonho é o único exemplo no teatro calderoniano.

A visão subjetiva se cumpre em metáfora visiva individual,diferente da aparição que se mostra a duas ou mais pessoas. Sendosubjetiva é pessoal e intelectiva. Configura-se em visões celestiais,demonstrando a transcendência do sujeito, deixando o sensível paraestar no inteligível. Os exemplos significativos constatam a temáticarepresentada, também, na pintura da época, aproximando teatro epintura, na expressão da estética horaciana em ut pictura poesis.

Exemplos de visão subjetiva, como temática bíblica efe-tivam-se nos autos sacramentais La piel de Gedeón e La cenadel rey Baltasar. A visão subjetiva profana se teatraliza em Lagran Cenobia e em La hija del aire. O auto sacramental Lalepra de Constantino apresenta exemplo menos significativo.Entretanto, a análise se detém na visão subjetiva como mara-vilhoso cristão, formalizado em El grand príncipe de Fez eem El purgatorio de San Patricio.

A visão do PRÍNCIPE define bem a subjetividade da metá-fora visiva, pois estando ele em um naufrágio com a tripulação, ape-nas ele vê e ouve o que se passa, deixando o sensível, para no inteli-gível, dialogar com a VIRGEM. A concordância entre a didascáliaexplícita, voz do autor, e as representações da Imaculada na pinturade Zurbarán e Murillo, formalizam a estética ut pictura poesis.

A visão de SAN PATRICIO, dialogando com o ANJO, quelhe traz uma carta e lhe mostra o espelho do escudo onde ele vê oclamor do povo da Irlanda por sua ajuda contra o paganismo, permi-te formalizar a visão através do espelho e inferir a hierarquia do ANJO,

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de acordo com a hierarquia celeste de Dionísio, o Areopagita e,consequentemente, a hierarquia humana de SAN PATRICIO.

A visão como pessoal, individual, subjetiva, formaliza a vi-são e aparição através do espelho em diferença. Percebemos a metá-fora visiva em mirabilia, evidente ao mago e àqueles que o acompa-nham, especificando a aparição a duas ou mais pessoas, isto é, cole-tiva. Desse modo, a comédia novelesca, El Conde Lucanor, ilustra avisão e aparição através do espelho mágico. A maga IRIFELA, nalua fingida de seu espelho, metáfora da natureza, revela para oSOLDÁN e para o DUQUE DE TOSCANA o que querem ver:CASIMIRO, ASTOLFO e LUCANOR atuam em seus espaços, àdistância e mostram a afetação, a crueldade e a lealdade, respectiva-mente. O dramaturgo se mantém na tradição renascentista e,desbordando espaços dentro da estética barroca, teatraliza a magia,deixando representar o teatro da memória mágica.

A efetivação da magia se organiza na visão e aparição à dis-tância em La exaltación de la cruz, como também em El jardín deFalerina. Optamos pela análise da primeira, considerando a coexis-tência entre pagão e cristão. O mago Mogundat, conversoANASTASIO, como IRIFELA, operam os elementos da natureza,estabelecem vínculos ou simpatias e ativam a visão e aparição à dis-tância; ao mago e aos príncipes SÍROES e MENARDES se mostraa invasão de Jerusalém pelo rei da Pérsia, CÓSDROAS, e a impossi-bilidade de profanação do altar onde se encontra a cruz em que Cris-to foi crucificado. Organização da magia em teatro que se patenteia,induz a imaginar o confronto entre o pagão e o cristão; a invocaçãode espíritos impuros, ineficiência da sabedoria dos magos, tradiçãorenascentista, mostra a ideologia da Contra-Reforma.

É preciso reformar a magia, assinalar o mago como sábiorenascentista, depreendendo do próprio texto calderoniano a evi-dência da memória mágica, teatralizando-se e formalizando a esté-tica barroca, estendendo-se em espaços, envolvendo o leitor, ape-lando para os sentidos do espectador. Em En esta vida todo esverdad y todo mentira, observamos a grande afirmação do homemrenascentista envolvendo com sua magia e encantamento.Condensando o tempo, ele possibilita a visão e aparição do futuro.LISIPO, o grande mago calderoniano, induz a fingir, a imaginar, acriar espaços mentais onde sombras ou fantásticas ilusões atuamno teatro da memória mágica. Delineia espaços, mantém a diferen-

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ça: o espaço do mago é interdito a sua magia. Oferecendo ilusões –verdades e mentiras, fingido e verdadeiro – considera as riquezasmateriais, bens sonhados, como em La vida es sueño e a mentira semostra verdade indesejável.

Ao lado de IRIFELA e de FALERINA, depreende-se aIDOLATRIA atuando como maga ao proporcionar ao inca MancoCápac a visão e aparição do passado, em La aurora en Copacabana.Caracterizada como o demônio, com traje negro, estampado deestrelas, favorece a ação dos indígenas, opondo-se à proteção deanjos e de Maria, junto aos espanhóis. Oferece ao rei inca porten-tos e prodígios, mirabilia, formalizados na visão e aparição do povoperuano antes da chegada do filho do Sol, passado negativo; emseguida, mostra a chegada do filho do Sol e a admiração de MancoCápac. O teatro da memória se formaliza. Magia no tempo, quan-do a IDOLATRIA induz o inca a rememorar sua história, atenden-do a sua vontade e dispondo de seu entendimento: memória, en-tendimento e vontade se constituem na teatralidade da memória,magia que torna o passado presente.

Desse modo, evidenciamos os objetivos e os limites da pes-quisa: inferir da dramaturgia calderoniana os mirabilia em suaespecificidade como sonhos, visões e aparições, metáforas visivas,formalização do maravilhoso, privilegiando o sentido da vista etudo o que se pode admirar com os olhos. Os mirabilia acumulamem mirari, miror, miroir e em speculum, specchio, espelho, aefetivação de admirar, mirar com os olhos, coisas admiráveis, des-velando, portanto, a corrente escolástica, medieval e a correntehermética dentro do neoplatonismo renascentista, formalizando acoexistência do maravilhoso cristão e pagão no teatro barroco deCalderón de la Barca.

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O estudo do maravilhoso é, inicialmente, a reflexão so-bre o próprio vocábulo mirabilia, ium, no plural maravilhas, pro-dígios, coisas admiráveis que comporta algo visivo. Trata-se deum olhar. Os mirabilia não se restringem apenas ao que se podeadmirar com os olhos. Mas, em sua origem, relacionam-se com osentido da vista, organizando-se em imagens e metáforas visivas.Etimologicamente se definem duas vertentes na representação dosmirabilia: imagens, metáforas visivas para um sujeito que as ad-mira, com um olhar, como prodígio, como extra ordinem; ou queadmirado diante do espelho “mira” coisas admiráveis.

Na relação sujeito/metáfora visiva, apreendemos a pas-sividade do sujeito diante de um acontecimento de poderes su-periores. Pela delimitação do espaço, especificamos a imagemna lenda, na vida de santos, na fábula ou no mito, herança decada povo ou crença de uma época; como temática, perdida,quase sempre, em um hiato do tempo, essa herança é retomada,muitas vezes, para expressão da ideologia. Destacando-se doquotidiando ou se opondo a ele, o maravilhoso se afirma, exigi-do pelo restabelecimento da ordem ou do bem: Le merveilleuparaît l’instruemnt de la distance pédagogique et du droit(BESSIÈRE, 1974, p.17) Através de metáforas visivas, na de-sordem do presente, traz, portanto, a herança, fundada em umpassado longínquo, como modelo e como exemplo, reavivandopara reviver a ordem que se pretende alcançar ou restabelecer.Desse modo, o presente é julgado e a métafora do maravilhoso,como exemplo, é o real idealizado opondo-se à verdade indese-jável, que se quer rejeitar. Entre os mirabilia e a verdade sócio-

IO maravilhosono século XVII

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cultural se estabelece a relação ética.Negando o presente, o maravilhoso se impõe e é tido como

o que se deseja para todos, tornando o mundo real indesejável. E,ao se dar em representação – imagens e metáforas visivas, recu-sando ou condenando o presente - o maravilhoso instaura a rup-tura entre o presente e o passado. A ordem deve se afirmar paraser reconhecida. Elementos significativos da própria sociedade –santos ou mártires, o próprio Cristo ou a Virgem, o demônio –situados, tantas vezes, em espaços referentes à mesma geografiado leitor ou do espectador, não surpreendem. Ao contrário, noreconhecimento, eles – leitor ou espectador – encontram o mo-delo e podem apreender a necessidade de mudança, pela oportu-nidade de repensar o presente. A representação do mal e do bemé objetiva e I’idéologie, que recéle le merveilleux, prend la mas-que de l’universalité (idem, ibidem, p.18).

Como modelo, os mirabilia têm sempre a função e valorde exemplo ou de ilustração do que se pretende. Como afirmaBessière le merveilleux ne questionne pas l’essence même de laloi qui régit l’événement, mais l’expose (idem, p. 18).

1. O maravilhoso cristão

No contexto do século XVII contra-reformista,depreendemos a representação do maravilhoso cristão como ex-pressão necessária, afirmativa dos valores católicos, inferidos daherança, patrimônio exemplar, modelo de ontem ilustrando hoje,para formalizar para a cristandade inteira o ideal desejado: os már-tires, os santos, os grandes ou humildes sacerdotes e também aque-les que buscaram o cristianismo, renunciando a antiga seita, devemser rememorados, representados a fim de manter viva a fé católica.

Desse modo, especificando-se o maravilhoso como cris-tão, verificamos que ele se fundamenta na herança. O cristianis-mo se expandindo por diferentes e ricas culturas, em mundos an-tigos, ali se nutre; pois o maravilhoso mais que qualquer outroelemento pertence aos estratos antigos (LE GOFF, 1985, p.21).A sociedade cristã assiste, através do tempo, à produção dosmirabilia. Mas é do maravilhoso anterior, já sedimentado, queela se serve, para modelo e exemplo. As antigas maravilhas cons-tituem a herança, elemento primordial dentro da tradição cristã.

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Com a herança se estabelece o patrimônio imenso e representati-vo com o qual a Igreja erige um corpus para defini-la, em suaatuação, em sua doutrina e em sua expressão. As crenças, as len-das sobre os mártires, a vida dos santos, enfim, os textoshagiográficos constituem a herança que modelizará no momentooportuno, trazendo para o presente, o exemplo do passado; ques-tionando o presente, pela leitura do passado; induzindo o pensa-mento do hoje, pelo confronto com o ontem; buscando o certo,para delimitar e mostrar o errado; por tudo isso, o verdadeiro, emmirabilia, se opõe ao falso, discutido no contexto sócio-culturaldo agora, o século XVII.

Uma vez que a herança não se cria, ao contrário, é recebidae, quando se apresenta um patrimônio coletivo ou individual ante-rior já aceito e inquestionável, a Igreja, como instituição, recorreaos mirabilia, para confrontar aqueles que a desacreditam. Encon-tramos, então, no século XVII, a estetização do maravilhoso (idem,ibidem, p.23). As metáforas e imagens visivas se representam naliteratura, no teatro e na pintura. A temática da aparição se desen-volve, trazendo em suas distintas formas de representação – litera-tura, teatro, pintura, escultura – os sonhos, as visões e as aparições.Temática que recorre à herança, trazendo exemplos extra ordinem,de homens cujas vidas, às vezes como lenda, na dedicação humildeou no sacrifício calado, são capazes de mostrar, em sua representa-ção, a ordem indesejável ou maléfica, para então, justificar maisainda, o questionamento dessa desordem.

No cristianismo, o maravilhoso se efetua de acordo comos poderes divinos. Deus é o agente e o homem, mártir ou santo,é o elemento passivo, recebendo do alto o beneplácito. E, se nãose representa a interferência divina diretamente, vinda de esferassupra-celestiais, ela se dá através de mensageiros, querubins ouserafins, anjos ou arcanjos da esfera celestial. Uma vez que areligião cristã é monoteísta, conhecemos o Autor dos mirabilia.Entretanto, o conhecimento da interferência divina como agen-te não descaracteriza a imprevisibilidade do maravilhoso. Pois,o que se deseja patentear, e de modo bem claro, é a evidência daatuação divina junto aos escolhidos, nomes mais representati-vos da Igreja; assim, prova e comprova, através de momentosadmiráveis, a ascensão do espírito a planos superiores e a atua-ção de poderes divinos junto a esse crente piedoso para que a

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religião católica se afirme no contexto conturbado das lutas re-ligiosas durante o século XVI.

É, portanto, dentro do espírito da Contra-Reforma, quese pode depreender a função do maravilhoso no século XVII. Aigreja fazendo representar toda a tradição acumulada e demons-trando a herança deixada pelos seus mais significativos nomes, ofaz para testemunhar a verdade da própria religião católica, a cren-ça dos fiéis e a magnitude espiritual daqueles que a honram comseus momentos de êxtases e visões; quando a voz de Deus se fazouvir nos sonhos, profetizando acontecimentos; ou quando a apa-rição da Virgem ou de um rei santo testemunham a fé. Delineia-seesse posicionamento dentro da ideologia contra-reformista, rea-firmando os valores católicos, conseqüência da reforma protes-tante e das divergências religiosas durante o século XVI.

Nesse momento, são necessárias algumas rápidas consi-derações sobre a divergência entre Lutero e a Igreja. Em outubrode 1517, ele traz a público suas 95 teses sobre as indulgências.Entre elas, citamos, baseando-nos em García-Villoslada:

32. Se condenarán eternamente, junto con sus maestros,cuantos crean seguros de su salvación por las letrasindulgenciales.

41. Las indulgencias apostólicas deben predicarse concautela a fin de que el pueblo no se engañe, creyendoque son más estimables que las obras de caridad.

66. Los tesoros de las indulgencias son redes con quehoy día se pescan las riquezas de los hombres. (GARCIA-VILLOSLADA, 1976, p.342-343)

Em 1519, aparecem seus escritos reformadores emLeipzig. Neles é condenada a primazia papal. Em 1520, outrosescritos luteranos delineiam a reforma protestante contra a Igrejacatólica: A nobreza cristã, O cativeiro da Babilônia, Sobre a li-berdade cristã. O pensamento reformista se baseia na fé comoresposta ao anúncio do evangelho, tendo Cristo como Salvadorde cada homem. A mediação da Igreja é desprestigiada; o batistmoe a comunhão são considerados como os únicos sacramentosautênticos. Lutero questiona a autoridade de Roma, condena o

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episcopado sacramental, as práticas externas, o estado monásti-co, onde, para ele, os fiéis encontravam uma segurança falsa queos impedia da salvação pela fé verdadeira e pela graça. O movi-mento reformista queria atingir os abusos e os pontos de doutrinaoficiais. Não desejava fundar uma Igreja diferente, propunha umaforma de doutrina. Os protestantes queriam reabilitar a fé cristã,em toda a sua pureza, isentando-a, segundo eles, de toda inde-cência. Para Lutero

21. Yerran, pues, los predicadores de indulgencias, segúnlos cuales, por indulgencias papales, queda el hombrelibre y salvo de todas penas (idem, ibidem,p. 343)

Dentro desse pensamento, o culto à Virgem foi menospreza-do porque substituía o de Cristo. A virgindade de Maria foi posta emdúvida. A transubstanciação, isto é, a presença real de Cristo na Eu-caristia, foi negada. Não havia lugar para representação artística al-guma. As igrejas dos reformadores, como as sinagogas e as mesqui-tas, passaram a ter paredes brancas, sem nenhuma imagem. Isto oca-sionou a destruição de muitas obras de arte.

Entretanto, a esa desnudez la Iglesia opuso, desde finalesdel siglo XVI, el esplendor de sus colores, de sus mármoles y de susmateriales preciosos (MÂLE, 1985, p.46). O papado afirma, atra-vés da arte, o que a heresia havia negado. Os jesuítas, como respostaaos protestantes, decoravam suas igrejas com quadros, afrescos, es-tátuas, em bronze e ouro. Era preciso buscar na tradição da Igreja, aherança dos antepassados e representá-la, a fim de manter viva achama da fé católica.

Desse modo, Baronius, em seus Anais Eclesiásticos, 1588-1607, conta a história da Igreja do Oriente e do Ocidente nos seus 12primeiros séculos, fazendo repercutir em toda a Europa, trazendopara avivar as mentes e sensibilizar os espíritos, a tradição cristã paraenfrentar os reformistas.

Observamos a preocupação na defesa dos dogmas e, entreeles, destacam-se o sacramento da Eucaristia e a defesa da virginda-de de Maria que, como temática, estão incluídos em obras teatrais,como autos sacramentais, autos marianos ou em dramas. E é nagrande produção teatral do século XVII, principalmente nos autossacramentais, que se encontra uma das bandeiras da Contra-Refor-

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ma levantada pela monarquia espanhola. Ao lado da representaçãoteatral encontramos uma grande produção artística na escultura, napintura, na arquitetura, visando a propagação da fé católica, na ex-pressão de um coletivismo, traçado pela própria Igreja, determinan-do o esplendor da arte cristã (OROZCO DÍAZ, 1960, p. 11).

Sendo os protestantes totalmente hostis ao culto à Virgem,a Igreja a reverencia orientando sua representação nas obras dearte. No teatro ela se apresentará em aparição a homens santos, acativos ou reis; mostra-se como visão de religiosos, de reis ou atémesmo de homens crentes de outras seitas para sua conversão.Intercede em batalhas, dando a vitória àquele que tem fé ou socor-rendo aquele que clama pelo seu auxílio. A Igreja a faz representarcomo menina, virgem imaculada, em belíssimas obras de arte. E aoser representada, tendo sob seus pés a cabeça da serpente, estávencendo toda a heresia.

Como a discussão sobre as indulgências marcou o início daReforma cujos adeptos se negavam a aceitá-las, em conseqüêncianegam, também, a realidade do purgatório. Para eles, o purgatórioera desnecessário, pois o sofrimento de Cristo havia redimido ospecados do homem. Em vão se roga aos mortos. Para os católicosessa descrença era assombrosa. Se os pagãos podiam fazer oferendasaos seus mortos, os católicos poderiam oferecer-lhes orações. E aIgreja, em sua defesa, busca o testemunho da Bíblia, livro dosMacabeus, II, confirmando que é um santo costume rogar pelosmortos, para que sejam libertados de seus pecados. Lemos na Bí-blia de Jerusalém:

40. Então encontraram, debaixo das túnicas de cadaum dos mortos, objetos consagrados aos ídolos deJâmnia, cujo uso a Lei vedava aos judeus. Tornou-seassim evidente, para todos, que foi por esse motivo queeles sucumbiram. 41. Todos, pois, tendo bendito o modode proceder do Senhor, justo Juiz que torna manifestaas coisas escondidas, 42 puseram-se em oração parapedir que o pecado cometido fosse completamentecancelado...(Macabeus, II, 12, 40-42).

A Igreja logo estabeleceu a necessidade do purgatório ea virtude das indulgências. Vai, também, buscar os seus santosmais venerados, que no passado a haviam dignificado, para

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exemplificar e fortalecer-se: São Jerônimo, São Francisco, SãoBoaventura e outros.

As grandes Ordens religiosas direcionam a representaçãoartística, ao encomendarem seus quadros, indicando a temática e acomposição baseadas em cenas da vida de seus santos, de seusservidores em momentos de arrebatamentos divinos (GÁLLEGOS,1987, p.163).

A tradição bíblica representada no teatro ou na pintura for-talece os ideais da Contra-Reforma: a punição ao rei Baltasar pelaprofanação dos vasos do templo está no auto sacramental ou re-presentada na pintura da mão de fogo que prenuncia o fim do seureino, respectivamente em Calderón de la Barca e Ribera.

E muitos santos vão exemplificar o desejo de união comDeus, alcançando esferas celestes, para demonstrar a superioridadedos mais elevados e humildes nomes da Igreja. Não só os místicos doséculo XVI, como Ignácio de Loyola, Teresa de Ávila, Felipe Nerisão representados em seus arrebatamentos de visões e êxtases. Tam-bém os santos de épocas passadas são assim relembrados. Não éinteresse da Igreja representá-los em trabalhos quotidianos: é precisoevidenciar a transcendência, o diálogo, a união com Cristo, com aVirgem Maria, com a Trindade. Exemplificar para que a cristandadeinteira sinta, intimamente, a transitoriedade da vida terrena e desejealcançar a glória na vida eterna.

E culminando na demonstração da grandeza de seus maisaltos dignatários, a Igreja no século XVII canoniza alguns santosespanhóis: Isidoro, o Lavrador, Teresa de Ávila, Ignacio de Loyola,Felipe Neri e Francisco de Borja.

2. O maravilhoso pagão

Se o maravilhoso cristão, no século XVII, é a reafirmaçãoda Igreja em sua herança e tradição, frente aos reformadores, omaravilhoso pagão significa, a partir do Renascimento, o ho-mem, mago e sábio, capacitado, já, para operar as forças danatureza e realizar prodígios, coisas admiráveis. Assim, paraGiodarno Bruno, mago equivale a hacedor de maravillas (BRU-NO, 1987, p.226). Por isso, a magia proporciona a realizaçãode coisas extra-ordinem, como ciência ou arte que ensina a fa-zer coisas admiráveis.

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Os atos de magia se relacionam, também, a imagens emetáforas visivas e o gesto mágico oferece a visão à distância, avisão através do espelho, a visão e aparição através do espelhomágico, visão e aparição à distância, visão e aparição do futuro evisão e aparição do passado, como prodígio, coisa admirável, ex-pressando, portanto, o maravilhoso, na teatralidade da memória.

As considerações sobre a magia levam a estabelecer a opo-sição entre o verdadeiro – o cristianismo – e o falso – a magia, istoporque o homem que antecede ao homem renascentista se situadentro de uma ordem dada como estabelecida e verdadeira, emque ele não deve atuar; o homem renascentista questiona essa mes-ma ordem, indaga sobre o céu e a terra, quer desvendar a naturezae tecer fios de correspondência entre o celestial e o terreno; e natessitura dos vinculi mundi, isto é, determinando a simpatia, o amorentre tudo e todas as coisas, ele alcança também as esferassupercelestiais porque, como define Eugênio Garin

a magia é sempre o domínio de forças capazes de inse-rir-se ativamente na estrutura ordenada e cristalizadadas coisas, modificando as suas formas de maneirasnovas e não extraordinárias”(GARIN, 1987, p.155).

Para compreendermos a problemática do maravilhoso pa-gão e a presença da magia em representações no teatro e na literaturado século XVII, precisamos traçar um breve histórico do seu desen-volvimento e de suas vertentes: a tradução de Marsilio Ficino doCorpus Hermeticum; a magia natural de Ficino; o neoplatonismo; ainclusão da cabala na magia natural por Pico della Mirandola; aliguagem de intenso poder mágico estabelecida por Cornelio Agripa,em seu livro De occulta philosophia; a perspectiva de conciliaçãoreligiosa através dos escritos herméticos e o livro Nova universisphilosophia, de Francesco Patrizi; Giordano Bruno como mago daRenascença; a persistência do hermetismo religioso no século XVII,com o jesuíta Athanasius Kircher. Autores e obras, construtores datessitura da magia no Renascimento, permitem sua permanência eexpressão até o século XVII.

Na segunda metade do século XV, partindo de Florença,começa a divulgação da tradução do manuscrito vindo da Macedônia,cuja origem data dos séculos II e III d.C. Em conseqüência, estabe-

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lece-se uma tradição na Europa, durante todo o período doRenascimento, extendendo-se aos séculos XVI e XVII, com a certe-za de que os escritos de Hermes Trismegisto, o Asclépio (livro dareligião egípcia) ou Sermo perfectus (título divulgado por Lactâncio)e o Corpus hermeticum, eram muito antigos. Já no século IV, a auto-ridade de Lactâncio, em seus Institutos e de Agostinho em CivitateDei mantém o prestígio de Trismegisto. Para eles Hermes anuncia oadvento de Cristo. Por isso, Lactâncio será o padre favorito dos magosda Renascença que desejavam permanecer cristãos. E Agostinho crêna antigüidade de Hermes que viveu muito antes dos filósofos e sábi-os da Grécia, mas depois de Abraão, Isaac, Jacó, José e Moisés.

Como observa Paul Oskar Kristeller

estos escritos fueron para Ficino y sus contemporáneosy sus sucesores los auténticos testimonios de unasabiduría antigua anterior a Platón, aunque en funda-mental harmonía con él. Así existía una tradición paganaque era tan antigua como la escritura hebrea(KRISTELLER, 1980, p.114).

Marsilio Ficino, traduzindo as obras de Platão, apresentou aretomada do filósofo e do neoplatonismo como um movimento quese poderia somar ao cristianismo, permitindo que aí penetrasse umanuance de magia, abrindo para aquelas filosofias da Renascença, im-plicitamente inspiradas em tradições mágicas. A teoria da priscatheologia, afirmando a piedade e a antigüidade de Hermes Trismegisto,priscus theologus e mago, ofereceu uma desculpa para a modernamagia filosófica de Ficino.

O que leva Ficino a associar os escritos herméticos ao cristi-anismo é a semelhança notável entre o Pimandro – o Argumentumque precede sua tradução do Corpus hermeticum – Gênese egípcio -e o Gênese judaico. A antiga sabedoria egípcia, propagada por Ficinoera também favorável à revivescência da magia, pois muitos priscitheologi eram prisci magici.

Em seu livro Sobre Magia, Giordano Bruno define e relaci-ona o alto conceito do mago:

En primer lugar Mago equivale a sabio, como eran losTrimegistos en Egipto, los Druidas en la Galia, losGymnosofistas en la India, los Cabalistas entre los Hebreos,

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los Magos en Persia desde Zoroastro, los Sophi en Grecia,los Sapientes entre los latinos (BRUNO, 1987, p.225).

É preciso considerar o processo de mudança que se verificano pensamento renascentista: o homem medieval aceita uma ordemestabelecida principalmente pela Igreja; o poder divino como centroo impede de operar por si mesmo e atuar na natureza; a organizaçãodo cosmos ainda não está questionada. O homem do Renascimentonão está apenas no centro, ele é o grande milagre, criado à imagemde Deus. Volta-se para si mesmo e se conscientiza do seu poder, dasua capacidade de atuar para mudar e criar. Organiza em harmonia asforças da natureza, capta as influências dos astros para coordená-lascom os elementos terrestres; e, todo poderoso, conhecedor dos se-gredos do céu e da terra, dirige o seu destino, e é capaz de alterar odestino dos homens porque como Sábio, como Mago, ele domina aterra e a água, o ar e o fogo. Por isto

mago é o homem que transforma ativamente as vias ha-bituais da realidade, inserindo-lhes certos processosinusitados e subversivos que atestam o domínio do ho-mem sobre todas as criaturas”(GARIN, 1987, 135).

Sentindo-se capaz de operar a realidade e transformá-la, parao mago o quadro de referências do cosmo é sempre astrológico e omundo material se encontra sob o domínio das estrelas dos sete pla-netas, os “Sete Governadores”. As leis da natureza são leis astrológi-cas e, nelas, vivencia-se a experiência religiosa.

A magia de Ficino em De vita coelitus comparanda, Sobre omodo de capturar a vida das estrelas consiste em atrair para a terraos spiriti e através deles se difundem as influências das estrelas, des-cendo até o homem que as absorve em seu próprio espírito, e até ocorpus mundi. Desse modo, a magia se constitui no direcionamentoou controle do influxo do spiritus na matéria, sendo a confecção detalismãs o recurso mais importante, pois através de objetos materiaisem que se introduziu o spiritus de uma estrela, ali ele se conserva. Omago atuando sobre as forças da natureza, pode dominá-las. A teoriade Ficino, operando através da magia simpática, está de acordo coma teoria do Picatrix, livro sobre magia simpática e astral, original-mente escrito em árabe, provavelmente no século XII. Tem-se notí-cia de uma tradução latina feita sob a orientação de Afonso X, O

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Sábio. É evidente a popularidade desse livro durante os séculos XVe XVI pela circulação clandestina do manuscrito, o que comprova,também, a presença de uma literatura hermética e mágica na Espanha,(YATES, 1990, p.57).

Um contemporâneo de Ficino e influenciado por ele, porém,mais moço, apresentou-se como entusiasta e seguidor da magianaturalis, adotando-a e a recomendando: Pico della Mirandola. Mas,seu papel é muito mais significativo porque à magia do Renascimentoele acrescenta a cabala prática ou magia cabalística. Essa magia espi-ritual, embora não estabelecesse simpatias ou vínculos apenas com ospiritus mundi, tentava ascender às forças espirituais mais elevadas,além das forças naturais do cosmos. Isso se operava pela invocaçãode anjos, arcanjos, dos dez Sefirots (nomes ou forças de Deus) emesmo de Deus; tendo, também, como recurso, processos seme-lhantes aos mágicos e, mais evidentemente, o poder do idiomahebraico, considerado sagrado. Porém, a magia cabalística é muitomais ambiciosa que a natural de Ficino, e um tipo de magia queseria impossível manter separado da religião (idem, ibidem, p.100).

O mago natural, considerado por Pico della Mirandola,usaria o mesmo método de magia naturalis de Ficino: simpatiasnaturais, encantamentos órficos, sinais e imagens mágicas. Po-rém, os cantos órficos seriam inúteis, fracos, sem a intervençãoda cabala prática.

A cabala nacida y desarrollada en gran parte en Españadonde se compiló el más insigne de sus monumentos, el Zohar, teníamucho de poética y teosofía, como esclarece Menéndez Pelayo; esteacentua, também, que os cabalistas espanhóis consideram a naturezacomo um imenso hieroglifo, sob cujos signos podemos descobrirmaravilhas ignoradas y misterios profundos (MENÉNDEZPELAYO, 1985, p.252).

Depreendemos no contexto da magia, a preocupação coma organização cósmica e a necessidade de descrevê-la, definí-la,para que o homem, ou mais propriamente a alma, possa ascender aesferas superdivinas. Daí a visão das nove hierarquias angélicas,por Dionísio, o Areopagita; a ordem cósmica de Ficino com asnove ordens espirituais. O mago operando o sensível, ascende aointeligível. Desse modo, a síntese do neoplatonismo se formalizacom o cristianismo. E Pico della Mirandola menciona os “três mun-dos”: o elemental, ou terrestre, o celestial ou das estrelas e o mun-

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do supercelestial, estabelecendo a ligação com o neoplatonismo,ao identificar o mundo angélico dos teólogos com o mundo inteli-gível dos filósofos.

E é com o posicionamento de visão e divisão do cosmosque surge em 1533, o livro De occulta philosophia de CornélioAgripa, oferecendo uma perspectiva útil e bastante clara detoda a magia renascentista. E em 1535, também na Itália, LeónHebreo, judeu espanhol, publica Diálogos de Amor. Esse livrorepresenta o sincretismo da filosofia medieval judeo-aristotélica;da filosofia humanista e platônica e a tradição bíblica e cabalista(YATES, 1990, p.152).

Agripa não tem o cuidado, como Ficino, de evitar o ladodemoníaco da magia natural, atraindo somente as influênciasestelares; como homem renascentista, quer captar além das estre-las, as influências das forças espirituais. E ao relacionar as letras doalfabeto hebraico com os signos do zodíaco, os planetas e os ele-mentos, encontra uma linguagem de forte poder mágico. Comomago pode fazer coisas maravilhosas.

À medida que se avança no tempo, o homem ascende a esfe-ras superiores e Agripa se distancia de Ficino que operava apenas nomundo elemental, com resquícios de magia celestial conservada emalguns talismãs planetários, utilizados naturalmente. O sábio Agripadeseja alcançar o próprio criador, obter o poder divino de criação, iralém dos três mundos: o elemental, o celestial e o intelectual (ouangelical ou demoníaco). Expõe, também, a magia órfica, insistindoque suas divindades são virtudes divinas e naturais, criadas por Deuspara serem usadas pelos homens e não são demônios perversos.

Ao assinalar a influência dos nomes divinos através da medi-ação dos anjos, afirma que desde o advento de Cristo, o nome de lesupossui todos os poderes, não podendo os cabalistas operar comoutros nomes (idem, ibide, p.162).

Quanto à organização do cosmo, há três ordens de inteligên-cias ou demônios: a supercelestial relacionada apenas à divindade; acelestial ou os demônios referentes aos signos, decanos, planetas eoutras estrelas; apresentam nomes e caracteres, utilizados os primei-ros nos encantamentos e os segundos nas inscrições; e a terceiraordem, a do mundo inferior, como os demônios do fogo, do ar, daterra e da água.

A magia de Ficino suave, artística, subjetiva, e a imensa pi-

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edade e contemplação depreendidas da magia cabalística de Picodella Mirandola são isentas das terríveis implicações de poder demagia da Agripa. Mas foram eles, exercendo a prisca theologia quenunca deixou de ser prisca magia, que sedimentaram essa culturarenascentista, mantendo a ilusão da antigüidade de Trismegisto, atra-vés da aliança entre este e a cabala (idem, ibidem, p. 164).

A magia e a cabala de Agripa surgem formalizadas na nobre-za da magia renascentista, com a honraria do mago do Renascimento,muito diferente das magias de Ficino e Pico della Mirandola conside-radas em um contexto de filosofia neoplatônica e misticismo hebraico:a neoplatonização dos talismãs de Ficino; a cabala prática, colocan-do o operador em contato direto com o mundo angélico ou intelec-tual, define-se desse modo, como magia sacerdotal. Pois, para o mago,sua mais alta dignidade está na função de sacerdote, praticando ritosreligiosos e fazendo milagres religiosos. Graças à magia, estabelecevínculos entre o céu e a terra; pode convocar os anjos graças à caba-la, o que o leva a alcançar a apoteose como mago religioso. Nosmundos inferiores atua com mágicos poderes para vincular-se aomundo intelectual, onde exerce seus altos poderes religiosos (BRU-NO, 1987, p.247).

Magia e religião estão no mesmo contexto renascentista eforam Lactâncio, Ficino e Pico della Mirandola que colocaram HermesTrismegisto dentro da Igreja.

O Occulta philosophia exerce uma influência enorme, poisCornelio Agrippa

“percorre toda a Europa, de Colônia a Paris e à Provença,de Espanha à Itália e à Suiça; dirige-se à Sardenha e de-pois chega a Brindisi, para cerrar fileiras em torno de umasociedade baseada em idéias mágico-herméticas cuja ci-ência deveria transformar a situação européia. Na magiae na astrologia convergem os dois temas: o poderdominador das forças da natureza e o poder reformadordos homens através do saber. No ponto indicado pelos as-tros como o momento oportuno para uma grande crise, ohomem sábio harmoniza as forças, combina-as para reali-zar o que deseja” (GARIN, 1987, p.152).

Baseando-se na obra de Agripa, Giordano Bruno será omago religioso, publicando suas obras no último quarto do séculoXVI. O De magia e o De vinculis in genere devem ter sido escri-

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tos, provavelmente, em 1589 e o De imaginum. signorum etidearum compositione, em 1591. Em seu livro sobre magia, Brunodefine, primeiramente, o mago como sábio; em seguida, especifica,de maneira abrangente, os diferentes tipos de magia; apresenta oaxioma dos magos, determinando a escala entre os distintos pla-nos, tendo no ápice Deus, acto puro y potencia activa, comopurísima luz; e na base, a matéria, las tinieblas, como potenciapasiva (BRUNO, 1987, p.231). Expõe sobre a comunhão das coi-sas; sobre os vínculos e analogia dos espíritos; especifica os víncu-los pela voz e pelo canto; pela vista e pela fantasia. Como ex-dominicano de Nápoles, Gioardano Bruno exemplifica a tradiçãodessa ordem religiosa que se estende pela Europa, sendo necessá-rio evidenciar o domínio da Espanha em Nápoles, até 1820.

No final do século XVI, a piedosa filosofia fundamentadano hermetismo se encontra no contexto da Contra-Reforma. O idealpacifista é aconselhado aos jesuítas, para atrair os protestantes, sema perseguição e a força das armas. E ao indicar justamente os jesu-ítas, Patrizi não ignora a importância dessa ordem e de seus colégi-os no quadro contra-reformista. Nesses colégios, criados naEspanha, a partir de 1543, para citar apenas um aspecto, surge, nasegunda metade do século XVI, o teatro que tem objetivos bastan-te precisos e é aberto a classes sociais bastante diversificadas. Nofinal do século XVI, esse teatro já fixou suas formas, tendo estabe-lecido as normas de dramaturgia e estética, conquistado seu públi-co e afirmado sua existência solidamente. Durante o século XVII,segue uma carreira paralela àquela do teatro público. E dramatur-gos do século XVII foram alunos de colégios jesuítas, como é ocaso de Calderón de la Barca. Em suas diferentes representaçõesdurante o ano, esse teatro é um meio de propaganda e de recruta-mento (ROUX, 1968, p.419-523).

Enquanto Patrizi em sua Nova universis philosofia se man-tém na tradição do hermetistmo italiano com Ficino e Pico dellaMirandola, Giordano Bruno deixa a interpretação cristã que funda-mentava todo o hermetismo religioso católico ou protestante(YATES, 1990, p.206).

Mas Giordano Bruno com sua linguagem talismânica, for-malizando uma língua dos deuses, estabelece os vínculos mágicosque possibilitam a união do entendimento humano com o entendi-mento universal. Como uma das potências da alma, unida à vonta-

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de, o entendimento, imaginativamente, representa imagens de po-der mágico na memória, permitindo ao homem transcender o sen-sível e alcançar o inteligível; partir dos elementos sensíveis e pene-trar na luz das verdades eternas; assenhoreando-se dos deuses edos demônios, conduz e espacializa no locus da memória suas ima-gens dramaticamente percussivas e atuantes. Magia e memória,tradicionalmente, já caminham juntas.

Dentro da expressão do maravilhoso pagão, devemos con-siderar, também, o maravilhoso greco-latino, cuja temática é a mi-tologia clássica.

O mito, desvelando segredos guardados nas origens de umpovo, leva, naturalmente, aos confins de homens e deuses. Referin-do-nos à mitologia grega, observamos que, durante toda a antigüi-dade, certos mitos continuam sendo atualizados em ritos. Desde aépoca de Homero se formaliza uma mitologia, considerável con-junto de relatos, constituindo-se em uma trama historizante. Trata-se, em geral, de fábulas ou alegorias explicativas, respostas ao sen-tido clássico da palavra mythos: história, fábula, ficção.

A influência grega sobre Roma, constitui, fundamentalmen-te, a mitologia latina. Desse modo, os deuses gregos têm seus cor-respondentes latinos: Afrodite e Vênus, a identificação de Zeuscom Júpiter, por exemplo.

Esses deuses da cultura clássica, figurados em ações, po-derosos ou inferiores, em lutas ou em amores, são uma temáticaque permanece nos mirabilia, do século XVII, representados naliteratura, no teatro, na pintura, na escultura.

A partir do Concílio de Trento, cuja última sessão foi reali-zada em 1563, inicia-se a exclusão de obras que expressavam asliberdades do Renascimento, isto é, obras que expunham a perfei-ção da forma humana, representando os deuses ou os homens.Baniram-se dos recintos das igrejas todos os quadros de temaprovocativo, evitando confundir o espírito dos simples. Desse modo,a temática mitológica clássica passou a ser monopólio dos reis e dealguns grandes senhores em seus palácios. No teatro estará restritaàs representações na Corte. É o próprio Concílio que determina,como nos indica Emile Mâle:

El Santo Concilio prohibe que se sitúen en las iglesiasimágenes que se inspiren en un dogma erróneo y que

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puedan confundir a los simples de espíritu; quiere,además, que se evite toda impureza y que no se dé a lasimágenes caracteres provocativos. Para asegurar elcumplimiento de tales decisiones, el Santo Concilioprohibe colocar en cualquier lugar e incluso en las iglesiasque no estén sujetas a las vistas de la gente común,ninguna imagen insólita, a menos de que haya recibidoel visto bueno del obispo ( MÂLE, 1985, p.27).

3. A Arte da Memória

Na coexistência do maravilhoso cristão e pagão, representa-do em metáforas visivas, considerando a importância do sentido davista – que se especifica em visão interna, pensamento imaginativo –a arte da memória formaliza espaços mentais que se concretizam nateatralidade em ut pictura poesis. Desse modo, faz-se necessário umbreve percurso na história dessa arte presente em Cícero – a memó-ria é uma das cinco partes da retórica -exemplificada no anônimo Ad.C. Herennium libri IV e no Institutio oratoria de Quintiliano, comomemória clássica; Alberto Magno e Tomás de Aquino, os grandesescolásticos, inferindo de Aristóteles, em De memoria etreminiscencia, tornaram a arte da memória semelhante a que ensinaCícero na Segunda Retórica (YATES, 1974, p.48); ressaltamos emtodo esse contexto a importância dada à imaginação. E o teatro damemória de Giulio Camillo com influências herméticas e a arte damemória de Giordano Bruno, inseparável da religião, entre outros,expressam a corrente renascentista, neoplatônica dessa arte. Aindano século XVI, os Exercícios Espirituais de Ignácio de Loyola for-malizam a escolástica, na intensificação dos sentidos; é quando se faznecessário vivenciar o sensível, vencer a si mesmo, para alcançar ointeligível. Evidenciamos a enorme influência desses exercícios espi-rituais em todo o século XVI e XVII.

Entretanto, é Simônides de Ceos (556 – Siracusa, 467 a.C.) que, narrando um fato, exemplifica o início da arte da memória:em um banquete oferecido por Scopas, nobre da Tessália, onde seencontrava o poeta, ao levantar-se para atender a dois jovens quequeriam vê-lo, houve um acidente e todos os que lá estavam fica-ram irreconhecíveis. Observa que foi pela lembrança dos lugaresonde estavam sentados os convidados que ele pode identificá-los; econclui que para uma boa memória é necessária uma disposição

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ordenada dos loci.Cícero, (106-43 a.C.) em De Oratore, comenta as conclu-

sões de Simônides, ressaltando que as pessoas para adestrar a facul-dade da memória terão que selecionar lugares, formar imagens men-tais do que desejam recordar e localizar essas imagens, de tal modoque a ordem dos lugares esteja relacionada com a ordem das coisas.

Essa arte pertencia à Retórica e era uma técnica para que oorador pudesse aperfeiçoar sua memória e ser capaz de pronunciarlongos discursos com precisão. E como parte da Retórica (inventio,dispositio, elocutio, memoria, pronuntiatio) se manteve na tradiçãoeuropéia até uma época relativamente moderna. E os princípios ge-rais dessa arte são dados por Quintiliano, em Institutio Oratoria.

Mas é o Ad Herennium a fonte principal e o livro transmissordessa arte da memória à Idade Média. A memória natural nasce si-multaneamente com o pensamento e está na mente; a memória arti-ficial se baseia em lugares e imagens. Un locus é um lugar que amemória pode apreender com facilidade e as imagens são formas,marcas ou simulacros daquilo que se deseja recordar. Essa memóriaartificial implica no desenvolvimento de um “olho interno”, de umapintura mental, extremamente plástica, que se realiza na estética utpictura poesis, resumida por Horácio em sua Arte Poética e atribuí-da por Plutarco também a Simônides, igualando os métodos da poe-sia e os da pintura (idem, ibidem, p.44). Estética analisada em Utpictura poesis. La teoría humanística de la pintura (LEE, 1982). É asupremacia do sentido da vista: na teoria do ut pictura poesis, poetae pintor pensam em imagens visuais que se expressam por meiosdistintos. A relação entre a arte da memória e as outras artes – pintu-ra e poesia – se mantém em termos de uma intensa visualização.

Cícero, em De inventione, depois de definir a virtude comohábito de la mente en armonía con la razón y el orden de lanaturaleza, declara que quatro partes a compõem: Prudência, Justi-ça, Fortaleza e Temperança. Cada uma delas está dividida em partescorrespondentes. E a Prudência, conhecimento do que é bom, doque é mau e do que não é bom nem mau, se divide em memória,inteligência e providência.

As virtudes e suas partes definidas por Cícero foram umafonte importantíssima para o estabelecimento das quatro virtu-des cardeais. E é desse modo que, na Idade Média, a arte damemória se relaciona com a prática religiosa, à presença do

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mundo religioso na mente.Alberto Magno e Tomás de Aquino deviam conhecer, ape-

nas, a Retórica Segunda de Tullius ou Nova Retórica, isto é, o AdHerennium para a memória artificial. Desde a Alta Idade Média,havia a tradição de que o De inventione, com suas definições dasquatro virtudes cardeais e suas partes, constituia a Retórica Pri-meira de Tullius, ou Velha Retórica. Os tratados escolásticos e arsmemorativa – os de Alberto Magno e Tomás de Aquino – nãofazem parte da retórica como nas fontes antigas. A memória artifi-cial se deslocou da retórica para a ética. E como observa Yates,Alberto Magno e Tomás de Aquino perceberam que Aristóteles serefere em De memoria et reminiscencia a uma arte idêntica àquelaque ensina Cícero em sua Segunda Retórica (o Ad Herennium)(YATES, 1974, p.35).

A teoria da memória e da reminiscência, em Aristóteles, estábaseada na teoria do conhecimento. As percepções inferidas pelossentidos são, primeiramente, tratadas e elaboradas pela faculdade daimaginação. As imagens assim formadas constituem o material dafaculdade intelectual. A imaginação é a intermediária entre a percep-ção e o pensamento. Desse modo, como todo conhecimento derivadas impressões sensoriais, o pensamento atua sobre elas, já qualifica-das, depois de terem sido tratadas e absorvidas pela faculdade imagi-nativa.

Para a escolástica e para a tradição da memória que a suce-deu havia uma relação entre a teoria mnemônica e a teoria aristotélicado conhecimento, pela importância dada à imaginação. Sendo im-possível pensar sem um desenho mental, a afirmativa de Aristóteles –a faculdade cogitativa pensa suas formas em desenhos mentais – erauma boa sustentação para o emprego de imagens da mnemônica. Epara o filósofo es posible poner cosas ante nuestros ojos como hacenaquellos que inventan mnemónicas y construyen imágenes”(ARISTÓTELES, 1977, 432,9).

Em De memoria et reminiscentia um apêndice do De ani-ma, afirma:

La memoria pertenece a la misma parte del alma que laimaginación; es un archivo de diseños mentales, proceden-tes de las impresiones sensoriales con la añadidura del ele-mento temporal, pues las imágenes mentales de la memoriano arrancan de la percepción de las cosas presentes sino de

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las pasadas. (...) Por su lado la facultad intelectual entra enacción en la memoria pues es en ella donde el pensamientoopera sobre las imágenes almacenadas de la percepciónsensorial (idem, ibidem, 450a, 30).

Estabelece-se a diferença entre memória e recordação,pois o desenho mental, procedente da impressão sensorial é se-melhante a um retrato pictórico cuyo más duradero estadodescribimos como memoria (idem, ibidem, 450a,30). Recorda-ção é a recuperação de um conhecimento ou sensação ocorridoanteriormente. Porém, necessita-se de um ponto de partida parase iniciar o esforço de recordação:

Ocurre a menudo que no se pueda recordar en el momen-to, pero se puede buscar lo que se quiere y se llega a en-contrar. Esto ocurre cuando alguien inicia muchos impul-sos hasta que por fin inicia aquél que seguirá el objeto desu búsqueda. Pues el recordar depende realmente de laexistencia potencial de la causa estimulante(...) Pero esnecesario tener el punto de partida. Por esta razón hayquienes usan lugares en sus tareas de recordación. La razónde esto es que se puede pasar rápidamente de un escalónal siguiente; por ejemplo, de la leche a lo blanco, de loblanco al aire, del aire a la niebla; después del cual unorecuerda el otoño, en el supuesto de que intente recordaresa estación (idem, ibidem, 452,8-16).

Aristóteles faz menção ao locus da memória artificial parailustrar suas observações sobre a associação e a ordem no processode recordação. E em outro momento do De memoria et reminiscentia,o filósofo se refere ao emprego de uma série, as letras do alfabeto, deonde o usuário poderia partir de qualquer ponto, locus, e por associ-ação, recordar o que está armazenado na memória. Entretanto, asreferências às técnicas da mnemônica parece que são empregadaspor Aristóteles apenas como ilustração para o seu tema.

No século XVI, a arte da memória se representa como umteatro semelhante aos romanos, explicados por Vitruvio. É o teatroda memória de Giulio Camilo. Este corporifica o lado renascentistaque se abre à imaginação, à empresa extraordinária, à invenção. Apu-rado platonismo, hermetismo, cabala e magia matemática compõemesse “lugar” da mente.

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Camillo menciona os três mundos dos cabalistas como Picodella Mirandola: o mundo supraceleste dos Sefirots, equivalente àsidéias platônicas; o mundo intermediário celeste das estrelas; e omundo subceleste ou elementar. Esse sistema da memória se baseiaem causas primeiras, nos Sefirots, nas Idéias que são os “lugareseternos” da memória.

A arte da memória de Camillo está, portanto, dentro dasnovas correntes do Renascimento. Em seu Teatro da Memóriaencontram-se Ficino e Pico della Mirandola, a Magia e a Cabala,o Hermetismo e o Cabalismo implícitos no Neoplatonismo doRenascimento. Ele converte a arte clássica da memória em umaarte oculta.

Camillo, como Ficino, empreende a correlação doHermetismo com o Cristianismo, considerando que Hermes era umafigura sagrada por ter profetizado, alusivamente, o Filho de Deus, oCristianismo. Isso facilitava o caminho de um Mago que queria con-tinuar sendo cristão. E Camillo pensando o espírito de Cristo comospiritus mundi, possibilitou-lhe um sentido cristão em sua opção pelomágico spiritus de Ficino, presente em seu Teatro.

A memória, por estar baseada nas imagens originadas nomundo celestial, teria o poder de unificar os seus conteúdos: enten-de-se, portanto, que todos os pormenores do mundo dos sentidos,refletidos na memória, ficariam organicamente unificados dentro dela,por terem sido, por sua vez, unificados sob as mais elevadas imagenscelestiais, as imagens de suas “causas”. E o Teatro de Camillo permi-tiria ao espectador ler, com apenas um olhar, através das imagens, oconteúdo de todo o universo.

A teoria renascentista da proporção baseada na harmoniauniversal, no mundo de proporções harmoniosas, o macrocosmo,refletido no homem – microcosmo – era um modo de representar aharmonia celestial e a magia, na obra de arte e dar a ela animaçãomágica. Observamos, também, que em um sistema ocultista de me-mória, as imagens talismânicas internas seriam de proporções perfei-tas, advindo daí o poder mágico. O homem renascentista alcançariaa divindade, em obras divinas pelas harmoniosas proporções celestiaisde suas obras de Arte: Magia e Mago, Artista e Arte.

Em Camillo a arte da memória é o lugar, o Teatro que selembra e faz lembrar, representando, nos arcanos espaços invisíveisda memória, discursos mágicos para ouvintes que buscavam e se

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envolviam com a palavra mágica.Dentro da tradição da arte da memória, entre os dominicanos,

Giordano Bruno publica seu primeiro livro sobre a memória, o Deumbris idearum, seguido de Circe, ambos em Paris em 1582; se-guem-se Sellos, na Inglaterra, em 1583; Lampas triginta statuarum– Estatuas – escrito provavelmente em 1587; e De imaginum,signorum et idearum compositione, Frankfurt, 1591. Essas publica-ções ressaltam a importância da arte da memória hermética e mágicano final do século XVI.

Em seus primeiros livros, Bruno mantém a tradição que aarte da memória havia acumulado, mas a sua versão da arte medie-val, fundamentada em Tullius, na escolástica com Alberto Magno eTomás de Aquino, passou pela transformação renascentista, conver-tendo-se em uma arte oculta, apresentada por Hermes Trismegisto.

Em Bruno, os selos são os signos, diagramas ou figurasmágicas que podem ser empregados na memória como lugares.Correspondem às regras da técnica tradicional e, como signosda magia matemática, contêm enormes poderes ocultos que ele-vam a memória finita e particular à altura da mente divina(YATES, 1974, P.285).

Observamos a intensificação e a especificação da imagem naarte da memória, sua complexidade e importância; os lugares e asimagens da memória clássica, o teatro da memória de Camillo, visãodo inteiro mundo, tornam-se em Bruno, emblemas e práxis da suareligião da mente e do mundo.

Em De imaginum, Bruno especifica:

El designio principal es (tratar) acerca de la composiciónde imágenes, signos e ideas con vista a toda suerte deinvención, disposición y memoria. (...) La idea, laimaginación, la ficción, la configuración, la designación,la notación son la obra universal de Dios, la naturaleza yla razón, y está en poder de la analogía de aquéllas el quela naturaleza pueda admirablemente representar la accióndivina y el que el ingenio humano (como intentando inclu-so cosas más elevadas) pueda emular, por ello, la operaciónde la naturaleza (BRUNO, 1987, p.313).

Através das imagens, os talismãs, que se imprimem na mente(empresas) estabelece-se a união do entendimento com os poderes

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cósmicos; os signos, não sendo os signos vivos da natureza, na lin-guagem hieroglífica sagrada, que será fabricada por Bruno, apare-cem em toda sua dimensão, como epifanias da Mens, como o univer-so de Deus. O termo “idéia” alude às idéias platônicas – matrizessubstanciais e essenciais – do mundo; entretanto, aqui, adquirem outraacepção, a hermética. Convém observar que os termos empregadospor Bruno: invenção, disposição (ou composição) e memória refe-rem-se às três partes da antiga Retórica. Porém, o livro não estádedicado, evidentemente, à Retórica clássica.

A proposta de Bruno é a organização de uma língua mágica,para que se possa comunicar e entrar em comunhão com os seresdivinos. É a língua dos demônios e dos deuses, dos caracteres sagra-dos do Egito, como Bruno os concebia. Língua que, de acordo como seu desejo, reformará o entendimento do homem, organizando-secomo locus onde serão alojadas as invenções dos deuses.

Através de sua arte ou método, caminho e procedimen-to, prepara-se para a gnosis, o conhecimento intuitivo da Di-vindade resplandescente como luz e vida em tudo que existe. Oconhecimento só é possível dando-lhe corpo – espectral – ex-pondo-o à vista, para que deixe de ser oculto e ignorado. Traça-se o plano da mente, universo mágico que deve ser aventuradoe percorrido individualmente.

Sua teoria da memória artificial é uma teoria do Espelho:Espelho vivo, objeto visual, imagem visiva. Sujeito refletindo-se emeio luminoso se confundem na realidade da luz. Bruno é o grandeconstrutor do olho artificial e inventivo, porque é ele o locus dasinvenções e dos encontros. A memória de Bruno está fundamentadano olho, na luz, no espelho:

Como operación de la consideración presente hacemosver el universo (...) como un cierto espejo viviente, en elque está la imagen de las cosas naturales y la sombrade las divinas (idem, ibidem, .324).

O usuário da memória local de Bruno terá, forçosamente,que reformar sua mente e deverá converter-se em um olho vivente einventivo. E ao considerarmos as demais artes da memória anterio-res à bruniana, depreendemos que elas fizeram do mundo um fenô-meno visual, onde a visualidade era útil ou era o instrumento de quese valiam o retórico, o homem ético ou o mago da Renascença. Em

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Bruno, o mundo passa a ser visivo. E é na prática da visão, na presen-ça da luz e suas gradações, que está sua magia extraordinária. Teatroda memória mágica, estendendo-se em espaços mentais, formaliza arepresentação da magia na poesia dramática.

Enquanto Nicolau Copérnico escrevia, entre 1507 e 1530, oDe revolutionibus orbium caelestium; enquanto o neoplatonismo seexpandia, difundido pela obra de Marsilio Ficino; e a arte da memó-ria alcançava enorme importância com o Teatro de Giulio Camillo;em 1522, em Manresa, Ignacio de Loyola começa a escrever os Exer-cícios Espirituais.

Esses exercícios ou meditações são exemplo de arte clássicada memória. Há a representação mental da composição de lugar,onde momentos mais importantes da história religiosa do homemsão situados, em linhas gerais: a queda dos anjos, pecado de Adão eEva, a meditação do inferno. Na segunda semana, el llamamientodel Rey temporal ayuda a contemplar la vida del Rey Eternal. O Reitemporal é Cristo. Seguem-se sua Encarnação, Anunciação e Nasci-mento. Na terceira semana: a última ceia, a Paixão; na quarta sema-na, a Ressurreição.

O objetivo dos Exercícios Espirituais é conscientizar o pra-ticante de seus pecados; e as imagens percussivas, características deoutras artes da memória, são substituídas por imagens intensamentedramáticas; enquanto no neoplatonismo, o que se quer memorizar éa história do saber humano, Loyola quer que haja a conscientizaçãodo pecado, que o homem se sinta responsabilizado e punido. Porisso, as imagens mentais atuam sobre os sentidos dramaticamente.Daí a concepção tomista, aristotélica, enfim, escolástica dos Exercí-cios Espirituais.

Como primeiro preâmbulo, na contemplação ou meditaçãovisível, la composición será ver con la vista de la imaginación ellugar corpóreo donde se halla la cosa que quiero contemplar. Esselugar pode ser um templo ou monte – aut manu, aut natura – ondese encontra Cristo ou a Virgem. Na meditação invisível sobre ospecados, la composición será ver con la vista imaginativa y consi-derar mi ánima ser encarcelada en este cuerpo corruptible y todo elcompósito en este valle como desterrado entre brutos animales; istoé, todo o composto de alma e corpo (LOYOLA, 1982, p.221).

Destacamos a composição de lugar: com a vista da ima-ginação, o praticante deve iniciar sua meditação a partir de um

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lugar habitual, templo ou monte, (espaço interno, religioso, e es-paço externo, natureza), por isso corpóreo. Ali devem estar figu-ras bastante representativas: o Cristo ou a Virgem. Essa medita-ção visível seria uma preparação para ver com a vista imaginati-va, isto é, criar imagens mentais caracterizadas, inicialmente, poração – ser encarcerada; daí se amplia a representação mental:desterrado entre brutos animais.

No segundo preâmbulo, deve-se pedir a Deus o que sequer e se deseja: gozo com Cristo gozoso, para a contemplaçãoda ressurreição. Penas, lágrimas, tormentos com Cristo se a con-templação é de paixão. Sentir vergonha e confusão de si mesmo.Observamos que o praticante, ao se situar nesse espaço mental,atua com todos os sentidos.

Como arte da memória, o primeiro pecado dos anjos ocupao seu espaço, através da vista imaginativa. O pecado ao ser colocadona memória deve ser entendido para que o praticante mais se enver-gonhe e se confunda.

O pecado de Adão e Eva situa a criação de Eva, o paraíso, opecado, a expulsão.

No segundo exercício todos os pecados da vida devem serrelembrados, considerando, primeiro, o lugar e a casa; em seguida, aconversa com outras pessoas; e finalmente, o que fazia.

Há uma alternância entre compor lugares mentais erememorar a si mesmo ou a sua existência. Portanto, a composiçãode lugares e imagens na mente – memória artificial – tem como obje-tivo rememorar a própria existência, como exame de consciência,utilizando-se de aspectos da história religiosa do homem e não utilizá-la como arquivo dessa mesma história.

Em cada semana, uma etapa do Exercício, o praticante devedeixar passar pelos cinco sentidos, e intensamente, o que construiumentalmente:

....ver con la vista de la imaginación los grandes fuegos,y las ánimas como en cuerpos ígneos....oír con las orejas, llantos, alaridos, voces, blasfemiascontra Christo nuestro Señor y contra todos los santos....oler con el olfato humo, piedra azufre, sentina y cosaspudridas....gustar con el gusto cosas amargas, así como lágri-mas, tristeza y el verme de la conciencia.

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...tocar con el tacto, es a saber, cómo los fuegos tocan yabrasan las ánimas (LOYOLA, 1982, .221).

Os Exercícios Espirituais são, portanto, uma modalidadeda arte clássica da memória, com uma intensa influência tomista,aristotélica. O que é mais surpreendente: em pleno neoplatonismo,encontra-se essa manifestação extremamente significativa daescolástica, cuja tradição é mantida nos conventos dominicanos,em Nápoles.

É, portanto, na influência dos Exercícios Espirituais, for-malizando espaços mentais no teatro da memória, imagens visivasrepresentadas na teatralidade da poesia dramática e da pintura,que se expressa o maravilhoso cristão no século XVII.

Desse modo, depreendemos duas correntes filosóficas narepresentação do maravilhoso no século XVII, formalizando acoexistência do maravilhoso cristão e do maravilhoso pagão: arenascentista neoplatônica, iniciada com as traduções de MarsilioFicino, e tem o Corpus hermeticum como expressão da priscamagia, evoluindo na prisca theologia; tendo como nomes signifi-cativos Pico della Mirandola, Giulio Camillo, Cornelio Agripa eGiordano Bruno, entre outros; e a corrente escolástica com Ignáciode Loyola, exercendo influência marcante em quase todo o sécu-lo XVI – os Exercícios Espirituais foram escritos em 1522 – e seestendendo por todo o século XVII.

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A expressão do maravilhoso no teatro calderoniano implicana confluência de elementos diversificados que devem ser apreendi-dos do próprio texto dramático do autor.

Inicialmente, partindo do pressuposto que o texto dramáticopoético não é apenas texto literário; que como expressão dramática épreciso inferir dele a voz do autor, sujeito da enunciação dasdidascálias, onde estão em mais ou menos especificidade a direçãovirtual do próprio autor e a sua vontade para a realização concreta daobra enquanto espetáculo; considerando que o autor pode se valerdos diálogos dos personagens para também fazer ouvir a sua voz,indicando outros elementos para a encenação, concretiza-se, então,esse fator específico – a encenação – na cenografia verbal.

Além das didascálias, o texto dramático se caracteriza pelosdiálogos dos personagens. Didascálias e diálogos formalizam o textodramático e o diferenciam dos demais textos poéticos. E na conflu-ência de diálogos e didascálias, verificando-se nitidamente o que é dotexto poético propriamente dito e o que é da representação teatral,enquanto didascália – enunciado textual – podemos apreender o tex-to teatral como leitor/espectador.

Abordagem necessária, distinção nem sempre considerada,o jogo diálogos/didascálias permite um percurso para a apreensãodos diversos fios que compõem a tessitura dramática, cabendo aoleitor/espectador desvelar e revelar os condutores da expressão deuma época, de uma sociedade, confluência de pensamentos do tem-po de então, quantas vezes resultante de tempos de outrora.

Assim sendo, considerando o exposto acima, a cenografiado maravilhoso no teatro de Calderón de la Barca é a expressão de

IIA Cenografia e o Maravilhoso noTeatro de Calderón de la Barca

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uma vertente cristã, uma vertente escolástica, medieval, arte e teatroda memória exemplificados nos Exercícios Espirituais de Ignacio deLoyola, como filosofia cristã; e uma vertente renascentista, repre-sentando o homem audacioso, manipulando a natureza, expressan-do-se no maravilhoso pagão. Tudo isto adequado a uma época edecorrente dela, quando o teatro é a expressão maior de Arte, por-que confluem nele as outras Artes: a pintura fingindo espaços emperspectiva, alonga o olhar do espectador; a relação entre poesia epintura – ut pictura poesis – está bastante evidente na obracalderoniana, onde é freqüente – nas didascálias – a observaçãopara que a cenografia seja considerada como se pintan; da réplicados personagens inferimos uma linguagem pictórica e plástica, le-vando o leitor/espectador ao reconhecimento de temas constantesentre os pintores da época. A música envolve personagens e espec-tadores, encantando como partícipe especular da ação; a dança,seguindo a música, é expressão barroca de uma sociedade, comoas demais Artes. O auto La Serpiente de Metal, de 1676, ilustramuito bem a teatralidade da representação:

(Representa MOISÉS, y repiten cantando y bailando todos.)MOIS.– ¡Gócese el pueblo de Dios...MÚSICA. – TODOS.– ¡“Gócese el pueblo de Dios...”MOIS.– En la salida de Egipto......MÚS.– “En la salida de Egipto...”

(MOISÉS y todos a un tiempo prosiguen.)

TODOS.– (Bailan) “Libre del bárbaro de quien estuvo cautivo! [pueblo,..................................................................MARÍA.- Dame el adufe tú, Simplicio.SIMP.- ¿Qué es adufe?MARÍA.- Ese instrumento que aunque no es dulce al oído, por lo menos acompaña la voz y es el que aprendimos de los gitanos, tal vez que intentamos divertirnos en su servidumbre.SIMP. – ...... Di el pandero que no es nombre tan indigno, que muchos que le oyen no

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le tengan por apellido. .............................................................. Toma, pues. (Dale el pandero.) ............................................................MARÍA.– Pues decid todos conmigo... (Canta.) “Celebremos honra y gloria del Señor, cuyo divino poder, fortaleza es nuestra salud, amparo y auxilio.”(Vueltas cada uno con la suya)MÚS.- “Y denle las gracias” ................................................. (Tres Cruzados.)MÚS.-“Y denle las gracias”, etc.MARÍA .-(Canta) Celebremos honra y

[gloria.....................................................(Vuelta hombres y mujeres en redondo)..................................................... (p.1530, 2)

Encontro de todas as Artes, expressão da teatralidade bar-roca em mirabilia, podemos afirmar que Calderón de la Barca

en su esfuerzo por asegurarse de que el público no dejaríade captar su intención, y dado que le faltaba la usualsalvaguardia de la verosimilitud, recurre nuestro autor nosólo al constante uso de paréntesis explicativos y apartes,sino también a varios recursos técnicos, tanto en la maneraen que agrupa y hace moverse a los personajes como en eluso que hace de la escenografía. El único aspecto de larepresentación de los autos que se hallaba fuera de susmanos era la música. (Parker, 1983, p.88)

Além dessa manifestação artística de teatralidade,Calderón de la Barca dispunha de recursos materiais para efei-tos espetaculares: pescantes, tramoyas, bofetones, bastidores,escotillones, apariencias, palenques, bambalinas, sacabuches,devanadera. Toda a maquinária era posta a serviço da encena-ção para efeito do maravilhoso.

Ao depreender a expressão do maravilhoso no teatrocalderoniano, observamos, primeiramente, um desdobramento es-pacial: o teatro se realiza dentro do teatro, a representação dentro da

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representação. Desse modo, o sonhado se representa para aqueleque sonha, estando quem sonha atuando, às vezes, no sonho, delimi-tando espaços, delimitando fronteiras; dinâmica simples e óbvia, masque na representação teatral adquire extrema importância pelos efei-tos e implicações cênicas. Nas visões, a imagem visiva se representaem teatralidade, determinando, também, uma nova relação espacial:estabelece-se um espaço superior para as visões de entes divinos.Também nas visões, em suas diferentes especificidades – visão à dis-tância, visão no espelho mágico – há a representação de outros espa-ços no espaço cênico de grande efeito teatral, estendendo, portanto,o efeito espetacular da teatralidade.

Entretanto, não devemos considerar apenas a relação espa-cial na representação de sonhos, visões e aparições como mirabilia.Essa teatralidade tem implicações mais profundas e está inserida emum contexto histórico, social, filosófico-religioso e político que nãopodemos ignorar. Desse modo, o maravilhoso na dramaturgiacalderoniana leva à apreensão de outros fios ou vertentes, além daexpressão de teatralidade, de teatro dentro do teatro.

Destacamos um fio condutor contra-reformista. Sob o pon-to de vista católico, é preciso afirmar os valores da religião, buscan-do na tradição da Igreja nomes, cujas vidas exemplares ilustram a Fé,dignificam o homem frente aos reformistas. Ou então nomes contrá-rios ao cristianismo, cuja conversão à fé católica, representada emsonhos proféticos especulares, em visões, testemunham o poder di-vino: o sonho profético de Constantino (auto sacramental La leprade Constantino), o da rainha Cristina da Suécia (auto sacramental Laprotestación de la fe); o sonho especular de Mawlay Muhammed,converso Baltasar de Loyola, no século XVII, (El gran príncipe deFez) exemplificando o poder da fé cristã e, evidentemente, a atuaçãoda Igreja junto aos mouros; a visão de São Patrício, visão através doespelho trazido por um anjo (El purgatorio de San Patricio); SãoPatrício, Padroeiro da Irlanda, deve atender ao clamor do povo, afim de livrá-lo do jugo pagão. A visão e aparição à distância por atode magia (La exaltación de la cruz); a visão e aparição no espelhomágico (El Conde Lucanor) ou a visão e aparição do futuro, permi-tida por ato mágico (En esta vida todos es verdad y todo mentira). Ea visão e aparição do passado, quando a origem mítica dos incas éconhecida em La aurora en Copacabana.

Na vertente filosófico-religiosa através do pensamento

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escolástico (medieval), de extrema importância na representaçãodos mirabilia:

Los ‘conceptos imaginados’ que proveen el tema de losautos provienen de las Escrituras, de los escritos de losPadres de la Iglesia y de la Teología católica, dogmática,moral, tal como fue sistematizada por los escolásticos(PARKER, 1983, p.36).

Mas os conceptos imaginados não estão presentes apenasnos autos sacramentais; eles se materializam em arte da memória,fundamentados em Tomás de Aquino; arte clássica da memóriaretomada e exemplificada nos Exercícios Espirituais de Ignacio deLoyola. O locus ou composição de lugar define o espaço mental,teatro da memória, onde o Pensamento e a Imaginação atuam en-tre o sensível e o inteligível, permitindo a extensão dos loci men-tais; o espírito transcende o sensível, alcança o inteligível, e se rea-liza em visões celestiais.

Na expressão contra-reformista e filosófico-religiosa delinei-am-se o histórico e o social: as lutas religiosas, a partir da segundametade do século XVI, determinando o enfrentamento da Igreja ca-tólica com a cisão luterana, definem o papel da Espanha. País essen-cialmente católico, atuante no Concílio de Trento, berço de místicose santos; pátria de Ignacio de Loyola, fundador da Companhia deJesus; local de canonização de vários santos; tudo isso específica omomento histórico da Espanha e leva à compreensão da própria obrade Calderón de la Barca. Educado em colégio Jesuíta, aos cinqüentaanos ingressa na vida religiosa. Também é destaque a importânciados colégios da Companhia na formação de religiosos e na constitui-ção de um público presente aos seus programas teatrais: presença deuma sociedade em sintonia com a religião e a Fé católica.

Entretanto, a par dessas vertentes contra-reformista e filosó-fico-religiosa, na Espanha do século XVII, podemos assinalar a ver-tente renascentista, no teatro calderoniano. Além dos místicos oudos mártires, delineiam-se personagens em diferença: magos, cujosaber não é permitido ao vulgo, homens sábios, capazes de operar emanipular a natureza; conhecedores dos astros e habilitados paracaptar suas influências e bastante audaciosos para mudar os seusdesígnios. O homem do Renascimento, questionando o universo,alcançando as mais altas esferas, partindo do elementar ou terrestre,

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ascende ao celestial e transcende ao supercelestial. Está conscientedo seu poder pelo conhecimento e pela sabedoria. O magorenascentista é um sábio. Diante dessa verificação, destacam-se Irifela,Falerina, Anastasio e Lisipo, magos atuantes no teatro de Calderónde la Barca. Eles operam e manipulam os elementos da natureza,possibilitando a visão e aparição à distância, a visão e aparição dofuturo, e a visão e aparição no espelho mágico, metáfora visiva daNatureza, como se verá.

Tudo isto vai determinar e especificar a cenografia do mara-vilhoso no teatro de Calderón de la Barca.

1. No cenário

Ao considerar o cenário, como expressão do maravilhoso,nas obras que serão analisadas, é preciso anotar a presença de enge-nheiros italianos, cenógrafos, na Corte espanhola.

Em 1622, chega à Corte o capitão Julio César Fontana,ingeniero mayor y superintendente de las fortificaciones del Reynode Nápoles (ARRÓNIZ, 1977, p.198). Para comemorar o aniversá-rio de Felipe IV, Fontana se responsabilizou pelos cenários da obrado conde de Villamediana Las glórias de Niquea, em Aranjuez. Asnotícias que se têm sobre esse acontecimento deixam ver e imaginara grandeza e o inusitado do espetáculo:

En Aranjuez, donde se celebraron las fiestas de cumpleaños,el capitán Fontana levantó un teatro portátil de madera ylienzo de 115 pies de largo por 78 de ancho (32,20 por21,84 metros) pequeño en verdad para el nombre de“Coliseo” como le llamó el conde de Villamediana, peromuy bien terminado en todos sus detalles, al grado tal queFontana tuvo un mes de retraso para el estreno. Muy algusto del Renacimiento, se levantaban unos arcos a cadalado de la sala, “con pilastras, cornijas y chapiteles deorden dórico”. Arriba de ellos y detrás de unos balaustrespintados de oro, plata y azul, se erguían sesenta blandonescon hachas blancas. Unos diez pies más arriba, de “unostérminos de relieve” se sujetaba el toldo que cubría todala sala. El tablado se hallaba limitado a los lados por dosgigantes, las estatuas de Mercurio y Marte, repetidos, segúnparece, en la fachada del teatro, y al fondo, como en loscorrales de Madrid, dos puertas que daban indudablementeal vestuario. Todo el tablado se encontraba ocupado por

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una máquina, quizá invención del mismo Fontana. Era unamáquina gigantesca cubierta, que simulaba una montaña,con una vereda montante por la que se llegaba a la cima.Allí se encontraba un nicho, también construído de ordendórico, “poblado de muchas fieras”. La montaña se abríay se cerraba “y con ser máquina tan grande, la movía unsolo hombre con mucha facilidad. Al abrirse, dentro deella se ocultaban muchas sorpresas que fueronmanifestándose en el curso de la representación(ARRÓNIZ, 1977, p.199).

Mas é a presença de Cosme Lotti, na Corte, a partir de junhode 1626, que vai afirmar a especificidade da obra teatral como espe-táculo: He was sent specially to Spain en June 1626, where in additionto designing stage scenery, he was responsible for the layout of theroyal gardens and fountains (SHERGOLD, 1967, p.276).

Tal é a inusitada criatividade de Lotti no uso de máquinaspara efeitos cênicos que ele é considerado un hechicero e Lope deVega compares him to Hero of Alexandria in his skill in constructingmechanical figures (idem, ibidem, p.276).

Diferentemente dos teatros comerciais, los corrales – cujasapresentações eram realizadas durante o dia, aproveitando a luz so-lar, as do palácio eram em ambiente coberto, permitindo o uso de luzartificial e caracteristicamente teatral para alcançar grandes efeitosvisuais; a decoração em perspectiva por medio de bastidoresescalonados sobre el escenario (ARRÓNIZ, 1977, p.212). era ou-tro fator de inovação. Desse modo, atribuía-se novo sentido à repre-sentação teatral, pois a cenografia permitia o uso de elementos darealidade como castelos, cidades, paisagens com selvas, montes, gru-tas, tudo visto sob os efeitos da luz artificial e da perspectiva. Comona pintura, a cena será como um quadro, com diferentes planos parao espectador, envolvendo e encantando. A importância desses dife-rentes planos, decorrentes da perspectiva, faz-se presente na ceno-grafia verbal, quando o personagem descreve o que vê à distância e aproximidade em que se realiza, pois la escena no es ya arquitectónica,sino pictórica, tridimensional y, sobre todo, perspectiva (AMADEIDE PULICE, 1981, p.163):

Yo lo sé, porque en el maruna mañana vi (...)que a largo trecho del agua

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venía una gruesa tropade naves; si bien entoncesno pudo la vista absortadeterminar a decirsi eran naos o si eran rocas;porque como en los maticessutiles pinceles logranunos visos, unos lejos,que en perspectiva dudosaparecen montes tal vez,y tal ciudades famosas,porque la distancia siempremonstruos imposibles forma;así, en países azuleshicieron luces y sombras,confundiendo mar y cielo,con las nubes y las ondasmil engaños a la vista;

pues ella entonces, curiosa,solo percibió los bultosy no distinguió las formas”.

(El príncipe constante, O. C., v.1, p.251)

A vida teatral na Corte espanhola é intensa. Destacam-secomo espaços para espetáculos: o Salão de Comédias do velhoAlcázar; há a apresentação de “particulares” no quarto da rainha; oteatro portátil de Lotti; e em fevereiro de 1640, dá-se a estréia doColiseo do Retiro: teatro comercial, um corral:

Lo fundamental del dibujo de los corrales está allí; el patioplano y alargado en profundidad; los aposentos a los la-dos colocados verticalmente unos sobre los otros (comolas celosías de El Príncipe o de La Cruz) enfrente “laCazuela” y arriba, en sustitución de la “Sala de Madrid”de los corrales, el balcón semicircular de los Reyes(ARRÓNIZ, 1977, p.215).

Shergold acrescenta mais detalhadamente a particularidadee importância do Coliseo para os espetáculos teatrais, em Madri:

It is also important that the Coliseo was not only a palacetheatre, but a corral as well, with people payind foradmission, and that most of the big court plays were latergiven as commercial entertainment to the people, achieving

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huge popularity, and, for the seventeenth century, very longruns (SHERGOLD, 1967, p.329).

O Coliseo é um teatro público, arrendado como os corralese o que é de grande importância: as obras que não podiam ser apre-sentadas nos corrales, pela impossibilidade de realizações em pers-pectiva, eram vistas no Coliseo por um público pagante e não apenaspelo Rei e os mais próximos a ele. O fato do Coliseo ser um corralapresenta implicações de extrema significação: um público maior podiaestar presente aos espetáculos teatrais, demonstrando o gosto e di-vertimento da época. As realizações de Cosme Lotti marcam o tea-tro de Calderón de la Barca. Entretanto, é preciso ressaltar que odramaturgo impunha a sua voz na direção cênica. Para a noite de SãoJoão de 1635, estava planejada a representação de El mayor encantoamor. A idéia original havia sido de Lotti, enviada ao dramaturgopara que escrevesse os diálogos. Não se deixando influenciar, Calderónresponde: Aunque esta trazada con mucho ynjenio, la traza de ellano es representable por mirar mas a la ynbencion de las tramoyasque al gusto de la representacion (SHERGOLD, 1967, p.280).

Outro cenógrafo italiano é responsável pelas obrascalderonianas: Baccio del Bianco. Uma de suas grandes realizaçõesé a encenação de La Fiera, el Rayo y la Piedra, em 1652. Pois larepresentación se hizo en palacio y constituyó un acontecimiento enla historia de la escenografía. Dela se conservam os desenhos devárias cenas. Assinalamos que Ángel Valbuena Prat publicou as lâmi-nas em ‘La escenografia de una comedia de Calderón’ em Archivoespañol de arte y arqueología, num. XVI-1, s/d.

Ressaltar a presença desses cenógrafos trabalhando com odramaturgo é de fundamental importância para que se possa ler o seutexto dramático, depreendendo as relações espaciais estabelecidaspelos diferentes signos, pelos personagens no decorrer da ação; e,principalmente, naquelas situações representativas dos mirabilia,como sonhos, visões e aparições. Podemos, então afirmar que

de la época de Fontana a la de Lotti y a la de Baccio delBianco notamos una progresiva sofisticación en el manejode máquinas y tramoyas. Lo que equivaldría a ver un volcánpintado en los bastidores en las representaciones de laprimera época, a uno que simula echar fuego y humo en laescenografía de Lotti, a un verdadero escupir lava y fuego

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acompañado de un terremoto con el cual se sacudía todala escena, en la escenografía de Baccio (AMADEI DEPULICE, 1987, p.155).

Além desses cenógrafos italianos,

(...) también es conocido cómo, a la muerte de Bianco seocuparon de los escenarios del Buen Retiro y de Palaciolos pintores españoles que supieron recoger la lección delos maestros. En los primeros años (1658) llegan a MadridAgostino Mitelli y Micael Ángelo Colonna, pintores defingidas arquitecturas que transformaron los sobriosámbitos conventuales y palaciegos de la tradicióndesornamentada, aún viva en España, en deslumbrantes yteatrales juegos de espacios fingidos, perspectivas fugadasy bóvedas abiertas a luminosos cielos poblados de geniosingrávidos. La tradición de Lotti y Bianco, y las formas deingenioso “trompe l’oeil “ de Mitelli y Colonna se fundieronsin duda en las escenografías teatrales de Francisco Rizi(+1685) que, según cuenta Palomino “tuvo muchos años asu cargo la dirección de los teatros de mutaciones de lascomedias que se hacían entonces con gran frecuencia enel Retiro a sus Majestades; en cuyo tiempo sirvió mucho ehizo grandes trazas de mutaciones, porque era grandísimoarquitecto y perspectivo”(...) un nuevo nombre se perfilacomo el más importante entre los decoradores e ingenierosde la obra calderoniana: el valenciano José Caudí que, en1680 realizará las tramoyas del “Hado y Divisa de Leonidoy Marfisa, la última comedia del gran dramaturgo (PÉREZSÁNCHEZ, 1981, p.266).

Convém acrescentar a importância dos autos sacramentais,com carros e tablados, cenário específico, quando, também, a enge-nhosa arte de Calderón de la Barca o assinala como grande drama-turgo religioso do século XVII espanhol.

Desse modo, efetiva-se uma análise do corpus delimitadoem obras que apresentam exemplos significativos de sonhos, visõese aparições, considerando o cenário em sua expressão virtual no jogotexto/representação. O conceito de “situação” de Steen Jansen

la situation que sera définie comme le résultat d’une divisiondu plan textuel en parties qui correspondent à des groupesachevés du plan scénique. Cela veut dire que dans l’analyse

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du texte concret nous instaurerons la limite entre deuxsituations lá oú un personnage entre ou sort bien encore láoù il y a un échangement de lieu dans le décor (1968,p.77)

de ordem operacional, permite examinar a relação entre situaçõesanteriores e posteriores àquela que expressa o maravilhoso propri-amente dito, uma vez que a situação básica, objeto de análise, nãopode ser considerada isoladamente. Diante do que se vem obser-vando, em cada situação, o cenário é percebido em suas relaçõesespaciais, a presença/ausência de signos caracterizadores dessaexpressão dos mirabilia, a relação entre os personagens. Atravésdessa análise, será depreendida a representação do teatro da me-mória, arte da memória e magia depreendidas das situações mara-vilhosas do teatro calderoniano.

2. Os sonhos, as visões, as aparições

Apesar da extensa obra de Calderón de la Barca, autos sa-cramentais, comédias, dramas e obras curtas - entremeses, (dofr.entremets) observamos que o sentido no texto é: pieza dramáticajocosa y de un sólo acto. Solía representarse entre una y otra jorna-da de la comedia, y primitivamente alguna vez en medio de la jor-nada. Como obra dramática era uma espécie de máscara o mojiganga;jácara(s): romance alegre en que por lo regular se cuentan hechosde la vida airada. 2. Cierta música para cantar o bailar. 3. Especiede danza, formada al tañido o son propio de la jácara; mojigangas(Como bojiganga) obrilla dramática muy breve, para hacer reir, enque se introducen figuras ridículas o extravagantes - é possível de-limitar um corpus básico, não muito extenso, como expressão domaravilhoso, em metáforas visivas de sonhos, visões e aparições.

A consideração etimológica do maravilhoso como mirabilia,prodígios, coisas admiráveis, como já observamos, é de interesseoperacional, pois permite a apreensão de metáforas visivas, ligadas àraiz mir (miror, mirari), como também aquelas relacionadas aspeculum, specchio – espelho. Desse modo um sujeito admira coisasprodigiosas, portentosas, ou diante do espelho, metáfora visiva, “mira”coisas admiráveis; enfim, um sujeito diante de coisas extra ordinem.

Portanto, depreendemos como expressão do maravilhosono teatro calderoniano sonhos, visões e aparições. Metáforas visivas

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representadas em situações teatrais que permitem classificá-las maisdetalhadamente como: sonho profético, sonhos paralelos, sonhoespecular, sonho como conhecimento do passado; visão subjetiva,visão e aparição através do espelho, visão e aparição à distância,visão e aparição do futuro, visão e aparição do passado, conside-rando-se o subjetivo, individual e coletivo da metáfora visiva, comofoi já apresentado.

2.1 O sonho profético

Esse exemplo de maravilhoso é bastante freqüente na obrade Calderón. Está marcadamente presente na tradição bíblica, reto-mada pelo dramaturgo em sua obra.

La protestación de la fe é o auto sacramental que exemplificao sonho profético. É obra de 1656 e se refere à conversão da rainhaCristina Adolfo, da Suécia, ao catolicismo. Seria oportuno assinalara conveniência do tema – atual na época – e de significação histórica,ideológica e doutrinal, justificativa para sua escolha. A oportunidadedo tema justificou outra obra de Calderón de la Barca, tendo comoprotagonista a rainha sueca: Afectos de odio y amor, representadaem 5 de março de 1658.

O auto é antecedido pela Loa La fábrica del navio. O obje-tivo dessa apresentação é explicar, através das alegorias – IGLESIA,GRACIA, FE, PENITENCIA, ESPERANZA, CONTRICIÓN,AUXILIO, ENTENDIMIENTO, PENSAMIENTO, DESEO, CUI-DADO, – o sentido do auto.

No auto, situação 1, a música e a HERESÍA se alternam emcanto e réplica; o canto, acompanhado pela SABIDURÍA, seguidoda entrada de outras alegorias – FE, ORACIÓN, RELIGIÓN,PENITENCIA – formaliza a situação 2; a saída da HERESÍA e odiálogo entre as demais alegorias, com menor interferência da Músi-ca define a situação 3. Essas três situações iniciais são interessantesporque preparam a entrada de CRISTINA, personagem principal,“real”, não alegórico e divide a obra em uma primeira parte alegóri-ca, seguida da situação 4, cujos personagens são CRISTINA e SOL-DADOS; as situações 5 e 6 são a representação do sonho; e todas assituações posteriores são preenchidas pelo personagem CRISTINAe alegorias. Há, portanto, diferenças importantes entre as situaçõesdecorrentes da atuação de personagens e de alegorias.

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A constância de determinadas alegorias nos autoscalderonianos como HIPOCRESÍA, FÉ, SABIDURÍA..., permitemafirmar que elas se transformaram em tipos, portanto, modelos exem-plares, uma vez que expressam e concretizam uma idéia moral deter-minada. Por isso, destacamos a dinâmica da representação desse auto,iniciado com alegorias em diferença com a situação 4 que evidenciao personagem, a rainha CRISTINA.

Compreendemos a presença de inúmeras alegorias nesseauto e em todos os demais de Calderón de la Barca pela necessida-de de se concretizar abstrações, para a compreensão de todos osespectadores, letrados e iletrados. Uma vez que os autos são ser-mões representados, havia no dramaturgo essa preocupação deformalizar o conceito abstrato em conceito prático. Em La segun-da esposa, lemos:

PAS.– Sermones puestos en verso, en idea representable, cuestiones de la Sacra Teología, que no alcanzan mis razones a explicar ni comprender, y el regocijo dispone en aplauso de este día. (p.427,2)

Por isso, os significados estão explicados no auto Laprotestación de la fe:

RELIG.– y puesto que iguales corren las dos paralelas líneas de las dos luces que hacen lo real y la alegoría. (p. 738,1)

HEREJ.– y más día, que ya vista de este Soberano Alcázar, la Alegoria y la Historia tan una de otra se enlazan, que en metáfora Cristina llega ya de convidada al prevenido banquete donde la Mesa la aguarda (p. 743,2)

O próprio texto calderoniano desvela esses conceitos repre-sentados. Diz a CASTIDADE, no auto Sueños hay que verdad son:

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Que los dos parezcamos lo que somos, esto es, como personas tratarnos alegóricas, y no reales, pues con eso es llano que no habiendo en los dos tiempo ni lugar, daremos paso a que la interpretación (como si acabara un acto y empezara otro) nos supla la síncopa de los años (p.1224,1)

Também em Sueños hay que verdad son, diz a CASTIDAD que

..., haya un medio visible, que en el corto caudal nuestro del concepto imaginado pase a práctico concepto. Hagamos representable a los teatros del tiempo, (p.1215,1)

E no auto El verdadero dios Pan, define-se a Alegoria:

PAN.– La alegoria no es más que un espejo que traslada lo que es con lo que no es; y está toda su elegancia en que salga parecida tanto la copia en la tabla que el que está mirando a una piense que está viendo a entrambas. Corre ahora la paridad entre lo vivo y la estampa: (p. 1242,2)

Desse modo, a alegoria estabelece uma relação entre o visível darepresentação e o invisível dos conceitos representados; estes ma-terializam as abstrações em conceitos práticos:

La alegoría es el vínculo existente entre dos diferentesplanos de “realidad”: por un lado la realidad visible dela escena, por el outro la realidad invisible de la categoríadel ser de la que la acción escenificada no es más que larepresentación o reflejo. En relación con la visión quetiene el público es ‘real’, pero en relación con la realidadque refleja es ‘irreal’ (PARKER, 1983, p.71).

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Não era possível deixar passar desapercebida a impor-tância da Alegoria nos autos calderonianos e, também, conside-rar as situações que precedem a análise da situação 5, represen-tação do sonho, teatro da memória, metáfora visiva, maravilho-so cristão. Portanto, seguindo-se às alegorias, a situação 4 seformaliza em diferença. Informa a didascália:

Tocan cajas y clarines, y salen Soldados, ydetrás CRISTINA, vestida de corto, armada; ycomo lo dicen los versos se va desarmando, recibiendo plumas, espadas y bengala en fuentes (p. 735,1).

Na relação leitor/espectador, os signos acústicos, sons decajas y clarines devem ser ouvidos logo após a saída das alegoriasRELIGIÓN, GRACIA, FE e SABIDURÍA, pelo espectador. E aentrada de SOLDADOS e de CRISTINA se realiza em seqüência eestá afirmada, na didascália pela conjunção “y” reiterada. Cabe aoleitor “ouvir” os sons das caixas marciais e dos clarins que precedeme/ou acompanham a entrada dos SOLDADOS. Os signos acústicossão de significativa importância, pois sons de caixas e clarins não sãogratuitos: preparam o espectador/leitor para receber um persona-gem de responsabilidades militares; aos signos acústicos seguem-seos SOLDADOS. Sons e SOLDADOS antecedem a entrada deCRISTINA, último personagem a entrar em cena. A ordem de en-trada estabelece a hierarquia, y detrás CRISTINA, vestida de corto,armada. O traje caracteriza o personagem: traje curto, militar túnicade Marte, como informa a réplica e não o traje longo de dama dacorte. A presença de um signo determina a ausência virtual de outro;estabelece-se, dessa forma, a relação traje curto/traje longo. Armadadetermina os signos acessórios definidores, enfim, do personagem.Mas é na réplica de CRISTINA que se conclui a caracterização dopersonagem: ya que llegué a escarmentar/ a quien negarme presu-ma/obediencia,/ ... el arnés me quitad (p.735,1). A réplica esclarecea autoridade e explica o traje. O personagem está armado de arnés –conjunto de armas defensivas que se vestiam e se acomodavam juntoao corpo -, de bengala y espada. Signos que se tornam símbolos doexercício militar efetivo – el arnés – de autoridade legítima e doestado militar, respectivamente. Como também no menos el poder/

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esriba en la singluar/ toga que en la militar/ túnica de Marte. Opo-sição letras/armas. É, portanto, na réplica do personagem que seexplica o que é exíguo na didascália. Observamos, ali, outra ausên-cia, presença no diálogo:

VOZ.– ¡Viva la invicta Cristina, viva nuestra heroica reina! (p.735,2)

Essa voz de aclamação não está enunciada na didascália, istoé, para a representação.

Assinalamos que não há nenhuma referência espacial; pois,terminado o canto das Alegorias, elas se retiram e o espaço, na situ-ação 4, está inteiramente livre para o personagem CRISTINA. Elaestabelece o seu espaço, como personagem central e é a atenção detodos. Depreendemos, em seguida, um espaço virtual pela presençados signos da representação: (Llegan una mesa con libros, recadode escribir y una silla). Logo, o espaço é um “escritório”; e como setrata de uma rainha, inferimos que o espaço é, também, um palácio,não havendo, porém, nenhum signo caracterizador. Aqui, o persona-gem determina o espaço e domina a ação. CRISTINA, rainha daSuécia, mulher investida do poder, da ação militar e amante das le-tras, é convidada a sentar-se à Mesa para a ceia eucarística.

Antecedendo o sonho, segue-se a réplica de CRISTINA,sua meditação sobre a predestinação em Santo Agostinho; e medita,também, sobre si mesma e se pergunta:

¿cómo ha de tomar de mísatisfacción de que erré,si de mi parte guardélos ritos en que nací? (p. 736,1)

Evidencia-se a ideologia do texto, no auto-questionamento dopersonagem e, mais ainda, pela leitura de Santo Agostinho. Es-sas duas circunstâncias – questionamento de sua religião e otexto de Santo Agostinho – indicam e preparam para o sonho e,consequentemente, para a conversão:

¿qué serásentir un auxílio cuandoDios le envía? ¡Oh, si yo fuera

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tan feliz que mereciera, (Durmiendo y despertando.)mi discurso iluminando,ver algún rasgo, mostrandocómo instruye y cómo advierte!Pero ¿qué letargo fuerteme da, cuando ver querríade qué suerte Dios envíaun auxilio?

(Se duerme.) (p.736,2)E CRISTINA sonha porque

...para especulaciónde los más altos misteriosse han de valer los humanosde parábolas o ejemplosque a su modo los expliquen. (Pastor Fido, V.II,

p.1589,1)

A situação 6 é o sonho, métafora visiva, expressão domaravilhoso cristão:

Ábre-se la nube, y se ve en ella un ETÍOPEvestido de indio, ricamente aderezadosentado en una peña, leyendo un libro.

A temática de personagens que lêem um texto buscandoa compreensão de questões religiosas é reiterada na dramaturgiacalderoniana. Assim, em El mágico prodigioso, Cipriano questi-ona un texto de Plinio sobre a definição de Deus – em V. I, p.609,2 –; Crisanto, em Los dos amantes del cielo, indaga sobre ‘Enel principio era el verbo...’João, 1.1; Em El gran príncipe de Fez,Mawlay Muhammad lê o cap.III, 35 do Corão, sobre Maria e Cris-to, isentos do pecado original.

Retomando a didascália da situação 6, referida acima, assi-nalamos a diferença da situação anterior; aqui o espaço onírico estádefinido: Ábrese la nube. O signo nuvem é muito constante naexpressão de espaços no teatro de Calderón de la Barca, sendouma característica da arte barroca para a situação de personagensde sonhos e personagens celestiais, especificando uma relaçãoentre exterior/interior, matéria/mental, baixo/alto, terreno/celestial,

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pois comme signe il sert à désignation d’un espace, ou d’unesituation, d’une relation spatiale (DAMISH, 1972, p.31).

A nuvem está sempre associada a movimento, por isso inici-ando a situação Ábrese la nube, para deixar ver o personagem bemcaracterizado: um ETÍOPE vestido de indio ricamente aderezado.Uma nova relação espacial se estabelece, pois o personagem estásentado en una peña – um lugar e, também, especifica seuposicionamento nesse espaço: em atitude de quem está leyendo unlibro. Como CRISTINA, no plano “real” – não onírico –, primeiroplano, o ETÍOPE também medita sobre um texto. Desse modo, oespaço onírico é a extensão e o reflexo do espaço em primeiro plano,“real”. Na representação, a rainha tem diante de si um quadro e parao leitor/espectador CRISTINA faz parte, também, desse quadro.Representação cristã, cuja tradição é trazida à cena, como exemplo,como extra ordinem.

E no sonho, as figuras, aparentes fantasías são percussivas,atuantes; o ETÍOPE reflete o questionamento de CRISTINA diantede um texto e a tradição evangélica dos Atos dos Apóstolos (8:26-40) é retomada. Para o espectador da época, um ETÍOPE vestido deindio ricamente aderezado deveria remeter imediatamente para otexto em questão. E ao abrir-se a nuvem, o quadro do sonho deCRISTINA, rainha da Suécia, com a figura do ETÍOPE, seria logoidentificado, porque a voz do autor na didascália remete aos Atos:

27. e eis que umhomem etíope, eunuco, mordomo morde Candace, rainha dos etíopes, oqual era superintendente de todosos seus tesouros e tinha ido aJerusalém para adoração.28.Regressava, e, assentado nocarro, lia o profeta Isaías..

Desse modo, a caracterização do ETÍOPE, sucinta na didascália,completa-se com o texto dos Atos que o espectador do séculoXVII já trazia como saber doutrinal. A relação leitor/texto sagradoé semelhante nos dois planos: no primeiro plano “real” deCRISTINA e no segundo, onírico, do ETÍOPE. Ela deseja veralgún rasgo, mostrando/cómo instruye y cómo advierte! Ele sepergunta esto que leo,/ ¿quién me lo explicará?

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Observamos que a réplica de CRISTINA não está dirigidaao ETÍOPE, ela fala para si mesma, como em aparte:

CRIST.– (En sueños.) Aparentes fantasías,

¿Un etíope leyendo me enseñáis? No, no os entiendo. (p. 736,2)

Como o ETÍOPE não entende o texto de Isaías, CRISTINAnão entende o que vê em sonhos; e ela não entende porque não écatólica, como o ETÍOPE não é cristão; porém, para o espectadordo auto, o mordomo-mor de Candace oferece a transparência designificação. Em cena, como ícone, transforma-se em símbolo doconverso, identificado, na didascália, com simples signos: a naciona-lidade, o traje. Portanto, a intertextualidade explica a transparênciada representação para o espectador católico de outrora e esclarece apolissemia dos signos.

Na situação 6, a entrada em cena, espaço onírico, de outropersonagem, evidencia a representação dentro da representação, oteatro dentro do teatro

Sale por detrás SAN FELIPE, vestido de apóstol. (p.736,2)

A seqüência entre as duas situações se estabelece pela per-gunta do ETÍOPE e a resposta do Santo; a caracterização do per-sonagem é também sucinta; para o espectador de então, a repre-sentação do ETÍOPE lendo já estaria associada aos Atos e,consequentemente, ao apóstolo SAN FELIPE. O diálogo entre oSanto e o ETÍOPE é de caráter doutrinal, exemplificador, portan-to, didático: sermão representado. CRISTINA é espectadora e suapergunta é, também aqui, como um aparte:

¿Maestro a quien estudia envíasgran Dios? (p.736,1)

A última réplica do apóstolo é também dirigida a CRISTINA:

S. FEL.- En aquella fuente en cuanto, pues no basta la del llanto,

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vayas a ella y yo te dé, más industriado en la Fe agua de Espíritu Santo.

(A CRISTINA.) Ven y tú la dicha espera, pues lees y discursos haces del Eunuco de Candaces. (Ciérrase la nube y despierta

CRISTINA.) (p. 737.1)

Assinalamos na réplica do apóstolo, um signo – fuente – ausente dadidascália inicial. Signo que faz parte do cenário verbal e, ao serenunciado pelo personagem, deixa apreender, também, o gesto:aquella fuente. Gesto que obedece a un sentido de representacióny no a la espontaneidad (DÍEZ BORQUE, 1975,p.67). No gestoindicativo e pela ausência na didascália inicial, não se pode afirmarse o signo fuente está materialmente representado em cena e todosos espectadores podem vê-lo; se apenas SAN FELIPE e o Eunucoo vêem; porém, considerando a importância do tema – o batismodo Eunuco, chamamento para o batismo de CRISTINA, logo, aconversão de ambos, ele ao cristianismo e ela ao catolicismo, po-demos afirmar a presença da fuente; e não apenas o signo, mas osigno do signo: a fonte “é” o batismo.

Evidencia-se a estreita relação e importância entre diálo-gos e didascálias, portanto entre texto e representação. Na réplicade SAN FELIPE há uma convocação, vem, à rainha e a enunciaçãoda profecia, tu dicha espera, isto é, o batismo – a conversão –como o ETÍOPE.

A situação 7 se define pela mudança do cenário:

(Ciérrase la nube y despiértase CRISTINA.)

A seguinte réplica de CRISTINA é de extrema importân-cia, pois descreve para o leitor/espectador a mudança da represen-tação, sem referência na didascália explícita, indicada acima:

CRIST.– Oye, aguarda, no ligera te desvanezca la esfera

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del aire o nube, que hermosa tanto, como misteriosa, vas desplegando a tu fin entre rasgos de carmín, hojas de jazmin y rosa. (p. 737,1)

Observamos a diferença entre a didascália mencionada acima e acenografia verbal, didascália implícita, icônica – condiciona laorganización material de la escena – enunciada pelo personagem(HERMENEGILDO, 1989, p.168). O espaço do sonho é delinea-do; então se pinta para o leitor, descreve-se para o espectador e atransparência e leveza do espaço onírico é definida: la esfera/ delaire o nube. A diferença acentuada entre as didascálias explícitas,sucintas – Ábrese la nube e ciérrase la nube – e a didascália implí-cita, descritiva, efetiva-se na réplica do personagem. Os aspectosicônico e dinâmico são consideráveis, pois, metaforicamente, apre-sentam cores, depreendem-se luzes pela distinção entre os signos:aire, nube, carmín, jazmín y rosa. O sonho termina.

No espaço onírico, CRISTINA é espectadora; e em novarelação espacial: alto/baixo, teatro dentro do teatro, destacam-se,em suas réplicas, as referências ao espaço do sonho: Aparentesfantasías e

...empeñocon que me dormí haya el sueñode los auxilios traídosombras a la fantasía,y que a esotras se anticipe. (p.737,1)

O sonho é fantasia, é imaginação e se compõe de sombras oufantasmas: Las imágenes del sueño son vistas como sombraspara que el hombre las piense, es decir, para que reproduzcasus imágenes y las haga suyas (FRUTOS, 1976, p.521). A ima-ginação ou fantasia como sentido interno, percepção imaginati-va, necessária no processo cognitivo, é fundamental na concep-ção do teatro calderoniano. O Pensamento se faz imagem e, deacordo com a filosofia escolástica, é impossível pensar sem ima-gens, sem criar fantasias. E é o próprio texto do dramaturgoque esclarece no auto No hay instante sin milagro:

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PENS.– No lo dudes, que siendo el Pensamiento a quien acudes, ¿quién quita al Pensamiento que finja fantasías en el viento? (p.1348,1)

Porém, antes do personagem cair em sono mais profundo, antes desonhar, na situação 5, anterior ao sonho, lemos a indicação do autor:(Durmiendo y despertando). Esse dormir e despertar assinala que aVontade, como uma das potências da alma, é a última a se entregarao sono. O Entendimento, como função cognitiva, é o primeiro:

Pero ¿qué letargo fuerteme da, cuando ver querríade qué suerte Dios envíaun auxilio? (Se duerme.) (p.736,2)

O personagem não pode continuar suas indagações. E a Memória,perdida ao dormir, restabelece-se no espaço onírico e é o própriopersonagem que justifica, na situação 7, por que sonhou:

.- Pues es claroque, habiendo yo antes leídoesto en los libros, no ha sidomucho, que en fe del empeñocon que me dormí haya el sueñode los auxilios traídosombras a la fantasía,y que a esotras se anticipe. (p.737,1)

Desse modo, o espaço onírico sendo mental, a representaçãodo sonho se dá em um espaço da Memória, teatro da memóriaque deve ser rememorado pela rainha da Suécia. Por isso SANFELIPE se dirige a ela:

Ven y tú la dicha espera,pues lees y discursos hacesdel Eunuco de Candaces. (ciérrase la nube y despierta.) (p.737,1)

É a filosofia de Tomás de Aquino que concilia Aristóteles com aIgreja, por isso a Memória será parte da Prudência, uma das

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quatro virtudes cardeais (PARKER, 1983, p.64-65).

2.2 Sonhos paralelos

Compreendemos como sonhos paralelos, o sonho de doispersonagens, em sincronia. O auto La devoción de la misa, talvezde 1637, é o exemplo para análise. Outro auto que ilustra essaparticularidade de sonho é Sueños hay que verdad son, de 1670:sonho do padeiro e do copeiro que José, no Egito, interpreta.

O tema é histórico e se refere às lutas da Reconquista entrecristãos e árabes e está registrado na Crônica Geral, do rei AfonsoX, como já informamos (VALBUENA PRAT,1967, p.245-246).Há personagens, alegorias e sombras. Considerando a necessidadede dividir o texto em situações, para efeito operacional, lemos, ini-ciando o texto:

Tocan dentro una caja, y sin salir nadie altablado, dicen, a un lado ALMANZOR y su gente y al otro el CONDE GARCI-FERNÁNDEZ, con música triste. (p.246,1)

O primeiro signo é acústico – tocan una caja, e nos indicia a singu-laridade da representação sonora: apenas uma caixa. A espacialidadesitua a ação: dentro e é reiterada em y sin salir nadie al tablado.Essas referências espaciais permitem opor dentro e fora do tabla-do, onde se colocavam os carros para a apresentação dos autos, nafesta sacramental barroca: procissão, danças diversificadas, gigan-tes e tarascas. Dentro se refere ao espaço interior dos carros aber-tos, onde se realizava parte da ação:

La construcción del escenario, con carros que podíanabirse y cerrarse independientemente, sin ocultar laescena de la vista, se prestaba perfectamente a este usosimbólico del decorado (PARKER,1983, p.89).

Embora haja dúvida quanto à data do auto aqui analisado,interessa observar que até 1645 eram apresentados quatro autos emMadrid e cada autor de comedias, isto é, as companhias de atores, seresponsabilizava por dois autos cada um. A partir de 1647 ou 1648 onúmero de autos apresentados foi reduzido a dois, e cada autor

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de comedias se encarregava de um (SHERGOLD e VAREY,1967, p.XIII).Não havendo memorias de apariencias para o auto em questão,podemos, entretanto, depreender a utilização dos carros. Asmemorias deixadas por Caderón de la Barca, a partir de 1659,permitem melhor visualização para o leitor e dão a oportunidadede verificar a orientação expressa do dramaturgo na pintura e de-coração dos carros. Lembramos que os autos El maestrazo delTusón e El sacro Parnaso datam de 1659 e são os primeiros autoscom memorias de apariencias. Além dessas memórias, onde o dra-maturgo registrava sua orientação para o cenário dos autos, hátambém as memorias de demasías onde Calderón de la Barca assi-nalava as modificações a serem observadas nas apariencias,(SHERGOLD E VAREY, 1967, p.XVII).

Considerando a didascália, verificamos que está a un ladoALMANZOR y su gente y al otro el CONDE GARCI-FERNÁNDEZ con música triste, isto é, um carro para a atuaçãoespacial de cada personagem. E, além da delimitação espacial, o per-sonagem castelhano tem para acompanhá-lo um motivo musical queindicia seu estado de ânimo, como também de seus comandados e,por extensão, de toda Castela: con música triste. Portanto, o signoacústico é índice da derrota das lutas pela reconquista. Opondo-se àmúsica, ecoa (Dentro) o grito de guerra de ALMANZOR:

ALM.-A sangre y fuego, soldados, publicad.TODOS. Arma, arma, guerra.

(Cajas.) (p.246,1)

A réplica de TODOS, evidentemente, é a resposta dos soldadosde ALMANZOR, seguida pela percussão de caixas que devemecoar o grito de guerra. E a réplica do CONDE (Dentro.) seopõe a de ALMANZOR:

Con lágrimas y suspirosmoved del cielo la esfera. (p.246,1)

A música,na teatralidade da representação, índicia a derrota,motivo musical, clamor do vencido:

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MÚS.-– (Dentro.) Ten de nosotros, Señor, misericordia y clemencia. (p.246,1)

A enunciação do CONDE e a MÚSICA, refletindo a apreensãodos castelhanos, desvelam a intensificação dos sentidos. E, de acordocom Ignacio de Loyola em seus Exercícios Espirituais, é precisochorar lágrimas verdadeiras, tirar de dentro do peito o suspiro dador para se elevar à esfera celeste; ser, então, capaz de ouvir comos ouvidos a música imaginada, criada pelos sentidos para expres-sar o sofrimento do pecador pelas suas culpas. O auto, em leiturahistórica, permite que o historial deixe o alegórico e a metáforavela e revela o objetivo didático-doutrinal. Observamos a impor-tância dada aos sentidos nos Exercícios Espirituais. Arte da me-mória clássica permite ao iniciante da vida jesuítica reviver e viverintensamente por todos os seus sentidos seus pecados, arrepender-se, chorando lágrimas dolorosas; sentir todos os sofrimentos daschamas do inferno e as dores do purgatório; ser capaz de vivenciarprofundamente o martírio de Cristo crucificado; tudo através deimagens mentais, atuantes na memória, com expressivo valor pic-tórico. A teoria aristotélica posta ao serviço da purificação da alma,marcando intensamente os sentidos, realiza-se, portanto, nas ima-gens mentais elaboradas em teatro da memória.

Por outro lado, a polissemia do signo teatral em acumula-ção de significados leva-nos a afirmar que o signo acústico é ape-nas um dos elementos da estrutura de uma manifestação teatral(BOGATYREV, 1988, p.83).

Em seguida, a réplica de ALMANZOR especifica o es-paço e o tempo da ação, complementando o cenário:

– Haced alto, hasta que el díaa estos montes amanezca. (p.246,1)

A importância da cenografia verbal, portanto, é manifesta: o dra-maturgo dispõe desse recurso para estar, também, na elocução dospersonagens, inferindo-se aí, a importância das relações texto/re-presentação. Os signos día e amanezca permitem apreender e situ-ar, em diferença, a ação no tempo: é noite ainda. O signo espacialmontes está precedido do dêitico estos, delimitando mais estreita-mente a ação no espaço e pode indiciar, também, o gesto indicativo

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do personagem. Segue-se o clamor do CONDE,

.-No dejen toda la nochede clamar las voces vuestras.

(Cajas.) (p.246,1)

cuja enunciação completa a referência temporal de seu opositor.Para o espectador, espaço e tempo se materializam na representa-ção; para o leitor, uma vez que a didascália não situa a ação, arelação espacio-temporal só é apreendida no tempo linear da leitu-ra. E às caixas percussivas, opondo-se à voz clamante de GARCI-FERNÁNDEZ, seguem-se as vozes de TODOS:

Arma, arma. e

MÚS.- piedad, piedad, favor, favor.. (p.246,1)

Ao grito de guerra, precedido de caixas percussivas, o clamor ex-presso pela música é reflexo da debilidade do CONDE. Opõem-sevozes e música, caracterizando a alternância das ações e a delimita-ção dos espaços. É interessante, pois, destacar a oposição final, quandoa enunciação das réplicas se reduz a poucas palavras, evidenciando aameaça e confiança de ALMANZOR e seus soldados e a inseguran-ça e impossibilidade do CONDE castelhano:

TODOS. Guerra, guerra.ALM. – Todo sea horror.CONDE. Sea todo.

(Él y MÚSICA.)MÚS.– !Misericordia y clemencia!UNOS.– Piedad, piedad.

. OTROS.- Arma, arma.UNOS– Favor, favor.OTROS.- Guerra, guerra. (p. 246,1)

A oposição evidente no campo semântico: guerra, horror, arma emisericordia, clemência (música), piedad, favor deixa transparen-te, para o leitor, o final da situação, quando a sonoridade e o ritmo,tão patentes, delimitam o espaço de vencedor e vencido.

A mudança de personagens especifica a situação 2, bastan-

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te extensa pela tensão estabelecida por essa mudança em alegorias;apresenta o ÁNGEL e a SECTA, alegorias que vão recordar aoleitor/espectador dados históricos sobre os muçulmanos, a invasãoárabe e a Reconquista; explica o sentido do auto, mantendo ocarácter didático-doutrinal da obra:

ÁNGEL.- Eso harála metáfora más cierta,si sobre estar en pecadoalguna virtud le enmienda.

SECTA. – Pues aunque en Gracia y Pascualvarios sentidos penetras,yo sin buscar más sentidosque militar en tu ofensa,mis esperanzas pondréen Almanzor, que es quien reinahoy en Córdoba, y quien hoyestas campañas intenta,que de la antigua Numanciaruinas son, cuyas trompetasajenas oyó Castillacuando a su opósito intentasu Conde salir, haciendode armas plaza en Santistebande Gormaz, en cuyo campocasi a la vista las tiendasestán esperando al alba.(p. 250,1)

Pela indicação da didascália Salen el Angel y la Secta luchando;cada alegoria deixa seu respectivo carro, o do CONDE e o deALMANZOR, e a luta se dá no tablado, pois ao final da situa-ção, lemos:

(Va cada uno por su lado.)............................................... (Canta el ANGEL hacia un carroy representa SECTA a otro.)

ANGEL.– Conde ilustre de Castilla. SECTA.– Rey de Córdoba, la bella. ANGEL.– ¿Invicto Garci-Fernández, godo, atlante de la iglesia? (p. 250,2)

O conde Castelhano é referido como godo por considerarse alos reyes y conquistadores de la Reconquista descendientes de

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la antigua nobleza y casa real visigoda; e também como Atlante,pois é ele o defensor da Igreja contra o Islã (VALBUENA PRAT,1969, p.251).

A mudança do cenário caracteriza a situação 3:

Ábrense las tiendas de campaña y en la una se ve al CONDE, viejo venerable, armado, sentado, durmiendo, y en la otra a ALMANZOR , en una

silla, también durmiendo. (p. 250,2)

Os espaços se delineiam, tiendas de campaña abertas para quedeixem ver seus ocupantes: o CONDE, viejo venerable, arma-do e Almanzor; e o tempo se define como sendo ainda noite,pois o signo durmiendo, polissêmico, caracteriza, também, anão ação dos personagens, o cessar das lutas, o aguardar doconfronto, enfim uma calma temporária. A caracterização doCONDE castelhano é mais específica, opondo-se à do árabe.Viejo venerable é uma caracterização de personagens bastantefreqüente em Calderón de la Barca. O signo armado é extrema-mente indiciador e deixa perceber, remetendo em diferença, aopersonagem CONDE, representado na primeira situação, ondeCastilha está despreparada, desarmada para o enfrentamento.

Os personagens dormindo em suas tendas de campanha,a tranqüilidade temporária, favorecem o sonho. Retomando asúltimas réplicas da situação anterior:

ÁNGEL. – Conde ilustre de Castilla.SECTA.– Rey de Córdoba, la bella.ÁNGEL.– ¿Invicto Garci-Fernández godo, atlante de la iglesia?”

e considerando a situação 3:

CONDE– (En sueños.) ¿Quién me nombra?ALM.– (En sueños.) ¿Quién me llama? (p.250,2)

observamos que as alegorias que ocuparam a situação 2 perma-necem em cena, quando se abriram as tendas de campanha e

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que há continuidade bastante estreita entre as duas situações, (2e 3); a representação alegórica prepara e introduz o sonho dosdois personagens; estes respondem ao chamamento das respec-tivas alegorias. A Vontade vencida pelo sono, o Entendimentodiscernindo, a Memória mantém a expectativa da guerra e oPensamento cria, em fantasia, as imagens do sonho:

ÁNGEL.– (Cantando.)Despierta a mi voz.

SECTA.- Despierta a mi acento. (p.250,2)

Há diferença entre o chamamento do ÁNGEL cantando e o daSECTA pelo acento; a emissão da voz pelo canto - a músicacontinua associada ao CONDE - ou pela enunciação é um signocaracterizador dos personagens, pois o acento da SECTA devereferir-se à maneira de falar dos invasores.

CONDE. – ¿Quién, quién eres, divina inspiración bella, que iluminas mis sentidos en las pardas sombras negras de la noche? (p.250,2)

Distinto do sonho da rainha da Suécia, que assiste à representaçãodo sonhado e, só ao final, SAN FELIPE se dirige a ela; aqui, há odiálogo entre os personagens e as alegorias, enriquecendo e dandomais dinamismo à representação dentro da representação, ao teatrodentro do teatro. E a réplica do CONDE, didascália implícita, verbal,descreve o ÁNGEL para o leitor, reiterando o que está sendo vistopelo espectador. Luz e sombra se opõem na expressão barroca; nassombras da noite, resplandesce o ÁNGEL, iluminando, também, ossentidos. É preciso passar pelos sentidos, com veemência sentir a dorda derrota, chorar lágrimas sentidas, ouvir música triste e a imagemda memória, definida na noite e no sonho, cria fantasias e respondeao clamor daquele que sente intensamente e se exercita na dor conlágrimas y suspiros. Porém o locus, a composição de lugar, referencialpara o CONDE, por ele enunciado, já está determinado anterior-mente: del cielo la esfera. É da esfera celeste que vem o ÁNGELpara auxiliar Castela: o teatro da memória se representa. À indaga-

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ção do CONDE, alterna-se a de ALMANZOR; observamos, então,que ambas indagações se iniciam de modo idêntico: ¿Quién, quiéneres?, questionamento indiciador do desconhecimento. A réplica deALMANZOR identifica a SECTA, descrevendo-a, como fez o CON-DE, estabelecendo a oposição entre as alegorias:

ALM.– ¿Quién, quién eres, caduca sombra funesta, que en las fantasmas del sueño nueva pesadez aumentas? (p. 250,2)

divina inspiración bella se opõe a caduca sombra funesta; oÁNGEL ilumina, a SECTA nueva pesadez aumenta(s); porém, naoposição notória entre luz e sombra, apreendemos uma distinçãofundamental: o ÁNGEL transparece na luz e a SECTA é sombrafunesta. O ÁNGEL é o guardião dos castelhanos enviado de Deus,atendendo ao clamor veemente do CONDE porque le Créateur estunique, et unique sa Providence. Et les ordres hiérarchiques sontseulement ses révélateurs et ses messagers (ROQUES, 1970,p.XLVII). Esse ÁNGEL, mensageiro da Providência, pertence, juntocom os Principados e os Arcanjos, à terceira e última hierarquiaceleste, de Dionísio Areopagita. E

l’univers hiérarchique est exclusivement celui du sacréet du consacré, que constituent, d’une part et de manièrepurement spirituelle (ou inteligible), les ordresangéliques, d’autre part et de manière à la fois spirituelleet sensible, les ordres de la hiérarchie humaine (idem,ibidem, p.XLIV)

A oposição entre ÁNGEL e sombra funesta leva, também, à distin-ção entre inteligível e sensível, uma vez que o CONDE com seuclamor perpassa intensamente os sentidos, alcança o inteligível e oÁNGEL se lhe apresenta no sonho. As ameaças de ALMANZOR omantêm no plano do sensível; daí a patente diferença da SECTA e desua caracterização como caduca sombra funesta como assinalamos.Por outro lado, é preciso considerar a polissemia dos signos sombrae fantasmas. Além de metáforas visivas do sonho de ALMANZOR(FRUTOS, 1976, p.521), expressão do sensível, conferimos comTomás de Aquino – Summa Theologia, qu XXXIX, art.1 - que amente amplia seu conhecimento das coisas per conversionem ad

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phantasmata (PARKER, 1983, p.64). A imagem da mente é percep-ção e memória do representado na situação 1, para os dois persona-gens - plano do sensível -; mas a diferença se acentua extremamenteem ÁNGEL e SECTA, no sonho, espaço mental, teatro da memória,onde cada um tem o seu papel. O CONDE alcança o inteligível e oÁNGEL se representa; ALMANZOR permanece no sensível comcaduca sombra funesta, especificando, ainda, a hierarquia humana,pois o CONDE com seus rogos e fé alcança o inteligível. A identifi-cação do ÁNGEL, com guardião está patente:

ÁNGEL.-(Cantando.) De tu fe y religiónespíritu soy que alientacon los suaves acentosde dulces cláusulas tiernastu valor, para que acudasa la piadosa defensade la honra de Dios, cuidandode los triunfos de la iglesia. (p. 250,2)

A réplica do ÁNGEL cantando se caracteriza por suaves acen-tos, isto é, tons, modulações musicais, diferentes do acento deALMANZOR, maneira característica do falar dos árabes, comotambém sua voz.

SECTA.– De tu espíritu valientealma soy que altiva intentacon las horrorosas voces,idiomas de mi soberbia,encender tu pecho en iras,porque en rencorosa ofensadel crucificado Cristoa Castilla a cobrar vuelvas. (p. 250,1)

É também notório que as réplicas das alegorias definem com muitaevidência o plano inteligível do ÁNGEL e, portanto, o nível superiorda hierarquia humana do CONDE; como também o plano do sensí-vel, a hierarquia humana em que se encontra ALMANZOR é evi-denciada pela SECTA. Tudo isto, evidentemente, dentro da ideolo-gia católica dominante.

ÁNGEL.– (Cantando.) Al arma, al arma Castilla, pues Dios sus gentes te entrega.

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SECTA.– Al arma, al arma, Almanzor, que Alá su valor te presta.ÁNGEL.– (Cantando.) Lidia, pues, clamando al cielo diciendo en lágrimas tiernas.SECTA.– Lidia, pues diciendo al son de cajas y de trompetas.MÚSICA Y ANGEL.– Ten de nosotros, Señor, misericordia y clemencia.SECTA.– A sangre y fuego, soldados, proseguid.TODOS.– Arma, arma, guerra.

(Cajas.)MÚSICA.– Piedad, piedad.TODOS.- Arma, Arma.TODOS.– Favor, favor.TODOS.– Guerra, guerra. (p. 251,1)

Diferentes etapas se distinguem no espaço onírico: o diálogo entreas sombras do CONDE e de ALMANZOR com o ÁNGEL e aSECTA, respectivamente; segue-se a contenda entre as sombrasdas alegorias; a enunciação do ÁNGEL acompanhada pela música,repetindo a situação 1, opõe-se ao grito de guerra. O espaço oníricocontinua o espaço “real”; como espaço mental é também espaço derepresentação e estende a ilusão teatral como teatro da memória,apelando para os sentidos do leitor/espectador - ver e ouvir - luz esombra, música e gritos de guerra - para que cada um veja, ouça esinta intensamente, criando espaços mentais, estendendo, também,em si e para si, a representação barroca. E a alternância entre ossignos acústicos - a diferença na réplica dos personagens, das ale-gorias, a música clamorosa e os gritos de guerra - delineia ateatralização do espaço, pela sua extensão na teatralidade. Dessemodo, depreendemos dois sistemas de signos: o sistema de expres-são/representação de Castilha, do CONDE, do ÁNGEL, da igrejacatólica; e em oposição árabes, ALMANZOR, SECTA, Alá. Final-mente, é na alegoria SECTA em cuja polissemia estão patenteadoso ímpeto pela guerra, a marcante diferença de religiões, e o maissignificativo: a falsa religião, frente a verdadeira religião, a católica.

Como paradigma desse auto, encontramos nos ExercíciosEspirituais de Ignacio de Loyola, no quarto dia, da segunda sema-na, a meditação de duas bandeiras, la una de Christo, summo capitány señor nuestro; la otra de Lucifer, mortal enemigo de nuestrahumana natura ( 1982, p.238).

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O sonho do CONDE castelhano, embora paralelo ao deALMANZOR, é uma modalidade de sonho profético - cumpre-sea ajuda divina aos castelhanos - cuja teatralidade se estende emespaços diversificados e opostos, para exemplificar a doutrinaagostiniana de auxílio, como em La prostestación de la fe. A répli-ca do CONDE esclarece essa afirmativa, na situação 4:

CONDE. – Pero ¿qué dudo que el cielomis deseos favorezcacon sus auxilios, si esmi fe mi mayor empresa? (p. 251,1)

2.3 O sonho especular

Entendemos como sonho especular aquele em que o espaçoonírico exibe uma ação que se está representando em um espaçoidentificado como distante daquele onde se encontra o personagemque sonha; este não participa da ação, não há nenhum chamamentopara envolvê-lo e ele é apenas espectador. O que sonha o persona-gem está se passando distante, em um espaço já conhecido do leitor/espectador. Classificamos como especular porque reflete a represen-tação que se realiza à distancia.

El gran príncipe de Fez é a obra que exemplifica o sonhoespecular, metáfora visiva, exemplo de mirabilia, pois o personagemMuley Mahomet, príncipe de Fez, admira, à distancia, em sonho, adestituição de suas insígnias, a perda de autoridade e do poder. Nãoé o único exemplo no teatro calderoniano. La niña de Gómez Ariase Ni amor se libra de amor ilustram, também, o sonho especular,embora menos significativos como teatralidade.

É uma obra de circunstância, baseada em um personagemhistórico Mawlay Muhammad, no texto Muley Mahomet, filho doimperador de Marrocos. O príncipe se converteu ao catolicismo em1656, foi ordenado jesuíta em 1663; estava designado como missio-nário, mas faleceu em Madrid em setembro de 1667. A obra foirepresentada no Palacio Real em 1669.

Na primeira jornada, situação 2, salen luchando el BUENGENIO, con alusión en su vestido de ángel, y el MAL GENIO, enel suyo de demonio. São alegorias que introduzem o primeiro sonhodo PRÍNCIPE; a situação é bastante semelhante à do sonho do Con-

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de Castelhano e de Almanzor, sonho paralelo, sincrônico; o BUENGENIO tenta a conversão do príncipe e luta com o MAL GENIO;os espaços são bem delimitados:

A una parte, dentro , cajas yVoces muy bajas, como que seoyen a los lejos.

UNAS VOCES.– !Muera el príncipe de Fez y viva el rey de Marruecos! BUEN GENIO.– También oirás tú de esta otra parte, a fin de mis intentos...

A otra parte, atabalillos y chirimiasy voces altas.

(Dentro.) SOLD. !Viva nuestra invicta reina y viva el príncipe nuestro! MAL GENIO.– Pues al arma... BUEN GENIO. – Pues al arma... MAL GENIO.– ... y vea el mundo... BUEN GENIO.- ... y mire el cielo... LOS DOS.– ... su interior lid,

unos y otros repitiendo... (Dentro.) UNOS !Muera el príncipe de Fez y viva el rey de Marruecos! (Id.) OTROS.– !Viva nuestra invicta reina y viva el príncipe nuestro!

(Vanse los dos GENIOS, y despierta el PRINCIPE como despavorido.) (p. 1368,1)

Na luta entre o bem e o mal, entre o anjo e o demônio, destaca-se aafirmativa dos dois opostos: ...su interior lid. As alegorias ilustrama luta interior do PRÍNCIPE e o seu pensamento dividido. Elas sãoo desdobramento do pensamento e são a representação, em cena,de suas dúvidas.

Na situação 9, segundo ato, lemos:

Solo de quien no me acuerdo, !ay hermosa Zara mía!

es de ti, que el que se acuerda, ya supone que se olvida;

y en mí es imposible;....................................

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que dando cuerpo a la ideay sombra a la fantasía,no hay parte en que no te encuentre,cuerpo y sombra de ti misma. (p. 1386,1)

Nessa réplica do PRÍNCIPE, está a presença constante de ZARA,sua mulher, em sua memória. No espaço mental não há um locusdefinido, pois a memória mantém cuerpo y sombra de ZARA emtodo seu espaço. Cuerpo provém da idea e sombra da fantasía. Darcorpo à idéia é imaginar e dar sombra à fantasia é manter na memó-ria, processo conjunto do pensamento com caráter ideatório e imagi-nativo. Frequentemente, na dramaturgia calderoniana, pensamentoequivale a imaginação ou ideação, idéia; esta equivale a imagen (FRU-TOS, ibidem, p.519).

No terceiro ato, situação 15, assinalamos

PRINCIPE.– Necia memoria, ya sé que reino, hijo y esposa dejé; y pues lo mismo hiciera si de todo el mundo fuera la majestad, no penosa

me aflijas. Mas !ay! !Que en vano procuro echarte de mí! (Quédase dormido.)(p.1404,1)

O PRÍNCIPE rememora reino, filho e esposa. As potências da almapodem ser desveladas; memória, entendimento e vontade estão jun-tos na réplica do personagem. Em seguida a réplica do MAL GENIOdelimita a situação 16. É interessante observar a alternância de doisespaços na representação: o do personagem e o da alegoria, “real” eimaginário; isto permite a ampliação de novos espaços no espaçomaior da representação, por isso a disposição do PENSAMIENTO:

(Dentro.) MAL GENIO.–Ya que rendido le via propensiones de humano,asombro y horror reciba:

sueñe quién es y quién era. Cajas y trompetas. (p.1404,1)

Ao recordar-se, em sua necia memoria de reino, hijo y esposa, oMAL PENSAMIENTO se aproveita para que o PRÍNCIPE

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rememore as sombras da fantasia que se representam no sonho. Aréplica do MAL GENIO antecipa a ação e deixa bem evidente ojogo texto/representação. Desse modo, o que é conceito imagina-do, trazido à memória, torna-se conceito prático, na representaçãoteatral. E a ação

depende para existir de la mente de la persona que la piensa,esta persona está por consecuencia presente, y se nos da no sólosus pensamientos, sino los sentimientos que se despiertan en ella.(PARKER, 1983, p.73

A representação desses espaços mentais caracteriza a teatralidadecalderoniana, pelo desdobramento do espaço físico que revela,teatralizando, o espaço mental; o teatro dentro do teatro, a repre-sentação dentro da representação, o espetáculo como sonho, reali-zam-se em múltiplos espaços: teatro da memória. Portanto,depreendemos nesse jogo de teatralidade, entre conceito imagina-do e conceito prático, o confronto entre o real concreto da repre-sentação, considerado como não verdadeiro pelo leitor/espectadore a ilusão da representação, considerada como não verdadeira peloleitor/espectador e a ilusão da representação mental do sonho, dentroda representação, como denegação, porque

ce qui figure dans le lieu scénique c’est un réel concret,des objets et des personnes dont l’existence concrèten’est jamais mise en doute. Or s’ils sont indiscutablementexistant (pris dans le tissu du réel), ils se trouvent enmême temps niés, marqués du signe moins(UBERSFELD, 1978, p.46).

Desse modo, na representação dos espaços imaginados, la accióndramática sigue compuesta de ‘fantasmas’ unidos y asociadosen el mundo sin tiempo ni espacio de la imaginación (PARKER,1983, p.65). E o sonho se representa com cajas y trompetas eclamores, (dentro):

(Id.) ZARA.– !Muera Mahomet!(Id.) MOROS.-

!Mahomet muera!(Id.) ZARA.- !Viva Muley!

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(Id.) MOROS.- ¡Muley viva! (p.1404,1)

Todos os signos acústicos de cajas y trompetas e vozes que vêm dedentro indiciam a oposição ao PRÍNCIPE e preparam para a repre-sentação do sonho, cuja didascália esclarece:

Descúbrese un trono con gradas y dosel y en loalto una estatua del PRINCIPE, lo más parecidaque pueda, con los mismos vestidos de moro quesacó primero, y con bastón de general, coronay cetro; y al pie del trono, ZARA, el niño MULEY ,ABDALÁ . Acompañamiento y otros Moros.

Vários signos devem ser destacados, caracterizando, inicialmente,o espaço: trono con gradas y dosel; o MAL PENSAMIENTO“leva” o PRÍNCIPE ao palácio, pois ele deve sonhar quién era,deve, em metáfora visiva, rever o seu antigo palácio. Esse sonhonão deixa de ser uma forma de tentação, uma vez que o MALGENIO ou MAL PENSAMIENTO é uma variante da representa-ção do demônio. O locus ou composição de lugar, palácio e teatroda memória onde se representa a cena, é o salão do trono.Depreendido o espaço, no antigo palácio, o salão do trono, neleestão os signos/símbolos do poder; o trono como suporte da glóriae/ou da manifestação da grandeza imperial; o dosel, símbolo daproteção recebida pelo PRÍNCIPE de seus súditos e outorgada porele, relação de poder e obediência. Na relação espacial de organi-zação dos signos está en lo alto una estatua del PRÍNCIPE. Suaausência é suprida pela estatua e a voz do autor acrescenta: lo másparecida que pueda. E na caracterização, o signo do vestuário éfundamental: con los mismos vestidos de moro que sacó primero.Convém lembrar que no primeiro ato, ele está vestido a lo moro emuna tienda de campaña. Nesses dois momentos, o signo do vestu-ário intensifica muito mais a nacionalidade do que a condição desoberano. Estar vestido a lo moro é estar consciente e ser respon-sável pela própria nacionalidade. Inferimos, então, a extrema im-portância do vestuário, na obra e, principalmente, no sonho. Ou-tros signos são depreendidos: con bastón de general, corona ycetro. A autoridade e comando estão em bastón de general; o po-der e nobreza em corona y cetro. Muito expressiva é a relação

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espacial nessa didascália: a estatua, en lo alto; o PRÍNCIPE, comoestatua, ocupa a posição que lhe é devida; y al pie del trono, ZARA,el niño MULEY. O posicionamento al pie del trono evidencia asubordinação, a obediência. A relação espacial entre soberano earistocracia é, assim, mantida e a semantização das relações deautoridade e poder.

PRINCIPE.– (Entre sueños.)!Qué pesadez! Ay de mí!!Qué angustia! !Qué sobresalto!

ZARA.– Nobleza y plebe de Fez,ya os constó cuánto tiranocon su patria, cuánto fierocon su rey, y cuánto ingratoMahomet con su hijo y conmigo,a la obligación faltandode sangre, honor, lustre y fama,después de haber rescatadosu persona mi fineza,en Malta quedó, trocandola real majestad de moroal vil nombre de cristiano.Y siendo así que en sus forosnuestra gran ley al que variola prevarica teniendohonores de soberano,degradarle manda de ellos,yo la ceremonia usando,como a delincuente y reo,haciendo el trono cadalso,os le represento vivoen esse muerto retrato,corrida de que no tengavida que le quite el mármol.Cumplid, pues, de vuestros ritosla usanza. (p.1404,1)

É muito interessante a mudança na conotação dos signos que seapreende na réplica de ZARA. Na relação texto/representação,comparando-se a didascália que introduz o sonho, situação 18,estabeleceu-se a relação espacial de alto/baixo, de soberano/súdi-tos; a réplica de ZARA desfaz essa relação e dá aos signos novosignificado: o soberano é delincuente y reo; o trono é cadafalso;e, mais ainda, a estatua, muerto retrato, é signo intensamente

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conotado, pois diz ZARA: os le represento vivo. Tudo para secumprir um rito: a destituição das insígnias, os signos/símbolosde autoridade e de poder.

ABDALÁ, prisioneiro do PRÍNCIPE, escravo, em sua con-dição inferior, é agora participante da cerimônia. Ex-comandante deseus exércitos, exercita o novo comando, como ministro militar, des-tituindo MAHOMET do poder ao lhe retirar o bastón:

ABD.– Yo, pues me halto presente como ministro militar, pues ser esclavo hoy no quita que ayer fuese general maestre de campo

de mis ejércitos, seaquién, el puesto ejercitando,le degrade del bastónque fue mi ruina y su lauro.

Quítale el bastón. (p.1404,1)

Em seguida, vemos a destituição da coroa. Na prática do filho,MULEY, depreendemos a polissemia do signo corona; esta não éapenas o símbolo da realeza, mas também das vitórias alcançadas,das glórias e aplausos recebidos:

NIÑO.– Yo, pues cometió el delitodespués de haberme engendrado(con que ser no debe en míel baldón hereditarioy el reino sí), del laurelcomo mío, le degrado,quitándole de sus sienescon la corona el aplauso.

Quítale la corona. (p.1404,1)

Mas é a mulher que o destitui da autoridade, tirando-lhe o cetro e,como agravo maior, declara asperamente arrancá-lo do coração edar a mão ao ex-prisioneiro. Destituído das insígnias reais, como réucomum é condenado. Observamos, também, complementando adidascália que introduz a situação acompañamiento y otros Moros,que ZARA se dirige a uma assistência presente: Todos vosotros ahoraque sois sus vasallos. Portanto, a réplica do personagem esclarece adidascália inicial, que nos faz verificar a importância da relação tex-

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to/representação, no texto dramático:

ZARA.– Yo, que en su mano le pusedel más ilustre y más altoreino el cetro, pues le dide mi alma y vida el mando,porque el mundo vea que de él,en venganza de mi agravio,no solo le privo, peroaun del corazón le arranco,de su mano el cetro quito.

Quítale el cetro.Y mostrando la mía cuántoes imposible que a él vuelva,mano y cetro (de un presagiocumpliendo la voz que dijomal hurtada de mis labios:“Viva Abdalá y Mahomet muera”),los enajeno y reparto,dándole el cetro a Muleydándole a Abdalá la mano. [Dásela.]Todos vosotros ahora,Ya que sois sus vasallos y que sin reales insigniasno es traidor el desacato,calles y plazas la estatua

arrastrad hecha pedazos. MOROS–¡Muera Mahomet, y Muley

y Abdalá vivan!Las cajas, y despertando el

Príncipe, se cubre todo. (p.1404,1)

É interessante observar a dinâmica da representação através dotexto, pois verificamos a complementaridade realizada pela réplicados personagens. O valor expressivo dos diálogos, a voz de cadapersonagem conduzem a ação. Em seguida, o clamor de aceitaçãodos vassalos, agora signo acústico, é acompanhado pelo ruflar dascaixas, apoteose às avessas, condenação pela rejeição da fé, peloabandono do comando e do poder. Porém, é a ação do MAL GENIOque lhe permite representar em sua memória, um lugar agora dis-tante, o antigo palácio; ali, figuras ou sombras estão colocadas; e oPríncipe, como recém converso, deve rememorar, em sua memóriaimaginativa, os lugares onde viveu; de repente, sentir-se traído – oMAL GENIO o tenta -; e “arrependido” aguardar o verdadeiro

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martírio, ideal cristão, coroamento na fé:

PRÍNCIPE.– ¡Qué pasmo! ¡Traidores! ¿Pues...? Mas ¿qué digo, ni qué me admiro ni espanto de qué haga su oficio el sueño, representándome vago en las últimas especies con que dormí los engaños que tal vez saben hacer de la imaginación caso? Y cuando fuesen verdad (que ni lo dudo ni extraño) en Fez mis agravios, ¿qué importan ya mis agravios? iPluguiera a vuestra piedad, Señor, se acercara el plazo en que por Vos padeciera la persona, y no el retrato! (p.1405,1)

A didascália inicial, situação 18, adverte: Descúbrese un trono e aofinal se cubre todo. O emprego desses verbos leva a afirmar que

Calderón uses the verbs “cubrir” and “descubrir” suggestingthat in 1652 a curtain might have been drawn in order thatthe scene might be changed behind it, on the familiar principeof the “discovery” (SHERGOLD, 1967, p.309).

“Discovery” ou “apariencia” é um dos recursos utilizados porCalderón de la Barca e outros dramaturgos para concretizar aabertura de outros espaços, espaços oníricos, por exemplo, am-pliando e estendendo a visão do leitor/espectador, envolvendo-omais intensamente na representação. O uso apariencias formali-za a influência dos corrales no teatro da corte, onde eram combi-nadas com a cena em perspectiva e outras técnicas de origemitaliana. A tradição dos corrales é levada para a Corte e

there is also the similarity between court and publictheatres in their use of features of staging such as“discovery”, the upper gallery, and the two entrances,one at either side of the stage (Idem, ibidem, p.297).

Era desejo do Rei e da Rainha que houvesse no Coliseo

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o mesmo clima das apresentações nos corrales, com mosqueterose o alarido das mulheres nas cazuelas, por isso no SemanarioErudito, XXXI, 139, referido por SHERGOLD, lemos:

Los Reyes se entretenían en el Buen Retiro, oyendo lascomedias en el coliseo, donde la Reyna nuestra Señoramostrando gusto de verlas silvar, se ha ido haciendocon todas malas y buenas esta misma diligencia.Asimismo, pra que viese todo lo que pasa en los corralesen la cazuela de las mugeres, se ha representado bien alvivo, mesandose y arañandose unas, dandose vaya otra;y mofandolas los mosqueteros. Han echado entre ellasratones en caxas, que abiertas saltaban; y ayudado estealboroto de silvatos, chiflos y castradores, se haceespectáculo mas de gusto que de decencia. El Rey nuestroSeñor reparte los aposentos a Grandes por sus turnos.(Ibidem, p.299, nota 1).

2.4 O sonho como conhecimento do passado

Encontramos esse exemplo de sonho em Fortunas deAndrómeda y Perseo, uma das dezessete obras de temas mitológi-cos. Baseada nas Metamorfoses, de Ovídio, Liv. IV, vv. 604-803 eLiv. V, vv.1-249, onde não há referência ao sonho para que Perseopossa conhecer sua origem e identificar-se como filho de Júpiter.Calderón de la Barca, para maior efeito de teatralidade entre a re-presentação propriamente dita e a representação do sonho, carac-teriza DANAE e PERSEO como villanos, camponeses. Outra par-ticularidade é a representação de ANDRÓMEDA, atraindo o filhode Júpiter para a gruta de MORFEO, permitindo, mais tarde, o seureconhecimento por PERSEO.

Entre o primeiro e o segundo ato, não há nenhuma pausa.Ao contrário, assinalamos uma intensa dinâmica entre o final de ume o início do outro. A última réplica é de PALAS e determina adinâmica espacial com o imperativo:

– Sigue, Mercurio, la instanciasin temor, que la Discordiaya de entre nosotros falta. (p. 1653,2)

imediatamente

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Dicen dentro, a un lado PALAS, a otro MERCURIOy a otro ANDRÓMEDA y PERSEO. (p.1654,1)

Essa didascália motriz inicia o segundo ato, estabelecendo a conti-nuidade entre um e outro, seguindo-se as réplicas dos personagens:

PERS.– Seguirte tengo, aunque te entresal centro más pavoroso.

AND.– Aquí me hallarás, Perseo,rayo y sombra en humo y polvo. (p. 1654,2)

As vozes dos personagens estabelecem a relação dentro/fora e indiciamo espaço da situação 2: centro más pavoroso, rayo y sombra enhumo y polvo, isto é, o espaço simbólico do sono. Evidenciamos, nasréplicas, didascália implícita, a movimentação dos personagens emcena: Sigue, Mercurio; Seguirte tengo; Aquí me hallarás; espaço“dentro”. É interessante notar a correspondência entre as réplicas,como didascália implícita, e a didascália explícita, uma vez que

La situation aura alors pour caractéristique fondamentalede former dans le texte dramatique une unité cohérente,c’est-à-dire indivisible par rapport aux deux plans, textuelet scénique, pris ensemble, puisque dans la situation unepartie ininterrompue de la ligne textuel correspond à ungroupe d’éléments “scéniques” qui ne change pas(JANSEN, 1968,p.77).

E a voz do autor esclarece o modo de representação do ator:PERSEO tras ella, como que la ha perdido de vista . Como foimencionado acima, a passagem rápida dos dois personagens e adinâmica espacial indiciam e preparam a mudança de situação pelamudança de cenário:

Sale ANDRÓMEDA de una parte a otra, y seentra, y múdase todo el teatro al pasar conestos dos versos ANDRÓMEDA, y PERSEO trasella, como que la ha perdido de vista; y loque se descubre es la gruta del Sueño, yMORFEO, viejo venerable, sobre unas hierbasde su significación, como beleños y cipreses, y sale PERSEO. (p.1654,1)

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O uso do verbo descobrir é significativo na representação pela ex-tensão do espaço: la gruta del Sueño; MORFEO, viejo venerable,signo intensamente caracterizador, condensando a polissemia dopersonagem; estão o beleño, planta narcótica e ciprés, símbolo doluto pela morte. Assinalamos a associação dessas plantas aMORFEO por se entender o sono como imagem da morte. Noauto sacramental El valle de la zarzuela lemos:

del sueño, cuyo blando y cuyo fuerteéxtasis es imagen de la muerte. (p.700,1)

A presença de MORFEO especifica bem o espaço, pois não é grutado sonho, é gruta do sono. É a réplica de PERSEO que apresentapara o leitor o espaço onde ele se encontra. E acolhe a atenção doespectador para esse espaço, onde se realiza a ação:

PERSEO.–¿Qué lóbrega estancia es esta, en cuyos cóncavos hondos delirios son cuantos veo, fantasías cuantas toco?¡Oh tú, caduca deidad,que con nombre de reposo,paréntesis de la vida,eres la muerte del ocio!Dime, si una sombra sigo,¿cómo (¡ay infelice!), cómoentre tantas no la encuentroen sitio tan pavoroso,si aquí tras ella llegando?...Mas, ¡ay!, que cuando te invoco,no ya los conceptos, peroaun las palabras no formo.Recíbeme a tus umbrales,que ya a tus fuerzas me postro,viva peña entre tus peñas,vivo tronco entre tus troncos. (p. 1654,1)

A réplica do personagem revela o espaço para o leitor e o desvelapara o espectador. Vários signos delineiam o espaço: lóbregaestancia, cóncavos hondos. Em seguida, podemos definir a relaçãodo personagem com o espaço simbólico onde se encontra: espaçode delirios, de fantasías, imaterial, mental; porém, passando inten-samente pelos sentidos: veo, toco. O entendimento ainda o permite

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discernir entre a vigília e o sono. Dirige-se a MORFEO, de quemnão ouvirá resposta, pois terá cruzado o umbral do sensível paraestar no inteligível; para ali, então, obter resposta insatisfatória parasuas indagações. Entre delirios e fantasías, o espaço é também desombras. E a vontade, como última potência a se deixar vencer,permite ao entendimento explicar-se pela falta de conceitos e difi-culdade de palavras. Entrega-se ao sono pesado como peña, comotronco, pois recuéstase en un peñasco, y quédase dormido. EMORFEO define o sonho:

. – Ahora te diré cómo.Representadle, ilusiones,su nacimiento, de modoque le vea, y que no seacreído después de los otros. (p. 1654,2)

Entre delirios e fantasías, representam-se ilusões, sombras, metáfo-ra visiva, mirabilia, para que le vea, y que no sea/creído después delos otros. Diferente do sonho profético, de tradição bíblica, portanto,religiosa, acreditado por todos como prenúncio de acontecimentos,o sonho de PERSEO deve deixar dúvidas, não desvelando, total-mente, a verdade sobre seu nascimento.

Vase, y descúbrese el retretecon DANAE vestida de dama, ycuatro Damas con ella cantandoy una DUEÑA. (p.1654,2)

O espaço do sonho é um novo espaço dentro da representação.PERSEO é o espectador, permanece adormecido na gruta deMORFEO, espaço simbólico e, em sua réplica, os signos refe-rentes à espacialização do onírico são evidentes:

PERSEO. – (En sueños).¡Mi madre entre tantas realespompas, estrados y adornos!¿Qué es esto, cielos? (p.1654,2)

Em diferença, DANAE villana está, agora, em um espaço que lheconfere sua verdadeira identidade, espaço de reales pompas, estra-dos y adornos; esses signos definem a espacialização, diferencian-

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do-a de gruta. A PERSEO, como espectador – pois ele não ultra-passa a fronteira do seu espaço, permanecendo bem delimitada arepresentação dentro da representação – é-lhe permitido ver a his-tória de seu nascimento; do passado sua origem lhe é trazida. E,cabe ao dramaturgo, colhendo temas no mirabilia dos deuses, abrirespaços, trazer sombras que estimulam a imaginação do leitor/es-pectador e em metáforas visivas permitir a leitura do sonho: vendo,ouvindo. E as sombras, ilustração do onírico, são explicadas ante-cipadamente, preparando o leitor/espectador, salientando a oposi-ção entre o personagem – PERSEO – e os que representam noespaço onírico: fantasmas, sombras. E MERCURIO esclarece:

Yo le he de representaren las fantasmas de un sueñotoda su historia................................................, las cercaníasdisfrazadas en los lejos,................................................A este fin le he de llevar................................................a la gruta de Morfeodonde entre confusas sombrasha de ver su nacimiento. (p. 1647,1)

Fantasmas e sombras habitam a gruta de MORFEO e especificam,em definitivo, os signos altamente motivados, não apenas no tea-tro, mas também na teatralidade, no teatro dentro do teatro. E

s’il est vrai que tout signe iconique est non arbiraire, maismotivé, le signe scénique est doublement motivé, si l’on peutdire, dans la mesure où il est à la fois la mimésis de quelquechose (l’icône d’un élément spatialisé) et un élément dansune realité concrète (UBERSFELD, 1978,p.164).

MERCURIO, em disfarces de ANDRÓMEDA, desvelaa polissemia do signo sombra:

(Dentro.) AND.– Aquí me hallarás, pues soy

la sombra de tu deseo. (p. 1653,1)

MERCURIO e PALAS querem satisfazer o desejo de PERSEO,

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permitindo-lhe, em sonho, conhecer o passado, sua história e suaorigem. Portanto, o sonho, como conhecimento do passado, é tam-bém a realização de um desejo. E o deus, como responsável juntode PERSEO, diz-se sombra, pois na gruta de MORFEO só se per-mitem sombras, onde se realizará o desejo: sombra do desejo, som-bras do sonho.

O sonho apresenta 4 situações: 3, 4, 5 e 6 no segundo ato.Na situação três, primeira do sonho, a réplica de DANAE se alter-na com o canto, atendendo aos imperativos da deusa e da DUEÑA,prosseguindo a ação, formalizada na didascália implícita motriz:cantad, canten. Para que a teatralização não seja apenas uma sim-ples alternância, o canto se diversifica. Primeiramente, toda a es-trofe é entoada pelas damas:

Ya no les pienso pedirmás lágrimas a mis ojos,porque dicen que no puedenllorar tanto y ver tan poco. (p. 1654,2)

Lemos, em seguida, o lamento de DANAE:

. – Bien a la fortuna míacorresponden letra y tono,pues lo que lloro y no veoson mi consuelo y enojo. (p.1654,2)

E na réplica da deusa está determinado o espaço: que en estas prisionesformo. O signo espacial prisiones esclarece o signo retrete dadisdascália inicial e restringe a descrição de PERSEO: ¡Mi madreentre tantas reales/pompas, estrados y adornos! Observamos a im-portância da relação texto/representação na espacialização e, por-tanto entre diálogos/didascálias, permitindo apreender o espaço quese formaliza e desvela em pontos de vista diferentes: o autor apresen-ta o espaço como retrete; PERSEO o descreve como espaço derealeza e o amplia, colocando ali, outros signos que o especificam:estrados y adornos. Porém, DANAE dá aos signos enumerados porPERSEO uma conotação negativa: prisiones.

A música se alterna com a réplica; mas a expressão dateatralidade não permite que toda a estrofe seja cantada somentepelas DAMAS, como anteriormente. Nessa alternância, DANAE

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canta com elas, apenas os dois primeiros versos:

ELLA [y DAMAS.] – Música. Ya no les pienso pedir más lágrimas a mis ojos. (p.1654,2)

À música, segue-se o lamento de DANAE:

. –¿Para qué, piadosos cielos,si es, cielos, que sois piadosos,en dar a un infeliz vida,quitáis de la vida el logro?Si a vivir presa nací,no nacer fuera más propio;que no es lisonja de un presoel dorarle el calabozo.Si para llorar sin verme habéis dejado los ojos,para todo los quitad,o dádmelos para todo.Ved que quejosos de mí,no quieren uno sin otro... (p.1654,2)

É a réplica da deusa que específica ainda mais o espaço, emsemantização negativa: calabozo; de seu lamento, inferimos aparticularidade do espaço onírico, porque para a deusa no eslisonja de un preso/ el dorale el calabozo; o signo dorarle indiciaa chuva de ouro.

Os dois últimos versos da estrofe cantada pelas DAMASsão entoados, acentuando, assim, a teatralidade e evitando asimples alternância:

Porque dicen que no puedenllorar tanto y ver tan poco. (p.1654,2)

DANAE explica para o leitor/espectador a causa de sua prisão:

-¿Qué delito cometipara que tan rigurosomi padre me lo castigue?Si enamorado Lidorode un retrato, a verme vino,¿qué causa es de que celoso

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tema tanto de su amor,y fíe de mi honor tan poco,que me prenda? Mas, ¡ay triste!,¿para qué gimo ni lloro?Cantad, cantad, repitiendouna y otra vez a coros... (p.1655,1)

Às formas verbais no imperativo deve prosseguir o canto daestrofe anterior repitiendo/una y outra vez a coros...Porém, emoutra didascália, observamos:

Dentro Música, y empieza allover oro. (p.1655,1)

Há a mudança do cenário, outra estrofe é entoada e assina-la a diferença entre o imperativo enunciado por DANAE e suarealização; a simples alternância entre as réplicas da deusa e a mú-sica, embora não repetindo a estrofe totalmente, dá um caráter par-ticular à teatralidade; porém, o lamento deve ser interrompido, muda-se a música – nuevo acento – e a teatralidade da situação 4 mantéma dinâmica do texto/representação para o leitor/espectador:

CORO 2º.– Dentro.El que adora imposiblesque llueva oro;sin él nada se vence,Y con él todo. (p.1655,1)

Para DANAE é um nuevo acento, um novo tom, outra música, dife-rente, como se viu, do acento da SECTA, do acento do CONDE:

DANAE.– Oíd, ¿qué nuevo acento esel que por los aires oigo? (p.1655,1)

Retomando a réplica de DANAE, observamos ainda mais asemantização espacial: para ela calabozo, espaço de conotação ne-gativa; de seu lamento se infere a particularidade do espaço onírico,porque para a deusa no es lisonja de un preso/el dorarle el calabozo.E, através das réplicas dos outros personagens, o leitor vai se situan-do espacialmente; desse modo, a réplica da DAMA 1ª. esclarece:

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. – Que de la doradatechumbre el artesón rotose viene abajo, lloviendosobre nosotras el oroque le esmaltaba. (p. 1655,1)

É interessante observar como os signos espaciais não desvelam ne-nhuma conotação: o espaço, prisão de DANAE, tem o teto doura-do; e para a dama o teto se rompe, vem abaixo e explica a chuva deouro; observação própria de Sancho Panza; porém, a DAMA 2ªdiviniza o espaço, complementando as didascálias iniciais porque

. – Es en vano,que el que llueve, a lo que noto,es de más sagrada nube. (p.1566,1)

A enunciação de novos signos, desvelados nas réplicas dos perso-nagens, vai formalizando o espaço; e o retrete ou calabozo, espaçonegativo para a deusa, mantém sua conotação positiva, pois é es-paço de más sagrada nube, signo de presença divina é

comme l’opérateur d’une liaison entre les différents niveausou instances du procés signifiant, et fonctionne simultanémentau titre d’élément constructif et comme le schème inducteurd’un développement thématique (DAMISH, 1972, p.34).

Como elemento construtivo e como indutor do desenvolvimen-to do tema, o signo nube e, especificamente, sagrada nube,permite revelar, oportunamente, para PERSEO sua descendên-cia dos deuses.

A DUEÑA mantém a denotação do signo oro e afirma:

. – Sea él fino, ya que es hermoso,y venga como viniere. Cogen todas. (p.1655,1)

As damas acompanhantes de DANAE colhem o ouro e têm, comoSancho Panza, objetivos práticos e lucrativos para sua aplicação:

DAMA 1ª.- Sin duda que algún dios mozo,recién heredado, quiereaplausos de generoso,

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y echa el oro por ahíque le dejó en patrimonioel viejo dios su padre.

DAMA 2ª.- Coge, Laura.DAMA 1ª.- Yo lo cojo.

Desde hoy señora he de serde escaparate y biombo.

DAMA 3ª.- Mañana hago treinta estrados,que ya cinco o seis son pocos.

DUEÑA.- Yo el solar de la montañaque fue de mi abuelo, compro.

DAMA 1ª .- Por vida de cuantos hayque si mi dote recojo,y una vez rica me veo,que no ha de gozarme esposoletrado: espada y guedejahan de ser mi patrimonio. (p.1655,1)

Retomando a réplica de PERSEO, delimitam-se os loci em re-presentação. O filho de DANAE assiste absorto, envolvido emdulce sueño:

PERSEO.– [En sueños.] ¿Qué dulce sueño me tiene, aun más que dormido, absorto? (p.1655,2)

Essa réplica de PERSEO é de extrema importância para a retomadado espaço de DANAE e tem como função restabelecer a atmosferade encantamento, interrompida pela “materialidade” dos diálogosdas DAMAS. Se excluímos tais elocuções, observamos que à replicaanterior da deusa – Oíd, ¿qué nuevo acento es/el que por los airesoigo? – segue-se a indagação de PERSEO como restabelecimentodo encanto e a pergunta de DANAE: –¿Qué prodigio es este, cielo?– respondida por JÚPITER: – Yo ya a tus dudas respondo.

Convém assinalar que na representação do sonho dePERSEO, favorecido pela intervenção de MERCÚRIO e PALAS,mantém-se as referências aos personagens como sombras, fantas-mas ou fantásticos efectos. A temática mitológica, em si mesma pro-digiosa, não deixa de mencionar o processo de representação mentalnos sonhos, como já vimos. O que ratifica a tese dos sonhos comoteatro da memória; e o sonho do mitológico PERSEO é, também,composição de lugares, onde, em metáforas visivas, os personagens

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representam, estendendo espaços envolvendo o leitor na re-criaçãode mirabilia. É muito significativa, portanto, a oposição entre DANAEe suas acompanhantes; estabelece-se uma relação entre imaginário,mitológico por um lado e, por outro, o material, o marcado pelointeresse pecuniário; entre divino – sagrado mitológico – e terreno;entre Quixote e Sancho, como paradigma. Nesse momento, desfaz-se a ilusão teatral, em dois níveis: no nível da representação e no nívelda representação do onírico.

O sonho se confirma como prodígio, portanto comomirabilia, indagação da deusa

. –¿Qué prodigio es este, cielo?Baja un águila y en ella JÚPITER

vestido de Cupido. (p.1653, 2)

Temos a engenhosidade de Baccio del Bianco, cenógrafo da obraapresentada, possivelmente, nos dias 18, 19 e 20 de maio de 1653. Oefeito cênico deve ter sido obtido com o pescante.

JÚPITER, transmudado em CUPIDO, tem, naturalmente,palavras galantes para DANAE, elogiando sua beleza divina. Impos-sibilitada de reconhecê-lo, questiona:

. – Alada deidad, ¿quién eres,que tus señas desconozco?,que el oro, el ave y las alaspiensan uno y dicen otro. (p.1655,2)

Para maior dinâmica na representação

Baja [JÚPITER] al tablado, ydesaparece el águilla. (p.1655,2)

Outro efeito cênico dinamiza a representação – situação 6 pelamudança do cenário – e JÚPITER, galã, esclarece seu disfarce;prosseguem os diálogos, em clímax dramático:

JÚP.– Yo sabré ampararte cuando alguién te diere enojo.DANAE.–¿No es mejor no darle tú que vengar que le den otros?

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JÚP.– (Asela de las manos.) ¿Cuándo lo fue el rendimiento?DANAE.– Ahora lo es. ¡Cielos, socorro!JÚP.– Porque sus voces no escuchen, decid conmigo vosotros...DANAE.– Aunque los vientos confundas, mi voz saldrá sobre todos. ¡Cielos, piedad! ¡Favor, cielos! ¡Socorro, dioses, socorro!MÚS.– [Dentro.] El que adora imposibles [que] llueva oro, que sin él nada se vence e y con él todo. (p.1656,1).

Como efeito sonoro é interessante a sucessão da música – temade JÚPITER – ao clamor de DANAE, dando um final espetacu-lar ao sonho de PERSEO, preparando-o, pois

Cúbrese toda la gruta de MORFEOy el retrete, y vuelve a quedarsela selva como antes estaba,con las caserías nevadas, quedandoadmirado PERSEO, al versedonde primero. (p.1656,1)

Na didascália acima, estão delimitados os loci do onírico – gru-ta, retrete – em diferença com selva, espaço não-onírico. Essaespacialização variada e diversificada expressa a teatralidade econfere a especificidade dos signos; o espaço é delimitado pelossignos que, por sua vez, garantem a peculiaridade do espaço.

PER.– Oye, aguarda, escucha, espera; que aunque seas poderoso, Júpiter, vengaré en ti de mi madre... Mas ¡qué loco del sueño despierto! Pues nada veo, nada oigo de cuanto veía y oía. ¿No es este aquel sitio propio donde mentida ilusión contra el sangriento destrozo de una fiera mi pidió favor? Si... pues... ¿cómo... (p. 1656,1)

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As imagens do sonho foram vistas e ouvidas, passaram in-tensamente pelos sentidos, deixando a incerteza entre verdade ementida ilusión. Metáfora visiva tão intensa que o personagem sequestiona; voltando à selva, deixa o espaço dos deuses e não sesitua; ainda não despertou totalmente. Para o leitor/espectador osmirabilia se representaram, diversificando espaços, enriquecidosde personagens, de vozes, de músicas distintas – tema de DANAE,tema de JÚPITER – nuvem sagrada trazendo chuva de ouro, en-cantando na teatralização da temática de DANAE e PERSEO emteatro da memória. E lembramos os dois quadros de Tiziano: Danaerecebendo a chuva de ouro, do Museu do Prado, Madrid, e o outroda Galeria Nacional de Capodimonte, em Nápoles.

2.5 Visão subjetiva

A visão subjetiva é individual, pessoal, intelectiva. São deexemplos de visões celestiais, em que o sujeito da metáfora visiva,tendo alcançado um grau de espiritualidade superior, deixa o sensí-vel e ascende ao inteligível. Há exemplos muito significativos e seobserva, também aqui, o caráter propagandista do teatrocalderoniano, exaltando homens insignes pela fé, ilustrando a ri-queza do catolicismo na divulgação e exemplificação daqueles pri-vilegiados que puderam ver e ouvir mensagens divinas, trazidaspela Virgem que se lhes mostra radiante, jovem e bela menina, comose pintan. Ou a visão de um anjo, serafim enviado do supra-celestial,trazendo a mensagem de Deus para SAN PATRICIO, por exem-plo. Na estreita relação entre poesia e pintura, Calderón teatraliza atemática da visão subjetiva, presente em inúmeras telas de pintorescontemporâneos, tornando-as quadros vivos na representação tea-tral. Lembramos os quadros mais significativos dentro da pinturaespanhola do século XVII: Éxtasis de san Francisco, La cocina delos ángeles, de Murillo; Visión de san Francisco de Asis (o anjo lhetraz uma garrafa com água); La tentación de fray Diego de Orgaz,La misa del padre Cabañuelas, La flagelación de san Jerónimo,La tentación de san Jerónmo, pintados por Zurbarán. A visão sub-jetiva está teatralizada em outras obras de Calderón de la Barca,como a visão de São Ildefonso em Origen, pérdida y restauraciónde la virgen del sagrario (v.I, p.581,2); em La aurora enCopacabana (idem, ibidem, p.1337,2). A influência inicial da pin-

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tura na cenografia, principalmente pelos recursos oferecidos pelaperspectiva abrindo espaços, permite a concretização de diversosplanos na representação teatral; admite, ainda mais, que a pinturaseja levada para a cena, como elemento constitutivo e indispensá-vel na expressão da teatralidade. A poesia dramática pinta compalavras o quadro vivo da representação teatral; El oído escuchapinturas que la lengua/pincel pinta (AMADEI DE PULICE, 1981,p.110), enquanto a expressão pictórica dos grandes artistas seteatraliza em muda poesia: ut pictura poesis.

Retomamos a obra El gran príncipe de Fez, ato II, situa-ção 27, por apresentar um exemplo muito significativo de visão,demonstrando sua individualidade e subjetividade:

El terremoto, y con esta faena se descubre elbajel, en que vendrán el PRÍNCIPE, CIDE HAMET,ALCUZCUZ y otros marineros.

TODOS.– ¡Piedad, cielos!UNOS.– Amaina la vela,

.............................El terremoto siempre.

PRÍNC.– Suerte impía,¿no basta ver contra míque airados los vientos giman,que inquientos bramen los mares, Enciéndese el mar, echando fuego entre las ondas.que fieros aun no me admitanlos montes, sino el fuegotambién sañudo me embista?¡Oh, cuántos flechados rayoscontra mí las nubes vibran!De cuyo incendio, al caeren agua sus culebrinas,en vez de apagarse, abrasan:pues las ondas encendidasvolcanes de fuego abortan,etnas de llamas respiran,¿No veis, páramos de nievedar por espumas cenizas?

UNO.– Nada vemos, sino soloque sueñas. (p.1392,2)

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Somente o PRÍNCIPE vê o que se pinta sobre as águas; somenteele precisa e deve ver e ouvir intensamente, pois é ele o escolhido.

Cenas com terremoto, isto é, com o mar revolto e risco denaufrágio são muito freqüentes no teatro calderoniano; permitem autilização de recursos cênicos para dar espetacularidade à repre-sentação; apresentam uma dinâmica de intensa dramaticidade, fa-vorecendo e preparando sua função: aqui, por à prova a fé do mu-çulmano, assisti-lo a rejeitar sua Seita, glorificando o catolicismo,dentro da devoção mariana. A didascália sucinta ressalta a réplicapormenorizada do PRÍNCIPE, didascália implícita, pintura para oleitor/espectador que, inicialmente, não está indicada na didascáliaexplícita, deixando evidenciada a representação virtual. A naturezarebelada deixa inferir vários signos da representação: a dinâmicados ventos, o bramir dos mares e o fogo sañudo mostram a acumu-lação de signos que desvelam uma visão infernal. É a condenaçãodo seguidor do profeta, impasse visionário negando o poder daSeita. O campo semântico evidencia o mar transformado em fogo:fuego, flechados rayos, incendio, abrasan, ondas encendidas,volcanes de fuego, etnas de llamas. A composição de lugar é oinferno; a réplica do personagem apresenta uma seqüência dos sen-tidos: ¿no basta ver contra mí/que los airados vientos giman/queinquietos bramem los mares,. A sensibilidade está evidente: ver,ouvir gemidos e bramidos; ver o fogo do inferno:

ver con la vista de la imaginación la longura, anchura yprofundidad del infierno.(...) ver con la vista de la imaginación los grandes fuegosdel infierno. (LOYOLA, 1982, p.226)

O futuro converso, como os iniciantes jesuítas, encontra-se na pri-meira semana dos Exercícios Espirituais. A visão do inferno o leva arefletir sobre o Profeta:

PRÍNC.– Tan sobrenatural pasmosin duda quiere que digaque no es bastante el Profetaa quien mi fe peregrina,para ampararme; y pues élme desampara y olvida,de su ingratitud apele

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al favor de la divinadeidad, que del feudo exentasu mismo Alcorán publica.¡María!, mi vida ampara. (p.1393,2)

Há o confronto religioso. Em sua réplica o PRÍNCIPE leva, tam-bém, todos a refletirem sobre a falsa e a verdadeira religião. Viaja aMeca, em peregrinação, para agradecer a vitória alcançada, sobreo rei de Marrocos. Sua viagem, é portanto, um ato de fé, não reco-nhecido pelo Profeta que o desampara. Por isso clama por Maria.O BUEN GENIO ou Anjo da Guarda intervém:

. – Sí hará, que nadie apellidasu piedad que no la hallepiadosamente benigna. (p.1393,1)

Um novo espaço na representação confirma o ÁNGEL comointermediário, define sua espacialização diferente de humana,de inferno e, sim, de céu, divina; indicia o cessar da tempestade,a resposta ao apelo veemente, a afirmação da fé católica e doculto mariano:

Ábrese una nube sobre el bajel y vese una Niñavestida de Concepción en ella sobre un dragón. (p.1393,1)

Essa situação 29 formaliza o redimensionamento do espaço. O PRÍN-CIPE ao clamar por MARÍA declara sua fé, após a visão do inferno.

MÚS.– [Que canta dentro de la nube.]Templen vientos y mares,templen sus iras,pues de paz el irissale en María. (p. 1393,1)

Observamos a oposição entre os signos acústicos: os gemidos dosventos, os bramidos dos mares são substituídos por dulcísimasarmonías; sons infernais dão lugar a músicas celestiais; o céu subs-titui o inferno. A música é a ordem de MARÍA e a forma imperati-va templen determina a ação: o cessar do terremoto, a paz da bo-nança com o arco-íris, simbolizando a Virgem, união entre o céu ea terra, entre o divino e o humano.

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PRÍNC.– Si el fuego no veis, ¿no oísdulcísimas armoníasen los vientos?

TODOS.– Nada oímos.PRÍNC.– ¿Luego no veréis que brilla

sobre las nubes el Irisde la paz, de quien la ninfaverdadera y pura esuna bellísima niña,que coronada de estrellas,y rayos del sol vestida,con la luna por coturno,la frente de un dragón pisa,diciendo su salva, en fede que sobre ellos domina?...

ÉL y MÚS.– Templen vientos y mares,templen sus iras,pues de paz el Irissale en María.

UNO.– Nada oímos.CIDE.- Nada vemos,

sino solo que retirasus sañas el mar. (p.1393,1)

A réplica do PRÍNCIPE, didascália implícita, cenografia verbal,desvela para o leitor e descreve para o espectador, complementandoa didascália explícita inicial. O espaço da Virgem é a nuvem, índicedo celeste, o não-terreno, da paz, diferente daquelas nuvens queemitiam raios, nuvens infernais: !Oh, cuántos flechados rayos/con-tra mí las nubes vibran. Evidenciamos, em diferença, o signo nube.Primeiramente, índice da tempestade, símbolo do inferno, emitindoraios, é o castigo do não-cristão. Representa, em seguida, a desig-nação do espaço e não apenas com valor decorativo: espaço aéreo,luminoso, celeste. Espaço que se abre, deixando ver una bellísimaniña,/ que coronada de estrellas,/ y rayos del sol vestida,/. Paradigmade outras niñas representadas em quadros de Zurbarán – ImaculadaConceição, do Colégio Imperial de Na.Sa. do Carmo, de Jadraque.Imaculada Conceição com dois jovens clérigos, Museu de Arte daCatalunha, Barcelona. Murillo – A imaculada de Aranjuez, do Museudo Prado, Madrid; Imaculada Conceição, pintada para o Hospitaldos Veneráveis Sacerdotes, Museu do Prado; O Triunfo daImaculada, no Louvre. Em todos esses quadros encontram-se osmesmos signos, o mesmo espaço, evidenciando claramente a es-

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treita relação entre a poesia e a pintura, no teatro calderoniano.À réplica do personagem, didascália implícita, cenografia

verbal, como já assinalamos, podemos acrescentar a expressão tãofreqüente nas didascálias calderonianas, voz do autor: como sepintan. Complementam-se os signos do locus: con la luna porcoturno,/ la frente de un dragón pisa,/. Luz, estrelas, lua são signospresentes também na representação pictórica, símbolos do espaçoceleste. Porém, o signo dragão destaca-se em diferença. Como sím-bolo da seita maometana deve ser esmagado pelo culto mariano.Nas representações da Imaculada Conceição, o quadro onde a Vir-gem tem sob os pés um dragão com maçã na boca é o de Murillo AImaculada Conceição, do Museu Cerralbo de Madrid.

Alternando com a réplica do PRÍNCIPE, ele e a MÚSICAentoam a estrofe, diversificando a simples alternância; e o persona-gem ao entoar a música indicia seu envolvimento e aceitação docelestial; na hierarquia humana, ele deixa o sensível e, no inteligível,com a vista imaginativa, ele vê a imagem celeste, ouve e entoacânticos celestiais. Os demais personagens, dentro da hierarquiahumana, permanecem no sensível; não vêem, não ouvem, pois ointeligível é inalcançável para eles.

Como nos Exercícios Espirituais, o colóquio entre o PRÍN-CIPE e a VIRGEM se efetiva, pois ele a tem presente, como ima-gem através da vista imaginativa:

PRÍNC.– ¿Qué quieresde mí, beldad peregrina?

LA VIRGEN.– Vuelve Mahomed, vuelve a Malta,donde te espera la dichade que salgas de una vezde aquellas dudas antiguas;pues el haberme invocadobasta para que consigaslibrarte de esa tormenta,y saber con fe más viva.

ELLA y MÚS.– Que Cristo y María sonlos que del feudo se libran,Cristo, por naturaleza,y por gracia, María.

As palavras da Virgem elucidam o texto do Corão, capítulo III, v. 35:

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“Del imperio de Satán(dice) solamente fueronMaría y el Hijo suyotan divinamente exentos,que no pagaron el grandetributo del universo”. (p. 1366,1)

É interessante a concordância entre a Seita e o cristianismo. Ossignos feudo e tributo referem-se à mancha do pecado original,estando Cristo isento por sua natureza divina; e Maria por suamaternidade virginal, por graça. Oposição entre o divino e ohumano. Entretanto, o sentido do texto continua sendo um enig-ma, um hieroglifo a ser decifrado pelo PRÍNCIPE. As palavrasda VIRGEM, formalizadas na estrofe cantada por ela, um mote,acompanhada pela Música e a representação de sua imagemformalizam para o príncipe um emblema ou hieroglifo, enigmacujo significado deve ser desvendado por ele em Malta.

PRÍNC.– ¡A Malta, a Malta otra vez,amigos! (p.1393,1)

Voltar a Malta é antes de tudo obediência; é desistir da peregrina-ção a Meca; é renunciar à fé mahometana, converter-se. A réplicade MARÍA, enunciada em imperativo vuelve,... vuelve, determinaa dinâmica da ação:

TODOS.– Pues ¿qué te obliga?PRÍNC.– No sé, si nunca sabré

si tan grande maravillaes revelación o sueño;pero sé que siempre diga...

ÉL y MÚS.– Que Cristo y María sonlos que del feudo se libran:Cristo, por naturaleza,y por la gracia, María. (p.1393,2)

A visão do PRÍNCIPE foi representada em apariencias, recursomuito freqüente na expressão de espaços imateriais, mentais, ce-lestes, metáforas visivas, pelo uso de cortinas que eram corridaspara mostrar uma nova espacialização.

A visão como mirabilia na réplica do personagem confir-

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ma o objetivo doutrinal e propagandístico atingido, pois o PRÍN-CIPE entoa com a MÚSICA a estrofe cantada pela VIRGEM.

É importante assinalar que as duas situações não são lon-gas; a relação entre uma e outra, abrindo espaços diversificados eopostos, formaliza a teatralidade, na representação de um espaçodentro de outro espaço; ao infernal segue-se o celestial; e, bastan-te significativo: duas estrofes diferentes são cantadas e devemapresentar músicas diferentes; como expressão da teatralidadepermite depreender, portanto, a relação texto/representação, ondeinferimos os signos, expressividade da espacialização; enfim, acenografia da visão subjetiva como representação do maravilho-so no teatro da memória.

2.6 Visão através do espelho

A tradição do espelho mágico é bastante antiga e presente naexpressão popular, em contos maravilhosos e na expressão culta;manifesta-se no sagrado e no profano. El purgatorio de San Patricioexemplifica a visão através do espelho e formaliza a metáfora visivacomo individual, subjetiva. Foi escrita provavelmente em 1628 epublicada na Primeira Parte de Comedias do autor em 1636. Porém,El jardín de Falerina evidencia a aparição no espelho mágico, carac-terizando a visão coletiva, expressando, desse modo, a visão e apari-ção através do espelho, diferente da visão subjetiva, individual. Co-média novelesca, cujo paradigma é a lenda da Insula Firme, de Amadisde Gaula, baseada em mito greco-latino, tendo como precedente afamosa ilha encantada de Circe na Odisséia; consta de dois atos e éconsiderada uma zarzuela pela música existente para sua representa-ção. Também, La púrpura de la rosa e El Conde Lucanor são exem-plos de visão e aparição através do espelho. A primeira é obra de umato e escrita para ser cantada, foi representada em Palácio, Madrid,em 5 de dezembro de 1660 com representacion musica de Zarçuela,en la publicacion de las Pazes y felizes bodas de la SerenissimaInfanta de España Maria Teresa, con el Christianissimo de FranciaLuis XIV (VALBUENA BRIONES, 1969, p.1766). El CondeLucanor, ha sido incluída en la Parte XV de Comedias varias delaño 1661 (VALBUENA BRIONES, 1987, p.1955).

Exemplifica a visão através do espelho a obra El purgatoriode San Patricio. No I ato, situação 10, em presença do gracioso

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PAULÍN, o Santo faz a sua prece:

¡Oh señor, qué alegre vivoen las soledades hoy;pues aquí podrá adorarosel alma contemplativa,teniendo la imagen vivade vuestros prodigios raros!En la soledad se hallóla humana filosofía,y la divina querríapenetrar ella yo. (p. 187,2)

Essa primeira parte da réplica do Santo é uma introdução aos lou-vores divinos e permite a identificação espiritual do personagem,alma contemplativa, que deixou a via purgativa. Esclarece seuposicionamento na hierarquia humana e depois de ser interrompidopelo gracioso, PATRICIO prossegue seu colóquio com Deus:

. – Causa primera de todosois, señor, y en todo estáis.Esos cristalinos cielos,que constan de luces bellas,con el sol, luna y estrellas,¿no son cortinas y velosdel empíreo soberano?Los discordes elementos,mares, fuego, tierra y vientos,¿no son rasgos de esa mano?¿No publican vuestros loores,y el poder que en vos se encierra,todos? ¿No escribe la tierracon caracteres de floresgrandezas vuestras? El viento,en los ecos repetido,¿no publica que habéis sidoautor de su movimiento?El fuego y el agua luego¿alabanza no os previenen,y para este efecto tienenlengua el agua y lengua el fuego?Luego aquí mejor podré,inmenso señor, buscaros,pues en todo puedo hallaros:

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vos conocisteis la fe,que es de mi obediencia indicio;esclavo os serví de mí,sí no, llevadme de aquía donde os sirva. (p. 187,2)

Inúmeros signos referem-se à natureza na réplica do personagem.No espaço cristalinos cielos, cortinas y velos/del empíreo soberanositua sol, luna y estrellas. PATRICIO tem sua atenção voltada para oalto; volta-a, em seguida, para o baixo: mares, fuego, tierra y vientos,discordes elementos. Uma nova relação se estabelece: alto, harmo-nia; baixo, discordância, desarmonia. O Santo sabe ler as grandezasdivinas na escritura da natureza: ¿No escribe la tierra/con caracteresde flores/grandezas vuestras? O signo flores, é letra, é escritura, sím-bolo da magnitude divina. Ele ouve e entende el viento,/en los ecosrepetidos. Ele conhece a linguagem de alabanzas do fogo e da água.Enfim, leitor da natureza, penetra seu sentido, reconhecendo e lendoa escritura, decifrando a linguagem, ouvindo e distinguindo os sons,vozes da natureza, expressão divina. O Santo começa sua enumera-ção pelo plano celeste, nomeando o empíreo; desce ao plano elemental,nomeia os quatro elementos e estabelece distinções. Há, portanto,um movimento do alto para baixo e PATRICIO se situa espacialmen-te: Luego aquí mejor podré/inmenso señor, buscaros; ordena emenumerações e estabelece simpatias e tem como vínculo sua palavrade fé que apreende o amor em toda a Natureza, pela presença divina.Em conseqüência, o Santo deixa o sensível e alcança o inteligível; ecom a vista imaginativa ouve e vê. Como leitores, somos espectado-res do teatro da memória:

En una apariencia, un ANGEL que trae un espejoen el escudo y una carta. (p.188,1)

Como visão subjetiva, individual, somente PATRIICIOouve e vê o ÁNGEL, em representação mental:

ÁNG.– ¡Patricio!PAT.– ¿Quién me llama?ÁNG.- Yo.PAT.– Mis grandes dichas no creo,

pues una nube mis ojosven de nácar y arrebol,y que de ella sale el sol,

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cuyos divinos despojosson estrellas vividoras,que entre jazmines y floresviene vertiendo esplendores,viene derramando auroras. (p.188,2)

O signo nube, uma vez mais espacializa o celeste, o superior; sim-bolizando o divino, transforma-se em ícone no quadro representa-do; ícone constante nas representações barrocas, criando espaçosdentro de espaços, delimitando o divino e o humano. E na réplicado personagem, a iconografia se revela em outros signos: nácar yarrebol, sol, estrellas vividoras, vertiendo esplendores, derraman-do auroras. Tudo se faz luz, diferentemente de PATRICIO escra-vo. A caracterização do personagem enunciada na didascália dasituação 8, Patricio de esclavo, é, pois, de extrema importância,configurando paradigmaticamente, tantas representações do Sécu-lo de Ouro, quando o teatro se torna o quadro vivo, exemplificandoos grandes nomes da Igreja, opondo humildade humana a visõescelestiais. Desse modo, a relação icônica com o universo pictural ehistórico do século XVII é evidente, sendo o espaço da teatralidadela representation plus ou moins mediatisée (UBERSFELD, 1978,p.168) E se o espaço cênico é o ícone do texto poético, podemosafirmar que na estreita relação entre pintura e poesia, ut picturapoesis, no texto em análise, a espacialização cênica é duplamenteícônica, em sua formalização paradigmática.

No colóquio, prática de conhecimento místico,depreendemos a hierarquia do ÁNGEL, sua identificação e o ob-jetivo de sua presença:

ANG.– ¡Patricio!PAT.– Un sol me acobarda.

¿Quién sois, divino señor?ANG.– Patricio amigo, Víctor

Soy, el ángel de tu guarda:Dios a que te dé, me envía,Esta carta. Dale la carta.

PAT.– Nuncio hermoso,paraninfo venturoso,que en superior jerarquíacon Dios asistes, a quienen dulces, en sonoro cantollamas: ¡Santo! ¡Santo! ¡Santo!gloria los cielos os den. (p.188,1)

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No diálogo, o personagem desvela para o leitor/espectador a superi-oridade do ÁNGEL; o signo sol, ícone na representação, delimita oespaço, com o ÁNGEL todo luz. Em diferença, assinalamos a sim-plicidade do escravo e a luminosidade divina. Como Anjo da guardade PATRICIO é enviado de Deus, trazendo-lhe uma mensagem e opróprio santo esclarece a hierarquia do divino representante: paraninfoventuroso,/que en superior jerarquía/con Dios asistes. A definiçãoda hierarquia do ÁNGEL é aux yeux de Denys, le lieu de la conditiondu sacré (ROQUES,1970, p. XLII). É interessante notar, uma vezmais, que à superioridade do mensageiro celeste corresponde a hie-rarquia humana em que se encontra o Santo. A condição divina deum reflete a superioridade humana do outro, como em espelho:

l’idéal de la hierarchie terrestre est de réaliser une imageaussi parfaite que possible de la hiérarchie céleste, toutcomme, á l’intérieur de chacune, l’ideal de tout ordre est dese “conformer” aussi pleinement que possible à l’ordre quile précède, le premier de tout se modelant lui-même, autantqu’il est permis, sur le principe même de toute divinisation(Idem, ibidem, p.XLV)

Desse modo, o mensageiro divino pertence à primeira tríade dahierarquia celeste – serafins, querubins, tronos -, indicando sua pro-ximidade do Princípio divinizador, de onde ele recebe primeiro

les iluminations théarchiques, dans leur tout premier éclatet selon toute viguer originelle. Elle entoure Dieu de façonpermanente, et la tradition rapporte qu’elle estimmédiatement unie à Lui, avant les autres et sansintermédiaire (idem, ibidem, p.XLIX)

Essas observações esclarecem a importância simbólica eiconográfica da visão de SAN PATRICIO, no contexto contra-reformista e, como representação do maravilhoso, expressam odesejo de escapar a la naturaleza humana y perderse en Dios(MÂLE, 1985, p.146). E o diálogo prossegue:

ANG.– Lee la carta. .....................................

PAT.– Dice así:“Patricio, Patricio, ven,sácanos de esclavitud.”

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Incluye mayor virtudla carta, pues no sé quiénme llama. Custodio fiel,mi duda en tus manos dejo.

ÁNG.– Pues mírate en este espejo.PAT.– ¡Ay cielos!ÁNG.- ¿Qué ves en él?PAT.– Diversas gentes están,

viejos, niños y mujeres,llamándome.

ÁNG.– Pues no esperestanto tu afán a redimir.Esta es la gente de Irlandaque ya de tu boca esperala doctrina verdadera.Sal de esclavitud; que mandaDios que prediques la feque tanto ensalzar deseas;...........................................

y venconmigo ahora arrebatadoen el viento; que ha mandadoDios que noticia te dende una empresa que guardadatiene el mundo para ti;y conmigo desde aquíhas de hacer esta jornada. Sube la apariencia hacia lo alto y sin cubrirse. (p.188,2)

O ÁNGEL é o portador dos clamores do povo da Irlanda. O signocarta, em metonímia, expressa a relação entre PATRICIO, o ÁNGELe Deus; e entre PATRICIO, o ÁNGEL e a Irlanda. O ÁNGEL émensageiro de Deus, trazendo a carta, mas o apelo contido nela é odo povo da Irlanda. Essa relação metonímica, como entrelaçamento,tessitura entre o divino e o humano, estabelece a representação domaravilhoso e dá prosseguimento a ação. Porém, carta, como signo,incluye mayor virtud, isto é, indicia algo que está além dela e seencontra no ÁNGEL: a carta é uma mensagem divina; porém, decla-ra o Santo: pues no sé quien me llama. Embora trazida por um por-tador divino, a carta é anônima e deixa dúvida. O nome se faz ima-gem no espelho mágico. Trata-se de um olhar, trata-se de ver a ima-gem especular à distância. E se estabelece o jogo entre nome e ima-gem: Diversas gentes están/viejos, niños y mujeres,/llamándome.

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Jogo entre metáfora visiva e a palavra: Esta es la gente de Irlanda;jogo entre o texto e a representação, quando da elocução dos perso-nagens desvelamos a metáfora da representação. No espelho mági-co, espelho da verdade, a metáfora visiva se realiza e le langagereflète la pensée comme un miroir, permitindo a representação doteatro da memória, pela vista imaginativa, no inteligível.

A espetacularidade do maravilhoso se completa comPATRICIO arrebatado en el viento pelo ÁNGEL. Sube la aparienciahacia lo alto y sin cubrirse. Aparência efectista, tramoya ou pescanterepresentando as maravilhas divinas, no teatro da memória.

2.7 Visão e Aparição através do espelho

Exemplifica a visão e aparição através do espelho mágico –diferente da visão de SAN PATRICIO - a obra El Conde Lucanor;aqui a visão se efetua por ato de magia, formalizando a visão eaparição, uma vez que a metáfora visiva do espelho é vista porduas ou mais pessoas. Como mencionamos, anteriormente, outrasduas obras de Calderón de la Barca formalizam a visão e apariçãoatravés do espelho: El jardín de Falerina e La púrpura de la rosa.

El Conde Lucanor faz parte das comédias novelescas –baseadas na épica cavaleiresca – embora o próprio organizador daedição, Ángel Valbuena Briones, manifeste suas dúvidas, justifi-cando a inclusão da obra por ser el aspecto fantástico el que mejorla caracteriza, la hemos determinado en ese grupo (VALBUENABRIONES, 1969, p.1955). Foi incluída na Parte XV de comediasvarias del año 1661.

No I Ato, situação 5, a didascália informa:

[Por una parte sale un Guardacon FEDERICO, viejo venerable, ypor otra el otro con IRIFELA, ves-tida de pieles.] (p. 1961,1)

Há duas entradas para a cena e a diferença entre os personagensexplicita a diversidade da dinâmica espacial, justificada pela didascáliada situação 1:

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[Egipto. – Trozo de Selva, cercana al mar,entre una gruta y una torre.] (p.1958,1)

Se relacionamos personagens e espaço, evidenciamos que a torre éo espaço de FEDERICO, Duque de Toscana, prisioneiro doSOLDÁN do Egito; a gruta é moradia da maga, personagem ca-racterizado como primitivo. Na situação 5, a réplica do persona-gem Ptolomeo, Soldán de Egipto, é apresentada a maga:

. – Irifela, esa gitana,que en las estrellas apura,árbitro de las estrellas,todas las cosas futuras,si ya no es, como otros dicen,que en las mágicas que estudiadiabólico genio inspiray negro espíritu pulsa; (p. 1961,2)

Calderón de la Barca relaciona a gitana ao Egito: ser cigana é seregípcia. IRIFELA é caracterizada, primeiramente, como astróloga;sabe ler as estrelas, apurar o futuro; e como árbitro de las estrellaslhe é conferido um título muito significativo, pois etimologicamente,árbitro vem do latim arbiter, -iter, em cuja significação está senhordo destino de; senhor; dominador. Desse modo, o signo gitana, alta-mente motivado no contexto seiscentista, desvela, em polissemia, asemantização: gitana, astróloga, senhora do destino; senhora edominadora dos astros pode julgar, arbitrando, suas influências. Atri-buições conferidas à cigana que en las mágicas que estudia desvelaainda mais a polissemia do signo gitana: ela é também maga e, comotal, tem estudos. A réplica do SOLDÁN, didascália implícita, apre-senta para o leitor/espectador o personagem IRIFELA; réplica deextrema importância, pois sucintamente indicia o personagem res-ponsável por um dos fios da tessitura da ação: IRIFELA vence dis-tâncias, desvenda o caráter de personagens, prediz o futuro e aprisi-ona, por suas palavras, o destino de outros, impedindo determinadasações para que outras sejam ativadas. Ela é árbitro de las estrellas.Por isso, é preciso refletirmos um pouco mais sobre essa designação.

O século XVII recebe do Renascimento uma cultura astro-lógica e não se pode falar apenas em crer ou não crer na astrologia. Oantropocentrismo renascentista, diverso do teocentrismo anterior,permite a conscientização da capacidade do homem de atuar sobre a

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natureza e a ordem do universo. O homem, o grande milagre, criadoà imagem de Deus, é também deus. Como astrólogo é capaz de leros astros, alcançar suas influências, desviá-las ou transformá-las. Porisso, ele é árbitro de las estrellas, senhor do destino de, senhor,dominador dos astros e, portanto, dos homens:

IRIFELA.– [Cantando dentro.]Inconstante fortuna,condicional imagen de la luna,por más que en mí tus iras ejecutas,no es infeliz quien de tus iras triunfa. (p. 1959,2)

É preciso não esquecer as inúmeras obras de Calderón de la Bar-ca em que os personagens são retirados a torres, grutas, paraevitar a influência dos astros; isso desde La vida es sueño, comotambém Las cadenas del demonio; e como exemplo de paródiado poder do astrólogo, lembramo-nos de El astrólogo fingido.

IRIFELA é também maga; e na réplica do SOLDÁN háo ressentimento, como acusação, pois ele está dominado porsuas previsões:

IRIFELA.– Excusaesta jornada, Soldán,porque los hados te anuncianque del duque de Toscanaserás prisionero: cuyapersona tu libertadfacilita o dificulta,pues ella ha de ser el preciodel rescate de la tuya. (p. 1961,2)

O signo mágicas inclui estudios, portanto a magia está ligada àsabedoria. No auto sacramental La lepra de Constantino,Maxencio, en síncopa Magio (p1801,1) explica:

MAX.– por quien de mago (que quieredecir sabio) el apellidocorrompió el nombre de Maxencio.(p. 1804,1)

Durante todo o século XVI, continuando no XVII, o mago é umsábio, como declara Giordano Bruno em Sobre Magia:

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En primer lugar Mago equivale a sabio, como losTrimegistos en Egipto, los Druidas en Galia, losGymnosofistas en la India, los Cabalistas entre los Hebreos,los Magos en Persia desde Zoroastro, los Sophi en Grecia,los Sapientes entre latinos (Idem, ibidem, 1985).

A relação entre os personagens – o SOLDÁN e IRIFELA– está intimamente ligada a ação da obra; na réplica dele está aacusação a ela; por isso ele se refere à magia que diabólico genioinspira/ y negro espíritu pulsa, paradigma de outras obrascalderonianas. Em El mágico prodigioso, o diabólico genio realizaprodigios, maravilhas pela ciência posta em prática nas diversastransformações com que atua junto a Cipriano e Justina. E o exem-plo mais significativo está em Las cadenas del demonio; este seincorpora em Irene e ela fala con voz del demonio (CALDERÓNDE LA BARCA, 1969,p.666,2). O mais interessante é que se en-contram nessas duas obras de Calderón de la Barca referências àsestatuas falantes, magia graças a qual os sacerdotes egípcios ani-mavam as estátuas dos deuses (YATES, 1990, p.32-56):

DEM.– que ya dejami engaño este ídolo mudo,faltándole mi asistencia; (p.654,1)

SAN BART– ..........no es fingido simulacroen cuya errada asistenciahabla el espíritu impurodel demonio. (p. 653,2)

CIP.– Esto se hallaen las dudosas respuestasque suelen dar sus estatuas. (p. 610,2)

bem como à confecção dessas estátuas:

SAC. – Ya desde aquí la imagen se termina, y corre a sus aras la cortina. (p. 651,2)

É a permanência da tradição hermética egípcia, referida no Século deOuro, presente na cultura dos primeiros séculos da era cristã erevivenciada por Marsilio Ficino, a partir de 1463, em suas traduções

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do Corpus hermeticum (Idem, ibidem, p.25)Retomando as considerações sobre astrologia e magia em El

Conde Lucanor, assinalamos a réplica do SOLDÁN, situação 5:

.– Adivinadas desdichas,si no creerlas es cordura,no es cordura no temerlasporque en estas conjeturas,si el crédito es liviandad,es temeraria la burla. (p. 1961,1)

Crendo ou não crendo nas mágicas ciências, os personagenscalderonianos fazem suas consultas; ainda na situação 5 do I ato,preparando a visão através do espelho mágico de IRIFELA, lemos:

SOL.– Irifela...IRIF.– ¿Qué me mandas?SOL.– En tus mágicas astucias,

de cuantas veces afliges,alivia siquiera una.Di a Federico y a mí,destos tres que le consultanen lo personal, qué prendastienen, qué costumbres usan.

IRIF.– Como los dos entréis solosen mi habitación, la lunade un espejo os mostraráqué virtudes los ilustran,qué vicios los acompañany en qué ejercicios se fundan................................................ (p.1969,1)

FEDER.– [Aparte.]Sea disculpade aquesta supersticiónser infiel quien la ejecutay quien la manda, a que yoen ningún pacto concurra. (p. 1963,2)

Ao chamamento, contesta IRIFELA e a relação ordem/obediência,superior/inferior se estabelece. À réplica indagadora da maga, segue-se a do SOLDÁN, aludindo, uma vez mais, à previsão e reiterando opoder da mulher; dois signos se destacam: afliges, alivias, opondoplural e singular: cuantas veces, siquiera una. É interessante obser-var que a relação ordem/obediência, SOLDÁN/IRIFELA, embora

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permaneça socialmente, há uma inversão no plano da ação, pois ela éárbitro, e, em virtude de sua magia, decorre grande parte da ação.Personagem maga, ela conduz o fio da ação, estando todos sob o seudomínio. Ela é a maga da ação, a maga da teatralidade.

Na réplica de FEDERICO, Duque de Toscana, o signosuperstición atribui uma nova conotação à magia. E outra relação seestabelece entre os personagens: ser infiel quien la ejecuta/ y quienla manda. Infiéis/fiéis, não cristãos/cristãos, egípcios/castellanos des-velam a profunda diferença entre cristãos, mouros e ciganos, presen-ça marcante na cultura espanhola.

A magia tem seu espaço onde atua Irifela. A mudança se faznecessária; fiel e infiéis devem reunir-se, o mesmo e o outro na grutada magia; o DUQUE e o SOLDÁN devem deixar seus espaços,transpor suas fronteiras e penetrar no espaço mágico da mulher.IRIFELA conduz a ação e a magia se realiza, pois la luna/de unespejo os mostrará.

O signo luna, metaforicamente, é espelho; ali se mostrarãovirtudes e vícios, isto é, a verdade de cada um. Mas Inconstantefortuna,/condicional imagen de la luna,/por más que en mí tus irasejecutas,/no es infeliz quien de tus iras triunfa. Do conhecimento devirtudes e vícios dos pretendentes – ASTOLFO, Príncipe da Rússia eCasimiro, Príncipe da Hungria – à mão de ROSIMUNDA, filha doDUQUE, será decidida a libertação de FEDERICO. O signo luna,polissêmico, é também o “astro” onde se lê a inconstante sorte decada um. E a didascália da situação 6 define o espaço:

[Una gruta; en el fondo, una gran cortina].

Salen el SOLDÁN y FEDERICO, guiados porIRIFELA, con un hacha encendida.

IRIF.– La negra tez desta antorchade norte os sirva.

SOL.– ¡Qué oscuralóbrega estancia!

FEDER– ¡Qué senotan horroroso!

SOL.– La mudanoche, aquí de asiento vive. (p. 1963,1)

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O espaço exterior, selva, opõe-se à gruta cuja espacialização é de-finida por signos de conotação negativa: oscura lóbrega estancia/seno tan horroroso/; e, em muda noche, completa-se a semantizaçãocom o signo muda; porém, no espaço todo escuro, inclusive em lanegra tez desta antorcha, destacamos antorcha. E, na dinâmicados personagens em cena, é IRIFELA que os guia e, senhora daação, domina o espaço; ela conduz a luz, hacha encendida, naescuridão da gruta; quadro barroco: o signo luz em posição dian-teira é seguido da sombra do SOLDÁN e do DUQUE. A gruta é oespaço do desconhecido e ignorado; IRIFELA, como maga, con-duz a luz da verdade que se quer conhecer.

[Corre IRIFELA una cortina y se descubre un espejo.]

IRIF.– ¿Qué os asombra? ¿Qué os perturba? ¿Quién son los tres que has de ver? (p.1963,1)

O signo cortina, na cenografia, é o elemento que se abre para asapariencias; abre-se em outros espaços, loci de representaçõespela composição de lugares por IRIFELA. Esta, indagando aosdemais, ¿- qué has de ver?, os incita; e eles, com a vista imagi-nativa, em mirabilia, verão à distância, na metáfora do espelho,a leitura feita por IRIFELA na condicional imagen de la luna.A maga lê o astro, lê a natureza, porque:

La naturaleza es el espejo terso que refleja el mundodivino; la reflexión humana es el espejo que reproducelos signos de la naturaleza. ...De aquí que si por mediode la naturaleza se suministra un espejo terso y plano,también por medio del arte florece y resplancede lasreglas del raciocinio.(BRUNO, 1987, p.25)

Na polissemia dos signos luna, espejo, depreendemos a estreitarelação entre os mirabilia, como metáfora visiva, implicando nacomposição de lugares mentais, reflexão humana que reproduz ossignos da natureza. Inferimos um jogo de espelhos em que a mentehumana reflete os signos da natureza, o grande espelho, que seoferece à leitura. E na atuação do mago, observamos com Plotino:

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Dans les arts magiques, toute opération est destinéeà établir un contact avec des objets qui agissentpar des influences emanées des astres avec qui ilssont en sympathie (PLOTINO, 1990, IV,4,26,p.128).

Obviamente, o espelho como lua é redondo para proporcionar umavisão plena; é objeto, é figura geométrica. E para o mago les figu-res dont il se sert, et les attitudes qu’il prend lui-même ont desvertus propres (idem, ibidem, IV,4,26,p.148). Desse modo, o magonão pode realizar nenhuma operação sem determinadas formas oufiguras; por meio dos sentidos externos, elas são concebidas a par-tir dos objetos sensíveis e se estabelecem nos sentidos internos(BRUNO, 1987,p.333)

É preciso ver, é preciso ouvir, tendo como referentes as for-mas e objetos materiais, para fazê-los atuar no teatro da memória:

IRIF.– Pues llegad a ver y oír,quién son y en lo que se ocupan. [Pónense el SOLDÁN y FEDERICO delante del espejo, mirando el uno hacia un lado y el otro al opuesto. Suenan en una parte cajas y trom- petas, y en outra instrumentos.] (p.1963,2)

Trata-se de um olhar e de olhares entrecruzados, indicando pontosdistintos de interesse. A réplica de IRIFELA subentende a movimen-tação dos outros dois personagens em cena; espacialização definidapela didascália explícita, voz do autor. Desse modo, voz do persona-gem e voz do autor definem a proxêmica, relação espacial entre ospersonagens. Depreendemos a oposição entre os signos acústicos ousonoros e, portanto, a organização de dois sistemas distintos:

SOLD.– [Dentro.]¡Arma, arma; ¡Guerra, guerra!

ASTOL.– [Dentro.]Todo sea horror y furia.

CASIM.– [Dentro.]Cantad, y todo sea amorcuanto este jardín incluya.

MÚS.– [Dentro.]Compitiendo con las selvas,donde las flores madrugan...

[Tocan las cajas.] (p.1963,2)

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A diferença entre os sistemas de signos especifica a diferença entreos personagens ASTOLFO e CASIMIRO: guerra e letras, espada yplumas. Em gritos de guerra e estrofe de letras e música, signossonoros, as réplicas dos personagens partindo de dentro – a ação nãose passa em cena – introduzem a metáfora visiva; e tocan las cajas,signo sonoro, bélico, distinguindo-se, em oposição, a réplica deCASIMIRO, seguida pela música. A sonoridade diversificada pre-para o leitor/espectador para o teatro da memória porque aqui, pri-meiramente, é preciso ouvir; e IRIFELA, tecendo vínculos no espe-lho da natureza, apela para a imaginação, induz à memória mágica;esta se faz teatro, abrindo espaços em representações dos mirabilia:

la potencia imaginativa es como un pintor, esto es, comoel consolidador de imágenes infinitas, que fabricahaciendo múltiples combinaciones con las cosas vistasy oídas. (BRUNO, 1987, p.381)

Envolvidos na magia de IRIFELA, os personagens des-crevem suas visões:

IRIF.– ¿Qué ves tú?FEDER.– Una ciudad veo

que asaltada, no hay criaturaque al furor de un fuerte jovensus incendios no consuman.

IRIF.– Tú ¿Qué ves?SOL.-Un jardín miro

que varias flores dibujan,y en él un joven hermosoque en un cenador de murtapeinándose está.

FEDER– Éste dicea las tropas con quien triunfa...

SOLD.– [Dentro.]¡Arma, arma¡~Guerra, guerra!

ASTOL.- [Dentro.]Todo se tale y destruya.

SOL.- Aquél...CASIM.– [Dentro.]

Cantad, y sea amortodo, pues al ver que adulan...

MÚS.– [Dentro.]“Los pájaros en el viento

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forman abriles de pluma” [Cubre el espejo.] (p.1963,2)

A metáfora visiva mantém a oposição entre ASTOLFO eCASIMIRO, entre espada y pluma. É interessante observar a rela-ção entre a pergunta individual de IRIFELA e a resposta doSOLDÁN e de FEDERICO. Se relacionamos as réplicas dos per-sonagens com a didáscália dessa situação 7 – mirando el uno haciaun lado y el outro al opuesto – determinamos a espacialização dorepresentado, em lugares opostos, alternando a dinâmica do olhar,a globalização da cena.

IRIF.– Ya a los dos has visto.FEDER.– Espera; no al mágico cristal cubras tan presto, hasta que me informen mejor las acciones suyas.IRIF.– Pues para que de más cerca

lo veas, otra figura fantástica te lo muestre; y así a Casimiro escucha:

[Aparece en el espejo CASIMIRO,vestido a lo húngaro, mirándosea otro espejo, que traerá un paje,siguiéndole. Músicos descubiertos,cantando.] (p.1963,1)

Na mudança da relação espacial, antes o visto é narrado e sepassa dentro; agora será de más cerca e fora. Os personagenssão figuras fantásticas, vistas com a potência imaginativa; figu-ras fantásticas como as sombras ou fantasías dos sonhos, noespaço especular imaginado do teatro da memória.

Na didascália explícita, depreendemos a caracterizaçãodo personagem – vestido a lo húngaro – e um novo jogo deespelhos: CASIMIRO mirándose a otro espejo. Um espelhorefletido em outro espelho produz imagens infinitas e, metafori-camente, texto/representação indiciam a possibilidade infinitada potência imaginativa abrindo espaços mentais, atraindo o lei-tor/espectador para dentro do espaço cênico da teatralidade.

CASIM.– [A un Músico.]Mas al propósito mío,

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de tono y de letra muda.MÚS.– ¡Ay loca esperanza vana!

¡Cuántos días ha que estoyengañando el día de hoyy esperando el de mañana!

CASIM.– Más dese tono convienela letra con mi deseo,...........................

EL y MÚS.– ¡Ay loca esperanza vana![Paseándose, vistiéndose y mirándosea cada vuelta al espejoy peinándose.] (p.1964,1)

A réplica de CASIMIRO insere uma ordem: de tono y de letra muda,determinando uma outra estrofe musical cuja alternância com suaelocução formaliza a teatralidade. A estrofe cantada reflete o estadode ânimo do personagem. O signo espejo apresenta nova conotação:é o símbolo da afetação do personagem. A dinâmica espacial estáevidente e detalhada no signo gestual: mirándose a cada vuelta alespejo. Na réplica seguinte um novo signo é enunciado: retrato.

CASIM.– ... amo a Rosimunda bella,desde que vi su retrato.¿Quién en el que enviarla tratopudiera copiar su estrellapara que admitido dellaquedara? Pero si voy,tan perfecto como soy,pintado su gusto ofendo:y así, esto en vano temiendo... (p.1964,1)

A importância do retrato aumenta sem cessar na Espanha do ‘Siglode Oro’. Representa a pessoa em sua ausência. Porém, CASIMIROgostaria que alguém copiasse em seu retrato a estrella deROSIMUNDA, isto é, o astro que a tem sob sua influência, trans-formando o seu retrato em talismã; como tal, vincularia as influên-cias astrais de ROSIMUNDA em seu retrato, veículo de simpatiaspara si mesmo. O retrato da duquesa de Toscana seria, portanto,um talismã para CASIMIRO (GÁLLEGO, 1987, p.216). Dessemodo, a polissemia do signo estrella se evidencia. Apreendemosoutra relação na réplica do PRÍNCIPE da Hungria: a diferençaentre o original e o retrato; a incapacidade da arte em representarverdadeiramente sua beleza. Por isso APELES afirma a ESTATIRA,

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em Darlo todo y no dar nada, de Calderón de la Barca:

. – Como pintarse no puedenlas perfectas hermosuras,...............................................y así habéis de perdonarme,cuando el retrato no acierte,si está en vuestra perfeccióny no en mí, el inconveniente. (p. 1046, 2 V. 2)

A música cantada por CASIMIRO, alternando com suaréplica, realça os efeitos da teatralidade. O signo estrella, empolissemia, é a sua fortuna, a sua sorte, como também, o astro doqual recebe influências negativas, no momento.

ÉL y MÚS.– “¡Cuántos días ha que estoy.”CASIM.– Pues claro está que el amor

ya la elección me asegura; ...........................................

ÉL y MÚS.– Mas ame yo, aunque padezca,pues bien mi estrella enemigahará que no lo consiga,mas no que no la merezca:y así, cuando me aborrezca,viendo a quien pierde y quien gana,quedará mi pena ufanaen sus desdenes, y yoriendo el día de hoy,... y no...

ÉL y MÚS.– “Esperando el de mañana.” (p.1964,1)

Entretanto, as últimas palavras do personagem esclarecem seu pen-samento, sua filosofia estóica diante da contenda entre pretenden-tes à mão da Duquesa de Toscana: quedará mi pena ufana/en susdesdenes, y yo/riendo el día de hoy, y no.../, completada pela músi-ca,/”Esperando el de mañana.”

[Retiránse los Músicos, repitiendo la letra.]

Elocução verbal e música formalizam a teatralidade da situação,finalizando-se com a reiteração do signo sonoro. É importanteobservar que a visão e aparição através do espelho proporciona-da pela maga IRIFELA não é individual, mas sim coletiva: a maga,

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o SOLDÁN e o DUQUE de Toscana vêem o que aparece, meta-foricamente, no espelho. Se a visão de SAN PATRICIO é indivi-dual, aqui a visão e aparição através do espelho são coletivas:

SOL.– Este es afectado y vano.FEDER.– Su presunción me disgusta;

que en el hombre, aunque es adornono es mérito la hermosura.Pero prosiga la acciónen que está Astolfo de Rusia. (p. 1964,2)

A imagem da verdade sobre ASTOLFO se apresenta. Os gritos deguerra sucedem a música e letra. A situação 11 comprova a visão eaparição através do espelho. A situação 12 dá a conhecer o CON-DE LUCANOR, não deixando de estar incluído o graciosoPASQUÍN, na situação 14. Todas essas metáforas visivas ofere-cem a abertura de espaços, formalizando a representação dentro darepresentação, envolvendo o leitor/espectador, trazendo-o paradentro do representado. O diálogo do SOLDÁN e de IRIFELA,na situação 15, é muito significativo:

SOL.- ......................y si hubierayo de hacer elección de unade las tres sombras que he visto,ésta fuera. ......................................

IRIF– La oscuranoche baja, y porque vais,al dejar mi estancia ruda,renovando la memoria,digan las tres sombras juntas... (p. 1966,1)

Os dois personagens aludem às sombras da metáfora visiva, man-tendo o signo como indiciador do espaço mental, representaçãono teatro da memória; a maga IRIFELA envolve o SOLDÁN eo DUQUE, levando-os à imaginação do que querem ver, peloentendimento do uso da vista imaginativa, em seu imaginadoespejo, formalizando as potências da alma. E a maga, como oinstrutor dos Exercícios Espirituais mostra o mesmo e o outro,espada e pluma, armas e letras, como já aludimos, na represen-tação do homem do século XVII. E, para marcar na memória, é

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preciso ver e ouvir em apoteose:

[ASTOLFO, CASIMIRO, ROSIMUNDA,LUCANOR, Soldados, música, en elespejo. Esto se ha de representar,ycantar junto, sin cesar instrumentos,cajas y trompetas hasta que acabe la escena, advirtiendo que, o se oiga o no, nadie ha de durar más que que lo que durase uno.] (p.1966,1)

2.8 Visão e aparição à distância

A visão através do espelho mágico trazido pelo ANJO aSAN PATRÍCIO é um exemplo de visão à distância, individual,subjetiva; olhar, ver o que se representa à distância formaliza aaparição através do espelho, quando a imagem visiva se mostra aduas ou mais pessoas pela atuação da maga IRIFELA, por ato demagia. A metáfora do espelho é substituída pela natureza operadaem seus elementos pelo mago. Nos dois exemplos, a vista imagina-tiva se faz metáfora visiva e o teatro da memória se representa. Ospersonagens, espectadores do representado, são envolvidos pelamagia, induzindo a imaginação a abrir espaços, espelhos imagina-dos, a deixar-se atuar.

La exaltación de la cruz, obra que exemplifica a visão eaparição à distância, por gesto de magia – diferente da visão pelametáfora do espelho mágico pela oposição individual, subjetiva/coletiva – foi publicada na I parte de Comedias escolhidas, emMadrid, em 1652. Trata de tema histórico, referente à cruz da cru-cificação de Cristo, apoderada pelos persas, quando invadiram Je-rusalém no ano 614. Os personagens históricos são: o magoMogundat, convertido ao cristianismo e na obra é ANASTASIO;ZACARIAS, patriarca de Jerusalém; SÍROES, filho de KHOSRU,rei da Pérsia, ambos representados na obra.

A divisão do I ato em situações, permite-nos a primeiradelimitação espacial: [Monte cercano a Babilonia. Una gruta]. Asemelhança entre os espaços da atuação dos magos: selva, monte,gruta se especifica. A didascália seguinte caracteriza os persona-gens e define o espaço:

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Salen SÍROES, y MENARDES, Príncipes dePersia, cada uno por su puerta, representandoal teatro, que há de ser una montaña. (p. 985,1)

Nomeados os personagens, inferimos da caracterização Príncipesde Persia o signo vestuário; este determina a classe social e a naci-onalidade. A dinâmica espacial se efetua pela entrada dos persona-gens por pontos diferentes: cada uno por su puerta. O espaço, unamontaña, define-se mais na réplica dos personagens que se apre-sentam ao leitor/espectador:

SÍR– ¡Ah del soberbio monteque, línea desigual de este horizonte,tanto a los cielos sube,que una vez es montaña y otra nube!

MEN– ¡Ah de las altas peñasque confundiendo equivocas las señasde luces y verdores,una vez sois estrellas y otras flores! (p.985,1)

As réplicas de SÍROES e MENARDES são uma invocação danatureza; a primeira desvela o signo monte, situando-o em pers-pectiva, considerando a relação de profundidade e altura no espa-ço, permitindo ser observado como montaña ou como nube. Asegunda substitui o signo monte por altas peñas; e os signos lucesy verdores formalizam a perspectiva que confundiendo equívocaslas señas ora mostra estrellas, ora mostra flores. É notória a dife-rença entre a didascália inicial explícita e a didascália implícita icônica,pois esta pinta para a imaginação do leitor/espectador a paisagem,o espaço da ação. Apreendemos a importância dos sentidos inter-nos, principalmente o da visão. A vista imaginativa é constante-mente exercitada e os espaços mentais se determinam para dar lu-gar ao teatro da memória.

Mencionados os signos no espaço exterior, as réplicas dospersonagens designam o espaço interior, evidenciando ainda maisa estética barroca:

SÍR– ¡Ah del rústico seno que ya de horror, ya de hermosura lleno, en tus breñas incultas el prodigio de Asia nos oculta!

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MEN– ¡Ah del albergue esquivo que verde tumba del cadáver vivo, cuando en ecos respondes, el asombro de Persia nos escondes! (p.985,1)

Com os signos seno, albergue, tumba, de espacialização interna,apreendemos as oposições que desvelam o espaço que se mostrana enunciação dos personagens. É interessante assinalar a oposi-ção entre breñas incultas e ecos; relação espessura/amplidão; fe-chado, impenetrável/aberto, expansão. Essas réplicas apresentamoutro personagem ao leitor/espectador, preparam e antecipam suaentrada em cena, sem nomeá-lo. Personagem incomum:

SÍR.– ¡Pasmo del tiempo!MEN.– ¡Asunto de la fama! (p.985,1)

Somente ao final da situação ele é nomeado:

SÍR.– ¡Anastasio!MEN.– ¡Anastasio!

Sale ANASTASIO, vestido de pieles de una gruta.(p.985,1)

O mago se caracteriza pelo seu vestuário; personagem-tipo no teatrocalderoniano, ANASTASIO, como IRIFELA, é inusitado em suacaracterização. O espaço de ambos, diferente de palácio ou cidade,os deixa em um habitat natural, justificando a função de mago.

A oposição entre os personagens, príncipe/homem da ca-verna, investe o signo vestuário de uma conotação icônica, ressal-tada pela relação espacial entre homem vestido de pieles, em seulocus natural e os príncipes em um espaço inusitado, pois não éapenas o espaço da caça. E, à indagação de ANASTASIO, cadaum se apresenta:

SÍR.– Yo soy, que hablarte quiero,Síroes de Persia Príncipe heredero.

MEN.– Y yo, que verte pretendí no en vano,Menardes soy, y su menor hermano. (p.985,2)

Explicando o cerco de Jerusalém, na alternância das réplicasdos dois personagens, conhecemos a causa da presença de am-

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bos; e em suas réplicas vai se caracterizando o espaço naturalde ANASTASIO:

SÍR.– Hoy que por aqueste monte salimos a caza, haciendo que se retiren las tropas de criados y monteros, en busca tuya venimos, penetrando lo secreto de esta estancia, a quien el sol registra apenas, temiendo salir de sus laberintos, si una vez le cogen dentro.MEN.– La causa con que los dos te buscamos, ya tu ingenio la habrá prevenido; pues se deja ver, al reflejo de poca luz, que a tu albergue nos trae curioso el intento de saber en que ha parado de Jerusalén el cerco. (p.986,1)

A gruta do mago, como a de IRIFELA, é estancia, a quien elsol/registra apenas; é lugar de reflejo/de poca luz. Porém, omago não deixa seu espaço. Os demais personagens transpõemsuas fronteiras – deixam palácio, torre – para estar no espaçodo mago. Seu espaço é próprio, espaço natural, que lhe perten-ce. SÍROES caracteriza o mago, como sábio:

SÍR.– Y pues eres, Anastasio,hijo de aquel gran maestro,que tuvo en mágicas cienciasescuela pública, siendoa un tiempo de sus leccionesdiscípulo y heredero... (p. 986,2)

Há na réplica do personagem, um signo espacial de extremaimportância: escuela pública. Entretanto, o saber mágico nãoera para o vulgo: los cuales (príncipios) sean cuales fueren,son indignos del vulgo (BRUNO,1987, 232)

MEN. – Pues el oráculo eresde estos bárbaros desiertos,donde son para su estudio

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verdes y azules cuadernoslas láminas de las flores,las cifras de los luceros,de quien es árbitro el sol,cuyos dos rumbos opuestossigues en su naturaly rápido movimiento...

SÍR.– Pues eres (dejando apartela astrología y viniendoa mayor ciencia) el asombrode la mágica, en que has hechotantos prodigios, usandode todos cuatro elementos,la geomancía en la tierra,la eteromancía en el viento,la hidromancía en el agua,la piromancía en el fuego;y pues eres finalmenteel que a pesar de los tiempos,presente haces lo futuro,siendo para ti en el vientolos arrullos, vaticinios,y los graznidos, agueros. (p. 986,2)

As réplicas dos personagens explicitam a função do mago; naconsideração de ANASTASIO como oráculo, está, também, aatribuição de sabedoria e doutrina, conhecimento do corpus damagia. E, na definição do espaço, bárbaros desiertos, apreen-demos os signos da natureza; a escritura se apresenta e se ofere-ce ao estudo somente possível para o mago, sábio que desvelaos signos, que faz a leitura: donde son para su estudio/verdes yazules cuadernos/las láminas de las flores/las cifras de losluceros/. O signo árbitro, anteriormente referido a IRIFELA,aqui especifica a importância de mais um signo da natureza: elsol. Na relação dos signos flores, luceros e sol, observamos asemantização de sol: o senhor da magia, o senhor e dominadordos destinos, pois como árbitro entre flores e luceros, em dosrumbos opuestos permite ao sábio decifrar a escritura da natu-reza entre flores e luzes.

SÍROES em sua réplica, traz a distinção entre astrologia –deixada à parte - e a mayor ciencia, a magia; o personagem deixabem evidente a relação entre o mago – el asombro de la mágica –

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e sua ciência, onde o sábio fez tantos prodigios. Confirmamos aproposta da presente análise do maravilhoso como prodígio, coisaadmirável, metáfora visiva, teatro da memória. E a atuação do magosobre a natureza, operando seus elementos, é desvelada:ANASTASIO usando/de todos cuatro elementos/la geomancía enla tierra,/la eteromancía en el viento/la hidromancía en el agua,/la piromancía en el fuego, mostra-se sábio, faz-se mago. Atuandotambém sobre o tempo, diz-lhe SÍROES, el que a pesar de lostiempos,/presente haces lo futuro; e como leitor da natureza, reco-nhece, metonimicamente, em los arrullos, vaticinios/y los graznidos,agueros. Cantos graves e monótonos como os das pombas, vozesdo corvo ou da gralha, signos acústicos, todos são metonímias quepermitem adivinhações e presságios. Na réplica do personagemcaracteriza-se o mago, senhor da natureza, permitindo desvelar notexto calderoniano a tradição renascentista, presente em pleno sé-culo XVII espanhol, no teatro de // Falta na 1º prova// um drama-turgo com formação jesuítica.

Afirmamos a magia de ANASTASIO porque

... se llaman magos todos aquellos que se dedican a laadivinación, mediante no importa qué procedimiento, delas cosas ausentes y futuras; y a éstos, por su finalidad, seles llama generalmente adivinos; sus especies primeraproceden de los cuatro principios materiales: fuego, aire,agua y tierra de donde resultan piromancía, eteromancía,hidromancía, geomancía; o proceden (asimismo) de los tresobjetos de conocimiento: el natural, el matemático y eldivino, dándose entonces otras múltiples especies deadivinación (BRUNO, 1987,p.228).

Prossegue o esclarecimento na indagação ao mago:

MEN.– Dinos en qué trance se hallael Rey nuestro padre puesto...

SÍR.– Si son de Jerusalénlos muros ruina o trofeode sus armas, porque asídescanse nuestro recelo...

MEN.– Sosiegue nuestro cuidado.SÍR.– ... y descuide nuestro afecto.ANAS.– Aunque pudiera, ¡oh famosos

Príncipes!, no obedeceros,

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por la contingencia que haysiempre en las lides, y puesto,yendo a buscaros un gusto,daros con un sentimiento;con todo eso, como en míes tan sagrado el preceptode la obediencia, es forzosono excusarme; y así quiero,informado de la causa,responder con el efecto.¿Tendréis ánimo los dospara, sobre aquesos mesmospeñascos que ahora os halláis,ir penetrando los vientoshasta que desde la mediaregión del aire estéis viendola facción en que se hallavuestro padre?

LOS DOS.– Sí tendremos. (p.986,2)

A indagação do mago ¿Tendréis ánimo...? e a contestação afir-mativa dos Príncipes resultam na continuidade da ação, isto é, aprática da magia. A relação entre os personagens é de ordem/obediência. A réplica do mago define o locus da ação no alto:sobre aquesos mesmos/peñascos que ahora os halláis; antecipaa ação no espaço aéreo; ANASTASIO domina um dos quatroelementos – o ar – e pode vencê-lo, vencendo as distâncias,abrindo e unindo novos espaços.

Hace ANASTASIO un círculo en tierra y van subiendo sobre dos peñascos los dos, lo más que pudieren: y esta aparienciase ha de obrar en las dos puntas deltablado, y ANASTASIO en medio.Tocan cajas y trompetas, y ábrese lamontaña, y queda el teatro de murallatodo. (p. 987,1)

A situação 3 especifica a magia. Na relação texto/representação, ogesto se destaca: hace Anastasio un círculo en tierra. O espelho deIRIFELA é uma lua, o movimento do céu é circular. E como todaacción procede de la cualidad de la forma (BRUNO,1987, p.243), aimportância da figura e, principalmente do círculo como forma perfeitaé evidente para estabelecer relações, simpatias ou vínculos, pois

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De ahi se pueda creer y tener en cuenta una causa porla que la acción (llega) no sólo hasta lo cercano, sinoincluso hasta lo remoto, según el sentido; pues según lacosa – (...) – (se llega) por la comunión del espíritu uni-versal, que todo entero está en el todo y en no importaqué parte del mundo (idem, ibidem, p.242)

A didascália antecipa para o leitor a mudança do cenário;para o espectador, ocorre paralela à invocação do mago; os signosacústicos Tocan dentro, ¡Arma, arma! ¡guerra, guerra! criam aexpectativa até que se abre la montaña e se vê el teatro de murallatodo. Aqui a movimentação dos personagens se dá pelo uso demáquina, a tramoya, diferente do uso de apariencias com cortinasoferecendo outros espaços; desdobramento espacial envolvendo oespectador/leitor, trazendo-o para dentro da cena, diferente do so-lilóquio e do aparte (OROZCO DÍEZ, 1988, p.209).

ANAS.– Pues, espíritus impuros,que sois de dañados geniosque a mis voces obedientesy a mis conjuros atentosasistís: en virtud mía

Van subiendo.esos dos jóvenes bellos,elevados sobre el aire,vean en su vago asientoa pesar de las distanciasque se les ponen en medio,del ejército las tropas,y de la ciudad el cerco.

Tocan dentro. (p.987,1)

A invocação de espíritos se baseia na existência de espíritos em tudoe em todas as coisas,o que possibilita estabelecer a sintonia, simpatiaou vínculo com o espírito universal, pois é o múltiple vínculo de losespíritus (asunto) en el que se contiene toda la doctrina de la magia(BRUNO, 1987, p.259). Trazemos, também, o estímulo de Plotinoque se pergunta: Mais comment expliquer les charmes de la magie?Par la sympathie (PLOTINO, 1990, IV,4,40 p.147). O mago, ope-rando a natureza, vence as distâncias e deixa ver; imaginativamenteaparecem as tropas e o cerco da cidade. A mudança do cenário debreñas incultas para teatro de muralla oferece ao leitor/espectador

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novos loci e a teatralidade se formaliza em espetáculo:

Dentro.– ¡Arma, arma!OTROS.– ¡Guerra, guerra!

Ábrese la montaña. (Dentro.) COS.- Viva de Persia el imperio.

SÍR.– Ya al son de trompetas y cajas,(nueva) Babilonia veo, que intenta escalar el sol, montes sobre montes puestos.

MEN.– Ya esa nueva Babiloniaen más confusión adviertoque la primera, asaltadade los escuadrones nuestros

Dase la batalla en el tablado,saliendo unos retirándose, y otrostras ellos.

UNOS.– ¡Arma, arma!OTROS.– ¡Guerra, guerra!(Dentro.) CÓS.- Viva de Persia el imperio.TODOS LOS PERSAS. – ¡Viva Persia, Persia

[viva!SÍR.– ¡Qué prodigio!MENARDES.- ¡Qué portento! (p. 987,1)

A distinção de efeito teatral entre dentro/fora da montanha mostraa teatralidade. De dentro partem gritos de guerra antes de abrir-seo monte; aberto o novo espaço, a voz imperativa de CÓSDROASressoa. E os príncipes, espectadores, assistem à representação. Aréplica de SÍROES apresenta para o leitor/espectador a vista deJerusalém em perspectiva: a cidade se expandindo sobre as monta-nhas: superposição na distância. A dinâmica espacial se cumpre edase la batalla en el tablado, ecoando a voz de CÓSDROAS entreos gritos de guerra. A ausência de signos bélicos como cajas etrompetas evidencia a predominância das vozes dos personagens.As exclamações de SÍROES e MENARDES comprovam o prodí-gio, o portento da metáfora visiva, visão e aparição à distância,mirabilia de ANASTASIO.

No desdobramento espacial, um signo de extrema impor-tância se oferece: iglesia; pois

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[Aparece la entrada de unaiglesia de Jerusalén. ] (p.987,2)

Iglesia indicia a situação espacial de CÓSDROAS, uma vez queeste já percorre as ruas da cidade:

SÍR.– El Rey el primero es que anda sus calles corriendo.MEN.– Y con la espada en la mano, va a sus soldados diciendo... (p.987,2)

Por outro lado, estabelece-se a oposição entre cristão e pagão, defi-nindo a ação dramática: a cruz da crucificação de Cristo é levadapelos persas e deverá retornar a Jerusalém em 628. As duas réplicasanteriores comentam a dinâmica espacial de CÓSDROAS para oleitor, reiterando-a para o espectador; e a de MENARDES antecipae anuncia a situação seguinte:

Sale CÓSDROAS vestido a lo persiano, con la espada desnuda.

CÓSD.– Ea, valientes soldados.Hoy el día ha de ser nuestro,y en fe de vuestro valormi nombre vivirá eterno. De cuando en cuando tocan cajas, y suena batalla dentro.Ya la gran Jerusalén,que pudo llamarse un tiempoemperatriz de las gentes,esclava está en cautiverio.Ya postrada, ya rendida,a voces clama pidiendomisericordia. Ningunose enternezca a sus lamentos;que yo el primero de todos,por dar a todos ejemplo,para mi despojo elijoeste edificio opulento,de quien piedra sobre piedrano me ha de quedar. (p. 987,2)

CÓSDROAS anuncia sua vitória; Jerusalém está dominada. A

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réplica do personagem é entrecortada por signos sonoros ouacústicos, bélicos, que indiciam as últimas lutas na conquista dacidade. Porém, a réplica do personagem pagão tem comoparadigma o texto evangélico. Lemos em Mateus:

24 E quando Jesus ia saindo dotemplo, aproximaram-se dele osseus discípulos para lhe mostrarema estrutura do templo.2 Jesus, porém, lhes disse: Nãovedes tudo isto? Em verdade vosdigo que não ficará aqui pedrasobre pedra que não seja derribada.

As últimas palavras do rei pagão, tendo como paradigma o textoevangélico, são signos de extrema importância: preparam e anunci-am a entrada de ZACARIAS, patriarca de Jerusalém, viejovenerable. Esse final de réplica devia repercurtir muito bem para oespectador da época, reconhecimento do intertexto, opondo pa-gão/cristão; desvela a referência ao judaismo – templo –, ressalta afé católica implantada em Jerusalém, sobrepondo-se à fé judaica.

Al entrar por una puerta que hade tener el muro, sale ZACARÍAS,viejo venerable, vestido de sacerdotea lo antiguo, y pónesele de rodillas,y CÓSDROAS se suspende.

ZACARÍAS.– Soberbioidólatra, no profaneslos umbrales deste templo.

CÓS.– ¿Quién eres, ¡oh venerableanciano!, que al verte, has hechoque se suspendan mis iras?

ZAC.– Soy, sí de quien soy me acuerdo,el infeliz patriarcade Jerusalén.

CÓS.– ¿Qué afectote trae buscando la muerte,de que andam todos huyendo?

ZAC.– El de morir a tus manos,antes de ver el despreciodel templo a quien amenazas.

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CÓS.– Pues ¿qué diablo, di,qué temploes este?

ZAC.– El que fabricaronla fe, religión y celode Elena y de Constantinoal soberano maderoen que fue crucificadonuestro Dios.

CÓS.– Al oírlo, tiemblo. Atropéllale. (p.987,2)

A dinâmica espacial dos personagens é notória; à saída de cena deCÓSDROAS, entra ZACARÍAS; os dois se cruzam e se mantém aoposição entre pagão e cristão. É interessante assinalar a caracteri-zação de ZACARÍAS: viejo venerable, vestido de sacerdote a loantiguo. Em venerable está a veneração, o respeito, a virtude; e étambém o primeiro título, por fama de santidade, seguido de beatoe de santo. Portanto, o personagem venerable traz umasemantização altamente motivada que o transforma em ícone dosacerdote de Jerusalém. A oposição entre CÓSDROAS, rei dospersas, vestido a lo persiano, con la espada en la mano – espada,símbolo do estado militar, símbolo guerreiro – e ZACARÍAS éressaltada, inclusive pela exiguidade da caracterização de um – ves-tido a lo persiano – e a explicitação do outro.

Na réplica de ZACARÍAS, templo, precedido do dêitico,evidencia o espaço cristão, interdito ao rei pagão. Às indagaçõesde CÓSDROAS, as réplicas esclarecedoras de ZACARÍAS o per-mitem apresentar-se ao Rei e ao leitor/espectador; identificar o es-paço, informando sua importância como espaço cristão. A tensãono diálogo ressalta o domínio de ZACARÍAS; por isso declaraCÓSDROAS: al oírlo, tiemblo. Entretanto, a relação entre os doispersonagens, chegada ao clímax, interrompe-se, pois o Reiatropéllale. A ação ressalta a transposição da fronteira para pene-trar o interdito:

CÓS.– Al oírlo tiemblo. Atropéllale.Pues esa cruz, que es su imagen,será mi mayor trofeo:A Babilonia cautivala he de llevar, donde tengo

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de ofrecérsela a mis dioses... (p.988,1)

Cruz, cristão, monoteísmo opõem-se a Babilônia, deuses,politeísmo; a profanação do sagrado se efetiva pela transposi-ção do interdito.

Abre ZACARÍAS la puerta del muro,y descúbrese dentro un altar, y en élla Cruz, y a sus lados, ELENA, vesti-da de viuda, y CONSTANTINO,de Rey;y estos, o sean figuras o bultos esténbien adornados. Entra CÓSDROASdentro, y ZACARÍAS como detenién-dose. A este tiempo se cierra todo,como estaba primero, y los peñascosvienen al suelo con la velocidadque puedan. ANASTASIO queda [asombrado. (p.988,1)

O gesto de ZACARÍAS abre um outro espaço dentro, interior daigreja e deixa ver o altar. O espaço se abre para mostrar o ícone, poisa composição un altar, y en él la Cruz, y a sus lados ELENA, vestidade viuda, y CONSTANTINO, de Rey (...) bien adornados expressauma representação em cena como na pintura, onde a continuidadeespacial em perspectiva é ressaltada. E, entre diálogos e didascálias,evidenciamos, nesse exemplo de visão e aparição à distância, a rela-ção implícita entre texto e representação: a didascália antecipa para oleitor o “efectismo” da cena, enquanto os diálogos opõem a expecta-tiva e tensão como um todo no que se representa:

ZAC.– ¡Piadosos cielos! Dicen dentro voces.(Dentro.) UN SOLD. PERSA.– [¡Qué veo!] iLa Cruz de Cristo es aquella!(Dentro.) SOLDS. PERSAS.– Vamos de sus vista huyendo.(Dentro.) CÓSDROAS.– Subiré a pisar las aras, y de ellas...

Suenan truenos.SÍR. y MEN.– ¡Valedme, cielos!ANAS.– ¡Supremos dioses! ¿Qué miro?SÍR.– Sin vida estoy. Cúbrese todo.MEN.– Yo estoy muerto.

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SÍR.– ¿Qué es esto, docto Anastasio?MEN.– Traidor mágico, ¿qué es esto?SÍR.– ¿Por qué has cortado el discurso?MEN.– ¿ Por que has troncado el suceso?ANAS.– No sé, no sé con qué causa los espíritus que apremio a mi obediencia faltaron y de mi asistencia huyeron. (p. 988,1)

À réplica clamorosa de ZACARÍAS segue-se uma voz exclamativa;a réplica de um soldado identifica a Cruz para o leitor/expectador:¡La Cruz de Cristo es aquella!. E, como o diabo foge da cruz, ossoldados persas, em uma só voz imperativa dizem: vamos de suvista huyendo. Ultrapassada a fronteira do interdito, CÓSDROASousa mais; porém, embora rei, seus passos são limitados, impedin-do a profanação. Suenan truenos, quando esclarece seu intento:Subiré a pisar las aras,/y de ellas... Na comparação entre os diálo-gos que se seguem e a didascália anterior, observamos a corres-pondência entre uns e outra. Esta apresenta o espetacular da cena,deixando a representação virtual em aberto; Como observaUBERSFELD le texte théâtral est troué (1978, p.24), estando,pois, aberto a encenações virtuais. Os diálogos, texto permanente,expressam o efeito, sempre o mesmo de espanto e pasmo, dianteda causa. Representação de uma causa maior, impedindo a profa-nação do sagrado – o altar – quando pagão e cristão se opõem,tecendo a história, enunciação da escritura, representação dosmirabilia. Porém, à magia de ANASTASIO se opõem os valorescristãos e, por isso, ela cessa; um poder mais alto se interpõe, evitan-do a profanação do altar, suspendendo a obediência dos espíritos.

A espetacularidade se representa: los dos peñascos vienen alsuelo con la mayor velocidad que puedan; em seguida suenan truenos;depois cúbrese todo. De um modo geral, é com o pescante que serealizam esses efeitos de velocidade em cena. E, vêm abaixo os doispenhascos, seguido de trovões; especificamos um terremoto, recur-so muito freqüente no teatro calderoniano, indiciando o desagravo àordem divina. Paradigmaticamente, encontra expressão maior na his-tória do cristianismo, no momento da morte de Cristo.

Não há em La exaltación de la cruz nenhuma referência àrepresentação da aparição vista por SÍROES e MENARDES, comofantasias ou fantasmas, como anteriormente foi assinalado. Entre-tanto, é preciso insistir na importância da imaginação no teatro

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calderoniano, abrindo-se em espaços mentais, cujo paradigma sãoos Exercícios Espirituais. A arte da memória se torna mágica e sedeixa representar, também, em teatro da memória, porque

Las imágenes emocionalmente percusivas de la memoriaclásica, que transformara el devoto Medioevo en similitudescorporales, vuelven a ser transformadas, esta vez enimágenes mágicamente poderosas. La intensidad religiosaque se asoció a la memoria medieval se há vuelto haciauna nueva y osada dirección. Ahora la mente y la memoriadel hombre son “divinas”, con poderes de apreehender lamás alta realidad mediante una imaginación mágicamenteactivada (YATES, 1987, p.188).

O dramaturgo, através da ação de seus personagens, opõe magia emilagre; confronta o homem operando a natureza, mas eles se utili-zam de espíritus impuros que são, também, conforme afirmaMADALENA, no auto sacramental No hay instante sin milagros:

. – ... en el pecho de cualquierason espíritus inmundoslas culpas. (p.1355.1)

O milagre formaliza o homem medieval passivo diante da reali-zação advinda do poder celestial. A oposição entre passivo eativo evidencia a coexistência das duas vertentes no teatro bar-roco calderoniano: o homem medieval maravilhado e passivodiante do milagre e o homem renascentista, divino porque sesente um deus, capaz de operar o elemental, o celestial, alcan-çando as mais altas esferas do supracelestial, pelo poder damente, teatralizada no teatro da memória.

2.9 Visão e Aparição do futuro

En esta vida todo es verdad y todo mentira é mais umexemplo de teatralização, cuja temática é a magia. Foi repre-sentada em Palacio, como festa real, em 23 ou 25 de fevereirode 1659. Por ato mágico se representa em um dia o que ocorre-ria em um ano, formalizando, assim, a visão e aparição do futu-ro; trata-se de metáfora visiva em que mais um personagem vêo que aparece, sugerindo a dúvida pelo encantamento mágico,

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conforme sugere o próprio título da obra. Mais um mago – LISIPO– entra para a relação dos magos calderonianos, junto comIRIFELA, FALERINA e ANASTASIO.

A magia, como o sonho em La vida es sueño, é a metáforadas riquezas e a experiência de LEONIDO e HERACLIO é seme-lhante à de SEGISMUNDO pois, ¿Qué bienes no son soñados?

No I ato, situação 3, a réplica de LIBIA formaliza oespaço e apresenta LISIPO:

. – .................. abandonólos poblados por las selvas.Aquí, pues, sin más caudal,más patria, casa ni haciendaque sus libros o sus tablas,sus orbes, globos y esferas,astrolabios y cuadrantes,y aquella choza pequeña(que parece que del monteha descendido la cuesta,según en su verde falda,como cansada, se asienta),vivimos los dos, partiendoél el cielo, y yo la tierra:pues yo le cuento sus riscos,y él sus luceros le cuenta,siendo pautado carácterde sus líneas y mis fechas,en mí el vulgo de las flores,y en él el de las estrellas. (p. 1113,2)

Destacamos os signos, instrumentos para a prática da ciênciamágica: libros, tablas, orbes, globos, esferas, astrolabios,cuadrantes. Há uma expansão do particular – libros, tablas –para o amplo e geral – orbes, globos, esferas – para finalizarcom a especificidade do astrolabio e a medida dos cuadrantes.O mago é caracterizado como sábio. E a operação sobre a natu-reza é compartida por LIBIA, filha de LISIPO. Ela, operando aterra, cuenta sus riscos; ele, operando o céu, sus luceros cuenta.Assinalamos a diferença entre LISIPO e IRIFELA eANASTASIO cuja atuação mágica não é compartida. E, nessesespaços de representação mágica dos mirabilia, destaca-seFALERINA atuando com a assistência de seu pai MERLIN:

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FAL.- Y así, obediente a los dos, y a mi obedientes aquellosespíritus, que he heredadode Merlín, padre y maestro,cuyo cadáver, aunqueyace en los campos amenosde Agramante desde aquíme escucha. (p.1895,1)

A natureza se apresenta como escritura organizada, ofe-recendo-se à leitura; cabe ao mago formalizar os signos, apre-endendo-os no espaço. Entre os signos enumerados, relacio-nam-se de um lado tierra, riscos, flechas, flores; de outro, cielo,luceros, líneas, estrellas. Outro signo se destaca: vulgo. A na-tureza, comum a todos, entre a terra e o céu, oferece flores eestrellas, mostra-as signos, cabendo ao sábio conhecê-los comopautado carácter, como escritura natural, desvelada somentepelos que a sabem ler.

LISIPO interpõe sua magia, impedindo a ação de outrospersonagens:

LIS.– ¡Oh! ¡Qué de vida peligran!Si viendo este estrago estoy,¿para cuándo de mis cienciaslos raros prodigios son?Pongan, pues, paces las sombras,y anticipando el horrorde la noche al parecer,obedezcan a mi voz,con relámpagos y truenos,nubes, cielo, luna y sol.

Dentro, terremoto, y salen todos,tropezando unos con otros. (p.1123,1)

Menciona suas ciencias e seus raros prodigios; com a magia efetuamaravilhas: substitui a luz do dia pelas sombras da noite, demons-trando sua capacidade de operar a natureza. Na relação texto/re-presentação, à réplica do personagem correspondem os efeitos cê-nicos, onde se destacam os signos relámpagos e truenos; luz e sommostram a magia de LISIPO escándalo, portento, prodigio, es-

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panto. E no II ato, o espaço se especifica em diferença:

[Campo y arboleda delante de la cabaña de Lisipo]

Salen CINTIA y LIBIA

CÍN.– Pues en todo este coto,sólo tu albergue, hermosa Libia, ha sidoen que Focas y yo hemos vencidoel ceño del pasado terremoto; (p.1123,1)

O espaço de LISIPO e LIBIA é interdito à ação mágicaatuante sobre os demais: Quelle influence la magie et les philtresont ils sur le sage? Il ne subit pas, en son âme, l’influence de lamagie (PLOTINO, ibidem, p.150).

A eficiência da magia se comprova na réplica de outropersonagem:

FOC.– ........................Yo sé que la experiencia,Lisipo, de tu ciencialo más oculto alcanza;y así libro en tu ciencia mi esperanza.Quiénes son esos dos jóvenes bellosme dirás. (p. 1124,2)

LIBIA, em sua réplica, faz referência à fantasia e à memória:

. – Tan ladrón de mi sentido,robado le tenía,con las especies que hoy mi fantasíallenan de confusionesverdades e ilusiones,peligros de tan nunca vista historia,que informe conservaba la memoria,que debieron veloces(yo no lo sé) de prorrumpir en voces. (p. 1125,1)

E LISIPO, o mago, refere-se às sombras do sonho:

. – En albricias del gusto

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de verte libre, te perdono el susto,que, de mi vida dueño,aún guarda las sombras de tu sueño. (p.1125,1)

As primeiras situações do II ato desvelam a tensão entreas indagações de FOCAS sobre a identidade dos dois jovensHERACLIO e LELONIDO – um é seu filho e o outro filho deseu inimigo Maurício – e as mágicas artimanhas de LISIPO,impedindo-o de revelar a verdade. Por isso, o mago finge nopoder hablar. E indaga FOCAS:

FOC.– ¿Qué te acobarda?LIS.– Cierta deidad que esotra vida guarda.

Tú no la ves; yo sí: enojada y bella,con el dedo en los labios, los míos sella,no me aflijas, pues ves que te obedezco;no me amenaces, pues por ti enmudezco.Y pues primero el cielo,entupecido el cristalino velo,en su favor las nubes amotina,y ahora auxiliar alta deidad diviname niega la asistenciadel espíritu impuro,que a la callada voz de mi conjuroinvocado, dictaba en obedienciadel explícito pacto de mi ciencia,no me mandes que diga,pues a callar otro poder me obliga,lo que ni sé ni puedo. ¡Qué ansia! ¡Qué espanto! Vase.

FOC.– ¡Y qué pavor, que miedoes el que há introducidotu asombro en mí! Mas ¿cómo yo a partidodoy mi furor, si todo el cielo opuestoa mí, no ha de poder?... (p.1125,2)

A réplica do mago desvela a construção de imagens mentais, pelavista imaginativa; memória mágica, teatro de magia envolvendo ointerlocutor em pavor, miedo, asombro. Observamos a referência aciencia deidad; a oposição entre ver/não ver; a relação entre omago e alta deidad divina; e a negação de la asistencia del espírituimpuro diferente do divino Espírito Santo, opondo pagão/cristão.Como a ANASTASIO, a LISIPO falta agora, por alegação sua, a

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assistência virtual dos espíritos impuros, delimitando a magia noespaço pagão. E, na relação entre os personagens, embora FOCASseja o dominador e tirano, é subjugado pelo mago, assistido poralto poder. Na situação 4, lemos:

Salen CINTIA y LIBIA de entre los árboles

LAS DOS.– Señor, ¿Qué es esto? CIT.– ¿Tú la voz destemplada? LIB.– ¿Tú perdido el color? LAS DOS.- ¿Qué ha sido? FOC.- Nada.

Quise que me dijeraLisipo, por su mágica, la esferadel hijo de Mauricio,y perturbado de un letargo el juicio,no sé qué alto poder convierte en hielosu voz. (p.1125,2)

Na situação 7, LISIPO propõe sua magia:

. – ........................¿Tendrás ánimo de ver,en fantásticos efectos,a la breve edad de un díareducido hoy el enterocírculo de un año, en querepresentados sucesosantes de verse, te digantodos los acaecimientoque en el año vieras? (p. 1128,2)

A proposta de ver o futuro se define, quando deverá aparecerpara FOCAS e LISIPO a verdade sobre HERACLIO eLEONIDO. O espaço é campo y arboleda delante de la cabañade Lisipo. O mago delimita o seu espaço: campo, selva, bre-nhas, relacionando os espaços de ANASTASIO e de IRIFELA.Espaço natural onde ele pode operar a natureza. O diálogoentre FOCAS e LISIPO prepara a representação da magia:

FOC.– Yacuanto al ánimo, te tengo respondido; y así paso

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a otra objección que no entiendo,si han de ser fingidas sombras,sin vida, sin alma y cuerpolas que vea, ¿cómo yode ellas a su juicio opuesto,que obrando sin albedríolos que a ley de tu preceptorepresenten a los dos,ni saber, ni inferir puedolos que ellos con él obran?

LIS.– La objeción es buena, perofácil la respuesta.

FOC.– ¿Cómo?LIS.– Como han de ser ellos mesmos.FOC.– ¿Ellos mesmos?LIS.– Sí.FOC.– Otra vez

y mil, cómo a dudar vuelvo,sombra y realidad podránavenirse.

LIS.– Como dentrodel encanto han de ser realespersonas...

FOC.– ¿Quién?LIS.– Tú, yo y ellos.FOC.- ¿Ellos, tú y yo? ¿Cómo?LIS.– Finge,

buscando divertimientosa tus penas, una caza;y en alcance de un ligerobruto te hallarás, adondeperdido de tus monteros,verás una suntuosafábrica, que sobre el vientofundada... Mas gente viene. (p. 1128,2)

O questionamento de FOCAS desvenda para o leitor/espectador amagia de LISIPO. As sombras fingidas/sin vida, sin alma y cuerpoe, o mais importante, obrando sin albedrío; sombra y realidad,dentro/del encanto han de ser reales/personas. Pessoas reais sim,porém encantadas. É interessante observar o jogo real/imaginárioe, de acordo com o próprio título da obra, En esta vida todo esverdad y todo mentira, ressaltar a denegação teatral, dentro dorepresentado, quando encanto, magia e memória desvelam a tessiturada ação/representação. Podemos questionar o real concreto repre-

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sentado para o espectador.Tout ce qui se passe sur la scène (si peudéterminé et clôture que soit le lieu scénique) est frappé d’irréalité(UBERSFELD, 1978, p.146)

A irrealidade da cena é tida como real para se abrir aoespaço do encantamento mágico, no teatro da memória, ondeos personagens, semelhantes aos “reais”, atuam. É preciso fin-gir, imaginar um locus: a caça, a perseguição a um animal. Olugar cênico está composto no teatro da memória, pois FOCASverá una suntuosa/fábrica, que sobre el viento/fundada..., istoé, sobre um dos quatro elementos, el viento; A referência implí-cita ao espaço do encantamento, una suntuosa fábrica, deixalivre à imaginação do interlocutor de LISIPO a construção deseu espaço. E os signos acústicos, voces dentro, permitem aparticipação no encantamento:

¡Astolfo! FOC.– Ya me parece que empiezo

a oír proverbios del encanto.¡Qué ilusión! ¡Qué devaneo!Voz es que le nombró acaso. (1129,1)

O campo semântico da réplica de FOCAS – encanto, ilusión,devaneo – deixa evidente o envolvimento mágico do personagem ea magia que pouco a pouco vai formalizando espaço. Na situação8, após diálogos entre LEONIDO e HERACLIO, lemos a indica-ção cênica: Música dentro. As réplicas dos personagens se alter-nam com versos da estrofe cantada:

MÚS.– iAy, cómo gime, mas, ay, cómo suenael remo a que nos condenael niño Amor! (p.1129,2)

A música tem o objetivo de atrair os dois jovens, de tirá-los doespaço próprio – a selva – para que os veja FOCAS. Por issoASTOLFO, que os criou, observa:

. – ..............................manda que dulces clarinesy músicos instrumentossonoros suenen...(p. 1127,2)....................................

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A situação 8 apresenta o encantamento dos dois perso-nagens pela MÚSICA:

Música dentro.MÚS.– ¡Ay, cómo gime, mas ay, cómo suena!LEON.– Pero ¿qué música es esta?HER.– Cuando esperamos que estruendos

de armas vuelvan a buscarnos, ¿vuelven voces e instrumentos?

LEON.– ¿Quién de halago el aire llena? ...............................................LEON.– Pues vamos la voz siguiendo. (p. 1129,2)

Repite la música. (Ay, cómo gime, más ay, cómo suena!... El clarín, dentro. .................................................

HER.– Mejor la clásula suena de este nuevo ruiseñor.

MÚS.– No suena mejor El clarín.HER.– Sí suena mejor.MÚS. y LEON.– No suena mejor.LEON.– O escucha,

si es que alternados a un tiempo vuelven a la competencia en uno y outro diciendo:

El clarín.MÚS.– ¡Ay, cómo gime, mas ay, cómo suena

el remo a que nos condenael niño Amor!Clarín que rompe el alborno suena mejor,

El clarín. (p.1130,1)

A teatralidade da situação é de extremo interesse: a alternânciade réplicas e música; o clarim e música; todos os signos sonoroslevam à caracterização dos personagens pela preferência por unsou outros sons, pois como informa CINTIA, em sua réplica:

.– ........... a la armoníaacudió Leonido, a tiempoque a los clarines Heraclio; (p. 1131,2)

A diferença entre os signos armonía e clarines determina a di-ferença na sensibilidade dos dois personagens, pois diferentes

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cosas mágicas atan a diferentes espíritus, diferentes harmónicosatan a almas diferentes (BRUNO, 1987,p.268). A música, comoos cantos órficos, envolve os dois personagens magicamente,levando-os para o espaço da magia, o palácio fantástico. A efi-cácia da música intensifica a ação mágica, pois

La segunda clase de vínculos procede de la conformidadde números con números, medidas, con medidas, momen-tos con momentos; de ahí provienen aquellos ritmos y can-tos que se asegura la mayor eficacia (BRUNO,1987,p.267)

E a fingida caça se representa, uma vez que os persona-gens estão envolvidos magicamente pela música. Na situação12, a composição de lugar se especifica na didascália: (Otropunto del monte, y en el fondo, un palacio magnífico.) O espa-ço familiar aos dois jovens torna-se espaço mágico, desconhe-cido para eles. A situação 13 esclarece:

Salen HERACLIO y SABAÑON

HER.– ¿Quién, donde vivi, creyera que ningún seno ignorara?LEON.– Desde esta parte veré si senda descubro o gente.HER.– Desde este risco eminente el monte registraré.LEON.– Y no en vano, que en su espacio, un alto edificio vi. Múdase el teatro.LUQ.– ¿Quién diablos le puso ahí?HER.– Y no en vano, que un palacio descubro, a mi parecer.SAB.– Por más que el monte he corrido, nunca yo de él he sabido.LEON.– Sin duda debe de ser, pues aquella beldad dijo, que a un alcázar me traía, este por quien lo decía.HER.– Si sus razones colijo, que a un palacio me guiaba fue lo que me dijo aquella divina hermosura bella: sin duda que de este hablaba.(p. 1132,2)

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Estar no palácio fantástico – como o sonho de SEGISMUNDO deLa vida es sueño, obra de 1636 – por ato de magia, dá a En estavida todo es verdad y todo mentira uma expressão de teatralidadepela confluência e alternância de réplicas e estrofes cantadas; pelamudança do espaço da representação para um novo espaço mági-co, tornando-a uma obra bastante complexa. E a extensão do espa-ço mágico nessa obra supera as analisadas anteriormente. O dra-maturgo exemplifica as possibilidades de criação de espaços men-tais pelos personagens e, magicamente, envolve o leitor/especta-dor na fantasia da representação.

Observamos a mudança do espaço: primeiramente a ex-pectativa na réplica dos personagens que o desconhecem por ser,agora, espaço mágico. E as informações sobre o espaço percorridosão como uma câmera cinematográfica que vai revelando aespacialidade para o leitor/espectador.

A situação 14 apresenta o Salón de un palacio fantástico,informando a didascália:

Sale ISMENIA; y en dos tropas todos los Músicosque puedan y traerán todos en fuertescapas, espadas y todo adorno de vestidos[HERACLIO, LEONIDO, SABAÑON y LUQUETE]

(p. 1133,1)

A oposição entre as duas situações é marcante: os signosdo vestuário permitem inferir a mudança; na didascália a voz doautor y todo adorno de vestidos evidenciam na relação texto/repre-sentação a virtualidade da encenação.

A situação 15, II ato, retoma a alternância de réplicas edois coros, pois o envolvimento mágico através da música deve semanter até que entrem no palácio fantástico. ISMENIA anuncia:

. – Pues han venido tras ellas,a recibirlos saldré. (p.1133,1)

Seguem-se os coros, alternam-se as réplicas com a músi-ca; os signos verdad y mentira enunciados pelos coros mantêm aindefinição dos mirabilia, preparação para transpor as fronteirasdo mágico. Somente depois dessa expressão de teatralidade, nasituação 15, ISMENIA recebe LEONIDO e HERACLIO.LISIPO, o mago, assiste a tudo como espectador e comenta:

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LIS.– (Aparte.)Ya que una vez estos dospudieron llegar aquí,tuve por mejor que entrarandonde este tiempo estuvieran,que no que volver pudierandonde, un palacio, contaranque vieron: sobre el pensarque ya de Focas se alcanzatan perdida la esperanzade que le pueden hallar(p. 1133,2)

Nesse aparte, o comentário do mago interrompe a dinâmica daação, mostrando-o senhor dos personagens, tuve por mejor queentraran donde estuvieran, conduzindo-os no percurso para opalacio sobre el viento. Em aparte, isto é, al margen o borde late-ral de la escena, LISIPO comenta sua atuação, dirigindo-se aoleitor/espectador, e se aproximando pelo desbordamiento espaci-al, denegando o lugar cênico (PAVIS, 1980). A réplica de ISMENIAdá continuidade à ação. Entre a ação futura a recibirlos saldré e arecepção, quando ISMENIA se dirige a eles: Príncipes, a quien elCielo/..., há os dois coros que atuam no encantamento.

A réplica de ISMENIA condensa a ação representa-da, dá continuidade e explicita para HERACLIO e LEONIDOa espacialidade:

. – ............................entrad, porque desnudándoosla bruta piel, tosca y basta,para llegar a su vistaos ordenen ricas galas,joyas y plumas. Aquellaes la prevenida estanciavuestra, Leonido; esta es,Heraclio, la vuestra. Vayala música divirtiendoa los dos. (p.1334,1)

Na didascália implícita, o imperativo entrad implica na motricidade,na dinâmica espacial dos personagens. Comparando-se a didascáliada situação 14, ... y traerán todos en fuertes capas, espadas ytodo adorno de vestidos, a réplica de ISMENIA acrescenta sig-nos ao vestuário, para a caracterização dos personagens: ricasgalas, joyas y plumas. Os dêiticos aquella, esta desvelam os ges-

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tos e complementam a espacialidade. A música continua envol-vendo magicamente:

Toca la música.

CORO 1º.– Pues ya de Mauricioy de Focas yala sangre es heroica,que ilustre les da...

CORO 2º.– Ambos igualmentereciba triunfalTrinacria con fiestas,pompa y majestad.

CORO 1º.– Y pues no se sabesi es su estirpe realmentira o verdad...

CORO 2º.– Mientras que la dudacalla, sean sus dichasverdad y mentira.

Vanse HERACLIO y LEONIDO,cada uno por su parte, conCORO de música. (p. 1134,1)

Os graciosos assistem ao encantamento e estão tambémenvolvidos nele:

SAB.–¿Qué dices de esto que vemos?LUQ– ¿Tú sabes lo que nos pasa?SAB.– Yo, no.LUQ.– Pues ni yo tampoco.

Vanse. (p.1134,1)

Todo o espaço é de magia. Na situação 17, FOCAS tececomentários sobre a metáfora visiva e LISIPO conduz a ação:

Salen FOCAS y LISIPO

LIS.– Señor, ya es tiempo que salgas.FOC.– Aunque culpé que dijeses tal vez, que si me bastara el ánimo para hacer una apariencia tan rara,

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sin [extrañarla], disculpo la frase ya, porque es tanta la admiración, que yo solo me atreviera a ejecutarla.LIS.– Pues ahora, señor, empieza; que saliendo de sus cuadras, acabados de vestirse, los dos a este cuarto pasan. (p. 1134,2)

Focas se encontra em una experiencia tan rara, envolvido na ma-gia de LISIPO; e, como es tanta/la admiración, o maravilhoso serealiza na verdade e na mentira, metáfora visiva, afirmando, umavez mais, a raiz mir, miror, mirari, em admiración. Os dois assis-tem à atuação dos envolvidos magicamente, representando paraeles na abertura da espacialidade, na aparição de novos espaços:representação dentro da representação. E a réplica do mago anun-cia a dinâmica dos personagens, conduzindo a ação: Pues ahora,señor, empieza; o teatro dentro do teatro se formaliza.

As réplicas da situação 18 revelam, uma vez mais, a ca-racterização dos personagens HERACLIO e LEONIDO. Pou-co a pouco, vão se descaracterizando os brutos da selva, para setransformarem em galãs de palácio:

CRIADO 1º.– [A LEONIDO.] Toma el sombrero y la capa.LEON.– ¿Cuál es el sombrero?CRIADO 1º.– Este. .......................................CRIADO 2º.– [A HERACLIO.]

Ciñe la espada. (p.1135)

A caracterização dos personagens, informada na situação 14,mostra-se na situação 15, na réplica de ISMENIA e se comple-ta na situação 18, com a participação dos criados. Didascáliasimplícitas, icônicas, depreendidas nas réplicas dos personagens.O dêitico este formaliza o gesto do criado.

LISIPO e FOCAS são os espectadores dos mirabiliaque se representam para eles:

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LIS.– [Ap., a FOCAS]Ya a besar tus manos llegan.En sus acciones reparay en sus razones, porquedesde aquí observando vayassus genios e inclinaciones,ya que con esto adelantasla pereza de los días. (p. 1135,1)

A elocução do mago, como didascália implícita, adianta paraseu interlocutor, FOCAS, e para o leitor/espectador a dinâmicaseguinte dos personagens. A permanência da magia se confir-ma, envolve os personagens e antecipa o tempo. O mago con-duz as ações, comenta e anuncia a interação entre os persona-gens. E a réplica de Focas especifica o espaço:

. – ................................Ya en un palacio, de dondea la corte iréis mañana,os halláis (p.1135,1)

Os graciosos, envolvidos também na magia, mantêm atessitura da fantasia, comentando para o leitor/espectador osfios da ação de LISIPO:

LUQ.– ¿Y a mí, que también me han puesto,señor, estas martingalas...

SAB.– ¿ Y a mí, a quien también han dado,librea aquestas fantasmas? (p.1135,2)

LUQUETE e SABAÑON confirmam, uma vez mais, o espaçomágico e um signo de extrema importância – fantasmas - permiteinferir, portanto, a semelhança da representação da magia de LISIPOcom às demais já analisadas; os personagens que representam sãofantasmas, sombras, fantasia da ilusão. Envolvidos pela ilusão damagia, vivem a fantasia do teatro imaginado, representando-se noteatro da memória. HERACLIO e LEONIDO estão na memóriade FOCAS; memória perdida no tempo que o rei deseja reconhe-cer, recobrar. O poder imaginativo da mente é comprovado e assi-nala a atitude prudente do mago e do rey; por isso ISMENIA, aorecebê-los, esclarece na situação 15:

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. – Focas, reducido a quees más heroica, más claraacción honrar a la ajena,que ver que a su sangre falta,por los dos envió,... (p. 1133,2)

Os fantasmas da representação são simulacros dos per-sonagens; o mago, atento, conduz e assiste à teatralização dotempo futuro, alertando FOCAS, para que sejam mantidas as fron-teiras entre ilusão e verdade, entre “real” e imaginado:

LIS.– Repara que no son Cintia ni Libia las dos, sino...FOC.– ¿Qué te cansas en advertirme, si en todo estoy? (p.1135,2)

Os diálogos entre LISIPO e FOCAS, espectadores da magia, desve-lam para o leitor/espectador o jogo entre verdade e ilusão. Por isso,o mago observa ao rei, antecipando a entrada do príncipe FEDERICO:

LIS.-...................................... pero antes has de ver lo que el tiempo te adelanta

Tocan clarín. (p. 1136,2)

Na relação texto/representação, diálogos/didascálias, a repre-sentação se formaliza dentro da representação, cujo fio condu-tor é direcionado pelo mago; LISIPO é o grande mago dateatralidade, o autor da magia teatral que, encantando os perso-nagens, transformando-os em fantasmas, envolve também o lei-tor/espectador; em aparte comenta, confirmando a eficiência desuas imagens, atuantes no teatro da memória:

Sale el Príncipe Federico

LIS.– [Aparte.]Su misma forma retratasucediendo lo que había

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de suceder. (p.1136.2)

Por analogia a forma ou imagem conhecida pelos senti-dos externos – a vista – transfere-se para a faculdade imaginativa.

Do sensível para o inteligível, como em um espelho, aimagem se reflete, semelhante à materialidade do real; ali perma-nece e se representa na memória, teatraliza-se atuante, no teatroda memória; como observou LISIPO com referência a CINTIA eLIBIA – Repara/que no son Cintia ni Libia/las dos, sino... –também aqui, em fantasia da ilusão, apresenta-se FEDERICO,pois su misma forma retrata. Observamos que:

el sentido externo de la vista se endereza más eficazmentehacia las cosas externas visibles, hacia aquellas (especiessensibles) con las que el sentido interno – es decir la facultadimaginativa se dirige hacia las especies fantasiables casicomo en un conocimiento idéntico (BRUNO, 1987,p.354).

Os diálogos da situação 22 deixam apreender signos espaci-ais: palacio, jardines. Os atrativos da vida na corte – saraos, paseosy danzas – desvelam-se na réplica de CINTIA e a limitação espacialimposta aos dois jovens se infere da réplica de FOCAS. Assim,

CIN.– El Cielo os guarde; y pues obligada al hospedaje me veo, procuraré que no haya espacio en que no os diviertan saraos, paseos y danzas.FOC.– No paséis los dos de aquí, quedaos: en la hermosa varia estancia de esos jardines esperad mientras que salga. (p.1137)

E ao final dessa situação, LISIPO y FOCAS al paño, como es-pectadores, observam a atuação de LEONIDO e HERACLIO. Omago, conduzindo os fios da ação mágica, observa:

LIS. – Desde aquí podrás ahoraver cómo en un lance andan,poniéndoles la piedaden dos iguales balanzas. (p.1137,1)

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A indicação al paño, como o aparte, estabelece a relação entre olugar cênico e o espectador, estendendo a espacialidade, levan-do-a para fora, em uma dinâmica de cena/espectador. Por isso,observamos que

La abundancia con que el teatro calderoniano acude aestos recursos expresivos de concentración ydesbordamiento hacia el ámbito espacial de los espec-tadores viene a confirmar elocuentemente en él laconcepción y sentimiento de continuidad espacial ca-racterístico no sólo del teatro, sino en general de la obrade arte barroca (OROZCO DÍAZ, 1988, II ,p.233).

O II ato alcança o clímax, com as réplicas de LEONIDOe HERACLIO, quando se revelam ambos para FOCAS e LISIPOque o assistem; estão os apartes de ASTOLFO e de LISIPO:

AST.– (Aparte.)¡Con el ansia,que Focas a socorrera Leonido se adelanta!

LIS.– (Idem.)¡Con el afecto que Cintia,aun entre las sombras vanas,deteniendo a Heraclio, hizolo que yo hiciera!

LEON.– ¡Qué rabia!AST.– (Idem.)

¡Oh secreto lo que dices!Vanse HERACLIO y ASTOLFO.

LISI.– (Idem.)¡Oh secreto lo que callas!

...........................................CIN.– Escucha, aguarda.

¿Qué te va diciendo, Focas,la experiencia?

FOC.– Mucho y nada,pues que quedo con mis dudasal ver que iguales me agradan,en el uno la soberbia,y en el otro la templanza. Vase.

LIS.– Pues date prisa a saberlo;que si el término se pasa,

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en un punto que esto sobre,verás que todo esto falta.(p. 1138,2)

Na réplica de LISIPO, no signo sombras a referência a fantasmasconfirma a faculdade imaginativa atuando para a representação noteatro da memória mágica. Porém, há um tempo limite; o espaço sedelimita pelo tempo necessário à representação. Espaço e tempo seespecificam, materializam-se para desvendar a verdade; como noespelho de IRIFELA, o espaço da teatralidade se faz espelho, mu-dando o tempo, transpondo espaços, do sensível ao inteligível; aatuação perceptível dos personagens permite desvendar-lhes o im-penetrável do espírito, para a revelação do caráter. O mago tece osfios da mágica teatralidade e o leitor/espectador tenta desvendarpor si mesmo quem é LEONIDO, quem é HERACLIO e qual é ofilho de FOCAS.

O III ato delimita o espaço – jardín – e se estabele a dife-rença entre o Jardín mencionado por FOCAS anteriormente –enla hermosa varia/estancia de esos jardines/esperad... – , situação23, espaço dos mirabilia de LISIPO e o espaço, onde, por mo-mentos, se interrompe a representação pela faculdade imaginativa.Informa a didascália:

Salen CINTIA, LIBIA, ISMENIA, Damas [Músicos

CIN.– Ya que al conjuro de aquelfuerte, poderoso hechizo,fingimos lo que no somosseamos lo que fingimos.

LIB.– Dices bien; ...................

hasta que de otra ilusiónden sus pasiones indicio.

ISM.– Buena es para descubrirla interior, la que Lisipotrazando está.

CIN.– Cantad, pues.ISM.– Ya tono y letra fingimos.DAM. y MUS. – (Cantan).

Los ojos que dan enojosal ver y mirar con ellos,más valiera no tenellos;pero bueno es tener ojos. (p.1138,1)

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A réplica de CINTIA faz referência ao já representado aquel/fuerte,poderoso hechizo, jogo entre fingir e não ser; entre ser e fingir e,para retomar a teatralidade da representação, mostra otra ilusión,como esclarece o mago. E no jardín, as réplicas dos personagensevidenciam um hiato estabelecido entre uma e outra ilusão. Porém, aréplica de ISMENIA antecipa a ação do mago e a especifica: lainterior, la que Lisipo/trazando está. O signo interior situa (la) otrailusión, mencionada pelo mago, e permite definir o espaço da magiacomo espaço da imaginação. E para manter o fingido, interrompidomomentaneamente pelo verdadeiro, CINTIA ordena: Cantad, pues.Didascália implicita, determinando o cumprimento imediato Ya tonoy letra fingimos, declara ISMENIA. As duas, parceiras de LISIPO,tecem com ele os fios da magia; tono y letra signos do encanta-mento, indiciam a transformação do espaço, preparando-o para aentrada dos príncipes, retomando, portanto, o encantamento:

DAM, y MÚS.– (Cantan.)Los ojos que dan enojosal ver y mirar con ellosmás valiera no tenellos;pero bueno es tener ojos. (p.1138,2)

A estrofe deixa evidente a importância dos olhos e o jogo semânti-co entre ver e mirar. Semantização bastante significativa na situa-ção 2, onde se depreende, também, o valor dado aos sentidos davista e da audição, estabelecendo a preferência dos dois jovens.Ver, mirar e ouvir assinalam a teatralidade incial, quando LEONIDOe HERACLIO entoam, alternadamente, cada verso da estrofe:

Salen por dos lados LEONIDO y LUQUETE, HERACLIO y SABAÑON

LEON.– Los ojos que dan enojos...HER.– Al ver y mirar con ellos...LEON.– ... más valiera no tenellos...HER.– ... pero bueno es tener ojos...LEON.– Siempre la música fue el imán de mis sentidos. .......................................HER.– Aunque pudiera este acento

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haberme hasta aquí traído, más a seguirle me mueven los ojos que los oídos.SAB.– Haces bien; porque no hay solfa como el [mi–re] de lo lindo.DAM. y MÚS.– Los ojos... (p. 1139,1)

O jogo de palavras feito pelo gracioso SABAÑÓN [mi-re] e a répli-ca de HERACLIO estabelecem a distinção entre ver e mirar:

HER.– Ver, mirar y llorar, ser tres cosas no he de dudar; ver, que es ver, y no cuidar; mirar, que es cuidar y ver; (p.1139,2)

Essa distinção é notória, uma vez que mirar implica em cuidar y ver;portanto, a presente análise, considerando os mirabilia, evidencia araiz mir, miror, mirari, e encontra na distinção da estrofe acima, umexemplo significativo.

A entrada de LISIPO, situação 3, III ato, interrompe ateatralidade, caracterizada pela alternância de réplicas e música.O mago, condutor da magia, deve manter a dinâmica da ação:

LISIPO – No prosigas, porque Focas en el bello laberinto que hace en esos cenadores la amenidad de este sitio, con la dulzura del canto rindió al sueño los sentidos. (p.1139)

Os signos espaciais bello laberinto, cenadores, sitio merecem desta-que. E cenador, espaço geralmente redondo, nos jardins, cercado deplantas, trepadeiras, árvores, formaliza a espacialidade na represen-tação. No jardim, uma vez mais, estão espaços redondos, como a luado espelho imaginado de IRIFELA e o círculo de ANASTASIO. Odêitico esos leva a inferir o espaço dos demais personagens: um doscenadores. Na didascália implícita está a qualificação da música: ladulzura del canto. Desse modo, o espaço circular da magia é envol-vido pela doçura do canto. E a ordem, didascália implícita motriz(HERMENEGILDO,1989,p.167), partindo quase sempre de CIN-

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TIA determina a mudança espacial:

CINT.– Retiraos todos, ....... Vanse LIBIA , ISMENIA, Damas y Mú-sicos. (p.1140,1)

A saída dos personagens define a situação 4, onde asreferências aos jardins e à situação espacial de LISIPO, condu-zem o encantamento:

LUQ.– Vamos, Sabañon, a versi hay en jardines tan ricosalgo que comer.SAB.– iQué haya quien plante rosas y lirios, claveles y tulipanes, y no coles y pepinos!

Vanse los dos.LIS.– [Aparte, a CINTIA .] Mira que le has de decir a Heraclio lo que te digo que en voz de Cintia le [adviertas].CINT.– Si diré, pues, que te asisto para obedecerte.LIS.– [Aparte, a LIBIA .] Tú, en voz de Libia, a Leonido lo mismo dirás.LIS.– Sí, haré. (Aparte.) Así veré si consigo la única experiencia, ya que Cintia callar me hizo. Vase.

(p. 1140,1)

No jogo verdade/mentira, os graciosos mantêm a fronteira entrefingido e verdadeiro, como Sancho Panza. Em suas réplicas, estãosignos referentes aos jardins, portanto, aos cenadores mais especi-ficamente: ricos, rosas, lirios, claveles y tulipanes, diferente deselva. O jardim, como natureza ordenada pelo homem, se opõe àselva, natureza não tocada pela organização e gosto humano. Uma

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vez mais, a denegação teatral se destaca pelas réplicas de LISIPO,CINTIA e LIBIA; o verdadeiro se opõe ao fingido para que omago possa orientar os atuantes em seu processo mágico; por isso,CINTIA, en voz de Cintia e LIBIA, en voz de Libia. Cada perso-nagem representa seu próprio papel na teatralização fingida, imagi-nada; no teatro da memória, os personagens podem ser semelhan-tes às pessoas reais (BRUNO, 1987, p.336-341).

As situações 6 e 7, tendo como espaço o jardim mágico,transcorrem com os diálogos dos personagens, permitindo queLEONIDO e HERACLIO, oportunamente, revelem seu caráter. Adidascália “Sale Focas, que se reclina a un lado del jardín”, permi-te ao rei, como espectador, assistir à representação dos jovens. Aofinal da situação7, em aparte, FOCAS observa:

. – ..............................¿Qué fuera que de fingidoa verdadero pasara? (p.1141,1)

Portanto, o espaço cênico confirma o espaço mágico, lua imaginada,jardim da magia de LISIPO. As répicas dos personagens em apartes,situações 7 e 8, destacam a teatralidade: os personagens falam para simesmos, pensam em voz alta. Um não vê o outro, o que determina aespacialidade de cada um, espaço interdito, pessoal, delimitado. Essaespacialização delimitada prepara o clímax e como recurso deteatralização destaca o gesto de LEONIDO:

[Saca LEONIDO el puñal;HERACLIO al verlo, saca también

el suyo.]

HER.– (Aparte.)¿Qué es lo que intenta Leonido?

LEON.– Muera.HER.– No muera.

[A las voces, despieta FOCAS.] (p.1141,2)

A interdição espacial permanece. Na réplica de LEONIDO: - Muera,está também o gesto, a ação. A negativa de HERACLIO: No muera,impedindo o gesto do outro, desfaz a delimitação espacial, a fron-teira entre ambos; HERACLIO, observando LEONIDO, é espec-tador; para impedir que se cumpra o gesto do outro, deixa seu

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espaço, formalizando a dinâmica do lugar cênico. FOCAS, ador-mecido, não participa, mas é a causa do desenvolvimento da ação.A magia cumpre sua função; a representação imaginada do teatroda memória permite ao leitor/espectador identificar o filho de FO-CAS: LEONIDO

Na situação 11, Focas expressa sua dúvida:

. – ............................no sé con qué oculta causa,sin asustarme en Leonidoel acero, vi el de Heraclio,jurara, en mi sangre tinto:..................................FOC.– Tú, ¿qué infieres?LIS.– Si pudierayo hablar, ya lo hubiera dicho;pero hay deidad que mi vidaamenaza si lo digo.

FOC.– Pues oblígalos a queesos formados prodigioslo digan.

TODOS.– Ya mal podrá,obligarnos ni oprimirnos.

LIS. y FOC.– ¿Por qué?LIB.– Porque ya fatal...CIN.– Cumplió el término preciso...ISM.– El día, en aquel instante...LIB .– En que forzados venimos...TODOS.- A la fuerza de un conjuro

y de un encanto al hechizo. [Desaparecen todos de impro- viso, y se muda el teatro en mon- te quedando solos FOCAS y LISIPO.]

FOC.-Oíd, esperad.LIS.– Es en vano;

y pues te dejo en el sitio,que te encontré, lo que calloinfiere de lo que has visto

FOC.– En la propiaacción, y el próprio distritoque perdido me dejaronmonteros y criados míos,vuelvo a hallarme, sin que haya(en tan nunca visto estilo,

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que fue síncopa de un año,o paréntesis de un siglo (p. 1142,1)

A elocução de FOCAS, acima, desvela a paternidade; um levanta-mento de todos os índices da filiação de LEONIDO distinguem,consequentemente, a filiação de HERACLIO. LISIPO, sabiamentecomo mago, não deve falar. Determina a interação entre os persona-gens, atua magicamente sobre eles, mas não fala. A função do magoé operar os elementos, estabelecer vínculos, encantar o(s) outro(s),induzir a faculdade imaginativa a se abrir em espaços mentais, dei-xando representar o teatro da memória. A memória mágica desvelao passado de FOCAS em Trinacria – vengo a conseguir en ella/lavanidad de que quien/bandido me vio, me vea/coronado Rey;... e ali,no espaço mental aberto – o rei o busca -, a vontade se expressaporque assim o entende FOCAS; o pensamento, induzido pela ma-gia, finge, imagina fantasmas, sombras da ilusão. Memória, entendi-mento e vontade se formalizam na representação da magia de LISIPO,pois, afortunadísimo el mago que posee mucha persuasión y en elque muchos creen (BRUNO, 1987, p.258).

A réplica de FOCAS confirma a semantização do mágico:esos formados prodigios; sombras de personagens da representa-ção, figuras-personagens fingidos cujo papel se reflete no espaçoutópico do teatro da memória que se faz magia, formando prodígi-os. Porém, os formados prodigios se negam à representação, ne-gam-se ao próprio autor. Negação por um tempo já cumprido, tempomágico, sem indicação cronológica – hora ou minuto – apenas umdia que se termina.

A didascália mostra o teatral espetacular: Desaparecen to-dos de improviso, magicamente com os recursos de máquinas comoa tramoya e o pescante. E LISIPO observa a FOCAS:

y pues te dejo en el sitioque te encontré, lo que calloinfiere de lo que has visto (p. 1142,1)

O espaço e ação da caça são retomados: el monte; narelação texto/representação, os signos espaciais sitio/monte evi-denciam a mudança do espaço seguida da réplica do mago, defi-nindo a espetacularidade teatral. E a réplica de FOCAS confirma,uma vez mais, a magia:

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. – Porque el fin de tanto asombrose enlace con el principio,acosado de los canes. (p.1143,1)

Cumprido o tempo, passado o encantamento, SalenHERACLIO y LEONIDO, vestidos de pieles:

LOS DOS.– Sí, que habiendo tu voz oído...HER.– Vuelvo a saber... Mas ¿qué veo?LEON.– Vuelvo a ver... iqué miro!HER.– ¿Esta no es mi antigua piel?LEON.– Este no es mi traje antiguo?HER.– Este el monte...LEON.– Esta, la selva...LOS DOS.– Donde...FOC.– ¿Qué os há suspendido?HER.– ¿Si he visto lo que he soñado?LEON.– ¿Si he soñado lo que he visto?HER.– ¿Qué se hizo de aquel alcázar dónde estaba?LEON.– ¿Qué se hizo

de aquel edificio?............................................

SAB.– Bien puede ello ser verdad; mas yo he de perder mi juicio.LUQ.– Yo no; que ya no le tengo.HER.– iCielos,! ¿Qué me há sucedido?LEON.– ¿Qué es lo que por mí ha pasado?SAB.– [A LUQUETE.]

¿Hate tu amo despedido, que te quitó la librea?LUQUETE.–[A SABAÑON.]

¿Qué se hicieron los vestidos joyas y plumas?” (p. 1143,1)

O paradigma de todas estas indagações, a magia dosbens materiais, os sonhos imaginados e inimaginados estão emLa Vida es Sueño:

SEG.– ¿Soy yo por ventura?¿Soy el que preso y aherrojado llego a verme en tal estado? (p. 521,2)

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2.10 Visão e aparição do passado

Diferente da visão e aparição do futuro, La aurora enCopacabana, publicada na Quarta parte de comédias do autor, emMadrid, em 1672, apresenta o exemplo significativo de visão e apa-rição do passado. Aqui, a IDOLATRÍA substitui a maga IRIFELA,permitindo ao Inca rememorar sua história, desvelando sua origemmítica em metáfora visiva. Tem como tema a conquista e evangelizaçãodo reino do Peru e se refere à chegada dos espanhóis, à invasão e àimplantação do culto de Nossa Senhora de Copacabana. O primeiroe segundo atos se baseiam nos Comentarios Reales, do Inca Garcilasode la Vega. Em 1586, o autor inicia os primeiros relatos como añoranzaa sus recuerdos infantiles (MARTÍ, p.23,s/d). A primeira parte daobra é publicada em Lisboa em 1609; e, postumamente, a Segundaparte, em Córdoba, em 1617.

Dividido o texto do primeiro ato em situações, na situação 9,a caracterização da IDOLATRÍA vestida de negro con estrellas, es-pada, plumas y bengala, está associada ao demônio. É ela a guardiãdos Incas, opondo-se à proteção da Cruz, de Anjos e da própriaVirgem, junto aos descobridores.

A origem mítica do rei inca é a narrada por Garcilaso de laVega, el Inca:

– Nuestro Padre el Sol (...) se apiadó y hubolástima dellos y envió del cielo a la tierra unhijo y una hija de los suyos para que losdoctrinasen en el conocimiento de Nuestro Pa-dre el Sol, para que lo adorasen y tuviesen porsu Dios... Con esta orden y mandato pusoNuestro Padre el Sol estos dos hijos suyos en lalaguna Titicaca (ibidem, p.48)

Manco-Cápac, o primeiro rei, descendente do Sol, estárepresentado como personagem na obra de Calderón. No finalda situação 18, o diálogo entre o Rei e a IDOLATRÍA informa

IDOL.– Oye atento. Manco–Cápac, rico y noble cacique, fue a quien el cielo... Pero, antes que yo a decirlo, quiero que llegues tú a verlo;

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que no he de hacer sospechosa mi verdad; y así, pretendo que en su crédito afiance un portento a otro protento. (p. 1328,1)

Ela oferece ao Rei a visão de sua origem, de sua historia, metáforavisiva de un portento a otro portento. O passado se faz presente emmirabilia. Visão do passado por ato da IDOLATRÍA que volta notempo, penetra o passado e trazendo a origem a torna presente,abrindo espaços, definindo o locus, a composição de lugar:

Ábrese un peñasco y vese a unJOVEN, vestido de pieles, recostado

en una peña.¿Qué ves en aquesta gruta?

INCA.– Un hermoso joven bello,que sobre una peña yace,de toscas pieles cubierto, (p.1328,2)

A representação dos mirabilia, metáforas visivas, especifica aexpressão da teatralidade, estendendo espaços, permitindo a re-presentação dentro da representação, o teatro dentro do teatro.Os portentos oferecidos pela IDOLATRÍA são assistidos por elae pelo INCA; como espectadores, situados em seus espaços, ad-miram, caracterizando a aparição como não-subjetiva. Didascáliae diálogos confluem e se completam na relação texto/representa-ção. A réplica do INCA confirma a didascália inicial naespecificação do espaço que se materializa para o espectador eprepara o leitor para se situar na espacialização; porém, apelandopara os sentidos, é preciso também ouvir:

IDOL.– Pues escucha lo que dice.INCA.– Ya a sus razones atiendo.EL JOVEN.– ¿Cuándo, padre, será el día

que de aqueste oscuro centrome saques a ver la luz? (p.1328,1)

A réplica do personagem especifica, reiterando, o espaço: obscu-ro centro de onde quer sair para ver a luz, pois uma promessadeve ser cumprida:

....................................................¿qué aguardas para que llegue

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a verme en el trono excelsoque me has prometido? (p.1328,1)

O questionamento do JOVEN indicia um outro locus, espaço ondeele estará representado como rei; o signo trono é índice do espaçode realeza e, em polissemia, é também uma promessa, realeza futu-ra, anunciando a situação seguinte, dando prosseguimento a ação.Porém, o espaço de conotação negativa é reiterado:

Ven, pues ven a que segundavez nazca del duro senode aquesta roca. (p.1328,1)

Os signos duro seno, roca, ao final da réplica, mantêm a relaçãoentre espaço e personagem. E Ciérrase la gruta. A IDOLATRÍArealiza prodígios, tem o poder de abrir e fechar espaços; tem opoder de desordenar o tempo, como o mago LISIPO:

IDOL.– ¿Qué mucho si ha de decirlootro prodigio primero?Ya has visto el centro del monte;pues pasa de extremo a extremoy mira ahora la cumbre. (p.1328,1)

A espacialização se diversifica na relação dentro/fora, baixo/alto e os mirabilia se representam, pois o jovem mira ahora lacumbre. E:

Va saliendo por lo alto del pe–ñasco un sol, y tras él un tronodorado, con rayos, y en su arace–li sentado el mismo JOVEN de antes,vestido ricamente, con coronay cetro.¿Qué ves en ella?

INCA.– No puedodecirlo; que me deslumbraun sol que va amaneciendoen su oriente.

IDOL.– Pues porfíaa mirarle; que lo mismohacen cuantas gentes ves

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concurrir a ese desierto.INCA.– Es verdad; todo poblado

de gentes está, y ya intentoverlo. (p.1328,1)

Na réplica da IDOLATRÍA destaca-se o signo mirarle. A oposiçãoentre os dois espaços representados permite, também, a caracteri-zação do personagem. A oposição entre os espaços relaciona ahistória: o primeiro, em tempo remoto, representa os Incas em seusprimórdios: montes y breñales; gentes como fieras; cubrían suscarnes con hojas y cortezas de árboles y pieles de animales(GARCILASO DE LA VEGA, s/d, p.46). O segundo ilustra a ori-gem mítica do rei Inca, MANCO-CÁPAC. Representação dentroda representação, mirabilia que se mira em espaços que se esten-dem em perspectiva: va saliendo por lo alto del peñasco un sol.Ação durativa, localização espacial, espaço concreto e luz, respec-tivamente, opõem-se à gruta, à escuridão, espaço simbólico dosincas, anterior à chegada do filho do Sol.

IDOL.– ¿Y qué ves?INCA.– Entre varios

tornasoles y reflejos,que como sin ver al solno se ven, ciegan al verlos,miro que como pedazosuyo, va otro sol saliendoen un luciente, un hermosotrono, en quien, como en espejo,parece que él mismo estáretratándose a si mesmo,(p. 1329,1)

A réplica do personagem complementa a didascália inicial e pintapara o leitor/espectador em metáfora visiva, o portento, o prodígio.

A atuação da IDOLATRÍA, operando mirabilia, tem comoparadigma IRIFELA, ANASTASIO e LISIPO. Anastasio invocaespíritos impuros. Para Calderón de la Barca e a ideologia contra-reformista, os espíritos invocados são impuros, contrariamente àmagia natural que opera com o espíritu o alma que existe nas coi-sas, como já evidenciamos. E em Las cadenas del demonio, SANBARTOLOMEO declara que em IRENE habla el espíritu impu-ro/del demonio (idem, ibidem, p.653,2). Portanto, os espíritos im-

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puros estão associados ao demônio, evidentemente.LISIPO propõe a FOCAS a visão do futuro; como mago

pode operar no tempo e, em metáfora visiva, em mirabilia, alcan-çar o futuro. A IDOLATRÍA, como LISIPO, opera no tempo etraz espaços do passado.

É rememorando a história e a origem mítica dos incas, atu-ando no tempo e operando no espaço, que a IDOLATRÍA oferecea MANCO-CÁPAC a visão do passado remoto, antes da chegadado filho do Sol, e também, no passado, a visão luminosa de suachegada. A história rememorada se representa em um espaço men-tal dinâmico que se faz teatro da memória.

Desse modo, a IDOLATRÍA em La aurora en Copacabana,caracterizada como demônio, é, portanto, a protetora dos incas,dos pagãos, dos não-cristãos, é paradigma do mago. Pois somenteo mago, conceituado como sábio em todo o Renascimento, reco-nhecido no século XVII, é capaz de operar a natureza, estabelecervínculos, simpatias ou amor entre seus elementos pela magia natu-ral, reiterando Plotino: Mais comment expliquer les charmes de lamagie? Par la sympathie (ibidem, iv,4,40, p.148).

O mago ascende aos astros para captar os espíritos da na-tureza, para mudar a influência astral e determinar o seu destino;mobiliza os espaços, atua no tempo, realizando, em efeitos fantás-ticos, a representação no teatro da memória.

Assim, a IDOLATRÍA, IRIFELA, FALERINA,ANASTASIO e LISIPO são os magos da teatralidade: esten-dem espaços, efetuando maravilhas na representação dentro darepresentação, no teatro da memória.

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IIIConclusões

Podemos afirmar que o teatro de Calderón de la Barcaformaliza a coexistência do maravilhoso cristão e do maravilhosopagão, em representação no teatro da memória.

Desse modo, apreendemos, acrescentando aos estudos e in-terpretações da dramaturgia calderoniana, uma estética teatral emsonhos, visões e aparições. Apreensão possível pela análise de umcorpus delimitado da obra completa do dramaturgo – comédias, dra-mas, autos sacramentais e obras menores – objetivando definir espa-ços mentais, arte da memória, decorrentes do pensamento escolásticoe renascentista neoplatônico, concretizados na poesia dramática quese aguarda para a representação material no lugar cênico.

O texto dramático, materialidade para o leitor, mostra-sevirtual para a representação. Na dicotomia texto/representação,destacamos, na extensa obra de Calderón de la Barca, o teatro damemória, especificação do maravilhoso como metáforas visivas esua expressão como mirabilia, justificando a reflexão sobre o ter-mo maravilhoso, cuja raiz mir (miror, mirari) expressa-se em coi-sas admiráveis, em prodígios; o olhar diante de um espelho admira;e a raiz speculum, specchio, espelho, mostra-se na metáfora danatureza como o grande espelho da extra ordinem divina, dando-se em escritura, revelando-se na leitura. Na dicotomia cristão/pa-gão, a Igreja é o grande veículo de concretização das manifesta-ções do maravilhoso cristão; considerando a herança acumuladapela vida de mártires e santos, deixa o quotidiano para apresentaros fatos extraordinários, opondo-se ao estabelecido, ao ordenadopela lei dos homens. Os mirabilia vivenciados pelos humildes epelos grandes nomes da fé cristã mostram o exemplo e o modelo,ideal para todos, reafirmando a fé católica frente à reforma luterana.A propaganda da fé católica, a ideologia contra-reformista forma-

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lizam a representação artística e evidenciam a estética horacianade ut pictura poesis.

A poesia dramática de Calderón de la Barca exprime a açãode homens da Igreja, vivenciando a manifestação do poder divinoatravés da representação de espaços mentais; o pensamentoescolástico, em expressões de sonhos, cumpre a ideologia contra-reformista ao representar, em La protestación de la fe, o sonhoprofético de CRISTINA, rainha da Suécia, convertendo-se ao ca-tolicismo. Em sonhos paralelos, La devoción de la misa exemplificaa oposição entre muçulmanos e cristãos, entre ALMANZOR e oCONDE castelhano e ilustra a verdadeira religião – a católica, frenteà SECTA. Ainda dentro da oposição muçulmanos/cristãos, El granpríncipe de Fez apresenta o sonho especular, quando no teatro damemória, a destituição das insignias de poder e autoridade deMawlay Mauhammad, converso à fé cristã está em cena. Temáticamitológica, Fortunas de Andrómeda y Perseo, sonho como co-nhecimento do passado, ilustra o desejo de PERSEO sobre o enig-ma de sua origem.

Quando o humilde católico transpõe o sensível, para estarno inteligível, união no celestial com um ÁNGEL ou diálogo coma Virgem, o protagonista formaliza as visões; e em El gran prínci-pe de Fez aponta o exemplum da fé verdadeira, diferente daquelaque lhe oferece Alá. A afirmação da ideologia contra-reformistaopõe maometanos e cristãos e, mais especificamente, católicos. Avisão através do espelho, subjetiva, permite a SAN PATRICIO iden-tificar o clamor do povo da Irlanda, através do espelho que lhe étrazido pelo Anjo, quando o santo deixa o sensível e, por suas pre-ces alcança o inteligível, em El purgatorio de San Patricio. A fortepresença dos Exercícios Espirituais de Ignacio de Loyola, naformalização de espaços mentais, intensifica os sentidos, imprimin-do as formas, espacializando as imagens.

A poesia dramática institui, também, a visão e aparição atra-vés do espelho, quando a metáfora visiva se mostra a duas ou maispessoas. Em El Conde Lucanor, a maga IRIFELA, comoFALERINA, em El jardín de Falerina, descobre a lua fingida doseu espelho; porém, espelho da verdade, metáfora da natureza, paraque o SOLDÁN e o DUQUE vejam com ela a afetação deCASIMIRO, a animosidade de ASTOLFO e a honestidade deLUCANOR. A visão e aparição à distância promovida pelo mago

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Mogundat, converso ANASTASIO, evidencia o gesto mágico, re-duzindo distâncias em La exaltación de la cruz, quando os prínci-pes SÍROES e MENARDES vêem a invasão de Jerusalém porCÓSDROAS, rei da Pérsia. A visão e aparição do futuro se forma-liza na obra En esta vida todo es verdad y todo mentira. LISIPO, ogrande mago calderoniano, propõe fingir a condensação do tempoe, atuando na memória imaginativa de todos os personagens, en-volve-os com encantamentos, através de músicas e cantos – seme-lhantes aos cantos órficos. Sombras e fantasias se representam nopalácio fantástico do mago. Por último, a visão e aparição do pas-sado, em La aurora en Copacabana, permite identificar aIDOLATRÍA com a maga IRIFELA, quando mostra o passadodos incas, antes da chegada do filho do Sol e a sua vinda, apelandopara a memória de MANCO CÁPAC.

Pela magia, eles, os magos calderonianos, expressãoneoplatônica renascentista no teatro barroco do século XVII, indu-zem a imaginação a criar espaços mentais e a deixar-se representarno teatro da memória mágica, mantendo presente a escolástica me-dieval, através dos Exercícios Espirituais de Ignacio de Loyola, for-malizados, por sua vez, no sonho da rainha CRISTINA, do CONDEGARCI-FERNÁNDEZ, do Príncipe de Fez; na visão de SANPATRICIO, dialogando com o ÁNGEL no inteligível; também navisão do virtual converso, o Príncipe de Fez dialoga com a Virgemporque a fé do cristão é superior à seita maometana. A ideologia daContra-Reforma, a expressão do teatro barroco e da arte barroca doséculo XVII mostram, em diferença, a escolástica medieval e oneoplatonismo renascentista, na arte do dramaturgo católico, de for-mação jesuítica. A dramaturgia de Calderón de la Barca permite-nosdesvelar, portanto, a coexistência do maravilhoso cristão e do mara-vilhoso pagão em representações no teatro da memória.

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